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“EXERCÍCIO DE PODERES PÚBLICOS DE AUTORIDADE POR ENTIDADES PRIVADAS COM FUNÇÕES ADMINISTRATIVAS” — ARGUIÇÃO DA DISSERTAÇÃO DE DOUTORAMENTO DO MESTRE PEDRO GONÇALVES (*) P AULO OTERO (**) I. INTRODUÇÃO 1.1. Preliminares 1.1.1. O Mestre Pedro António Pimenta da Costa Gonçalves apresenta-se a provas públicas para a obtenção do grau de doutor em Direito, tendo apresentado uma dissertação, em 866 páginas, subordinada à epígrafe “Exercício de Pode- res Públicos de Autoridade por Entidades Privadas com Funções Administrati- vas”, sendo 810 páginas de texto e as restantes de bibliografia e índice. 1.1.2. A extensão do texto desta dissertação de doutoramento, por bem dizer-se, é directamente proporcional (i) ao elevado mérito do curriculum cien- tífico do seu Autor, (ii) ao interesse e actualidade do tema escolhido e, por último, (iii) à excepcional qualidade científica do conteúdo desta mesma dis- sertação. Não sendo de esperar do seu Autor senão um trabalho de altíssima qualidade, o certo é que a dissertação agora em apreço comprova, sem qualquer margem para dúvidas, que o Mestre Pedro Gonçalves é já hoje um nome incontornável na Ciência do Direito Administrativo português. 1.1.3. A leitura da presente dissertação revela, neste sentido, (i) uma inves- tigação meticulosa e quase exaustiva, problematizando todas as grandes questões 841 (*) Texto da arguição cujas provas de doutoramento se realizaram na Universidade de Coimbra, em 20 de Janeiro de 2005. Omitiram-se as palavras de saudação. Os números de páginas citados referentes à dissertação dizem respeito ao texto policopiado entregue pelo candidato e distribuído aos membros do júri. (**) Professor da Faculdade de Direito de Lisboa.

Arguicao Prof Paulo Otero

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  • EXERCCIO DE PODERES PBLICOS DE AUTORIDADEPOR ENTIDADES PRIVADAS COM FUNES

    ADMINISTRATIVAS ARGUIO DA DISSERTAODE DOUTORAMENTO DO MESTRE PEDRO GONALVES (*)

    PAULO OTERO (**)

    I. INTRODUO

    1.1. Preliminares

    1.1.1. O Mestre Pedro Antnio Pimenta da Costa Gonalves apresenta-sea provas pblicas para a obteno do grau de doutor em Direito, tendo apresentadouma dissertao, em 866 pginas, subordinada epgrafe Exerccio de Pode-res Pblicos de Autoridade por Entidades Privadas com Funes Administrati-vas, sendo 810 pginas de texto e as restantes de bibliografia e ndice.

    1.1.2. A extenso do texto desta dissertao de doutoramento, por bemdizer-se, directamente proporcional (i) ao elevado mrito do curriculum cien-tfico do seu Autor, (ii) ao interesse e actualidade do tema escolhido e, porltimo, (iii) excepcional qualidade cientfica do contedo desta mesma dis-sertao.

    No sendo de esperar do seu Autor seno um trabalho de altssima qualidade,o certo que a dissertao agora em apreo comprova, sem qualquer margempara dvidas, que o Mestre Pedro Gonalves j hoje um nome incontornvelna Cincia do Direito Administrativo portugus.

    1.1.3. A leitura da presente dissertao revela, neste sentido, (i) uma inves-tigao meticulosa e quase exaustiva, problematizando todas as grandes questes

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    (*) Texto da arguio cujas provas de doutoramento se realizaram na Universidade deCoimbra, em 20 de Janeiro de 2005. Omitiram-se as palavras de saudao.

    Os nmeros de pginas citados referentes dissertao dizem respeito ao texto policopiadoentregue pelo candidato e distribudo aos membros do jri.

    (**) Professor da Faculdade de Direito de Lisboa.

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    cientficas que o tema suscita, (ii) uma invulgar capacidade de construo dog-mtica, ordenando de forma clara e sistematizada ideias e conceitos, (iii) umametodologia cientfica de permanente dilogo com a principal doutrina, juris-prudncia e legislao nacionais e estrangeiras, (iv) assumindo sempre comcoragem uma posio prpria e fundada sobre os diferentes assuntos, (v) tudoisto numa constante preocupao de resoluo dos problemas luz do ordena-mento jurdico portugus.

    1.1.4. Em suma, e sem pretender antecipar o juzo final do presente jri,no posso deixar de sublinhar que a dissertao de doutoramento agora em an-lise prestigia o nome do seu Autor, honra a tradio cientfica da Faculdade deDireito da Universidade de Coimbra e dignifica a cincia jurdica portuguesa.

    Estamos perante um momento alto da cincia do Direito Administrativo.

    1.2. Sentido global da dissertao

    1.2.1. A leitura atenta da dissertao no deixa de revelar, no entanto, umcurioso sentido global de verdadeiro menosprezo ou estrangulamento pelo Autorda operatividade da figura jurdica que escolheu estudar.

    Com efeito, em vez de procurar mostrar a amplitude da relevncia do exer-ccio privado de poderes de autoridade, parece que o Mestre Pedro Gonalvesse lana numa cruzada de diminuio, marginalizao e suspeio da figuraescolhida. Isto mesmo observvel em quatro ilustraes exemplificativas:

    (i) Considera, por um lado, a delegao de poderes pblicos em parti-culares um expediente excepcional, apenas aceitvel em circuns-tncias excepcionais (p. 733);

    (ii) Mais: partindo do entendimento de que os particulares que exercemfunes pblicas no deixam de agir segundo motivaes privadas(p. 295), afirma que a delegao de poderes pblicos em entidadesprivadas representa, em todos os casos, um perigo para os valores daimparcialidade, da neutralidade e da prossecuo exclusiva do interessepblico (p. 726);

    (iii) Chega mesmo ao ponto de falar, a propsito da legitimao pessoal,num carcter marcadamente anmalo e inconveniente do exerccio depoderes pblicos por particulares no legitimados pessoalmente (p. 744);

    (iv) Por ltimo, o desprezo pela figura da delegao de poderes de autori-dade em entidades privadas no poderia ser maior quando, a propsitodo seu regime jurdico, lhe concede apenas sete pginas e meia, isto ,menos de 1% do trabalho dedicado ao ncleo central do instrumentohabilitador do exerccio privado de poderes de autoridade.

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    1.2.2. Por tudo isto, quase se pode dizer que ao longo da dissertao oSr. Candidato vai, por estrangulamento progressivo da operatividade da delega-o de poderes de autoridade em entidades privadas, cometendo um homicdiosilencioso da figura que escolheu para investigar, o que justifica que lhe pergunte:a presente dissertao de doutoramento um contributo para o estudo do exer-ccio de poderes de autoridade por entidades privadas ou, em boa verdade, umcontributo para a erradicao da figura no Direito portugus?

    1.3. Sequncia

    Apresentada na generalidade a minha posio sobre a presente dissertao, cum-pre referir que a sequncia imediata desta arguio vai centrar-se em trs pontos:

    (i) Comearemos por identificar as principais omisses da dissertao;(ii) Segue-se a indicao de um conjunto de crticas na especialidade;

    (iii) Termina-se com a apresentao de um caso prtico para testar a soli-dez do recorte conceitual do exerccio privado de poderes de autoridade.

    II. PRINCIPAIS OMISSES

    2.1. Omisso do sector cooperativo

    2.1.1. Uma primeira omisso da dissertao em apreo diz respeito ausn-cia de referncias autnomas ao sector cooperativo no mbito do exerccio depoderes de autoridade.

    2.1.2. certo, refira-se, que o Mestre Pedro Gonalves integra as coope-rativas no mbito das pessoas colectivas privadas (p. 314), reconhecendo, toda-via, a existncia de cooperativas sujeitas a uma influncia pblica dominante(p. 316), referindo ainda que a existncia de escolas cooperativas no deter-mina a existncia de um regime tripartido em matria de sistema de ensino(pp. 369-370).

    2.1.3. No se encontra na sua tese, no entanto, a resposta para duas ques-tes centrais:

    1.) Quando as cooperativas exercem poderes pblicos ou tarefas pbli-cas, ainda estamos diante de uma forma de privatizao ou, pelo con-trrio, dever-se- aqui falar, por fora do artigo 82., n. 4, da Cons-tituio, em cooperativizao de poderes pblicos ou tarefas pblicas?

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    2.) Uma vez que as cooperativas no tm fins lucrativos (1), ou noverdade que grande parte das preocupaes que o Sr. Candidato referequanto delegao de poderes pblicos de autoridade em entidades pri-vadas (pp. 704 ss.), isto pela possvel confuso entre interesses priva-dos lucrativos e a prossecuo do interesse pblico, deixam de tersentido face delegao de tais poderes em cooperativas?

    2.2. Omisses quanto ao regime da delegao

    2.2.1. no tratamento dado ao regime jurdico da delegao de poderespblicos em entidades privadas (pp. 753 ss.) que se fazem sentir, no entanto, asprincipais e as mais graves omisses da dissertao em apreo: pouco mais desete pginas de texto muito pouco para, num trabalho com mais de oitocen-tas pginas, tratar aquele que o instrumento jurdico central do exerccio de pode-res pblicos de autoridade por entidades privadas.

    No hesito em dizer que esperava mais (muito mais) deste aspecto da dis-sertao. No escondo a minha desiluso.

    2.2.2. Sem a preocupao de esgotar as omisses, limito-me a apresentaralgumas questes que no encontram (e deviam encontrar) resposta na tesequanto ao regime da delegao:

    1.) Defende o Mestre Pedro Gonalves que a entidade pblica deleganteno pode avocar os poderes delegados na entidade privada (p. 759), afir-mando mesmo que se o fizer, isto , se exercer esses poderes, os res-pectivos rgos sero at incompetentes. No esclareceu, todavia,de que vcio padecem tais actos praticados pelo delegante sobre ascompetncias que foram delegadas: ser que estaremos perante actosferidos de incompetncia relativa ou de incompetncia absoluta? Mais:se admite que o delegante dispe sempre do poder de livre revogaoda delegao (p. 759), no ser contraditrio admitir o mais, sempermitir o menos, isto , o exerccio pontual dos poderes delegados, porexemplo, em cenrios de inrcia indevida da entidade privada?

    2.) De que vcio padece a actuao das entidades particulares destinatriasde uma delegao de poderes pblicos se sobrepem o querer pri-vado ao dever ser pblico (p. 781), produzindo uma actuao pblicasubordinada a motivaes imprprias decorrentes da sua natureza pri-vada (p. 781)?

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    (1) Cfr. Cdigo Cooperativo, artigo 2., n. 1.

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    3.) Admite o Sr. Candidato que, apesar de ser em princpio proibida a sub-delegao de poderes, desde que exista autorizao legal para o efeito,a figura ser admissvel (p. 760). Nada diz, no entanto, sobre estafigura, isto quando existia muito para dizer. Vejamos dois exemplos:

    (i) Existindo subdelegao, ser que a entidade privada subdelegantepode exercer sobre o subdelegado os mesmos poderes que sobresi exerce a entidade pblica delegante? Nesse caso, qual ser a fontede tais poderes do subdelegante?

    (ii) Durante o perodo da subdelegao, ser que a entidade privada sub-delegante se encontra impedida de exercer os poderes subdelegadosou, pelo contrrio, haver uma aqui uma dupla competncia?

    4.) Defende o Mestre Pedro Gonalves que os poderes de fiscalizao dodelegante se limitam legalidade da actuao da entidade privada(p. 759), excluindo, deste modo, qualquer apreciao fundada no mritoda actuao da entidade privada no exerccio desses poderes. Isto acabapor significar, porm, que atravs da delegao a entidade pblica dele-gante acabou por perder ou renunciar ao exerccio de uma competnciarevogatria que antes tinha sobre os seus prprios actos com funda-mento numa reapreciao da sua convenincia ou oportunidade. Afinal,conclua-se, o acto de delegao no se limita a transferir o exerccio deuma competncia (se que faz isso), ele acaba por envolver tambm,neste domnio, uma extino (temporria) de uma competncia da enti-dade delegante ser verdade ou admissvel um tal entendimento?

    5.) Ainda quanto natureza do acto de delegao de poderes, defendendoo Sr. Candidato que a delegao de poderes pblicos representa, emmuitos casos (), um benefcio objectivo para o delegatrio ()(p. 726), pergunto: em que medida, nestas hipteses, a delegao fonte de um verdadeiro direito subjectivo para o respectivo destinat-rio e, neste sentido, se pode dizer que a competncia delegada passaa ser um direito cuja revogao do acto de delegao gera o dever deindemnizar a entidade privada delegada?

    III. CRTICAS NA ESPECIALIDADE

    3.1. Generalidades

    3.1.1. No so apenas as referidas omisses que merecem a nossa crtica.A leitura da dissertao revela na sua extenso todo um conjunto de ml-

    tiplas divergncias e de reparos cujo elenco ou desenvolvimento justificativo se

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    tornam impossveis. Limitar-nos-emos, por isso mesmo, a indicar oito de taisdivergncias:

    (i) A integrao da Administrao indirecta no mbito da desconcentrao(p. 255) e no, tal como me parece dever ser, no contexto da descen-tralizao;

    (ii) O conceito de pessoa colectiva pblica adiantado (p. 198) que tem a par-ticularidade de excluir o Estado do seu mbito;

    (iii) O entendimento de que as pessoas colectivas pblicas tm uma capa-cidade jurdica privada total ou geral (p. 189), o que a ordem jur-dica nem sequer reconhece s pessoas colectivas privadas;

    (iv) Apesar de afirmar que a dualidade entre Direito Pblico e Direito Pri-vado no est em causa (pp. 167, 200 e 208), ao aceitar a figura doDireito Privado Administrativo (pp. 207, 216 ss., 761 e 783), dizendoque se trata de uma rea de interseco do Direito Administrativocom o Direito Privado (p. 207), sofrendo o Direito Privado o impactoda sobreposio dos princpios de direito pblico (p. 783), no haveraqui uma contradio? No ser que o Direito Privado Administrativorepresenta a falncia da dicotomia entre Direito Pblico e Direito Pri-vado?

    (v) Considerar que as normas tcnicas, ao invs das normas jurdicas,desconhecem () eficcia imperativa, revelam-se de utilizao facul-tativa (p. 530), significa esquecer a existncia de normas jurdicassupletivas ou, em alternativa, transforma todas estas em normas tcnicas;

    (vi) A defesa pelo Sr. Candidato da tese da legitimao democrtica dospoderes pblicos de autoridade fundamenta-se num cenrio em que aAdministrao Pblica age apenas sobre a colectividade que a legitimou(p. 453), esquece, no entanto, que a Administrao pode tambm agirsobre quem nunca a legitimou, tal como sucede, por exemplo, com osestrangeiros, com os alunos candidatos ao ingresso no 1. ano de umauniversidade pblica face s normas universitrias reguladoras desseingresso ou diante dos candidatos advocacia perante as normas daOrdem dos Advogados reguladoras do estgio. Perante estes exemplos,pergunto: onde residir a legitimao democrtica destes poderes deautoridade face a tais destinatrios?

    (vii) Entendendo que os partidos polticos so associaes de direito pri-vado (pp. 408-409) e que no traduzem o exerccio privado de fun-es pblicas (p. 411), no pode deixar de se considerar muito estra-nho que o Mestre Pedro Gonalves qualifique os acordos entre partidos(v. g., acordo de reviso constitucional) como acordos informais deDireito Pblico Constitucional (nota n. 403). Ora, pergunto: como

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    ser possvel que, por via bilateral, duas ou mais entidades privadas,sem exercerem funes pblicas, possam produzir actos de DireitoPblico?

    (viii) A configurao da deteno em flagrante delito como um direito, umdireito privado que pertence a todos (pp. 574 e 719) e no como umaforma de exerccio privado de uma funo pblica (2), alm de deixarsem saber se a deteno de uma pessoa em flagrante delito traduz umatarefa pblica ou privada, mostra-se uma construo de muito duvi-dosa conformidade constitucional: como que se pode configurar comosendo um direito de algum o exerccio da coaco fsica sobre a pes-soa de um outro particular?

    3.1.2. No obstante todas estas crticas e sem prejuzo de outras que, porrazes de tempo, no podem ser expostas, centraremos a anlise subsequente emtrs crticas na especialidade:

    a) A insuficincia da investigao histrica;b) A deficiente configurao dos tribunais arbitrais;c) A insuficiente e deficiente qualificao dos actos a descoberto de

    delegao.

    3.2. Insuficiente investigao histrica

    3.2.1. Localiza o Sr. Candidato em Marcello Caetano e no seu TratadoElementar de Direito Administrativo, de 1944, as primeiras referncias doutrinais,em Portugal, ao exerccio de poderes de autoridade por entidades privadas (p. 60).

    3.2.2. No corresponder verdade, no entanto, uma tal afirmao, isto poruma dupla ordem de razes:

    (i) Por um lado, no foi Marcello Caetano, mas sim Guimares Pedrosa,quem, pela primeira vez, abordou o tema entre ns (3);

    (ii) Por outro lado, no foi no Tratado, mas sim na 1.edio do Manual,de 1937, que Marcello Caetano tratou, pela primeira vez, o tema (4), sem

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    (2) Cfr. PAULO OTERO, O Poder de Substituio em Direito Administrativo: enquadra-mento dogmtico-constitucional, I, Lex, Lisboa, 1995, pp. 61-62.

    (3) Cfr. GUIMARES PEDROSA, Curso de Cincia da Administrao e Direito Administrativo, I,2. ed., Coimbra, 1908, p. 342.

    (4) Cfr. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Lisboa, 1937, pp. 84 ss.,100-101, 286 ss.

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    prejuzo de j nas lies de Direito Administrativo, coligidas por alu-nos, em 1933/34, se referir ao assunto (5).

    Deveria o Sr. Candidato ter revelado, por conseguinte, um maior cuidado nainvestigao histrica do contributo doutrinal portugus para o tema.

    3.3. Deficiente configurao dos tribunais arbitrais

    3.3.1. Se, em matria de poderes de autoridade do empregador privado, oMestre Pedro Gonalves entende (e bem) que a vontade das partes expressa nocontrato surge como mero pressuposto, pois a fonte de tais poderes de autoridadereside na lei (p. 453), o certo que no domnio dos tribunais arbitrais defendeque a lei no se assume como a fonte do poder dos rbitros (pp. 419, 421),uma vez que, tal como diz, so as partes do conflito que, por vontade mtua,entregam aos tribunais arbitrais o poder jurisidicional (p. 419).

    Uma tal construo suscita-nos uma crtica no sentido de traduzir umaincoerente ponderao da autonomia da vontade face lei nas duas situaes refe-renciadas: como possvel defender que as regras de competncia dos tribunaisso disponveis apenas pela vontade mtua das partes e no, tal como enten-demos, pela conjugao dessa vontade com a lei?

    3.3.2. Inexplicveis mostram-se tambm, neste contexto, as afirmaes deque a autoridade das decises arbitrais () no deriva do Estado (p. 419),fazendo assentar a instituio dos tribunais arbitrais na autonomia privada e naliberdade contratual (p. 418), isto para concluir que a arbitragem representa oexerccio de uma actividade de natureza jurisdicional que se processa no mbitodo direito privado (p. 421).

    Ser, pergunto, que o Sr. Candidato desconhece a existncia de arbitragemno mbito da justia administrativa? Ser que a arbitragem administrativa (pelomenos) se processa, tal como afirma, no mbito do Direito Privado ou se fun-damenta na autonomia privada e na liberdade contratual?

    3.4. Insuficiente e deficiente qualificao dos actos a descoberto dedelegao

    3.4.1. O Mestre Pedro Gonalves defende na sua dissertao que os actospraticados pela entidade privada a descoberto de delegao, isto , fora dos

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    (5) Cfr. MARCELLO CAETANO, Direito Administrativo, (lies coligidas por Antnio Gomes,Lopes de Sousa, Nunes Correia e Sanches de Bana), Lisboa, 1933-34, pp. 139 ss.

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    poderes delegados, sem delegao ou em casos de nulidade da delegao, nose devem qualificar como actos pblicos (regulamentos administrativos ou actosadministrativos), antes se devem qualificar como actos de direito privado (p. 739,765, 770 e 771).

    Uma tal concepo, fundada no entendimento de que reside no acto dedelegao a fonte exclusiva da capacidade de direito pblico e dos poderes dasentidades privadas (p. 754), mostra-se, no entanto, insuficiente e deficiente, istopor trs ordens de razes:

    1.) Em primeiro lugar, a prtica de actos de autoridade por entidades pri-vadas a descoberto de delegao de poderes pode ter na sua origem trscausas diferentes:

    (i) Ser a expresso de um erro de direito do seu autor sobre a com-petncia;

    (ii) Ser o resultado de um processo intencional de usurpao de fun-es pblicas;

    (iii) Ou, por ltimo, expressar o resultado final da declarao deinconstitucionalidade ou da ilegalidade da norma habilitadora dadelegao ou da prpria norma legal que procedia delegao.

    Sucede, porm, que nenhum destes cenrios foi tido em contapelo Sr. Candidato, limitando-se a fazer uma afirmao genrica queno teve em considerao a especialidade que cada uma destas situa-es pode encerrar;

    2.) Em segundo lugar, uma vez que a discusso sobre a validade de taisactos, envolvendo a questo de saber se foram ou no praticados nombito de uma relao jurdico-administrativa, no pode deixar deestar confiada aos tribunais administrativos, o entendimento de queeles so actos de direito privado suscita uma inevitvel questo a queo Sr. Candidato no respondeu: ser que os tribunais administrativospodem conhecer da validade de tais actos de direito privado?

    3.) Em terceiro lugar, no posso concordar com o pressuposto de partidade que o acto de delegao a fonte exclusiva dos poderes de auto-ridade das entidades privadas: que, note-se, se reside no acto dedelegao (e no na lei) a fonte de tais poderes de autoridade da enti-dade privada, esse acto, apesar de ter fundamento na lei, ser sempreinconstitucional por violar o artigo 112., n. 5, da Constituio alei estar a atribuir a um acto da Administrao o poder de, por via dadelegao, modificar a lei que atribuiu esses mesmos poderes de auto-ridade a uma entidade pblica

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    IV. CASO PRTICO

    4.1. A leitura da presente dissertao deixou-me uma dvida angustiantesobre a natureza jurdica da minha participao no presente jri e, em geral,sobre a qualificao do estatuto dos professores de fora que so convidadospara jris de provas ou concursos em universidades pblicas.

    4.2. Sobre a matria pode dizer-se que existem trs certezas:

    1.) Os jris so rgos ad hoc cujos actos so imputados entidadepblica universitria onde tais provas ou concursos se realizam;

    2.) A actividade desenvolvida pelos jris integrados numa entidade pblicaassume natureza administrativa, pois, tal como o Sr. Candidato diz,as aces da Administrao Pblica so sempre, aces pblicas(p. 345);

    3.) Os professores de fora convidados a integrar os jris, podendo ser deoutras universidades pblicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras,estarem no activo, jubilados ou em licena, no tm qualquer vnculojurdico universidade cujo jri integram.

    4.3. Pode colocar-se, por isso mesmo, o problema de saber qual a naturezada interveno de tais professores e, muito em particular, da actividade de arguir,avaliar e classificar os candidatos ou concorrentes.

    Ser que estamos diante de uma situao de exerccio de poderes pblicosde autoridade por um particular, tanto mais que o convite a integrar o jri pessoal e no dirigido instituio a que est (ou esteve) ligado esse professor?Ou, pelo contrrio, utilizando a terminologia do Candidato (pp. 322 ss.), estamosperante uma forma de participao orgnica de particulares na AdministraoPblica? Ou, por ltimo, a hiptese prtica em discusso no se reconduz a qual-quer destas figuras?

    No escondo a minha curiosidade em ouvir o Mestre Pedro Gonalvessobre a resoluo que, dentro do contexto da presente dissertao, d a estecaso prtico.

    V. CONCLUSO

    5.1. Mestre Pedro Gonalves: tempo de concluir.No obstante as crticas que acabo de lhe formular, as muitas horas que leva-

    ram a leitura e releitura da sua dissertao no foram tempo perdido: concordandoou mesmo discordando das posies que assume, encontrei excelentes momen-tos de reflexo e aprendi.

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    A cincia tambm feita de momentos de prazer intelectual: a leitura da suadissertao proporciona-os a qualquer juspublicista.

    5.2. As crticas que dirigi ao longo desta arguio no abalam a minhacerteza de que estamos perante uma investigao e uma dissertao de eleva-dssimo nvel cientfico, verdadeiro modelo de abordagem dogmtica de umtema de Direito Administrativo e daquilo que deve ser o grau de exigncia deum doutoramento em Direito Pblico.

    5.3. Peo ao Sr. Candidato, por isso mesmo, o favor de, na fase de con-traditrio que se vai seguir, esclarecer as principais dvidas que lhe coloquei eas objeces mais crticas que suscitei, permitindo prolongar o dilogo cientficoque, por certo, no terminar aqui.

    A agradeo, por ltimo, Faculdade de Direito da Universidade de Coim-bra o privilgio que me concederam de integrar o presente jri e a todos osSenhores Professores o de ser arguente desta dissertao: muito obrigado.

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