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APRESENT AÇÃO H á exatamente um ano a Associação dos Docentes da USP lançou-se no arrojado projeto de editar uma revista. Neste primeiro ano de existência da Revista Adusp procuramos cumprir a proposta de apresentar reflexões sobre questões de caráter acadêmico e de conjuntura nacional. Já no primeiro número, distribuído em dezembro de 94, o presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Barbosa Lima Sobrinho, analisava e apontava soluções para os principais problemas brasileiros. No número seguinte, o ex-ministro da Previdência, Waldir Pires, rebatia os argumentos do governo FHC para o desmonte da previdência pública. Mais tarde, em julho, a Revista Adusp trazia uma análise da greve dos petroleiros que não se encontrava na grande imprensa. Em outubro, a edição número 4 homenageou o professor e sociólogo Florestan Fernandes, falecido em setembro último. Esta quinta edição apresenta um texto do engenheiro-agrônomo, fazendeiro e ex-presidente do Incra, José Gomes da Silva, que mostra ser possível fazer a Reforma Agrária no país. Ainda no tema Reforma Agrária, entrevistamos os líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) José Rainha Júnior e Diolinda Alves de Souza. Eles falam dos conflitos e das propostas para assentar os trabalhadores no Pontal do Paranapanema, interior do Estado. Traz, também, artigos sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação; a necessidade de reforma no Estatuto da USP; e sobre por que devem ser extintos os contratos precários na Universidade de São Paulo.

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APRESENTAÇÃO

Há exatamente um ano a Associação dos Docentes da USPlançou-se no arrojado projeto de editar uma revista. Nesteprimeiro ano de existência da RReevviissttaa Adusp procuramos

cumprir a proposta de apresentar reflexões sobre questões decaráter acadêmico e de conjuntura nacional. Já no primeiro número,

distribuído em dezembro de 94, o presidente da Associação Brasileira deImprensa, Barbosa Lima Sobrinho, analisava e apontava soluções para os

principais problemas brasileiros. No número seguinte, o ex-ministro daPrevidência, Waldir Pires, rebatia os argumentos do governo FHC para odesmonte da previdência pública. Mais tarde, em julho, a RReevviissttaa Adusp

trazia uma análise da greve dos petroleiros que não se encontrava na grandeimprensa. Em outubro, a edição número 4 homenageou o professor e

sociólogo Florestan Fernandes, falecido em setembro último. Esta quinta edição apresenta um texto do engenheiro-agrônomo, fazendeiroe ex-presidente do Incra, José Gomes da Silva, que mostra ser possível fazera Reforma Agrária no país. Ainda no tema Reforma Agrária, entrevistamos

os líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) José Rainha Júnior e Diolinda Alves de Souza. Eles falam dos conflitos e

das propostas para assentar os trabalhadores no Pontal do Paranapanema,interior do Estado. Traz, também, artigos sobre a Lei de Diretrizes e Bases

da Educação; a necessidade de reforma no Estatuto da USP; e sobre por que devem ser extintos os contratos precários

na Universidade de São Paulo.

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DIRETORIAMarco A. Brinati, Osvaldo Coggiola, Jair Borin, Heloísa D. Borsari, Valéria De Marco,

Primavera Borelli, José Nivaldo Garcia, Antonio César Fagundes,José Marcelino Rezende Pinto, Ozíride Manzolli Neto.

Comissão EditorialAdilson O. Citelli, Bernardo Kucinski, Fernando Leite Perrone,

Francisco Gorgônio da Nóbrega, Jair Borin, Khaled Goubar, Lígia M. Marcondes Machado, Nelson Achcar, Nilza Nunes da Silva,

Norberto Luiz Guarinello e Zilda M. Gricoli Iokoi.

Editor: Marcos Luiz Cripa vdEditoração eletrônica: Luís Ricardo Câmara e Maria Cristina Waligora

Capa: Argeu GodoyFotos da capa: Eduardo Knapp / Folha Imagem e Daniel R. Garcia (detalhes)

Projeto Gráfico: Dmag - Artes GráficasRevisão: Isabel Marques

Secretaria: Alexandra Moretti Carillo e Rogério YamamotoDistribuição: Marcelo Chaves e Walter dos Anjos

Fotolitos: BandeiranteGráfica: Poolprint

Tiragem: 5.000 exemplares

Adusp - S. Sind.Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 374

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A RReevviissttaa Adusp é uma publicação trimestral da Associação dos Docentes da Universidadede São Paulo - S. Sind., destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem,necessariamente, o pensamento da diretoria da entidade e são de responsabilidade dosautores. Contribuições serão aceitas desde que os textos inéditos sejam entregues emdisquete e tenham no mínimo dez mil e no máximo vinte mil caracteres. Os artigos serãoavaliados pela Comissão Editorial, que decidirá sobre seu aproveitamento.

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ÍÍNNDDIICCEE6

AA RREEFFOORRMMAA AAGGRRÁÁRRIIAA BBRRAASSIILLEEIIRRAA NNOO LLIIMMIIAARR DDOO AANNOO 22000000

José Gomes da Silva

15SSEEMM--TTEERRRRAA,, SSEEMM GGUUEERRRRAA

Marcos Cripa

16EENNTTRREEVVIISSTTAA

José Rainha Júnior e Diolinda Alves de Souza

22LLDDBB,, UUMMAA QQUUEESSTTÃÃOO EEMMBBLLEEMMÁÁTTIICCAA

NNAA PPOOLLÍÍTTIICCAA EEDDUUCCAACCIIOONNAALL BBRRAASSIILLEEIIRRAARomualdo Portela de Oliveira

25ÉÉ PPRREECCIISSOO MMUUDDAARR OO EESSTTAATTUUTTOO DDAA UUSSPP

Benedito Honório Machado

29CCOONNTTRRAATTOOSS PPRREECCÁÁRRIIOOSS::

PPOORR QQUUEE IISSSSOO TTEEMM DDEE AACCAABBAARR??Lígia Marcondes Machado

32OOSS SSIINNOOSS DDOOBBRRAAMM PPEELLAA EESSCCOOLLAA PPÚÚBBLLIICCAA

AASS PPRROOPPOOSSTTAASS DDEE CCOOVVAASS PPAARRAA OO 11ºº EE 22ºº GGRRAAUUSSGilberto Pereira de Souza

35EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO--CCUUBBAA

NNEEMM SSÓÓ DDEE PPÃÃOO VVIIVVEE OO HHOOMMEEMMGuillermo Díaz Rodríguez

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Janeiro 1996 RReevviissttaa Adusp

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A REFORMA AGRÁRIA BRASILEIRA

NO LIMIAR DO ANO 2000

Engenheiro-agrônomo e fazendeiro, José Gomes da Silva sempre esteve ligado direta ouindiretamente ao debate da Reforma Agrária no Brasil. Participou da equipe que formulou o Plano deRevisão Agrária do Estado de São Paulo (1959 a 63); colaborou com o marechal Humberto Castello

Branco na elaboração do Estatuto da Terra. No governo Montoro (1982/85), como secretário daAgricultura de São Paulo, implantou o Instituto de Assuntos Fundiários. José Gomes dirigiu o Instituto

Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra), fundou a Associação Brasileira de Reforma Agrária e foipresidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Neste artigo ele mostra

que houve, pelo menos, seis momentos históricos em que o Brasil perdeu a oportunidade de criar uma base democrática de apropriação da terra. Ele demonstra que o atual governo conseguiria

assentar 200 mil famílias com R$ 1,98 bilhão. Essa importância é bem menor que o rombo do Banco Econômico e equivale à metade da contribuição federal para salvar o Nacional.

Fotos: Daniel R. Garcia

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Em primeiro lugar épreciso indagar se oBrasil precisa ainda,no limiar do novoséculo, realizar umamudança na sua es-

trutura de posse e uso da terra,quando se sabe que os países de-senvolvidos já realizaram essasreformas há longa data e a pró-pria FAO – organismo que cuidada matéria em nível mundial –reconhece que tem havido nas úl-timas décadas um arrefecimentodos movimentos nessa área.

Explicando, cabe esclarecerque as ações de Reforma Agrá-ria (a lei brasileira, o Estatuto daTerra, nas suas dis-posições ainda emvigor, escreve a ex-pressão com iniciaismaiúsculas) desen-volvidas no passa-do, naqueles países,por diferentes ma-neiras e em diferen-tes etapas de suahistória, constituemo maior argumentopara que o Brasiltambém implanteesse processo, em-bora tardiamente.Mesmo porque ain-da subsistem entrenós as razões que levaram os Es-tados Unidos, o Japão, a Itália, aCoréia do Sul e outros países arealizar suas reformas agrárias,bem-sucedidas, e que tiveramnessas mudanças um dos pilarespara a decolagem do desenvolvi-mento em suas dimensões eco-nômica, social e política.

Histórico

Houve pelo menos seis impor-tantes momentos históricos emque o Brasil perdeu a oportuni-dade de criar uma base democrá-tica de apropriação dos seusimensos recursos em terras agrí-colas. Como se sabe, a partir des-se fator de produção físico, equa-nimemente distribuído, as nações

modernas construíram o edifíciodemocrático sobre o qual passoua existir a cidadania. Inclusivedos seus camponeses.

O primeiro desses momentosaconteceu no início do povoa-mento, quando o rei de Portugal,ao invés de abrir o imenso territó-rio descoberto, pertencente à Co-roa, para todos os seus súditos,resolveu aplicar aqui, com as Ca-pitanias Hereditárias, um sistemade ocupação existente no minús-culo Arquipélago de Açores. Es-sas imensas áreas, depois dividi-das em sesmarias, deram origemao latifúndio legalmente rotuladode “propriedade improdutiva”.

Mais tarde, na abolição, a li-bertação dos escravos não foiacompanhada da oferta de umaoportunidade de terem tambéma terra própria, como queriamalguns abolicionistas. Esse equí-voco obrigou os negros libertosa buscar sua terra própria, porseus próprios meios - tal comofazem hoje os sem-terra. Comsuas ocupações criaram os qui-lombos que celebrizaram Zum-bi e sua luta heróica. Registre-se de passagem que um estudorecente mostrou, somente noMaranhão e no Pará, estadosonde a pesquisa foi concluída, aexistência de 1 milhão de hecta-res de “terra de preto”, comoessas áreas são popularmenteconhecidas.

Já neste século, a Coluna Pres-tes e a Revolução de 30 perderama grande oportunidade de levan-tar também as massas campone-sas e buscar, derrubando a Repú-blica Velha, um lugar no novoBrasil que pretendiam inaugurar.

Por fim, na história mais re-cente, outros espisódios retorna-ram à questão, como as Refor-mas de Base de João Goulart(1962/1964), o Estatuto da Terra(novembro de 1964) e o PlanoNacional de Reforma Agrária –PNRA, (1985).

Todos sabemos em quê deramas reformas de Jango, das quais aReforma Agrária é unanimemen-

te reconhecida, juntocom a quebra da hie-rarquia militar, comoas duas principaiscausas da sua quedae da instauração dolongo período da di-tadura militar.

O Estatuto da Ter-ra e a Emenda Cons-titucional nº 10, am-bos de novembro de1964, abriram o cami-nho para o desenca-deamento de uma Re-forma Agrária de ver-dade, permitindo, pe-la primeira vez, o pa-

gamento das desapropriações emtítulos da dívida pública e editan-do uma lei específica sobre a ma-téria. Posteriormente, Costa e Sil-va, com o Decreto-Lei nº 554, de25 de abril de 1969, operacionali-zou aqueles dois diplomas, esta-belecendo o rito sumário (que ho-je Fernando Henrique tenta resta-belecer) para agilizar o processo eevitar a retomada da terra desa-propriada pelos latifundiários.

Infelizmente, a tentativa mili-tar caiu também no vazio, sejapela pressão do conservadorismo(que impingiu o Imposto Territo-rial Rural em lugar das desapro-priações), seja porque CastelloBranco, que havia anunciado tertomado uma “decisão políti-ca”em favor da Reforma Agrária

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A libertação dos escravos não foi

acompanhada da oferta de uma oportunidade

de terem também a terra própria, como

queriam alguns abolicionistas da época.

Esse equívoco obrigou os negros libertos a

buscar sua terra própria, por seus próprios

meios - tal como fazem hoje os sem-terra.

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(tal como FHC, hoje), acabousendo atropelado pelos “duros”de Costa e Silva e não pôde (ouàquela altura já não queria) de-dicar à Reforma Agrária o acom-panhamento necessário à realimplementação de qualquer de-cisão política.

Por derradeiro, em 1985, Sar-ney, dizendo honrar compromis-sos públicos de Tancredo Nevescom a Reforma Agrária, cria oMinistério da Reforma e Desen-volvimento Agrário (MIRAD),entregando sua direção a NélsonRibeiro, homem sereno e confiá-vel, indicado pela Igreja Católica,à época seriamente engajada nosmovimentos sociais pela Refor-ma Agrária.

Foi então elaborado um ambi-cioso Plano Nacional de Refor-ma Agrária (PNRA) que preten-dia assentar 1,4 milhão de famí-lias em quatro anos.

Essa meta e a firmeza que aentão direção do INCRA mos-trava em pretender executá-laapavoraram os donos-de-terra,que se organizaram em torno daextinta União Democrática Ru-ralista (UDR), fizeram leilões degado para arrecadar fundos, ar-maram-se e partiram para o con-fronto. Sarney, é claro, recuou epassou a buscar um pretexto pa-ra a capitulação, conforme des-crito no livro “Caindo por Terra”,de minha autoria. O episódio deLondrina, que se constitui numagrotesca falta de entendimentoprocessual, suficiente para fazero frágil Executivo recuar, colo-car-se na defensiva e entregar areforma à sanha da UDR, veio acalhar e bastou para arquivar aReforma Agrária e o PNRA comas desculpas de praxe.

Posteriormente, na Consti-tuinte de 1988, a Reforma Agrá-ria sofre novo revés com a retira-da do latifúndio do texto consti-tucional, a criação da falácia da“propriedade produtiva” e o re-torno da obrigatoriedade do pré-vio pagamento das indenizaçõespor interesse social para fins de

Reforma Agrária, exigência quebloqueava o processo (tal comohoje acontece) e que havia sidoretirada pela Constituição de1967. No livro “Buraco Negro - AReforma Agrária na Constituinte”são narrados os lances dramáti-cos desse e outros episódios rela-tivos à questão agrária na atualConstituição brasileira.

Com isso chegamos a este anoda graça de 1995, com FHC esuas propostas a serem discutidasmais adiante.

O que é a Reforma Agrária?

Uma das primeiras reaçõesdaqueles que se opõem a mudan-ças na estrutura agrária brasileira(e a quaisquer outras alteraçõesque afetem os seus privilégios),consiste em mencionar o fracassodos assentamentos realizados atéagora pelo governo.

Esse filme – já rodado em ou-tras ocasiões, conforme vimos –é exibido de novo, com o recru-descimento do movimento pelaReforma Agrária. As cenas, in-

clusive, são sempre as mesmas,mostrando as “favelas” rurais,parceiros empobrecidos, criançasna miséria.

Há uma preliminar decisivaem tudo isso: nunca houve Re-forma Agrária no Brasil, tal co-mo aconteceu em numerosos paí-ses do mundo desenvolvido.

Reforma Agrária, por defini-ção, é um processo amplo (mas-sivo), imediato e drástico, de re-distribuição dos direitos de pro-priedade da terra agrícola. De-cuplando o conceito: amplo paraguardar relação com a magnitu-de do problema agrário do paísonde é executada; imediato parapoder beneficiar a atual geraçãodos sem-terra, como os acampa-dos na beira das estradas; edrástico (no sentido de "diferen-te", não de "violento") para ga-rantir que a nova relação ho-mem/terra, baseada na proprie-dade privada de um bem co-mum, mostre-se bastante dife-rente do antigo sistema latifun-diário, ou seja, a agricultura “re-formada” precisa apresentar ca-

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racterísticas estruturais total-mente diferentes do “statusquo” por ela modificado.

Neste contexto, os atuais as-sentamentos constituem ilhasisoladas e dispersas no imensoespaço nacional de terras ocio-sas, cercados de adversários portodos os lados.

Instalados, no mais das vezes,como providência emergencial,traduzem também a má vontadedos governantes conservadoresque têm ocupado o Ministérioda Agricultura e a direção doINCRA. A terra nem semprepossui fertilidade que permitauma exploração sustentável e osserviços (crédito, assistência téc-nica, armazenamento, saúde,educação, etc.) raramente têmvindo a tempo de assegurar oêxito desses empreendimentos.A falta de escala que dê aos as-sentamentos o caráter de massi-vidade deixa também os assenta-dos entregues à sua própria sor-te, carecendo de estruturas mo-dernas de transporte, comerciali-zação e processamento.

A despeito de todas essas di-ficuldades – naturais ou fabrica-das – muitos assentamentos con-seguem sobreviver. No Paraná eno Rio Grande do Sul, eles jácomeçam a se organizar em coo-perativas de grau superior comagroindústrias incipientes queaumentam o valor agregado dosprodutos que geram dentro e fo-ra dos projetos.

Por outro lado, estudos reali-zados por entidades independen-tes, como a FAO e a Universida-de de Santa Maria (RS), têmmostrado que a renda média dosassentamentos pode alcançar ní-veis satisfatórios e muito superio-res aos que possuíam antes de re-ceber terra própria. Não é outro,aliás, o motivo pelo qual diversosprefeitos – reconhecendo os be-nefícios que os assentamentos es-tão trazendo para as suas comu-nas, inclusive em arrecadação deimpostos – passaram a apoiar es-ses movimentos.

E os fracassos, perguntarão oscríticos? As vendas de lotes hápouco denunciadas no Pontal doParanapanema?

A resposta é simples e válidapara qualquer situação em que asexceções não podem ser esgrimi-das como média. De fato, os in-sucessos dos assentamentos po-dem representar um êxito retum-bante se comparados aos 87.781imóveis rurais “improdutivos”(ocupando 115.054.000 hecta-res!), com áreas acima de 15 mó-dulos fiscais, definidos pela legis-lação agrária em vigor.

Por último, muito embora re-formas não devam se transformarem artigos de importação, cabeuma referência aos países que jáfizeram suas reformas agrárias. Ada Itália, por diversos motivos, éa que mais se aproxima daquelaque deveria ser feita no Brasil.Ali, a redistribuição de terrasaconteceu em grandes espaços -administrados pela “Ente di ri-forma” -, tal como poderia serfeito aqui, nos 350.000 hectaresdo Pontal, nas usinas decadentesda Zona da Mata de Pernambu-co, no semi-árido e nos vales derios perenes do Nordeste, nafronteira do Mato Grosso do Sulcom o Paraguai e, massivamente,em algumas outras regiões dopaís.

Como fazer a Reforma Agrária

Em todo curso sobre ReformaAgrária ensinam-se as condiçõesbásicas para desencadeá-la: deci-são política, legislação adequada,recursos (financeiros, humanos,terra), organismo executor e par-ticipação dos beneficiários.

Decisão política - FHC anun-ciou em São Paulo, tratando doassunto, que “o que vale é a von-tade política do governo”. A afir-mação foi repetida pelo ex-presi-dente do INCRA, porta-voz au-torizado de FHC, que, em lin-guagem mais simples, afirma: “aReforma Agrária é uma priorida-de ‘pra valer’”.

Qualquer especialista queacompanhe a questão, desde aépoca das reformas de base, em1963, pode dizer com ceticismo,que já ouviu as mesmas frases deJango, Castello, Sarney e subor-dinados respectivos.

Desconfianças à parte, acredi-tamos – uma vez mais – que se de-va dar um crédito ao atual gover-no. Em primeiro lugar, como diziao próprio Lula, “Fernando Henri-que não é Collor”. Digo porque:

Um dos momentos decisivosdo debate da questão agrárianos anos recentes aconteceu du-rante a histórica sessão da Cons-tituinte de 1988 quando apare-ceu o único “buraco negro” (im-passe não regimental) nos diver-sos meses que a nova Carta con-sumiu. Tratava-se de decidir so-bre a crucial questão da “pro-priedade produtiva”, a curiosafigura que os conservadores pro-punham para substituir o lati-fúndio tipificado pelo Estatutoda Terra. Para encaminhar a vo-tação decisiva, o líder Mário Co-vas designou o então senadorFernando Henrique Cardoso pa-ra encaminhar a votação da pro-posta que derrubava aquele obs-táculo legal para a concretizaçãoda reforma. E, do lado oposto,defendendo a posição do cha-mado Centrão, atuava o tambémsenador Jarbas Passarinho.

A luta de gigantes que se tra-vou, na oratória e no manejo le-gislativo, foi um dos momentosmarcantes da última Constituin-te e selou um compromisso dosenador paulista com a ReformaAgrária, que certamente seriaresgatado em qualquer oportu-nidade que viesse a se apresen-tar. Que melhor ocasião senãoem que o professor progressista,o senador da reforma e o toma-dor de decisão estão juntos namesma pessoa do Presidente daRepública?

Alguém já disse que um polí-tico realmente estadista depoisde chegar à presidência, começaa se preocupar com a imagem

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que passará à história. Essa a ex-plicação que ouvi a respeito dofato de a decisão de CastelloBranco, no bojo de um governoconservador, haver mudado aConstituição em nove artigos pa-ra permitir o pagamento das in-denizações em títulos da dívidapública, editar o Estatuto da Ter-ra e abrir caminho para a Refor-ma Agrária. Isso tudo contra-riando amigos, correligionários eaté participantes ativos do movi-mento militar que o levou ao po-der e que teve na Reforma Agrá-ria, como se sabe, uma das prin-cipais motivações.

Acontece que a de-cisão política não signi-fica apenas fazer decla-rações públicas e anun-ciar planos e metas.Decisão política, em ní-vel presidencial, signifi-ca acompanhamentoconstante, cobrança deprovidências, vigilânciasobre subordinados me-nos convictos, liberaçãode recursos, empenhopessoal. Se Kennedy ti-vesse simplesmenteanunciado o ProjetoApolo, sem acionarconstantemente o pessoal de Ca-bo Canaveral, o homem jamaisteria chegado à lua. Da mesmaforma, se Gorbatchev não tivesseido às fábricas, nunca teria im-plementado a perestróika e omuro ainda estaria por lá.

No nosso caso, os dias con-turbados que se seguiram à pro-mulgação do Estatuto da Terra(30 de novembro de 1964) nãopermitiram a Castello passar àhistória como o general da re-forma, assim como seus colegasDouglas McArthur, no Japão,Nasser, no Egito, e Chen Cheng,na Coréia.

Contudo, FHC não tem durosno seu encalço, parece contar nocaso da Reforma Agrária comapoio popular e militar e estáabraçado a um problema cuja so-lução não pode mais ser adiada.

Legislação adequada - AConstituição de 1988 foi madras-ta para os sem-terra, como já vi-mos. As três leis que regulamen-taram os contraditórios artigos185 e 186 (a chamada Lei Agrá-ria, a Lei do Rito Sumário e a Leido Imposto Territorial Rural) sófizeram aumentar o aranzel pro-cesso que entorpece o processo.

Felizmente, o novo governo jáse deu conta dessas dificuldades -mesmo se apenas para cumprir amodesta meta de 280 mil assenta-mento de famílias durante o man-dato de FHC - e já encaminhou

ao Congresso Nacional projeto delei que permitirá agilizar os pro-cessos de desapropriação e asemissões de posse respectivas.

Além do projeto-de-lei desti-nado a agilizar o Rito Sumário(se fosse sumário precisaria seragilizado?), o Executivo prometeenviar também ao CongressoNacional uma outra modificaçãoigualmente importante: a criaçãoda figura jurídica do “conflitocoletivo”, destinada especifica-mente a orientar os Juízes de Di-reito no tratamento dos conflitosenvolvendo um grande númerode pessoas.

Como se sabe, essa atual limi-tação do velho Código do Proces-so Civil tem acobertado latifun-diários e levado inocentes para acadeia, alguns ilegalmente alge-mados, como aconteceu há pou-

co no civilizado Estado de SãoPaulo com Diolinda Alves deSouza, esposa do líder sem-terraJosé Rainha Júnior.

De qualquer forma, nossaopinião é de que, no atual regi-me presidencialista, o PoderExecutivo, mesmo com as atuaislimitações na legislação, é capazse não de implantar uma Refor-ma Agrária de verdade, pelomenos de desencadear o proces-so, torná-lo irreversível e abrir ocaminho para a ampliação da re-distribuição de terras em umpróximo mandato.

Há dinheiro? - A ta-bela, na página ao lado,mostra várias estimati-vas de custos do assen-tamento de uma famí-lia, realizada em dife-rentes épocas, por dife-rentes autores. Sempreque possível foi efetua-da a devida correçãodos valores, inclusiveem dólares, de modo apermitir uma melhorcomparação.

Como se vê, a disper-são varia entre US$ 7,13mil a US$ 16,10 mil, com amédia de US$ 9,55 mil.

Uma estimativa dos recursosnecessários para assentar um nú-mero de famílias compatível coma dimensão da questão agráriabrasileira implica um exercíciobaseado nas seguintes premissas:

a) A Reforma Agrária deveser um processo de decisão polí-tica geral, isto é, todos querem(Presidente, Partidos Coligados)inclusive os sem-terra. Aqui, acolaboração que destes se espe-ra, além da renúncia ao pater-nalismo que tem imperado emalguns projetos tradicionais,consiste no aporte de mão-de-obra, deslocamento para os pro-jetos (que eles já fazem, por suaconta, nas operações de ocupa-ção), participação na organiza-ção dos beneficiários (experiên-cia que eles têm em alta dose,numa rica história de lutas) etc;

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A decisão política não significa apenas

fazer declarações públicas e anunciar

planos e metas. Decisão política, em nível

presidencial, significa acompanhamento

constante, cobrança de providências,

vigilância sobre subordinados,

liberação de recursos e empenho pessoal.

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b) Os custos a cargo do Orga-nismo Executor da ReformaAgrária referem-se apenas aosinvestimentos intrinsecamente li-gados ao assentamento;

c) Obras de infra-estrutura,como estradas vicinais, eletricida-de, armazéns, escolas, centros desaúde, pequenas agroindústrias,etc., serão custeadas pelos órgãosgovernamentais próprios (Minis-tério do Transporte, Ministérioda Educação, Saúde, Banco doBrasil, etc.).

“No PNRA os custos dos Ser-viços de Apoio não serão ineren-tes ao processo de ReformaAgrária e representam a aplica-ção dos instrumentos de açãoinstitucional nas áreas prioritá-rias, normalmente proporciona-dos pelo Poder Público”;

d) O Crédito Agrícola seráfornecido pelo Banco do Brasil eBNSES. Não são imputados nemjuros nem o principal desses fi-nanciamentos. Os juros a taxasprivilegiadas serão cobertos pelossaldos obtidos pelos dois bancoscom operações a taxas de merca-do e o principal, sempre devolvi-do pelos beneficiários, não é con-siderado como custo;

e) Para permitir alguma parti-cipação local e levar em conta asimplicações regionais, os Serviços

de Assistência Técnica e Exten-são Rural serão fornecidos, me-diante convênio, pelos Estados,Municípios e ONGs que assumi-rem os projetos;

f) Os indicadores adotados fo-ram os do PNRA (outubro de1985), atualizados, informações decampo, do MST, experiência pes-

soal dos autores e outras fontes.Tampouco foram considera-

das as despesas para o custeio,consolidação e/ou emancipaçãodos atuais assentamentos.

Na preparação da tabela evita-mos equívoco muito freqüenteneste tipo de análise: a falta decorreção dos valores expressos emUS$ de anos anteriores e a não-apropriação das parcelas havidasem pagamento do custo dos lotes,a serem feitas pelos beneficiários.

A primeira omissão explica osbaixos valores em US$ de algu-mas projeções, já que de 1985 a1994, por exemplo, a inflaçãonorte-americana atingiu 32%.No segundo caso, aparece a ne-cessidade de aclarar a naturezade venda a prazo dos lotes, cotasem cooperativas, quinhões con-dominiais, participação societá-ria ou qualquer outro sistema or-ganizacional que venha a seradotado numa Reforma Agráriacapitalista.

Com isso substitui-se de vez aexpressão dar terra por proporcio-nar oportunidade na alusão à pos-se e propriedade da terra emprojetos de assentamento.

Como produto final desta ela-boração, conclui-se que para as-sentar 200 mil famílias inicias, seriapreciso cerca de US$ 1,98 bilhão.

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Ano Proposta US$/Família

1985 Proposta PNRA 7.134,56 *

1985 PNRA 8.119,00

1991 Governo Paralelo 7.728,00 **

1993 INCRA, Plano 10.028,00 **

1993 Sérgio Leite 8.224,00 ***

1994 FAO 16.100,00

* Dólar de 1985 corrigido para junho de 1994 (x 1,376) ** Dólar de 1985 corrigido para junho de 1994 (x 1,376) *** Dólar de 1985 corrigido para junho de 1994 (x 1,376)

Observações

Inclui TDAs e recursos orçamentários. Valor da terra calculado na base de 60% dovalor de mercado. Total de investimentos em 4 anos.Refere-se apenas ao custo de implantação dos projetos (terra nua, indenização debeneficiários, ações de redistribuição. Os serviços de apoio: saúde, educação, infra-estrutura básica, estrada de desvio, armazenagens, etc., assistência técnica, crédito)custavam mais US$ 6.554,07*. Segundo o PNRA, estes custos não são inerentes aoprocesso de RA e representam a aplicação dos instrumentos de ação institucionalnas áreas prioritárias, normalmente proporcionadas pelo Poder Público (p.44).Investimento de US$2.500,00; 1.500,00;1.000 e 2.000, nos 1º, 2º e 3º anos deimplantação.Incluídos US$2.000,00 do Procera para crédito de investimentos e US$ 500,00 paracusteio.Baseado em custos de projetos no Estado de São Paulo envolvendo preparação daárea, edifícios do núcleo urbano e infra-estrutura (eletrificação, saneamento, etc.) +arrecadação da gleba. Ver Leite, S. Reforma Agrária: Combate à Exclusão eGeração de Empregos, RJ, CNRA, 1993.Informação preliminar, 1994. Inclui valor da terra, do crédito rural e até custosadministrativos com a manutenção do Organismo Executor da Reforma Agrária.

Estimativa de custos para assentamento de uma família em projetos de Reforma Agrária

Para assentar 200 mil

famílias inicias,

seria preciso cerca

de US$ 1,98 bilhão.

Essa importância

é bem menor

que o rombo do

Banco Econômico

e equivale à metade

da contribuição

federal para salvar o

Banco Nacional.

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Essa importância, como se vê,é bem menor que o rombo doBanco Econômico e equivale àmetade da contribuição federalpara salvar o Banco Nacional.

Há recursos humanos? - Umprojeto com as dimensões deuma Reforma Agrária para oBrasil, exige um número elevadode especialistas cujo recruta-mento viria em boa hora, já queo país enfrenta grave crise dedesemprego, constituindo maisuma vantagem, dentro de umaformulação geral de desenvolvi-mento. Planejadores, engenhei-ros de produção, arquitetos comexperiência em organização es-pacial, agrônomos, veterinários,zootécnicos e outros profissio-nais de agricultura de nível mé-dio ou superior, economistas, es-tatísticos, assistentes sociais, so-ciólogos e antropólogos, geógra-fos, educadores, sanitaristas,médicos, advogados conhecedo-res do Direito Agrário, etc., te-riam hora e vez nessa imensaempreitada.

Organismo executor - Muitospaíses que fizeram a ReformaAgrária trataram de criar um or-ganismo executor completamen-te novo e descomprometido comas velhas estruturas que o pro-cesso pretendia eliminar. Essafoi também a decisão de CastelloBranco que, no Estatuto da Ter-ra, tratou de criar não apenasum, mas dois institutos inteira-mente novos: o IBRA (InstitutoBrasileiro de Reforma Agrária),dedicado unicamente à ReformaAgrária, e o INDA (Instituto deDesenvolvimento Agrário), paracuidar dos assuntos pertinentesaos já proprietários (coloniza-ção, assistência técnica, créditorural, etc.).

Em outros casos – o da Itáliaé o mais sugestivo – onde a deci-são política se sobrepunha aocorporativismo, a ReformaAgrária foi conduzida pelo pró-prio Ministério da Agricultura,também engajado na ReformaAgrária, criando-se novas estru-

turas apenas em nível regional(as famosas “Enti di Riforma”,na Itália).

Além da indicação de uma au-toridade de confiança do Presi-dente da República para dirigir oprocesso, seria necessário reci-clar o pessoal do INCRA, alijan-do os servidores que tradicional-mente têm se mostrado adversá-rios da Reforma Agrária e dandoforça aos vocacionados paraatuar num trabalho como esse,de marcante dimensão social.

Papel dos beneficiários -Qualquer plano de ReformaAgrária, ensina Leonilde Me-deiros, especialista da Universi-dade Federal do RJ, deve se ba-sear na premissa de que o pro-cesso será implementado comos trabalhadores e não apenaspara os trabalhadores.

A participação popular é achave e o objetivo de toda açãodo governo. Compreende-se quedificilmente essas ações terão su-cesso junto à população rural seforem um ato de cima para baixoou simplesmente um ato adminis-trativo. Portanto, a participaçãoserá a garantia do caráter demo-crático e popular de toda a açãogovernamental. E compreende-seque a participação popular é a es-sência do processo de desenvolvi-mento social e cultural do ho-mem. Que é o objetivo final daprópria Reforma Agrária.

Finalmente, compreende-se aReforma Agrária como um pro-cesso permanente e com amplamobilização dos seus interessa-dos. Por isso, o plano de Refor-ma Agrária deve não só com-preender a participação massivados beneficiários, mas tambémensejá-la e respeitá-la.

Quantos donos-de-terra poderão ser desapropriados.

Esse exercício foi efetuado apartir da atual legislação que re-gulamenta as desapropriaçõespor interesse social para fins deReforma Agrária, tomando osdados das Estatísticas Cadastraisdo INCRA relativas a 1992 e di-vulgadas no ano passado.

A tabela acima, resultante dasimulação mostra algumas novi-dades: em primeiro lugar, sur-preende o reduzido número deproprietários de imóveis rurais aser eventualmente afetado, menosde 3% de um universo de mais de3,5 milhões de pessoas. Esse nú-mero (57.188 donos-de-terra)constituirá pois o público-alvo.

A sociedade brasileira sonhahá séculos com uma reforma quevenha a corrigir a herança dasCapitanias Hereditárias, das Ses-marias, da Lei de Terras de 1850e da “propriedade produtiva” daConstituição de 1988.

Outro destaque é a imensaárea que o Poder Público (queroreferir-me também ao Judiciário)tem à sua disposição para reali-zar a reforma. São mais de 115milhões de hectares, ou seja,quase cinco vezes a área do Esta-do de São Paulo e 3,4 vezes a su-perfície da Itália.

É claro que nem todas essas“propriedades improdutivas” seprestam para uso agrícola, mas setomarmos a média de 43% deterras aproveitáveis estimada pa-ra o Brasil como um todo, aindasobrarão quase 50 milhões dehectares para abrigar assenta-mentos de quase dois milhões defamílias sem-terra em módulosde 30 hectares. Esse contingente

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Área (ha) Proprietários*nº %

115.054.000** 57.188 2,82

*Admitindo a média de 1,5 imóvel rural por proprietário. ** Imóveis Rurais Improdutivos acima de 15 módulos fiscais (área da propriedade considerada “grande”)

Áreas e proprietários rurais atingidos pela Reforma Agrária

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equivale a 6,78 vezes a meta de280 mil famílias programada parao quadriênio do atual governo.

Essas cifras mostram clara-mente que na atual situação depenúria de recursos, a terra éuma das poucas coisas que o Bra-sil ainda tem para redistribuir.

Desmobilizar e esperar pelo governo?

A Reforma Agrária teria vol-tado à pauta das discussões na-cionais, depois das derrotas doPNRA e da Constituinte de 1988,caso tivesse continuado apenascomo um tema dos debates dosintelectuais e dos discursos deparlamentares?

A experiência de 1985, quan-do o MST mostrou alguns sinaisde cooptação pelo governo daépoca, valeria para hoje?

Horácio Martins de Carvalho,analisando as causas da frustra-ção do PNRA, escreve na revistada ABRA de agosto/novembrode 1989.

“Com a implantação do go-verno da Nova República e aocupação funcional do INCRApor um grupo de intelectuais deesquerda, criou-se um clima deconfiabilidade na sociedade polí-tica por parte das direções orgâ-nicas das classes subalternas. Talconfiabilidade permitiu o estabe-lecimento de negociações políti-cas que culminaram com a coop-tação de amplos setores da inte-lectualidade da esquerda, vincu-lada com a reforma agrária porparte das cúpulas tecnoburocráti-cas da Nova República. A partirda entrega à apreciação da opi-nião pública do projeto do 1ºPNRA pelo MIRAD/INCRA emmaio de 1985, desencadearam-sedois movimentos distintos, po-rém articulados entre si:

- As direções orgânicas dasmais relevantes organizações po-líticas das classes subalternasaceitaram um pacto com o Go-verno Federal no sentido de nãointrigar a mobilização popular

para ações diretas à reformaagrária, dando um voto de con-fiança às intenções no Governoda Nova República. Isso impli-cou, por parte dos movimentos eorganizações populares no cam-po, a perda da iniciativa, a qualpassou pela crescente cooptaçãodos dirigentes de parte significa-tiva das organizações das classessubalternas a ser privilégio da so-ciedade política (em face detransformismo em relação aos in-telectuais);

- Uma ofensiva tática por par-te das classes dominantes contraa reforma agrária de baixo paracima (posteriormente contraqualquer tipo de reforma agráriaexigindo do Governo da NovaRepública a sua tutela sobrequalquer iniciativa de redistri-buição das terras – momento darestauração)”.

Embora a situação de hoje(novembro de 1995) possa apre-sentar algumas semelhanças comaquela que o autor descreve, épreciso destacar, contudo, váriasdiferenças marcantes.

Em primeiro lugar, a atual“ocupação funcional do IN-CRA” não é de esquerda. A co-meçar pelo chefe supremo, oPresidente FHC, e outros perso-nagens que há muito abandona-ram carteirinhas e convicções,pedindo, inclusive: “Esqueçamo que escrevi”. Isto já fez Fi-gueiredo com ele mesmo. Ade-mais o voto de confiança, comoveremos adiante, ainda não foidado explicitamente.

Quanto ao segundo tópico,este sim está se repetindo hojecom o mesmo determinismo his-tórico: as classes dominantescontra a reforma agrária voltama se mobilizar, desta feita, aoque parece, ainda com maiscompetência. Afora as armas jáexibidas até pela Rede Globo,articula-se uma similar da UDR,agora organizando uma ação es-tratégica em pinça, tendo numadas pontas a tradicional Socie-dade Rural Brasileira (SRB) e,

na outra, o Sindicato Nacionaldos Pecuaristas de Gado de Cor-te (Sindipec).

Os dirigentes dessas duasofensivas, mais bem preparadosque os de 1985, não repetem atruculência de Ronaldo Caiado,mas procuram insinuar argu-mentos econômicos nesta épocade embriaguez neoliberal. Pro-dução e produtividade são osmotes da Sociedade RuralBrasileira para melhorar a ima-gem dos pecuaristas.

Examinando o que acontecedo outro lado, aparecem tambémalguns fatos relevantes.

Mesmo a CONTAG, cujo pre-sidente é militante do partido dogoverno, o PSDB, tem vindo apúblico para estimular a mobili-zação, cobrar promessas e até,em alguns casos, cometer exage-ros como na proposta de saquepara conter a fome.

Na área do MST, passada a fa-se da lua-de-mel com o ex-presi-dente do INCRA, suas liderançasestão partindo para a ofensiva,repetindo até os excessos do pre-sidente da CONTAG.

O Boletim do DESER – enti-dade mantida por um grupo desindicatos de trabalhadores ru-rais, à semelhança do DIEESE –publica, por sua vez, em sua edi-ção de 17 de outubro de 1995,matéria que pelo seu título, “Re-forma Agrária no Governo FHC:falsa ou real?”, dá bem idéia dasdúvidas que perseguem os traba-lhadores rurais. De fato, depoisde enumerar as contradições notocante aos cortes de verbas paraa Reforma Agrária, as vacilaçõesem impedir matança de trabalha-dores rurais, a modéstia das me-tas de assentamentos e a falta deuma política agrícola que impeçaa expulsão dos pequenos agricul-tores-proprietários, o DESERpergunta:

“Depois de 10 anos de suces-sivos governos ‘democráticos’ fa-lando em dar prioridade para aReforma Agrária, os movimen-tos e organizações a favor de

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uma política de redistribuição deterras já não se iludem com a re-tórica do governo. Hoje, mais doque nunca, é preciso que o go-verno FHC tome iniciativas maisousadas e demonstre o seu realinteresse de iniciar um processode modificação da realidadeagrária. Do contrário, não passa-rá de mais uma tentativa de en-ganar os agricultores com ilusõese falsas promessas”.

A Reforma Agrária será feita desta vez?

Fiel à nossa velha hipótese (“aReforma Agrária no Brasil sairápor via lotérica, isto é, por um ca-minho imprevisível”), eterno oti-mista, achamos que o processo,desta vez, poderá avançar, paraultimar-se no médio prazo, jáque existem atualmente as se-guintes condições favoráveis:

Decisão política - Afora a ver-balização (registrada também emcasos anteriores) esta pré-condi-ção, hoje, parece traduzir-se emalguns atos concretos: a) o reco-nhecimento do MST como inter-locutor; b) a nomeação de umpresidente do INCRA do circuitopessoal do Presidente da Repú-blica; c) a avocação do problemapara a área presidencial, alijandodessa forma, a eventual influên-cia negativa do Ministro da Agri-cultura, adversário confesso daReforma Agrária; d) a constitui-ção de um poderoso bloco de tra-balhadores rurais conseguidocom a filiação da CONTAG àCUT, o que dobrou o número desindicatos ligados a esta central;e e) a iniciativa da ReformaAgrária, desta vez, não é do go-verno, mas dos próprios sem-ter-ra, o que torna o processo muitomais autêntico e vigoroso.

Recursos - O novo presidentedo INCRA, que acaba de se de-mitir, já declarou em público,certamente com respaldo, que“dinheiro para fazer a ReformaAgrária não é problema”.

Em contrapartida, a longa es-

pera pela Reforma Agrária, cita-da em tópicos anteriores, tevepelo menos esta vantagem: pre-parar recursos humanos para omomento em que a ordem departida for autorizada.

No tocante ao recurso da ter-ra, igualmente, não haverá dificul-dades, pois o país dispõe de umenorme estoque de áreas ociosasà espera de redistribuição.

Legislação - Enquanto seaguarda a modificação na atuallegislação, os poderes do Execu-tivo (imensos quando se quer fa-zer alguma coisa, como no casodo rolo compressor utilizado nasprivatizações e na ajuda aos ban-cos quebrados), no âmbito do sis-tema presidencialista são sufi-cientes para desencadear a Re-forma Agrária. Concretizá-la,modificando a estrutura agráriabrasileira, democratizando, devez, o acesso à propriedade e usoda terra agrícola e lançando asbases da almejada “nova socieda-de”, será tarefa a ser amparadapor novos diplomas legais.

Órgão executor - O dilema“flexibilidade e a autonomia ad-ministrativa X imediatismo” nodesencadeamento da ReformaAgrária foi inteligentemente re-solvido pelo governo FHC aocompensar o organograma pelopersonograma. O secretário par-ticular do Presidente foi coloca-do na Presidência do INCRA e,pronto, o órgão da ReformaAgrária ficou diretamente ligadoao planalto como sempre quise-ram os reformistas e como plei-teava há pouco o MST. Resta es-perar que a crise do SIVAM nãovenha a acarretar novo atraso naReforma com a queda do ho-mem de confiança de FHC, en-carregado de executá-la.

Opinião pública - A julgar pe-lo noticiário da mídia, este ano dagraça de 1995 está muito mais fa-vorável à Reforma Agrária. Asmanchetes dos grandes jornaisconservadores chegam até a setrair e falam, às vezes, em ocupa-ção, em lugar de invasão. A pode-

rosa Rede Globo, a par de chama-das maliciosas e sensacionalistasem contrário (favelamento dos as-sentamentos, venda de lotes noPontal, etc.), não é parcial, destafeita, a ponto de esconder as ar-mas pesadas dos donos de terrado Pontal do Paranapanema. Háainda a aceitação popular. Recen-te pesquisa realizada pela ABRA(Associação Brasileira de Refor-ma Agrária) em dez pontos deônibus de Campinas, mostrou que90,6% dos campineiros entrevista-dos são favoráveis à ReformaAgrária; 85,5% acreditam que elapode contribuir para a melhoriadas condições de vida nas cidades;63,9% acham que o governo fede-ral não está realizando-a; 51,5%são favoráveis às ocupações deterras improdutivas; 45,1% apon-tam fazendeiros e latifundiárioscomo responsáveis pela morosida-de da Reforma Agrária; 17,4%acham que a responsabilidade édos políticos; 11,4% do governo e8,5% dos ricos e poderosos;21,8% acreditam que FHC conse-guirá cumprir algum programa deReforma Agrária até o final deseu governo.

O apoio militar, que não existiano tempo de Jango e de Sarney(apenas com Castello Branco elefoi claro e ostensivo), tem se mani-festado agora com franqueza empronunciamentos de credenciadosrepresentantes da cúpula militar.

Para concluir, prefeitos de ci-dades onde existem assentamen-tos passaram a apoiar a reforma,seja pelo salto que os novos agri-cultores propiciaram à arrecada-ção dos municípios, seja pelo di-namismo que os novos persona-gens estão trazendo para a econo-mia decadente dessas localidades.

Oxalá, portanto, que nenhumacidente de percurso (projetoSIVAM?) venha a tirar de FHCe de seu governo a determinaçãoe a tranqüilidade necessárias pa-ra conduzir um processo com adimensão e a importância daReforma Agrária para o futurode nosso país.

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Osol era escaldante na Rodovia AssisChateaubriand, na tarde de 24 de no-vembro, a sete quilômetros de Presi-dente Prudente. Num dos batalhõesda cidade, a tropa de choque da PMfazia exercícios de enfrentamento. No

centro, um clima de aparente tranqüilidade. Os co-merciantes trabalhavam normalmente.

Na rodovia, 1.500 homens, mulheres e criançasdo Movimento Sem-Terra enfrentavam o quinto e úl-timo dia da “Marcha Pela Justiça em Defesa da Vi-da”, iniciada em Teodoro Sampaio. Estavam prestesa concluir o trajeto de 100 quilômetros. Espalhadospela cidade e estradas da região, 350 poli-ciais militares prontos a entrar em ação.

No Aeroporto Adhemar de Bar-ros, mais policiais com a difícilmissão de “proteger o patrimô-nio público”. Por lá desem-barcava (às 15h30)o líder da cami-nhada – queviajara paraSão Paulo nanoite anterior–,José Rainha Jú-nior, acompanhadopor deputados federais,estaduais e pelo advoga-do do Movimento.

A expectativa, criadapelo prefeito pefelistaAgripino Lima, era de con-fronto. Durante toda a semana ele se recusou a ne-gociar com as lideranças da marcha, afirmando queno “seu” município os sem-terra não entrariam. Pa-ra acirrar o clima, decretou ponto facultativo na es-perança de que as pessoas ficassem em casa. Na suaopinião o perigo seria iminente com a chegada dossem-terra à cidade.

Aumentava a tensão a cada passo. Policiais posta-dos no acesso ao centro da cidade não informavamse permitiriam a entrada dos sem-terra em Presiden-te Prudente. Procurado, a informação era de que oprefeito deixara a cidade naquela manhã, afinal eraponto facultativo. O vice também havia desapareci-do. Coisa de inconcebível ficção.

Restou ao comandante da PM, major Cunha, re-cepcionar José Rainha, Diolinda Alves de Souza, ou-tra líder da caminhada, e os outros 1.500 sem-terra, e

dizer que a polícia estava ali para garantir a seguran-ça dos manifestantes enquanto eles estivessem na ci-dade. O major Cunha, paradoxalmente, é o mesmocomandante das desocupações de terra no Pontal.

Às 18h30, vencidas todas as dificuldades da cami-nhada e as ameaças de enfrentamento, os sem-terraforam recebidos por cerca de mil pessoas na Praça 9de Julho, a principal da cidade. Lá, promoveram umato em defesa da Reforma Agrária e entregaram flo-res ao presidente da Câmara, Wilson Portela Rodri-gues (PMDB).

Somente a partir deste momento a PM passou afornecer informações de que nenhum incidente haviasido registrado nas cidades por onde passara a mar-cha. Os noticiários locais, que bombardearam os te-

lespectadores com a possibilidade de confron-to, alardeavam, desta vez, a ca-

minhada pacífica: “De-pois de caminhar 100quilômetros, Movimen-to Sem-Terra chega aPrudente em Paz”.

O sol já haviase posto há duas

horas quando os 1.500integrantes do Movi-mento Sem-Terra deixa-ram Prudente em dire-ção aos acampamentos.Também foi neste mo-mento que os policiaisvoltaram aos quartéis,os deputados a São

Paulo, e o prefeito à cidade que abandonara pela ma-nhã. Provavelmente chegou a tempo de participar daorganização do caminhonaço que os latifundiáriospromoveriam 72 horas depois, na mesma praça.

Episódio semelhante aconteceu em 1987, emPromissão, também interior de São Paulo, quando352 famílias de acampados fizeram uma passeata.Naquela ocasião, os comerciantes, amedrontados,cerraram as portas dos estabelecimentos. Em outu-bro deste ano, oito anos após o assentamento na Fa-zenda Reunidas, os comerciantes voltaram a baixaras portas. Desta vez, em solidariedade aos ex-sem-terra, atuais pequenos produtores, que ocuparam aagência local do Banespa para exigir a liberação decrédito agrícola.

Marcos Cripa é editor da Revista Adusp.

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SEM TERRA, SEM GUERRA

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Entrev is ta

José Rainha Júnior e Diolinda Alves de Souzapor Marcos Cripa

EM NOME DA TERRA

José Rainha Júnior e Diolinda Alves deSouza conheceram-se no Estado do Espírito

Santo. Envolvidos na organização doMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem-

Terra (MST), percorreram vários estadosbrasileiros antes de se fixarem no Pontal do

Paranapanema, área de maior conflitoagrário no Estado de São Paulo e onde asocupações prometem recrudescer em 96.

Filhos de lavradores pobres, eles vivem emfunção da luta pela terra. Em novembro de

1995, Diolinda e Márcio Barreto, outromilitante do movimento, ficaram 17 dias

presos no complexo penitenciário doCarandiru. Neste mesmo período, com a

prisão preventiva decretada, Rainha eLaércio Barbosa, também do MST,permaneceram foragidos. Todos são

acusados de formação de quadrilha e bandopelo juiz da comarca de Pirapozinho, DarciLopes Beraldo. Quatro dias após deixar oCarandiru e da revogação do mandado deprisão, Diolinda e Rainha iniciaram uma

marcha de 100 quilômetros com mais1.500 sem-terra, que terminou dia 24 denovembro em Presidente Prudente. Na

manhã seguinte, em Teodoro Sampaio, ondemoram com o filho João Pedro, de 2,5 meses,eles concederam entrevista à RReevviissttaa Adusp.

Fotos: Daniel R. Garcia

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Adusp - Rainha, como é quevocê iniciou suas atividades noMovimento Sem-Terra?

Rainha - Nasci no interior doEspírito Santo, na cidade de SãoGabriel. Ali fui crescendo, sem-pre trabalhando na terra, mascomo éramos camponeses po-bres, ficávamos meeiros de café.Lembro de um período em quea minha família chegou a ter umpedaço de terra, comprada commuito esforço. Depois, perde-mos para o Banco do Brasil. Issofoi entre 76 e 77. Em 1978 entrao conhecimento da causa social,dos problemas que enfrentamosaté hoje. Sempre trabalhando naroça, aprendi a ler aos15 anos de idade. Nuncafui à escola. Aliás, nin-guém da minha famíliaestudou. Alguns dosque foram à escola,muito mal aprenderama ler e escrever. Nin-guém teve escolaridadeboa. Eu particularmentenenhuma.

Adusp - Por que asua família perdeu a ter-ra?

Rainha - Nós tínhamos um al-queire e meio, que foi compradofinanciado. Como meu pai nãoteve como pagar o banco, tevede vender. Plantávamos café e obásico paraa sobrevivência: mi-lho, feijão, arroz, mandioca, ecriávamos galinhas e porcos.

Adusp - Qual é o sentimentode perder a terra?

Rainha - É como se alguém ti-vesse pego uma parte da vida dagente, porque naquela terra nóstínhamos espaço para trabalhar.Nós sabíamos que aquilo era nos-so, sabíamos que teríamos futu-ro. E quando você perde, é comose tivesse perdido parte da vida.Depois desse período, voltamos atrabalhar como meeiros e tudoaquilo que era produzido tinhade ser dividido com o patrão. Aívocê sente o que é exploração.

Adusp - Diolinda, a sua famí-lia também é do Espírito Santo ecamponesa, como é que você en-trou para o MST?

Diolinda - Meus pais sempretrabalharam como meeiros paraos fazendeiros, principalmentedos municípios de Montanha eSão Mateus. Eu estudava e aúnica coisa que a gente podia fa-zer era ir à missa. Enfim, estardentro do processo religioso.Mas era uma vida difícil porquealém de pouco, tudo o que vocêcolhia tinha de ser dividido. Foiem 1985 que conheci o Movi-mento Sem-Terra com a propos-ta de Reforma Agrária. Minha

mãe participou de todas as reu-niões e me incentivou a partici-par. Em outubro daquele mes-mo ano ocupamos a primeira fa-zenda no Estado do EspíritoSanto. Larguei a escola, as mis-sas e abracei a causa. Naquelaocasião, tirando o meu pai queestava doente e um irmão que fi-cou para cuidar dele, a minhafamília foi inteira para a ocupa-ção. Aí foi aquele período deocupa/desocupa/ocupa nova-mente, até que no final de 86minha família foi sorteada e as-sumiu definitivamente um peda-ço de terra. Isso, para uma famí-lia de bóias-frias, foi o máximo.Ela continua em cima da terra,cuidando do café, da lavoura decoco da Bahia, do feijão e domilho. Temos também uma casa.Quer dizer, onde viver e ondemorar minha família tem.

Adusp - Essa é uma expe-riência de assentamento quedeu certo?

Diolinda - Aquela era umaárea de pesquisa de aproximada-mente 100 alqueires. Aconteceque naquela época só se faziampesquisas de maracujá em um al-queire e meio. Nada mais. Hoje aárea é coberta de pimenta do rei-no e de café. É realmente umaexperiência que deu certo. Nóstemos uma cooperativa de pro-dução já com caminhões, carrospequenos e telefone. Tem estru-tura em relação ao abandono queexistia antes.

Adusp - Rainha, gos-taria que você descreves-se a realidade do Pontal.Qual o volume de terrapassível de ser destina-da à Reforma Agrária eo número de pessoasque precisa de terra pa-ra trabalhar.

Rainha - O volumede terra do Estado soma914 mil hectares e o nú-mero de famílias seaproxima de 30 mil. Es-tamos fazendo o cadas-

tramento e é possível que essenúmero chegue a 50 mil. É pro-vável que dentro de seis mesestenhamos esses dados nas mãos.Depois do cadastramento, signi-fica um prazo de dez a quinzeanos para fazer um processocompleto de Reforma Agrária.Agora, não dá para falar em Re-forma Agrária nessa região senão se falar da mudança do pon-to de vista ideológico da política.O Estado tem que acompanhar oprocesso. Pode-se até desapro-priar as terras, mas se o Estadonão investir, não vai haver produ-ção. É preciso investir em proje-tos de irrigação, conservação dosolo e, principalmente, atrair omercado. Outra coisa é a indús-tria. Temos de avançar na tecno-logia, porque não dá prá você fi-car no campo criando a galinhado pescoço pelado e tirando a ce-

Não dá para falar em Reforma Agrárianessa região se não se falar da

mudança do ponto de vista ideológicoda política. O Estado tem que

acompanhar o processo (...) É precisoinvestir em projetos de irrigação,

conservação do solo e, principalmente,atrair o mercado.

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bola da horta para fazer a canjada galinha. Quer dizer, é precisoestar aqui com a agroindústria.Nós propomos agroindústria naárea da acerola, pra fazer o suco.O leite, é preciso industrializarpara aproveitar todos os deriva-dos, a exemplo do requeijão, io-gurte, etc. Nesse aspecto, os fri-goríficos também vão ter que virpara o Pontal. Tanto para a carnebovina, como para o frango e oporco. Nós temos grandes proje-tos nessa área. É preciso moder-nizar a agricultura. Mas essa mo-dernização tem de vir acompa-nhada do Estado, com a ReformaAgrária e com uma mudança po-lítica. Se não houver essa mudan-ça o Pontal também não vai fun-cionar, não vai dar certo. É preci-so que haja mudanças profundasna estrutura do Estado.

Adusp - A realidade é que oEstado não tem demonstrado in-teresse em desenvolver essas po-líticas.

Rainha - Isso porque o Estadoé burguês e está comandado pormeia dúzia de pessoas da classedominante que nunca olhou pelopaís. É por isso que eu digo que aReforma Agrária deve ser umabandeira de luta da sociedade. Eaí estou falando da classe média ede setores que compõem a socie-dade como um todo. A sociedadetem de participar para implantar-mos mudanças estruturais. Nãoacredito que seja uma coisa assimtão simples. Mas você pode fazera Reforma Agrária democrática,pacífica, depende deles, como sepode fazê-la num processo revo-lucionário. Isso não é uma vonta-de política nem uma determina-ção ideológica. Para mim, isso é arealidade e as condições objetivase subjetivas dadas num determi-nado momento.

Adusp - Nesse sentido, as ocu-pações e o crescimento do Movi-mento Sem-Terra contribuem pa-ra forçar o Estado a implemen-tar essa transformação?

Rainha - Contribuem, ou en-tão você pode sentir outro golpeigual ao de 64. Mas a verdade éque a história não se repete. Ese se repetir será como farsa.Hoje nós estamos vendo que asociedade está atenta ao queacontece. Basta ver o exemplodo que ocorreu em PresidentePrudente, onde o bispo da igrejacatólica dizia: “Aqui o Movimen-to Sem-Terra não entra”. Aí vie-ram as Comunidades Eclesiaisde Base e passaram a apoiar onosso movimento, o mesmoocorrendo com as associações

de bairro. Se estes setores semobilizam, vão para as ruas, acoisa muda neste país. Acreditoque a Reforma Agrária vai ser oestopim dessa mudança. É porisso que as classes dominantesusam os meios de comunicaçãopara difamar as lideranças domovimento. Hoje nos passamospor vagabundos, assassinos, for-madores de quadrilha e pessoasque maltratam as crianças. Aimprensa burguesa trata de colo-car essa opinião para a socieda-de de uma forma dividida: é ounão assassino?, maltrata ou nãoas crianças? Um dos grandesaparelhos do Estado são osmeios de comunicação. Eis o pa-pel fundamental que têm os mo-vimentos sociais nesse processo.O movimento sindical tem decumprir o papel dele, assim co-mo o movimento estudantil, jun-tamente com os outros setoresque compõem a sociedade.

Adusp - E você acha que estessetores estão sensíveis ao proble-ma agrário brasileiro?

Rainha - Está começando,porque, na realidade, é uma ne-cessidade. Como eu disse, a his-tória não se repete. Hoje ela éoutra, o Brasil tem 32 milhõesde pessoas passando fome. Po-dem dizer que somos vagabun-dos, mas a verdade é que, nosassentamentos que fizemos opessoal come, bebe e vive decen-te. Ou seja, resolveu-se o pro-blema do emprego, da fome, damarginalização, da violência edos assassinatos de crianças. Es-tamos gerando empregos. Aclasse dominante e, principal-mente, a classe média nãoagüenta mais ver os seus filhosseqüestrados, tendo o tênis rou-bado. Eles estão até criando asAlphavilles, os grandes condo-mínios fechados, exatamentecom medo disso tudo. É uma so-ciedade que está refém de tudoque ela mesma criou. Então, aReforma Agrária é uma questãode tempo.

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Podem dizer quesomos vagabundos,

mas a verdade é que,nos assentamentos

que fizemos o pessoalcome, bebe e vivedecente. Ou seja,

resolveu-se oproblema do emprego,

da fome, damarginalização, da

violência e dosassassinatos de

crianças. Estamosgerando empregos.

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Adusp - É por isso que algunssetores não tão progressistasapóiam a Reforma Agrária?

Rainha - Exatamente, a socie-dade apóia a Reforma Agrária. Adivergência que ela tem com oMST é na forma. A ocupação daterra é o que diverge. A ocupaçãoé que intimida. Ocorre que é obri-gação do Estado fazer a reforma,isso está na Constituição. Mas oEstado está a serviço de uma mi-noria e não tem interesse em re-solver esta questão. Então, nóspartimos para a ocupação, umacoisa que a sociedade ainda nãoassimilou. Agora, no dividir aterra, no gerar empregos e re-solver o problema da fome, nósjá conseguimos sensibilizar asociedade. É preciso ter claroque o nosso interesse não é ode aparecer na imprensa. Nos-so interesse é o de fazer a Re-forma Agrária, aparecendo emcima de um trabalho concreto.Por isso, firmamos um acordocom o governo de São Paulo denão fazermos ocupação. Emcontrapartida, o Estado faz osassentamentos programadospara 1995. Se ele não cumprir aparte no acordo, nos cabe ocu-par as terras novamente.

Adusp - O que esperar dogovernador Covas e do presi-dente Fernando Henrique, naquestão da Reforma Agrária?

Rainha - Se você olhar ahistória, espera-se muito. OCovas tem história. Agora, o go-vernador Mário Covas é uma coi-sa e o governo é outra. A compo-sição é muito ruim. Então, tenhopoucas esperanças. O presidenteFernando Henrique também temhistória, tem princípios, que eurespeito muito. Acho que ele temvontade de fazer a ReformaAgrária. Por outro lado, o gover-no de Fernando Henrique é mui-to ruim. Quem dita regras não éele nem o PSDB. Infelizmente éo Antônio Carlos Magalhães. Ogoverno federal não vai cumprira meta dos 40 mil assentados a

cada ano porque, no Congresso,não vai conseguir respaldo. En-tão, pouco se tem a esperar.

Adusp - Mas eles possuem opoder de governo. E nesse caso ocomprometimento histórico, tan-to do Covas como do FHC, nãodeveria ser traduzido em açõespráticas?

Rainha - É por isso que eudigo que é preciso reformular oEstado. O Estado é uma corre-lação de forças para a classe do-minante. Senão, vejamos: o Ju-diciário é da classe dominante;

o Estado como poder ideológicoé da classe dominante; o exérci-to e as polícias (civil e militar)são da classe dominante. Temde haver uma reforma no Judi-ciário. Tem que acabar com aspolícias militar e civil e criaruma polícia descente. Existemmudanças que se fazem no pro-cesso democrático e que o go-verno tem de implementar. Aquestão é que os políticos noBrasil, em sua maioria, são cor-ruptos e se elegem com dinheirodo próprio Estado, contra tudoque existe de sério e de ético.

Adusp - Você diz que o Judi-ciário e as polícias civil e mili-tar estão a serviço das classesdominantes. Baseado nisso, épossível afirmar que estão ten-tando criminalizar o Movimen-to Sem-Terra?

Rainha - Mais do que crimi-nalizar, eles vão tentar, agora, as-sassinar mesmo. Eles vão fazerpior do que fizeram em 64. Elesvão botar lideranças na cadeia. Oque o delegado de Sandovalinafaz contra as lideranças do MSTno Pontal é a maior vergonha.Não existe isso no Código Civil,

no Código Penal. Trata-se deuma ofensiva contra o MST.

Adusp - O Judiciário está àdisposição das elites?

Rainha - Sim, está manda-do e comprado por uma ques-tão ideológica para defender opoder. O Judiciário é o que te-mos de mais reacionário nessepaís, infelizmente. Se não hou-ver mudanças nessa área, va-mos avançar pouco na Refor-ma Agrária.

Adusp - Que mudanças po-deriam ser feitas no Judiciário?

Rainha - A sociedade temde ter um controle que hojenão existe. O juiz tem um po-der autônomo. Ele pode tomaruma decisão arbitrariamente,sem ouvir as partes. Basta umdelegado achar que você é ban-dido para que, no outro dia, o

juiz decrete sua prisão preventiva.Não se consegue diferenciar a si-tuação social da questão criminal.Isso tem que ser diferenciado. Ojudiciário trata de uma mesmaforma os problemas gerados poruma greve, uma ocupação de ter-ra e o abandono das crianças derua. Nessas situações todos sãotratados como marginais. EsseCódigo Civil tem de ser rasgado.

Adusp - No ano de 95, o MSTfoi acusado de abrigar guerrilhei-ros do Sendero Luminoso e de re-ceber treinamento em Cuba.

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Além disso, são atribuidos assas-sinatos a líderes do movimento. Oque o governo pretende com isso?

Rainha - Penso que ele quercriar pânico e criar divergência nasociedade. Esse é o único objetivo.E isso tudo para não fazer a Re-forma Agrária. Mas o tiro saiu pe-la culatra porque contra essa reali-dade toda não adianta o governofazer discursos. Como é que elevai tapar os olhos; são mais de 32milhões de pessoas passando fo-me. Não adianta o governo venderuma imagem de modernidade láfora e gastar R$ 4 bilhões do Esta-do para fundir bancos. Como épossível falar em moderno se temgente passando fome; como falarem país desenvolvido se milharesde crianças vivem pelas ruas. Ora,que modernidade é essa!

Adusp - Diolinda, você en-frentou, recentemente, as arbi-trariedades a que o Rainha se re-feriu. Como é que você analisaesta questão?

Diolinda - Vejo como umaquestão política. A minha prisãonão foi simplesmente porque euestava envolvida num processo naJustiça. Essa é a justificativa de-les. A prisão se deu porque estouenvolvida num movimento de or-ganização dos trabalhadores paraa conquista da Reforma Agrária.A prisão se deu exatamente pelofato de o Poder Judiciário estar àdisposição dos fazendeiros.

Adusp - Como você se sentiuao ser separada do filho, algema-da e acusada de formação dequadrilha?

Diolinda - Eu tinha muito cla-ro que, como não devia nada, de-veria enfrentar a situação comtranqüilidade. Evidente que en-carava a prisão como ela deve serencarada, mas ao mesmo tempotinha a consciência limpa e a cer-teza de que a mentira tem as per-nas curtas, como teve. Naquelemomento, quem deu a respostanão foi somente o MST, mas sima sociedade. Entendo que eles

não prenderam a Diolinda, massim a luta. Eles prenderam a Re-forma Agrária.

Adusp - Alguns atribuem a re-percussão de sua prisão à arbi-trariedade, outros ao fato de vocêser mulher, e outros, ainda, aoemocional da separação de seufilho. Você acredita que se fossecom o Rainha a repercussão se-ria a mesma?

Diolinda - Acho que repercu-tiria sim. O que está em jogo nãoé a pessoa, é a luta pela ReformaAgrária. Agora, sem dúvida, a se-paração de mãe e filho marcadentro da sociedade.

Adusp - Rainha, nesse mesmoperíodo você esteve foragido,porque sua prisão preventivatambém fora decretada. Como éque foi comandar o movimentoda clandestinidade?

Rainha - Minha grande preo-cupação era não conseguir man-ter contato com as principais li-deranças do movimento. Nessesentido, foi um exercício impor-tante. Uma coisa é você estar li-vre; a outra é você exercer a ca-pacidade de coordenar, de lide-rar internamente, sem a mesmaliberdade anterior.

Adusp - Isso demonstra que omovimento tem organização.

Rainha - Acho que o movi-

mento tem muitas dificuldades.Temos uma organização suficien-te para tentar lutar e conquistar aterra, para fazer a ReformaAgrária não. Para fazermos a re-forma precisamos criar um movi-mento mais organizado, com co-mitês em todas as cidades. É pre-ciso que nas grandes cidades ossetores organizados criem Comi-tês de Defesa da Reforma Agrá-ria e, depois, é necessário que es-ses comitês se espalhem por ou-tras regiões. Acredito que tería-mos, dessa forma, uma organiza-ção mais eficiente para fazermosa luta pela terra. A nossa princi-pal defesa é o povo organizado.

Adusp - O MST tem uma es-tratégia para a criação dessescomitês?

Rainha - No primeiro semes-tre de 96 pretendemos implantaresses comitês na principais cida-des do interior para, no segundosemestre, atuarmos nas capitais.Esse é um processo que tem deenvolver os metalúrgicos, os ban-cários, os professores, os estudan-tes, etc. Se a sociedade participar,cria-se um movimento irreversí-vel de Reforma Agrária no Brasil.Aí o Estado não terá saída.

Adusp - Você falou em dificul-dades do movimento, é possívelque haja desmobilização?

Rainha - De forma nenhu-

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Vejo a minha prisão como uma questão política (...)Naquele momento, quem deu a resposta não foisomente o MST,mas sim asociedade. Entendoque eles nãoprenderam aDiolinda, mas sima luta. Elesprenderam aReforma Agrária.

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ma. Para desmontar o movi-mento hoje, eles têm de dar ogolpe de Estado. E mesmo as-sim não conseguirão. Vão termuitas dificuldades.

Adusp - Vocês fizeram, em SãoPaulo, um acordo com o governoCovas de não fazer ocupações atéo final de 1995. Isso não significarecuo ou desmobilização?

Rainha - Isso faz parte danossa estratégia de avançar e re-cuar. É a lógica da guerra. Na-quele momento eu estava naclandestinidade e outras lide-ranças estavam na cadeia. Omomento exigia um passo atrás.Agora, o Covas que se cuide etrate de cumprir a parte dele noacordo, porque em fevereiro,você conhece os acampamentos,temos condições de mobilizartrês mil famílias. Se ele não fi-zer a parte dele, vamos ocuparas terras e a luta vai se acirrar.Agora, queremos que a luta seacirre, se chegar a tal ponto,mas com a participação do po-

vo. Se jogarmos três milfamílias nas terras doPontal, está dado o pas-so irreversível e não teráação de despejo que váconseguir retirar essepessoal.

Adusp -PresidentePrudente foi palco deuma manifestação pro-movida pelos fazendei-ros, batizada de “Defesada Paz pelo Campo, aOrdem e o Progresso”, oque significa que o lati-fúndio também está seorganizando.

Rainha - Eles querema paz e o progresso colo-cados na cabeça do boi,no cano das carabinas,na violência no campo,no domínio da proprie-dade, no cerco das lide-ranças e nas prisões. Es-sa é a paz desse pessoal.Paz e progresso no voca-

bulário dos latifundiários querdizer tudo isso. É o domínio, aexploração e a miséria.

Adusp - E a paz e o progressono entendimento do MST?

Rainha - Justiça social, divi-são da terra, divisão do pão namesa de cada pessoa, respeitoaos direitos de cidadão e respeitoaos direitos humanos.

Adusp - Em 96 teremos elei-ções e os partidos, indistinta-mente, irão, novamente, apoiar aReforma Agrária durante a cam-panha. Depois, a maioria doseleitos afasta-se do problema. Oque é preciso fazer para alteraressa realidade.

Rainha - É preciso entenderque os partidos de direita estãona deles, já que o Brasil tem 90milhões de pobres. Eles tem deter propostas para os pobres,propostas enganadoras. Agora,compete à esquerda fazer umtrabalho conscientizador, de ba-se, junto à população. Se qual-

quer partido de esquerda nãoagir desta forma, será entendidocomo outro qualquer. As es-querdas no Brasil cometem umgrande erro, um equívoco, aoabandonar o trabalho de base.As esquerdas elegem deputadose esses deputados se esquecemdas bases. E o que é pior, suasassessorias nos estados estãovoltadas ao debate no parlamen-to. No campo deles nós perde-mos todas. No dia que ganhar-mos, significa que a classe domi-nante é muito burra ou está es-facelada. Mas isso nunca aconte-ceu na prática. E não significaque eu seja contra o parlamento.Sou a favor, o espaço é muitoimportante. Mas, o deputadodeve fazer do mandato um ins-trumento de luta dos trabalha-dores. E isso poucos fazem.

Adusp - Essa crítica é extensi-va ao movimento sindical?

Rainha - O movimento sindi-cal também esqueceu-se dessetrabalho de base. O erro está aí.Não existe uma crise maior doque essa que estamos vivendoem toda a história do Brasil e ossindicatos não conseguem reagir.A direita fez mudanças no exatomomento que os movimentos so-ciais, e aí se incluem os sindica-tos, estão numa grande morosi-dade e em crise interna. Infeliz-mente, o único debate que setem colocado em nível nacionalé o da Reforma Agrária. Se oMST tivesse caído no mesmo er-ro que caiu o movimento sindi-cal, aí sim estaríamos perdidos.E essa desarticulação não ocorreapenas no Brasil. Você pode pe-gar o Chile, a Argentina, o Para-guai e o Uruguai e vai ver quenão existem movimentos sociaiscom grande expressão. E olhaque todos passaram pela ditadu-ra militar. Por isso, insisto em di-zer que o problema fundamentaldos movimentos sociais de es-querda está colocado na organi-zação do povo. Isso é uma ques-tão fundamental.

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LDB, UMA QUESTÃO EMBLEMÁTICA

NA POLÍTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA

Romualdo Portela de Oliveira

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Atramitação da Lei de Diretrizes e Basesda Educação Nacional (LDB-EN) temse constituído no principal palco de dis-putas em torno da definição, no âmbitodo Poder Legislativo, dos rumos daeducação brasileira. Explicitar os riscos

que a escola pública de qualidade para todos correnesse processo é o objetivo deste pequeno artigo.

A LDB é uma lei complementar que regulamen-ta a Constituição Federal na área de educação. Apósa promulgação da Constituição Federal em outubrode 1989, iniciou-se o processo de sua discussão. ACâmara dos Deputados utilizou, para sua elabora-ção, o mesmo processo da Constituinte, recorrendoà convocação de representantes das diferentes enti-dades da sociedade civil, ligadas à área da educação,para, em audiências públicas, apresentar suas posi-ções e reivindicações. Participaram destas audiên-cias, nos mesmos moldes da Constituinte, muitas en-tidades da sociedade civil, entre as quais a própriarepresentação do Fórum em Defesa da Escola Públi-ca. Este processo, bastante democrático para a tradi-ção brasileira, conformou um projeto de lei que pro-curava sintetizar o acúmulo de discussão sobre edu-cação na sociedade brasileira contemporânea. Oprincipal organismo a intervir nesse processo foi oFórum Nacional em Defesa da Escola Pública, quereúne mais de 15 entidades nacionais, desde entida-des sindicais e científicas da área educacional atéCentrais Sindicais. Seu ponto de aglutinação é a de-fesa de uma escola pública de qualidade para todos.

Após longo processo de discussão, o projeto deLDB foi aprovado na Câmara dos Deputados e en-caminhado ao Senado Federal para a respectiva dis-cussão em meados de 1993.

Ao mesmo tempo em que o projeto de LDB tra-mitava na Câmara dos Deputados, o Senador DarcyRibeiro (PDT-RJ), juntamente com os SenadoresMarco Maciel (PFL-PE) e Maurício Corrêa (PDT-DF), apresentou um projeto no Senado que descon-siderava o processo da Câmara. Além disso, o proje-to Darcy, como se tornou conhecido, apresentava di-versos pontos que contrariavam o acúmulo do deba-te no âmbito da sociedade civil.

O projeto aprovado na Câmara foi encaminhadoao Senado, tendo ganho a preferência para votaçãoem relação ao projeto Darcy. No Senado, o projetoda Câmara adquiriu o número 45/93 tendo sido en-caminhado para apreciação na Comissão de Educa-ção e Cultura. O relator designado para apreciá-lofoi o Senador Cid Saboia (PMDB-CE). O substituti-vo Cid Saboia absorvia os principais aspectos doprojeto da Câmara, contando com o apoio do Fó-rum Nacional em Defesa da Escola Pública, tendorecebido o número 101/93.

Ao apagar das luzes da legislatura passada, em1993, ao se discutir um projeto do deputado Flo-

restan Fernandes aprovado na Câmara dos Depu-tados, sobre bolsas de estudo para o ensino supe-rior, o Senador Darcy Ribeiro reapresentou seuprojeto de LDB, como emenda. Com a mudançade legislatura e de governo, o projeto Darcy pas-sou a ser claramente apoiado pelo Ministério daEducação, tendo inclusive o Ministro Paulo Rena-to declarado em diversas ocasiões que tal projetocontava com tal apoio.

Assim, os dois projetos passaram a tramitar para-lelamente. Em agosto deste ano, uma das versões doprojeto Darcy foi aprovada na Comissão de Educa-ção e Cultura do Senado, ganhando, assim, o direitoà primazia de apresentação em Plenário. Apesar dosprotestos dos setores articulados em torno do Fó-rum em Defesa da Escola Pública, tal projeto, quedesconsidera o amplo processo de consultas à socie-dade civil organizada, é o que está sendo apreciadopelo Senado. A tática adotada pelos Senadores quese alinham com as posições do Fórum em Defesa daEscola Pública, com posição contrária apenas daAndes, que optou por não apresentar emendas paranão legitimar o processo, foi a de apresentar o maiornúmero possível de emendas para atrasar o proces-so. Desta maneira, o projeto não foi votado aindaeste ano, devendo sê-lo apenas no próximo ano.

Após a eventual aprovação de um projeto no Se-nado, este será encaminhado para a Câmara, quepoderá apenas suprimir partes ou retomar seu proje-to original, mas não alterá-lo substancialmente.Quando finalmente for aprovado na Câmara, o pro-jeto irá à sanção presidencial, que poderá vetar par-tes que para serem derrubadas pela Câmara terãode obter maioria qualificada.

Apenas depois de todo este processo, que não seimagina terminará em breve, é que teremos uma no-va LDB. A demora na tramitação de projetos deLDB entre nós, a julgar pelo que tivemos anterior-mente, o da Lei nº 4.024/61, ainda teremos muitochão pela frente. O Projeto que originou a Leinº 4.024 foi originalmente encaminhado para apre-ciação do Poder Legislativo em 1948, tendo sidoaprovado apenas em 1961, treze anos depois.

Como mecanismo de burlar este processo, a op-ção que o Poder Executivo tem adotado é a de “pin-çar” alguns temas da LDB e procurar implementá-los, segundo seus interesses, através de medidas pro-visórias. A mais notória destas medidas foi a que ex-tinguiu o antigo Conselho Federal de Educação einstituiu o Conselho Nacional de Educação, comuma composição original muito próxima da compo-sição prevista pelo projeto de LDB da Câmara. Estamedida provisória vem sendo sucessivamente reedi-tada com alterações, de tal modo que a composiçãoatual, prevista na última versão da MP, já é bastantediferente da original.

O Ministério da Educação tem anunciado que a

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partir de agora irá implementar, de fato, a organiza-ção do CNE. Assim, acaba se institucionalizando aprática de o Executivo legislar antecipadamente emrelação ao Legislativo, induzindo temas e procedi-mentos, o que não configura um procedimento iné-dito na nossa prática política.

O período de escolarização gratuita e obrigatória

Dados os limites desse texto, vou comentar aque-la que considero a principal diferença entre os doisprojetos, e que tem se tornado um dos principaispontos de polêmica naeducação brasileiraatual, por se constituirem uma questão de altosentido emblemático, aque se refere à forma deorganização do ensinofundamental.

Desde a LDB de1971, o período de esco-larização gratuita e obri-gatória no Brasil foi es-tendido de 4 para 8anos. A Constituição de1988 formulou esta de-claração de direito, noartigo 208, nos seguintestermos:

“O dever do Estadocom a educação seráefetivado mediante a ga-rantia de:

I - ensino fundamen-tal, obrigatório e gratui-to, inclusive para os que a ele não tiveram acesso naidade própria;”

O que tem gerado polêmica desde a apresenta-ção da primeira versão do projeto Darcy Ribeiro éque ao se mencionar a obrigatoriedade e gratuidadepara “o ensino fundamental”, não se mencionou aduração deste ensino fundamental. O projeto Darcydefendia a redução do período de escolarizaçãoobrigatória de oito para cinco anos.

Tal proposta, ao afirmar que é aproximadamenteeste o período de escolarização realmente cursadopela população brasileira, se rende a esta situação, edefende a tese de que é este o período de escolariza-ção gratuito e obrigatório que deveria ser consigna-do na legislação. Apesar de todo o apelo de “reali-dade” de que se reveste, tem um claro sentido de ex-clusão social, bastante compatível com o ideárioneoliberal de redução da presença do Estado na vidasocial e econômica.

É evidente a diferença existente entre uma pro-posta de legislação que amplie o período de escolari-

zação, e que apesar de não ser cumprida em termospráticos, permanece como responsabilidade do Esta-do, e cuja efetivação pode ser exigida judicialmente,como relato em trabalho recente (1995), e uma ou-tra situação em que o Poder Público se “conforma”com uma situação perversa de exclusão social.

Ante a reação de educadores e estudantes, assucessivas versões do projeto Darcy foram ameni-zando esta posição. Num primeiro momento acei-tando a tese da manutenção da escolarização gra-tuita e obrigatória em oito anos, mas com a emis-são de um diploma ao final do quinto ano e, poste-

riormente, com a aceita-ção da possibilidade dedivisão do ensino gratuitoe obrigatório em dois ci-clos, como consta desteúltimo projeto.

É sintomático que aidéia de se aceitar a divi-são do ensino fundamen-tal em dois ciclos sejaaceita, em nível legal, aomesmo tempo em que aSecretaria Estadual deEducação de São Pauloestá implementando, decima para baixo e utilizan-do um método extrema-mente autoritário, incom-patível com a vigência deuma democracia, um pro-jeto de segmentação daescola fundamental pau-lista, a mais significativaem termos nacionais.

O que se busca aqui, para além do mérito daquestão em si, é atingir a idéia de que a legislaçãopossa ser um espaço garantidor de direitos, pelo me-nos em termos potenciais. Pela primeira vez em nos-sa história educacional teríamos um projeto reduzin-do direitos. Suas implicações do ponto de vista doimaginário político são significativas.

Romualdo Portela de Oliveira é Professor da Faculdadede Educação e autor, juntamente com Afrânio M.Catani, do livro “Constituições Estaduais Brasileirase Educação”.

Bibliografia:BRITO, Vera Lúcia Alves. (1991). Propostas para a LDB: a questão

da escola pública/ privada. Belo Horizonte, Dissertação de Mes-trado - FAE-UFMG.

MINTO, Cesar Augusto & MURANAKA, Maria Aparecida Segat-to. (1995). Educação: à margem das prerrogativas legais. In.Oliveira, Romualdo Portela de. Política Educacional: impasses ealternativas. São Paulo, Cortez.

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O que tem gerado polêmica desde a

apresentação da primeira versão do

projeto Darcy Ribeiro é que ao se

mencionar a obrigatoriedade e

gratuidade para “o ensino

fundamental”, não se mencionou a

duração deste ensino fundamental. O

projeto Darcy defendia a redução do

período de escolarização obrigatória

de oito para cinco anos.

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Um dos problemas mais freqüentes davida universitária nos últimos anos,particularmente na USP, tem sido aquestão salarial. Dentro do movimen-to de reivindicação salarial as grevestêm servido como importantes mo-

mentos de reflexão, não apenas sobre o valor finan-ceiro da nossa atividade acadêmica, mas também so-

bre a estrutura arcaica da nossa universidade. É visí-vel para a maioria dos colegas docentes a completaausência de um projeto universitário que norteie osdestinos da USP dentro da perspectiva de uma uni-versidade pública, com abrangências e responsabili-dades que transcendam os limites dos nossos campi.

As sucessivas administrações da USP parecem sesatisfazer em manter a burocracia e implementar

É PRECISO MUDAR O ESTATUTO DA USP

Professor-associado doDepartamento de Fisiologia da

Faculdade de Medicina deRibeirão Preto, BeneditoHonório Machado tem

participado, nos últimos doisanos, do debate sobre a

necessidade de reformas noEstatuto da Universidade de

São Paulo. Para ele, a estruturada universidade é arcaica. “Évisível a falta de um projetouniversitário que norteie osdestinos da USP, dentro da

perspectiva de umauniversidade pública”.

Entre outros problemas que oatual Estatuto apresenta

Benedito Honório Machadoanalisa dois dos mais

relevantes: a carreira docente ea estrutura de poder na USP.

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um ou outro pequeno projeto para atender, namaioria das vezes, interesses clientelistas típicos datradição político-partidária do país. O conjunto dosprofessores da USP, representado pela Adusp, nãoconsegue em função da conjuntura adversa travaruma discussão aprofundada que vá muito além dosvalores numéricos do hollerith do próximo mês. Asadversidades impostas à categoria docente, comodiscutiremos à frente, pulverizaram o caráter coleti-vo e solidário que a vida uni-versitária requer e, associa-das à inércia burocrática dasadministrações da universi-dade, permitiram que hojenos encontremos numa si-tuação em que cada um dosdocentes é estimulado a re-solver individualmente ques-tões que seriam necessaria-mente institucionais, princi-palmente se considerarmosos objetivos intrínsecos deuma universidade pública.

Dentro da lógica quepermeia a vida universitárianeste momento alguém ain-da poderia dizer que, apesarde todas as adversidades,pelo menos a questão sala-rial ainda temos em comum.Obviamente todos sabemque atualmente sequer par-tilhamos as mazelas sala-riais, pois entre as “adversi-dades” impostas à categoriadocente uma das mais im-portantes refere-se à suafragmentação, já que através de mecanismos legaispermitiu-se a ruptura do pilar principal de uma uni-versidade pública, que é o regime de dedicação in-tegral à docência e à pesquisa (RDIDP). Com a edi-ção da Portaria nº 3.533, a burla do tempo integralque ocorria de forma ilegal até 1988 passou a partirde então a ser institucionalizada através de assesso-rias de até oito horas semanais, o que se traduziuem substanciais aumentos nas remunerações de do-centes nas instituições que tinham ou têm algumbalcão de venda de produtos ou serviços. A partirda opção e da alternativa de soluções financeiraspessoais, é natural que os indivíduos concebessem oseu próprio projeto de universidade e como tal éprevisível que nestas circunstâncias um projeto am-plo e coletivo não seja mais bem visto por aquelesque, em função da flexibilização do RDIDP, come-çaram a aumentar substancialmente as suas remu-nerações. As administrações da USP deram ênfaseà flexibilização, pois a mesma, além de diminuir as

pressões salariais está em perfeita sintonia com oprojeto neoliberal em implantação no país, para oqual cada indivíduo deve buscar o mercado de acor-do com a sua “competência”.

Dentro deste quadro ficam claras as dificuldadesque temos para trazer para o conjunto da universida-de uma discussão tão “árida” quanto a reforma doatual estatuto da USP, uma vez que no momento eleé permissivo e atende aos interesses da administra-

ção e permite que aquelessegmentos da universidadeneoliberalizados se expres-sem dentro de um projeto deuniversidade pública cujaprincipal característica é nãoter compromissos sociais cla-ros e, sim, permitir o uso de“espaços públicos” para arealização de projetos que vi-sam apenas a aumentar a re-muneração dos seus inte-grantes. Privatizar o espaçopúblico dentro da USP jánão causa mais estranheza.As fundações de direito pri-vado que se proliferam namaioria das unidades daUSP expressam de formacristalina esta tendência. Aprópria universidade e seusdiferentes segmentos organi-zados perderam a capacida-de de reação e hoje qualquerproposta de reverter este ro-lo compressor parece um de-safio muito além da nossa ca-pacidade de organização.

Durante a greve dos docentes em 1994, impor-tantes discussões foram travadas nas assembléiasrealizadas no Campus da USP de Ribeirão Preto.Em várias assembléias diferentes docentes manifes-taram que o movimento reivindicatório conduzidopela Adusp era equivocado, pois argumentavamque a realidade da maioria das unidades profissio-nalizantes da USP, em função da Portaria nº 3.533,era diferente das greves anteriores e que naquelemomento o salário pago pela USP para uma parce-la expressiva dos seus docentes não ultrapassava40% dos seus rendimentos mensais. Em função dis-so, estes indivíduos não poderiam aderir à greve,pois os seus problemas de remuneração já estavam“resolvidos”. Em função destas discussões, um gru-po de docentes coordenados pela Adusp de Ribei-rão Preto passou a estudar o atual estatuto da USPcom o objetivo de iniciar as discussões sobre seuprocesso de reforma. A partir de então este grupode trabalho não apenas estudou, mas também orga-

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Com a edição da Portaria

nº 3.533, a burla do tempo

integral que ocorria de forma

ilegal até 1988, passou a partir

de então a ser institucionalizada

através de assessorias de até oito

horas semanais, o que se

traduziu em substanciais

aumentos nas remunerações de

docentes nas instituições que

tinham ou têm algum balcão de

venda de produtos ou serviços.

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nizou o Simpósio Estatuto da USP: É Hora de Mu-dar?, cujo caderno estará sendo publicado breve-mente pela Adusp, com o objetivo de amplificar es-ta discussão a todos os campi da USP.

A análise detalhada do atual estatuto da USP poraquele grupo de trabalho mostrou distorções na es-trutura de poder da universidade que atendem per-feitamente aos interesses dos grupos detentores dopoder central da universidade. Como alguém lem-brou: aquele era o estatutopossível para o ano de 1988,dadas as circunstâncias dapolítica interna da USP na-quela época. A pergunta, noentanto, que permanece paraser respondida é se este esta-tuto continua sendo nos diasde hoje, o máximo possívelpara a USP.

Carreira docente eestrutura de poder

Entre os diferentes prob-lemas que o atual estatutoda USP apresenta gostariade discutir os dois que amim parecem ser os maisrelevantes e que são inter-dependentes: a carreira do-cente e a estrutura de poderna USP. O atual estatuto es-tabelece que apenas 10% doquadro são ou serão compe-tentes o suficiente para setornarem professores titu-lares. Ainda que o perfilacadêmico do professor tit-ular não esteja definido em qualquer artigo do es-tatuto ou mesmo dos regimentos das unidades, es-tabelece-se por critérios que certamente não sãoacadêmicos, que poucos podem atingir o topo dacarreira. A ausência do perfil acadêmico do pro-fessor titular permite que as conveniências políti-cas dentro de cada unidade defina momento a mo-mento o perfil adequado para o próximo titular. Is-to implica que na maioria dos concursos o can-didato ao cargo de professor titular é o único in-scrito, indicando que algo de errado existe nestesistema estranho de promoção acadêmica. Por out-ro lado, a ausência de um perfil acadêmicodefinido para as diferentes áreas do conhecimentodentro das universidades permite que diferençasgritantes existam entre a estatura acadêmica de tit-ulares de diferentes Departamentos e Unidades daUSP. Portanto, os critérios políticos de conveniên-cia para a manutenção do atual status de poder naUSP, são em muitos casos um fator determinante

da ascensão ao topo da carreira. Obviamente estesaspectos do atual estatuto são negados pela admin-istração e pela grande maioria dos professores tit-ulares, mas certamente não são ignorados pelamaioria da comunidade docente.

Estas distorções no processo de ascensão na car-reira visam a vários objetivos, os quais em essênciatêm muito pouco de acadêmico. Ter acesso ao seg-mento de aproximadamente 600 docentes titulares

da USP significa, na maioriados casos, acesso ao poderpolítico desta instituiçãomais do que efetiva lideran-ça acadêmica nas diferentesáreas do conhecimento. Osdiretores de unidades, oschefes de departamentos, osrepresentantes das congre-gações, e conseqüentementeo Conselho Universitário,são constituídos na sua gran-de maioria por um pequenogrupo de professores titula-res que se mantém na órbitado poder indefinidamente,gerando um grande ciclo vi-cioso, que da ótica do atualestatuto não tem saída. Edentro da sua lógica não épara ter saídas mesmo. O es-tatuto de 1988 ainda que te-nha aumentado a represen-tação das categorias docen-tes nas congregações, trans-feriu o núcleo decisório paraos restritos CTA’s nos quaisos chefes de Departamentos

decidem temas relevantes como o orçamento, en-quanto as congregações se tornaram “cartórios” dehomologação de bancas e concursos. Diante disso,fica fácil entender o esvaziamento das congrega-ções, com muitas delas tendo freqüentemente difi-culdades para atingir e manter o quorum.

Romper com a atual estrutura da carreira docen-te onde apenas o vértice da pirâmide tem poder defato, implica rever o modelo de universidade quequeremos e para quem a queremos. Portanto, a car-reira aberta na qual os professores possam ser pro-movidos a titulares em função da sua vida acadêmi-ca, através de concursos públicos, poderá não ape-nas estimular mais docentes a se manterem na vidauniversitária como certamente representará uma al-teração substancial na estrutura de poder da univer-sidade, com reflexos positivos no conjunto de todasas atividades universitárias. A carreira aberta certa-mente irá rejuvenescer o pensamento predominantehoje nos restritos círculos de poder da USP. Poderia

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também elevar de forma expressiva o número de ti-tulares exclusivamente promovidos por méritos aca-dêmicos, os quais naturalmente seriam menos com-prometidos com os aspectos políticos menores quehoje predominam. A universidade dessa forma esta-ria muito mais oxigenada e certamente estaria me-lhor preparada para enfrentar desafios internos e ex-ternos, que atualmente sequer são mencionados.Ainda com relação às distorções da atual carreiradocente é importante notar que uma parcela daque-les que se tornam professores titulares atualmentenão o faz com intenções de ocupar cargos ou exercero poder, mas simplesmente com o objetivo de seaposentar tão logo quanto possível com uma condi-ção salarial melhor. Nas duas situações não tem sidoa motivação acadêmica a propulsora das carreiras ecertamente estas distorções precisam ser revistascom urgência.

Apesar destes fatos, é inegável que os integran-tes da estrutura de poder da USP, baseada na atualcarreira docente, não cogitam qualquer mudançanas regras, pois o sistema tem atingido plenamenteos seus objetivos. Por outro lado, a organização dosdocentes neste momento não tem fôlego para umaempreitada maior, que force uma revisão profundado estatuto e, sendo assim, contemplamos um siste-ma universitário perverso que não é capaz de, apartir das bases, influenciar decisões que neste mo-mento se restringem ao seleto grupo de membrosdo Conselho Universitário que continuarão pormuito tempo soberanos.

Um outro aspecto não menos relevante na atualestrutura da USP refere-se ao cargo de Reitor. An-tes de mais nada é fundamental neste momento quea comunidade da USP responda em alto e bom soma quem o Reitor deve servir. É lamentável que os di-ferentes ocupantes da Reitoria tenham feito a opçãopreferencial pelo ocupante do Palácio dos Bandei-rantes, seja ele quem for. A propalada autonomiauniversitária nestas circunstâncias tem valido de na-da, pois os Reitores não foram eleitos de forma uni-versal e os seus compromissos se restringem ao ciclovicioso dos titulares anteriormente mencionado, ecomo tal é pouco provável que qualquer Reitor daUSP terá autoridade suficiente para que, legitima-mente, em nome da comunidade universitária, possase contrapor aos desejos do Governador do Estado.

A mudança do processo de escolha do Reitor re-quer discussões que passam necessariamente pelareforma do estatuto. Sempre que a discussão é le-vantada na época das eleições “os candidatos” semanifestam contra o casuísmo e alguns se compro-metem a retomar o tema tão logo estiverem empos-sados na Reitoria. No entanto, mandatos se passamsem que a discussão seja iniciada e assim o ciclo seeterniza. No atual sistema eleitoral para a escolhado Reitor a comunidade assiste perplexa ao desfile

de candidatos com propostas e práticas políticas quefazem inveja aos coronéis da pior tradição políticabrasileira. Neste “vale-tudo” eleitoral o clientelismopolítico predomina, de forma que a universidade re-produz no seu meio as práticas políticas mais conde-náveis do cenário político nacional. A diferença éque aqui não se assumem tais práticas como sendopolíticas, mas meramente “acadêmicas”.

Os candidatos a Reitor, em geral, membros anti-gos do Conselho Universitário já praticam o poderde alguma forma e perder ou ganhar eleições paraReitor, em essência, não significa muito em termosda estrutura de poder, a não ser as disputas internasentre grupos por este ou aquele pequeno segmentode poder. Compromissos com a comunidade e umprojeto maior de universidade são atualmente des-necessários, pois cabe aos seletos membros do grupode poder apenas alimentar o próprio ciclo e se possí-vel lustrar as suas vaidades pessoais. Mudar as re-gras atuais continuará a ser sempre para este grupo,um projeto de profissionais da esquerda que visamsempre a desestabilizar um modelo de universidade“eficiente” como a USP. Ferir os interesses do seletogrupo significa ferir a honra universitária.

O ocupante do cargo de Reitor não precisa, nomeu entendimento, ser necessariamente professor ti-tular e neste caso, diferente de todos os demais cargos,entendo que o Reitor deva ter um cargo mais políticodo que acadêmico, porque cabe a ele gerenciar confli-tos internos e estabelecer políticas que permitam àuniversidade interagir com os diferentes segmentos dasociedade. Para isto é indispensável a representativi-dade legítima e isto somente será possível se ele foreleito pelos seus pares. Caso contrário, ele continuarásendo simplesmente um interlocutor confiável do Pa-lácio dos Bandeirantes e a USP, uma instituição servilàs eventuais políticas neoliberais de plantão.

Apesar do ceticismo em relação a mudançassubstanciais no atual estatuto, acredito que elas se-rão possíveis se a Adusp e os representantes docen-tes nos diferentes órgãos colegiados se manifestaremsistematicamente nesta direção. O sucesso do Sim-pósio – “Estatuto da USP: É Hora de Mudar?” rea-lizado no mês de maio deste ano em Ribeirão Pretoé sinal de que uma parcela expressiva da nossa co-munidade está sensível ao tema. Para que as condi-ções políticas necessárias para o início do processode revisão do atual estatuto se concretizem, é neces-sário que todos aqueles que ainda acreditam numprojeto de universidade pública de qualidade seunam para forçar o Conselho Universitário e a Rei-toria no sentido de abrir a discussão. Caso não sejapossível, continuo acreditando que enquanto univer-sitários temos a obrigação individual de continuarapontando os erros de qualquer sistema, ainda queforças maiores da natureza muitas vezes nos impe-çam de transformá-los.

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Contratos precáriossão contratos de tra-balho por período detempo limitado, defi-nido por ocasião dacontratação, que ca-

racterizam um dos possíveis vín-culos trabalhistas mantidos entrea Universidade de São Paulo e

seus docentes. O período de tem-po de manutenção do contrato,tradicionalmente de 3 anos, variaatualmente de 6 meses (em casosextremos, é verdade!) a 3 anos.As obrigações dos professorescontratados precariamente sãoexatamente as mesmas que aque-las dos docentes efetivos: ensino,

pesquisa e orientação, extensão eprestação de serviços. Professoresadmitidos para contratos precá-rios passam por processo seletivobastante exigente, constituído deprova didática, prova de conheci-mentos e exame do currículo. Umprocesso em tudo e por tudoidêntico àquele a que se submete

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CONTRATOS PRECÁRIOS: POR QUE ISSO TEM DE ACABAR?

Lígia Marcondes Machado

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o docente concursado e efetiva-do, até mesmo publicado no Diá-rio Oficial do Estado...

O contrato por período limi-tado remonta, na USP, ao tempodo Reitor Gama e Silva, na déca-da de 60. Foi criado através deato administrativo do reitor, queestendeu aos docentes norma doEstatuto dos Servidores da Uni-versidade (ESU) que, embora ex-cluísse os docentes, permitia acontratação por período de tem-po determinado. Claramente, ocontrato precário não é coerentecom a função exercida pelo do-cente: ensino e pesquisa não sãoatividades temporárias, não seprestando, portanto, a contratoscom duração pré-definida.

Além de incoerente com a ati-vidade que visa a atender, o con-trato precário não tem amparolegal. Legalmente, só há dois re-gimes de contratação: o dos fun-cionários públicos, admitidos porconcurso público e amparadospela Constituição de 1988, e odos empregados regidos pelaCLT. Portanto, a racional subja-cente à manutenção dos contra-tos precários não é jurídica.

Por que, então, se mantém acontratação de docentes na USPatravés de contratos precários?Contratos de trabalho são feitos,em geral, entre um empregado euma instituição. Mas, claro, as re-lações de trabalho não se passamapenas em plano institucional:elas se dão entre pessoas. Assim, énestas relações que se concretiza ese mantém o contrato precário.

Os argumentos que se empre-gam para justificar os contratosprecários, embora colocados devárias formas diferentes, são va-riações em torno de um tema.Costuma-se argumentar, porexemplo, que, para manter o rit-mo e o nível de produção, é ne-cessário que o docente seja con-tratato precariamente.

Sempre me pareceu notávelque uma afirmação deste tipofosse feita pelos próprios efetivos:as pessoas estão dizendo de si

próprias que elas trabalham me-nos, que elas produzem menosporque não estão submetidas auma situação de ameaça. Ou seja,pensando no auto-conceito depessoa que faz a defesa do con-trato precário, devemos concluirque os nossos colegas pensammuito mal de si próprios. Sua po-sição é uma confissão: sem pres-são, não posso confiar em minhaprópria capacidade de trabalho.

Claro que a posição se gene-raliza. Se pensa isso de si pró-prio, o professor que defende ocontrato precário pensa muitomal da categoria e, provavelmen-te, tem um conceito de homem eum conceito de trabalho muitopouco apreciativos. Basicamente,na acepção destes colegas, o serhumano não é confiável: se nãoestiver submetido a uma situaçãode perda possível, a tendência dapessoa será de relaxar sua dedi-cação ao trabalho. Por sua vez,também o trabalho cabe no paco-te da depreciação: trabalho é al-guma coisa que não se faz porprazer, que o trabalhador sócumpre para escapar da espadaque pende sobre sua cabeça. Épreciso notar que essa posiçãoacaba por ser adotada tambémpelos próprios docentes precá-rios. Algum mecanismo de coop-tação está na base desta adesão:o contratado, algum dia, será efe-tivo (ou, pelo menos, é o que elepensa) e, neste dia, passará a es-tar do lado do controlador.

Com certeza, para quem pensatão mal do homem e do trabalho, épreciso manter ativo o chicote dofeitor: qualquer descuido e os“aproveitadores vão se aprovei-tar”... Na prática, se houver algumadúvida, ela se dá em torno de comquem vai ficar o chicote, isto é, so-bre quem vai exercer o controle.

Acho que este é um ponto im-portante, se quisermos entendera manutenção do contrato precá-rio. A existência de professorescontratados precariamente per-mite aos outros o exercício docontrole. O docente efetivo pode,

então, manipular as condições detrabalho do colega. Pode deter-minar o quê e quando o colegaprecário vai fazer. Pode decidirse é hora do pós-doutorado dooutro ou se, pelo contrário, o ou-tro vai ficar e fazer o trabalhobraçal do laboratório. Pode deci-dir se a área de pesquisa a que odocente precário se dedica dei-xou de ser prioridade e deve serextinta ou, pelo contrário, se setrata de uma área promissora naqual o departamento deve inves-tir. Ou pode, até mesmo, não fa-zer nada disso e ser cooperativo ecompreensivo. Claro, desde queo precário seja igualmente coo-perativo e compreensivo nas vo-tações do Conselho do Departa-mento, ou na aprovação dosorientandos do feitor...

Exagero? Infelizmente, não.Chegam à Adusp - S. Sind., comfrequência muito maior do quedesejaríamos, as reclamações decolegas submetidos a situaçõesconstrangedoras, avaliados poratributos não-acadêmicos e obri-gados a assumir posições de sub-missão na política interna do de-partamento.

Tanto é assim que, para cadapossibilidade que enumerei aci-ma, é possível encontrar umexemplo concreto e recente. Ra-ramente, porém, os docentes queenfrentam situações como estasestão em condições de reagir. Aprópria reação poderia ser malvista e poderia resultar em perdadefinitiva da possibilidade decompor soluções que permitam acontinuidade do contrato.

O que resulta dessa situação?A primeira conseqüência é a

concentração de poder nas mãosde algumas poucas pessoas, con-centração esta determinada porcritérios alheios ao grupo contro-lado e à capacidade administrati-va e política do controlador. Tra-ta-se de um poder definido ape-nas burocraticamente. Como jádisse, o critério de seleção paracontratação tem sido tão rígido nocaso dos concursos públicos quan-

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to no caso dos chamados proces-sos seletivos, não havendo, de fa-to, diferença de capacidade aca-dêmica entre os precários e osefetivos. A pesquisa feita recente-mente pela Adusp - S. Sind. mos-tra, também, que docentes comcontratos precários têm titulaçãoe experiência rigorosamente com-paráveis a seus colegas efetivos. Opoder concedido ao docente efeti-vo – poder de vida ou morte aca-dêmica – sobre o colega precárioé, portanto, um poder espúrio.

Outra resultante da existênciade contratos precários é o climade medo e tensão e de inseguran-ça que se cria. Deste medo, surgea desinformação, surge a passivi-dade, surge a dedicação integral àesquiva de uma punição iminen-te. O docente submetido a con-trato precário passa a querer, an-tes de tudo, resolver a própria si-tuação, viabilizar sua permanên-cia na universidade. Tão trágicaquanto a do colega que é demiti-do é a situação de muitos entre osque ficam, que acabam buscandoa receita para ficar... Sabemos to-dos que buscar receitas é absolu-tamente incompatível com fazerciência ou com o saudável exercí-cio intelectual da crítica.

A insegurança é igualmentedesastrosa. Qual é o incentivo quetem um docente precário para ini-ciar uma nova linha de pesquisa?Como planejar pesquisas de longoprazo ou de resultado incerto se opesquisador não pode prever atéquando poderá conduzir o traba-lho (como se houvesse a pesquisade “resultado certo”...). Mesmoem termos de ensino, propor no-vas disciplinas se torna uma teme-ridade: se a disciplina não se tor-nar popular, a avaliação do do-cente pode ficar comprometida elá se vai sua renovação de contra-to. E serviços de extensão? Sóaqueles que têm data marcada pa-ra terminar e terminarão antes docontrato do docente.

Uma consequência, ainda, daexistência dos contratos precá-rios é que ele permite que se

culpe a própria vítima pelos seusdesacertos. Assim, se o profes-sor não publica, se a aula é insu-ficiente, se o seu trabalho não sedesenvolve como deveria, a cau-sa buscada está no próprio do-cente que é chamado de impro-dutivo ou incompetente. Maisfácil mandá-lo embora, não re-novar seu contrato do que en-tender as condições que deter-minam este trabalho suposta-mente inadequado.

Quando poder ilimitado deum lado e insegurança e submis-são de outro se somam, o resulta-do é a arbitrariedade. E é issoque temos visto acontecer, infe-lizmente, na USP.

É o docente que não é recon-tratado porque não é visto comsimpatia pelos colegas; é o do-cente que, voltando do pós-dou-torado, descobre que sua área depesquisa foi extinta e seu contra-to também; é o docente de cujoprocesso ninguém se lembra (se-rá que passou mesmo poraqui?...); é o docente cujo con-trato não renovado é uma vagapara o amigo do controlador; é,enfim, o domínio do pesadelo.

É verdade que não é assim emtodas as unidades da USP. É ver-dade que há docentes contratadosprecariamente que não se preocu-pam com sua situação. Mas, o queassusta é a possibilidade que ocontrato precário abre, quer estapossibilidade se concretize sem-pre, quer não. A mera existênciados contratos precários é a amea-ça que precisa ser eliminada.

Qualquer proposta de acabarcom os contratos precários deve

ser feita com muita cautela. Deum lado, precisamos ter claro quehá mecanismos que asseguram apermanente defesa da qualidadedo trabalho do docente, sem anecesidade do terrorismo das re-novações periódicas. Concursospúblicos são sempre seguidos deperíodo probatório em que o do-cente deve confirmar o desempe-nho que garantiu sua contrata-ção, antes da efetivação se consu-mar. Inquéritos administrativossão o instrumento que permiteaveriguar os casos em que o do-cente não cumpre adequadamen-te seu contrato precário. Não háentão, necessidade de manter aprecariedade, ainda que se adoteo (falso) argumento de defesa daqualidade do trabalho.

Por outro lado, a natureza hu-mana talvez não seja tão má quan-to pintam alguns colegas. Talvez, aemoção da descoberta, a satisfa-ção de compreender o mundo, aalegria de dividir o conhecimentoe ver o outro crescer possam sermotivação suficiente para o traba-lho acadêmico. Carl Sagan disseque os homens estão no mundopara ser “os olhos e os ouvidos doCosmos”. Ver e ouvir deveriamser os motivos do cientista e do in-telectual. Certamente, não se vê enão se ouve melhor sob ameaça...

Como disse um autor da mi-nha área de pesquisa, “o paga-mento de salários é um avançoóbvio em relação à escravidão;mas, o uso de um salário padroni-zado como algo que pode ser in-terrompido a menos que os em-pregados trabalhem de uma dadamaneira não significa um pro-gresso tão grande” (Skimer, 1953,Science and human behavior. NewYork: Macmillan, p. 388). É istoque queremos? Vamos assumir opapel de feitores? Vamos deixarque alguém mais assuma, com-pactuando com a escravidão denossos próprios colegas?

Lígia Marcondes Machado é pro-fessora do Instituto de Psicologiada USP e ex-diretora da Adusp.

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OS SINOS DOBRAM PELA ESCOLA PÚBLICAAS PROPOSTAS DE COVAS PARA O 1º E 2º GRAUS

O governador Mário Covas assumiu o Estado de São Paulo falando em implantar trêsrevoluções no ensino de 1º e 2 º graus: a revolução moral das práticas de governo, a re-volução administrativa e a revolução da qualidade e produtividade dos serviços públi-

cos. Ao analisar a educação no governo paulista do PSDB, o professor efetivo de Histó-ria da Rede Estadual de Ensino em Ribeirão Preto, Gilberto Pereira de Souza,

afirma que a gestão Covas pretende introduzir nas escolas públicas um modelo de ges-tão de pessoal e recursos moldado nas empresa nacionais e internacionais. Trata-se, na

verdade, de aplicar o método de controle do trabalho fabril à educação.

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Recentemente a Secretaria da Educação,através de seu Boletim Informativo“Fazendo Escola”, divulgou as propos-tas, ou mais propriamente, as três revo-luções que o governo Mário Covasconsidera como diretrizes para a Edu-

cação: a Revolução Administrativa, referente aopessoal; a Revolução na Produtividade dos RecursosPúblicos, visando a obter melhores resultados commenores custos, e a Revolução Ética e Moral.

Este artigo vai se ater às duas primeiras revolu-ções; uma vez que ambas já estão sendo colocadasem prática e sintetizam claramente as propostas doatual governo para a Educação.

Pretende-se introduzir nas es-colas públicas de 1º e 2º graus ummodelo de gestão de pessoal e re-cursos aos moldes do que vem sen-do aplicado nas grandes empresasnacionais e internacionais, a quali-dade total, é o método de controlede trabalho fabril aplicado à esco-la. Produzindo-se mais em menostempo, reduzindo-se custos, elimi-nando desperdícios, barateandoprodutos e, logicamente, reduzin-do mão-de-obra. Causando, emparceria com as inovações tecnoló-gicas, um aumento espantoso dodesemprego em todo o mundo; au-mentando sobremaneira o desem-prego estrutural (eliminação depostos de trabalho devido ao avan-ço da técnica e aumento da produ-tividade); fazendo com que a Or-ganização das Nações Unidas (ONU) se preocupecom o chamado “Jobless Grow”, crescimento econô-mico sem emprego, economias que crescem com ní-veis de emprego que decrescem.

O governo estadual pretende aplicar na escolapública os mesmos processos. Ancorado numa maci-ça e sistemática campanha e alegando que o Estadobrasileiro, incluindo o de São Paulo, está falido, es-gotou sua capacidade de investimento, gastandomuito mal os poucos recursos de que dispõe.

Que o Estado gasta pouco com a área social, éverdade; que gasta mal também o é. O que não éverdade é que não tenha mais condições de obter re-cursos próprios para investir nesta área.

As três esferas do poder público (Estados, Municí-pios e Governo Federal) investem, juntos, aproxima-damente 3,7% do PIB em Educação, recursos quealém de insuficientes são mal aplicados. Mas, o quemuitos esquecem é que a evasão fiscal no Brasil beiraa 50% dos impostos devidos; produto da sonegaçãopura e simples e de uma série de isenções fiscais. Semmencionar o crescente desvio de verbas da área social,

produto da corrupção – especialmente na Previdência,Saúde e Educação – e da ação do próprio governo, es-pecialmente através do fundo social de emergência.

Não é o Estado que faliu por obra do esgotamen-to de um modelo de desenvolvimento, mas foi levadoà falência pelos seus gestores, que o colocam a servi-ço da acumulação privada de capital. São Paulo, comsua bilionária dívida, seu banco (Banespa) falido ecom uma série de contratos lesivos ao erário públicoassinados pelo governo anterior, é um bom exemplo.

Para justificar suas propostas, o governo estadualalega que, até agora, a escola pública brasileira tem si-do de má qualidade e produtora de fracassos. De fato

a situação educacional brasileira éalarmante. Segundo a Unesco, oBrasil tem a pior educação domundo (1994). O analfabetismofuncional atinge cerca de 1/3 denossa população; 88% de nossascrianças deveriam concluir a 5ª sé-rie, porém, somente 39% o fazem.

Mas, como a memória é políti-ca, no tocante à qualidade de ensi-no, se esquece de uma pesquisa daFundação Carlos Chagas, concluí-da em 1991, que revelou, após aaplicação de testes (Gramática,Redação, Matemática e Ciências)em alunos de escolas públicas eprivadas de várias capitais brasilei-ras, inclusive São Paulo, que o de-sempenho dos alunos das duas re-des foi semelhante.

Segundo a Secretária de Edu-cação Rose Neubauer, o recadas-

tramento de alunos feito em setembro, levará à des-coberta de 300 a 500 mil matrículas fantasmas noEstado, correspondendo a 600 escolas ociosas. Alémdisso, existem as classes de aceleração de aprendiza-gem – alunos das quatro primeiras séries que nãotêm idade para recorrer ao ensino supletivo, quecursarão dois anos em um – a instalação de 100 pos-tos do telecurso Brasil 2000 e o aumento do númerode alunos por sala. Em 1996, será possível dispensar60 mil professores, dos quais 30 mil serão leigos.

As dispensas já estão sendo efetuadas, com a ava-liação para efeito de exoneração, e estão sendo efe-tivados todos aqueles que têm menos de dois anosno serviço público estadual, atingindo aproximada-mente 400 professores e cerca de três mil funcioná-rios de escola.

Para liberar, mais ainda, mão-de-obra e eliminaras perdas de cerca de 600 milhões de reais ao anocom alunos retidos e evadidos, há as portarias da Se-cretaria da Educação determinando que as escolasreduzam “drasticamente” (expressão da Secretariade Educação) a evasão e repetência. Isto me lembra

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Que o Estado gasta

pouco com a área

social, é verdade; que

gasta mal também o é.

O que não é verdade é

que não tenha mais

condições de obter

recursos próprios para

investir nesta área.

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uma declaração recente do Ministro da Educação,Paulo Renato de Souza, segundo a qual se fossemeliminadas a evasão e a repetência, 50% dos profes-sores de 1º e 2º graus das escolas públicas brasileirasseriam desnecessários.

O governo joga uma cortina de fumaça sobre ascausas fundamentais da evasão e da repetência, cul-pando como sempre os professores, esquecendo-sede mencionar propositadamente que existem hojeno Brasil 10 milhões de desempregados, 31,7 mi-lhões de indigentes e, segundo dados de 1990, 10 mi-lhões de crianças trabalhando ilegalmente, o que re-flete diretamente no acesso, permanência e desem-penho escolar, especialmentedos membros das camadasde menor poder aquisitivo.

Além de pôr em práticaas propostas de Reforma Ad-ministrativa do ministroBresser Pereira, demitindofuncionários públicos, o go-verno estadual “inova” pro-pondo novas formas de fi-nanciamento do ensino: asparcerias, prioritariamentecom os municípios, mas tam-bém, com a comunidade es-colar e a iniciativa privada.

A divisão das escolas porsérie em 1996 – escolas de 1ªa 4ª séries, 5ª a 8ª séries, ape-nas de 2º grau e de 5ª a 3ª sé-rie do 2º grau – além de ra-cionalizar recursos e pessoal,visar a municipalizar o ensi-no da 1ª a 4ª séries com o Estado repassando verbaspara os municípios para, num primeiro momento,custear as escolas e, posteriormente, contratar e pa-gar de professores.

O Estado pretende passar aos municípios 60%dos alunos hoje matriculados na Rede Estadual (de6,7 milhões de matrículas nas escolas estaduais, 3,6milhões estão na faixa de 1ª a 4ª séries). Assim, a máqualidade de ensino e a escassez de recursos pode-rão se agravar nos próximos anos.

As parcerias com a iniciativa privada e a comu-nidade escolar se baseiam no plano decenal, dandoàs escolas autonomia para captar e gerir recursos.Teremos escolas adotadas por empresas, quepoderão custeá-las e participar de sua administra-ção, algo que já ocorre hoje em Taboão da Serra ena Capital. Outra possibilidade é a própria comuni-dade escolar assumir o custeio das escolas; trata-sedas cooperativas, que estão sendo implementadasem alguns estados.

Isso levará a uma diferenciação cada vez maiorno seio da Rede Estadual de Ensino. As escolas mais

bem localizadas, com uma comunidade que possuamais recursos, poderão atrair a atenção das empre-sas; no entanto, as escolas periféricas, que atendemà população de nível sócio-econômico mais baixo,seguramente não irão despertar o interesse do em-presariado, e a comunidade escolar não terá condi-ções de custeá-las. É a aplicação da teoria da EscolaDual: para os mais favorecidos, uma escola um pou-co melhor, para a imensa maioria, uma escola cadavez pior, ou mesmo, a não-existência de escolas.

As parcerias levam à privatização do ensino, umaprivatização financiada com recursos públicos geri-dos pela iniciativa privada, uma vez que o dinheiro

investido pelas empresas emprojetos educacionais corres-ponde a impostos devidos aoEstado (cota parte do salá-rio-educação e isenções fis-cais por investimento emprojetos educacionais).

O fundamento de todasessas medidas é a redução do“custo Brasil”. Elas são par-tes da reforma do Estado; re-duzir os gastos públicos comprevidência saúde e educa-ção; reduzir o custo da mão-de-obra, eliminando pratica-mente todos os direitos tra-balhistas, retrocedendo a re-lação capital-trabalho aosprimórdios da revolução in-dustrial na Europa.

Isto, numa economiamundial cada vez mais com-

petitiva e caótica, num estado de entropia cada vezmaior, no qual a propalada “nova ordem” não passade um mito, como a competição entre potências ca-da vez mais selvagem e desregrada, torna nossosprodutos mais baratos e competitivos, favorecendo oacúmulo privado de capital.

É como dizia Marx, o trabalho morto se sobrepon-do ao trabalho vivo; as coisas-mercadorias se tornammais importantes que os homens. Reduz-se o custodos produtos, diminuindo-se o preço das pessoas.

Para concluir, a luta pelo ensino público por melho-res salários, condições de trabalho e mais verbas conti-nua mais justa e atual do que nunca. Com uma evasãofiscal de 50% e o governo estadual sequer cumprindo oorçamento em vigor para a Educação (de janeiro a ju-lho deste ano, segundo dados da Apeoesp, 606 milhõesde reais não foram aplicados no pagamento de saláriosde professores e servidores da Secretaria de Educa-ção), dispensando 60 mil professores, mas admitindocontratar outros milhares para ministrar as aulas deReligião no próximo ano, só não há mais investimentona Educação por decisão política.

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Hoje, ninguém duvi-da de que um indi-cador importanteda qualidade de vi-da de um povo é oseu sistema educa-

tivo. A eficiência do trabalhorealizado na formação de cida-dãos cultos expressa o respeito aum direito fundamental do ho-

mem e é um procedimento práti-co para torná-lo um ser pleno efeliz. “-Ser culto é o único modode ser livre”, disse José Martí, oApóstolo da independência cu-bana. Sob esse lema, trabalha-seem Cuba – dia a dia, desde o sé-culo passado – para consolidar oque se conquistou nos últimos 35anos e para vencer os problemas

que afetam hoje a complexa tare-fa de ensinar e aprender, de ins-truir e educar.

Nestes primeiros anos da dé-cada de 90, apesar dos pesares, aeducação em Cuba continuouavançando. Mas como foi possí-vel em meio a tantas dificulda-des? Do meu ponto de vista, poruma simples razão: em Cuba, a

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EDUCAÇÃO-CUBANEM SÓ DE PÃO VIVE O HOMEM

Guillermo Díaz Rodríguez

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educação continua sendo umaprioridade, uma prioridade polí-tica e também uma prioridade naprática cotidiana. Temos educa-ção porque continuamos tendoRevolução. Temos educação dequalidade porque nada é maisimportante para a Revolução doque o homem. Humanismo: essaé a chave. Nada poderia ser feitose o homem e suas necessidades,suas utopias e suas realizaçõesnão fossem o centro dos desvelosde toda a sociedade e daquelesque a dirigem.

Desde os primeiros momen-tos, a educação revolucionáriadefiniu sua política e tal condi-cionamento trouxe ao sistemauma coerência que é outra daschaves que levou aos resultadosobtidos. Muitos erros táticos po-dem ter sido cometidos; mas, nasua vocação estratégica de auto-aperfeiçoamento, a educação cu-bana foi amadurecendo, foi sedesenvolvendo. A consciência deque o conquistado não é perfeitoe de que a luta pela qualidade se-rá sempre o pão nosso de cadadia, garantem a sua continuidadee o seu crescimento.

Quando triunfou a Revolu-ção, em 1959, a situação educa-cional em Cuba era bem diferen-te. Com uma população que nãochegava aos sete milhões de ha-bitantes, o país possuía mais deum milhão de analfabetos, maisde meio milhão de crianças semescolas, um ensino de primeirograu ao qual somente a metadeda população escolar tinha aces-so, um ensino de nível médio esuperior que era privilégio dasminorias que viviam nas maiorescidades e mais de dez mil profes-sores sem trabalho – apenas paradar alguns exemplos.

Era, na realidade, uma situa-ção caótica, sinal da indiferençados governos de plantão diantede uma atividade substancial-mente ligada à melhor parte danatureza do homem: sua inteli-gência e sua sensibilidade, seucérebro e seu coração.

Somente um processo comoo que se levou adiante a partirde 1959 poderia dar um fimàquela situação. Era necessárioeliminar as causas que, a cadaano, tornavam mais abismais asdiferenças entre os ricos e os po-bres. O resto já é parte da histó-ria do povo cubano.

A obra começou bem cedo,tendo como denominador co-mum uma profunda participaçãopopular e uma clara definição dapolítica a ser seguida. A educa-ção do povo converteu-se numameta capital e numa obsessão dasociedade como um todo. ACampanha Nacional de Alfabeti-zação, em 1961, talvez tenha sidoo ponto mais alto deste início.Aquela gigantesca epopéia políti-ca e cultural não foi apenas umgesto humanista, foi também abase imprescindível para o de-senvolvimento educacional al-cançado pelo país e que se ex-pressa nos seguintes fatos:

Em Cuba, a educação é, narealidade, um direito e um deverde todos. Qualquer cidadão cu-bano tem as mesmas possibilida-des de acesso à educação inde-pendentemente de sua idade, se-xo, grupo étnico, local de resi-dência ou crença religiosa.

A educação do povo não é sótarefa da escola, mesmo que estarepresente seu principal elo. To-das as organizações e instituiçõessociais atuam neste sentido, con-vertendo tão complexa tarefa nu-ma ação democrática e popular.

O sistema educativo foi arti-culado de tal maneira que, desdemuito cedo, inculca-se no cida-dão a convicção de que a interde-pendência entre o estudo e o tra-balho constitui a base essencialde sua formação. Tem-se criadocondições para que crianças e jo-vens adquiram uma consciênciade produtores de bens sociais eaprendam que só terão na vidaaquilo que forem capazes de ob-

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üa taxa de alfabetização do país é superior a 95%ütaxa atual de escolaridade:

laté 11 anos: 100%lde 12 a 14 anos: 94%

ücentros de ensino médio: 13.000ücentros universitários: 45ücubanos estudando: 2.400.000üalunos internos: 380.000üalunos semi-internos: 663.000ütotal de docentes: 250.000ücrianças na pré-escola: 150.000üalunos de educação especial: 57.000üestudantes de Ensino Técnico e Profissional: 224.000üalunos de Educação para Adultos: 115.000üalunos de Educação Superior: 224.000ügraduados desde 1959:

lda Educação Técnica e Profissional: 1.345.700ldo Subsistema de formação de pessoal pedagógico: 496.000lda Educação Superior: mais de meio milhão

üpopulação do país: cerca de 11 milhões de habitantes.N.T.: A 9ª série, no ensino cubano, é o último ano do “secundário”,

que, no Brasil, equivaleria à 1ª série do 2º grau.

A educação cubana em números

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ter por meio do trabalho, esse“grande pedagogo da juventude”.

O ensino é gratuito para to-dos. Em condições econômicastão adversas como as atuais esteprincípio continua em plena vi-gência e, para tanto, o Estado fazos esforços que forem necessá-rios. Hoje, muitas fábricas estãosendo fechadas, mas todas as es-colas continuam abertas e emfuncionamento.

Ter conseguido a materializa-ção de tais objetivos não signifi-ca, de modo algum, ter alcança-do aquilo que, em termos deeducação, o país aspira e necessi-ta. O auto-aperfeiçoamento con-tínuo do sistema, que sempre foiuma de suas prioridades, adqui-re, nas condições atuais, impor-tância de primeira ordem. AEducação deve contribuir decisi-vamente no período de transfor-mações que está atravessando asociedade cubana. O desafio temproporções inimagináveis e porisso já está em andamento a apli-cação de uma política que se em-penha em resolver as contradi-ções e insuficiências que se têmapresentado.

Ninguém medianamente in-formado nega, atualmente, aobra educacional de Cuba. Ne-nhum outro país do TerceiroMundo – ao qual pertencemos,mesmo que alguns freqüente-mente se esqueçam disso – con-seguiu erradicar o analfabetis-mo e o atraso escolar, diminuiua níveis pouco significativos astaxas de repetência e evasão,elevou a escolaridade média dapopulação à 9ª série ou tem emexercício um professor para ca-da 45 habitantes.

Poucos países da região têmconseguido com que todos osprofessores da educação primá-ria possuam título idôneo paraexercer suas atividades ou que,no nível médio, 87% de seus pro-fessores tenham formação peda-gógica universitária – apenas pa-ra citar alguns indicadores quan-titativos. Mas o problema se as-

socia, agora, fundamentalmenteà qualidade. Vejamos em quesentido.

No que se refere a planos deestudo e programas, o SistemaNacional de Educação manteveum critério único que em nadacontribuía para atingir o nível deflexibilidade necessário para ade-quar-se às caraterísticas das dife-rentes regiões do país, com oconseqüente resultado da aplica-ção de planos insuficientementeajustados às particularidades darealidade – em transformaçãoacelerada – e aos interesses dascrianças e jovens.

Pesquisas realizadas mostra-ram a evidência de que, em ter-mos qualitativos, o nível dos re-sultados de aprendizado e de for-mação integral dos estudantesnão se relaciona suficientementecom a prioridade, os esforços e omontante dos recursos destina-dos à educação.

Quanto à formação do pes-soal docente, as análises críticasque vêm sendo realizadas assina-lam uma tendência à teorizaçãoque não é compatível, de formaalguma, com a intenção de for-mar as novas gerações sob o prin-cípio da combinação harmônicada teoria e da prática.

Está absolutamente claro que,no afã de democratizar a educa-ção cubana, a extensão e univer-salização dos serviços educacio-nais têm sido algo muito impor-tante. Hoje, no entanto, torna-seimprescindível o objetivo de con-solidar o estilo de trabalho dasescolas, de maneira que pela suaorganização, pelo nível de parti-cipação e decisão de seus inte-grantes e pelas suas funções, se-jam cada vez mais democráticas.

Deste ponto de vista, a Edu-cação Superior também está bus-cando consolidar suas tendênciasde aperfeiçoamento que dizemrespeito, fundamentalmente, a:uma maior integração das Uni-versidades com as unidades deprodução e de serviços; um au-mento do grau de descentraliza-

ção, que facilite às autoridadesde cada centro maiores possibili-dades para transformar os planosde estudo em relação às necessi-dades e condições da região ondese encontra e da própria comuni-dade com a qual se inter-relacio-na, e a conversão da ciência nalógica fundamental do aprendi-zado, por meio de uma maior in-tegração dos aspectos acadêmi-cos, laborais e de pesquisa nosafazeres cotidianos.

Cada nível tem hoje seus pró-prios objetivos de aperfeiçoa-mento e modernização. Cada di-rigente, técnico ou professor doSistema Educacional Cubano es-tá empenhado neste esforço quese faz mais complexo pelas difí-ceis condições econômicas nasquais se realiza. Mas existe oconsenso de que não pode haveroutra alternativa. Neste sentido,a cooperação é imprescindível.

A educação cubana é um sis-tema aberto que se nutre do me-lhor de nossa própria tradiçãopedagógica e daquilo que se fez ese faz, no mundo, para avançarsobre bases seguras, por isso o in-tercâmbio internacional cresce acada dia, especialmente com onosso tronco comum: a América-Latina e o Caribe. Muito é o queestamos tentando aprender deoutras experiências e, quem sabe,parte das nossas possa ser útil emalgum lugar. Claro, não se tratade extrapolações miméticas e es-téreis, esses dissabores tambémos conhecemos. Trata-se de umaintegração inteligente e enrique-cedora em prol de objetivos co-muns. Trata-se, enfim, de traba-lhar unidos pela educação denossos filhos, esse alimento tãonecessário ao homem, como opão que consome a cada dia.

Guillermo Díaz Rodríguez é Dou-tor em Ciências Pedagógicas e Re-presentante do Ministério da Edu-cação de Cuba no Brasil.

Tradução: Graciela Foglia eLeonardo Chianca.

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Desaparecidos políticos

Ao tomar conhecimento do ar-tigo “Desaparecidos Políticos - AFalta de Vontade Política deFHC”, de autoria do Sr. Ivan Sei-xas, publicado nesta revista, con-fesso que fiquei momentaneamen-te surpreso. Com o passar do tem-po, porém, acabei até por entenderque há todo um comportamentode revolta, de certa forma com-preensível, emsua personalida-de e em sua for-mação histórica,mas que não jus-tifica a formaagressiva comque me tratouem seu artigo.

Este senhorsempre foi muitobem recebidopor mim e pormeus colegas deDepartamento,não raro semqualquer agen-damento prévio,já que sempremantive as por-tas da minha sala abertas a quemme procura.

Em todas as oportunidadesdei-lhe os devidos esclarecimentossobre o andamento do trabalho deidentificação das Ossadas de Pe-rus. Tentou, aliás, por várias vezes,convencer-me a dar depoimentose informações que cientificamenteeu não poderia fazer. Procurou sero intermediário entre meu Depar-tamento e a Prefeitura de SãoPaulo, onde estava lotado no gabi-nete da Prefeita Luiza Erundina,na tentativa de aplicar os recursosprometidos — jamais vindos —sem nunca ter trazido qualquer in-formação a respeito. Todas as ve-zes que o procuramos para saber

da liberação de recursos, omitiu enão retornou ao assunto.

Com a saída da Prefeita, nun-ca mais me procurou pessoalmen-te. Soube que tem tentado com al-guns integrantes no meu Departa-mento saber sobre determinadosdesaparecidos.

Por questões éticas e morais,assumidas no início dos traba-lhos, não emiti qualquer opiniãosubjetiva, e só procuro a família

de um desapa-recido quandotenho bons in-dicativos deque a ossadaque estamosestudando pos-sa pertencer aseu familiar.Não pretendocriar expectati-vas falsas ouesperanças in-c o n s i s t e n t e snaqueles que jásofrem há tan-tos anos.

Se esta for-ma de procederé ser arrogante,

realmente sou, pois não serei le-viano em falar algo só por achar.O achismo, aliás, é recurso dequem nada sabe, só acha.

Eu tenho, por princípio, umanorma: procurar, achar, compro-var, e só então falar. Se me faltauma das etapas, não me manifesto.

Neste sentido, o que acha o Sr.Ivan Seixas é problema puramen-te pessoal dele, que deveria guar-dar para si em respeito a umapessoa — no caso, o profissionalque sou — que ele não conhece,mas que acha que conhece.

AtenciosamenteProf. Dr. Fortunato Antonio Badan Pa-lhares, Chefe do Departamento de Me-dicina Legal da FCM/Unicamp

Florestan Fernandes

A diretoria da Adusp e o Con-selho Editorial da Revista Aduspagradecem as centenas de mani-festações de apoio à iniciativa dapublicação de uma edição espe-cial em homenagem ao ProfessorFlorestan Fernandes. No dia 20de outubro, a Adusp lançou aedição especial, no Anfiteatro daFaculdade de História, com a pre-sença dos familiares, dos autoresdos textos e do ex-presidente doPT, Luiz Inácio Lula da Silva.

Cartas

A Revista Adusp se reserva o direito de publi-car trechos representativos das cartas recebidas.

ErramosA professora Miriam Limoeiro Cardo-

so, da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro, desenvolve a pesquisa “Para umahistória da sociologia no Brasil: a obra deFlorestan Fernandes”, e não “Para umahistória do socialismo”, conforme publica-do na edição número 4 da Revista Adusp.Ainda nesta edição, o título correto do ar-tigo do historiador e professor visitante doIEA, Jacob Gorender, é “Confluências econtradições da construção sociológica”.

Daniel R

. Garcia

DESAPARECIDOS POLÍTICOSA FALTA DE VONTADE POLÍTICA DE FHC

Dados do Projeto Brasil Nunca Mais, da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, e da Comissão de Presos Políticos Mortos ou Desaparecidos, indicam que entre 50 e 70 mil pessoas foram presas pela repressão militar que se instalou no Brasil pós-64, 25 mil delas processadas formalmente,

383 mortas e aproximadamente 200 ainda estão desaparecidas. Enquanto isso, o único presidente com poderes e legitimidade para resolver

a questão dos desaparecidos políticos vacila ostensivamente.

RReevviissttaa AduspJulho 1995

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