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Aquisição da Linguagem Florianópolis - 2013 Maria Cristina Figueiredo Silva Período

Aquisição Da Linguagem

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Aquisição Da Linguagem - Livro-texto UFSC

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  • Aquisio da Linguagem

    Florianpolis - 2013

    Maria Cristina Figueiredo Silva8Perodo

  • Governo FederalPresidncia da RepblicaMinistrio de EducaoSecretaria de Ensino a DistnciaCoordenao Nacional da Universidade Aberta do Brasil

    Universidade Federal de Santa Catarina Reitora: Roselane NeckelVice-reitora: Lcia Helena Martins PachecoSecretrio de Educao a Distncia: Ccero BarbosaPr-reitora de Ensino de Graduao: Roselane Ftima CamposPr-reitora de Ps-Graduao: Joana Maria Pedro Pr-reitor de Pesquisa: Jamil AssreuyPr-reitor de Extenso: Edison da RosaPr-reitor de Planejamento e Oramento: Beatriz Augusto de Paiva Pr-reitor de Administrao: Antnio Carlos Montezuma Brito Pr-reitora de Assuntos Estudantis: Lauro Francisco Mattei Diretor do Centro de Comunicao e Expresso: Felcio Wessling MargottiDiretor do Centro de Cincias da Educao: Wilson Schmidt

    Curso de Licenciatura Letras-Portugus na Modalidade a DistnciaDiretor da Unidade de Ensino: Felcio Wessling MarguttiChefe do Departamento: Rosana Cssia KamitaCoordenadora de Curso: Sandra QuarezemimCoordenador de Tutoria: Josias HackCoordenadora Pedaggica: Cristiane Lazzarotto Volco

    Comisso EditorialTnia Regina Oliveira RamosSilvia Ins Coneglian Carrilho de Vasconcelos Cristiane Lazzarotto-Volco

  • Equipe de Desenvolvimento de Materiais

    Coordenao: Ane GirondiDiagramao: Raquel Darelli Michelon Tamira SpanholCapa: Raquel Darelli MichelonTratamento de Imagem: Raquel Darelli Michelon

    Copyright 2013, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordena-o Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras-Portugus na Modalidade a Distncia.

    Catalogao na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitria da Universidade Federal de Santa Catarina.

    Ficha Catalogrfica

    S586l Silva, Maria Cristina FigueiredoAquisio da linguagem / Maria Cristina Figueiredo Silva. Floria-

    npolis : LLV/CCE/UFSC, 2010. 156p. ISBN 978-85-61482-24-4 1. Aquisio da Linguagem. 2. Linguagem Estudo e ensino. 3. Educa-o infantil. 4. Cognio em crianas. I. Ttulo.

    CDU 801

  • SumrioUnidade A - O fascinante problema da fala e do

    comear a falar ........................................................... 91 Introduo: a fala do bicho homem e a fala dos outros

    bichos ...............................................................................................................11

    2 Certas caractersticas do crebro humano .........................................21

    3 Como aprendemos a falar? .......................................................................31

    3.1 As crianas aprendem por imitao? .........................................................31

    3.2 As crianas aprendem por estmulo-e-resposta? ..................................34

    3.3 As crianas formulam regras! ........................................................................38

    4 Concluses ....................................................................................................41

    Unidade B - Uma defesa consistente da abordageminatista .......................................................................43

    5 A universalidade do processo..................................................................45

    6 A sequencialidade do processo: estgios de aquisio .................49

    7 O argumento da pobreza do estmulo .................................................59

    8 O papel do input no modelo P&P ...........................................................67

    9 Concluses .....................................................................................................77

    Unidade C - Um problema especfico: aquisio dasinterrogativas no PB ...............................................79

    10 O que uma sentena interrogativa? ...............................................81

    11 Caractersticas do portugus brasileiro (PB) adulto ......................85

    11.1 A construo com inverso verbo-sujeito .............................................86

    11.2 A construo com () que ............................................................................91

    11.3 A construo com WH in situ ....................................................................94

    11.4 Resumo do captulo ......................................................................................97

    12 O que se observa na aquisio do portugus brasileiro .............99

    12.1 Com respeito inverso VS .......................................................................100

    12.2 Com respeito s construes com () que ...........................................102

  • 12.3 Com respeito a WH in situ.........................................................................104

    13 Concluses ................................................................................................107

    Unidade D - Aquisio e aprendizagem: algumas observaes sobre alfabetizao ........................................... 113

    14 Fala e escrita .............................................................................................115

    15 Certas noes bsicas que todo professor de lngua

    deve ter ..............................................................................................................121

    15.1 Noes de fonologia ...................................................................................125

    15.2 Noes de morfologia ................................................................................131

    15.3 Noes de histria da lngua e mudana lingustica .......................132

    16 Um pouco mais sobre lngua escrita e mudana

    lingustica .................................................................................................137

    16.1 O sujeito nulo .................................................................................................138

    16.2 Os pronomes clticos ...................................................................................139

    16.3 As oraes relativas .....................................................................................141

    17 Concluses ................................................................................................147

    Bibliografia bsica para estudos ............................................. 149

    Bibliografia consultada............................................................... 150

  • Apresentao

    E ste material foi desenvolvido para o seu estudo individual durante a disciplina Aquisio da Linguagem, do curso Letras-Portugus, mo-dalidade a distncia.A espinha dorsal da disciplina est desenhada no sumrio. Comearemos exa-minando algumas propriedades distintivas das lnguas humanas em compara-o com os sistemas de comunicao dos animais, certas caractersticas fsicas do crebro humano e finalmente discutiremos certas abordagens conhecidas para a aquisio da linguagem: a aquisio por imitao e a aquisio por es-tmulo-e-resposta; mostraremos neste ponto que a linguagem infantil possui caractersticas tais que nenhuma dessas abordagens pode explicar, e que mais adequado atribuir criana a capacidade de formular regras (inconsciente-mente, claro!) e aplic-las nos dados da lngua que ela est aprendendo.

    Por conta dessa capacidade infantil, vamos fazer uma longa defesa da hiptese inatista da linguagem, que supe que a criana est dotada geneticamente de um aparato que lhe permite aprender uma lngua humana. Essa a aborda-gem defendida por Noam Chomsky e seus seguidores, e o segundo captulo apresentar uma srie de argumentos em defesa dela. preciso esclarecer que, embora Chomsky afirme que as lnguas humanas so parte do cdigo gentico humano, parece evidente que as lnguas no so s gentica, porque se assim fosse no se esperaria que existissem diferentes lnguas. Alm disso, fato que, se falamos portugus com a criana, portugus que ela aprende, no chins. Portanto, inegvel, na aquisio da linguagem, o papel do input (isto , da lngua que a criana ouve sua volta e que lhe dirigida), e devemos por isso examinar atentamente quais so suas caractersticas e como interage com o aparato gentico na aquisio.

    por isso que o terceiro captulo se prope a analisar a aquisio de uma es-trutura especfica do portugus brasileiro, que a formao interrogativa. De-vemos comear olhando como so as interrogativas que os adultos falantes de portugus usam, e que anlise teramos para elas. O passo seguinte ver como as crianas traduzem esses padres adultos na sua prpria fala. O arcabouo terico usado aqui, tanto para a anlise das construes adultas quanto das construes infantis, a gramtica gerativa, que voc teve a oportunidade de aprender na disciplina de Sintaxe.

  • No ltimo captulo, falaremos brevemente da relao entre aquisio e apren-dizagem abordando principalmente um problema de grande interesse para os educadores: a alfabetizao. Veremos as hipteses que o aprendiz de lngua faz dependendo tambm da variedade do portugus brasileiro que ele fala. Essa discusso ser seguida por outra sobre certas diferenas entre o portugus brasileiro e o portugus que a criana aprende na escola. Esta tambm ser uma discusso breve, mas certamente abrir novos horizontes no seu entendi-mento, provvel presente ou futuro professor.

    Para que toda essa discusso no fique excessivamente terica, voc dever examinar o corpus de uma criana adquirindo portugus brasileiro, que ser disponibilizado via rede para todos os alunos. Esta atividade ser parte im-portante da sua nota, mas sobretudo ser parte fundamental da sua formao: voc ver que coisa surpreendente examinar os dados de produo infantil a partir de um ano e oito meses at aproximadamente quatro anos.

    Se voc j esqueceu o contedo da disciplina de Sintaxe, hora de ir procurar o seu material de estudo para recordar certos conceitos que sero teis aqui. Tenha-o por perto! Essa observao vale tambm para o material de Fontica e Fonologia do Portugus. Alm disso, a bibliografia que estamos tomando como bsica deve ser lida se o seu polo no dispe de todos os textos, ns vamos disponibiliz-los para voc em extenso .pdf e assim no haver motivo para voc no ler. Lembre: no ensino a distncia, o que o professor no est falando ali na sua frente exatamente o que voc deve ir lendo, para cobrir essa falta. verdade que as videoaulas ajudaro bastante, e os monitores tambm estaro disposio para ajudar no que for preciso, mas voc deve ler e disso no h como fugir! Por agora, voc pode comear a folhear este material pra ter uma ideia de que tipo de problema a aquisio da linguagem na primeira infncia coloca para as teorias lingusticas.

    Bom trabalho!

    Maria Cristina Figueiredo Silva

  • Unidade AO fascinante problema da fala e do comear a falar

  • Captulo 01Introduo: a fala do bicho homem e a fala dos outros bichos

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    1 Introduo: a fala do bicho homem e a fala dos outros bichos

    Nosso objetivo neste primeiro captulo entender que propriedades dife-renciam as lnguas humanas das linguagens dos demais animais. Lyons (1987)

    no fala de propriedades distintivas das lnguas humanas, mas, segundo ele, para um sistema ter a flexibilidade e a versatilidade que as lnguas humanas

    tm, preciso que ele tenha, em alto grau, as seguintes caractersticas: arbi-trariedade, dualidade, descontinuidade e produtividade (que a criatividade regida por regras, uma noo que ser crucial para o nosso estudo). Veremos

    que as lnguas humanas tm ainda a propriedade da recursividade e so inde-pendentes de estmulo (outra faceta da criatividade lingustica humana). Essas

    caractersticas das lnguas humanas sero comparadas com as que se encon-tram nas linguagens dos animais.

    uma observao j antiga a de que apenas o bicho homem fala. Claro, existem alguns animais capazes de articular sons muito parecidos com os dos seres humanos, como faz o papagaio, mas isso no exata-mente falar...

    Distinguir a fala de uma pessoa da fala de um papagaio muito f-cil: a primeira coisa que podemos observar para fazer a distino que as pessoas falam com pertinncia, ou seja, a fala delas adequada se-mntica e pragmaticamente ao contexto por exemplo, se uma pessoa est chegando de manh no trabalho no se espera que ela diga tchau ou boa-noite. Se ela fizer isso, todo mundo vai olhar para ela como se ela estivesse doente, sem dormir, com algum problema, n? O papagaio, por sua vez, pode perfeitamente falar boa-noite ao meio-dia, e nin-gum acha isso estranho. Na verdade, ns achamos muito engraado quando o papagaio fala com pertinncia. Portanto, no quesito falar com pertinncia o papagaio s emplaca por acaso! E por isso mesmo que podemos afirmar que, quando o papagaio repete algum enunciado em lngua humana, ele no est se comunicando, porque o que ele fala no faz nenhum sentido para ele, embora possa fazer para ns.

  • Aquisio da Linguagem

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    No entanto, mesmo sem ter a capacidade de falar como ns falamos, muitos animais tm sistemas sofisticados para se comunicar com seus pares, como o caso das abelhas, que por meio de uma dana so capa-zes de informar a que distncia da colmeia e em que direo fica a fonte para a extrao de plen. Aqui estamos falando de comunicao vera e prpria, porque as outras abelhas entendem o que a abelha danarina est informando. No entanto, por mais sofisticado que seja o sistema de comunicao das abelhas, tudo que ele capaz de fazer isso: indicar direo e distncia do alimento. A abelha no poder insuflar suas com-panheiras contra a abelha rainha, por exemplo, utilizando-se dele.

    Se a fala humana fosse apenas um sistema de comunicao, no ha-veria como (nem por que) distingui-la da linguagem de outros animais... Mas ela muito mais do que um sistema de comunicao, porque ns podemos fazer muito mais coisas com a linguagem do que simplesmen-te comunicar alguma informao para outros seres; ns podemos jurar, xingar, perguntar, adular, ameaar, ensimesmar, falar do que existe e do que no existe, de tempos idos ou que ainda no chegaram, fazer poe-sia e muito mais! Tudo isso s possvel justamente porque as lnguas humanas tm propriedades de uma tal natureza e em um grau tal que distinguem claramente qualquer enunciado humano da linguagem de qualquer outro animal. Que propriedades so essas?

    Segundo Lyons (1987), ns podemos fazer tudo isso com os siste-

    mas lingusticos humanos porque eles so flexveis e versteis. E a

    flexibilidade e a versatilidade observadas nas lnguas humanas se

    devem presena em alto grau de basicamente quatro proprieda-

    des: a arbitrariedade, a dualidade, a descontinuidade e a produtivi-

    dade. Vamos examinar cada uma dessas propriedades comparando

    as lnguas humanas com as linguagens dos animais.

    Desde Saussure, todos sabem que o signo lingustico arbitrrio. O que isso quer dizer exatamente? Quer dizer que a relao que se es-tabelece entre o som de certa palavra, por exemplo, e o seu significado fruto de conveno entre os falantes. No h nada no som da palavra

  • Captulo 01Introduo: a fala do bicho homem e a fala dos outros bichos

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    amor que faa pensar no significado que ela tem, porque amor partilha uma boa parte dos seus sons com mordaa e nem por isso os significa-dos delas se parecem, no verdade? Claro, existem casos em que h uma relao necessria entre o som e o significado da palavra com to-das as onomatopeias, do tipo coaxar (do sapo) ou miar (do gato) mas comparativamente so poucos os exemplos, e o fato de existir variao do que so as vozes animais entre as lnguas mostra que mesmo a tem um tanto de arbitrariedade na relao: o cachorro late [au-au] em por-tugus, mas [wau-wau] em japons! Para a grande maioria das palavras (primitivas), no possvel prever, dado o som da palavra, qual ser o seu significado.

    Mas como essa propriedade ajuda na flexibilidade e versatilidade das lnguas? Observe que, sendo arbitrria a relao entre sons e signifi-cados, nenhum grupo de sons est restrito a s poder ter um certo tipo de significado, ou seja, a nica restrio que pesar sobre a combinao dos sons sero as prprias leis internas que regem os sons (por exemplo, no combinar cinco consoantes seguidas) e no alguma outra neces-sidade exterior ao prprio sistema sonoro. E essa liberdade preciosa!

    O que podemos nos perguntar agora : as linguagens dos animais possuem a propriedade da arbitrariedade? Em que grau? Vamos exami-nar a linguagem das abelhas. Como se sabe, a abelha utiliza uma dana, executada numa das paredes da colmeia, para indicar s outras a loca-lizao e a qualidade de uma fonte de alimento. So trs os padres de dana, e o critrio que determina a escolha de um dos padres a dis-tncia da fonte com relao colmeia: escolhido o padro em crculo quando a fonte se encontra perto da colmeia, a no mais de 6 metros; o padro de dana em oito escolhido quando a fonte dista entre 6 e 18 metros da colmeia; e o padro em crculo cortado escolhido quando a fonte est localizada a mais de 18 metros da colmeia. Neste caso, a informao precisa da distncia se d pela velocidade com que a abelha executa o padro: quanto mais lenta a dana, mais distante a fonte de alimento, como mostra a figura a seguir:

  • Aquisio da Linguagem

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    Figura 1.1: Dana em crculo cortado, em que a distncia expressa pela velocidade com que

    a abelha executa o padro. Fonte: . Acesso em: 1 jan.

    2010.

    A direo escolhida pela abelha para desenhar esses padres na pa-rede da colmeia tal que o ngulo que faz com a vertical revela a dire-o com relao ao sol em que as abelhas devem voar para encontrar a fonte de alimento, como vemos na figura a seguir. Alm da distncia, a informao sobre a qualidade da fonte tambm faz parte da dana e se revela pela quantidade de vezes e vivacidade com que a abelha realiza o padro.

    Figura 1.2: Relao entre o ngulo em que a dana feita, na colmeia, e a posio do sol para

    indicao da fonte de plen. Fonte: Acesso em: 1 jan. 2010.

    1 s =

    1 km

    90 45 45

    90comida

    comida

    sol

    colmeia

  • Captulo 01Introduo: a fala do bicho homem e a fala dos outros bichos

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    Podemos perguntar agora: essas formas dos signos e os seus signi-ficados mantm entre si uma relao arbitrria ou no arbitrria? Apa-rentemente, a relao arbitrria, no mesmo? No h nada em dan-ar em oito ou danar em crculo que faa pensar em distncia menor ou maior, mesmo porque a dana em crculo est envolvida tanto na expresso da menor quanto da maior distncia. Tambm vivacidade ou quantidade de vezes que se repete o padro no tm nenhuma relao necessria com a qualidade da fonte de comida.

    No entanto, o fato de a dana ser mais lenta quando a distncia maior uma decorrncia direta das leis da fsica, correto? Vai demorar mais tempo pra chegar fonte, esse o ponto. Esse seria ento um as-pecto no arbitrrio do sistema das abelhas... Porm, o fato de existirem partes considerveis do sistema de comunicao das abelhas que so arbitrrias j nos faz considerar a arbitrariedade como uma propriedade talvez necessria, mas seguramente no suficiente para definir o carter especial das lnguas humanas.

    A segunda propriedade detectada por Lyons (1987, p. 32) em alto grau nas lnguas humanas a dualidade, isto , o fato de elas possurem dois nveis de estrutura, organizados de modo que os elementos de um nvel inferior se combinam e fornecem as unidades do nvel superior. Os estruturalistas chamavam a esta propriedade dupla articulao da linguagem. No caso das lnguas humanas, vemos que os sons ou, mais precisamente, os fonemas (elementos do nvel fonolgico) se combinam segundo certas regras e produzem unidades de um nvel mais alto, que so os morfemas. Este ltimo nvel (tambm chamado primeira arti-culao) mais alto porque ele tem uma caracterstica distinta do nvel anterior: as unidades do nvel morfolgico possuem significado, mas os elementos do nvel fonolgico (tambm chamado segunda articula-o) no possuem. evidente a contribuio da dualidade para a flexi-bilidade das lnguas: com um pequeno nmero de elementos, 30 ou 40 fonemas, e algumas regras de combinao, formamos alguns milhares de unidades maiores os morfemas e as palavras. Pense, por exemplo, nos fonemas /a/, /r/ e /m/. Quantas palavras voc consegue fazer com eles? Dadas as regras de combinao do portugus, que no permitem formar uma slaba s com /r/ e /m/, ns podemos pensar imediatamen-

  • Aquisio da Linguagem

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    te em algumas combinaes, considerando tambm as que no incluem todos os trs fonemas e as que repetem algum deles: mar, ar, m, rama, mama, ama, amar, etc. Deu pra ver agora a vantagem?

    As linguagens animais possuem essa propriedade? Bom, que todas elas possuem as unidades significativas, no h dvida. No entanto, no claro que essas unidades so formadas por elementos, que possam ser recombinados em outras unidades. Por exemplo, quando examinamos a linguagem dos pssaros, notamos a presena de dois tipos de enunciados distintos, os chamamentos e os cantos; os chamamentos parecem po-der veicular mensagens com significados do tipo perigo ou comida, e os cantos parecem mais ligados demarcao territorial e conquista da fmea. No entanto, no parece ser possvel mostrar que esses chama-mentos ou cantos tenham algum tipo de estrutura interna, isto , sejam compostos de unidades menores que, recombinadas em outros cantos ou chamamentos, possam veicular algum outro tipo de significado.

    A descontinuidade, uma caracterstica desses elementos secund-rios sobre os quais acabamos de falar, a terceira propriedade que vamos examinar. A ideia aqui muito simples: como voc aprendeu na disci-plina Fontica e Fonologia do Portugus, a diferena entre pata e bata se deve ao trao [+/-sonoro] da consoante inicial: /p/ uma consoante [-sonora] (isto , que no exibe vibrao das cordas vocais), enquanto /b/ uma consoante [+sonora] (isto , produzida com vibrao das cor-das vocais). Ora, perfeitamente possvel imaginarmos uma mquina que vai simulando o batimento gradual das cordas vocais de modo a produzir sons que so intermedirios entre /b/ e /p/. Vamos supor que a mquina comea com /p/ e vai aos poucos implementando a vibrao das cordas vocais de modo a obter /b/. O que acontece que inicialmen-te de fato ouvimos /p/ ali e, a certo ponto, passamos a identificar aquele som como /b/. Pode ser que a gente faa crticas qualidade daqueles /p/s que estvamos ouvindo e tambm dos /b/s que passamos a ouvir, mas o fato concreto que ns percebemos ou /p/ ou /b/, no outra coisa. Nossa percepo categorial: tudo ou nada!

    Talvez a vantagem da propriedade da descontinuidade das lnguas humanas no seja imediatamente visvel para voc, mas ela real. Em princpio, seria possvel que diferenas mnimas na forma correspon-

    Para rever este tema, reto-me: SEARA, Izabel Christi-

    ne. Fontica e fonologia do portugus. Florianpolis:

    LLV/CCE/UFSC, 2008.

  • Captulo 01Introduo: a fala do bicho homem e a fala dos outros bichos

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    dessem a diferenas mnimas de significado (apesar da arbitrariedade do signo lingustico). Contudo, no isso o que normalmente ocorre: a diferena de significado entre pata e bata no necessariamente maior ou menor do que a de qualquer outro par de palavras escolhidas aleato-riamente. E, numa situao de comunicao especfica, a probabilidade de ocorrncia de uma dessas palavras muito maior do que da outra, o que faz com que, mesmo em condies de comunicao muito degra-dadas, bastante provvel que a mensagem ainda possa ser fielmente passada. Viu agora qual a vantagem?

    Por outro lado, nos sistemas de comunicao animal, a variao contnua (que o contrrio da descontinuidade) bastante normal: por exemplo, sabe-se que, quando o pintarroxo est usando seu canto para demarcao de territrio, um canto mais forte e com mais contrastes marca maior deciso do pssaro em defender aquele espao e ali cons-truir seu ninho ou seja, a variao de intensidade do canto correspon-de diretamente variao na importncia que o pssaro d ao lugar.

    Finalmente, a quarta propriedade que Lyons (1987) atribui s ln-guas humanas a produtividade, isto , a possibilidade de construo e interpretao de novos sinais. Esta, sim, parece ser uma proprie-dade que distingue a fala humana dos sistemas de comunicao dos outros animais de maneira cabal, porque qualquer pessoa capaz de montar enunciados novos com base em elementos (e regras de combi-nao) conhecidos e tambm compreender sinais assim construdos. Por exemplo, se voc aprende (numa lngua estrangeira, digamos) as frases a menina gosta de chocolate e o jacar toma sorvete, no ser surpreendente ter a ideia de dizer o jacar gosta de chocolate e a menina toma sorvete, certo? Mas os animais nunca parecem ter essa ideia! O papagaio, por exemplo, pode saber muitas frases, mas ele jamais tenta recombinar parte dos elementos de uma delas com parte dos elementos de outra! A verdade que ele no capaz de reco-nhecer subpartes naquele todo. Tampouco, quando os animais usam a prpria linguagem, parece ser possvel para eles combinar partes de seus enunciados e obter outro enunciado que veicule uma mensagem diferente. Esse combinar e recombinar elementos parte fundamental da propriedade da produtividade, que se liga diretamente ao conceito de criatividade regida por regras.

  • Aquisio da Linguagem

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    Vamos frisar bem: criatividade neste contexto no tem o mesmo sentido que essa palavra tem no uso cotidiano, em que normalmente a associamos com capacidade artstica. Aqui estamos falando de uma propriedade da fala de qualquer ser humano, mesmo daquele sem quais-quer dotes artsticos mas estamos falando apenas dos seres humanos, s deles... Criatividade aqui quer dizer que ns no temos um estoque mental de sentenas que repetimos cada vez que precisamos falar de certo assunto. Ao contrrio, as sentenas que usamos a cada instante so absolutamente novas, no sentido de que aquelas formas especficas ns construmos no momento mesmo em que falamos e possivelmente no sero repetidas mais em nenhuma circunstncia. Reflita um momento e voc ver que s em circunstncias muito especficas repetimos uma frase (quando queremos deixar claro como foi mesmo que algum falou certa coisa) e que, no geral, se contarmos dez vezes uma estria, prova-velmente sero usados dez conjuntos de estruturas gramaticais distintas para expressar aquele mesmo contedo.

    certo que alguns sistemas de comunicao animal tambm so capazes de produzir mensagens novas, como o caso das abelhas, mas essas novas mensagens estaro sempre restritas a dizer fundamental-mente a mesma coisa: dada a posio do sol e a posio da colmeia, onde est a fonte da comida. O grau de complexidade deles no se as-semelha nem de longe ao das lnguas humanas: as abelhas no podem segmentar o discurso em unidades menores e recombin-las segundo certas regras, mas apenas reiterar certos padres um nmero indefinido de vezes, s isso.

    Ns tambm podemos reiterar certos padres, s vezes de forma muito trivial, simplesmente repetindo algum constituinte da sentena, como nas sentenas eu gosto muito de sorvete e eu gosto muito muito de sorvete. No entanto, mais do que reiterar padres, as lnguas humanas possuem outra propriedade que se chama recursividade e que permi-te, por exemplo, que adicionemos mais um elemento numa estrutura coordenada: a uma sentena como o Joo e a Maria saram podemos adicionar mais um elemento ao DP sujeito e obter o Joo, a Maria e o Pedro saram. Este j um tipo de operao mais sofisticado, porque no se trata simplesmente de repetir um padro, mas de aplicar uma regra vrias vezes, certo? Observe que a regra que nos permite fazer coorde-

    Voc deve se lembrar da disciplina de Sintaxe que DP o Determiner Phrase,

    isto , o sintagma deter-minante, que tem como ncleo um determinan-

    te (como os artigos, os demonstrativos, etc.) que

    seleciona como com-plemento um sintagma nominal. Para relembrar

    este e outros termos, veja: MIOTO, Carlos. Sintaxe do portugus. Florianpolis:

    LLV/CCE/UFSC, 2009.

  • Captulo 01Introduo: a fala do bicho homem e a fala dos outros bichos

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    naes exige que o elemento a ser coordenado seja do mesmo tipo dos que esto ali, aos quais ele vai se coordenar, e assim podemos encaixar outro nome prprio ali, mas no um verbo, por exemplo: * o Joo, a Maria e beijar saram.

    O fato de ser possvel aplicarmos algumas regras recursivamente que permite que encaixemos estruturas dentro de outras estruturas do mesmo tipo, como no caso da sentena [a Maria acha que o Paulo saiu], que pode vir a ser parte da sentena a Ana disse que [a Maria acha que o Paulo saiu]. D pra ver claramente a diferena com respeito ao que as abelhas fazem, n? Crucialmente, as abelhas no podem fazer fofoca, mas ns podemos: o Pedro falou que a Ana disse que a Maria acha...

    Ademais, o que se observa no geral nas mensagens animais que h um conjunto fixo de mensagens que podem ser transmitidas, normal-mente desencadeadas por fatores externos, como algum tipo de perigo, uma fonte de alimento ou um perodo de acasalamento. Ao contrrio, a linguagem humana independente de estmulos, uma caracterstica que se liga tambm diretamente ao conceito de criatividade.

    Vamos insistir nesse ponto, que constitui um diferencial entre as ln-guas humanas e as linguagens animais: o que quer dizer exatamente que a linguagem humana independente de estmulos? Quer dizer que a forma de um dado enunciado que produzimos em certa situao no prediz-vel pela situao na qual ele proferido (embora o seu contedo possa ser parcialmente previsvel em inmeras circunstncias). Assim, se entra um pssaro voando na sala, algum pode gritar que horror!, outra pessoa pode falar que gracinha! e outra ainda pode dizer por que deixaram a janela aberta?. O que no h a garantia de que algum produzir a palavra pssaro, ou seja, as lnguas humanas no funcionam como a lin-guagem dos animais, esta, sim, resposta direta a estmulos exteriores. Dito de outra forma: dado um estmulo de certa natureza, a forma da resposta dos outros bichos ser automtica, mas a nossa no.

    importante frisar que a criatividade humana regida por regras, o que quer dizer que os enunciados produzidos em qualquer lngua hu-mana possuem estrutura gramatical; exatamente esta propriedade que permite tambm a incrvel diversidade dos contedos das mensagens humanas, ao contrrio do que se v nas mensagens dos animais, em

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    nmero limitado e com contedo fixo. A criatividade regida por regras , por isso, outra maneira de falar de produtividade como definida por Lyons (1987).

    claro que o fato de no existirem linguagens animais com es-sas mesmas propriedades (ou em mesmo grau) das lnguas humanas no exclui, em princpio, a possibilidade de que os animais possam vir a aprender uma lngua humana. Os estudiosos do comportamento animal tambm j se perguntaram se, para alm de terem linguagens mais ou menos sofisticadas, alguns animais seriam capazes de adquirir alguma lngua humana. Os chimpanzs, por exemplo, tomaram parte em vrios experimentos como potencialmente capazes de aprender alguma lngua natural humana, em particular as lnguas de sinais, dada a destreza ma-nual que esses animais mostram e uma certa dificuldade para a articu-lao de sons que esses primatas tambm exibem, diga-se de passagem, um ponto ao qual voltaremos logo a seguir.

    O interessante que j foram feitos vrios experimentos e todos parecem chegar mesma concluso: os chimpanzs aprendem a usar si-nais para se comunicar com os seus instrutores humanos, mas bem pou-cos de seus enunciados so espontneos; na maioria das interaes, o instrutor que puxa conversa, e a resposta dos primatas mais da meta-de das vezes repete pelo menos parcialmente o enunciado do instrutor. Ora, esse tipo de comportamento muito diferente do da criana: ela espontnea nas suas interaes com os adultos e repete cada vez menos as palavras do adulto. Alm disso, a criana no tem um instrutor: os adultos falam normalmente com ela ou volta dela, e ela desenvolve uma gramtica compatvel com aqueles dados (e com muitos outros que pertencem lngua, na verdade). E, acima de tudo, a criana capaz de expressar pensamentos inusitados fazendo uso de mecanismos lingus-ticos sofisticados; por exemplo, quando vai tomar o leite, que est muito quente, e o adulto lhe diz: T quente!, ela, aos trs anos e onze meses, responde: Ento diquenta!. Voltaremos a esta questo em breve.

  • Captulo 02Certas caractersticas do crebro humano

    21

    2 Certas caractersticas do crebro humanoNeste captulo, vamos examinar mais de perto o crebro humano, que

    parece ser dotado de regies especficas responsveis pelas diferentes atividades humanas, incluindo a linguagem. Ao que tudo indica, o hemisfrio esquer-

    do do crebro que controla a linguagem. Veremos ainda que, embora nossa produo lingustica deva esperar alguns desenvolvimentos biolgicos iniciais, nossa percepo da linguagem desde o nascimento incrivelmente acurada e

    deve se efetivar dentro de certo perodo, pois do contrrio a lngua materna no poder mais ser adquirida com o nvel de perfeio com que os humanos

    tpicos a adquirem.

    Sem dvida, a parte do corpo humano mais misteriosa para ns ain-da o crebro. Uma das razes do mistrio que notamos no corpo hu-mano uma organizao que podemos chamar de modular: o corao faz uma coisa diferente da que o rim faz, tendo seus prprios princpios de funcionamento o corao bate, o rim no! ou seu prprio tipo celular diferente das clulas que observamos no estmago, por exemplo. Os r-gos interagem, mas so autnomos. No crebro, por outro lado, o que se observa uma constituio aparentemente uniforme: sob a caixa crania-na, se renem cerca de 10 bilhes de neurnios (tambm chamados em seu conjunto de massa cinzenta), formando a superfcie do crebro, que o crtex. Por baixo dele temos a massa branca, constituda por bilhes de fibras que ligam os neurnios entre si. Aparentemente, no h aqui nenhum tipo de modularizao como a que vemos no corpo.

    Mas nem tudo to diferente no crebro: por exemplo, ele exibe dois hemisfrios, algo que tambm vemos no corpo, onde temos alguns rgos em pares (os rins, os pulmes), assim como alguns membros (os ps, as mos, os olhos...). A coisa surpreendente, no entanto, que esses hemisfrios no so simtricos como os rgos do resto do corpo em geral so: o pulmo direito faz a mesma coisa que o pulmo esquerdo, assim como o p direito faz fundamentalmente a mesma coisa que o p esquerdo (ainda que um deles possa ser mais esperto do que o outro). No caso do crebro, no uma questo de esperteza, mas de diviso de tarefas, chamada tecnicamente de lateralizao: tudo leva a crer que o

  • Aquisio da Linguagem

    22

    lado esquerdo do crebro especializado em atividades como o pensa-mento matemtico e a linguagem, enquanto o lado direito se dedica percepo de formas e do espao, por exemplo. A estria mais interes-sante ainda: com respeito aos sons que ouvimos, o lado direito o lado do crebro que processa a msica, enquanto o lado esquerdo quem processa os sons da linguagem!

    Assim, contrariamente s aparncias, possvel dizer que o c-rebro tem regies especializadas para realizar certas tarefas. Essa hi-ptese, conhecida como hiptese localista, remonta segunda me-tade do sculo XIX, perodo em que tambm foi pela primeira vez relacionada a linguagem com o hemisfrio esquerdo. Distrbios de linguagem causados por alguma leso fsica, fruto de tumor ou cn-cer, acidente cardiovascular, traumatismo craniano, etc., so chama-dos de afasia. Um mdico chamado Paul Broca descobriu que leses na parte frontal do hemisfrio esquerdo causavam certos tipos de perturbaes no paciente: embora aparentemente compreendesse o que lhe era dito, a sua fala tinha forma telegrfica, com omisso de elementos gramaticais, como preposies e conjunes, e exibia di-ficuldades de cunho fonolgico (ainda que os rgos fonadores no tivessem sofrido nenhum dano). Esse tipo de problema de fala ficou conhecido como afasia de Broca (ou agramatismo), e a regio do crebro que parece controlar esses aspectos da linguagem chama-da zona de Broca. Outro mdico, chamado Karl Wernicke, tambm no sculo XIX, descobriu que leses na parte posterior do lbulo temporal esquerdo do crebro causavam outro tipo de deficincia: embora seus pacientes falassem sem qualquer problema de articu-lao e de construo sinttica das sentenas, seus enunciados eram no geral desprovidos de sentido, e os pacientes tambm tinham gra-ves problemas de compreenso. Assim, aparentemente leses nessa parte do hemisfrio esquerdo, conhecida hoje por zona de Wernicke, so responsveis por esse tipo de problema semntico na linguagem, conhecido como afasia de Wernicke.

    Desde a metade do sculo XIX, quando Broca e Wernicke apresen-taram seus trabalhos, at agora, muita pesquisa j se desenvolveu nessa rea. preciso salientar que as leses nunca so exatamente na mesma rea, muitas vezes so extensas ou mltiplas, de modo que o quadro de

  • Captulo 02Certas caractersticas do crebro humano

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    sintomas tambm pode ser muito mais vasto, o que quer dizer que o conhecimento que temos construdo nesse campo menos definitivo do que gostaramos. Um problema ainda mais srio, no caso das afasias, que no sempre claro se o que se perdeu foi a base neuronal onde se aloja de alguma forma o conhecimento ou se o que est perdido so as conexes entre os conhecimentos...

    Seja como for, para o nosso modesto propsito aqui, que o de mos-trar que a linguagem tem suporte material em certas reas do crebro, essas observaes gerais sobre o fenmeno bastam. No entanto, conve-niente chamar a ateno para uma coisa bem importante: vamos imagi-nar que os neurologistas conseguissem fornecer uma caracterizao cabal em termos de tipo celular e processos fsico-qumicos envolvidos na lin-guagem; ainda assim teramos que decidir que estatuto teriam conceitos, como sentena, grupo nominal, concordncia, verbo, que parecem ser necessrios para a caracterizao dos fenmenos gramaticais. Ser que esses conceitos tambm fazem parte da base fsica do crebro? Hum, difcil imaginar que uma rede de neurnios especfica s deixa passarem por ali informaes sobre concordncia, n? Pode ser que esse seja o caso, mas no parece que assim que funciona a estria... Por isso, inesca-pvel a referncia a outro conceito, o de mente, que seria o conjunto dos sistemas cognitivos, responsvel pelas propriedades abstratas que o cre-bro enquanto sistema fsico exibe, e onde se alojariam tambm conceitos abstratos, como o de representao, to caro ao estudo dos sistemas sim-blicos em geral. Na ltima unidade, discutiremos um pouco o que um sistema simblico e o conceito mesmo de representao. Por agora, basta frisar que, por essas razes, seguiremos Chomsky em toda a sua obra e usaremos daqui para frente o termo tcnico crebro/mente.

    Ns temos aprendido bastante tambm sobre a relao entre o c-rebro/mente e a linguagem humana observando o desenvolvimento das crianas e suas habilidades lingusticas desde o nascimento: embora a criana s manifeste alguma produo lingustica em torno dos seis meses de vida, certas capacidades perceptivas com respeito s lnguas humanas podem ser notadas com poucos dias de vida.

    Segundo Guasti (2002), pesquisas tm mostrado que bebs de qua-tro dias de vida podem distinguir sua lngua materna de uma lngua

  • Aquisio da Linguagem

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    estrangeira. Tambm possvel mostrar que crianas com alguns meses de vida so capazes de reconhecer contrastes fonmicos que existem nas lnguas do mundo, embora no existam na sua lngua materna por exemplo, criancinhas japonesas podem distinguir entre /r/ e /l/, uma coisa que os adultos japoneses no conseguem fazer, j que esse contras-te fonmico no existe no japons.

    Como que os pesquisadores descobriram essa capacidade infan-til? Ah, eles tm mtodos especiais para fazer isso. Um desses mtodos consiste em colocar na chupeta do beb um sensor capaz de enviar a um computador informaes acerca da velocidade de suco do beb. O que os pesquisadores perceberam que, quando o beb est quietinho no ber-o, ele chupa a chupeta numa certa velocidade (isto , com certa taxa de suco). No entanto, to logo acontece alguma coisa diferente no ambien-te (comea a tocar uma msica, por exemplo), a taxa de suco do beb aumenta. Se por algum tempo a mesma msica continua tocando, o beb vai se desinteressando, e a taxa de suco cai (tecnicamente, essa a fase de habituao). Se acontece de mudarmos a msica, novamente o beb se interessa e volta a aumentar a sua velocidade de suco. Muito criativo esse mtodo, no mesmo? E os resultados dele so bem confiveis!

    Claro, os pesquisadores sempre fazem a pesquisa com um grupo de controle ao lado do grupo testado para saber se a modificao feita no ambiente mesmo a razo da mudana da velocidade de suco. Um desses experimentos, feito por Jacques Mehler e seus colaborado-res em 1988 e reportado por Guasti (2002, p. 27), fez bebs aprendizes de francs escutarem enunciados do russo. Passada a fase de habituao (isto , quando a taxa de suco dos bebs caiu), uma parte dos bebs comeou a ouvir enunciados em francs, enquanto a outra parte (o grupo de controle) continuou ouvindo enunciados em russo. Ora, o que se veri-ficou foi que a taxa de suco dos bebs que continuaram ouvindo russo no mudou, enquanto que a taxa de suco dos que comearam a ouvir francs subiu, o que mostra que os bebs foram capazes de distinguir as duas lnguas os pesquisadores tiveram o cuidado de pedir a um mesmo falante, um bilngue perfeito, para gravar os textos nas duas lnguas.

    Voc deve estar pensando: claro, o beb que vai ser falante de francs j ouviu um monte de francs quando ele estava na barriga da

    MEHLER, J. et al. A precursor of language

    acquisition in young infants. Cognition, v. 29, p.

    144-178, 1988.

  • Captulo 02Certas caractersticas do crebro humano

    25

    me, por isso que ele reconhece a lngua. No entanto, note que dentro do tero materno o beb est mergulhado no lquido amnitico e ouve to bem quanto ns ouvimos o que diz o alto-falante do clube quando estamos com a cabea dentro dgua na piscina um monte de barulho. Alm do mais, os pesquisadores mostraram que os bebs podem distin-guir entre lnguas que no so conhecidas, desde que elas pertenam a grupos com propriedades rtmicas diferentes (como o russo e o francs, mas no o holands e o ingls, por exemplo).

    possvel que a nossa capacidade de percepo, embora inegavel-mente parte do nosso crebro/mente, no seja especfica para apren-dermos uma lngua natural. Todavia, inegvel que fazemos uso dela para desenvolvermos nossas habilidades lingusticas. E, ao lado dessa capacidade, temos outra, essa, sim, bem especfica s nossas produes

    lingusticas, que comeam na verdade bem mais tarde, no antes dos seis meses, quando o beb comea a balbuciar. Segundo Guasti (2002), at mais ou menos quatro meses, o aparato vocal do beb muito pa-recido com o do chimpanz (e esse o problema de articulao que ele

    O que mais surpreendente, no entanto, que a incrvel habilidade

    que os recm-nascidos mostram para distinguir lnguas e contrastes

    fonmicos dentro de uma mesma lngua (seja ela sua lngua ma-

    terna ou no) desaparece em poucos meses. Assim, o beb japons

    que distinguia /l/ e /r/ aos seis meses, aos doze no mais capaz de

    faz-lo. Isso sugere que a experincia crescente com o que ser a

    sua lngua materna na verdade funciona como um guia para uma

    seleo, dentro do inventrio de sons humanos possveis, daqueles que sero relevantes para a criana falar a sua lngua materna. Por-

    tanto, muito ao contrrio do que poderia parecer, a criana quando

    entra em contato com uma lngua especfica est na verdade aban-

    donando a potencialidade de falar todas as lnguas do mundo para

    ficar com uma nica lngua: aquela que ela ouve ao seu redor! Note

    bem quo surpreendente o que estamos falando: aprender uma

    lngua quer dizer desaprender todas as outras para poder con-

    struir o conhecimento especfico sobre a fonologia de uma lngua e

    poder assim acessar o conhecimento sobre o lxico!

  • Aquisio da Linguagem

    26

    tem do qual falamos antes): a laringe mais alta, a garganta menor, o trato vocal mais estreito; alm disso, a lngua tem um formato dife-rente do formato adulto humano. A partir dos quatro meses, o aparato vocal infantil comea a sofrer uma mudana que s vai se completar em torno dos trs anos, uma mudana que parece ser importante para que a criana venha a falar.

    Figura 2.1: Aparato vocal humano infantil e adulto

    Contudo, como nota Guasti (2002, p. 47), no devemos dar im-portncia excessiva maturao do aparato vocal em si, porque crianas surdas comeam mais ou menos na mesma idade a balbuciar com as mos (claro! A lngua que elas podem adquirir uma lngua de sinais!),

    o que mostra que, por trs do balbucio, est em jogo mais do que a capacidade de articular sons (ou o domnio motor). E isso o que mui-tos pesquisadores tm tentado mostrar: nos primeiros meses de vida, o crebro humano sofre o processo que temos chamado lateralizao, ou seja, cada um dos hemisfrios passa a se dedicar a um conjunto de funes, e apenas quando parte considervel desse processo j ocorreu ou est em marcha que a linguagem pode comear a se desenvolver.

    (a)

    (b)Laringe

    Epiglote

    LnguaCavidade Nasal

  • Captulo 02Certas caractersticas do crebro humano

    27

    A maior evidncia para essa hiptese do perodo crtico vem de casos dramticos reportados na literatura de crianas isoladas sem qual-quer contato social ou lingustico. Costa e Santos (2003) reportam um desses casos, relatado por Curtiss (1977); a menina Genie at os doze anos permaneceu afastada de qualquer interao lingustica. Quando resgatada dessas condies, a menina foi assistida por mdicos e lin-

    guistas, que tentaram ensin-la a falar. Genie chegou a um estgio em que conseguia se comunicar, mas falar fluentemente nunca foi possvel para ela. Por qu?

    Segundo Menuzzi (2001), o estudo de Lenneberg (1967) uma ten-tativa de responder a essa pergunta. Para Lenneberg, se est correta a hiptese inatista de Chomsky (1965) de que temos um rgo mental es-pecfico para a (aquisio da) linguagem vamos chamar esse rgo de gramtica universal (GU) ento devemos ver nesse rgo os mesmos tipos de processos biolgicos (como maturao, recuperao em caso de acidentes, etc.) que vemos em outros rgos.

    Trabalhando com casos de afasia traumtica, a pesquisa de Lenneberg se centrou nos padres de recuperao da fala, que so basicamente trs: se a leso ocorre em crianas no perodo inicial da aprendizagem (at os dois ou trs anos), o que se v na recuperao a criana reiniciar do comeo o processo de aquisio, fazendo o caminho mais rapidamente e atingindo proficincia tima em pouco tempo; se a leso ocorreu em crianas entre mais ou menos os quatro anos at o incio da puberdade, o que se observa a restaurao do sistema (e no o seu reincio), sendo a recuperao completa, mas bem mais lenta,

    CURTISS, S. Genie: a psycholinguistic study of a modern-day wild child. New York: Academic Press, 1977.

    LENNEBERG, E. Biological fondations of language. New York: John Wiley & Sons, 1967.

    E a linguagem no s pode como deve se desenvolver nesse pe-

    rodo inicial da vida humana. Uma observao importante a de

    que existe o que se convencionou chamar perodo crtico para a

    aquisio da primeira lngua, que o incio da puberdade; at esse

    momento, a criana deve ter contato com falantes de alguma lngua

    natural, sob pena de no mais ser possvel adquirir uma lngua com

    a perfeio com que a adquirem crianas expostas a uma lngua hu-

    mana antes desse momento.

  • Aquisio da Linguagem

    28

    podendo se estender por anos. Contudo, se a leso ocorreu no final da puberdade ou j na fase adulta, a restaurao do sistema bastante restrita, podendo deixar sequelas irrecuperveis. Para Lenneberg, esses padres podem ser explicados pela hiptese de que o perodo crtico para a aquisio da linguagem vai dos dois anos at o incio da puberdade, perodo em que a GU est plenamente ativa.

    A esses marcos temporais de padres de recuperao, Lenneberg (1967) identifica correlatos observveis no desenvolvimento fsico do crebro. Considerando fatores, como o peso do crebro, a densidade neuronal, o coeficiente de clulas cinzentas, a composio qumica e a potncia das ondas eletrofisiolgicas do crebro, possvel fazer a seguinte associao: entre o nascimento e os dois ou trs anos de idade, o crescimento do crebro acelerado (passa de cerca de 30% de seus

    valores adultos para cerca de 70-80% desses valores); a partir dos trs ou quatro anos at o incio da puberdade, o crescimento do cre-bro progride, mas muito mais lenta-mente, atingindo cerca de 95% do valor adulto, em torno dos doze ou treze anos, progredindo pouco du-rante a puberdade, quando atinge seu valor adulto final. So esses da-dos que se veem no grfico ao lado.

    Grfico 2.1: Anlise de maturao do

    crebro segundo a idade cronolgica (extrado e

    adaptado de Lenneberg. 1967).

    Os resultados de Lenneberg (1967) j foram contestados, no senti-do de que parece haver vrios perodos crticos, dependendo da habili-dade que est em discusso por exemplo, como vimos anteriormente, a perda da capacidade de distino de contrastes fonolgicos parece acontecer muito cedo. Contudo, eles apontam um fato importantssi-mo: o desenvolvimento da linguagem como um todo ocorre par a par com o desenvolvimento do crebro e, quando o crescimento do crebro estaciona, o mecanismo de aquisio da linguagem tambm estaciona,

    20

    40

    60

    80

    100

    120

    00 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

    Juntar palavras

    Habilidade de andar

    Habilidade de sentar

    Idade cronolgica

    Normal

    Atrasado

    Linguagem estabelecida

    Mat

    ura

    o d

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    rebr

    o (p

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    ntag

    em d

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    alor

    es d

    o ad

    ulto

    )

  • Captulo 02Certas caractersticas do crebro humano

    29

    no permitindo mais a aquisio de um lngua com a mesma rapidez, facilidade e perfeio com que a primeira lngua foi aprendida. Isso tem desdobramentos srios na aquisio da lngua de sinais por crianas surdas. Estudos como o de Newport (1990), citados por Avram (2003), mostram que, quanto mais tarde se d a exposio lngua de sinais, menos nativo o domnio e o uso dessa lngua pela criana surda, o que parece confirmar a abordagem geral de Lenneberg. Pesquisas que esto em curso nessas reas nos ajudaro no futuro a entender melhor a rela-o entre crebro/mente e linguagem.

    Temos casos curiosos de pessoas com problemas cognitivos graves que falam bem e, por outro lado, casos de pessoas perfeitamente nor-mais sob o ponto de vista cognitivo que tm srias limitaes lingusti-cas. Avram (2003) reporta o estudo de Yamada (1990) sobre uma jovem mulher chamada Laura, com QI abaixo de 40, que no sabe contar, no consegue dizer as horas, nem amarrar os sapatos; em sua produo lin-gustica, contudo, aparecem sentenas complexas, como oraes relati-vas (o bolo que a Maria fez) e complementos infinitivais (eu quero sair),

    sentenas com encaixamento mltiplo (a Maria disse que o Pedro pensa que...) ou passivas (o bolo foi feito por mim). Ela emprega corretamente tempos verbais e marcas de concordncia, advrbios temporais, etc. verdade que a sua produo supera em muito a sua compreenso, j que em situao de teste Laura no parece ser capaz de compreender muitas das estruturas produzidas. Este caso nos sugere que o conhecimento de certas reas da gramtica (a fonologia, a morfologia e a sintaxe) separa-

    NEWPORT, E. Maturational constraints on language learning. Cognitive Science, v. 14, p. 11-28, 1990.

    YAMADA, J. Laura: a case for the modularity of language. Cambridge, MA: MIT Press, 1990.

    Nesta nossa discusso, preciso acrescentar ainda uma observao

    sobre uma conexo feita normalmente no senso comum entre inte-

    ligncia e linguagem. comum pensarmos que uma pessoa que fala

    bem muito inteligente e tambm que uma pessoa muito inteligente

    deve necessariamente falar bem; ao contrrio, as pessoas que no fa-

    lam bem nos parecem imediatamente pouco inteligentes e tendemos

    a pensar que algum com srios problemas mentais, por exemplo, ter

    algum tipo de dificuldade com a linguagem. A ligao entre essas duas

    coisas, no entanto, est longe de ser direta.

  • Aquisio da Linguagem

    30

    do do conhecimento de outras reas (como a semntica e a pragmtica) e que eles podem se relacionar de maneiras bem diferentes com outras habilidades no lingusticas. Na verdade, aqui temos alguma evidncia para a dissociao entre linguagem e outras habilidades cognitivas.

    Por outro lado, so conhecidos casos em que os indivduos mostram pontuao apropriada para a idade em testes de inteligncia no verbais (QI de 85 ou mais), no tm problemas neurolgicos de nenhuma esp-cie nem problemas de surdez, mas apresentam severos dficits especi-ficamente na habilidade lingustica. Gopnik (1990), tambm reportada por Avram (2003), estuda o caso de uma famlia de 30 pessoas, das quais 16 mostram o mesmo tipo de dficit lingustico. Fundamentalmente, o problema reside no manejo de regras morfofonmicas e, portanto, em ingls aparecero na distribuio da morfologia de passado (-ed nos ver-bos regulares), na concordncia verbo-sujeito (-s na terceira pessoa do singular do presente do indicativo), no uso do morfema de plural e tam-bm no uso de aspecto gramatical. Novamente, estamos frente a evidn-cias de que a linguagem est dissociada de outras habilidades cognitivas.

    Finalmente, uma ltima palavra sobre o assunto que iniciou este captulo e que est diretamente conectado com o pargrafo precedente: a modularidade do crebro/mente. Vimos que, embora o crebro apa-rentemente no exiba mdulos como o resto do corpo, o fato de ha-ver lateralizao e especializao dos hemisfrios cerebrais e, dentro do mesmo hemisfrio, de regies que processam diferentes tipos de infor-mao, incluindo aquelas ligadas linguagem, sugere que a organiza-o do crebro/mente tambm modular. Se a linguagem um mdulo dentro do crebro/mente, de se esperar que o seu funcionamento seja autnomo com respeito aos outros sistemas cognitivos e sensoriais de crenas, desejos, etc. Podemos pensar ainda que a organizao interna da prpria linguagem modular semelhana do que vemos no cora-o, por exemplo, que um mdulo no corpo, organizado internamente em mdulos: o ventrculo direito, o aurculo esquerdo, etc. A importn-cia dessa observao ficar mais clara medida que for progredindo o nosso estudo sobre a aquisio da linguagem na perspectiva inatista.

    GOPNIK, M. Feature blindness: a case study.

    Language Acquisition, v. 1, p. 139-164, 1990.

  • Captulo 03Como aprendemos a falar?

    31

    3 Como aprendemos a falar?Neste captulo, vamos analisar as vrias hipteses do senso comum sobre

    a aquisio da linguagem. A mais popular entende que as crianas aprendem por imitao dos adultos, j que afinal elas aprendem a falar a lngua que os

    adultos falam em torno delas. Tambm comum pensarmos que os adultos podem, por algum mecanismo de castigo e recompensa, fazer com que a aquisi-o da linguagem se desenvolva melhor nas crianas. No entanto, veremos que

    h um conjunto de fatos observveis na aquisio que mostram que as crian-as, no que tange gramtica, no esto nem imitando nem sendo estimuladas de alguma maneira a atingir certo conhecimento, mas esto formulando regras

    e aplicando-as.

    Vamos examinar agora detidamente vrias hipteses sobre como a criana chega a adquirir uma lngua perfeitamente, sem instruo espe-cfica e numa velocidade espantosa. Entre os dois e os quatro anos, no espao de dois anos, portanto, ela se torna falante proficiente de qual-quer lngua, uma coisa que ns, em qualquer idade depois de adultos, no conseguimos nem com muita dedicao!

    importante discutirmos as teorias que fazem parte do senso co-mum para vermos que, apesar de aparentemente muito simples e razo-veis, essas teorias no do conta de certos aspectos muito interessantes da fala das crianas em fase de aquisio.

    3.1 As crianas aprendem por imitao?

    Para explicar a aquisio da linguagem, a teoria mais popular (e que tem amparo cientfico em teorias como o comportamentalismo) talvez seja a da imitao. As crianas aprendem imitando o que os adul-tos dizem. O maior argumento para essa hiptese o fato de a criana aprender russo se os adultos ao seu lado falam russo, mas aprender por-tugus se os adultos que a rodeiam falam portugus.

    preciso, antes de mais nada, fazer uma observao sobre o que uma lngua. Tendemos a pensar que o vocabulrio o centro da lngua, porque para fins comunicativos verdade que devemos ser capazes de

  • Aquisio da Linguagem

    32

    nomear as coisas, por exemplo. Mas verdade tambm que, sem saber, por exemplo, quais so os princpios que norteiam a ordem das palavras numa lngua, no possvel algum se fazer compreender nela, mesmo conhecendo seus itens lexicais. Imagine que voc aprende em japons as palavras relativas a o menino, ver e a menina. Como que voc diz em japons que o menino viu a menina? Sem saber pelo menos os rudimentos da gramtica, isto , a ordem que a lngua escolhe para ordenar seus constituintes (sem falar em como que essa lngua faz para veicular a ideia de tempo passado!), sabendo apenas os itens lexicais, no claro que voc vai conseguir dizer o que voc quer dizer em particular, copiar a ordem do portugus pode resultar em algo incom-preensvel ou pode veicular o sentido exatamente oposto, ou seja, o de que foi a menina que viu o menino. Portanto, aprender uma lngua muito mais (mas muito mais mesmo!) do que saber simplesmente as palavras da lngua, ainda que essa seja uma parte importante da estria, sobretudo quando falamos do aspecto comunicativo.

    Isto posto, podemos voltar nossa discusso sobre a criana apren-der a falar por imitao. Que as palavras devem ser imitadas, disso no h dvida, porque, como j discutimos, o signo lingustico arbitrrio e, portanto, no h como fazer uma previso do que uma palavra signi-ficar com base simplesmente nas suas propriedades sonoras. Algum que j fala a lngua deve nos dizer qual a conveno adotada ali. To-davia, observe que a criana imitar com perfeio a sequncia sonora globalizao no quer dizer que ela efetivamente incorporou essa pala-vra no seu lxico, porque se ela ainda no tem a construo conceitual que permite usar essa palavra adequadamente, esta palavra ainda no parte da sua lngua, certo?

    Mas o que dizer sobre a gramtica da lngua? razovel dizer que a criana aprende a gramtica tentando repetir o que ela ouve o adulto falar?

    Vrios fatos mostram que esse no deve ser o caso. Primeiramente, segundo Guasti (2002), diversos pesquisadores j fizeram um levanta-mento cuidadoso do tipo de estrutura gramatical que os pais usam com as crianas, e os resultados mostram que majoritariamente as sentenas dos pais ou so ordens (v pegar o seu casaco!) ou so perguntas (o que que voc quer?), e apenas 25% das sentenas usadas por eles so declara-

  • Captulo 03Como aprendemos a falar?

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    tivas simples; porm, os primeiros enunciados das crianas so em sua grande maioria declarativas simples.

    Em segundo lugar, notvel, mesmo para quem no pesquisador em aquisio da linguagem, que as crianas, praticamente a partir do mo-mento que comeam a colocar duas palavras juntas, fazem combinaes que no se encontram necessariamente nos enunciados proferidos ante-riormente pelos adultos. Dito de outro modo, a criana desde muito cedo criativa nos seus enunciados, produzindo sentenas novas que ela nunca ouviu antes e, portanto, ela no pode estar copiando do adulto.

    Ainda mais interessante a observao de que a criana produz frases que definitivamente no se encontram na fala do adulto. Por exemplo, todas as crianas aprendendo portugus a certo ponto produ-zem sentenas como eu no sabo ou eu fazi isso sozinha, que so formas inexistentes no portugus brasileiro adulto. Podemos alegar que esses erros infantis so tentativas frustradas de produzir as formas corretas. Isso verdade para certo tipo de erro infantil: por exemplo, crianas at certa idade tm dificuldade de produzir sons como /pr/ e assim as crianas pequenas produzem a palavra prato como produzem a palavra pato. No entanto, esse no o caso com as formas sabo e fazi, j que no h nenhuma dificuldade fonolgica especial na produo de sei e fiz, formas que, alis, comum a criana ter produzido meses antes de co-mear a produzir as formas inexistentes na fala adulta. Mais pra frente, vamos discutir longamente esse problema morfolgico.

    Assim, se verdade que os dados lingusticos primrios so neces-srios, parece claro tambm que eles no so suficientes e que algum tipo de mecanismo de outra ordem necessrio para responder por esse

    A hiptese da imitao como uma explicao plausvel para a aqui-

    sio da linguagem esbarra em uma dificuldade insupervel, que

    ns podemos formular da seguinte maneira, de acordo com Raposo

    (1992): o sistema lingustico que a criana vai ter no final do processo

    de aquisio, capaz de dar juzos de gramaticalidade sobre sentenas

    da sua lngua ou dizer que interpretaes uma sentena pode ou no

    ter nessa lngua, que afinal o conhecimento que temos da gramtica

    da nossa lngua materna como adultos, qualitativa e quantitativa-

  • Aquisio da Linguagem

    34

    pulo do gato que a criana d, segundo a hiptese inatista. Voltaremos a esse ponto mais adiante.

    3.2 As crianas aprendem por estmulo-e-resposta?

    Outra hiptese que j foi aventada para explicar a aquisio da lin-guagem pelas crianas a hiptese comportamentalista (ou behavioris-ta), que foi formulada especificamente para o aprendizado de lnguas no livro Verbal behavior, de B. F. Skinner, publicado no final da dcada de 50 do sculo XX. Grosso modo, segundo essa perspectiva, a criana aprenderia sua lngua materna porque seria estimulada positivamen-te quando produzisse enunciados corretos e negativamente quando os enunciados contivessem algum erro. O pressuposto por trs dessa hi-ptese de que os pais ou outros adultos que cuidam da criana esto sistematicamente monitorando a fala dela e sempre premiando os seus acertos ou corrigindo os seus erros, quando eles ocorrem.

    O que se observa, todavia, nos dilogos entre pais e crianas que, quando o adulto explicitamente corrige a forma do enunciado infantil, poucas vezes a criana lhe d ateno, no sentido de efetuar a correo do que est errado na sua produo. Aparentemente, ela no percebe exatamente qual o erro. E a verdade que o adulto poucas vezes cor-rige a forma do que a criana diz; normalmente, ele corrige o contedo.

    mente muito mais complexo do que o sistema simples que caracteri-

    za os dados primrios a partir dos quais o sistema final foi adquirido.

    Por exemplo, todos ns sabemos que no possvel usar a forma c

    como objeto de um verbo (*ele v c todo dia de manh), mas apenas

    em posio sujeito (c v ele todo dia de manh), e ningum nunca

    nos instruiu sobre isso. Note bem: a criana s tem acesso a dados

    positivos, isto , a sentenas gramaticais da lngua (como a frase bem

    formada anteriormente), mas chega a saber quais so as impossibili-

    dades gramaticais nessa lngua (como a sentena malformada ante-

    riormente). Voc v o abismo que tem a no meio?

    SKINNER, B. F. Verbal behavior. New York:

    Appleton-Century-Crofts, 1957. Voc aprender

    mais sobre as pesquisas de Skinner na disciplina Psicologia Educacional.

  • Captulo 03Como aprendemos a falar?

    35

    Assim, se a criana diz uma frase como ningum no gosta de mim, o adulto intervm dizendo: no verdade, meu amor, todo mundo gosta de voc. O fato de no ser possvel esse tipo de dupla negao no portugus passa despercebido. Alm do mais, a criana normalmente premiada quando diz a verdade e punida quando mente, por exemplo, indepen-dentemente da qualidade gramatical das suas asseres. O adulto est mais preocupado em educar do que em ensinar lngua.

    Adicione-se ainda que no s os erros gramaticais que a criana faz no so todos corrigidos como tambm comum que eles sejam vistos com encanto pelos pais, que inclusive adotam aquela maneira de pro-nunciar uma palavra ou de falar certa frase em outras interaes. Ora, se a criana estivesse na dependncia da correo para chegar a formular sentenas gramaticais em sua lngua materna, com este tipo de inter-veno dos adultos ela no chegaria jamais a saber que a sua formulao contm algum erro. E mesmo quando o adulto corrige uma frase apre-sentando uma reformulao dela, a criana no chega a saber a razo do erro, o que elimina o valor de aprendizagem de qualquer correo desse tipo que eventualmente possa ser feita.

    notvel tambm a dificuldade que a hiptese comportamentalista teria para lidar com o fato de a criana ser capaz de produzir senten-as inteiramente novas para as quais ela no recebeu, portanto, nenhum tipo de reforo. Evidentemente, os defensores dessa hiptese, incluin-do o prprio Skinner, atribuem essa capacidade a mecanismos gerais da inteligncia humana, como a analogia. Uma generalizao de cunho analgico permitiria que a criana construsse sentenas nunca ouvidas nem ditas com base naquelas ouvidas e ditas e para as quais ela recebeu reforo positivo.

    No muito claro que propriedades esse mecanismo de generaliza-o analgica tem que ter para permitir que, a partir unicamente de in-formaes positivas, a criana construa um conhecimento negativo, isto , um conhecimento sobre o que no possvel na lngua. Raposo (1992, p. 41-43) apresenta uma discusso de alguns exemplos do portugus (europeu) que mostra bem qual o problema. Considere as sentenas em (1) a seguir, que exibem a forma se em duas de suas funes:

  • Aquisio da Linguagem

    36

    (1)

    a) Nesta penitenciria, os presos agridem-se frequentemente.

    b) Nesta penitenciria, agridem-se os presos frequentemente.

    A sentena (1a) tem primariamente a interpretao anafrica rec-proca para se isto , para cada par {x, y} do conjunto de presos, x agride y (a interpretao reflexiva, segundo a qual cada membro x do conjunto de presos agride x pragmaticamente menos plausvel...); nesse caso, a forma se cumpre o papel gramatical de objeto do verbo. A sentena (1b), por outro lado, tem a interpretao de que um conjunto indeterminado de pessoas (que pode mesmo ser uma s pessoa) agride os presos, caso em que a forma se corresponde ao sujeito da orao e similar a uma orao como nesta penitenciria algum agride os presos frequentemente.

    Mais marginalmente, a sentena (1a) pode significar tambm que algum agride os presos, desde que se entenda que assim como nesta peni-tenciria, os presos tambm est topicalizado, sendo a interpretao, por-tanto, prxima a algo como nesta penitenciria, os presos, eles so agredi-dos frequentemente. Todavia, (1a) no pode ter a interpretao em (2), isto , a forma se no pode ter interpretao indeterminada correspondendo ao objeto, ainda que pragmaticamente essa interpretao seja possvel:

    (2)

    Nesta penitenciria os presos agridem pessoas (indeterminadas) frequentemente.

    Isso quer dizer, segundo Raposo (1992), que a gramtica do por-tugus permite a interpretao indeterminada para a forma se quando ela se refere ao sujeito da sentena, mas no quando se refere ao obje-to. Contudo, essa impossibilidade no facilmente explicvel se temos em mos um mecanismo de generalizao por analogia, j que a lngua disponibiliza o par de sentenas em (3), e seria razovel a criana, com base na semelhana entre (3a) e (4a), construir por analogia o par em (3b) e (4b):

    (3)

    a) Nesta penitenciria, algum agride os presos frequentemente.

  • Captulo 03Como aprendemos a falar?

    37

    b) Nesta penitenciria, os presos agridem algum frequentemente.

    (4)

    a) Nesta penitenciria, agridem-se os presos frequentemente.

    b) # Nesta penitenciria, os presos agridem-se frequentemente.

    Se existe uma analogia em termos de significado da forma se com interpretao indeterminada e do assim chamado pronome indefinido algum, e se as crianas adquirem conhecimento sobre a distribuio de algum antes de adquirirem esse conhecimento com respeito ao se indeterminado (uma suposio razovel para a hiptese comportamen-talista, que entende a maior frequncia de aparecimento de uma forma como determinante para a aprendizagem precoce dessa forma), ento a generalizao analgica deveria levar a criana a aceitar (4b) como uma possibilidade da gramtica, um erro que as crianas jamais cometem.

    Para alm da generalizao com base em analogia, os comporta-mentalistas, segundo Crain e Lillo-Martin (1999), tambm entendem que os falantes aprendem a construir as sentenas gramaticais de sua lngua porque eles adquirem o hbito de colocar palavras e grupos de palavras em sequncia. Por meio da experincia, aprendemos quais pa-lavras podem comear uma sentena, quais palavras podem seguir-se a essas primeiras e assim por diante. Por exemplo, nosso hbito construir uma sentena comeando por um determinante definido como a, por exemplo, seguido de um nome feminino como menina, por exemplo, que por sua vez pode ser seguido por um verbo. Sob esse prisma, a sen-tena vista como o encadeamento de palavras, de modo que uma pala-vra funciona como estmulo para a palavra seguinte e assim por diante. Observe que, definido o encadeamento deste modo, supostamente no h relao entre palavras que no so vizinhas.

    possvel evidentemente ajustar esse mecanismo para que uma palavra seja o estmulo para as duas seguintes ou mesmo para as cinco seguintes. No entanto, mesmo se for esse o caso, no ser nada simples explicar a concordncia do sujeito com o verbo principal numa sentena como os palhaos que o Pedro contratou para animar a festa do filho dele no vieram. O ponto um s: a sintaxe das sentenas no funciona com base na ordem linear estrita, mas com base na organizao hierrquica

    Estamos usando o smbo-lo # para dizer que a sen-tena possvel, mas no com a interpretao que estamos querendo atribuir a ela nesse contexto.

  • Aquisio da Linguagem

    38

    que as palavras ou grupos de palavras mantm entre si. Por isso, o nmero de palavras completamente irrelevante para a sintaxe. Falando de uma forma um pouco mais tcnica, as relaes entre os termos constituintes de uma sentena exibem dependncia da estrutura em que se encontram, e este um fato que deve ser levado em conta pelas nossas hipteses lin-gusticas, se que ns queremos ter qualquer chance de encontrar uma explicao real para o funcionamento da linguagem humana.

    3.3 As crianas formulam regras!

    Quando discutimos a hiptese da imitao, mostramos que as crianas produzem formas e sentenas que no podem ter sido imitadas da fala adulta porque os adultos simplesmente no usam aquelas formas. Os exemplos que examinamos foram certas conjugaes verbais, como eu no sabo e eu fazi isso sozinha. Embora seja perfeitamente possvel pensar que a criana est inventando qualquer coisa porque no lembra a forma correta do verbo a ser colocado naquela frase, um exame deta-lhado das produes infantis mostra que, como supem Costa e Santos (2003), dentre outros tantos pesquisadores, a criana na verdade est formulando uma regra de conjugao verbal.

    Voc deve se lembrar (da disciplina de Morfologia) de como Ca-mara Jr. (1970) analisa o verbo do portugus, no? A frmula geral do verbo para ele algo como (=:

    (5)

    Raiz verbal + vogal temtica + sufixo modo-temporal + sufixo n-mero-pessoal

    Para este autor, a primeira pessoa do presente do indicativo de qualquer verbo no padro geral (que o nome que Camara Jr. d ao que a gramtica tradicional chama de verbos regulares) pode receber a anlise em (6) a seguir:

    (6)

    a) cant-a--o = cantob) vend-e--o = vendoc) abr-i--o = abro

  • Captulo 03Como aprendemos a falar?

    39

    O morfema responsvel pela expresso do tempo e do modo , isto , o morfema zero. Alm disso, ocorre nessas formas um fenmeno geral da fonologia do portugus, que o apagamento da vogal tona quando forma que a contm como vogal final acrescentada outra vo-gal (tona ou tnica). Assim, a vogal temtica apagada e resta apenas a vogal que marca a primeira pessoa do singular, -o aqui.

    Observe agora que a mesma descrio pode ser dada para a forma sabo:

    (7)

    sab-e--o = sabo

    Portanto, o que ocorre que a criana atribui a mesma estrutura morfolgica para o verbo saber e realiza a as mesmas operaes que so realizadas com os verbos ditos regulares, nada mais. O problema est no fato de que este no um verbo regular...

    O mesmo acontece com a formao de fazi na linguagem infantil. Trata-se aqui da primeira pessoa do pretrito perfeito do verbo fazer. O padro geral do pretrito perfeito descrito por Camara Jr. (1970) do seguinte modo:

    (8)

    a) cant-e--i = canteib) vend-i--i = vendic) abr-i--i = abri

    Para este estudioso, no caso da primeira conjugao, temos a reali-zao do alomorfe -e- para a vogal temtica, que no desaparece porque ela agora tnica, razo da ditongao com o -i que o alomorfe de primeira pessoa do singular neste contexto gramatical (novamente o morfema zero que veicula a informao de tempo e modo); por outro lado, h neutralizao da diferena entre a segunda e a terceira conjuga-es, com a vogal temtica realizando-se sempre como -i-, que se funde com a marca de primeira pessoa do singular nesse contexto gramatical.

    Observe agora a descrio da forma fazi, de primeira pessoa do singular do pretrito perfeito do modo indicativo do verbo de segunda conjugao fazer:

  • Aquisio da Linguagem

    40

    (9)

    faz-i- -i = fazi

    Como se pode ver, a criana atribui ao verbo uma anlise rigorosa-mente idntica que se atribui aos verbos dos padres gerais da lngua. Novamente, o problema que este no um verbo regular...

    Vrias so as concluses que podemos tirar daqui: a primeira delas

    que essa anlise no pode ter sido aprendida, porque possivelmente

    os pais, salvo se fossem professores de portugus com conhecimen-

    to de lingustica, no saberiam como instruir a criana nesse senti-

    do. A segunda concluso que, se crianas pequenas, entre dois e

    quatro anos de idade, so capazes de fazer anlises morfolgicas

    complexas como esta que acabamos de apresentar, ainda que de

    forma completamente inconsciente, e se esta anlise no pode ter

    sido aprendida, a criana tem esse conhecimento dado biologica-

    mente. Dito de outro modo, a criana parece estar equipada desde

    o nascimento com a capacidade de depreender uma regra geral e

    aplicar essa regra em todos os contextos que satisfazem a descrio

    estrutural pertinente (verbo de segunda conjugao, primeira pes-

    soa do singular, etc.).

    Claro, tem um problema aqui, que o fato de a criana ainda no

    ter percebido que existem outros padres verbais, os padres es-

    peciais, como quer Camara Jr., que no se sujeitam exatamente ao

    mesmo tipo de regra. Por isso, dizemos que a criana supergenerali-za o uso da regra majoritria at perceber que existem outras regras para os padres especiais. Mas estes so padres minoritrios que

    muitos adultos tambm no dominam...

    Na prxima unidade, vamos trabalhar com a ideia esboada de que a criana possui a capacidade de formular regras e aplic-las em novos contextos gramaticais. Na verdade, vamos construir uma argumentao slida para a hiptese de que o ser humano nasce equipado com um mecanismo que lhe permite adquirir qualquer lngua numa velocidade espantosa, perfeitamente e sem nenhuma instruo especfica.

  • Captulo 04Concluses

    41

    Concluses

    Nesta primeira unidade, comeamos comparando as lnguas huma-nas e as linguagens animais, observando certo nmero de propriedades para poder responder em que exatamente as lnguas humanas diferem das linguagens de seus companheiros de planeta. Fizemos a inspeo de algumas propriedades conhecidas do crebro/mente humano para tentar determinar o que ele tem de especial que nos permite falar uma lngua com o grau de complexidade que as lnguas humanas em geral mostram.

    Examinamos depois como as diferentes hipteses sobre a aquisi-o da linguagem respondem ou no pelas caractersticas exibidas pela aquisio de uma lngua por uma criana. Vimos que a abordagem que supe imitao, apesar de ser simples e aparentemente responder pela questo da aquisio do vocabulrio, no d conta de propriedades im-portantes da fala infantil, principalmente o fato de a criana falar coisas que os adultos decididamente no falam, como as formas fazi ou sabo para os verbos fazer e saber, respectivamente.

    H quem defenda tambm que as crianas aprendem por algum mecanismo de estmulo-e-resposta, pelo qual a criana premiada quando acerta a construo lingustica e corrigida quando erra. Vi-mos, no entanto, que as crianas no so sistematicamente corrigidas e, quando so, parecem surdas s correes; os adultos, por seu turno, perdem pouco tempo com a forma que a criana usa, centrando sua ateno no contedo do que a criana fala.

    Mesmo em suas verses mais sofisticadas, a hiptese do estmulo-e-resposta no d conta de uma propriedade muito saliente da fala das crianas, que o fato de elas produzirem enunciados completamente novos e no apenas aqueles para os quais elas receberam algum tipo de reforo. Essa caracterstica da fala humana escapa a qualquer explicao que leve em conta apenas a ordem linear das palavras usadas em uma frase, porque uma propriedade crucial das regras que esto por trs dos enunciados lingusticos humanos elas fazerem referncia estrutura hierrquica do enunciado.

    4

  • Aquisio da Linguagem

    42

    Finalmente, analisando detidamente alguns erros morfolgicos infantis, vimos que neles aparece o uso perfeito de certas regras mor-folgicas presentes no portugus adulto, ainda que o lugar de aplica-o das regras esteja equivocado as crianas esto supergeneralizando a aplicao da regra, isto , esto pensando que ela usada em mais contextos gramaticais do que efetivamente o caso na lngua adulta. Essa observao d lastro para a hiptese de que o bicho homem nasceu equipado geneticamente com um mecanismo que lhe auxilia na tarefa de aquisio da linguagem, na verdade selecionando, dentre as gram-ticas de todas as lnguas do mundo, a gramtica daquela que ser sua lngua materna.

    Na prxima unidade, vamos apresentar uma srie de argumentos para a defesa dessa hiptese, conhecida como hiptese inatista.

    Leia mais!

    Para dirimir suas dvidas sobre as propriedades que as lnguas humanas tm em alto grau frente s linguagens dos animais, voc pode ler Lyons (1987), no captulo 1 em particular na seo 1.5 onde voc encontra-r toda essa discusso detalhada.

    J em Menuzzi (2001) voc encontrar a discusso de Lenneberg (1967) detalhada e uma aplicao da hiptese do perodo crtico aquisio de uma segunda lngua.

    Finalmente, Raposo (1992) apresenta no captulo1, entre outras coisas, mais exemplos de que a ideia de analogia dos behavioristas fornece re-sultados equivocados quando aplicada aquisio da linguagem.

  • Unidade BUma defesa consistente da abordagem inatista

  • Captulo 05Uma defesa consistente da abordagem inatista

    45

    Uma defesa consistente da abordagem inatista

    Neste captulo, mostraremos que, durante a aquisio da linguagem, no apenas certos fenmenos aparecem num mesmo perodo de aquisio em todas

    as crianas aprendendo uma mesma lngua, como os mesmos fenmenos so observveis em crianas aprendendo lnguas diferentes, fato que apenas a hip-tese inatista pode explicar naturalmente. Tambm ser realada a uniformida-de do estgio final alcanado por todas as crianas em todas as lnguas, que a

    competncia adulta para lidar com os fatos da lngua materna.

    Na primeira unidade deste nosso estudo, mostramos que as ln-guas humanas tm propriedades tais e num tal grau que no possvel confundir as lnguas naturais com os sistemas de comunicao animal, que ou no apresentam as mesmas propriedades ou so mais modestos no grau em que as apresentam. Vimos tambm que bastante possvel que essas propriedades estejam enraizadas em certas qualidades par-cialmente fsicas, que caracterizam o aparato cerebral/mental e corpo-ral humano quando atingimos a idade de aquisio da linguagem, uma faixa etria em que na verdade a aquisio da primeira lngua deve se efetivar, sob pena de no ser mais possvel adquirir uma lngua com a perfeio com que os seres humanos tpicos o fazem.

    Alm disso, vimos que a aquisio da linguagem pela criana apre-senta certas caractersticas que dificilmente conseguiramos explicar em sua totalidade por hipteses como as da imitao ou do estmulo-e-res-posta. Uma dessas caractersticas o fato de a criana produzir por certo tempo formas verbais como fazi ou sabo, que no fazem parte do input da criana, independentemente do grau de instruo dos pais ou da va-riedade do portugus brasileiro a que a criana est exposta repare que em geral o tipo de dado ao qual a criana tem acesso muito variado mesmo para crianas falantes da mesma lngua, mas nesse ponto no apresenta diferenas!

    5

  • Aquisio da Linguagem

    46

    J vimos tambm que essas formas verbais so exatamente as que seriam esperadas se o verbo em questo fosse um verbo regular, o que sugere que as crianas em torno dos trs anos j sabem (inconsciente-mente, claro) como funciona a morfologia verbal regular do portugus dito mais tecnicamente, o componente computacional da gramtica est em condies de lidar com regras que manipulam smbolos. Obser-ve o quanto isso intrigante: todas as crianas aprendendo portugus, em torno dos trs anos, so capazes de fazer (inconscientemente) uma anlise morfolgica sofisticada de modo a poder conjugar quaisquer verbos, que elas tomam por regulares. Como isso possvel?

    mais surpreendente ainda notarmos que crianas mais ou menos da mesma idade aprendendo outras lnguas que tambm apresentam morfologia verbal regular e irregular fazem o mesmo tipo de superge-neralizao. Por exemplo, segundo Guasti (2002), crianas aprendendo ingls produzem formas como goed (quando o passado de go went) ou bringed (quando o passado de bring brought). Para explicar essa incrvel coincidncia de fenmenos no s dentro da mesma lngua, mas entre lnguas, uma hiptese bastante plausvel de que todas as crianas, inde-pendentemente de onde vivem, de alguma maneira j nasam sabendo certas caractersticas dos sistemas flexionais das lnguas do mundo. O input ao qual a criana est exposta s vai mesmo lhe fornecer as formas concretas para que ela aplique sobre elas os princpios que regem as cons-trues lingusticas. Essa uma maneira de conceber a hiptese inatista.

    Mas ns devemos melhorar essa concepo, porque os fenmenos so na verdade mais abrangentes do que estamos vendo at aqui: o fato mesmo de toda criana estar predisposta a aprender uma lngua (que , em ltima anlise, o fato responsvel pela universalidade da linguagem) e o fato sempre surpreendente de o sistema gramatical final de todas as crianas convergir para o sistema gramatical dos adultos falantes da mesma lngua (ou, dito de outro modo, ser qualitativamente idntico entre os indivduos) s podem ser explicados se o homem for dotado de um rgo mental com mecanismos destinados exclusivamente aquisi-o da linguagem.

  • Captulo 05Uma defesa consistente da abordagem inatista

    47

    A razo pela qual este mecanismo deve ser especfico que, como

    j vimos, mecanismos gerais da inteligncia, como a capacidade

    de fazer analogias, no podem ser usados na aquisio, sob pena

    de a criana fazer analogias possveis logicamente, mas incorretas

    linguisticamente. Adicionalmente, a habilidade de falar uma ln-

    gua funciona de maneira diferente de outras habilidades cogniti-

    vas: tocar piano ou fazer contas exigem instruo especfica, treino,

    dependem de motivao individual, e o estado final atingido varia

    enormemente de um indivduo para outro. Por outro lado, a habi-

    lidade para adquirir uma lngua se assemelha muitssimo a outros

    processos biolgicos, que so inatos no ser humano.

    Costa e Santos (2003) comparam a nossa capacidade de vir a falar uma lngua com a nossa capacidade de vir a andar: parece natural pen-sar que todos nascemos equipados com um aparato fsico e cognitivo para aprender a andar. No imediatamente aps o nascimento que a criana pode andar; uma srie de mudanas fsicas vai se processando (a coluna vai se enrijecendo, por exemplo), de modo a permitir que a criana ande. possvel que a criana precise ver os adultos andando para tentar essa proeza, mas o fato concreto que o adulto no ensina a criana a andar no sentido estrito do termo, em particular porque a criana s vai andar no momento em que o seu aparato biolgico lhe permitir. Antes disso, inclusive o treino incuo ou impossvel. claro que certas crianas andam antes que outras, mas o estado final atingi-do, isto , o andar, absolutamente uniforme para toda a espcie ainda que cada um tenha l o seu estilo, como se v tambm na linguagem. Ainda voltaremos a esta comparao.

  • Captulo 06A sequencialidade do processo: estgios de aquisio

    49

    A sequencialidade do processo: estgios de aquisio

    Vamos agora apresentar os estgios de aquisio da linguagem que so ob-servveis em todas as lnguas do mundo. Comeando pelo balbucio, as crianas

    passam por uma fase de enunciados de uma s palavra, depois por uma fase em que elas juntam duas palavras e formam assim suas primeiras sentenas e, a partir de ento, formam sentenas maiores e mais complexas. O lxico tambm

    cresce exponencialmente durante o segundo ano de vida da criana.

    Os adultos que rodeiam uma criana ficam encantados quando ela comea a manifestar-se linguisticamente. No que os bebs no se comu-niquem desde o nascimento o choro a primeira forma de comuni-cao, mas tem uma mensagem fixa, algo como no estou gostando de alguma coisa por aqui e na verdade funciona muito como as linguagens dos animais: capaz de falar sobre o aqui e o agora, em geral sobre neces-sidades corporais, como fome e sono, e s.

    Vimos na Unidade A que as capacidades lingusticas de percepo e reconhecimento das crianas recm-nascidas so excepcionais. No entan-to, qualquer trao de produo lingustica deve esperar pelo menos at em torno dos quatro meses por conta de certos desenvolvimentos biolgicos que devem ocorrer. Assim, nesses primeiros meses de vida, a criana no faz muito mais do que emitir sons diversos, que podem at ser semelhan-tes aos sons lingusticos (em particular aos sons voclicos), mas ainda no so lngua, porque no possuem as propriedades das lnguas humanas.

    Em torno dos seis meses a criana comea a balbuciar. Ainda que o balbucio seja desprovido de significado, ele j considerado uma forma de produo lingustica porque: (i) antes de mais nada, no expresso de nenhuma necessidade ditada pela situao, portanto independente de estmulo, uma caracterstica das lnguas humanas que examinamos na primeira unidade; (ii) j mostra organizao silbica a criana repete slabas, inicialmente iguais, como ba-ba, mas aos poucos elas vo se dife-renciando, resultando em coisas como o famigerado gu-gu-da-da; e (iii)

    6

  • Aquisio da Linguagem

    50

    finalmente, como nota Guasti (2002), o balbucio parece lanar mo de um subconjunto dos sons possveis usados pelas lnguas humanas.

    Em torno dos oito a dez meses, perodo em que declina a sensibilida-de da criana a contrastes fonmicos de outras lnguas, o conjunto de sons usados no balbucio j (um subconjunto d)o da lngua alvo e, segundo Costa e Santos (2003), um adulto pode reconhecer, ouvindo bebs bal-buciarem em diferentes lnguas, qual o beb que est balbuciando na sua lngua materna, seja pela estrutura silbica e pelos fonemas utilizados, seja pela entoao e pelo ritmo do balbucio. Nessa fase, observam Crain e Lillo-Martin (1999), bebs surdos param de balbuciar vocalmente eles balbuciam manualmente se os pais lhe do input em lngua de sinais.

    Quando a criana completa um ano de idade, normal que, ao lado do balbucio, comecem a surgir as primeiras palavras, que tm uma estru-tura fonolgica muito simples formato V ou CV mas normalmente essas consoantes e vogais so uma aproximao dos segmentos originais da palavra, dependendo um pouco de quais so eles e de qual o inventrio de sons que a criana j tem. No entanto, esse o momento em que uma mesma sequncia sonora comea a ser usada para fazer referncia sempre ao mesmo objeto, ou seja, os sons comeam a ter significado (identificado com a referncia no caso de objetos concretos).

    Como bem notam Costa e Santo