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Unidade I Diversidade cultural: respeito e valorização

Apostila EGES Respeito e Valorização

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Curso Gênero e Sexualidade

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  • Unidade I

    Diversidade cultural: respeito e valorizao

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    1. Uma definio de cultura

    No passado, ou no presente, nas mais diversas partes do globo, homens/mulheres

    no deixam de se organizar em sociedade. E de se questionar a respeito de suas ori-

    gens e sobre o mundo que os rodeia. Uma aura de mistrio sempre contornou os

    stios arqueolgicos das grandes civilizaes: os relevos das pirmides mesoameri-

    canas, os calendrios dos habitantes do altiplano andino, os hierglifos encontrados

    em famosas tumbas dos faras do Egito. Todos so descobrimentos que tm estimu-

    lado, na atualidade, a imaginao, colocando interrogaes em torno dos povos do

    passado. No deixam, no entanto, a menor dvida quanto a constatar a sofisticao

    do pensamento, da viso de mundo e das manifestaes estticas e culturais daquelas

    sociedades.

    No precisamos recuar tanto no tempo para encontrar formas variadas de organi-

    zao social e de expresses culturais: nossos antepassados agiam e pensavam de

    maneira diversa da nossa. Em um passado no muito distante, a situao da mulher

    no Brasil, por exemplo, era bastante distinta da atual. Os costumes das famlias de

    nossa oligarquia rural exigiam que os pais escolhessem aquele que desposaria sua

    filha. Uma srie de fatores influa na deciso: desde alianas antigas, obrigaes rec-

    procas, promessas feitas, s vezes antes do nascimento dos filhos e filhas. At mesmo

    o dote e interesses econmicos, contando muito pouco a opinio e vontade desses/as

    descendentes que iriam se unir em matrimnio.

    Hoje j no mais assim e, embora elementos de ordens mltiplas interfiram na

    escolha do/a parceiro/a, o desejo individual representado pela coletividade como

    decisivo. A diversidade das manifestaes culturais se estende no s no tempo, mas

    tambm no espao. Se dirigirmos o olhar para os diferentes continentes, encontrare-

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    mos costumes que nos parecero, luz dos nossos, curiosos ou aberrantes. Do mes-

    mo modo que os povos falam outras lnguas, expressam das mais variadas formas

    seus valores culturais. A vinda de uma criana ser festejada de modo diferente em

    So Paulo, na Guin-Bissau ou no norte da Sucia: a um mesmo fato aparente o

    nascimento cada cultura atribui significados distintos, e os torna perceptveis por

    meio de suas formas de exteriorizao.

    No Brasil nos deparamos com uma riqueza cultural extraordinria: 200 povos in-

    dgenas falam mais de 180 lnguas diferentes. Cada nao indgena possui uma ma-

    neira particular de ver o mundo, de organizar o espao, construir a casa e marcar

    os momentos significativos da vida de uma pessoa. Longe de constiturem um todo

    homogneo, os/as indgenas tm particularidades culturais, pertencentes a cada gru-

    po, embora haja caractersticas que os/as aproximam, quando comparados/as so-

    ciedade nacional. H mais de 2.200 comunidades remanescentes de quilombos no

    Brasil, com caractersticas geogrficas distintas, com meios variados de produo e

    de organizao social.

    Se compararmos, ainda, o campo com o meio urbano ou as diferentes regies do

    pas, nos daremos conta da diversidade existente entre seus habitantes. Falamos a

    mesma lngua, porm, com acentuada diferena tanto no que se refere ao vocabul-

    rio quanto ao sotaque. Essa distino muitas vezes pode criar dificuldades na comu-

    nicao entre as pessoas do campo e da cidade, ou de regies distintas do pas.

    Noes como espao e tempo tambm so marcadamente diferenciadas no campo e

    na cidade. A imensido da paisagem local com a qual se depara o/a sertanejo/a ficar

    na memria, da mesma forma que moradores/as de uma cidade, como So Paulo,

    por exemplo, tero para sempre a imagem de seu horizonte nublado por arranha-

    cus e viadutos. No campo, a relao com as estaes do ano d outra dimenso

    ao tempo, criando um calendrio: o sucesso na colheita, a poca do plantio ou da

    procriao do rebanho so definidos por perodos de chuva/seca, no caso de grande

    parte do Brasil, ou pelas estaes do ano, no caso dos pases frios e temperados. No

    calendrio rural, h festas relacionadas com as colheitas ou com as chuvas que che-

    gam aps longa estiagem.

    A cidade contempornea, por outro lado, longe de ser o lugar da homogeneidade

    cultural, caracterizada pelo encontro e pelo conflito de diferentes grupos. A

    religio pode ser um bom exemplo: uma criana ou um/a jovem criado/a por pai e/

    ou me catlicos, que frequentam uma Comunidade Eclesial de Base, ter uma viso

    de mundo e um estilo marcados pelo fato de pertencerem a um dado grupo religioso,

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    que certamente diverso daquele de uma criana, sua vizinha, criada em meio um-

    bandista ou de frequentadores da Igreja Universal do Reino de Deus. Essas crianas

    devero conviver ainda com aquelas, educadas em ambientes em que a religio no

    relevante, ou mesmo, explicitamente ateus.

    Tambm na cidade, encontramos indivduos de origens distintas. H famlias recm-

    chegadas do campo que, portanto, no conhecem ou tm dificuldade de lidar com

    uma srie de instrumentos caractersticos do meio urbano, como, por exemplo, o

    metr, presente em algumas capitais, com suas escadas rolantes, portas automticas,

    escurido dos tneis e sinalizaes coloridas. Ao pedir uma informao, o sotaque e

    a atitude corporal dessas pessoas revelam a origem rural, podendo torn-las alvo de

    chacota e objeto de discriminao.

    H ainda a situao particular das crianas que, em suas casas, falam outro idioma

    que no o oficial, usado na escola ou na rua. O fato de falarem mais de uma lngua,

    o que seria, a princpio, uma vantagem, pode se transformar em pesadelo, para essas

    crianas, quando no contempladas e respeitadas em suas particularidades. Esta

    uma realidade comum em cidades que contam com a presena de grupos de imi-

    grantes e de comunidades indgenas, por exemplo.

    Existem ainda as diferenas entre geraes. Por exemplo, um/a adolescente ou mes-

    mo uma criana de classe mdia urbana sabe usar o computador com facilidade e

    destreza, pois faz parte de seu universo social. J seus pais, mes ou avs podero ter

    dificuldade ou no querer saber como utiliz-lo, por terem sido socializados/as em

    um ambiente em que a informtica no fazia parte do cotidiano. Uma cena comum

    em agncias bancrias composta por pessoas impacientes com idosos/as que demo-

    ram para realizar operaes nos caixas eletrnicos.

    Acreditamos que podemos agora arriscar uma definio de cultura: fenmeno uni-

    camente humano, a cultura se refere capacidade que os seres humanos tm de dar

    significado s suas aes e ao mundo que os rodeia. A cultura compartilhada pelos

    indivduos de determinado grupo, no se referindo a um ato individual. E como

    vimos, cada grupo de seres humanos, em diferentes pocas e lugares, atribui signifi-

    cados diferentes a coisas e passagens da vida aparentemente semelhantes.

    A cultura, portanto, vai alm de um sistema de costumes, objeto da interveno

    humana que faz da vida uma obra de arte inventvel, legvel, avalivel, interpretvel.

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    2. Uma definio de cultura

    A diversidade cultural est presente na prpria histria da humanidade. consti-

    tutivo das sociedades humanas apresentar um mecanismo diferenciador: quando o

    encontro de duas sociedades parece gerar um resultado homogneo, em seu interior,

    surgem distines significativas que determinam as fronteiras entre os grupos so-

    ciais. Por outro lado, grupamentos sociais, que esto em contato h muito tempo,

    mantm, com zelo, os elementos definidores de sua identidade. A Europa pode ser

    um bom exemplo: trata-se de um continente que historicamente reivindica um pa-

    trimnio cultural comum, ao mesmo tempo em que as vrias naes e regies euro-

    peias afirmam constantemente suas singularidades.

    No Brasil nos deparamos com um fenmeno da mesma natureza: se por um lado

    um pas onde seus habitantes compartilham um universo cultural e uma lngua, por

    outro, uma sociedade complexa e caracterizada justamente por sua imensa diver-

    sidade interna. E a diversidade brasileira, como dito anteriormente, no se esgota

    com as sociedades indgenas e comunidades quilombolas. Os movimentos negros,

    h muito, nos lembram que a origem da populao de afro-descendentes com seus

    universos culturais, suas formas de resistncia, sabedorias e construes de conheci-

    mentos, sua viso de mundo, organizao, luta etc. acaba por definir um universo

    de referncia especfico desses grupos.

    A construo da identidade negra no Brasil passa, dessa maneira, a ser no apenas

    um mecanismo de reivindicao de direitos e de justia, mas tambm uma forma de

    afirmao de um patrimnio cultural especfico. Muitas vezes a presena dos negros/

    as fica associada escravido, ao samba, s religies de origem africana e capoeira,

    sem que seja reconhecido o devido valor de sua contribuio para a cultura brasileira.

    Falar da diversidade cultural no Brasil significa levar em conta a origem das famlias

    e reconhecer as diferenas entre os referenciais culturais de uma famlia nordestina e

    de uma gacha, por exemplo. E tambm admitir como verdadeiro que em seu inte-

    rior e na relao de umas com as outras, se encontram indivduos que no so iguais,

    que tm especificidades de gnero, raa/etnia, religio, orientao sexual, valores e

    outras diferenas, definidas a partir de suas histrias pessoais.

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    3. Etnocentrismo, esteretipo e preconceito

    A reao diante da alteridade faz parte da natureza das sociedades. Em todas as po-

    cas, sociedades particulares reagiram de forma especfica diante do contato com uma

    cultura diversa sua. Um fenmeno comum, porm, caracteriza todas as sociedades

    humanas: o estranhamento, a que chamamos etnocentrismo. Diante de costumes de

    outros povos, a avaliao de formas de vida distintas se deu a partir dos elementos

    das suas prprias culturas.

    Todas as culturas definem o que as pessoas devem usar como vestimenta e adorno.

    Muitas vezes, a nossa, cultura ocidental, se negou a ver nas pinturas corporais ou em

    adornos e adereos dos grupos indgenas sul-americanos os correspondentes s rou-

    pas impostas por ela, e criou a ideia de que o ndio/a andaria pelado/a, avaliando

    tal comportamento como errado. Recentemente, com a onda ecolgica, o que no

    passado fora condenado, passou a ser valorizado, ou seja, a nudez de ndios e ndias

    os colocaria, de forma mais salutar, em maior contato com a natureza.

    Nada mais equivocado do que falar do/a ndio/a de forma indiscriminada: o et-

    nocentrismo no permite ver, por um lado, que o/a indgena no existe como algo

    genrico, mas nas manifestaes especficas de cada cultura Bororo, Nhambiqua-

    ra, Guarani, Cinta-Larga, Patax etc. E por outro, que nem anda pelado/a nem

    est mais prximo/a da natureza, pela simples ausncia de vestimentas ocidentais.

    Os Zo, ndios Tupi do rio Cuminapanema (PA), por exemplo, utilizam botoques

    labiais; os homens, estojos penianos e as mulheres, tiaras e outros adornos, sem os

    quais jamais apareceriam em pblico. So elementos que os/as diferenciam definiti-

    vamente dos animais e que marcam sua vida em sociedade, da mesma forma que o

    uso de roupas na nossa cultura.

    V-se, com naturalidade, que mulheres, e atualmente tambm os homens, furem

    suas orelhas e usem brincos. Ningum v no ato de furar as orelhas um signo de bar-

    brie, e o uso de brincos comum para homens/mulheres. H pouco tempo, homens

    que usassem brincos eram tidos como homossexuais ou afeminados. O uso de boto-

    ques labiais, por diversos grupos indgenas do Brasil, no foi, porm, incorporado da

    mesma forma. Os brincos que as indianas usam no nariz eram vistos com estranheza,

    pois o nariz no era considerado o lugar certo para colocar brincos, segundo o pa-

    dro de beleza ocidental predominante no pas, at chegarem os piercings, cada vez

    mais adotados pelos/as jovens.

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    O etnocentrismo consiste em julgar, a partir de padres culturais prprios, como

    certo ou errado, feio ou bonito, normal ou anormal, os comportamentos

    e as formas de ver o mundo dos outros povos, desqualificando suas prticas e at

    negando sua humanidade. Assim, percebemos como o etnocentrismo se relaciona

    com o conceito de esteretipo, que consiste na generalizao e atribuio de valor

    (na maioria das vezes, negativo) a algumas caractersticas de um grupo, reduzindo-

    o a essas caractersticas e definindo os lugares de poder a serem ocupados. uma

    generalizao de julgamentos subjetivos, feitos em relao a um determinado grupo,

    impondo-lhe o lugar de inferior e de incapaz, no caso dos esteretipos negativos. No

    cotidiano, temos expresses que reforam os esteretipos: tudo farinha do mesmo

    saco; tal pai, tal filho; s podia ser mulher; nordestino preguioso; servio

    de negro; e uma srie de outras expresses e ditados populares especficos de cada

    regio do pas.

    Os esteretipos so, tambm, de certa forma, uma maneira de biologizar as ca-

    ractersticas de um grupo, isto , consider-las como fruto exclusivo da biologia, da

    anatomia. O processo de naturalizao ou biologizao das diferenas tnico-raciais,

    de gnero ou de orientao sexual, que marcou os sculos XIX e XX, vinculou-se

    restrio da cidadania a negros, mulheres e homossexuais.

    Uma das justificativas, at o incio do sculo XX, para a no extenso s mulheres do

    direito de voto, baseava-se na ideia de que elas possuam um crebro menor e menos

    desenvolvido do que o dos homens. A homossexualidade, por sua vez, era tida como

    uma espcie de anomalia da natureza.

    Nas democracias modernas, desigualdades naturais podiam justificar o no acesso

    pleno cidadania. No interior de nossa sociedade, encontramos ainda uma srie

    de atitudes etnocntricas e biologicistas. Muitos acreditaram que havia vrias ra-

    as e sub-raas, que determinariam, geneticamente, as capacidades das pessoas. Da

    mesma forma, pesquisas foram realizadas para provar que o crebro das mulheres

    funcionava de modo diferente do crebro dos homens.

    Quanto s religies, h mltiplos exemplos de intolerncia, como o candombl e

    outros cultos de matriz africana. O sacrifcio animal em algumas crenas afro-brasi-

    leiras tem sido considerado sinnimo de barbrie, por praticantes de outros credos.

    Trata-se, contudo, simplesmente de uma forma especfica para que homens/mulhe-

    res entrem em contato com o divino, com os deuses, nesses casos, os orixs, cada

    qual com sua preferncia, no que diz respeito ao ritual de oferenda. Outras religies

    pregam formas diversificadas de contato com o divino, classificando e condenando

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    as prticas do candombl, como erradas e brbaras, ou como feitiaria.

    O preconceito de alguns segmentos religiosos tem levado seus seguidores a atacar

    e desrespeitar terreiros e roas. O espiritismo kardecista, hoje praticado nas mais

    distintas partes do Brasil, foi durante muito tempo perseguido por aqueles que, ado-

    tando um ponto de vista catlico ou mdico, afirmavam serem as prticas espritas

    prprias de charlates.

    Se boa parte dos/as brasileiros/as se define como catlica, a verdade que somos

    um pas cruzado por mltiplas crenas, havendo divergncias at mesmo no interior

    do prprio catolicismo: somos um pas plural. A Constituio Brasileira garante a

    liberdade religiosa e de crena, e as instituies devem promover o respeito entre

    os/as praticantes de diferentes religies, alm de preservar o direito daqueles/as que

    no adotam qualquer prtica religiosa. No entanto, bastante comum encontrarmos

    crianas e adolescentes que exibem, com orgulho, para seus/suas educadores/as, os

    smbolos de sua primeira comunho, enquanto famlias que cultuam religies de

    matriz africana so pejorativamente chamadas de macumbeiras, sendo discrimina-

    das por suas identidades religiosas.

    O preconceito relativo s prticas religiosas afro-brasileiras est profundamente ar-

    raigado na sociedade brasileira, por essas prticas estarem associadas a negros e ne-

    gras, grupo historicamente estigmatizado e excludo, e cujos cultos seriam contrrios

    ao cristianismo europeu. Vale lembrar que expresses culturais de matriz afro-bra-

    sileira como o samba, a capoeira e o candombl foram, durante dcadas, proibidos

    e perseguidos pela polcia. Isso mostra que essas prticas foram incorporadas aos

    smbolos nacionais no interior de processos extremamente complexos.

    O caso mais evidente o samba, que de msica de negros/as passou a ser caracteri-

    zado como msica nacional. As religies afro-brasileiras, no entanto, ainda enfren-

    tam um profundo preconceito por parte de amplos setores da sociedade: h quem

    considere o candombl como dana folclrica, negando seu contedo religioso; h

    tambm quem o caracterize como prtica atrasada. Em ambos os casos, seu carter

    de religiosidade negado e no tomado no mesmo padro de igualdade de outras

    prticas e crenas.

    Tanto o candombl quanto a umbanda so extremamente complexos. So prticas

    rituais sofisticadas e fazem parte de um sistema mtico que, da mesma forma que a

    Bblia, explica a origem da humanidade, suas relaes com o mundo natural e sobre-

    natural. Os grupos que compem as religies afro-brasileiras possuem conhecimen-

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    to de um cdigo, que se expressa por intermdio da religio, desconhecido de outros

    setores da populao. Enquanto cdigos e expresses culturais de determinados gru-

    pos, as diferentes religies devem ser olhadas com respeito.

    Alm das prticas religiosas, em nossa sociedade, existem prticas que sofrem um

    profundo preconceito por parte dos setores hegemnicos. Ou seja, por parte daque-

    les/as que se aproximam do que considerado correto, segundo os/as que detm

    poder. Seguindo essa lgica, as prticas homossexuais so condenadas, vistas como

    transtorno, perturbao ou desvio normal e natural heterossexualidade.

    Aqueles/as que manifestavam desejos diferentes dos comportamentos heterossexu-

    ais, alm de condenados/as por vrias religies, foram enquadrados/as no campo

    patolgico e estudados/as pela medicina psiquitrica que buscava a cura para aquele

    mal. Foi necessria a contribuio de outros campos do conhecimento para romper

    com a ideia de homossexualismo como doena. E para construir os conceitos de

    homossexualidade e de orientao sexual, incluindo a sexualidade como constitutiva

    da identidade de todas as pessoas.

    A homossexualidade, no passado, foi considerada um pecado, pela religio (e por

    muitos at hoje). Uma doena, pela medicina, e pela psicologia, foi entendida como

    desvio de conduta. Nas ltimas dcadas, os movimentos sociais tm contribudo

    para a superao do estigma que reprova e persegue a homossexualidade. A atuao

    desses movimentos tem provocado mudanas no imaginrio e agregado conheci-

    mentos a respeito da homossexualidade, de maneira a tir-la da clandestinidade.

    H pouco mais de uma dcada, era impensvel, por exemplo, a realizao de uma

    Parada do Orgulho Gay, atualmente denominada Parada LGBT. Ocorre, porm,

    em boa parte das grandes cidades brasileiras. Cada vez mais, homossexuais ocupam,

    de diferentes formas, a cena pblica. A atual luta pela parceria civil constitui uma

    das muitas bandeiras dos movimentos homossexuais, com apoio de vrios outros

    movimentos sociais.

    Questes de gnero, religio, raa/etnia ou orientao sexual e sua combinao di-

    recionam prticas preconceituosas e discriminatrias da sociedade contempornea.

    Se o esteretipo e o preconceito esto no campo das ideias, a discriminao est no

    campo da ao, ou seja, uma atitude. a atitude de discriminar, de negar opor-

    tunidades, de negar acesso, de negar humanidade. Nessa perspectiva, a omisso e a

    invisibilidade tambm so consideradas atitudes, tambm se constituem em discri-

    minao.

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    Ao longo deste curso, desenvolveremos outras reflexes e veremos exemplos relacio-

    nados s discriminaes de gnero e orientao sexual, apresentando os principais

    desafios e as conquistas dos movimentos de defesa desses grupos e questes.

    importante destacar que h mudanas acontecendo. No que se refere s mulhe-

    res, por exemplo, historicamente em situao de desigualdade com relao aos ho-

    mens. Sua entrada progressiva no mercado de trabalho, o acesso a ambientes antes

    considerados masculinos e, inclusive, a predominncia feminina em determinadas

    profisses liberais se deram em meio a um processo de transformao. Entre outros

    fatores, esta mudana foi pautada pelas demandas dos movimentos feministas, mui-

    to vigorosos em todos os pases ocidentais nas ltimas dcadas.

    Esse processo veio acompanhado de uma profunda discusso sobre a construo das

    feminilidades e masculinidades nos diversos desdobramentos da educao. E pela

    organizao poltica das mulheres na luta contra o preconceito e discriminaes, e

    pela construo da igualdade.

    A superao das discriminaes implica a elaborao de polticas pblicas especficas

    e articuladas. Os exemplos relativos s mulheres, aos homossexuais masculinos e fe-

    mininos, s populaes negra e indgena tm a inteno no apenas de explicitar que

    as prticas preconceituosas e discriminatrias misoginia, homofobia e racismo

    existem no interior da nossa sociedade. Mas tambm que essas mesmas prticas vm

    sofrendo profundas transformaes em funo da atuao dos prprios movimentos

    sociais, feministas, LGBT, negros/as e indgenas.

    Tais movimentos tm evidenciado o quanto as discriminaes se do de formas

    combinadas e sobrepostas, refletindo um modelo social e econmico que nega direi-

    tos e considera inferiores mulheres, gays, lsbicas, bissexuais, transexuais, travestis,

    negros/as, indgenas. A desnaturalizao das desigualdades exige um olhar transdis-

    ciplinar, que, em vez de colocar cada segmento em uma diviso isolada, convoca as

    diferentes cincias, disciplinas e saberes para compreender a correlao entre esses

    modos de discriminao. E tambm construir formas igualmente transdisciplinares

    de enfrent-las e de promover a equidade.

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    4. Dinmica cultural, respeito e valorizao da diversidade

    Os exemplos que discutimos anteriormente revelam um dos aspectos centrais da

    cultura: seu carter dinmico. Muitas vezes associada ideia de tradio, a cultura

    foi pensada como algo imutvel, que tenderia a se reproduzir sem perder suas carac-

    tersticas. Ora, a cultura, no Brasil, assim como em outros lugares, dinmica, muda,

    se transforma. Isso acontece em meio a um processo muitas vezes caracterizado pela

    globalizao, o que significa, em grande medida, a ocidentalizao de boa parte

    do mundo.

    Os grupos indgenas no Brasil tm demonstrado grande capacidade de resistncia,

    ao reelaborarem continuamente seu patrimnio cultural, a partir dos valores de suas

    prprias sociedades. Assim, quando em contato com a sociedade abrangente, os gru-

    pos indgenas no aceitam passivamente os elementos e valores que lhes so impos-

    tos. Ao contrrio: se apropriam de aspectos da sociedade ocidental que, de acordo

    com sua cultura, so passveis de serem adotados, dando significados diversos ao que

    inicialmente lhes era estranho. Esses traos sociais so assim incorporados dinami-

    camente a seus valores culturais. Ao contrrio do que se pensou, esses grupamentos

    nem perderam a cultura inerente, nem desapareceram, como mostra sua recupera-

    o demogrfica dos ltimos anos e a impressionante visibilidade dos movimentos

    indgenas.

    a partir da perspectiva que considera a cultura como um processo dinmico de

    reinveno contnua de tradies e significados, que deve ser observado o fenmeno

    cultural. Muitas vezes se tem visto na cultura indgena, ou mesmo na cultura popu-

    lar, focos conservadores de resistncia a qualquer tipo de mudana. A ideia de tradi-

    o, assim como a de progresso, deve ser interpretada dentro do contexto no qual ela

    se produz: um valor de uma determinada cultura.

    Frequentemente se questiona a possibilidade de um grupo indgena manter a cultu-

    ra, quando passa a adotar alguns costumes ocidentais ou a usar roupas e sapatos dos

    brancos. comum se afirmar que deixaram de ser ndios/as de verdade. Ora, a cul-

    tura dos povos indgenas, como a nossa, dinmica. Da mesma forma que assimila

    certos elementos culturais da sociedade envolvente, dando-lhes novos significados,

    ela repele outros. importante salientar que isso se d de forma diferenciada em

    cada grupo indgena especfico.

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    Pensemos um pouco em um processo semelhante, existente em nossa sociedade. Nas

    ltimas dcadas, a msica afro da Bahia ganhou um espao inusitado na mdia

    nacional e internacional. Isso aconteceu paralelamente incorporao de novos ele-

    mentos por parte dos grupos baianos, que passaram a combinar a alta tecnologia

    (importada) como as guitarras eltricas aos tradicionais instrumentos baianos e

    aos novos instrumentos e ritmos trazidos do continente africano.

    Da frica tambm chegaram novas modas, cores e tecidos. Antes de alcanar o Brasil,

    a moda africana de Angola ou da frica Ocidental foi consagrada na Frana e l

    tambm foi reinventada. Vale, no entanto, a ressalva de que esses elementos de forma

    alguma caracterizam os blocos afro da Bahia como mais ou menos africanos. A

    frica, como smbolo da tradio, um valor que pertence a um conjunto de tradi-

    es continuamente reinventadas em um processo que faz parte da prpria dinmica

    cultural.

    Alm do mais, importante salientar que o produto final desse complexo mecanis-

    mo de reinveno da frica no Brasil nico, da mesma forma que a msica afri-

    cana na Frana corresponde a uma outra realidade, e o processo, tal e como se d na

    frica, tambm produzir um resultado original.

    Assim, a dinmica cultural est diretamente relacionada diversidade cultural, exis-

    tente em nossa sociedade. Esta se confunde muitas vezes com a desigualdade social,

    que deve ser combatida e com um universo de preconceitos, que devem ser supera-

    dos.

    H todo um aparato legal e jurdico que promete a igualdade social e a penalizao

    de prticas discriminatrias. Mas a prpria sociedade deve passar por uma transfor-

    mao que implica incorporar a diversidade. Ela deve ir alm da ideia de suportar

    o/a outro/a, tomada apenas como um gesto de bondade, pacincia, indulgncia,

    aceitao e tolerncia de uma suposta inferioridade.

    de extrema importncia que sejam respeitadas questes como a obrigatoriedade de

    reconhecer, a todos e a todas, o direito livre escolha de suas convices. O direito a

    ter diversidades fsicas, de comportamentos e de valores, sem qualquer ameaa dig-

    nidade humana. Da podemos concluir que no basta ser tolerante. Deve-se buscar o

    respeito aos valores culturais e aos indivduos de diferentes grupos, o reconhecimen-

    to desses valores e uma convivncia harmoniosa.

  • . 32

    5. Etnocentrismo e preconceito: o exemplo do racismo

    Como discutimos, o etnocentrismo um jeito de ver o mundo, em que um determi-

    nado povo (etnos) est em seu centro geogrfico e moral, ponto a partir do qual todos

    os outros povos so medidos e avaliados. Perspectivas etnocntricas podem mesmo

    chegar a considerar que os limites do humano so os limites daquele povo.

    Exemplo disto que boa parte dos nomes que os povos se auto-atribuem tem sig-

    nificados, em suas respectivas lnguas, de expresses como os bons, os humanos

    etc. No verdade que, quando nos referimos a um

    conjunto qualquer de pessoas, no qual nos inclumos,

    ns dizemos a gente? Pois bem, a gente uma ex-

    presso que indica, de certa forma, o prprio grupo

    de referncia, um coletivo, ns mesmos, aqueles que

    so gente. Um dos exemplos mais marcantes de como

    essa perspectiva etnocntrica se desenvolveu nas so-

    ciedades ocidentais o racismo.

    O racismo caracterizou-se pela defesa da ideia de que

    haveria vrias raas compondo a humanidade. E pe-

    las consequentes atitudes de preconceito e discrimi-

    nao, derivadas dessa diferena entre os povos, que

    se constituiu como natural ou biolgica.

    O conceito de raa esteve baseado, inicialmente, em

    determinadas concepes sobre as diversidades in-

    ternas espcie humana. impossvel entender o ra-

    cismo sem fazer referncia, mesmo que muito rpida,

    relao que em sua origem ele manteve com dois

    fatos histricos de enorme importncia: a afirmao

    da cincia positiva contra as teorias religiosas na ex-

    plicao da origem e das diferenas entre as pessoas

    humanas; e a expanso colonial europia que, por

    meios militares, religiosos e comerciais, dominou

    grandes extenses de terras ultramar, onde habita-

    vam povos com culturas e aparncias fsicas muito

    diferentes daquelas dos europeus. Reconhecer isto

    implica perceber a estreita relao que existe entre

    A cincia positiva um tipo de

    conhecimento e, ao mesmo tempo,

    uma fora social. Ela se constroi

    como cincia ao substituir, por

    experimentos cientficos, a f e a

    repetio doutrinria. E por acre-

    ditar ser possvel estabelecer leis

    gerais de funcionamento para todo

    e qualquer processo fsico, qumi-

    co, biolgico, fisiolgico e, depois

    de meados do sculo XIX, tambm

    sociolgico. A partir desta premissa,

    praticamente tudo pode passar a

    ser submetido a inquritos cientfi-

    cos, o que teve um grande impacto

    no s no acmulo de conhecimen-

    tos sobre o mundo material, como

    sobre as formas de interveno e

    transformao nele efetuadas. Isto

    esteve na base, por exemplo, da cha-

    mada Revoluo Industrial. neste

    sentido que a cincia positiva tam-

    bm uma fora social, impulsio-

    nando e sendo impulsionada pelas

    revolues polticas e ideolgicas. A

    Escola Politcnica, a primeira verso

    da Escola Normal Superior, a Aca-

    demia Real, o Museu Nacional de

    Histria Natural foram todos cria-

    dos em meados da dcada de 1790,

    produtos diretos da Revoluo

    Francesa, que transformou a educa-

    o tcnica e cientfica, primeiro na

    Frana e depois em toda a Europa e

    alm-mar.

  • . 33

    saber e poder, assim como considerar o racismo um dos mais indignos produtos de

    tal relao.

    O racismo deriva do racialismo, antiga doutrina protocientfica que afirmava que

    as diferenas biolgicas existentes no interior da espcie humana eram grandes o

    bastante para diferenci-la em raas com qualidades psicolgicas, intelectuais ou

    de carter distinto. O racialismo s se converteu no racismo que conhecemos hoje,

    quando tais teorias passaram a ser usadas no s para tentar explicar as distines

    biolgicas, anatmicas ou de simples aparncia fsica, mas tambm para associ-las

    a outras diferenas, basicamente de carter moral. Estas ltimas se manifestariam

    por meio de diversidades sociais e culturais, como as que existem entre as classes no

    interior de uma mesma sociedade, ou aquelas existentes entre os europeus e os povos

    que estes colonizaram na frica, na sia e na Amrica.

    Estes dois importantes fatos histricos (o cientificis-

    mo e o colonialismo), que estamos associando dire-

    tamente ao racismo, so contemporneos tambm

    de um terceiro, com o qual esto em relativa discor-

    dncia: o liberalismo.

    Depois da Revoluo Francesa e da instituio dos

    parlamentos nos Estados nacionais unificados e re-

    formados, imps-se, na sociedade ocidental mo-

    derna, o modelo de ideologia poltica baseado no

    governo representativo, que se sustenta no princpio

    formal iluminista da igualdade entre todas as pessoas

    humanas. Parte da auto-imagem de superioridade do

    povo europeu moderno vinha justamente da adoo

    desse padro de organizao social. Entretanto, a sua

    dominao sobre os povos no-europeus e as formas

    de tratamento e de governo, que mantinham em suas

    colnias, estavam em gritante paradoxo em relao

    estrutura representativa e aos valores de igualdade. A

    aplicao desigual do modelo poltico s poderia se

    justificar em razo de diferenas que estivessem para

    alm da poltica, isto , no plano da natureza.

    neste ponto que o racismo ganha seu novo e fundamental papel social e histrico.

    At a primeira metade do sculo XX, as teorias racialistas haviam sido alimentadas

    O liberalismo um termo que

    teve muitas acepes, mas que pode

    ser resumido aqui pela referncia

    a seu significado mais comum nos

    campos poltico e econmico. No

    campo poltico, ele nasceu como

    um movimento contra as arbitra-

    riedades dos governos despticos,

    atravs da implantao das liber-

    dades e dos direitos individuais, e

    pela criao do Poder Legislativo

    que, sendo eleito pelo povo, tem por

    funo criar tais leis e regular a ao

    do Poder Executivo. Esta ideologia

    poltica est na base da revolta dos

    bares contra o rei na Inglaterra, e

    na Guerra de Independncia dos Es-

    tados Unidos contra o controle In-

    gls. Trata-se de uma ideologia po-

    ltica que, ao longo do sculo XIX,

    desenvolveu-se como uma filosofia

    centrada fundamentalmente no

    indivduo e no individualismo. No

    campo econmico, por extenso, o

    liberalismo defende a extino de

    qualquer controle estatal sobre a

    economia.

  • . 34

    por razes polticas. Isso se deu na medida em que ajudavam a explicar as singula-

    ridades e a multiplicidade interna das tribos e, depois, dos pases europeus (estabe-

    lecendo entre uns e outros, bom lembrar, uma linha de descendncia natural, por

    meio da ideia de linhagens). Contudo, as relaes coloniais davam um outro estatuto

    a esta explicao. Diante do radicalismo das diferenas sociais e culturais encontra-

    das no contato com os povos de ultramar, os europeus passaram a imaginar que as

    linhagens europias estavam separadas dos povos africanos, asiticos e americanos

    tambm por uma diversidade biolgica radical. Esta diferena, que passou a dividir o

    mundo entre brancos e outros povos de cor, servia tanto de explicao quanto de jus-

    tificativa ao domnio europeu sobre tais povos. Mesmo que os missionrios conse-

    guissem catequizar e converter infiis, isso j no era suficiente para torn-los iguais.

    Da mesma forma que as mulheres eram consideradas diferentes e inferiores aos ho-

    mens, em sua prpria natureza, incapazes de discernimento, no podendo por isso

    votar, os povos no-europeus, em funo de suas incapacidades raciais, no teriam

    condio de autogoverno. Tais distines, supostamente naturais, ao serem associa-

    das a determinadas capacidades mentais e/ou de carter, serviam como justificativa

    para a sua excluso dos direitos polticos e sociais. O mundo estava separado no

    mais pela f e pela cultura, mas pela prpria natureza.

    Este repertrio racista de naturalizao e justificao das desigualdades teve desdo-

    bramentos nefastos sobre as prprias sociedades europias e europeizadas. A compo-

    sio entre o racismo e o avano dos conhecimentos a respeito da gentica humana

    levou fundao da eugenia. Essa cincia teve incio em fins do sculo XIX e tinha

    por objetivo aplicar as teorias evolucionistas e da seleo natural ao aprimoramento

    biolgico da espcie humana.

    Com base na observao, por exemplo, de que os estratos inferiores da sociedade

    tinham mais filhos do que as classes mdia e alta, a eugenia postulava uma maior ou

    menor fertilidade desses estratos. A noo de raa servia, novamente, naturalizao

    das diferenas sociais, culturais e mesmo de classe social, implicando, por sua vez, a

    proposio de solues que agissem tambm sobre os corpos dos indivduos.

    Assim, foram produzidas experincias que buscaram solucionar as desigualdades

    sociais ou eliminar as chamadas taras ou deficincias fsicas e morais, por meio do

    controle sobre a qualidade racial das populaes. Isto acarretou tanto a monitorao

    da reproduo humana, separando os grupos e proibindo casamentos inter-raciais,

    quanto a eliminao de grupos supostamente responsveis pela transmisso de ca-

    racteres indesejados. Desse modo, desde o alvorecer do sculo XX, pases europeus e

  • . 35

    americanos implantaram programas de eugenia, tendo em vista a melhoria das suas

    sociedades.

    A ascenso do nazismo na Alemanha dos anos 30 levou monumental experincia

    de implementao de uma poltica eugnica, por parte de um Estado moderno. O

    prprio ncleo ideolgico do regime estava baseado na ideia de separao e melho-

    ria da raa ariana que, supostamente, singularizava a populao alem. A principal

    caracterstica do regime nazista foi dar forma oficial, obrigatria e sistemtica, em

    moldes cientficos e industriais, s normas de separao, seleo e eliminao de in-

    divduos em funo de determinados caracteres naturais. E que eram tidos como

    desviantes: desde as minorias nacionais at pessoas com dficit intelectual (conside-

    radas doentes mentais); as pessoas com deficincias fsicas (tidas como aleijadas); os/

    as homossexuais, judeus e judias, passando pelos/as artistas e escritores/as modernis-

    tas, identificados como responsveis por uma arte degenerada.

    Os elementos trabalhados at aqui favorecem que mais nos aproximemos de uma

    definio do racismo: uma doutrina que afirma no s a existncia das raas, mas

    tambm a superioridade natural e, portanto hereditria, de umas sobre as outras. A

    atitude racista, por sua vez, aquela que atribui qualidades aos indivduos ou gru-

    pos, conforme seu suposto pertencimento biolgico a uma dessas diferentes raas e,

    assim, de acordo com as suas supostas qualidades ou defeitos inatos e hereditrios.

    importante notar que o racismo como atitude sobreviveu ao racialismo como

    teoria cientfica. Mesmo que no seja mais possvel, do ponto de vista cientfico, fa-

    lar em raas humanas, ainda que os movimentos negros tenham se apropriado e

    ressignificado politicamente o conceito de raa, possvel (e necessrio) reconhe-

    cer a existncia do racismo enquanto atitude. Ele pode traduzir etnocentrismos e

    justificar preconceitos, mas demarca fundamentalmente uma atitude que naturaliza

    uma situao social desigual, assim como um tratamento diferente a ser atribudo a

    indivduos e a grupos diversos.

    Se o etnocentrismo uma maneira muito generalizada e at mesmo tida como nor-

    mal de se reagir diferena, privilegiando o seu prprio modo de vida em relao

    a outros possveis, o racismo uma forma de se usar as diferenas como um modo

    de dominao. Primeiro, ele serviu para a dominao de um povo sobre os outros,

    depois, para a dominao de um grupo sobre o outro, dentro de uma mesma socie-

    dade. Dessa forma, o racismo no apenas uma reao ao outro, mas uma maneira

    de subordinar o outro.

  • . 36

    6. Ideologias do estado nacional

    Durante muito tempo, a teoria social concebeu o Estado e a Nao como sinnimos

    de civilizao e ambos como os pontos mximos e finais da evoluo das sociedades.

    O avano tecnolgico dos mecanismos produtivos estaria associado complexifica-

    o dos processos sociais e, com isso, quanto mais avanados os desenvolvimentos

    materiais, mais avanadas seriam as formas sociais e polticas. Assim, a humanidade

    estaria assistindo transformao progressiva e sucessiva das hordas isoladas em

    tribos, destas em confederaes e, finalmente, das

    confederaes em Estados uma evoluo naturali-

    zada, em analogia aos processos evolutivos descritos

    na biologia por Charles Darwin. O ponto alto dessa

    evoluo aconteceria na medida em que a constitui-

    o do Estado servisse para dar, finalmente, corpo

    material alma nacional, isto , cultura que cons-

    titui uma unidade de esprito, de modos, de gostos e

    de propsitos, enfim, um povo. O Estado-nao seria

    assim a realizao histrica por excelncia, ao con-

    ferir forma institucional mais desenvolvida a esta

    herana primordial.

    Os grupos ditos atrasados, segundo esse processo evolutivo, que no instituram seus

    Estados, ou que no os formaram evoludos o bastante ou no formato necessrio

    para enfrentar militarmente os Estados ocidentais, seriam absorvidos, por sua vez,

    por estes, fosse por meio do comrcio, fosse pela colonizao. Com isso, seriam pro-

    gressivamente anexados civilizao, em uma espcie de atalho que, no entanto,

    os deixava em uma posio subordinada. importante notar aqui que civilizao

    praticamente sinnimo de Europa, e o discurso evolucionista, centrado na valoriza-

    o tecnolgica , antes de tudo, um discurso eurocntrico. Mas se na Antiguidade,

    na formao desses Estados na Europa, permitiu-se que eles fossem pensados como

    uma evoluo quase natural ainda que de fato fossem frutos de violentas lutas de

    unificao isto no podia ser visto da mesma forma nas Amricas.

    A grande diversidade dos grupos sociais internos aos Estados modernos americanos,

    a exterioridade do modelo implantado por uma colonizao moldada fora da

    cruz e da espada fizeram a nao no ser pensada como ponto alto de uma evoluo

    natural, mas como um projeto projeto este das elites europias ou eurocentristas

    voltado para suas populaes internas, as populaes nativas ou transplantadas.

    Charles Darwin (1809-1882) foi

    um naturalista britnico que alcan-

    ou fama ao convencer a comuni-

    dade cientfica de que as espcies

    evoluem por meio de um processo

    de seleo natural e sexual. Esta te-

    oria se desenvolveu e se difundiu de

    tal maneira que se consagrou como

    o paradigma central para explicar

    diversos fenmenos biolgicos.

  • . 37

    Assim, os diferentes Estados americanos criaram suas prprias tecnologias de supe-

    rao das formas econmicas, sociais e culturais indgenas. As diversas maneiras de

    composio das (e entre as) estratgias de extermnio, cristianizao, mistura racial e

    integrao ao mercado como trabalhadores nacionais definiram os variados proces-

    sos de construo nacional na Amrica.

    O fato de essas elites viverem confli-

    tos ideolgicos internos, no que se re-

    fere composio de tais estratgias,

    muda pouco o resultado geral. Isto

    porque, mesmo quando parte des-

    sa elite insistiu em imaginar-se no

    como descendente direta de uma ma-

    triz cultural europia, mas como filha

    das culturas nativas, originaram-se

    indianismos literrios e artsticos,

    que tinham mais a ver novamente

    com uma viso europia do indge-

    na do que com uma relao concreta

    com as populaes nativas. Para alm

    das divergncias ideolgicas intra-elites, a meta de homogeneizao continuava in-

    tocada: mesmo o indianismo romntico era incapaz de lidar com a diversidade dos

    ndios, imaginando a nao como filha de uma nica etnia (tornada etnia nacional,

    no nosso caso, os Tupi, a cuja imagem estilizada todas as outras eram reduzidas.

    No Brasil, a soma das vises eurocntricas e racistas resultou no dilema de consti-

    tuir uma nao por meio do projeto de homogeneizao e, ao mesmo tempo, pela

    necessidade de reinterpretar positivamente a presena desses outros selvagens, to

    numerosos e to prximos: os grupos indgenas que os europeus encontraram no

    continente e os grupos africanos, trazidos compulsoriamente para c. Mais tarde, os

    mesmos preconceitos incidiriam tambm sobre outros grupos sociais migrados para

    o pas, como os asiticos e os latino-americanos de pases vizinhos.

    O fato viria a se repetir at mesmo com grupos indiscutivelmente nacionais, mas que,

    por migrarem de extensas e distantes regies rurais para os grandes centros urbanos,

    tambm seriam identificados como diferentes, em funo de uma srie de caracters-

    ticas fenotpicas, lingusticas e culturais, como os/as nordestinos/as e os/as nortistas.

    Este extenso e difcil dilema ideolgico o de buscar a construo de uma nao

    Em etnologia, o termo tupi remete a grupos indgenas cujas

    lnguas pertencem ao tronco tupi. A referncia clssica de-

    signa os povos que habitavam a estreita faixa da plancie

    litornea atlntica, desde o Estado do Rio Grande do Sul,

    para o Norte, at o Estado da Bahia, ou segundo alguns au-

    tores, at o Estado do Par ou Amazonas.

    Na viso europeia do indgena, predominou durante

    muito tempo a ideia do bom selvagem. Desde um texto de

    Cristvo Colombo em que diz haver chegado ao paraso

    terreno, o imaginrio social europeu atribua todo tipo de

    bondades ingnuas aos indgenas (os naturais, como os

    chamavam os documentos espanhis da poca).

  • . 38

    europia, a partir de heranas no-europias deu

    lugar quilo que antroplogos e socilogos chama-

    ram de mitos nacionais.

    O primeiro deles chamado de mito da democra-

    cia racial: o Brasil seria um pas sem a existncia de

    preconceito ou discriminao de raa ou cor, onde as

    diferenas seriam absorvidas de forma cordial e har-

    moniosa. Como todo bom mito, a expresso no tem

    uma origem precisa, mas esteve associada ao trabalho

    do socilogo Gilberto Freyre que, entre as dcadas

    de 1930 e 1950, construiu uma grande obra sobre as

    relaes raciais no Brasil. Freyre partiu de um prin-

    cpio positivo: romper com as abordagens racistas da

    sociedade e da histria brasileira, as quais tratavam a

    populao afro-brasileira como um povo parte, no

    figurando nas vises gerais do Brasil. Foi o respons-

    vel por jogar luz sobre as relaes que existiam entre

    senhores/as e escravos/as, assim como sobre os mo-

    dos de vida da elite e do povo. Por desenvolver tal perspectiva, o trabalho de Freyre

    acabou permitindo, porm, a construo da imagem de uma sociedade harmnica e

    integrada, afetiva e sexualmente. Imagem, de fato, artificial, uma vez que se tratava de

    uma sociedade marcada pela violncia sexual, sofrida principalmente por mulheres

    negras e indgenas.

    Ao encarar como positiva a mistura racial no Bra-

    sil poca, lamentada pela maioria dos pensadores

    que viam no mestio um tipo humano degenerado

    Gilberto Freyre acabou favorecendo uma leitura que

    superestimava a capacidade de a miscigenao solu-

    cionar o problema das diferenas e das desigualdades

    entre brancos/as e negros/as. Apoiava esse raciocnio

    o fato de no Brasil, diferena dos Estados Unidos,

    por exemplo, nunca ter havido uma legislao que

    discriminasse formalmente os/as negros/as, a favor

    dos/as brancos/as, obrigando-os/as a circular em lo-

    cais diferentes ou atribuindo-lhes direitos desiguais,

    ou seja, aquilo que conhecido pela palavra ber

    Apartheid.

    Gilberto Freyre (1900 -1987), um

    grande nome da histria do Brasil,

    foi socilogo, antroplogo, escritor

    e pintor. Casa-Grande & Senzala,

    publicado em 1933, uma de suas

    obras mais conhecidas.

    Apartheid (vida separada) uma

    palavra de origem africana, adotada

    legalmente em 1948 na frica do Sul

    para designar um regime segundo o

    qual os brancos detinham o poder

    e os povos restantes eram obrigados

    a viver separadamente, de acordo

    com regras que limitavam seus di-

    reitos cidados. Este regime foi abo-

    lido em 1990 e, finalmente em 1994,

    eleies livres foram realizadas, por

    meio das quais Nelson Mandela

    renomado representante do movi-

    mento antiapartheid assumiu a

    presidncia do governo sul-africano

    de 1994 a 1999.

    Quando um antroplogo fala de

    mito em uma sociedade contem-

    pornea est apontando para um

    evento de grande fora simblica,

    de grande penetrao em todos os

    discursos que circulam por esta so-

    ciedade tais como a histria ofi-

    cial, a literatura, a mdia e os livros

    didticos capazes de condensar

    em uma mesma imagem ou ideia

    muitos significados simultneos.

  • . 39

    A fora e a originalidade dessa viso do Brasil foram tamanhas que acabaram empol-

    gando algumas organizaes negras da poca. E se tornando, sob a frmula sinttica

    de democracia racial, um rtulo que distinguia positivamente o Brasil de outros

    pases, nos quais a discriminao e o racismo eram institucionalizados. A fama da

    democracia racial brasileira empolgou tambm o resto do mundo. Preocupada em

    recuperar o planeta da catstrofe da II Guerra Mundial - marcada, como vimos, pela

    tentativa de implementao de regimes de governo racistas - a Organizao das Na-

    es Unidas (ONU) promoveu uma srie de estudos sobre relaes raciais no Brasil,

    com o intuito de apresentar ao mundo a experincia brasileira de democracia racial.

    O resultado, porm, no foi o esperado. Ao olharem atentamente para as relaes ra-

    ciais, estudiosos/as acabaram encontrando um pas dividido por cores e raas, ainda

    que esta diviso no estivesse regulada pela lei, nem se apoiasse nos mesmos critrios,

    presentes em outros contextos, ou pases. Descobriram atitudes de preconceito, em-

    bora elas fossem mediadas por relaes de proximidade e cordialidade. Eles ajudaram

    o pas a ver, enfim, que aquilo que era chamado apenas de pobreza, tinha uma cor.

    Algumas dcadas depois, tais estudos avanaram por meio da anlise no s das re-

    laes interpessoais entre brancos/as e negros/as, mas pela pesquisa sistemtica de

    dados sobre emprego, renda e criminalidade, retirados dos censos oficiais. Ficou evi-

    dente ento que a discriminao era um dado estrutural que organizava, em todo o

    pas, desde a distribuio do emprego e da renda at a determinao dos casamentos.

    A democracia racial deixava de ser uma realidade para ser encarada como uma falsa

    constatao, um mito ou, quando muito, como um horizonte poltico desejvel.

    O segundo mito, que nos interessa aqui, tem uma existncia ainda muito mais antiga

    e difusa e est associado a uma ideia de senso comum, que foi se consolidando com

    o tempo. Segundo o antroplogo Roberto DaMatta (1981), haveria um racismo

    brasileira, isto , um sistema de pensamento que postula a existncia de trs raas

    formadoras do Brasil. Nesse sistema, o brasileiro seria o produto moral e biolgico da

    mistura do ndio, com a sua preguia; do negro, com a sua melancolia; e do branco

    portugus, com a sua cobia e seu instinto miscigenador. Estas seriam as razes tanto

    de nossa originalidade quanto de nosso atraso socioeconmico e, at pouco tempo

    atrs, de nossa necessidade de autoritarismo.

    Alm disso, mesmo quando o diagnstico no to desfavorvel, o que esse mito

    fundador revela a forma pela qual os diferentes conjuntos de povos so unificados

    e hierarquizados em uma mesma imagem de Brasil. A afirmao da miscigenao

    no os coloca no mesmo plano, porque a cada um deles atribuda uma qualida-

    de diferente na formao do carter moral do/a brasileiro/a. inegvel que os/as

  • . 40

    portugueses/as, os vrios povos indgenas e as diferentes naes africanas foram os

    principais responsveis pela ocupao do territrio brasileiro e pela formao de sua

    populao, mas o que est em jogo no uma avaliao estatstica de contribuies.

    Os fatos fundamentais do mito das trs raas so:

    a reafirmao de que cada um desses grupos de diferenas constitui uma raa;

    a atribuio de qualidades morais distintas a cada uma delas;

    a hierarquizao que se prope entre tais caractersticas morais;

    a excluso da presena fundamental de outros povos;

    e a identificao de um destino nico e de fuso biolgica das diferenas cons-

    tituintes de nossa sociedade.

    Este um mito que permite naturalizar as desigualdades, remetendo-as s diferenas

    raciais e produzindo uma imagem da sociedade brasileira que mestia. Mas, justa-

    mente por isso, fortemente hierarquizada, em que cada coisa tem um lugar natural.

    O prprio discurso cientfico no fugiu completamente desta mitologia, ainda que

    tenha dado um formato diferente a ela.

    A partir dos anos de 1930, quando se organizaram as cincias sociais no Brasil, elas se

    dividiram segundo este mesmo recorte. Os indivduos de origem africana, reunidos

    sob a designao genrica de negros, foram ligados ao conceito de raa, enquanto os

    de origem americana, sob a designao genrica de ndios, foram separados deste

    bloco, passando a ser vinculados ao conceito de etnia. A cada um destes dois recortes

    da populao coube uma tradio acadmica. Cada uma delas com seus tericos,

    suas categorias de anlise, seus diagnsticos sobre a realidade brasileira.

    Da mesma forma, o Estado Nacional produziu expedientes de controle cultural e so-

    cial diferentes para cada um deles, gerando formas distintas de lidar com a alteridade

    representada por indivduos no-brancos, incivilizados, inferiores em termos mentais

    e culturais que, no entanto, precisavam ser assimilados pela nao brasileira. Tratava-

    se de administrar e acelerar uma transformao natural e necessria, principalmente

    porque o processo de transformao de negros/as e de indgenas em brancos repre-

    sentava tambm um percurso diferente.

    Em seus pontos de partida, os/as indgenas corresponderiam ao isolamento e pu-

    reza, enquanto o/a negro/a, interao e contaminao. Os atributos da populao

    indgena seriam o exotismo, a alteridade radical, aquela que deve ser traduzida. Neste

    caso, o dilema nacional seria integrar e ao mesmo tempo a partir de uma viso ro-

  • . 41

    mntica, proteger como smbolo da nacionalidade. Valorizado como origem, na sua

    relao com a sociedade brasileira, o/a indgena objeto de contaminao e precisa

    ser preservado, ainda que mantido distncia espacial e temporal como acontece

    com todo ponto de origem.

    Neste caso, a alteridade serve construo de um juzo de valor mtico e esttico. No

    sentido oposto, a populao africana ou negra apresentaria, ideologia da naciona-

    lidade, uma imagem que recusada, que envergonha. Neste caso, o problema no a

    alteridade radical, que precisaria ser preservada, mas a identidade, isto , o excesso de

    proximidade deste/a outro/a selvagem que o/a africano/a. O desafio seria, ento,

    integrar, mas sem deix-lo/a contaminar a imagem de uma nacionalidade ocidenta-

    lizante e branca.

    Assim, o/a mulato/a tem nos estudos raciais, por exemplo, uma positividade que

    o/a caboclo/a no tem nos estudos tnicos ou indigenistas. Enquanto o mulato e

    particularmente a mulata exportao, dotada de sensualidade, aparecem como um

    lugar de passagem inevitvel e sempre tematizado da evoluo da raa nacional, o/a

    caboclo/a emerge como uma categoria sociologicamente fraca, que no um lugar,

    mas uma falta de lugar. Festeja-se o/a mulato/a pelo caminho que ele/ela constroi

    at uma nao branca, mas lamenta-se o/a caboclo/a pelas perdas culturais que ele/a

    representa em relao ao indgena.

    O ponto final dessas transformaes pensado como a eliminao ou a domestica-

    o das diferenas, todos convergindo para um mesmo povo, que possui variaes

    culturais. Mas que so apenas regionais, confirmando a grandiosidade de um mesmo

    Brasil, rico em cenrios tursticos e em aspectos folclricos. Entretanto, este tipo de

    diferena que resta, que permitida, uma diferena para fora, para o consumo,

    para o mercado. No mais uma diferena para dentro, para a vida, para as formas

    de organizao.

    Assim, o Estado e a sociedade nacionais foram pensados, no Brasil, tambm de um

    ponto de vista eurocntrico e com base em conceitos racistas, que se manifestam

    atravs de formas mais ou menos sutis, s quais precisamos estar atentos. Mais re-

    centemente, porm, tendo sado de um longo perodo de governos autoritrios, a

    sociedade brasileira pode se olhar de maneira diversa, sem tantas preocupaes com

    a ideia de integrao nacional, que s podia ser realizada por meio da supresso ou

    da hierarquizao das diferenas. Sobre tais mudanas, falaremos a seguir.

  • . 42

    7. O reconhecimento da diversidade tnico-racial

    Joo de Pscoa ndio Pankararu, morador da aldeia do Brejo dos Padres, localizada

    no serto de Pernambuco. Mas no foi sempre assim. Ele nasceu em meados da d-

    cada de 1920, em um perodo de grande seca, por isso, a populao migrou em busca

    de melhores condies. Como ele conta:

    Fui batizado na igrejinha de Geripanc, e j tinha l ndio daqui, que os ndios ia

    trabalhar e ficava por ali, constitua famlia e, ento, formou outra tribo. onde deu

    origem tribo dos Geripanc.

    Depois, quando ele j era menino, a famlia de Joo de Pscoa migrou novamente:

    Ns descemos de Palmeira dos ndios e fomos ajudar a erguer a aldeia dos Xucurus,

    isso foi na poca de 1932. Eu fiquei l e me criei com os ndios de l, no ritual de-

    les. A gente danava, fumava, todo mundo tinha que levar uma lembrana l toda

    semana; um comprava fumo, outro comprava rapadura, tudo assim, pra pedir pros

    Encantos virem terra. A meninada toda saa pra feira da cidade pra ganhar frete

    daquelas mulheres que faziam feira. Iam com o balaio na cabea e ganhavam 200

    ris, 300 ris.

    Foi s quando o seu povo teve o territrio tradicional reconhecido pelo Estado bra-

    sileiro como rea indgena Pankararu, na dcada de 1940, que a sua famlia retornou

    terra de origem: Eu j tava com 14 anos, a vim para aqui e a terra j tava demar-

    cada. Na verdade, os Pankararu ocupam o mesmo territrio desde pelo menos o s-

    culo XVIII, quando foram aldeados por padres Capuchinhos, mas no final do sculo

    XIX, eles foram declarados extintos e as terras do seu aldeamento foram loteadas.

    Nessa mesma poca, os ltimos aldeamentos do Nordeste tinham sido considerados

    extintos, porque os seus ndios j estavam muito misturados, segundo a opinio dos

    governos provinciais.

    No caso Pankararu, houve um segundo propsito: as terras do seu aldeamento foram

    distribudas entre algumas famlias indgenas e outras tantas famlias de escravos,

    que estavam sendo libertadas um pouco antes da abolio da escravatura, em troca

    de indenizaes, pelos fazendeiros da regio. Era um bom negcio, pois ao manterem

    os escravos por perto, nas terras do aldeamento, junto com os ndios, declarados no

    mais ndios, os fazendeiros lucravam com a abolio sem perderem o controle sobre

    a sua mo-de-obra.

  • . 43

    Na dcada de 1940, porm, quase sessenta anos depois de serem declarados extintos,

    os Pankararu, que tinham absorvido as famlias negras em sua sociedade por meio

    dos casamentos, continuavam realizando seus rituais, suas festas e mantendo a reli-

    gio. Conseguiram, assim, ser reconhecidos novamente como indgenas, recuperan-

    do tambm, em parte, o direito sobre suas terras.

    Mas a histria de Joo de Pscoa continua por outros caminhos:

    A depois eu fiquei adulto, trabalhei e depois que j tinha duas filhas, a eu fui agen-

    ciado pra ir pra So Paulo, cortar lenha no machado. E eu fui pra l e ela [aponta

    para a esposa] ficou a. Passei um ano, depois era pra vim e no vim. Passei outro

    ano l mesmo, a quando eu vim, j trouxe um bocado de coisa, era relgio, era

    aquelas cobertas berrantes, aquela vitrolinha de mo, a melhorou. Depois o dinhei-

    ro acabou e escrevi para So Paulo de novo. A os portugueses da Light me manda-

    ram que eu fosse, a eu fui e dessa vez passei 17 anos... [riso].

    Joo de Pscoa, como muitos outros nordestinos, foi trabalhar em So Paulo, levado

    pelos chamados gatos, que recrutavam trabalhadores em reas pobres do Nordeste

    e os levavam para outras regies, transportados em caminhes pau-de-arara. L

    realizavam servios, cujo pagamento tambm era intermediado pelos gatos, que

    ficavam com a maior parte dele:

    Eles vinham busc a gente, era comum, vinham aqui para entreg pra empreiteiro.

    A o pau-de-arara rodava direto. C v, o homem nordestino, toda a vida ele migrou

    para o sul, principalmente pra So Paulo, para a lavoura, pro Paran, para aquele

    meio de mundo ali.

    Joo explica que durante os longos perodos em que ele e seus companheiros passa-

    vam em So Paulo no deixavam de respeitar o ritual tribal:

    Eu vivia no mato mais esse povo daqui, que tava comigo, era tudo ndio. Eu l no

    trabalhei com civilizado. Eu recebia dinheiro do civilizado, mas o pessoal meu era

    tudo ndio. [...] A todo mundo fazia o ritual. A gente tinha de tudo l dentro do

    mato. Tinha cachorro pra caar e fazia comida de caa. L eu achei bonito. Uma

    tribo podia viver l na serra de Santos, viu? Eu s no gostei do borrachudo [risos],

    que me ferr o sangue. Mas l a gente mantinha a tradio. Tinha horas que tinha

    20, tinha horas que tinha 30 [pessoas], se reunia, e tinha respeito.

    Ainda assim, fosse na cidade, fosse junto aos outros trabalhadores, Joo de Pscoa

  • . 44

    e seus companheiros de aldeia eram questionados quanto sua identidade de n-

    dios. Diziam: Voc no ndio, voc no nada, voc no sabe de nada, conta. E

    isso acontecia ainda mais com o prprio Joo, devido cor clara dos seus olhos de

    mestio. Falavam: Oh, seu Joo, o senhor no ndio no, que o senhor tem olho

    de gato..., ao que Joo de Pscoa respondia: Eu no sou no? Agora, o meu povo

    era ndio e eu mantenho a tradio e conservo ela at hoje. Por isso, esses homens e

    as suas famlias, que aos poucos os acompanhavam nas viagens para So Paulo, no

    revelavam sua origem indgena: No, ns no ia dizer pra ningum que era ndio,

    a no ser algum que perguntasse ou qualquer coisa por um acaso, mas ns nunca

    foi falar que era ndio. O grande dilema era saber que eram ndios, mas estar fora de

    suas terras e no ter a aparncia que todos esperam que um ndio tenha, conforme se

    aprendeu no cinema, na televiso e mesmo nos livros de escola:

    Eu no acho que s ndio, porque eu fui violado. Agora, eu mantenho minha tradi-

    o, porque [...] eu fui, eu me criei como ndio. Agora, eu no tenho a fisionomia

    de ndio, mas talvez um ndio [com aparncia de ndio] no tenha a f que eu tenho

    na minha tradio.

    Depois de dezessete anos, Joo de Pscoa, sua esposa e parte dos filhos voltaram para

    a sua terra indgena de origem: E se eu no venho de l, tinha ficado meus filhos

    todinhos l... A casou dois, que ficaram. Joo voltou e transformou-se em impor-

    tante liderana na luta pela demarcao definitiva das suas terras, passou um per-

    odo como cacique, mas novamente foi desrespeitado pelos funcionrios da Funai

    (Fundao Nacional do ndio) em funo dos seus olhos de gato. Hoje ele vive com

    a esposa em uma casinha da aldeia, cercado pelas casas de seus filhos, que voltaram

    com o casal e j criaram suas prprias famlias. Mas uma de suas filhas continuou em

    So Paulo, morando na favela do Real Parque, bairro do Morumbi, junto com mais

    cerca de 1.200 ndios Pankararu.

    Desde a dcada de 1950, quando da viagem de Joo de Pscoa, vrias outras famlias

    Pankararu migraram para So Paulo, mas sempre procurando morar perto, umas

    das outras, j que a identidade de parentesco e o fato de serem ndios/as da mesma

    aldeia formavam uma rede de solidariedade entre eles/as. Desde ento, o grupo vive

    no Real Parque, mas sempre voltando, de tempos em tempos, para a aldeia original,

    onde passam frias ou vo trabalhar na terra, alternando perodos na aldeia e na

    favela.

    Em So Paulo, como disse Joo de Pscoa, eles sempre realizavam seus rituais apenas

    em ambientes familiares, sem revelar serem ndios. Mas isto mudou na dcada de

  • . 45

    1980, depois que a morte de um jovem Pankararu chegou aos jornais e ao conheci-

    mento da Funai. Como forma de se protegerem da crescente violncia urbana que

    atingia a sua favela, os Pankararu resolveram dar a conhecer que eram um grupo

    indgena em plena metrpole. Passaram a se organizar em associaes e a receber

    amparo da Igreja Catlica, da Funai e de outras entidades de apoio ao ndio e aos Di-

    reitos Humanos. Deixaram de realizar seus rituais apenas em ambientes familiares e

    retomaram as danas do Tor em terreiros abertos, voltando a usar trajes tradicionais

    em dias de festa. Com isso, tambm conseguiram realizar uma parceria com a Ponti-

    fcia Universidade Catlica de So Paulo. Obtiveram acesso a uma cota de bolsas de

    estudos para seus/as jovens, assim como para os/as jovens de outros grupos indge-

    nas, que hoje tambm moram em So Paulo. Atualmente existe um outro programa

    semelhante tambm na USP.

    A filha de Joo de Pscoa, moradora da favela Real Parque, que poucas vezes tinha

    voltado aldeia dos pais e que tantas vezes fora chamada de negra, hoje bolsista

    do curso de literatura da PUC-SP. Frequenta reunies quinzenais, aos sbados, para

    discutir questes relacionadas identidade dos indgenas que moram na cidade.

    S possvel contar a histria da famlia de Joo de Pscoa, porque neste final de

    sculo XX e incio do sculo XXI, a questo da diversidade interna s sociedades vol-

    tou a ser tema central nas agendas polticas dos Estados. No entanto, em um sentido

    oposto quele como era encarada no final do sculo XIX e incio do XX. Um novo

    projeto social emerge, agora sustentado na afirmao da diversidade tnica e no na

    homogeneidade cultural ou racial.

    Nos ltimos trinta anos, as populaes indgenas e afro-americanas passaram a ocu-

    par um lugar na poltica latino-americana que no se imaginava possvel at pouco

    tempo antes. Grandes mobilizaes pblicas no Equador e na Bolvia, em 1990, e o

    movimento zapatista no Mxico (ver na pgina seguinte) apontam para um momento

    de inflexo na visibilidade internacional das populaes indgenas como atores pol-

    ticos. Em todos esses Estados, quando possvel contar a populao indgena j que

    em vrios pases, os censos nacionais no trazem informaes sobre cor, raa ou etnia

    da populao, homogeneizando-a ao menos simbolicamente ela aparece em franco

    crescimento, invertendo a tendncia dominante at o ltimo quarto do sculo XX.

    Hoje, cerca de 10% da populao latino-americana pode ser classificada como in-

    dgena. Ela maioria (ou quase) na Bolvia, Guatemala e Peru. No Equador, repre-

    senta entre 30 a 40% da populao total; no Mxico, entre 15 e 20%. No Brasil, por

    exemplo, onde essa percentagem relativamente baixa (cerca de 4% da populao

  • . 46

    total), ela est em visvel crescimento. Boa

    parte deste devido mudana de postura

    de pessoas e de grupos inteiros, que calavam

    sobre sua condio indgena, mas passaram

    a afirm-la.

    O fato acompanha o crescimento dos mo-

    vimentos polticos indgenas, desde meados

    dos anos 1960. No Brasil, a organizao in-

    dgena assumiu carter nacional no final da

    dcada de 1970, com o primeiro encontro de

    lideranas indgenas em Braslia, em 1978.

    Este evento precedeu a criao da Unio das

    Naes Indgenas (UNI) em 1980.

    As comemoraes do quinto centenrio do

    descobrimento da Amrica em 1992, assim

    como as do descobrimento do Brasil em 2000

    ambas rebatizadas por esses movimentos

    como Encontro de Civilizaes serviram de

    palco para diversas manifestaes crticas dos

    movimentos sociais ao tradicional eurocen-

    trismo dos calendrios oficiais.

    O mesmo aconteceu no ano do centenrio da

    abolio da escravatura no Brasil, em 1988.

    Nessa data, o movimento negro, que j se

    organizava desde meados dos anos de 1970,

    fez uma dura crtica tradicional comemo-

    rao do dia 13 de maio, dia da assinatura

    da Lei urea, para propor em seu lugar a co-

    memorao do 20 de novembro. Tratava-se

    de trocar o dia que homenageava a Princesa

    Isabel por aquele em que se deveria homena-

    gear Zumbi dos Palmares, grande liderana

    quilombola. Esta demanda foi formulada a

    partir do incio dos anos de 1970, depois do

    perodo mais repressivo do regime militar,

    instaurado pelo golpe de 1964. Entretanto,

    No Mxico, no dia 1 de janeiro de 1994, teve

    lugar o levante dos ndios de Chiapas, liderados

    pelo encapuzados e misteriosos comandantes

    do EZLN (Exrcito Zapatista de Libertao

    Nacional). Mesmo no tendo por objetivo to-

    mar o poder e implantar um governo indgena

    ou socialista, mas sim, incentivar a auto-orga-

    nizao da sociedade civil mexicana, pretendeu

    transformar profundamente o sistema social e

    poltico do pas. O EZLN hoje uma referncia

    mundial para os que se sentem vtimas do ne-

    oliberalismo. A inspirao maior foi Emiliano

    Zapata que, no comeo do sculo, frente do

    Exrcito do Sul, representou a insurreio dos/

    as camponeses/as e dos ndios/as, a luta contra

    os poderosos, o programa agrrio de redistri-

    buio das terras e a organizao comunitria

    da vida camponesa. O EZLN combina tradi-

    es subversivas, que formam uma cultura

    revolucionria que ganha fora literria nos

    artigos do mtico subcomandante Marcos. Dos

    seus textos e cartas vem a expresso de um

    sentimento que cresce na Amrica Latina: o

    do esquecimento dos pobres, dos/as negros/as,

    dos/as ndios/as e das outras vtimas do neo-

    liberalismo:

    E ns? Cada vez mais esquecidos. A histria

    no era mais suficiente para evitar que mor-

    rssemos esquecidos e humilhados. Porque

    morrer no doi, o que doi o esquecimen-

    to. Descobrimos, assim, que no existamos

    mais, que os governantes tinham se esque-

    cido de ns, na euforia de cifras e taxas de

    crescimento. Um pas que se esquece do

    seu passado no pode ter futuro. Ento to-

    mamos as armas e penetramos nas cidades

    onde ramos animais. Fomos e dissemos

    ao poderoso Aqui estamos!, e gritamos

    para todo o pas Aqui estamos!, e gritamos

    para todo o mundo Aqui estamos!. E ve-

    jam s como so as coisas, porque, para que

    nos vissem, tivemos de cobrir nosso rosto;

    para que nos nomeassem, negamos o nome;

    apostamos o presente para ter um futuro;

    e para viver... morremos (Trecho retirado

    de Subcomandante Marcos, Todos somos

    mexicanos. In: DI FELICE, Mssimo &

    MUOZ, Cristobal. A revoluo invencvel:

    subcomandante Marcos e Exrcito Zapatista

    de Libertao Nacional. Cartas e comunica-

    dos. So Paulo: Boitempo Editorial, 1998).

  • . 47

    sem que houvesse ainda condies de serem

    retomadas as atividades poltico-partidrias,

    ocasio em que a sociedade civil brasileira co-

    meava a se organizar na forma de movimen-

    tos sociais de base. Naquele momento emer-

    giu tambm um movimento negro de carter

    novo, marcado por experincias da luta dos

    negros/as por direitos civis nos EUA e pelo

    processo de descolonizao da frica.

    A Frente Negra Brasileira, criada entre as d-

    cadas de 1920 e 1930, tinha sido a primeira

    forma de organizao explicitamente poltica

    da populao negra no Brasil, tendo como

    objetivo a integrao do negro no mercado

    de trabalho e como parmetro alcanar os

    mesmos direitos garantidos aos imigrantes.

    Na dcada de 70, surgiu um novo movimen-

    to negro, marcado pelas ideias de afirmao

    e valorizao das diferenas e contra o pre-

    conceito de cor e raa, assumindo assim um

    carter destacadamente cultural e poltico.

    Diante disso, os objetivos de atribuio de va-

    lor ao passado negro e de destruio dos mi-

    tos racistas existentes na sociedade brasileira

    destacaram-se. Foi nesse contexto que emer-

    giram os debates em torno do 13 de maio e

    do 20 de novembro, assim como a respeito

    dos quilombos e de Zumbi dos Palmares,

    promovendo avanos na reviso da ideologia

    nacional. Depois dos anos 80, Zumbi foi eri-

    gido o heri nacional. Em 1995, o dia de sua

    morte, a partir do slogan Zumbi est vivo,

    foi transformado em Dia Nacional da Cons-

    cincia Negra.

    Um marco fundamental de tais mudanas ideolgicas e institucionais no Brasil foi

    a Constituio Federal de 1988, que aps forte mobilizao popular e sensibilizao

    A Marcha Zumbi dos Palmares contra o

    racismo, pela cidadania e a vida foi organi-

    zada pelo Movimento Negro brasileiro, em 20

    de novembro de 1995, para ser um marco em

    protesto contra o racismo e em homenagem

    aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palma-

    res. Ele foi lder do maior, mais duradouro e

    mais famoso quilombo brasileiro, tornado, por

    isso, smbolo da luta dos negros/as no Brasil

    contra o regime escravocrata. O Quilombo dos

    Palmares resistiu por um sculo na Serra da

    Barriga, no estado de Alagoas, aos ataques das

    foras escravistas. Participaram desta marcha

    30 mil ativistas negros e negras vindos/as de

    todos os cantos do pas para ocupar o gramado

    do Congresso Nacional, na Esplanada dos Mi-

    nistrios. Recebidos pelo Presidente da Rep-

    blica, os integrantes da Executiva Nacional da

    Marcha Zumbi dos Palmares lhe entregaram

    um documento com as principais reivindica-

    es do Movimento Negro, denunciando o ra-

    cismo, defendendo a incluso de negros/as na

    sociedade brasileira e apresentando propostas

    concretas de polticas pblicas.

    Zumbi (1655 - 1695) foi o ltimo dos lderes

    do Quilombo dos Palmares. Localizado na

    atual regio de Unio dos Palmares, Alagoas, o

    Quilombo dos Palmares era uma comunidade

    autossustentvel, um reino (ou repblica na

    viso de alguns) formado por escravos negros

    que haviam escapado das fazendas brasileiras.

    Ocupava uma rea prxima ao tamanho de

    Portugal e sua populao chegou a alcanar

    cerca de trinta mil pessoas.

  • . 48

    de parlamentares, a exemplo de outros direitos, re-

    conheceu a diversidade tnica, racial e cultural de

    sua populao. Foi dada a devida importncia ao

    combate discriminao, com base nas diferenas

    de gnero, ainda que se tenha resistido a incluir a

    diversidade de orientao sexual. Dentre as con-

    quistas, isto significou o fim da tutela estatal sobre

    os grupos indgenas, que passaram a ter direito

    representao prpria na Justia e acesso a uma

    educao diferenciada.

    Da mesma forma, houve o reconhecimento das

    comunidades remanescentes de quilombos, assim

    como o seu direito a terra. Tais comunidades, das

    quais at pouco tempo nem mesmo se falava, tive-

    ram seus direitos aceitos na Colmbia e no Brasil,

    entre outros pases. Aqui, at 1995, perfaziam uma

    lista de apenas 50. Hoje o movimento quilombola

    j fala em mais de 3 mil. No entanto, de acordo com

    dados do INCRA (Instituto Nacional de Coloniza-

    o e Reforma Agrria), at 2009, pouco mais de

    100 comunidades receberam a titulao da terra.

    No caso do racismo, o Estado brasileiro assinou a Conveno 169 da Organizao Interna-

    cional do Trabalho, ratificada e tornada legislao nacional em 2004, que estabelece um pa-

    dro de relacionamento dos Estados nacionais com seus grupos autctones, tribais e tnicos,

    no mais pautado pela assimilao, mas pelo reconhecimento e respeito diferena e au-

    tonomia desses grupos. Em 2001, o Brasil em especial, a militncia feminina negra teve

    uma participao ativa e destacada na III Conferncia Mundial de Combate ao Racismo,

    Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata, realizada na cidade de Durban,

    na frica do Sul, com importantes repercusses sobre o tema no Brasil.

    O efeito institucional em mbito nacional de tais acordos foi, por exemplo, a criao em

    anos recentes da SEPPIR (Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial), que

    tem o objetivo de adequar e articular as diferentes polticas ministeriais em torno do da

    promoo da igualdade racial. E tambm da Secretaria de Educao Continuada, Alfabe-

    tizao e Diversidade (Secad), criada em julho de 2004, com o objetivo de contribuir para

    Para saber mais sobre quilombos, vi-

    site alguns sites especificamente desti-

    nados ao tema. Para ter acesso a todas

    as notcias publicadas na imprensa

    nacional e regional, alm de refern-

    cias bibliogrficas, textos de anlise

    e ensaios fotogrficos, veja o site do

    Observatrio Quilombola: www.

    koinonia.org.br/oq. Para ter acesso

    legislao sobre o tema, assim como

    relao dos processos jurdicos e ad-

    ministrativos em curso nos diferentes

    estados, ver o site da Comisso Pr-

    ndio de So Paulo: http://www.cpisp.

    org.br/comunidades/. Para uma viso

    da prpria militncia quilombola so-

    bre o tema, consulte o site da CONAQ:

    http://www.conaq.org.br/

    Veja os depoimentos de mulheres e

    jovens quilombolas sobre temas como

    terra, religio, gnero e juventude em:

    http://www.koinonia.org.br/visoes_

    quilombolas/.

  • . 49

    a reduo das desigualdades educacionais, por meio de polticas pblicas que ampliem o

    acesso educao continuada, promovendo a orientao a projetos poltico-pedaggicos

    voltados para os segmentos da populao, vtima de discriminao e de violncia, incluindo

    indgenas e quilombolas.

    Um dos efeitos mais claros e importantes da institucionalizao do tema da diversidade no

    mbito educacional foi a criao de uma legislao especfica, obrigando escolas pblicas e

    privadas a adotarem em seus currculos a histria da frica e dos descendentes de africanos

    no Brasil, o que inclui a cultura negra em geral (Lei 10.639), agora ampliada para contem-

    plar tambm a introduo da histria indgena e da cultura destes povos no currculo escolar

    nacional (Lei 11.465).

    Finalmente, nos ltimos anos, com a implantao de programas como a Poltica Nacional

    para o Desenvolvimento Sustentvel dos Povos e Comunidades Tradicionais, o governo bra-

    sileiro reconheceu a existncia de mais 13 tipos de grupos diferenciados, alm dos indgenas

    e dos quilombolas, quanto aos seus modos de vida e formas de produo social, os quais

    merecem tratamento diferenciado. So eles os caiaras, os faixinais, os ciganos, as quebra-

    deiras de coco, os pantaneiros, os sertanejos, os geraizeiros, entre outros. A perpetuao des-

    ses grupos, que deveriam ter desaparecido, assim como a manuteno ou a recuperao da

    sua forma de identificao diferenciada no seio das sociedades nacionais, pode parecer um

    fenmeno surpreendente do ponto de vista do evolucionismo, do nacionalismo, do eurocen-

    trismo e das propostas de branqueamento, mas um fato inegvel nos dias de hoje.

    Depois de 1988, houve o reconhecimento por parte do Estado brasileiro de serem as

    discriminaes por gnero, raa/etnia e orientao sexual, e as desigualdades decor-

    rentes dessas questes, problemas reais da sociedade brasileira, precisando ser com-

    batidas por meio de programas especficos e de instituies prprias. Os governos

    brasileiros passaram a ser signatrios de vrias Convenes e Conferncias interna-

    cionais, dedicadas especificamente ao combate discriminao e promoo dos

    direitos de populaes e categorias sociais at ento desrespeitadas. Um dos objetivos

    desse curso apresentar e discutir alguns desses processos, no que diz respeito, sobre-

    tudo, s questes de gnero e sexualidade.

  • . 50

    Dicas de filme e video

    CRP/SP Gravao do Programa Diversidade coleo de programas que aborda o tema da diversidade sob

    diferentes aspectos. No YouTube encontram-se vrios desses programas. Para acessar, copiar e colar CRP/

    SP Programa Diversidade na caixa de busca. Alternativamente, podem-se adquirir vdeos ou DVDs desse

    programa no link http://www.crpsp.org.br/crp/midia/diversidade/videos.htm. Neste mesmo link, o acesso

    lista de materiais sobre diversidade, sempre acompanhados de resenha.

    Abolio (Brasil, 1988). Diretor e roteirista Zzimo Bulbul, Produo Momento Filmes. Documentrio sobre

    o centenrio da libertao dos escravos. O filme faz um profundo inventrio da histria do negro brasileiro e

    de seus dilemas.

    Brava gente brasileira (Brasil, 2000). Direo de Lcia Murat. A fico passa-se no atual Mato Grosso do Sul,

    quando no final do sculo XVIII um grupo de portugueses designados para fazer um levantamento topogr-

    fico na regio do Pantanal envolve-se no estupro de ndias da tribo Kadiwus. No filme, a diretora focaliza

    o conflito cultural entre brancos (colonizadores) e nativos (colonizados), tendo como tema principal a

    dificuldade de compreenso cultural.

    Distrada para a morte (Brasil, 2001). De Jeferson Dee, Super Filmes e Trama Filmes. Jovens negros gravitam

    numa cidade que no lhes d a menor chance

    Ganga Zumba (Brasil, 1964). De Cac Diegues. Em torno de 1650, um grupo de escravos rebela-se num

    engenho de Pernambuco e ruma para o Quilombo dos Palmares, onde uma nao de ex-escravos fugidos

    resiste ao cerco colonial. Entre eles est Ganga Zumba, prncipe africano e futuro lder de Palmares durante

    muitos anos. Mais tarde, seu herdeiro e afilhado, Zumbi, contestar as idias conciliatrias de Ganga Zumba,

    enfrentando o maior exrcito jamais visto na histria colonial brasileira. Inspirado nos livros de Joo Felcio

    dos Santos (Ganga Zumba) e Dcio de Freitas (Palmares).

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    Glossrio

    Arte degenerada: Designao que os regimes fascistas e nazistas, surgidos na primeira metade do sculo XX, atribuam Arte Moderna, marcada pelo desejo de ruptura com a esttica tradicional, academicista, por isso, desconstruidora do perspectivismo renascentista, do figurativismo e largamente inspirada em temas proibidos e nas artes no-ocidentais, como a africana.

    Indianismo: Na primeira metade do sculo XIX, com a transferncia da famlia real portuguesa, em 1808, e com a independncia, em 1822, o Brasil viveu um perodo de afirmao de identidade, que veio acompanhado do incremento nas condies de desenvolvimento de uma vida intelectual prpria. Essa foi a poca em que despontou uma literatura patritica, assim como houve a adoo do Romantismo como estilo e ideologia. No Romantismo, prevalece a dimenso do local, associada ao esforo de ser diferente, uma veia aberta s reivindicaes de autonomia nacional. No caso do Brasil, em especial, isso veio acompanhado do culto natureza, do retorno ao passado, ao pitoresco, ao exagero e preferncia pela metfora. O indianismo foi a principal expresso literria e artstica desse Romantismo patritico. Por meio dele, o ndio deixou de figurar como selvagem, praga que deveria ser eliminada e expresso de ignorncia, para figurar como smbolo nacional. Gonalves de Magalhes, Visconde de Araguaia (1811-1822), escreveu a Confederao dos Tamoios (1856); Gonalves Dias (1823-1864), em seu poema I-Juca Pirama, narra a histria de um ndio, sacrificado por uma tribo inimiga. E seus Primeiros cantos (1846) foram referncia para a poesia nacional do perodo. No romance, teve destaque Jos de Alencar (1829-1877) com o Guarani (1857) e Iracema (1863). O indianismo pretendia dar ao brasileiro a convico de ter tido gloriosos antepassados, mascarando a origem africana, considerada menos digna.

    LGBT: Lsbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis.

    Remanescentes de quilombos: Tambm chamadas de quilombos contemporneos, as comunidades quilombolas tiveram seus direitos territoriais reconhecidos pela Constituio Federal de 1988, atravs do artigo 68 dos Atos Dispositivos Transitrios. Apesar de a Constituio no trazer uma definio para remanescentes de quilombos, hoje prevalece a interpretao de que tais comunidades no podem ser pensadas como restos ou resduos de antigos quilombos histricos, mas como grupos que, antes ou depois da dissoluo do regime escravista, lograram organizar-se na forma de comunidades de carter predominantemente familiar, sobre territrios de uso tradicional. Delimitaram assim verdadeiros territrios tnicos reconhecidos como distintos por seus vizinhos, seja de forma positiva, seja de forma preconceituosa. Para avanar no tema, ver o artigo Quilombos, no livro Raa Novas Perspectivas Antropolgicas, citado na bibliografia.

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    BibliografiaALBERTI, Verena & PEREIRA, Amlcar Arajo (orgs.). Histrias do Movimento Negro no Brasil. In: Depoi-mentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: CNPq, FAPERJ, FGV e Pallas, 2007. (Oferece um olhar amplo e plural do movimento negro, por meio do depoimento dos prprios militantes).

    ARRUTI, Jos Maurcio. O reencantamento do mundo - Trama histrica e arranjos territoriais Pankararu. Rio de Janeiro: PPGAS/Museu Nacional - UFRJ, 1996.

    AZEVEDO, Clia M.M. de. Onda negra medo branco: o negro no imaginrio das elites, sculo XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

    BANTON, Michael. A ideia de raa. Lisboa: Edies 70, 1979.

    BENTO, Maria Aparecida da Silva. Psicologia social do racismo. Petrpolis: Vozes, 2002.

    DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introduo Antropologia Social. Petrpolis: Vozes, 1981.

    FERNANDES, Florestan. A integrao do negro na sociedade de classes. So Paulo: tica, v.1 e 2, 1978.

    GUIMARES, Antnio Srgio & HUNTLEY, Lynn (orgs.). Tirando a mscara: Ensaios sobre o racismo no Brasil. So Paulo: Paz e Terra, 2000. (Coletnea de artigos que traz uma viso ampla e plural da questo racial no Brasil).

    ______. Classes, raas e democracia. So Paulo: Editora 34, 2002.

    HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve sculo XX (1914-1991). So Paulo: Companhia das Letras, 1995.

    LEITE, Miriam Moreira. A condio feminina no Rio de Janeiro; sculo XIX. Coleo Estudos Histricos. So Paulo: Hucitec, 1981.

    LVI-STRAUSS, Claude. Raa e histria. Coleo Os Pensadores. v. L. So Paulo: Abril Cultural, 1976.

    MOURA, Clvis. O negro: de bom escravo a mau cidado? Rio de Janeiro: Conquista, 1977.

    MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petr-polis: Vozes, 1999. (Para uma crtica da ideologia da mestiagem).

    PINHO, Osmundo & SANSONE, Lvio (orgs.). Raa - Novas perspectivas antropolgicas. Salvador: Associao Brasileira de Antropologia, EDUFBA, 2008. (Uma viso ampla e atualizada dos debates antropolgicos em torno do conceito de raa