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o ELEITO DO SOL Autor: Arménio Vieira Colecção: Palavra Africana Direcção: Ana Maíalcla Leite ® Vega, 1992 Dnettos reservados em língua portuguesa por Vega, Limitada Alto dos Moinho.s, 6-A 1500 LISBOA - Telef. 778 94 14 Sem autorização expressa do reprodução parcial ou lotai reprodução, não decorra das divulgação e da critica. editor, não é permitida a desta obra desde que lai finalidades específicas da Editor: Assírio Bacelar Capa: Estúdios Vega com base num desenho de Teresa Roza d'01iveira Revisão: Alice Araújo Fotocomposição c /Contagem: Corsino & Neto - Gab. de Folocomposição, Lda. ISBN-972-699-321-0 Depósito Legal N." 54968/92 Impressão e Ácabamenio: LITO 2 - Artes Gráficas Rua D. Carlos 1,31, Laranjeiro 2800 Almad» ARMÉNIO VIEIRA

Armenio, V. o Eleito Do Sol

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Page 1: Armenio, V. o Eleito Do Sol

o E L E I T O D O S O L

Autor: A r m é n i o V i e i r a

Colecção: P a l a v r a A f r i c a n a

Direcção: A n a Maíalcla L e i t e

® V e g a , 1992

Dnettos reservados em língua portuguesa

p o r V e g a , L i m i t a d a

A l t o dos M o i n h o . s , 6 -A

1500 L I S B O A - T e l e f . 778 94 14

Sem autorização expressa do

reprodução parcial ou lotai

reprodução, não decorra das

divulgação e da critica.

editor, não é permitida a

desta obra desde que lai

finalidades específicas da

Editor: Assírio Bacelar

Capa: Estúdios Vega com base num desenho de Teresa Roza d'01iveira Revisão: Alice Araújo Fotocomposição c /Contagem:

Corsino & Neto - Gab. de Folocomposição, Lda. ISBN-972-699-321-0

Depósito Legal N . " 54968/92

Impressão e Ácabamenio:

L I T O 2 - Artes Gráficas

Rua D. Carlos 1,31, Laranjeiro 2800 Almad»

ARMÉNIO VIEIRA

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«Inúmeros serão os leus trabalhos. Para (jue não eii loiu] Lic ças, nós, deuses rinorlais, oferta mos--te a imaginação e o riso.»

O í U i r O R

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PRÓLOGO

Apareceu-me n u m sonho. «Sou A k e n a t o n » , disse-me ele. « H á cinco m i l anos eu era escriba no Egipto. Fui t a m b é m e x í m i o contador de h i s tó r i a s . U m dia, tornei-me faraó atra-vés de u m sonho. As minhas reencarnações foram três: uma na Ásia, a segunda na Europa e a ú l t i m a na pá t r i a dos peles--vermelhas.

. Sucessivamente, fui negro em África, amarelo na China, branco no país dos ingleses e vermelho na Amér ica ; fui homem de todas as raças. E tu vais contar a minha his tór ia mais an t iga .»

À s e m e l h a n ç a de Caedmon — o p r i m o g é n i t o dos poetas sacros da Inglaterra —, tentei esquivar-me ao que se me antolhava u m labor inexecu táve l . Mas Akenaton vol tou e tornou a voltar. E u m dia pus-me a contar a inacredi tável h i s tó r ia de u m escriba eg ípc io .

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o ESCRIBA EGÍPCIO VAGUEIA POR MÊNFIS

Quanlo a esses escribas cie grande saber (jue vieram depois dos deuses, os seus nomes viverão mesmo depois de cies desa-parecerem e de os seus parentes serem Lodos esquecidos.*

A narrativa que se segue é solire uni desses letrados. C o m e ç o u assim:

O escriba cgí]Dcio — um jovem, diga-se de passagem — caminliava sem pressa, com destino a lugar nenhum. Vestia uma tún ica dc mangas esfiapadas, m u i to desbotada pelo uso e mosqueada de remendos. A barba e o cabelo eram exiraor-dinanameme compridos, mesmo que se tenha em conta a éjDOca na qual decorre a nossa h is tór ia .

Em Mênfis — a capital do I m p é r i o — viam-se a essa hora mais caixotes de l ixo , gatos e cães o rd iná r io s do cjue gente nos i n ú m e r o s becos c vielas marginados por casotas

IX' um p:i | ) i io d f s c o b f i L o cm Coplos.

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que serviam de lar às famí l ias dos pequenos func ionár ios , artífices, retalhistas, carroceiros e outros da mesma casta, em torno dos quais girava a maior parte das actividades da grande urbe. As vivendas grã-f inas (estilo I m p é r i o ) situax am--se em bairros selectos, fora do alcance visual da plebe ignara e descalça. C o n v é m fazer notar aqui que estamos n u m país de grandes sacerdotes, vizires, generais, magistrados e pro-eminentes func ionár ios da a d m i n i s t r a ç ã o e da segu rança do I m p é r i o . Passemos adiante.

O escriba deteve-se j u n t o a um enorme cartaz que d i -zia: O Faraó, nosso Imperador e Guia, tem um. olho sempre aberto, mesmo quando dorme. Tende cautela, conspiradores, os crocodilos do Nilo adoram carne humana.

E m seguida, lembrou-se de que se lhe esgotara a erva para cachimbo. Arrastou as solas até uma lojeca e a l i pediu u m pacote de Populares.

— Ponha na conta do Sumo Sacerdote, sou neto dele — disse ao empregado.

— Neto de Sua E m i n ê n c i a , andas sem taco, pedes fiado e fumas Populares. Caramba! — exclamou o sujeito.

— N ã o sou eu, mas os deuses, quem governa a roda da Fortuna. D i to doutra forma, para ser mais exp l íc i to : fu i sus-penso até à p r ó x i m a i n u n d a ç ã o do N i l o , por vontade de quem pode e manda, mas voltarei a ser o que era.

E, com esta tirada, o escriba foi-se embora dal i entoando a canção Õ Faraó, Imperador de todas as tribos, nós te saudamos.

Chegado à Grande Praça de Tu tankhamon reparou (|ue n ã o havia pombas al i . Na verdade, havia sete anos que o N i l o n ã o transbordava. O trigo custava agora três v í rgula catorze gramas de oiro o grão , de sorte que os ricos da cidade t inham perdido o h á b i t o de i r à p r a ç a a f im de passeai os seus cães de raça e dar de comer às pombas.

Segundo um cronista da época, todas as aves do I m p é r i o — da vulgar pomba ao abutre real e ao íbis sagrado — t inham batido asas para regiões menos famintas.

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O escriba parou e fez as suas ab luções n u m chafariz meio vazio. O lhou em seguida para um re lóg io solar e viu que este marcava sete minutos e sete segundos para as sete horas.

Ria-se ainda por causa dessa excessiva co inc idênc ia de setes quando deu de caras com um agente da L e i . N ã o resta-vam d ú v i d a s de que o po l íc ia , especado a l i , o observava com ar de manifesta desconf iança . O escriba cogitou: « O paspa-lho deste guarda é como toda a gente, ju lga os homens pela a p a r ê n c i a . Mas tenho a certeza de que na p r ó x i m a i n u n d a ç ã o ele passa rá a olhar-me com outra cara.» Passado u m pouco, acendeu u m cachimbo de barro azul, expeliu duas baforadas e disse consigo p r ó p r i o . «Eis que o bicho da fome começa a m o r d e r » . Apressou o passo, tomou por uma viela malchei-rosa, percorreu outras duas no género e por f im desembocou numa baiuca onde lhe serviram gafanhotos imigrantes com cebola e p i n p i r i . Virou-se depois para o basbaque do garçon, que t a m b é m fazia de caixa, e disse:

— Mande a conta ao Sumo Sacerdote, sou neto dele. O sujeito f i tou-o com os olhos m u i t o abertos e

perguntou: — Neto de quem?! — Do Sumo Sacerdote — repetiu o escriba. — Neto de Sua E m i n ê n c i a , olhe que n ã o parece. O escriba, quando já ia a sair, disse: — Nem tudo o que parece é. Identicamente, nem tudo o

que é parece. Aprenda isto, seu cretino, e deixe de fazer apre-ciações obtusas.

T u d o isto foi contado nesse mesmo dia ao Faraó . A m e n ó f i s X X V I I I (assim se chamava o Imperador)

interessou-se vivamente por tão peculiar escriba e admi t iu a possibilidade de o mandar prestar serviço nos es tábulos imper ia i s , cargo nada desprestigiante para u m letrado daqueles tempos, em especial quando a personagem sobre a qual incidi ra o olhar de lince de Sua Majestade era u m tipo useiro e vezeiro em pisar o risco t raçado pela L e i do Impé r io ,

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para a lém do iacto de bater as ruas de Mênfis com uma sus-p e n s ã o no bornal.

Mas, p r ime i ro que tudo, o Fa raó quis ter uma conversa com ele. Para se certificar, segundo o uso do antigo Egipto.

O ESCRIBA CONVERSA COM O FARAÓ

E, assim, o escriba eg ípc io foi conduzido à presença do Faraó .

Sua Majestade Amenóf i s X X V I I I era zarolho, pequenino e m u i t o gordo. T i n h a uma cabeçorra calva (se bem cpic dis-farçada por uma monumenta l jDcruca) e ostentava uma grande verruga na ponta do nariz.

O escriba, ao dar-se conta desta p rofusão de aiributos físicos, sentiu uma vontade louca de rir . Mas, recordando-se dos vorazes crocodilos mencionados no cartaz, começou a t i r i tar de frio, a despeito da brisa quente que penetrava atra-vés de l a rgu í s s imas janelas.

— Ora bem — preambulou Amenóf i s X X V I I I . — T u és, realmente, neto do Sumo Sacerdote, por conseguinte u m dos ramos ma i s ilustres da grande árvore nascida da cabeça do d iv ino T o t h , c]ue descobriu a Estrela Polar, inventou os três alfabetos, d i v i d i u o f irmamento em onze céus c o ano eni duas estações, fabricou o re lóg io solar dc três p o i u e i í o s e ensinou que o tempo no seu todo é composto pelo ]3reseu-te. pelo p re té r i to e pelo futuro?

• — Certamente que n ã o vou jurar nem t ã o - p o u c o gaian-tir. No entanto, é o que se diz por aí — respondeu o escriba.

O Fa raó mordeu o láb io inferior e a seguir disse:

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— C o m e ç a s t e m a l , j ovem escriba. A q u i no E g i p to Sagrado ou há certezas ou n ã o há . Toda a dúv ida é uma ofensa aos deuses, de u m dos Cjuais eu, vosso Imperador, sou a e n c a r n a ç ã o . Sendo assim, concedo-te um prazo de cinco dias para que descubras a verdade. E tem cuidado, os croco-dilos azuis es tão com fome e nunca dormem.

Durante um bocado, Amenóf is entregou-se a um jogo curioso: fechou e abr iu várias vezes o o lho bom. Finalmente ajuntou, martelando as palavras:

— A m o n - R á é o maior. Eu, a e n c a r n a ç ã o do d iv ino Horus, sou Imperador do Al to , do Médio e do Baixo Egipto. A F a r o í n a é a Imperatriz de todas as imperatrizes. O r io N i l o nasce no Pa ra í so . O boi Apis é deus. O L i v r o de T o t h é in -des t ru t íve l . O Egipto é a mais podero.sa n a ç ã o do Mundo. É ou n ã o é assim?

— Absolutamente — respondeu o escriba. — Eudo quanto Vossa Majestade acaba de afirmar é verdade... sem margem para dúv idas . Assim foi dito, assim será escrito.

— Ainda bem — rematou o Fa raó . — Agora põe-te a mexer. E n ã o te esqueças do prazo: são quatro dias mais um, i m p r o r r o g á v e l mente.

O escriba inclinou-se e beijou três vezes o pé esquerdo do Imperador, após o que disse:

— O tempo urge. Doravante, que o d iv ino T o t h me favoneie e i l umin e em todas as encruzilhadas, cujo n ú m e r o é maior que o das estrelas, até onde a minha vista a lcança .

Amenóf i s XXVIII soltou uma gargalhada a l t í s s ima e profer iu:

— J á agora apela t a m b é m ao d iv ino To t f i para que te guarde e guie em todos os becos sem saída, cujo n ú m e r o é pelo menos igua l ao dos crocodilos de ca rapaça azul, até onde a vista de u m rabiscador enxerga quando mergulha nas águas do maior de todos os nos.

— A h , pois! — disse o escriba. Fez uma ligeira pausa e acrescentou: — Com licença, iMajestade. — E, com isto, retirou-se do sa lão imper ia l . :; ;

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O E S C R I B A V E N C E A E S F I N G E

Quando o escriba eg ípc io chegou à rua estava tonto c banhado de suor. Esforçou-se no entanto a té se sentir melhor, posto o que lhe ocorreu que era necessár io empreender uma viagem à Grande P i r â m i d e a f i m de conversar com a Esfinge, a leoa-mulher, inventora e, por ine rênc ia , decifradora de todos os enigmas. Para tal, era preciso alugar u m camelo, p o r é m lembrou-se de que n ã o t inha u m chavo. « N ã o faz mal» , disse para consigo. « A l u g o o an imal e peço que enviem a conta ao meu avô.»

E, assim, pôs-se ele a caminho n u m d r o m e d á r i o dos mais baratos, uma pileca ronceira que só andava à força de uma lengalenga que o escriba n ã o cessava de recitar. Che-gado a Gize, o nosso heró i consultou o mais no táve l feit i-ceiro da região , mas este informou-o de que só a Esfinge podia decifrar tão grande enigma. «Vou procurar a inescru-tável fera», disse o escriba, resoluto. «Se der para o torto e ela me esganar, pelo menos fico livre dos crocodilos e de impera-dores horr íveis como o Faraó .»

Havia quinze séculos que nenhum viandante ousava passar por a l i . Deste modo, a leoa-mulher ficou mais espan-tada que o p r ó p r i o escriba. Este, depois de u m esforço sobre--humano para n ã o baixar a cara, disse ao monstro:

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— Sábia das sábias, f i lha dilecta do d iv ino A m o n , diz--me se sou neto daquele que proveio da grande árvore nascida da cabeça do d iv ino T o t h e que nas terras sagradas do Egipto é o segundo em grandeza e poder.

Os ouvidos da Esfinge, entupidos de areia, n ã o apreen-deram o sentido da incrível pergamta. As palavras do escriba perderam-se no deserto, de maneira que ele teve de as repetir.

— Essa é boa! — gr i tou a Esfinge. — Para tua informa-ção, sou eu quem faz perguntas. — Ficou silenciosa; depois bradou: — Ou respondes tu mesmo ou esborracho-te como se fosses uma pulga. Dou-te meio segundo.

O escriba m u r m u r o u : — Estou em maus lençóis . — Mas em seguida, sem uma hes i tação , por simples palpite, desfe-chou: — N ã o sou neto do Sumo Sacerdote, que se l ixe!

U m urro pungente de an imal ferido reboou no deserto. Era esse o procedimento do monstro quando se via apa-nhado. Passados instantes, declarou em voz ainda forte mas donde se t inha dissipado o tom de v io lência : — Adivinhaste, e com isso eu f iquei arrumada. Tan to pior para Amenóf i s . Grandes coisas vais tu realizar, és a r e e n c a r n a ç ão daquele he ró i cujo nome n ã o ouso pronunciar.

— Sou o p r o d í g i o destes tempos, eis a c o n c l u s ã o — disse o escriba em voz m u i t o alta, embora falasse agora consigo mesmo.

Quando o lhou para a Esfinge, v iu que ela se convertera numa es tá tua de pedra. Em seguida, escarranchou-se no dro-m e d á r i o de aluguer c disse à desajeitada a l i m á r i a : — Voarias se soubesses quem é o homem que levas no dorso.

Chegado às portas de Mênfis, u m cego veio ter com ele e disse-lhe que o imperador dos hi t i ias acabara de invadir o Egipto. Sua Majestade Amenóf i s X X V I U , abandonado pela guarda palaciana, t inha fugido para Tebas das Sete Portas. O escriba, mais amigo de si p r ó p r i o que de el-rei, lembrou--se do que pronunciara a Esfinge: « G r a n d e s coisas te reserva o Des t ino .» Acto c o n t í n u o , improvisou uma m ú s i c a para acompanhar tão lindas palavras. «Se eu tivesse um instru-

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mento de cordas!» — exclamou ele. «Mas n ã o , o que eu pre-ciso é de uma boa lança c de palavras igualmente afiadas. Deixei de ser neto de quem se supunha; por outro lado, tal-vez salve o I m p é r i o e venha a ser vizir ou. . .» Deixou a frase por tei minar, pois, de súbi to , acudiram-lhe à mente os esfo-meados sáur ios do Imperador. Eram mais de quinhentos c obedeciam à voz de Amenóf i s X X V I I I . « N ã o , agora quem está em apuros é Sua Majestade. Obviamente, pois cada cava-leiro do imperador h i t i t a vale por cem crocodilos de S. M . o F a r a ó . N ã o há tempo a perdei. Compro uma lança c mando pô r na conta do Sumo Sacerdote, ou melhor, na conta do F a r a ó . U m dia ver-se-á ciuem vale mais — eu ou o zarolho do I m p e r a d o r . »

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S EG U N D A C O N V ER S A C O M O FA RA Ó

A o en tra r em Mên fis, o escriba eg íp cio fico u su rp reen d id o, já q u e n ã o esp erava en co n t r a r t an ta a n im a çã o n a g r a n d e u r -be. C o m efeito , os vend ed ores hebreu s a p r eg o a v a m os seus ar-t igos em a ltos brad os; as ca r r oças i a m e v i n h a m , carregad as de éb a n o , t r ig o , v in h o , in cen so , láp is-lazú li, et caetera; os d esem p regad os, ciceron es, m en d ig o s , tu r is t a s p ersas, vaga-b u n d os , m eretr izes, estu d an tes em fér ias, e n f i m , u m m a r de gen te d escia e su b ia a r u a ín g r em e e sem ead a de bostas q u e ia d ar à P r a ça de T u t a n k f i a m o n . Os a r d in a s , o u seja, os ven d e-d ores de p a p ir o s escr itos à m ã o d e a m b u la v a m p ela en or m e p raça , em d em a n d a de le ito r es in teressad os em n o t ícia s . «As ú l t i m a s !» , a p r e g o a v a m esses m a l t r a ja d o s se r v id o r es d a Im p r en sa . Ap en as o céu se ap resen tava a lg o p a r d a cen to , s in a l de q u e os g a fa n h o t o s p r ov en ien tes d o Su d ã o t i n h a m feito im na n ov a in v es t id a .

O escr iba p en so u : «Pelos v istos, tão ced o n ã o v o u p r eci-sar d u m a la n ça . O m e lh o r é co m p r a r u m p a p i r o a ver o q u e h á .» Passado u m m o m e n t o , p eg o u n u m m a t u t i n o e p e d iu ao vend ed or, qu e fico u a o lh a r p a r a ele com o se estivesse p eran te u m lo u co ev a d id o , q u e o pusesse na con ta de S. M . o Fa r a ó .

O p a p i r o d iz ia , em su b s t â n cia , q u e fo r a d escoberta u m a con sp ir a çã o con t r a o soberan o. O cabecilh a d o g r u p o era u m

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rebeld e cego e ex-la d r ã o de t ú m u lo s , a q u e m a p o l ícia d eita r a as u n h a s à en t r ad a de M ên fis e en v ia r a p a r a o For te de Ka r n a k , em Tebas. A lém d isso, fo r a d etectad o e d esm an te-la d o o q u a r t e l-g en e r a l d os rebeld es nas p r o x im id a d e s d o Va le d os Reis. U m co m u n ica d o de i^d tim a h or a d ava co m o certa a co n d en a çã o à m o r t e d o líd er a p r is io n a d o e fazia lem -b r a r , com g r a n d e ên fase, q u e S. M . A m en ófis XXV I I I ja m a is i n d u l t a v a os i n i m i g o s d o Im p ér io . (O d esenho d e u m m o r -cego p reso p elas or elh as i lu s t r a v a o even to.)

«Vo u ter q u e p r o cu r a r o Fa r a ó , p o is o p razo de cin co d ias e xp i r a h o je », d isse o escr iba con s ig o m esm o.

E d esan d ou d a l i em d ir ecção ao p a lá cio i m p e r i a l , on d e f o i r ecebid o p o r Su a Majestad e, d ep ois de esp erar u m a eter-n id a d e , o u coisa p a r ecid a .

— Esp ero q u e ten h as d escober to a verd ad e, caso con t r á -r i o vais serv ir de ja n t a r aos cr ocod ilo s azu is — p r o fe r i u a en ca r n a çã o de H o r u s , isto é, o Fa r a ó d o A l t o , d o Méd io e d o Ba ixo Eg ip t o .

— Pois cla r o — d isse o escr iba . — De o u t r o m o d o , n ã o estar ia n a p r esen ça d e Vossa Majestad e.

O Fa r a ó m u d o u l ig e ir a m en t e de cor , s in a l de q u e fica ra im p r es s io n a d o co m o t o m ca lm o e f i r m e em q u e a frase t i n h a sid o p r o n u n c i a d a . * " ^ ; •

— D iz lá en t ã o — o r d e n o u o m o n a r ca . O escr iba, sem p erd er o a u t o d o m ín io , d isse: — Posso asseverar-lh e q u e n ã o sou n eto de q u e m se

s u p u n h a , fiz o teste d a Esfin g e. O Im p e r a d o r cor r eu o in d ica d o r esqu erd o p ela g r an d e

v er r u g a n o n a r iz . E m segu id a fa l o u : — Estás a co r t a r v o lt a s , m as p o r essa v ia n ã o te safas.

I'''actos são factos, a d tív id a su bsiste. — N ã o t en h o q u a lq u e r d ú v id a , p o is sei q u e n ã o sou

n eto d o Su m o Sacerd ote, m e lh o r d iz en d o , de Su a Em in ê n cia . C o m o já e x p l i q u e i a Vossa Majestad e, fiz o teste da Esfin g e .

A m en ófis v o l t o u a coça r a v er r u g a e p r o fe r i u : — C o n t in u a s a o b l i q u a r . N ã o , m o ço . O que d escobr iste

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é ap enas u m d os lad os d a verd ad e. Mas a verd ad e, p ara qu e g a n h e a con s is t ên cia de u m a certeza a bso lu ta , tem de ap re-sen tar d u as faces ig u a lm e n t e claras. Exp l i co -m e : estás segu ro de q u e n ão és n eto de q u e m su p u n h a s ; p o r o u t r o lad o , ig n o -ras q u e m é o m a d u r o q u e g er ou o teu p a i . C o m o vês, h á d ú v id a . E neste Im p ér io , on d e y \ m on -Rá é o m a io r , n ão p od e h aver d ú v id as. O u s im o u sop as, co n fo r m e d iz ia o m eu an te-p assad o Q u eop s, o co n s t r u t o r da Gr a n d e P ir â m id e .

A m en ófis fez u m a p au sa e v o lv e u : — É o u n ã o é assim ? — Pois é. Majestad e, m as h á -d e con ced er -m e n o v o p razo

p a r a eu a p u r a r a verd ad e, m a is exactam en te, a certeza a b so lu t a .

O Fa r a ó , desta vez, n ã o coçou a v e r r u g a . L i m i t o u -s e a d izei':

— Seja! D o u -t e t r i n t a segu n d os, n e m m a is u m d écim o . O escr iba , con ser v an d o a sua p r esen ça de esp ír ito , re-

d a r g u i u : — O m eu avô n ã o p od e ser o u t r o sen ão aqu ele qu e

g er ou o m eu p a i . E co m o sei q u e m é o m eu p a i , v ou p e r g u n -tar a este.

A m en ófis v o l t o u a passar o d ed o p ela g r a n d e v er r u g a e p r o fe r i u :

— D o u -t e u m p razo de t r in t a d ias, con tad os a p a r t i r d o p ôr -d o-so l de h o je , já q u e desta vez o n ó é de fazer q u eb r a r as u n h a s . É b o m n ã o esqu ecer: n o Sagrad o Eg i p t o q u e m tem d ú v id as é la n ça d o aos cr ocod ilo s azu is. A g o r a toca a m exer !

— Qu e o d i v i n o T o t h m e p r o t e ja — d isse o escr iba . —- E m tod as as en cr u z ilh a d a s e becos sem saíd a — acres-

cen t o u o obeso Im p e r a d o r .

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o E S C R I B A É P R E S O

Ao descer a longa escada de setecentos degraus, o escriba eg ípc io notou que havia dois homens armados de Jança em cada patamar.

«Eis um mau s inal» , pensou ele. « T o d o s estes lanceiros signif icam que o Faraó se pôs em guarda. A guerra n ã o deve tardar. Em c o m p e n s a ç ã o , o facto de o n ú m e r o de degraus deste pa l ác io ser igual à soma dos caracteres que fu i obr i -gado a aprender para o exercício da minha prof issão só pode ser entendido como u m a u g ú r i o que me favorece.» O escriba vol tou a lembrar-se da profecia da Esfinge e riu-se, encan-tado.

Chegado à P raça de T u t m ó s i s — a p raça do mercado, segundo a des ignação popular —, i n t u i u algo de perigoso no ar. Ten to u furtar-lhe as voltas, mas embalde, pois u m grupo de guardas — à s e m e l h a n ç a de um enorme polvo — caiu-lhe em cima. N o instante imediato, puseram-lhe um desenho à frente do nariz, exigindo que decifrasse a imagem a l i representada.

— M u i t o bem — disse o escriba numa voz calma. — Este desenho simboliza a luz diurna.

— Ora vês?! — exclamou o chefe do bando. — N ã o reco-nheceste a imagem do d iv ino A m o n - R á , temido nos três ter-

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r i tór ios do Egipto. Como se explica isso? Da seguinte forma: que és cego ou í m p i o , o que vem a dar no mesmo. Ora acon-tece que o nosso Fa raó mandou prender todos os invisuais do I m p é r i o , já que o cabecilha dos rebeldes acaba de evadir--se do Forte de Karnak. Por d e t e r m i n a ç ã o imper ia l , todos os cegos serão detidos até que seja posto a descoberto esse peri-gos í s s imo fora-da-lei e bem assim os seus apaniguados e toda essa corja de rebelados, para que as terras sagradas do N i l o f iquem limpas, tal como no alvor dos tempos — quando o d iv ino H o r u s - G a v i ã o encarnou, pela pr imeira vez, sob o nome de Pepi, «o F u n d a d o r » . Para terminar: estás preso sob a acusação de actividade subversiva agravada por flagrante delito de vadiagem e uso de erva proibida.

Após este arrazoado de u m C|uarto de hora, o escriba interveio:

— Está enganado. Chefe. Eu sou u m trabalhador zeloso e pontual , respeitador da ordem e da grei, fiel ao Imperador do Egipto e m u i competente na minha profissão, a qual me obriga a conhecer, de cor e salteado, os setecentos caracteres das três escritas nacionais — a hierogl í f ica , a h ie rá t ica e a demót i ca . Quanto ao desenho que me mostraram, ele é real-mente a imagem, ou melhor, a efígie do d iv ino A m o n - R á , a qual , por sua vez, simboliza, como at rás referi, a claridade diurna. Mas é natural que a expressão tenha soado de forma algo estranha a ouvidos alheios a tais subtilezas. A coisa, no entanto, é descu lpáve l , tanto mais se tivermos em conta a minha c o n d i ç ã o de letrado. Pelo que se deve p ô r de parte a h ipó te se de eu ter procurado ludibr iar a Autoridade. Dign ís -simo Chefe, penso tê-lo devidamente esclarecido. Sendo assim, a jus t i ça manda que o senhor liberte um mui to leal e dedicado s ú b d i t o de Sua Majestade, com quem, a l iás , estive há coi.sa de meia hora.

A expressão do chefe, p o r é m , denotava incredulidade. jj-,;. Virou-se para os subalternos e grasnou: r,, ,í — Conduzam o f inór io a Tebas, sob a acusação de acti-

vidade subversiva, uso de erva e parasitismo. Em Karnak,

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perante os verdugos de Sua Excelência o Governador, vere-mos se ele continua a armar em esperto.

U m dos homens, certamente um graduado, zombou: — Pfff... n ã o creio. Sua Excelência manda cortar a l ín-

gua ao vivaço e era uma vez a lábia. — Na p i ó x i t n a i n u n d a ç ã o do N i l o , vocês todos hão-de

arrej3ender-se de me terem posto a m ã o em cima — replicou o escriba, — Ficariam desde já aflitos se soubessem o que a Esfinge me disse. Agora, outra coisa: espero que se me propi -cie a possibilidade de ser assistido por um caus íd ico durante o i n t e r r o g a t ó r i o .

— Causí . . . o que é isso? — Advogado, quis eu dizer. — Advogado, uma ova! Invocas uma praxe j á caduca,

do tempo do an t i f a r aó Akenaton, «o Heresiarca Mald i to» , falsei profeta, usurpador de má m e m ó r i a , perseguido em vida pelos fantasmas dos deuses e dos mortos, excomungado por cinco gerações de Sumos Sacerdotes, decapitado e in imiado no barro do deserto, sem as honras funerár ias , que são: o embalsamamenio, os cânt icos religiosos, a imagem de Amon--Rá na cabeça, a biografia l endár ia do defunto e a sepidtura acima do solo.

— A h , pois! — disse o escriba. E, assim, o vencedor da Esfinge, fortemente amarrado,

foi conduzido ao p res íd io de Karnak.

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o F O R T E D E K A R N A K

O re lóg io oficial de três ponteiros indicava dez horas, dez minutos e dez segundos quando o escriba eg ípc io , de pulsos e tornozelos atados, ouviu fechar-se atrás de si u m dos i n ú m e r o s por tões do maior p res íd io do I m p é r i o .

Dotado de 150 torres de vigia, 1200 masmorras e 300 câmaras de tortura, o Forte de Karnak — a Choça do Gavião, segundo a de s ignaçã o popular — fora mandado erigir no século VIII (antes da nossa Era), a f i m de pô r na l inha os in imigos do faraó Mentuhotep, «o Uni f i cador» . Demol ido no tempo do an t i f a raó Akenaton, «o Heresiarca Mald i to» , foi reedificado por d e t e r m i n a ç ã o do bisavô do actual imperador, passando a contar, desde en t ão , com 20 cercos de pedras de cmco toneladas. A par t i r dessa época introduziu-se no forte a famosa tortura do gongue de bronze, especialmente dedic ada aos prisioneiros de elevada in te l igênc ia (visto que os psicíMo-gos daqueles tempos haviam já i n t u í d o que o barulho cas-tiga a massa cinzenta). Ao todo, passou a haver na Choça (h> Gavião três m i l tipos de sup l í c i o da classe A e quatro m i l e 500 da classe B, afora os que i am surgindo conforme a inspi-ração de cada governador, ou do seu carrasco-mor.

O forte estava sob as ordens de u m governador a (jucm se a t r i b u í a m 500 m i l assass ínios , entre in imigos oficiosos e

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privados. O corpo de guardas era formado por dez m i l lan-ceiros e quatro m i l e 500 soldados armados com maças . Os verdugos, em ni jmero de m i l e 600, eram todos n ú b i o s pos-santes, com dois metros e tal de altura. Olhando-se para esses brutamontes, tinha-se a i m p r e s s ã o de terem sa ído da l â m -pada de Alad ino , «o Mágico» . Além de castrados, esses paqui-dermes humanos eram todos mudos, uns de nascença e outros por lhes terem decepado o ó r g ã o da fala.

Qualquer outro que n ã o fosse o escriba eg ípc io ficaria estarrecido ao dar entrada nesse monstruoso lugar. Mas o vencedor da Esfinge mant inha a sua habitual presença de esp í r i to , confiante que estava nas duas certezas da sua vida: a de voltar a ser quem era na p r ó x i m a enchente do N i l o e a de saber-se u m homem predestinado, em virtude do que ouvira da Esfinge. Assim protegido, que viessem o governador e os algozes n ú b i o s ; que viesse o p r ó p r i o Amenóf is XXVIII. Por acaso, lembrou-se da grande verruga na penca do Faraó . «Ah! A h ! A h ! Sua Majestade está convencido de que a ver-ruga é A n ú b i s , o deus protector do nariz, quando se trata de uma monstruosa bossa nasal. Eis uma anedota bastante gira! Mas chega de riso, enfrentemos agora a grande fera.» O

-í» • nosso heró i referia-se, como é evidente, ao governador de ff-;, • Karnak, à p resença do qual foi imediatamente conduzido,

. í n N o corredor ( m i l e 500 pés de comprimento por 30 pole-

gadas de largura) chegavam até ele os gritos dos supliciados. Mas nem por isso deu sinal de ficar assustado. Pelo cont rá-r io , caminhava no meio da escolta tal qua l um faraó enqua-drado pelo s é q u i t o imper ia l . «Enf ren temos a grande fera», r(.'peiiii ele. < „

se • 10

O E S C R I B A P E R A N T E RAMÓSIS, O G O V E R N A D O R

R a m ó s i s , o governador da Choça do Gavião, estava ins-talado no seu cade i rão de é b a n o com embutidos de oiro e láp is - lazúl i .

Olhar para tal homem era o mesmo que ter uma m ú m i a pela frente, mas uma m ú m i a com olhos de salamandra e boca de rã velha.

O escriba eg ípc io pensou: « A l g u é m que n ã o fosse um predestinado ficaria a tremer de susto ao deparar-se-lhe este cadáver evadido do Vale dos Reis. A falar verdade, eu nunca t inha visto u m tipo tão horroroso. N u m concurso de mons-tros, R a m ó s i s seria o vencedor, ainda que concorressem todas as figuras de pesadelo, inc lu indo Sua Majestade Amenófis , Quantos anos terá este b a t r á q u i o gigante? Ele p r ó p r i o já deve ter perdido a con ta ,»

— És acusado de cegueira, que é como ciuein diz: uni re-gicida em potencia; e h á ainda dois factos adicionais: para-sitismo c consumo de erva proibida — at i rou Ramós i s , A voz do escaveirado governador era igualzinha à figura — uma a r t i cu l ação de meter medo, plena de ressonânc ias tumulares. R a m ó s i s , depois de arquejar lastimosamente, a braços com um ataque de asma, prosseguiu: — Espero que as tuas alega-

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ções sejam convincentes. De con t r á r io , terás de piovar a ementa do dia, que eu ainda n ã o sei qua l é, mas que é de certeza cons t i t u ída por seis pratos bem apetitosos. J á ouviste falar do gongue de bronze? Pois bem, tal p i t éu está reservado aos intelectuais. — O temível m q u i r i d o r calou-se e l ançou u m olhar ao escriba como a dizer: «Agora fala tu, seu f i lho da. . .»

O vencedor da Esfinge tomou a palavra: — N ã o queria ofender, mas... cego é quem me prendeu.

Senão, vejamos: à d i s tânc ia de m i l pés distingo os setecentos caracteres das três escritas em uso neste I m p é r i o e, se Vossa Excelência quiser dar-se ao trabalho de mandar vir uma folha de papiro, t inta e p incé is , posso fazer-lhe um retrato em tr inta segundos. Juro que sou u m escriba m u i compe-tente, embora oficialmente inacdvo até à p r ó x i m a enchente do N i l o , conheço Sua Majestade em pessoa, com quem, de resto, já conversei u m par de vezes, sou temente a A m o n - R á , cuja efígie simboliza a claridade diurna, como eu declarei aos cegos que me prenderam, e fiz, com m e n ç ã o honrosa, o teste da Esfinge. Desconheço , infelizmente, o meu avô, mas espero sabê-lo dentro de u m mês; para isso tenho u m prazo concedido pelo p r ó p r i o Faraó , o augusto Amenóf is xxvni , e tudo quanto bebo, manjo ou gasto é por conta de Sua Majestade, dada a nossa conf iança . N ã o sei se falei pouco ou mui to e se a minha a r g u m e n t a ç ã o convenceu Vossa Exce-lência .

T u d o isto fora pronunciado com a m á x i m a descontrac-ção, apesar de o escriba se conservar de pé e amarrado. O rosto cadavér ico do governador teve u m assomo de sangue e l icou l i l á s -desma iado .

— Conversa fiada! Paleio de bisnau! — rosnou o hediondo R a m ó s i s . — C o n h e ç o de sobra a pa l r açã o dos pás-saros da tua espécie. Nunca encontrei u m que fosse gago. Todos mânf io s de grande lábia . Mas vamos ao que interessa, para poupar tempo. Primeiramente, quero ver-te depenado dos pés à cabeça, isto é, despojado da trunfa, da barba, das

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sobrancelhas e tudo o resto. Depois, quero ver decepada essa l í n g u a bífida. A seguir... bem, já que tens a sorte de apa-nhar-me n u m dia de excepcional bom humor, sempre gostaria de ver o tal retrato em tempo recorde. Vou dar ordens para que tragam papiro-, t inta, pincel e, já agora, u m cavalete.

Momentos depois, os materiais foram postos à disposi-ção do arusta. Este, como é óbvio , pediu que lhe desatassem os braços . R a m ó s i s , no entanto, achou que seria mui to arris-cado ter u m t ipo tão perigoso semi -à -von tade dentro da sala de aud iênc i a s .

— Est ipulo que faças a d e m o n s t r a ç ã o conservando uma das m ã o s entravada. Caso n ã o possas fazê-lo sob essa cláu-sula, ver-mç-ei obrigado a cancelar a exper iênc ia , com mui ta pena, escriba dum raio.

— Aceito — disse o vencedor da Esfinge. — Queira Vossa Excelência autorizar que eu me sirva da m ã o esquerda. . Pegou do pincel . Zás-trás, zás-trás. Nem precisara de olhar para o retratado.

O governador estava maravilhado. A imagem, de facto, era uma perfeição. Ademais, o modelo fora retocado a ponto de perder uns cinquenta anos. Tratava-se, realmente, do retrato a corpo inteiro de R a m ó s i s aos oitenta anos, isto é, de u m governador mais ou menos jovem e formoso como um b a t r á q u i o . Com o quadro na m ã o , o pitoresco general inver-teu a fala: i \ .(.^ :!';M>;. ;

— Formidáve l ! Ganhaste. Factos são factos. Pois bem, sendo tu u m artista de grande craveira n ã o é possível que estejas a opor-te aos deuses, que são a fonte de toda a ins-p i ração e donde provieram as leis que regem este Impé r io . Ora bem, nomeio-te meu p in tor , para que me imortalizes e possas, outrossim, registar para a posteridade os feitos glo-riosos que se cometem no Forte de Karnak. Eh, guardas, tirem-lhe as peias e conduzam-no ao d o m i c í l i o de Ptahho-tep, o ex-pintor.

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o can-asco-mor quis saber o que se havia de fazer a Ptahhotep, uma vez que fora nomeado u m novo pintor . O manda-chuva de Tebas pronunciou :

— Arranquem-lhe os dois olhos e depois assem-no vivo. Assim me l iv ro de u m p in to r de macacos e ofereço carne assada como p r é m i o de e m u l a ç ã o aos verdugos mais pontua-dos na jornada de hoje. — E virando-se para o escriba per-guntou : — Agora diz-me como te chamas.

— N ã o posso revelar o n:ieu nome, em c i r cuns t ânc ia s nenhumas, por d e t e r m i n a ç ã o de ciuem mandou suspender--me até à p r ó x i m a enchente do N i l o — declarou o vencedor da Esfinge.

— Pronto, podes ir-te embora. Eh! Fica assente que a m a n h ã fazes o rena to da minha mulher .

— Combinado — disse o novo p in to r de Sua Exce lênc ia enquanto u m ligeiro sorriso lhe aflorava aos lábios . Fez uma vénia e retirou-se no meio de dois guardas armados de lança .

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O S O N H O DO E S C R I B A

O alojamento de Ptahhotep, o ex-pintor, só era domic í -l i o na expressão i rón ica de S. Exa. R a m ó s i s . Na verdade, o escriba eg ípc io foi instalado num b a i i a c ã o asfixiante e ]3avo-roso, sobretudo atendendo à qualidade dos seus milhares de: i nqu i l i nos : gafanhotos do Sudão , baratas assí r ias , formigões ; da Arábia , ratos do N i l o , t a r ân tu l a s do Baixo Egipto, mos-quitos de Sais, percevejos do Vale dos Reis, p u l g õ e s da Pér- , sia, cágados da Eurás i a , centopeias dos Himalaias , lacraus da Bab i lón i a , morcegos da Somá l i a , ei caciera. T a l era o zoo

• que a mente perversa de R a m ó s i s concebera e mandara msta-lar em todos os recantos da Choça do Gavião, exceptuando, como é evidente, os seus j^rópr ios aposentos e a sala de aud iênc ia s . Qualquer outro que n ã o fosse o vencedor da Esfinge ficaria gelado de terror. Mas ele deu de ombros achando que tudo ia às nr i l maravilhas. Recorrendo à imagi-n a ç ã o , piedicado com que os deuses o haviam fartanrentc brindado, senliu-se a residir no p a l á c io do rei Sa lomão, Refrescou a boca com a á g u a barrenta de uma bodja onde se l ia «Agua Sagrada do Nido — produto de qualidade» e, no instante imediato, meteu-se na cama. O co l chão devia estar enchido com pedras; u m saquinho cheio de espinhos fazia dc travesseiro, O escril)a, p o r é m , imaginou-se a repousar sobre almofadas de penas conr bordados alusivos ao Amor, l i tc\u m sonho bonito.

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Sonhou que a Rainha de Sabá fora vè-Io para o cumular de beijos e oferendas, pois ouvira falar de u m p r í n c i p e , audaz como nenhum-out ro e insuperáve l no anaor. A voz da Rai-nha eram acordes de harpa, e os seus lábios t inham o calor e a doçu r a dos de Sulamite, a promedda de S a l o m ã o , A mtjsica de fundo era o Cântico dos Cânticos, entoado pelas ninfas do Ni lo , Mas, neste ponto, a l g u é m i r rompeu na alcova, R a m ó -sis, evadido de u m sepulcro e enfaixado como uma j n ú m i a , vinha reclamar, em altos brados, a Rainha, sua esposa legí-tima, e ameaçav a o nosso herói com todos os castigos que a Le i prevê para os delitos carnais. A Rainha protestou dizendo que ela amava o p r í n c i p e e que seria dele até à morte, «Pois seja!», rouquejou a medonha criatura, «mor-ram e n t ã o os dois». Acto c o n t í n u o , entraram 200 verdugos n ú b i o s e amarraram os dois amantes, O escriba soliou i m i gri to, não por si mas pela Rainha. E acordou em cima do c o l c h ã o de pedras, mordido por lacraus bab i lón icos c tarân-tulas do Baixo Egipto, Observou em volta; estava tutlo con-forme,. Nem R a m ó s i s , nem a Rainha, nem os eunucos. O l h o u para os braços ; as mordeduras, sim, eram reais. « O u me engano mui to , ou algo de e x t r a o r d i n á r i o está para suce-der e não tarda», m u r m u r o u o vencedor da Esfinge. I n v o l u n -tariamente, pensou na mulher de R a m ó s i s , a quem la fazer u m retrato. « E u te esconjuro, bruxa velha e desdentada, que deves ser mais feia que u m sapo vesgo.» Levantou-se com u m movimento brusco e encheu u m copo de água . Reparou e n t ã o cjue a escova de dentes estava quebrada e que o sabão dent í f r ico era produto iracional. «Ora bolas, merda para isto!» — praguejou. «Além de to rc ioná r io , R a m ó s i s é for-reta.» Fez uma pausa e acrescentou: « A m a n h ã peço a substi-t u i ç ã o desta mí se r a toilette. P r ò l i x o estes produtos antediluvianos! As nossas estruturas de confecções artesanais n ã o saem da cepa torta por culpa de faraós zanagas e com verruga no nariz. Mas isto vai mudar. Eu, o vencedor da Esfinge, por T o i h o ju ro , por T o t h e pela Esfinge».

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RAMÓSIS V E R S U S REBELIÃO

O novo p in to r estava à espera que viessem c h a m á - l o para fazer o retrato da esposa de R a m ó s i s . Isso, p o r é m , tarda-ria a lgum tempo a concretizar-se. Vejamos p o r q u ê .

Ora, uma mensagem procedente de Mênfis com destino ao Forte de Karnak, recebida a tempo e hora por S. Exa. o Governador, que, por inerênc ia , era o comandante-chefe das vinte regiões militares de Tebas, dava conta da maior insur-reição dos ú l t i m o s quinhentos anos.

Seria por de mais fastidioso, se n ã o imposs íve l , transcre-ver, por extenso, as i n ú m e r a s siglas envolvidas neste confl i to cjue os cronistas da época denominaram A Rebelião ML PRÁ FRENTE, isto é, de movimentos, ligas, partidos e fren-tes. De um ro l de mais de tr inta m i l siglas, realcemos as p r i n -cipais (segundo dois pontos de vista: a i m p o r t â n c i a real e a originalidade expressiva) — Liga dos Cegos e Ladrões de T ú m u l o s , Frente Unida dos Estivadores Descalços , L iga dos Dissidentes do Parudo Ú n i c o , Movimento de L ibe r t ação dos Escribas Irreverentes, L i g a dos Estudantes Analfabetos, Movimento dos Adoradores da Estrela Polar, L iga dos Tem-plá r ios sem Pernas, Frente Pa t r ió t i ca A n t i - F a r a ó , M o v i -mento dos Mercenár ios Estrangeiros, L iga Amorosa da Flor

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de LOLLKS, Partido dos Rebeldes do Qu in to Dia, Frente Or-ganizada Ant i -Abor to , L iga dos Homossexuais N ã o In -tegrados, Partido dos Fumadores de Eivas Proibidas, Fren-te Nacionalista P ró -Democrac i a , Partido contra a Explora-ção das Mulheres Bem-Feitas, Frente dos Pa lhaços de Cir-co, Partido do Traba lho sem H o r á r i o , L iga dos Contra-banchstas de M ú m i a s , F rente dos Aíágicos Desempregados, Movimento E g í p c i o do Caranguejo Azul, L iga Sulista A n t i --Genoc íd io , Movimento dos Amigos do Ócio , L iga dos Anões Reformados, Movimento Iconoclasta Solar, L iga dos Poetas e Músicos A n ó n i m o s , Parudo Progressista do Crocochlo Des-dentado, L iga dos Tocadores de Flauta de Cana, Movimento dos Ateus Esquecidos, Partido de Luz e Progresso, L iga Des-port iva U m por Todos e Todos por U m , Movimento dos Soldados no Ex í l io , Partido dos Combatentes Veteranos sem Alojamento, Frente Racionalista Anti-Obscurantismo, L iga dos Homens de Cabeça Rapada e Movimento Pacifista para Acabar de Vez com a Guerra.

Deixando de fora a versão dos eruditos oficiais e bem assim a dos mís t icos , char la tães , d o u t o r õ e s e sábios excêntr i -cos, ou seja, visto o assunto sob o prisma da objecdvidade, pode afirmar-se que a maior parte desse movimento n ã o pas-sou de marchas ordeiras, embora sem o benep lác i to faraó-nico. Mesmo assim, n ã o escassearam tumultos nas aldeias menos obscuras e acções de certa maneira violentas por parte da guerr i lha urbana. Os camponeses, como é habi tual , man-daram passear os cabecilhas e a mãe destes. O total das bai-xas foi de 200 m i l rebeldes e de .500 soldados de Sua Majestade, entre guerreiros ec]uestres, combatentes em veícu-los de duas rodas e lanceiros e maceiros pedestres. O brutal R a m ó s i s , sempre ele, incendiou três m i l aldeias (Coptos e Tur i s , inclusive), capturou e mandou passar a ferro 50 m i l «filhos duma cadela» — entre os quais velhos, c r ianças , ce-gos, coxos, manetas, pa ra l í t i cos , surdos e mudos —, causando com isso forte i m p r e s s ã o nas almas santas, poé t icas e que-jandas, que t a m b é m as havia naqueles priscos tempos.

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R a m ó s i s c o seu exérci to de bravos regi essa ram a Tebas após sete dias de uma campanha á rdua , mas coroada de êxi-to, que encheu o Governador de louros c i nundou as mas-morras da Choça do Gavião de piisioneiros oriundos de qua-tro m i l aldeias e cidades do I m p é r i o . Isto tudo, sem que o vencedor da Esfinge soubesse dc nada.

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A C A M P A N H A C O N T R A O S R A T O S D O N I LO

En t r e o u t r o s , h a v ia u m costu m e a n t iq u ís s im o na Choça do Gavião: q u a n d o o g o v er n a d o r se au sen tava d o for te , n i n -g u ém p o d ia a b a n d o n a r o r esp ect ivo a lo ja m e n t o , n em m esm o a esposa de Su a Exce lên cia . É cla r o q u e u m a p r a xe tão abs-tru sa n ad a t in h a a ver co m as act iv id ad es exclu s iv a m en te p o l icia i s d o p resíd io , já q u e a r ig o r osa v ig i lâ n cia e a tre-m en d a r o t in a de in t e r r og a tó r ios e t o r t u r a d os p r is io n e ir o s n u n ca p o d i a m cessar, fosse cju a l fosse o p r e t ext o . Q u er d izer : ap enas os loca tá r ios civ is em p regad os n o for te e r a m co m p e l i -d os a en cafu ar-se nas resp ectivas tocas, o qu e n ã o q u er d izer q u e ficassem aí a p r eg u iça r . N a d a d isso — t r a b a lh a v a m à p o r t a fech ad a .

Em co n seq u ên cia , o escr iba eg íp cio f i co u sequ estrad o n o seu ba r r acão d u r a n t e os sete d ias q u e d u r o u a ca m p a n h a con t r a os MLPRAFRENTE. O ven ced or d a Esfin g e e x ig iu qu e lh e d essem u m a exp l ica çã o , mas n in g u é m estava a u t o r i -zado a e xp l ica r -lh e fosse o q u e fosse. Só o G o v e r n a d o r p o d ia fazê-lo. O escr iba r esign ou -se. E, sem m ais con versa , esp erou qu e Ra m ó s is voltasse. En q u a n t o isso, p a r a m a t a r o t em p o , já q u e n in g u é m lh e t in h a m a n d a d o p i n t a r coisa a lg u m a , fo i e xp e r im e n t a n d o am an sa r os seus vár ios co m p a n h e ir o s de cla u su r a , a com eça r p elas cen top eias d os H i m a l a i a s . N ad a

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m ais s im p les , u m a vez q u e tais m ord ed ores se t o r n a v a m d óceis sem p re q u e o d o m a d o r lhes m ost r av a a im a g e m de H o r u s -G a v iã o co lo r id a de a m a r e lo . Os lacrau s d a Ba b i ló n ia er am sen síveis à m a r ch in h a Ó Faraó, nós te saudamos. Os p ercevejos d o Va le d os Reis e os p u lg ões d a Pér sia , i n cr iv e l -m en te , d etestavam as ton a lid ad es d o v e r m e lh o . Ap ós vár ias exp er iên cia s , o escriba e n co n t r o u a so lu çã o : os vorazes su gad ores a d o r a v a m o azu l-celeste m is t u r a d o com u m p o u co de verd e-alface. N e m a m ú sica n em as cores d er a m C}u alqu er r esu lt a d o n o tocan te às baratas n a t iv a s . «Deste la d o n ã o h á sa íd a», m u r m u r o u o escr iba. Dep o is de m u i t o s esforços in ú -teis, o ven ced or d a Esfin ge lem br ou -se de lhes serv ir u m p ed a ço da su a t ú n ica , em b eb id o em v in a g r e . Por a í, s im , teve sor te. Os m orcegos da So m á l ia n ã o q u e r i a m com er n em beber . «Estes são grev istas da fom e», su ssu r r ou o escr iba , a p ós o q u e fez u m a fla u t a de can a, tocou -a e p ô-los a d o r m i r . As t a r â n tu la s d o Ba ixo Eg ip t o revelaram -se ap reciad oras de ta los d e cou v e-flo r , «fr u ta» a b u n d a n t e nesse p er íod o d o an o e serv id a co m o sobrem esa aos p resos bem co m p o r t a d o s . E, assim p o r d ia n t e , fo i send o a r r u m a d o esse co n ju n t o de qu es-tões esp ecíficas . Mas os ra tos d o N i l o o q u e q u e r i a m era d evorar os o u t r o s cam arad as. «Estes são ob s t in a d a m en te a n t i-socia is» — co n c l u i u o ven ced or da Esfin g e ao cabo de q u a t r o d ias d e fracasso ap ós fracasso. Rea lm en te , n em as cores, n em a m ú s ica , n e m a co m id a er am m eios q u e levassem a q u a lq u e r êxi t o . «Pa r a tais feras, fera e m eia », d ecla r ou o escr iba . «M a n d o bu scar u m ga to s iam ês.» To d a v ia , q u e m p o d ia a u t o r iz a r a en t r ad a de u m ga to siam ês n o fo r t e era o g ov er n a d o r Ra m ó s is , o q u a l , com o se sabe, estava em ca m p a -n h a . «Vou co m b a t ê -lo s à cacetad a e lo g o se vê», d isse o escr iba . Mas, in stan tes v o lv id o s , teve u m a id eia b r i lh a n t e . «O r g a n iz o u m b a t a lh ã o de cágad os d a Eu r á s ia p a r a d e fr o n -tar os ra tos azu is. A s s im m a t o d ois coelh os; os cágad os f ica m ocu p ad os e os ra tos vão ver-se à b r och a , m o r m e n t e se os ou t r o s b ich os co o p er a r em », d isse o escr iba, q u e , ch eio de en t u s ia sm o , se a p r es tou p a r a g izar o p l a n o (táct ica e estra té-g ia ) r esp eitan te à ca m p a n h a con t r a os roed ores azu is.

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r i M D A C A M P A N H A C O N T R A OS RA TO S D O N I L O

Q u a n d o o su p er gen er a l legressou a l ía r n a k , cober to de lo u r o s e de t roféu s (m ilh a r e s de cabeças h u m a n a s espetad as em la n ça s ), o d escon h ecid o com a n d a n te de u m a o u t r a gu er ra ia na terceira jo r n a d a d a ca m p a n h a con t r a os ra tos d o N i l o .

Os cágad os da Eu r á s ia , bem p r o t eg id os p elas suas cara-p a ça s , revelaram -se ó p t im o s com ba ten tes . M u i t o d i s c ip l in a -d os e ag r ess iv os , ap esa r de len t o s em cer tos t i p o s de m a n ob r a s . O escr iba eg íp cio d isse p ara si p r ó p r io : «Assim m e p r ep a r o p a r a ba ta lh as de m a io r en v er g a d u r a , ciu an d o soar a h o r a , n a t u r a lm e n t e . Por e n q u a n t o , sou u m s im p les p i n t o r de Su a Exce lê n cia .» N o in s t a n t e im e d ia t o oco r r eu -lh e o s o n l io que t ivera d ias antes e p en sou : «I^ode ser qu e a es]20sa d o fa m ig e r a d o g o v er n a d o r n ã o seja o esta ferm o t ]u e i m a g i n e i n u m m o m e n t o de m a u h u m o r . A liá s , p o r ciue ra-zão u m a pessoa im p o r t a n t ís s im a co m o Ra m ó s is fo r m u l a -r ia o v o t o de co m p a r t i r o t á la m o co m u m cam afeu n u m p aís tão fér t il em m u lh er es bon itas? N a a ! Con v ém observar p r i -m e i r o e d ep ois a ju iz a r . Mas, até lá , a d ia n t e co m a ca m p a n h a , q u e os roed ores azu is a in d a n ão ca p i t u la r a m .»

A gu er r a en tre cágad os d a Eu r á s ia e r a tos d o N i l o u n h a a t i n g i d o o «p o n t o de r eb u ça d o», p ara u t i l i z a r u m a exp ressão

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d a g ír ia m i l i t a r d o a n t ig o Eg i p t o . Por ou t r a s p a lav r a s: o u os com baten tes revest id os d e co u r a ça se d ecla r a v a m p er d id os an te as ferozes d en tad as dos roed ores azu is o u os ratos e m p u n h a v a m o p a n i n h o b r an co em sm a l de r en d ição . C o n -t u d o , n em u m a coisa n em o u t r a . De sú b it o , as d u as forças beligeran tes confessaram -se far tas de t a n ta g u er r a , p e lo q u e o a r m is t ício s u r g iu a u t o m a d ca m en t e e sem q u a isq u e r exig ên -cias de p a r te a p a r te . O gen era l, u m p o u co d esolad o, n ã o d e ixo u de p en sar q u e essa era u m a m a n e ir a m u i t o s in g u la r de se p ôr t er m o a u m a g u er r a . «Está b em », d isse ele, «en ter r em -se os cad áveres e os ilesos qu e t r a t em d os fer id os». N is t o , ou v iu -se u m a r u id o sa p an cad a na p o r t a , Ra m ó s is q u e r ia fa la r -lh e im ed ia t a m en t e , «Esp er o ter agora a oca s iã o de ver a g ov er n a d o r a ,,, o u g ov er n a d eir a », h es it ou ele ;in te o em b a r a ço l in g u ís t ico , em bor a fosse u m escr iba m u i com p e-ten te e versad o em três f i lo lo g ia s — a eg íp cia , a sem ít ica e a a r ia n a .

E, assim , o ven ced or da Esfin ge fo i d e n o v o co n d u z id o à p r esen ça de S. Exa . o Go v er n a d o r Ra m ó s is , v iz ir de Ka r n a k e con d estáv el de Tebas. Ap esar d o asp ecto feroz dos gu ard as e d os g r i t o s e g em id os p r ov en ien tes das in con tá v eis câ m a r a s de t o r t u r a , o escr iba ia sen h or de s i, e n o esp ír ito p er p assou -lh e a im a g e m d a Ra in h a v ista n o son h o . «A esposa d o go\ ern a-d o r d eve ser u m a .. .» Ele r e p r i m i u a p a la v r a , já n a p o n t a d a l ín g u a , e o p t o u p o r o u t r a , m en os t em er á r ia : «U m a sen h ora fo r m id a v e lm e n t e g ir a .»

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A ES T R A N H A D O EN ÇA D A M U L H E R D E RAMÓSIS

C o n t r a r ia m e n t e ao q u e seria de esp erar , o g lo r io so Ra m ó s is estava m eio a fu n d a d o n o cad eir ão co m em b u t id o s de o i r o e lá p is -la z ú li .

«O asp ecto deste h o m e m p i o r o u m u i t o nestes sete d ia s», d isse p a r a si p r óp r io o escr iba eg íp cio . «Agora ele p arece ter cem an os em cim a d os q u e já t i n h a , m as é b o m ; u r n a m ú m ia é co m o o v i n h o — q u a n t o m a is v elh a , m e lh o r .»

Ra m ó s is m an tevc-se ca lad o p o r la r g o t em p o . Fin a l -m en te d isse:

— U m a co n t ecim en t o d everas grave acaba d e p r od u z ir -se n o fo r t e : a m i n h a m u l h e r fo i m o r d id a p o r u m r a t o d o N i l o . Segu n d o Im h o t e p , o m eu a s t r ó log o e m éd ico , a g ov er n a d or a e n t r o u em com a ca t a lép t ica , p e lo q u e terá d e d o r m i r d u r a n t e cem an os, ao t e r m o d os q u a is tom ar á lu g a r n o ba r co de T o t h p a r a qu e seja co n d u z id a ao Va le d os M o r t o s , lo ca l de d elícias o u de etern o s o fr im e n t o , co n fo r m e o la n ça m e n t o de d ad os q u e se faz à en t r ad a . A n ã o ser q u e a lg u ém a cu r e , eu fico v iú vo p a r a sem p re, v is to q u e ju r e i aos deuses d a Gu er r a n u n ca m a is casar ao cabo d o m eu t r ig és im o terceiro m a -t r im ón io . í\ !-•:,,•:;; (',. ^ íi,

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— La m e n t o p r o fu n d a m e n t e , Exce lên cia — d isse o ven -ced or da Esfin g e . — To d a v ia , s in io -m e h o n r a d o p ela in fo i--m a çã o , u m a vez q u e n ã o pa.sso de u m escr iba, co m a l g u m je i t o p a r a a p i n t u r a , é cer to. C o m a breca! O caso a figu ra -se--m e p a r t i cu la r m e n t e i n t r i n ca d o . O r a , se a g ov er n a d o r a ... o u g ov er n a d eir a (p o is estou em d ú v id a q u a n t o à fo r m a cor recta ) v ier a falecer, o q u e o d i v i n o A m o n n ã o h á -d e p e r m i t i r . Vossa Exce lê n cia p od e con ta r co m ig o p ara as exéq u ia s . Sou u m ten or n ad a d esa fin a d o e p ercebo u m p o u co d os r i t u a is fu n er á r io s .

— Basta de fa la t ó r io — co r t o u Ra m ó s is . — M a n d e i ch a-m a r -t e p a r a te co m u n ica r qu e d e ixo a v id a da sen h ora ao teu cu id a d o . O r a b em , o caso é es t r an h o , m as v er íd ico; a m i n h a m u lh e r d elir a m u i t o e tem v isões. En t r e ou t r a s , ela v i u u m jo v e m b a r b u d o q u e v in h a p ara sa lv á -la . Eu , lo g ica -m en te , r e la cio n e i essa v isão co m a tu a p r esen ça a q u i n o fo r t e , já q u e és o ú n ico d os m eu s r ecru tas cu ja s in a lé t ica cor r esp on d e à d o g a r o to v is to p ela g ov er n a d or a . Sejas m éd ico o u n ã o , cu m p r e-t c t om a r as d evid as p r ov id ên cia s . A g o r a , p a r a f in a l iz a r : a tu a v id a r esp on d e p ela d ela . Fa ço -m e com p reen d er?

O escr iba, sem p re d escon t r a íd o , d isse: — N ã o sou a pessoa m a is in d ica d a , v is to q u e n ão p os-

su o o d i p l o m a de m éd ico . Mas, é n a t u r a l qu e eu p ossa d ar u m je i t o n is t o . Te n h a a bon d ad e de escu tar . Q u a n d o eu era p u t o , f u i m o r d i d o p o r u m a serp en te a z u l, e, desde a í, a ciên -cia de t r a ta r casos de m o r d e d u r a — de cobra , v íbor a , ser-p en te , la cr a u , r a t o , v a m p i r o , m o s q u i t o , p u lg ã o d a A r á b ia , lou v a -a -d eu s , m a r i m b o n d o , fo r m ig ã o , escolop en d ra , v iú va n egr a , t a r â n tu la a z u l , cão r a iv oso , lo b i s o m e m o u seja o q u e fo r — e n t r o u -m e , se assim m e p osso e x p r i m i r , n o san gu e. A d q u i r i u m a esp écie de co n d ã o p a r a este gén er o de a ct iv i -d ad e. Se V. Exa.' q u iser fazer o fa v or de m a n d a r v i r o r oed or q u e m o r d e u a su a sen h ora , m a t o -o já e ext r a io d ele u m soro m i la g r o s o q u e , estou cer to , fará acor d a r a esposa d o m u i d is-t i n t o Ra m ó s is . , : -

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O g ov er n a d or d eu três esta lid os com a l ín g u a , m ost r a de qu e h a v ia a lg o com c]ue n ão estava de acor d o .

— In fe l iz m en t e , n ã o p od e ser — d ecla r ou ele. — O estu -p o r n ã o p od e m o r r e r a u t o m a d ca m en t e , já q u e ta l f i m seria u m cast igo d em asiad o b r a n d o p a r a q u e m p e r p e t r o u tam a-n h o d e l i t o . Esse r a to de u m a figa tem de v iv er o su ficien te p ara q u e a p u n içã o seja exem p la r . N este m o m e n t o , ele está a ser t o r t u r a d o p elo m a is d esa lm ad o d os m eu s v erd u gos. M a n d e i a p l ica r -lh e de t u d o , à p ar te o su p lício d o g o n g u e de bron ze, reservad o p a r a os cr im in o so s de g r an d e cabeça . N o Eg ip t o , as leis são severas e eq u it a t iv a s , in d ep en d en t em en te da o r ig e m socia l o u d a con d içã o z oo lóg ica d o in f i a ct o r , excep çã o fe it a , n a t u r a lm e n t e , à pessoa d o d eus en ca rn ad o, isto é. Sua Majestad e o Fa r a ó . Bo m , p osso m a n d a r v ir os r a tos q u e qu iseres, m en os o q u e m o r d e u a g ov er n a d or a . N este p a r t i cu la r sou ir r ed u t ível.

— Ra to só p od e ser o q u e m o r d eu a sua sen h ora — d isse o ven ced or d a Esfin ge. — Mas n ã o tem im p o r t â n cia , a d i f i -cu ld a d e p od e ser t r a n sp osta , d ad o q u e p a r a o caso ver ten te h á u m a o u t r a v ia de so lu çã o , se bem q u e u m p ou co esd rú -x u la e esp ectacu lar . A r r a n je -m e dõi& gatos — u m p r e to e o u t r o b ran co — p orc]u e t a m bém d á.

— É u m a a l t e r n a t i v a s o b r e m a n e i r a in s ó l i t a , m as, e n f i m . . .

Ap ós u m a p au sa , Su a Exce lên cia acrescen tou : — Em b o r a tais b ich os n ão façam p ar te d o arsen al d o

fo r t e , ser -te-ão fo r n ecid os d en t r o de m eia h o r a . -

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O ES C R I B A I N V O C A O D I V I N O T O T H

T r i n t a m i n u t o s d ep ois , os d ois gatos fo r a m en tregu es ao escriba eg íp cio , ju n t a m e n t e co m o u t r o s ap etrech os p o r ele so licit ad os — u m fog ã o , u m a ca ld eir a de três p és , u m a faca de esfolar coelh os, u m a b o t i ja co m «Agu a Sagrad a d o N ilo » e o d écim o terceiro t o m o d o L i v r o de T o t h .

O b ich a n o p r e t o fo i m o r t o p o r a fo g a m en t o (d e con fo r -m id a d e co m as regras d a v e lh a m a g ia eg íp cia ), em segu id a fo i esfolad o e p osto a ferver n a ca ld eir a . A í, o o ficia n t e a b r iu o L i v r o e, co m u m a a r t icu la çã o v ib r a n t e , p ôs-se a r ecita r o p r eâ m b u lo das in v oca ções . Até q u e u m v a p o r de águ a esb r a n q u iça d o e espesso co m eço u a sa ir d a ca ld e ir a . Su b it a -m en te, de en tre esse v a p o r , s u r g i u a im a g e m ter r ífica de T o t h . Ra m ó s is p arecia m a is m t jm i a d o q u e n u n ca . A des-p e i t o d a su a fam a de va rão au d az p o r exce lên cia (ap ós in ú -m eras e cru en tas ba ta lh as con t r a os rebeld es n a t iv os e os in vasores a ssír ios , h i t i t a s , l íb io s e su d aneses), soergu eu -se d o cad eirão de éb a n o e p o r p o u co n ã o o a b a n d o n o u p a r a d ar aos ca lcan h ares. O escr iba, sem o m e n o r s in a l de esp an to, encarou o esp ectro e d isse:

— D i v i n o T o t h , fo r ça , lu z e g u ia d o U n iv e r s o , cr ia d or d os,Céu s e d a Te r r a , p astor d as estrelas, in v e n t o r d os sete-

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cen tos caracteres, m en t o r d os a s t r ó log os , m á g ico s , cu r a n d e i-ros, m éd icos, d u en d es, trasgos, fad as e fe it icen os , in s p i r a d o r d os qu e bu sca m a sorte a través d os jogos de azar, d á -m e a m i m , teu h u m i l d e e lea l ser v id or , a fó r m u la qu e faz acord ar as gran d es d am as eg íp cia s q u a n d o m o r d id a s p o r ra tos azu is. Acod e-n os, ó d i v i n o en tre os d iv in o s , qu e está d o r m i n d o e talvez f i n a n d o a esposa d o m u i d i s t in t o Ra m ó s is , g o v er n a d o r de Ka r n a k , con d estável de Tebas e g u a r d iã o d o sossego de Su a Majestad e e d a N a çã o Eg íp cia .

O fa n ta sm a de T o t h r i b o m b o u sete vezes e f in a lm e n t e p r o fe r i u , n u m a l ín g u a est r an h a , a p a v or a n te e sem vogais, q u e só o escr iba p ercebeu :

— Dá três beijos à r efer id a sen h ora — u m na boca, o u t r o n o pé esqu erd o e o terceiro n u m sít io à tu a escolh a, q u e a febre lh e passa lo g o .

D i t o is to , o esp ectro su m iu -se n o in t e r io r d a ca ld eir a . Ra m ó s is , q u e nad a t in h a co m p r e e n d id o , estava h i r t o e

an sioso. — O q u e é q u e o g a jo d isse? — i n q u i r i u , o feg a n d o , o

d i s t i n t o g en er a l. O nosso h er ó i, lev a n d o o in d ica d o r esqu erd o aos láb ios ,

fez «ch iu !» E m segu id a , acrescen tou : — Per d ão , Exce lên cia , m as gajo, fr a n ca m en te , n ã o soa b em . É u m t er m o v i l , blasfe-m a t ó r io e ch u l o co m o t u d o , q u e ap enas serve p a r a m a cu la r a r ep u t a çã o d o d i v i n o T o t h . Mas n ã o se p r eocu p e , p o r q u e ele já se en con t r a lon g e d a q u i e, ad em ais, é d u r o d o o u v i d o , à sem elh a n ça d os o u t r o s d euses. N o en t a n t o , o av iso fica , p o is é sem p re b o m p r ev en ir , esp ecia lm en te q u a n d o se tra ta de u m a d iv in d a d e de p r im e i r a gran d eza . O r a , q u a n t o à receita , ela é u m p o u co est r an h a , m as tem de ser segu id a à r isca . O d i v i n o T o t h m a n d o u -m e d ar três beijos, em sít ios d iferen tes, à v en er an d a sen h ora . Eu , p o r m i m , n ã o o fa r ia . Mas fá -lo-ei, sem o m en o r r ebu ço , p ela g o v er n a d o r a .. . o u g ov er n a d e ir a e, sob r e tu d o , p e lo m u i d i s t i n t o Ra m ó s is , a q u e m d evo o p razer e a h o n r a de r es id ir neste fo r t e . — U m leve sor r iso assom ou aos láb ios d o ven ced or da Esfin g e .

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Ra m ó s is , p o r seu la d o , p er d eu u m p o u co da sua co lo r a -çã o t u m u l a r e o rosto cob r iu -se-lh e de lilá s-d esm a iad o , d e ixa n d o t ran sp arecer q u e a receita n ã o lh e ag r ad a r a . E s o n d o u :

— P o r q u ê três beijos? H u m . . . Q u e m sabe se... u m ...? — Ba h ! N e m p en sar n isso — r esp on d eu o escr iba. —

Seria u m a ofensa m u i t o grave ao d i v i n o T o t h , ciue d e ixo u b em cla r o n o L i v r o d os Liv r o s : «Em t u d o q u a n t o eu ord e-n a r , t u , m o r t a l , sa íd o d o pó d a ter ra , n ã o om it ir á s um io t a , sequ er u m a v ír g u la », q u e é co m o q u e m d iz : t i n t i m p o r t i n -t i m . Ora bem , m esm o o Fa r a ó , en ca r n a çã o d o d i v i n o Flo r u s--G a v iã o , a q u e m tod o o Im p ér io d eve obed iên cia p r o n t a c cega, n ã o p od e exim ir -se ao c u m p r i m e n t o d o cpie vem escr ito n o p a p i r o sagrad o. Con seq u en tem en te , são três bei-jos , sem t i r a r n em p ôr .

— Tr ê s beijos e em sít ios d ifer en tes! — excla m o u I^am ó-sis com o q u e fa la n d o con s ig o p r ó p r io .

— Exa cta m en te . Tr ês beijos e u m d eles à m i n h a escolha. N ã o h á o u t r o r em éd io . P o r t a n t o , n ad a de r e lu t â n cia s , já qu e de ta l t er ap êu t ica dei:)ende a in t eg r id a d e física e e s p i r i t u a l da ven eran d a sen h ora — fr is o u o escr iba.

— A in t eg r id a d e d a sen h ora e t a m b ém a tu a — d isse Ra m ó s is . — A p a r t i r de agora , p õe-te a p a u , n ão abuses n em dês com a l ín g u a nos d en tes.

O ven ced or d a Esfin ge m a t u t o u : «O t i p o , a lém de fe io , t o icio n á r io e sov in a , é c iu m e n t o . Ra ios o p a r t a m !»

N is t o , o ca ir a sco -m o i veio p e r g u n t a r a Ra m ó s is o c]ue se h a v ia de fazer a Im h o t e p , v is to q u e fo r a n om ea d o u n i n ov o cl ín ico n o fo r t e . Su a Exce lên cia d ecla r o u :

— Dê-se ao I m h o t e p o t r a t a m en t o q u e se d eu ao ex--p i n t o r ; assim m e vejo l iv r e d e m a is u m ch a r la t ã o . — E v ir an d o-se p ara o escr iba: — O t em p o u r ge , vam os ver a sen h ora . Lem b r a -t e : n ã o abuses e cu id a d o co m a l ín g u a .

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o ES C R I B A P ED E A RAMÓSIS Q U E S E R E T I R E

Seg u n d o Im h o t e p , o d esa fo r tu n a d o m éd ico e a s t r ó logo da Choça do Gavião, cem anos de son o estavarh reservad os à ven eran d a sen h ora , até q u e ela tom asse lu g a r n o ba rco dos m o r t o s , a n ão ser q u e a lg u ém a viesse sa lvar .

Re p o r t a n d o , e n t r e t a n t o , à cena d esen r o la d a nesse m esm o d ia en tre Ra m ó s is e o sem p re im p er tu r b á v el escr iba, o le i t o r , p o r cer to, se lem b r a r á q u e t a n t o o agen te co m o o m e io de cu r a estavam en con t r a d os . Deste m o d o , o ven ced or d a Esfin ge e Sua Exce lê n cia o Go v er n a d o r (q u e, en t r e t a n to , fizera q u es t ã o de assist ir a t u d o ) e n t r a r a m n o q u a r t o on d e, q u e n em u m a p ed ra , d o r m i a a esposa de Ra m ó s is .

Os d ois p r im e i r o s beijos fo r a m fáceis de execu ta r . Recor-d em os: u m na boca e o o u t r o n o p ez in h o esqu erd o d a p acien te . Mas assim q u e ch eg ou a vez de p roced er à q u i lo q u e v in l i a cr ia n d o m a ca q u in h o s n a cabeça de Ra m ó s is , o vence-d or d a Esfin g e cUsse p ara co n s ig o : «É ch a to , m as t en h o de m a n d a r passear o cad av ér ico esposo d a v en er an d a sen h ora , q u e o n eg ó cio é agora a d ois.» O nosso h er ó i tossicou p r i -m e ir o . E m segu id a , d isse ao c iu m e n t o gen er a l:

— Vossa Exce lên cia h á -d e d escu lp a r -m e, m as tem q u e se p ôr a an d a r d a q u i , v is to q u e a terceira p a r te deste t r a t a m en to

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d eve ser c u m p r i d a sem t e s t e m u n h a s . Q u e i r a , p o r t a n t o , d e ixa r -m e a sós com a p acien te; o d i v i n o T o t h assim o exige.

O u t r a vez Ra m ó s is m u d o u de cor . E b r a d o u : — Se ten tas p assar -m e a p e r n a , seu f i l h o da m ã e, estás

b em a r r a n ja d o co m ig o ! E m m u i t o s n eg ócios deste Im p ér io p o n t i f i c o eu , sem q u eb r a de r esp eito p a r a co m S. IVI. A m en ó-fis XXV I I I , m o r m e n t e nos q u e d iz em resp eito à m i n h a m u lh e r . Já a g or a , d iz -m e: és m éd ico o u b e ijo q u e ir o ?

— N e m u m a coisa n em o iu r a — r esp on d eu o escr iba, ca lm a m en t e . — Sou ap enas escr iba, com a l g u m je i t o p a r a a p i n t u r a , n a t u r a lm e n t e . Se m e m e t i a d o u t o r é p o r v on ta d e exp ressa d o exce len t ís s im o Ra m ó s is , qu e se en con t r a na m i n h a fr en te, p a r a m e d esm en t ir , e em obser v ân cia às reco-m en d a ções d o d i v i n o T o t h , q u e r a t i f i co u a d e t e r m in a çã o de Vossa Exce lên cia . E já que u m a p otestad e d a gran d eza d o d i v i n o T o t h an d a t a m bém na b a lh a , n ecessá r io se t o r n a en -carar a q u es t ã o co m tod a a seried ad e. Eis o cjue ciu a lq u er t i p o de m e ia -t ig e la en ten d e, q u a n t o m ais u m a n o t a b i l id a d e d a ca tegor ia de Vossa Exce lên cia .

Ra m ó s is , d u r a n t e a l g u m t em p o , n ã o d isse jD a la v r a . Fin a lm e n t e , a r r eg a n h a n d o a boca r r a de sap o, e m i t i u :

— Ap etecia -r n e m a n d a r z u r z ir -t e co m o azor ragu e das cin co p on ta s de m e t a l , u m d elicioso p itéu da excelen te c u l i -n á r ia eu r o -a s iá t ica ; isso, até ficares sem u m a gota de san gu e; e a segu ir m a n d a r assar-te v iv o , d ep ois de con v en ien t em en te esfolad o, co m o se faz a u m bezerro. Por a u tu d es m en os in so -len tes q u e a tu a , m u i t o s já p r o v a r a m das saborosas ig u a r ia s d esta casa. A t e n d e n d o , p o r ém , ao estad o, m ais q u e d elica d o , d a m i n h a esp osa, d e ixo isso p a r a d ep o is . O r a bem , d ou -t e a u to r iz a çã o p a r a agires, m as tem cu id a d o , n ã o abu ses. — Ra m ó s is , o fegan te, esp u m av a que n em u m cav a lo . Er a a p r i -m eir a vez q u e o escriba v ia cu sp o n a boca d u m a r m i m i a . Esb oçou u m so r r iso e d isse:

— Vossa Exce lên cia im p o r t a -se de i r t o m a r fresco lá fora?

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Ra m ó s is , e n g o l i n d o em seco, d e ixo u p assar sem q u a l -q u er r ep a r o a exp r essã o d esabu sad a d o sen p i n t o r e de ime-d ia t o r e t ir ou -se d a câ m a r a .

O ir r ev eren te escr iba , v o lt ea n d o com o u m p iã o , ]_iôs-sc a ca n t a r o la r :

Beija-me com os beijos da tua boca; o am.or é mais deli- \ cioso que o vinho.

Pa r a n d o de t r a u t ea ], d esatou a r i r e d ep ois e xcla m o u : «Ah , g r an d e Sa lo m ã o , f i l h o de D a v id , na verd ad e p ercebias da p (h )ocla !»

Em segu id a , p en e t r o u n o q u a r t o on d e d o r m i a a esposa d o em in en t e Ra m ó s is .

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o ES C R I B A C O N FES S A A S U A P E R P L E X I D A D E

A in ig u a lá v e l sen h or a , e x t r a o r d in a r ia m e n t e g u a r n ecid a (f ig u r a , fo r m a , cor e cu rvas), esp ar ra lh ara -se em cim a d o le i t o , oferecend o-se gen erosam en te ao o lh a r estét ico d o n ov o p i n t o r d e Su a Exce lên cia . As p ern as, co m p le t a m en t e exp os-tas, e r a m lon gas , l ig e ir a m en t e p elu d as , m acias e bem feitas. C o m u m a exp r essão de gozo n o r os to , o nosso h er ó i d eu três assobios de ap reço , e a segu ir in cl in o u -s e p a r a a esbelta d a m a . Pou sou a s in is t r a n u m dos jo e lh o s d ela e t r e p o u , su a-vem en te, até o s i t io e le ito p ara receber o ter ceiro b e ijo . Mas a í, a b ism a d o , o ven ced or d a Esfin ge r ecu o u . «O lá »! — excla-m o u ele. «Se isto n ã o é o cú m u lo ! Q u e m d i r i a q u e a esposa d o m u i t o r esp eitável Ra m ó s is é m a ch o ?!».

U m a voz s u m id a , p o r ém in t e lig ív e l , i n q u i r i u : — Q u e m é q u e é m a ch o , eu? A t o r d o a d o , o escr iba eg íp cio d isse a m eia -v oz : «O m a is

esp an toso é qu e a receita d o d i v i n o T o t h r e su l t o u , em bor a de fo r m a a lg o d u v id o sa , sem qu e fosse n ecessá r io ir até o f i m . Br r r . . . h á q u a lq u e r coisa q u e n ã o bate cer to .»

N a verd ad e, a r esp eitável sen h ora t i n h a acord ad o e até sor r ia ao fazer a p e r g u n t a . O escr iba m o n o l o g o u : «Resis t i, sem p estan eja r , ao o lh a r d o m o n s t r o ; de i g u a l m o d o fa le i

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com a en ca r n a çã o de u m d eu s; en ca ixei, sem n em er , as p i o -res a m ea ça s p r o fe r id a s p o r u m a m ú m ia v iv a ; s u p o r t e i , sem u m a p o n t a de m ed o , a im a g e m ter r ífica d o d i v i n o T o t h ; na in fâ n cia , a g u en t e i , sem ver ter u m a lá g r im a , a m o r d ed u r a de u m a serp en te a z u l ; co n t e m p le i , a so r r i r , a p a r ições de d e fu n -tos de h á cin co m i l anos; v i b r u xa s d a n ça n d o e v a m p iío s h u m a n o s sa in d o de t ú m u lo s sem c ue u m fio de cabelo se m e pusesse em p é, m as, em face d o q u e estou v en d o agor a , s in t o --m e ar rasad o. N u n ca i m a g i n e i qUe a ven eran d a esposa d o res-p eitável Ra m ó s is fosse a lg u ém d o m eu sexo; e m u i t o m e-n os a in d a q u e o p r escr it o p e lo sa cr a t íss im o T o t l i viesse a su bm eter-se à p r o fa n ís s im a le i d a in cer teza . Con fesso-m e p er-p le xo e d ecep cion a d o .»

Passad os in stan tes, a v en eran d a sen h ora b a l b u c i o u : — Pelos v is tos , a in d a n ã o acor d ei. A m i n h a p e r p le x i -

d ad e é m a io r q u e a t u a , jo v e m escr iba. Fu i m o r d id a p o r u m b ich o i m u n d o e p assei p o r son h os tão m au s ao p o n t o de m u d a r de sexo. D iz -m e , jo v e m escr iba, estou r ea lm en te acor-d ad a o u a in d a son h o?

O ven ced or da Esfin g e , q u e , en t r e t a n to , r ecobra ra já u m a p a r t e d a sua ca lm a , fa l o u :

— Bem ... r ea lm en te n ã o sei r esp on d er . De a cor d o com o sagrad o p a p i r o sobre o q u a l o d i v i n o T o t h escreveu os seus en s in a m en tos , «en i^ú lt im a a n á lise , t u d o o q u e existe, acju i co m o em q u a lq u e r o u t r o p o n t o d o LIn iv er so , t a n to p od e ser r ea lid ad e co m o p u r a fa n t a sm a g o r ia , de m a n e ir a cjue n i n -g u ém sabe q u a n d o é q u e está d esp er to o u a so n h a r ». C o m o q u er q u e seja, s in t o -m e in c l i n a d o a acr ed ita r qu e em r e la çã o ao estad o a n t e r io r — so n h o o u r ea lid ad e, p o u co i m p o r t a — h o u v e na sen h or a u m a m u d a n ça p a r a . p i o r . C o m efeito , a sen h ora t r a v esd u ; p o r ou t r a s p a la v r a s : m u d o u de sexo. Mas isso a in d a é o m en os; o m a is d escon cer tan te é o facto de a receita d o d i v i n o T o t h n ã o se ter c u m p r i d o na ín t eg r a , já q u e a sen h ora d esp er tou an tes q u e eu pusesse em p rá t ica u m a coisa q u e , em con d ições n o r m a is , ter ia i n u i t a sa t is fação em fazer. N estas cir cu n s t â n cia s , v ejo-m e o b r ig a d o a in v o ca r o

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d i v i n o T o t h u m a vez m a is , p a r a q u e ele m e elu cid e, p o is , até p r ov a s em co n t r á r io , is t n an d a de p ern as p ara o ar. A sen h or a fica a c ju i a r ejDO u sa r , en c]u an to v o u lá for a lei- com Su a Exce lên cia a f i m de o p ô r ao cor r en te d o q u e se passa. Te n h a ca lm a e con fie n o d i v i n o T o t h .

A o d e ixa r o q u a r t o , o escriba n o t o u q u e a ven eran d a sen h ora t o r n a r a a ad orm ecer . «Sa fa !» — e xcla m o u o ven ced or d a Esfin g e . «O in fa lív e l T o t h e r r o u d esta vez e a esposa d o resp eitável Ra m ó s is m u d o u de sexo .» Ca lou -se p o r u n s in s -tan tes e acrescen tou : «Pa la v r a de h o n r a qu e n u n ca ju l g u e i p ossível t a m a n h a a b er r a çã o !»

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o ES C R I B A C O M U N I C A A RAMÓSIS O R E S U L T A D O D A V I S I T A

Ra m ó s is p a recia u m fe l in o en ja u la d o . N er v osam en te, sem se d eter u m m o m e n t o , p e r co r r ia a sala de a u d iên cia s de u m a p o n t a à o u t r a .

A o v ê -lo , o escr iba e g i p c i o p e n s o u : «Es t e h o m e m su r p r een d e-m e, Q u e m d i r i a qu e u m v e lh o s ím io de r abo p e la d o e co m tan tas rnor tes n o a cd v o fica r ia neste estad o só p o r q u e u m a m u lh e r fo i m o r d i d a p o r u m r a to azu l? E p i o r h á-d e fica r q u a n d o sou ber d o resto. Vo u ter q u e o u v i r o r e t u m b a r d e m i l t rovões ao m esm o t em p o e u m a sara ivad a de a m ea ça s de t o r t u r a e m o r t e co m o n em n o t em p o d o Fa r a ó Tu t m ó s i s , "o C r u e l " . Q u e se d a n e!»

Su a Exce lên cia , in v e r t e n d o u m a d as regras in eren tes ao sistem a de a u t o r id a d e d a m a io r i a d os p ov os e d e qu ase tod os os t em p os , v eio ao en co n t r o d o seu n o v o m éd ico , q u a n d o , à m a n e ir a d os d ig n it á r io s d e p r im eir ís s im a o r d e m , d ev ia estar sen tad o e co m ares solenes.

— Já n ã o era sem t e m p o ! — e xcla m o u Ra m ó s is . — Des-p eja lá o saco, se n ã o r eben to .

O escriba p es t a n e jou , v is iv e lm en t e em b a r a ça d o . . „, — En tã o? — v o lv e u o im p a cien t e g en er a l .

O ven ced or d a Esfin g e p ig a r r e o u a f i m de cobr a r â n im o . Já m en os r e t r a íd o , d eu in ício ao r e la t o :

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— Bem ... Vossa Exce lên cia tem q u e ter a cor agem d o leã o , a d u reza d o d ia m a n t e e a p a ciên cia de Job p ara escu tar , sem q u e h a ja o p e r ig o de u m a taq u e ca r d ía co , o q u e é m eu d ever co m u n ica r - lh e . Posso? O r a b em , a nossa g ov er n a d or a ... o u g ov er n a d e ir a , co m q u e m t ive o p razer , e t am bém o des-gosto , de fa la r h á coisa de cin co m i n u t o s , d ep ois de ter acor-d ad o , e n t r o u m a is u m a vez em estad o de com a ca t a lép t ica , e, o q u e a in d a é p i o r , m u d o u de sexo. La m e n t o ter q u e lh e fr isa r is t o : a su a r esp eitável esposa é, neste m o m e n t o , u m a v i r a g o , o u seja, u m in d iv íd u o co m voz, barba e m od os tie h o m e m , a q u e m n ã o fa lt a sequ er o ap ên d ice v a r o n i l . É t u d o .

Pela p r i m e i r a vez n a v id a , o r osto d o Go v er n a d o r de Ka r n a k t in g iu -se de v e r m e lh o . Su a Exce lên cia fe r v ia . Deu u m sa lto e r u g i u :

— Escr iba de m e ia -t ig e la , p i n t o r de m acacos, cl ín ico de u m a fig a , se p ensas q u e te r is d o g r a n d e Ra m ó s is , ven ced or de exér citos co m o n u n ca se v i r a m n o m u n d o , d es t r u id o r de cid ad es e a ld eias sem n ú m er o , fla g e lo d os d euses, é p o r q u e estás co m p le t a m en t e ch a la d o . Escu ta , g a r o t ã o ! Para com eça r , vais a p a n h a r u m a sova das g ran d es, e n ã o ta rd a . A segu ir , m a n d o a r r an ca r -te a p ele. C o n t u d o , t r a tem os de cad a coisa p o r sua vez. Para já , fa la co m ig o a sér io , o u achas q u e t en h o cara d e q u e m br in ca?

— O h , cer tam en te q u e n ã o — d isse o ven ced or da Esfin g e . — Sail:)a, Vossa Exce lên cia , q u e eu n u n ca fa le i tão a sér io em tod a a m i n h a v id a . De resto, n em p o r som bras m e p assar ia p ela cabeça en t r a r com tão em in en te a u t o r id a d e . O r a , eu av isei Vossa Exce lên cia de q u e era p reciso r e u n i r as q u a lid a d es d o r e i d a selva, da r a in h a das p ed ras p reciosas e d o m a is v i r t u o s o d os hebreu s p a r a se p od er o u v i r , sem p erd er o sa n g u e-fr io , o q u e eu t i n h a a d izer . Bem v ejo C]ue o seu co r a çã o é fo r t e , t a n t o assim é q u e n ã o e s t o ir o u . Co r a g em é o q u e n ã o p od e fa l t a r a q u e m v er g ou tan tos i n i m i g o s de Sua Majestad e. A g o r a , resta ter p a ciên cia , q u e eu v o u co n su lt a r o u t r a vez o d i v i n o T o t h . Para t a l , só p reciso de u m ga to p r e t o .

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Ra m ó s is estava agora lilá s-d esm a ia d o , s in a l de qu e o fu r o r t in h a b a ixa d o m u i t o s g rau s. E d isse, com su rp reen -d en te b r a n d u r a :

— V o u ter p a ciên cia . Q u a n t o ao b ich a n o , p od es u sar o ciu e f i co u de reserva, p o is , se b em m e r eco r d o , en t r ega r am -te d ois tarecos da o u t r a vez.

— Vossa Exce lên cia é, sem em b a r g o , d o tad o de u m a m em ó r ia q u e fa n a in v e ja a q u a lq u e r elefan te —- d isse o escr iba . — Está cer t íss im o : er am d ois ga tos. Acontece, p or ém , q u e só n os resta u m b ich a n o , cju an d o são n ecessár ios d ois sem p re qu e se in v o ca u m d eus de p r im e i r a gran d eza , co m o é o caso d o d i v i n o T o t h . P o r q u ê d ois gatos? — u m p r e t o e o u t r o b r a n co . Passo a exp l ica r : o p r i m e i r o , p ara con -d u z i r a d iv in d a d e até este m u n d o , e o seg u n d o , p ara a rece-ber deste la d o . A s s im está r ecom en d a d o nos m elh or es tra tad os de m a g ia e fe it iça r ia , t a n t o n a cion a is co m o est r an geiros.

— Q u a n t o às artes m a r cia is e à fo r m a de l id a r com os in v isu a is e ou t r os q u e ta is, sou o m n iscien t e — d isse Ra m ó -sis. — Mas n o qu e d iz r esp eito às m a n ip u la çõ es e ard ilezas d os m á g icos sou u m a p er fe it a n eg a çã o .

— Agora , ou t r a coisa: já rep arei ciue tens a m an ia de citar certos figu r ões est r an geiros, p o r e xe m p lo , esse h ebreu de qu e eu n u n ca t in h a o u v id o t a la r . Para q u ê , se tem os n o nosso seio h o m en s de g r a n d e m ér it o q u e n ad a f ica m a d ever aos de fo r a . — Ra m ó s is fez u m a p au sa p a r a bu scar a len t o , in t e r v a lo q u e o nosso h eró i a p r o v e i t o u p ara m o t e ja r em su r d in a : «H o m e n s de g ran d e m ér it o co m o o P t a h h o t e p e o Im h o t e p , q u e o d i v i n o T o t h conserve p o r sécu los e sécu los.» In stan tes v o lv id o s o g o v er n a d o r v o l t o u à carga:

— O nosso Im p e r a d o r tem in s is t id o em q u e d evem os en altecer os valores n a cion a is — o nosso t r ig o , as nossas sep u lt u r a s , os nossos h er ó is e deuses, as nossas aves sagrad as, as nossas t r ad ições p a la cia n a s , o nosso i d i o m a , as nossas leis, a nossa m a g ia e a s t r o lo g ia , as nossas festas, o nosso cód igo p en a l , as nossas artes e o fícios , o nosso sistem a de t r a b a lh o , el caetera. C o m o a r t is t a e p a t r io t a qu e és, ev ita a ten tação das

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coisas im p o r t a d a s , q u e n ão a g r a d a m ao nosso Fa r a ó n em aos deuses d o Eg ip t o . Ê t u d o . Va m os agor a ao nosso t r a b a lh o .

O ven ced or d a Esfin ge r e s m u n g o u : «Es t ou -m e nas t in ta s p a r a o q u e agrad a o u d esagrad a a u m im p e r a d o r zan aga e co m v er r u g a no n a r iz ! Q u e sabe Ra m ó s is das coisas q u e os deuses a m a m o u d etestam ? Br r r . . va lores n acion a is? C b m o se os deuses, à m o d a de certos h om en s , passassem o t em p o a o lh a r p a r a o u m b ig o .» '

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O ES C R I B A I N V O C A T O T H P ELA S EG U N D A V EZ

M a n d ou -se bu scar t u d o de n o v o : a ca ld eir a de três p és, o fo g ã o , a b o t i ja co m «Águ a Sagrad a d o N i lo », a faca de esfo-la r coelh os, o d écim o terceiro t o m o d o L i v r o de T o t h e, n a t u r a lm e n t e , os d ois gatos — o b r a n co , q u e já estava n o fo r t e , e o p r e t o , q u e v e io de fo r a p a r a m o r r e r .

T u d o a p ostos, o escr iba eg íp cio d eu o a r r a n q u e à cer i-m ó n ia r esp eitan te à segu n d a in v oca çã o d a p otestad e cr ia d o r a d os Céu s e d a Te r r a . A b e r t o o L i v r o d os Liv r o s e l i d o o p r eâ m b u lo d as in v oca ções , o ven ced or d a Esfin g e d i r ig iu -s e ao ter r ífico esp ectro:

— D i v i n o T o t h , fo r ça , lu z e g u ia d o U n iv e r s o , p er d oa --m e a in s is t ên cia , m as f u i co n s t r a n g id o a ch a m a r -t e u m a vez m a is , p a r a q u e m e elu cid es sobre o seg u in te : p r i m e i r o , a res-p eitável con sor te de Su a Exce lên cia o m u i va len te Ra m ó s is regressou d o estad o ca t a lép t ico sem q u e eu tivesse cu m p r i d o o terceiro m a n d a m e n t o d a tu a receita ; a lém d isso , a d is t in t a m u lh e r teve u m d esa r r a n jo n a f lo r de ló tu s ; e, p o r ú l t im o , a exce len t íss im a varoa p assou de n o v o p a r a o o u t r o lad o . Acod e-m e, d i v i n o en tre os d iv in o s , sen ã o a beld ad e está p er -d id a e a lg u ém v a i ter q u e p agar as favas.

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o fan ta sm a de T o t l i e n t o r t o u os o lfio s : — C o m o assim ?! O q u e d izes n ã o .. . s im . . . é p ossível,

u m a vez q u e p r escin d is te d o terceiro m a n d a m e n t o , o q u a l te m a n d a v a d ar u m b e i jo n u m sít io à tu a escolh a . N ã o é verd ad e?

— N ão exactam en te... sa lvo o r esp eito , d i v i n o T o t h . Exp l ico -m e : n o q u e se refere ao terceiro b e ijo , su ced eu q u e m e sen t i en o ja d o an te a p o ss ib i l id a d e de com eter ta l acto, já q u e a resp eitável sen h ora m u d o u de sexo. Sou o q u e sou —-com fêm eas t u d o b em ; com m ach os, estou em crer qu e sen-t i r i a cã ib r a s n a l ín g u a .

— Br a v o ! A g o r a p resta a t en çã o : é dos l iv r o s q u e a m u d a n ça de sexo só se d á q u a n d o a v ít im a — m u l h e r o u h o m e m , t a n t o faz — a p a n h a u m a d en tad a de u m v a m p i r o de Lesbos, i l h a grega , co m o é d o teu co n h ecim en t o . C o m o vês, laboraste em er ro (ta lvez p o r te terem i n fo r m a d o m a l ) q u a n d o a t r ib u ís t e a m o r d ed u r a a u m r a to a z u l. A d ia n t e . Para q u e a venerancia sen h ora recu p ere a saú d e e a f lo r , terás m esm o de c u m p r i r o terceiro m a n d a m e n t o , q u er te agrad e o u n ã o . Q u a n d o se jo g a — e t u és u m in v et er a d o jo g a d o r — d as d u as u m a : o u se g a n h a o u se p erd e. Desta vez cou b er a m --te os n ú m er os aziagos, m as n ã o te fa lt a r á o m e u a p o io nas p r ó xim a s lo t a r ia s . Lem b r a -t e de q u e és u m escriba e, p o r a cu m u la çã o , a r u s t a , m éd ico , b a t o t e ir o e m á g ico , p o r conse-g u i n t e m e u a f i l h a d o cin co vezes, o u a té m a is , já q u e, p elos v istos, és p a u p a r a tod a a ob r a .

E, co m is t o , o esp ectro de T o t h su m iu -se n o in t e r io r da ca ld eir a . O nosso h er ó i p en sou : «Com esta é q u e o d i v i n o T o t h m e l i x o u ; v a i ser m a is cu stoso d o q u e in g e r i r u m p u r -gan te de sal o u d o q u e a p a n h a r u m cl is ter de sabão n a cio n a l . Mas t em q u e ser. O d i v i n o T o t h é q u e m m a n d a , e o d i s t i n t o Ra m ó s is n ã o é n e n h u m t r o u xa . A lém d isso, os deuses d o A m o r n ã o m e d e ixa r ã o em p az e n q u a n t o a ven eran d a sen h ora n ã o r e a d q u i r i r a sua en ca n ta d or a f lo r de ló tu s».

D u r a n t e tod a a ce r im ó n ia , Ra m ó s is n em u m a vez se sen-tara n o ca d eir ã o cie éb a n o co m em b u t id o s de o i r o e láp is-

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-lazú li. Para su rp resa d o escr iba, a voz sa iu -lh e t r ém u la q u a n d o p e r g u n t o u :

— O qu e é qu e o... h u m . . . d i v i n o T o t h acon selh ou ? — Qu e eu cu m p r a , in d ep en d en t em en te d as cir cu n stâ n -

cias, o terceiro m a n d a m e n t o da receita , ao q u a l , em a ten çã o aos sen t im en tos de Vossa Exce lên cia , fiz v ista grossa a q u a n -d o d a m i n h a v is it a à resp eitável sen h ora .

O g ov er n a d or , s en t in d o u m a in fe r n a l p o n t a d a n o p e it o , m u r m u r o u :

— M a l d i t o r a t o , m a l d i t o b e i jo , m a l d i t o escr iba . O ven ced or da Esfin g e , s o r r in d o ao de leve, d isse: — A Verd ad e e a Ju s t iça exig em q u e Vossa Exce lên cia

m a n d e solta r , se a in d a est iver v iv o , o d es in fe liz r a t i n h o qu e o p od er oso g ov er n a d o r d a Choça do Gavião ofereceu cie p re-sente ao seu ca r r asco-m or ; o d e l in q u e n t e , segu n d o o d i v i n o T o t h , é u m v a m p i r o h e lén ico ,

— Choça do Gavião é o teu in có g n i t o av ô! — excla m ou Ra m ó s is , —- Q u a n t o à d esgraçad a ra tazan a , está bem ; a Ver-d ad e será rep osta e a Ju s t iça co n t em p la d a . A g o r a n ós vam os ver a sen h or a .

-— N ós qu em ? — in t e r r o g o u o ven ced or d a Esfin ge. — La n ço u u m m eio -so r r iso ao terr ível g o v er n a d o r e co r r i g i u : — N ós n ã o , eu só, se faz fav or .

Ra m ó s is v o l t o u a m u d a r de cor , e n q u a n t o o nosso h er ó i t r a n s p u n h a a p o r t a de sa íd a .

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Page 33: Armenio, V. o Eleito Do Sol

' I í

o ESCRIBA CURA A M U L H E R DE RAMÓSIS

Ao entrar pela terceira vez no quarto de dormi r da vene-randa senhora, os sendmentos do escriba eg ípc io eram con-t radi tór ios . Por u m lado, sentia já na boca o travo a purgante de sal, ao mesmo tempo que imaginava u m tosco p i to de cana a introduzir-Ihe alguns litros de sabão l í q u i d o no tra.seiro; em contrapartida, estava curioso de ver o desfe-cho desse intr igante enredo, no qual ele assumia o papel de méd ico (de feiticeiro, se quiserem), R a m ó s i s de amante agui-Ihoado pelo c iúme , e a veneranda senhora de Bela Adorme-cida fantasiada de travesti. Com essa dupla d i spos i ção de espí r i to , o vencedor da Esfinge aproximou-se do leito onde dormia a esposa de R a m ó s i s . .

Com a m ã o escjuerda pôs o sí t io à mostra. Que horrori Nem quis olhar para o repugnante objecto incrustado nas coxas da veneranda senhora. Com a expressão de u m már t i r deitado às feras, cerrou as p á l p e b r a s e beijou. Oh , maravilha! A marca de Adão , acto c o n t í n u o , transformou-se em flor de lótus inebriante e perfumada. E, de imediato, a veneranda senhora abr iu os olhos.

— Diz-me, jovem escriba, ainda sonho ou estou acor-dada?

.1

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— A esse respeito, convém recordar o que ensinou o d iv ino T o t h . «Ante a q u e s t ã o Realidade ou Fantasmagoria, nada resta s enão a conjectura. Qual o momento da real vigí-l ia e qua l o do sonho? De ciência certa, eis o que n i n g u é m sabe.» Creio, no entanto, poder afirmar que em re lação ao estado anterior houve uma m u d a n ç a para melhor. Digamos que a senhora acordou, o que, até provas em con t rá r io , sig-nifica que está pronta para outra, como se costuma dizer.

— N ã o tenho palavras para te agradecer, jovem escriba. Se for do teu agrado, vamos ser amigos, no sentido mais lato do termo, embora isso possa agoniar o ciumento R a m ó s i s , de quem sou escrava e consorte. Para começar , jovem escriba, chega aqui , vem dar-me u m beijo.

O vencedor da Esfinge disse para consigo: «De beijos nem quero ouvi r falar.» Mas, nesta altura, p i r i lampos de vár ias cores c o m e ç a r a m a voltear na sua cabeça. Sentia-se a tremer. E, acto c o n t í n u o , atirou-se para cima da provocante senhora.

(Neste passo, talvez em cons ide raçã o pelos preconceitos de alguns sacerdotes mui to importantes, ou por outro mot ivo qualquer, a fonte é omissa, lamentavelmente.)

Extasiada, a Sra. R a m ó s i s disse; — És maravilhoso, jovem escriba; agora resta descobrir a maneira de nos diver-t irmos daqui em diante, de estarmos sempre que possível juntos, sem que o bruto do meu marido desconfie que ando feita contigo. Que dizes?

— Fixe, minha senhora, desde que o plano seja ardiloso. De c o n t r á r i o , para m i m seria a cas t ração e para si o c h u ç o em brasa na flor de ló tus . Acredita na p r e m o n i ç ã o oní r ica? Pois bem, vou contar-lhe um sonho que tive na primeira noite que d o r m i na Choça do Gavião.

O vencedor da Esfinge narrou para a veneranda senho-ra o seu romance com a Rainha de Sabá, cujo desfecho, se o leitor ainda se recorda, consistiu na i n v a s ã o do quar-to pelo horrendo governador acompanhado de verdugos n ú -bios.

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— Mas isso n ã o nos vai acontecer, querido escriba — asseverou a veneranda senhora. — Todavia, é como dizes, o p lano tem de ser ardiloso. Deixa-me pensar nisso, que sou mulher.

— Pois é — disse o escriba. — Vou agora ter com Sua Excelência para lhe comunicar o excelente resultado deste tra tamento.

— Mas n ã o lhe comuniques tudo. Lembra-te de que a receita do teu padr inho recomendava três beijos e mais nada — galhofou a veneranda senhora, exibindo u m sorriso boni to e atrevido.

— Pois claro —- ar t iculou o vencedor da Esfinge. — Quanto à parte suplementar do tratamento — um desaforo de que me recr imino —, o valoroso R a m ó s i s teria de ser espeito como u m rato para a descobrir, ele que confunde vampiros de Lesbos com os pobres roedores cá do forte, permite que um cego se ponha ao í iesco e, depois de mui to esfregar os olhos, apenas consegue ver navios.

— Mas C]ue, em todo o caso, n ã o nasceu ontem — comentou a veneranda senhora.

— Oh! Está visto que não . l^or isso, torno a frisar: o p lano tem de ser ardiloso.

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o ESCRIBA COMUNICA A RAMÓSIS A CURA DA VENERANDA SENHORA

R a m ó s i s andava de cá para lá, enquanto a poeira aver-melhada do deserto, mui to intensa durante esses anos de seca no Egipto , se acumulava no cade i rão de é b a n o , no qual o ciumento general nem uma vez se sentara desde a pr imeira visita do escriba eg ípc io à veneranda senhora.

« M a l d i t o rato, maldi to beijo, maldi to escriba», repetiu o desassossegado R a m ó s i s pela m i l i o n é s i m a vez, no momento em que v iu o vencedor da Esfinge aparecer no umbral da porta que dava acesso à sala de aud i ênc i a s .

' O nosso herói , sem perder u m segundo, disse: — Hur ra I A not íc ia é boa, Excelência . De outra forma,

ter-me-ia suicidado com o meu estilete de escriba em vez de comparecer aqui . Só quem nunca sentiu na carne a morde-dura de uma serpente azul deixaria de temer a m ã o pesada do severo governador de Karnak. Obviamente que, depois de A m o n - R á (o d iv ino Sol que nos i l u m i n a ) , o sacra t í s s imo T o t h é o maior. Ale lu ia! Folgo em dizer a Vossa Excelência que a veneranda senhora recuperou a feminilidade, já se encontra desperta e até dança .

A boca do taciturno governador torceu-se n u m sorriso de m ú m i a e a pele do rosto readquir iu a tonalidade caracte-

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r ís t ica desses cadáveres embalsamados que os ladrões de t ú m u l o s costumam vender aos turistas persas. Com uma expressão de t r iunfo na cara, falou:

— Procedi como um néscio ao confiar-te a vida da minha quericia Hatshepsut, urna vez que n ã o és u m especia-lista d ip lomado como o parvo do Imhotep que o Esp í r i t o do Mal guarde para todo o sempre, se entretanto tiver sobrado alguma coisa do repasto oferecido aos campeões que labutam nas c â m a r a s de tortura. Mas, em face do resultado obtido, posso gabar-me da minha o p o r t u n í s s i m a in sp i r ação . Inter-pretei mal os sonhos da incomj iarável Hatshepsut? N ã o . Confiei erradamente n u m curandeiro? Espero que não . — ALJUÍ, o vencedor da Esfinge sorriu ao de leve, encjuanto R a m ó s i s recuperava o fôlego, para prosseguir: — M u i t o bem, escriba dum raio. Agora volta ao teu d o m i c í l i o , dá um jeito nessa barba de ladrão montês, mergulha numa celha com espuma de sisal, passa uma escova de cavalos por essa tún ica de trapos e apresenta-te a m a n h ã às dez menos dez para faze-res o retrato da i n igua l áve l Hatshepsut. — Calou-se por uns instantes, a remoer qualquer coisa. A seguir disse: — Talvez te mande aplicar só quarenta chicotadas de lá tego simples em vez das quinhentas de azorrague de cinco pontas de metal que te havia prometido. E nem quero pensar no resto. Agora de joelhos! E agradece a minha i n d u l g ê n c i a .

O vencedor da Esfinge genuflectiu e disse «obr igado» cinte vezes ao condescendente governador da Choça do Ganião. Pondo-se em pé, disse, por entre dentes: «Se eu fosse u m pobre diabo qualquer, a té merecia mais chicotadas, dado o meu comportamento a b o m i n á v e l , o meu supino desaforo e a minha ousadia sem limites perante a veneranda senhora, abusando da conf iança e hospitalidade do generoso R a m ó s i s . M u i t o certo, se eu fosse um qualquer. Mas açoi tar o favorito do Criador dos Céus e da Terra é u m ultraje que lhe vai custar bem caro. Quando eu for aquele c]ue ostenta as três i n s ígn i a s da realeza — a barba, que j á tenho; a serpente, que me mordeu; e o abutre, que me falta —, ai de t i , grandess ís -

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simo safado! Eu ju ro que serás o encarregado dos meus está-bulos. És u m excelente cavaleiro, serás amda melhor como tratador de cavalgaduras. Por T o t h o ju ro , por T o t h e pela Esf inge.» Sorriu ao de leve e reurou-se da sala de aud iênc ias .

Ô tolerante governador, em passadas de aranha gigante, dingiu-se para os aposentos da i n c o m p a r á v e l Hatshepsut.

Page 37: Armenio, V. o Eleito Do Sol

o ESCRIBA FAZ O R E T R A T O DA M U L H E R DE RAMÓSIS

N o dia subsequenie, com pontualidade rigorosa, o escriba eg ípc io , lavadinho e bem penteado, apresentou-se na sala de aud i ênc i a s da Choça do Gavião.

Sua Excelência achava-se finalmente recostado no cadei-rão de é b a n o com embutidos de luxo. A in igua láve l Hatshe-psut, de pé, colocara-se do lado esquerdo do seu cadavér ico esposo. Ora, a cena exige uma exp l icação .

Naquelas p r í s t i nas eras, quando u m varão se sentava, a consorte, ainda que fosse uma dama da fina-flor, ficava de pé, em sinal de respeito pelo seu rei e senhor. Só em casos m u i t o excepcionais, por exemplo, quando sofria da bexiga, dos rins ou havia tido dois casos de parto difíci l , podia sentar-se por breves pe r íodo s que iam de tr inta a quarenta segundos. Mas sempre que a excepção estivesse prestes a ocorrer, a escrava do homem era obrigada a beijar as duas patas do mando, rigorosamente por esta ordem: pr imei ro a csc]ucrda e dc].)0)s a direita. Para as damas solteiras, ainda que se tratasse de uma tia de cem anos, nunca havia excep-ção, pouco impor tando que fosse mera solteirona, v iúva ou divorciada. De tal praxe e suje ição nenhuma dama se isen-tava, fosse ela a consorte do faraó ou mesmo a imperatriz-

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Mal o escriba entrou na sala de aud iênc ia s , a veneranda senhora sorriu maliciosamente e piscou-lhe o o lho esquerdo. Out ro tanto fez o vencedor da Esfinge. E cogitou, sorridente-mente: « Q u e tipa lixada! Mesmo com o terrível general por perto ela n ã o procura ocultar o desejo que sente na f lor de lótus .» Mas, acto c o n t í n u o , vis ionou u m c h u ç o ardente e u m faca lhão de cortar tomates, pelo que o sorriso se trans-formou numa careta gelada.

S. Exa. o Governador saudou-o: — Ora viva! Conforme ficou ontem decidido, vais fazer

o retrato da m i n h a esposa. Tens cá todo o mater ia l necessár io .

— Ó p t i m o — disse o escriba, ao mesmo tempo que dava u m estalido com os dedos.

O retrato ficou pronto ao f i m de três minutos. Depois de entregar a p intura , o vencedor da Esfinge disse:

— Desculpe, Excelência , ter despendido uma eternidade, mas é tremendamente difícil fazer o retrato de uma mulher bonita. Quando são feias ou mesmo do tipo «ass im-ass im» a coisa pode ser executada n u m abrir e fechar de olhos, mas a i n c o m p a r á v e l Hatshepsut é das que obrigam qualquer artista a suar.

Após observar o cjuadro, R a m ó s i s exclamou: —- Belo! Estupendo! Magn í f i co ! Cada vez me surpreen-

des mais, escriba d u m raio. És, sem favor, um g é n i o na arte de p in tar com o modelo à frente. Este retrato, acho eu, é mais parecido com a i n igua l áve l Hatshepsut do que ela com a sua p r ó p r i a imagem n u m espelho. A imor ta l Neferud foi agora metida n u m chinelo. Em todo o caso, sempre quero ver até onde chega a tua arte. U m dia destes vais fazer o meu retrato equestre, com esta legenda em letras de oiro: «Sua Excelência o Governador R a m ó s i s , guerreiro i n c o m p a r á v e l e braço armado da Ordem, Paz e Jus t i ça» .

— D á - m e l icença, ilustre governador? — interveio o ven-cedor da Esfinge. — Proponho dois acrésc imos à legenda. Ei-los: «Pro tec to r das letras, artes e ciências» e « P a l a d i n o

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incansáve l , com a bela i^nncesa Hatshepsut no coração». O que acha, governador?

— Concordo com o pr imeiro ; quanto ao segundo, tira daí o sentido. A p r o p ó s i t o , n ã o metas o nariz onde n ã o és chamado.

— Oh, peço desculpa, se é que uma simples proposta ofende — disse o escriba, sorrindo à socapa.

— Bom... deixemos isso — replicou R a m ó s i s . — Basta de p in tura por hoje. Outra coisa: o promeddo é devido, e eu tenho uma excelente m e m ó r i a , como sabes. Apresenta-te, sem mais t a rdança , ao carrasco-mor para que ele te aplique as cem chicotadas da ordem.

— Devo lecordar-lhe, Excelência , ciue anunciou ontem uma redução da pena. De acordo com essa medida de indu l -gênc ia parcial, cabe-me apanhar quarenta açoites de lá tego simples e n ã o uma centena, como acabou de proferir.

— l^elos vistos, tu é que te fazes deslembrado, seu copia-dor de modelos. Eu disse «talvez te mande apl icar . . .» A pard-cula «talvez» p r e s s u p õ e uma incerteza, olari la! É ou n ã o é, seu barra em g ramá t i ca ?

— Evidentemente que sim — disse o vencedor da Esfinge, abstendo-se de sorrir.

A i n c o m p a r á v e l I-[atshepsut lesolveu en t ão meter-sc na conversa, i n t r u s ã o que o terrível R a m ó s i s provavelmente só n ã o contrar iou por temer uma recaída .

— Que é isso, meu senhor? Por que mandais chicotear o meu m é d i c o e pintor? Ele n ã o tem sido eficiente?

— Eficiente como ele, só o augusto Amenóf is x x v i i i , a governar, e o invencível R a m ó s i s , a batalhar. N ã o é por des-lizes profissionais, mas pelas inso lênc ias . Esse escriba mete-d i ço a té tem sorte, pois decidi reduzir-lhe a pena, que, a cumprir-se na 'integra, nunca seria inferior a quinhentos açoi tes aplicados com o azorrague de cinco pontas. Como castigo suplementar, o e n g r a ç a d i n h o devia ser assado vivo, depois de convenientemente esfolado. Agora de joelhos, seu escriba felizardo, e agradece ao teu benevolente senhor!

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Assim que o vencedor da Esfinge se pôs de pé, ajiós ler di to vmte vezes «obr igado» ao clemente R a m ó s i s , Hatshe-psut voltou-se para ele e perguntou:

— Sabes contar h i s tó r i as , jovem escriba? — Contar h i s tó r i as é o meu forte — respondeu o nosso

heró i . — Posso con tá - l a s a começa r do p r i n c í p i o , ou em sen-tido retrógi 'ado, conforme o gosto de cada ouvinte. Conto-as em prosa e em versos, soltos ou rimados, a conversar ou a cantar. Sei h i s tó r i as tanto dos que estão vivos como dos que já morreram. C o n h e ç o h i s tó r i as de homens, de animais e de entes divinos e sobrenaturais. Conto h i s tó r i a s verídicas e fan-tásticas, umas t rágicas , outras cómicas . E ainda casos de pura nragia, au de puro horror. Sei h is tór ias que nunca mais aca-bam, e, mesmo que acabassem, inventaria outras ou rejjrodu-ziria as que tenho sonhado.

A veneranda senhora o lhou para o marido e disse: — Comd sabeis, meu senhor, u m dos meus raros entrete-

nimentos neste p res íd io eram as h i s tó r ias que o falecido Imhotep me contava. A esse condeirastes à morte; a este man-dais flagelar, de modo que fico só a aborrecer-me nos meus aposentos, onde até os ratos es tão agora proibidos de entrar. C o m e ç o a desejar que voltem aqueles terríveis del í r ios que eram para durar cem anos.

, — Calma, i n i g u a l á v e l Hat! — exclamou R a m ó s i s . Virou-se depois para o escriba e declarou: — Além de p in tor e médico , és o novo contador de h i s tó r i as da minha mulher, ocupando o lugar que o Imhotep deixou vago; mas cpnta-as bem e porta-te com ju ízo , se n ã o a tua cabeça rola. Oi:tra vez de joelhos, e agradece a minha generosidade.

Cumpr ido o r i t ua l de g ra t idão , o vencedor da Esfinge pensou: «Sou como o he ró i de certas h is tór ias , safo-me sem-pre na hora H » .

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o ESCRIBA CONTA A HISTÓRIA DO CAVALEIR O PERSA

A i n c o m p a r á v e l Hatshepsut adorava sonhar com jovens agradáveis e bem-falantes, sobretudo quando t inham uma linda barba. «Se o meu amo fosse ass im!» — suspirava ela. Outra p a i x ã o da veneranda senhora era a que ela sentia por gafanhotinhos assados com molho preparado à base de con-dimentos exót icos . Mas a maior parte do tempo ocupava-a ela a ouvir h is tór ias , enquanto saboreava guloseimas de várias cores, com marcada preferência pelo doce de abóbora silvestre. «Eis um aspecto em que a bela Hatshepsut me decepc iona» , dizia o vencedor da • Esfinge para consigo. «Detesto doces, e desde pequeno que ganhei aversão pela abóbora , pelo m e l ã o e pelo pepino. No entanto, é-me s i m p á -uca a pred i lecção que ela tem pelas cores. N ã o fora a mania dos doces, podia-se viver com ela durante m i l anos .»

Ora, a in igua láve l Hatshepsut abominava as narrativas baseadas em factos reais. E m c o m p e n s a ç ã o , n ã o se importava de paj^ar noites em claro a ouvir h i s tó r i as sobre o mundo feérico da fantasia, onde era possível que u m simples pastor de cabras, ou até uma rã, viesse a tiansformar-se em p r ínc ipe , em s u l t ã o ou mesmo em faraó. E o talentoso escriba, em que-rendo, podia con tá - l as à velocidade de sessenta por hora.

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— Conta-me as aventuras do marinheiro das sete via-gens; o tal que naufragou e foi dar a uma i lha onde venceu o d r a g ã o de vinte mi lhas de cauda, nove l éguas de envergadura, tr inta pés de l í n g u a , catorze m i l olhos de rubi e oitenta m i l h õ e s de escamas de lápis - lazúl i — pediu a veneranda senhora.

O vencedor da Esfinge opôs-se; — Naa, essa n ã o , que j á foi repetida hoje trinta vezes. O

melhor é contar uma que a senhora nunca tenha ouvido ou que j á esqueceu. Que tal a da Mocinha do Gorro Azul ou, en tão , a da menina que teimou, teimou e entrou pelo buraco duma agulha e depois perdeu-se n u m bosque onde gastou a infânc ia , a juventude e o resto do tempo a jogar xadrez com a Rainha Preta; e quando quis voltar era demasiado tarde, p o r q u e ' ] á t inha cabelos brancos e sofria da vista, e n ã o havia a l i n i n g u é m que se lembrasse de ter ouvido alguma vez falar de uma coisa chamada agulha? '

— Essas duas n ã o . O Imhotep contou-mas centenas de vezes e f iquei saturada.

— Ora! que i m p o r t â n c i a tem isso? O Imhotep , de resto, só conhecia a versão tradicional, dos tempos de Pepi, o p r i -meiro Fa raó . A minha , sim, é moderna e com arranjos meus. Qual prefere, a da pienina ou da mocinha?

— Seja como for, acho que n ã o , ' ' \ — E n t ã o , que tal a do Cavaleiro Persa} ' — Pode ser essa, de preferência cantada, mas sem versos

rimados. O nosso he ró i af inou três vezes a sua bela voz de ave

canora e arrancou: « Q u a n d o a t ing iu a quin ta légua , o cavaleiro persa deu-

-se conta de que já n ã o ia montado, mas sim a pé. O cavalo havia desaparecido.

O cavaleiro acocorou-se en tão e c o m e ç o u a observar o terreno, que se apresentava h ú m i d o , sem outras marcas que as impressas pelas suas p r ó p r i a s s andá l i a s .

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Provavelmente, a lgum estranho esquecimento — quem sabe se provocado pela mordedura de a lgum roedor azul —-havia-se apoderado dele, fazendo que deixasse o animal jireso a uma árvore, ou mesmo solto, e cmnprisse, a partir daí , o percurso a pé . (Teria sido essa a causa descortinada pela sua mente?)

Fosse como fosse, ele decidiu recuar. No entanto, ao cabo de cinco léguas , estacou, perplexo, ao notar cjue a vereda se bifurcava.

— T o m o agora o caminl io da direita e, se n ã o encontiar o cavalo, retrocedo até este lugar e sigo e n t ã o pelo da esquerda — disse consigo mesmo.

Neste p r o p ó s i t o , o cavaleiro pôs-se de novo em marcha até perfazer oiuras cinco léguas . Por essa altura, deparou-se--Ihe uma encruzilhada.

— Experimentemos agoia o c a n ú n h o da esquerda. Metendo por este ú l t i m o , p a l m i l h o u outras cinco légtias

e acabou por desembocar numa nova encruzilhada. — Se calhar (admit iu ele), saí de casa a pé e foi a minha

jDobre cabeça quem engendrou toda esta fantasia. Terminada a frase, o persa abriu os olhos. Espregin-

çando-se no leito, vol tou a cabeça em direcção da parede à sua esquerda e pareceu-lhe ver um cavalo — imponente, musculado, de imensa crina ondulando ao vento. Com um sorriso estampado na cara, ele m u r m u r o u :

— Deve ser assim o deus dos cavalos. Lembrando-se, p o r é m , do cpie vinha exposto no Livrcj

do Grande Zoroastro, vol tou a sorrii e cor r ig iu : — Deus n ã o , a forma perfeita, ou melhoi', a Luz, em

última análise.»

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o ESCRIBA E X P L I C A ALGUNS FACTOS DA SUA VIDA A HATSHEPSUT

Entre uma h is tór ia e outra, havia pequenos intervalos que o escriba eg ípc io aproveitava para fumar erva no seu cachimbo de barro azul, enquanto a i n c o m p a r á v e l Hatshe-psut sorvia avidamente a sua guloseima predilecta, ou seja, doce de a b ó b o r a silvestre.

N u m a dessas paragens, a veneranda senhora disse: — Constou-me que te fazes passar por neto do Sumo

Sacerdote. Ê verdade? — É, sim, senhora. Por motivos de ordem prá t i ca tive

que l ança r m ã o desse falso parentesco. — Depois de adrar uma baforada para o ar, o escriba cont inuou: — Presente-mente, ou melhor, h á coisa de três semanas, fui obrigado a parar com a brincadeira, visto que Sua Majestade Amenóf i s — assim me pareceu — n ã o gostou mesmo nada. Por causa disso até me v i , e ainda me vejo, metido numa camisa de onze varas, como se diz lá na Grécia . Calou-se por u m ins-tante e prosseguiu: — Como já sei qual é a pergunta que se vai seguir, passo a responder: a senhora quer saber por que razão entrei nessa embrulhada. Ei-la: em pequeno, fui mor-dido por uma serpente azul. Para me curar, meu pai recorreu à ciência de u m feiticeiro do Baixo Egipto. Assim que me

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passou a febre, o meu velho disse-me: «Agora de joelhos, e agradece ao vovô», referindo-se, obviamente, ao bruxo de longas barbas. Ajoelhado, disse trinta vezes obrigado ao meu salvador. E m seguida, perguntei a meu pai quem era o velhinho. Meu progenitor respondeu; «Pela forma sábia e obscura como se dir ige aos deuses, n ã o pode ser outro senão o Sumo Sacerdote .» Ora, a part ir dessa altura, ganhei muita afeição ao velhote e passei a t rá tá- lo ora por vovô, ora por Sua E m i n ê n c i a ou Sumo Sacerdote. O dpo, que era um ponto, fartava-se de contar-me anedotas, algumas delas mui to apimentadas, diga-se de passagem. E, com o tempo, vendo que eu era a v a n ç a d o para a idade, o bom do velho disse; «Penso que n ã o há mal nenhum em eu iniciar-te nas ciên-cias mág icas e ocu l tas .» Em três tempos tornei-me mestre em magia, feitiçaria e astrologia. Como, entretanto, havia apren-dido os rudimentos da escrita h ie rá t ica , comecei a procurar os melhores tratados sobre tais assuntos. U m dia vovô disse--me: «Agora j á sabes tanto como eu e... mais alguma coisa. Adeus, meu f i lho.» Desde e n t ã o nunca mais lhe pus a vista em cima. É natural que o homem esteja agora morto, a n ã o ser que tenha a natureza dos vampiros humanos ou de Sua Excelência o Governador da Choça de Gavião, seu detestável marido, minha veneranda senhora. Adiante. Aquando da minha s u s p e n s ã o do cargo de escriba da letra B, vi-me à rasca, sem um tos tão no bolso. Valeu-me, na c i r cuns t ânc ia , essa r ecordação da minha infância , isto é, tomava as coisas de que precisava — erva, comida, jornais, livros, «Agua Sagrada do N i l o » , m ú m i a s roubadas para o estudo do corpo humano, d r o m e d á r i o s de aluguer, instrumentos as t ro lógicos , el caetera — e mandava que fossem debitadas ao meu avô, o Sumo Sacerdote. Mas, como dizem cjs persas, Allo, aqui pára o bailei Ora, os perdigueiros de Sua Majestade o Imperador foram relatar tudo ao dono. Em resultado disso, a encarna-ção de H o r u s - G a v i ã o , que, pese o facto de ser zarolho, é extraordinariamente arguto c n ã o aprecia charadas, ou, melhor ainda, é a lérg ico a elas, pois quer tudo em pratos

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limpos , colocou-me perante o dilema; ou levanto o véu sob o qual se oculta o maduro cjue gerou o meu pai ou envia-me de presente aos crocodilos azuis. Para nre desembaraça r do enigma, Sua Majestade concedeu-me um prazo de um mês, a contar do pôr -do-so l do dia cm que me deitaram a m ã o e aferrolharam neste covi l .

A q u i a in igua láve l Flatshepsut interveio; — Quando desatas a gastar saliva ultrapassas o sacer-

dote cá do pres íd io , u m orador e f i ló logo que já mereceu quatrocentos louvores de S. Exa. o Governador. — O vence-dor da Esfinge aproveitou a i^ausa feita pela governadora e disse para consigo; «Apesar de tantos louvores, n ã o dou nada pela vida desse dist into eclesiást ico. Basta cpie a mostarda chegue ao nariz do terrível cadávei cjue comanda esta choça para que seja enviado de presente aos canibais c]uc pont i f i -cam nas c â m a r a s de to r tu ra .» — A i n c o m p a r á v e l Hatshepsut prosseguiu; — Ora, meu caro escriba, nunca v i charada tão fácil na minha vida.

— Parece — ar t iculou o nosso lierói. — Mas n ã o é, visto que o meu pai se fecha em copas, sempre que se trata de revelar o nome do sujeito cjue o gerou. Como vê, há um mis té r io , e só disponho de uma semana para o deslindar. A senhora há-de interceder perante o generoso R a m ó s i s no sen-tido de ele me autorizar a levantar a tenda, o mais cedo possí-vel. É o que dá n ã o ser conhecido. Caso con t r á r i o . Sua Majestade j á teria sabido da minha ]3resença neste antro e eu estaria agora a tomar fresco em Mênfis , já senhor da ver-dade, a l iás , da certeza absoluta, para empregar uma das expressões favoritas daquela augusta personagem que tem A n ú b i s no nariz e Gav ião no coração. Perdão , minha senhora, desta vez a r ima apanhou-me de surpresa.

— E eu? — A bela Hatshepsut suspirou, sem ligar aos is e ãos, pelos quais t inha uma aversão inst int iva, mormente quando ocorriam na prosa. — Com que e n t ã o desejas aban-donar-me?

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— Só por uns dias — respondeu o escriba. — Urge que eu saiba quem é o meu avô, de con t r á r i o i re i servir de pasto aos répteis azuis, e a i n igua láve l Hatshepsut terá de mandar ressuscitar o velho Imhotep, o que é de todo imposs íve l , a dar crédi to às palavras do d iv ino T o t h : «Ai daquele a quem forem recusados os rituais funerár ios . T a l homem, ou mulher, será p ó vermelho do deserto por toda a E te rn idade .»

— Nesse caso, vou ver se falo com R a m ó s i s ainda hoje. Mas vai ser u m sacrifício dos grandes, pois terei de lhe beijar o pé esquerdo setenta vezes, antes que se digne ouvir-me. N ã o cjue ele se importe com tais bagatelas quando se trata da minha pessoa; mas... enfim, são regras.

— Em recompensa, garanto que lhe vou contar umas h is tó r ias verdadeiramente originais (à razão de sete por catia beijo na pata mal cheirosa do cadáver) . Mas faça o que pro-meteu, amda hoje.

A i n c o m p a r á v e l Hatshepsut, que, a lém de moços bem--falantes e s impá t i cos , gafanhotinhos assados com molho e x ó d c o , doces coloridos, preferencialmente o de abóbora si l-vestre, e narradvas fantást icas, gostava de ver esclarecidas cer-tas ques tões , e daí a a lgum tempo entrou no assunto:

— Qual é a razão por que te suspenderam? — A i está — disse o vencedor da Esfinge. — Eu podia

ter-me adiantado na resposta. Confesse, in igua láve l Hatshe-psut, que estava em brasas por saber isso. M u i t o bem, sads-faço a sua curiosidade. Ora, numa r e u n i ã o de escribas da capital para utrra conversa reladva à proposta do Minis t ro da E d u c a ç ã o dos Nobres do I m p é r i o sobre a reforma or tográf ica visando a u n i f o r m i z a ç ã o da escrita nacional nas suas três regiões — o Al to , o Méd io e o Baixo Egipto —, as discussões, de nível medíocre — diga-se de passagem —, desviaramse completamente do objecto desse encontro de letrados rumo a ques tões como a infa l ib i l idade do Faraó e do Sumo Sacer-dote; a corrupta e venenosa democracia ateniense; a unidade a todo o preço do I m p é r i o ; a inviabi l idade das rel igiões monoieisias do M é d i o Oriente; os cegos e l ad rões de t ú m i d o s

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como in imigos p ú b l i c o s n ú m e r o um; a Choça do Gavião e o azinhavrado R a m ó s i s como os dois maiores baluartes da Nação ; a antropofagia como prá t i ca selvagem e obscuran-tista, p o r é m necessária como e s t í m u l o à produtividade dos algozes n ú b i o s vinculados às pen i t enc iá r i a s , co lón i a s penais e campos de recuperação ; o serviço m i l i t a r o b r i g a t ó r i o para invá l idos e c r ianças dos dois sexos; o tremendo risco que o Imperador corre com a d i v u l g a ç ã o indiscr iminada da escrita hierá t ica ; o gafanhoto azul como e n c a r n a ç ã o dos deuses rurais; a imortalidade do corpo sem alma (uma vez cumpr i -dos os ri tuais funerár ios e garantida a sepultura em lugares elevados); a plena igualdade entre o Boi Âpis e A n ú b i s , a divindade protectora do nariz, et caetera, et caetera. Todo o mundo defendia e aplaudia freneticamente as várias inter-venções do Minis t ro e as dos seus assessores e secretár ios . A dada altura desse cacarejar oportunista , como eu não podia ouvir tanta sem-vergonhice quieto, tive í m p e t o de dizer duas verdades. Primeiro, eu disse baixinho:«Merda para isto!» e, de seguida, pus-me em p é e proferi, alto e bom som: «Os actuais escribas da capital, diatribe que torno extensiva aos demais letrados do I m p é r i o , em vez do honroso estilete de junco que trazem pendurado ao pescoço, mas cujo lugar certo é o cu, deviam munir-se de uma escova para ca lçado.» Div ino A m o n - R á ! Olhei em volta e vi a maralha enfiada de susto, como se fosse deles e n ã o minha a enorme d i s sonânc ia . Osí r i s , ísis e Horus me acudam! O t i tu lar da pasta da Educa-ção dos Nobres do I m p é r i o ficou pior que uma barata e a sua voz v i rou t rovão. Ergueu-se do assento com embutidos de luxo, apontou-me o indicador esquerdo e a m e a ç o u - m e com todas as choças do I m p é r i o e outras que o F a r a ó mandaria construir para o efeito. Mas a raiva passou-lhe depressa, como chuva trazida e levada pelo vento. Depois de abrandar a voz. Sua Excelência o Min i s t ro declarou: « A t e n d e n d o a que és u m escriba dos mais competentes e levando em considera-ção os teus m ú l t i p l o s dons, determino, torno p ú b l i c o e mando cumpri r , no exercício das minhas funções e segundo

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a carta branca que me foi concedida por Sua Majestade o Faraó , senhor absoluto dos terr i tór ios do I m p é r i o Eg ípc io : «O escriba fulano de tal, f i lho de beltrano qualquer coisa, por ter prevaricado, transgredindo o que vem determinado na Sagrada C o n s t i t u i ç ã o e in f r ing indo, outrossim, alguns artigos, a l íneas e pa rág ra fos do Estatuto Ú n i c o que rege o ofício dos trabalhadores púb l i cos , é suspenso das suas acdvi-dades profissionais, sendo-lhe cassada a carta, até à p r ó x i m a enchente do Grande Rio ; é-lhe congelado o sa l á r i ç referente a este mês, ou seja, a m i l é s i m a qu in ta lua de seca no Egipto, mais os subs íd ios , emolumentos e demais regalias p e c u n i á -rias n ã o mencionadas; por ú l t i m o , fica pro ib ido de revelar o seu nome de registo e de re l ig ião perante seja quem for, salvo, como é óbv io , Sua Majestade Amenóf is X X V I I I . ,

A respei tável senhora comentou: — Bem vistas as coisas, tiveste uma sorte incr ível , meu

caro. Ouve: por se ter esquecido de cumprimentar o cavalo do vizir de Luxor , u m letrado mais antigo que tu, um inte-lectual dos mais famosos do I m p é r i o , que até vis i tou Babi ló-nia, J e r u s a l é m , Ninive , Atenas e Mile to , apanhou m i l e cem chicotadas de azorrague de cinco pontas, foi supliciado com o gongue de bronze durante seis mi lhões de segundos e, como se fosse ainda pouco, morreu empalado, sendo o cadá-ver entregue aos abutres o rd iná r io s . Aconteceu aqui na Choça do Gavião. Assisti a tudo com estes dois olhos, por-quanto R a m ó s i s declarou que me oferecia esses três espectá-culos de grande nível como presente de an ive r sá r io .

— É claro que n ã o tenho de que me queixar — reconhe-ceu o vencedor da Esfinge, que se levantou para i r à retrete. E saiu da sala em passo picado. Pelo caminho resmoneou: « T r e m e R a m ó s i s , horrendo cadáver; serás o tratador dos meus futuros cavalos, e a bela Hatshepsut dir-te-á u m dia em sonhos: — Tiveste uma sorte incr ível , meu caro ex-marido. Agora de joelhos, e agradece a generosidade do teu antigo p in to r .»

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O ESCRIBA L E VA UM PODEROSO BRUXO-NECROMANTE A MUDAR DE OPINIÃO

O escriba eg ípc io estava mergulhado no mais profundo dos sonos quando o foram arrancar do conchego do seu leito de p r ínc ipe , dado que Sua Excelência queria falar-lhe ime-diatamente. O vencedor da Esfinge, bocejando penosamente enciuanto se espreguiçava , disse para consigo: «Desde cpie sou h ó s p e d e da Choça do Gavião, é a pr imeira vez c]ue o cadavér ico R a m ó s i s me manda convocar a uma hora destas. Querem ver que a i n c o m p a r á v e l Hatshepsut apanhou nova den tada !»

O governador de Karnak ia e vinha na sala de aud iên -cias, sinal de que alguma p r e o c u p a ç ã o voltara a instalar-se na sua mente de m ú m i a . Logo que o nosso he ró i t r anspôs a porta de entrada, o i m p l a c á v e l general comunicou:

— U m novo contratempo acaba de sobrevir no Forte. Kyhorroor, o chefe dos meus verdugos, sumiu-se no interior duma botija vazia. Parece mentira, mas aconteceu. Ora, um poderoso bruxo-necromante, capturado por ocas ião da glo-riosa campanha dos sete dias, foi o autor desse feito prodi-gioso. Bom, eu t inha ordenado que dessem cabo do canastro a esse bruxo do caneco, anteontem de m a n h ã , dado que ele se

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vinha revelando u m sobrevivente de incrível resis tência a todo o género de supl íc ios . O estafermo comprazia-se em apanhar sova atrás de sova. Os meus t o r c i o n á n o s n ã o se faziam rogados, cascavam-lhe forte e feio. E o bastardo a r n --se e a pechr mais. U m a ocas ião houve em que o grandess í s -simo f i lho da m ã e até lamentou já n ã o ter mais dentes e unhas para ofertar ao imp lacáve l n ú b i o que dirige a câiTiara das turqueses. Chegou mesmo a cair de joelhos diante dos algozes mais desalmados implorando que o moessem de pan-cada. Todavia, quando lhe comunicaram que o governador de Karnak o havia condenado a morrer degolado, o sevandija ficou t r a n s t o r n a d í s s i m o e sol ic i tou uma a u d i ê n c i a comigo. Sem saber p o r q u ê , atendi o pedido; o sacripanta fez-me en t ão a seguinte proposta: caso eu anulasse a pena capital, ele faria dois niimeros de magia — duas obras-primas que unha aprendido no Oriente. Eu quis saber que magias eram, e ele disse-me que a primeira consistia em voar n u m tapete persa e que a segunda, de longe a mais mirabolante, consistia em meter u m dos meus gigantes numa botija vazia. Eu, mais curioso do que ponderado, aquiesci. Pois bem, mandei vir um velho tapete persa que tenho lá no quarto e o estupor, realmente, voou nele durante quinze horas numa das câma-ras de tortura. Agora, chegamos ao ponto mais desagradável : logo que esse canalha dispôs da oportunidade para meter alguéiai numa botija, pediu-me que lhe entregasse u m «vo lun tá r io» . Dado que o verdugo-mor é t a m b é m o pr imeiro em estatura e peso, eu, naturalmente, indiquei-o como «vo lun tá r io» . Ora, o safardana c o m e ç o u a pronunciar uma reza qualquer, apontou o indicador esquerdo para Kyhor-roor, este converteu-se em fumo e o fumo entrou na botija, donde, entretanto, n ã o pode mais sair, já que esse malfadado bruxo, segundo ele p r ó p r i o in formou, tapou a botija com uma rolha invis ível . I r r i tado, ordenei-lhe que pusesse termo à brincadeira. E sabes o que me disse, o camelo!? Que unha o h á b i t o de nunca voltar atrás; portanto que viesse u m outro, se fosse capaz, tirar o gigante da botija. Eu teimava com a

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minha, enquanto ele, obstinado ao extremo, sacudia a cabeça, recusando-se. Desta forma, quis-me parecer que dnha esbar-rado contra uma rocha. Mas, por f im , ocorreu-me: «Deve existir a lgum m á g i c o capaz de suplantar esse torpe bruxo--nec roman te .» Foi por isso que te mandei chamar.

— Se quer a minha o p i n i ã o , esse bruxo é de estofo — disse o vencedor da Esfinge, com a voz pastosa. — Tan to quanto me é dado saber, só houve um homem capaz de engarrafar brutamontes descomunais. Refiro-me ao Rei Salo-m ã o . Portanto é de supor que esse bruxo-necromante teve acesso ao baú arqui-secreto do s a p i e n t í s s i m o rei . H u m ! Con-vém proceder com cautela, que o m á g i c o é de força. Por isso n ã o caio na asneira de me p ô r desde já a cantar de galo. De qualquer modo, farei o melhor que puder, pois r econheç o que o enorme Kyhorroor é dos que fazem mui ta falta nesta choça. . . a l iás , forte. Na ausênc ia desse c a l m e i r ã o é como se o poderoso R a m ó s i s ficasse maneta. Urge, assim, p ô r - m e em contacto com esse sábio bruxo-necromante, quanto mais n ã o seja pelo prazer de trocar impressões com u m homem de gén io , espécie quase extinta hoje em dia.

— Prazer, o tanas! — exclamou R a m ó s i s . — Até parece que estás babado por esse feiticeiro de m á morte. Olha lá, m i ú d o ! O u descobres uma maneira de safar o meu carrasco--mor, ou vou ter que induzir esse bruxo cabeçudo a engarra-far u m outro parceiro. Sabes o que quero dizer?

— Claro que sei. Mas que ideia! Olhe, governador, va-mos ver o grande homem e seja o que os deuses quiserem.

M a l entraram na câmar a de tortura onde, a u m canto, jazia o engarrafador de gigantes, o vencedor da Esfinge pen-sou: «Se for necessár io , medirei forças com este bruxo--necromante. O x a l á que n ã o . De resto, é a conversar que os mág icos se entendem. Conversemos, pois, com o grande ho-m e m . »

• O singular bruxo-necromante, pelo aspecto, n ã o devia ter feito outra coisa na vida senão apanhar tareia. Na ver-

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dade, apresentava cicatrizes, n ó d o a s negras e feridas abertas em tudo quanto era visível no seu corpo.

— Excelente s áb io — perorou o escriba —, é um prazer e uma elevada honra falar com u m homem que, por certo, é detentor de alguns segredos m á g i c o s do Rei S a l o m ã o . Eu sou o p in to r e méd ico de S. Exa. o governador deste m a g n í f i co hotel onde, tanto o senhor como eu, somos hóspedes e comensais. Além disso, somos confrades em artes ocultas, já que n ã o sou u m leigo no ofício, embora eu nada valha, se tomar a si como exemplo. Ora bem, segundo estou infor-mado, o i l u s t r í s s imo Ramós i s , nosso amáve l senhorio, acaba de ter o desgosto de ver u m dos seus mais preciosos satélites metido e enrolhado numa botija, por obra e graça do meu talentoso colega. Pois bem, eu n ã o v i m aqui para medir for-ças, e mu i to menos consigo, sobretudo considerando que é, decerto, o mais dotado d i s c ípu lo do grande Rei S a l o m ã o , o p r o t ó t i p o da Sabedoria. Se entrei aqui , foi movido por u m ú n i c o e singelo p r o p ó s i t o : conversar, aprender e ainda rogar a u m consumado cientista que seja desengarrafado o extraor-dinariamente p ro f í cuo n ú b i o que desempenha o cargo de chefe de mesa deste luxuoso hotel.

— Agradeço as tuas amáve i s palavras — ar t iculou o ina-movíve l bruxo-necromante, n u m tom inesperadamente plá-cido. E — coisa estranha n u m engarrafador de gigantes — a voz dele estava longe de ser áspera ou estridente. — Quem invoca o Sáb io dos Sábios ob tém tudo, aliás, quase tudo de u m velho m á g i c o que se preza. Por outro lado, eu t a m b é m n ã o desejo travar duelo contra u m jovem que me agradou à pr imeira vista. Lamentavelmente, p o r é m , n ã o posso sadsfa-zer o teu pedido, sob pena de renegar u m p r i n c í p i o para m i m sagrado — o de nunca voltar a t rás . Para compensar, pede-me outra coisa e, se puder, serás satisfeito.

— O b s é q u i o só quero esse. Em todos os outros casos, conto com a pro tecção do d iv ino T o t h — disse o vencedor da Esfinge. — Ora, desculpe, grande sábio , mas quer-me pare-cer que o axioma no qual se fundamenta para manter engar-

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rafado o insubs t i tu íve l carrasco-mor da Choça do Gavião é o menos indicado para u m santo homem que se dedica a trans-cendênc ias que se prendem com o mundo dos que deixaram esta vida para uma melhor, ou pior, conforme o l a n ç a m e n t o de dados que se faz à entrada do Vale dos Mortos. Ora bem, todo o ser que deixa este mundo fica indissoluvelmente l igado ao passado, que foi a vida que ele teve neste vale de l á g r i m a s , para empregar uma expressão dos profetas. Pois bem, todo o necromante c, por assim dizer, u m sondador dos mortos, logo um homem que se vira constantemente para o passado, que o mesmo é dizer: para trás. Estou certo?

— Absolutamente — respondeu o grande m á g i c o . — O incr ível é que eu nunca tenha chegado à mesma conc lusão , afinal clara como á g u a . Tens toda a razão, meu caro escriba. Vou voltar a t rás , o que, de resto, tenho feito estes anos todos. Revogo assim o meu p r i n c í p i o , o qual , doravante, é subsd-tu ído pelo seu inverso — o de voltar a t rás . E j á que assim é, vou daqui a nada actuar no sentido de que o c ic lópica verdugo-mor se torne out ia vez visível. Posto isto, espero que tanto ele como o ' ' pa t rão se mostrem agradecidos mandando ferrar-me as tareias c]ue eu desejar.

R a m ó s i s estava perplexo, dada a forma, at inai simples, como o escriba enrolara o poderoso bruxo-necromante. No fundo, p o r é m , sentia-se desapontado, pois minutos antes pusera-se a imaginar um despique tenaz e pleno de passes de mág ica . Af ina l , o seu c a m p e ã o era u m pacifista. «Bri. . .», fez o decepcionado general.

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RAMÓSIS ANUNCIA NOVOS TRABALHOS AO ESCRIBA

O escriba eg ípc io viu-se outra vez arrancado da cama. Sua Excelência , com uma voz exultante que o seu ensonado p in tor considerou logo u m mau p res ság io , disse: — Cora-gem, seu moço , que desta vez a coisa é mesmo de arrepiar o mais destemido dos heró is . T e m calma e ouve. O meu ilustre confrade e caro i r m ã o . Sua Excelência o Governador de Luxor , vai estar entre nós dentro de quarenta e oito horas. Conhecedor que sou das preferências dessa eminente perso-nalidade, resolvi programar, sem perda de tempo, três espec-táculos de circo, uma bela t radição que ul t imamente vem sendo descurada no nosso pa í s . Pois bem, tu, meu valente escriba, foste designado para travar os seguintes combates: de m a n h ã , enfrentas, n u m despique morta l , u m dos pesos--pesados que prestam serviço nas c â m a r a s de tonura . Se te saíres bem, no p e r í o d o da tarde medes forças com ura toiro do mato; à noite, se até lá te aguentares no ba l anço , bates-te contra u m leão do deserto. — S. Exa. fez uma pausa. Depois acrescentou: — N ã o me digas que te pus nervoso.

— Que mal fiz eu aos deuses do Egipto, ao nosso bem--amado Fa raó e especialmente a si, i lus t r í s s imo governador, para merecer tamanhas provações? — i n q u i r i u o vencedor da Eslinge. ..-ij, X:

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— Vè-se que não alcançasie o real significado desía hon-rosa missão . N ã o sejas pateta. N i n g u é m te quei' fazer maf, antes pelo con t r á r io , é uma oportunidade que se te oferece para que o teu nome fique registado no Livro dos Imortais, a seguir aos dos faraós e condes táveis. Se não estoirarem con-tigo, conferimos-te a patente de oficial superior do Impé r io , ganhas u m d ip loma de mér i to assinado pelo punho de Sua Majestade Amenóf i s X X V I I I , adquires o direito ao uso da coroa de louros nos dias de festa nacional e os teus sidialter-nos terão que beijar o teu p é esquerdo, em obed iênc ia às normas militares. Eu ofereço-re a castanha, mas a r emoção do o u r i ç o é já u m problema teu. Que me dizes?

— Acontece que n ã o sou apreciador de castanha. Mas que importa , se é V. Exa. quem segura o bas tão de general. Agora tenha a bondade de autorizar que me redre imediata-mente a f im de traçar os planos reladvos a essas três pugnas — qual delas a mais t i t ân ica e sanguinosa. Tenho que puxar pelo cérebro , e mui to , pois os meus trunfos, por certo, n ã o consistem na força bruta.

— Sem dúv id a — considerou o sarcást ico governador. — Mas é provável que o teu d iv ino padr inho venha em teu a u x í l i o .

— Desta vez n ã o devo impor tunar o sac ra t í s s imo T o t h . « Q u e o raio da m a l d i ç ã o caia sobre todo aquele que apelar aos deuses em benefício p r ó p r i o » , assim reza o L i v r o dos Livros .

— A h , é?l Podes ir-te embora. Coragem e boa sorte! — Obrigadinho. O escriba retirou-se n u m estado de espí r i to ainda pior

que aquele com que, dias atrás, se acercara da Esfinge. Em todo o caso, decidiu nada comunicar à veneranda Senhora, Mais do que a a m e a ç a de qualquer besta mal igna temia fitar a cara de uma mulher banhada em lág r imas . « P o u p e m o s o pranto à i n c o m p a r á v e l H a t s h e p s u t » , disse ba ix inho . De seguida, começou a dar tratos à sua notáve l i m a g i n a ç ã o .

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DE COMO SE TRAVARAM OS TRÊS FABULOSOS COMBATES

Sua Excelência o Governador de Karnak e o seu h o m ó -logo de L u x o r encontravam-se instalados na tribuna de honra. L á em baixo o barulho tornara-se ensurdecedor devido à tremenda algazarra de cinco m i l e quinhentos peões especialmente convocados para apoiar o gladiador n ú b i o .

Quando o escriba eg ípc io deu entrada na arena do forte sobreveio um si lêncio de pedra, já que a m u l t i d ã o , boqtua-berta, se pusera a congeminar sobre o .significado dos três objectos que o nosso heró i uazia consigo: uma botija de barro, u m tapete persa e uma bengala para cegos — instru-mentos sem chivida inadequados paia a s i tuação , dado que um. jovem, com mais cabelos que m ú s c u l o s , ia ter como antagonista u m gigante n ú b i o , u m toiro bravo e um ferocís-simo i'ei da selva.

Uma trompa de gueira — tal como havia sucedido no m i n u t o anterior — estrugiu, enchendo o es tádio de notas marciais, ou melhor, fúnebres, na o p i n i ã o do cronista ali presente. Em seguida, u m colossal adeta n ú b i o , com enor-mes argolas pendentes de duas monstruosas orelhas, foi ari-rado para o meio da arena. Nesse instante, um vento assustador percorreu, uivando, cinco m i l e quinhentos cora-

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ções, embora se tratasse de homens habituados, desde sem-pre, a espec tácu los de horror e carnagem. O escriba disse para si mesmo: «Este gor i la é, pela certa, o i r m ã o géme o do descomunal verdugo-mor de S. Exa. Ramós i s . » E m seguida, respirou fundo e dirigiu-se, em passos fumes e bem medidos, para o seu terrificante contendor. Fê-lo deter-se a cinco pés de d i s tânc ia com um gesto a u t o r i t á r i o da m ã o esquerda c deu-lhe ordens em cUalecto n ú b i o para que entrasse na botija. O mac iço quebra-ossos, entorpecido pelo so rd l ég i o de S a l o m ã o — o qual fora t ransmiddo momentos antes pelo poderoso bruxo-necromante, com quem o escriba entrara em c o m u n i c a ç ã o te lepát ica —, converteu-se de imediato numa fumarada de sessenta pés de altura e foi dessa forma reco-lh ido na botija, a qual , n u m ápice, o vencedor da Esfinge tapou com uma rolha mág ica .

Isto sucedeu de i n a n h ã .

À tarde, coube a vez ao toiro selvagem. Este, mal deu entrada na arena, pareceu ter-se completamente esquecido dos temíveis cornos que o perverso R a m ó s i s , sem dizer nada ao seu pintor, mandara afiar com o in tu i to de emprestai inais e m o ç ã o à festa.

O selvático bovino começo u por mugi r como uma vaca leiteira, deu três passos claudicantes, deteve-se a seguir, u r i -nou até esvaziar a imensa bexiga, babou uma espuma esver-deada e docilmente ofereceu o cachaço ao campeador. «Por A m o n - R á » , clamaram cmco m i l e quinhentas gargantas.

Como é que a coisa se explicava? De u m tnodo mui to simples. Aos primeiros alvores desse dia, o nosso heró i , de con ivênc ia com o preparador físico das feras e gladiadores, dnha servido à iracunda a l i m á r i a uma boa dose de erva para cachimbo, e retirara-se t ranqui lo da vida, crente de que a miraculosa pa lh inha havia de surdr o efeito desejado.

À noite, sob a luz de enonnes l a m p i õ e s , soou a trompa de guerra anunciando a entrada em campo dos que iam ba-ter-se na grande peleja do século. Pr imeiro, o vencedor da Esfinge; de seguida, o belicoso rei da selva. « C o m o i rão

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portar-se os dois campeões?», eis a pergunta que se formou em cinco m i l , quinhentas e duas cabeças. Quem vai levar o xeque mate? O homem ou a fera? O homem ou a fera? O homem ou a fera? O homem, ou a fera? — repetia-se em eco.

Mui tos abriram as bolsas para apostar. Mas Sua Exce-lência n ã o quis arriscar nada, apesar de instado pelo seu eminente confrade.

O bestial felino rug iu , a lçou a tremenda juba e l ançou--se ao ataque. O seu adversár io , sempre vigilante, escolheu esse preciso momento para embarcar no tapete persa, que, n u m r e l â m p a g o , se elevou no ar, a uma altura de tr inta pés. Ora descetado, ora ascendendo, guinando e rodopiando — para a direita e para a esquerda —, conforme as c i r cuns tân-cias da luta, o nosso herói ia descarregando vigorosas bengaladas em cima do assombrado leão, o qua l bramia com turor. Cego de cólera, o felino lançava a esmo os seus pode-rosos botes, mas, evidentemente, sem nunca adng i r o prodi -gioso aeronauta, que governava o seu objecto voador com a per íc ia de u m cavaleiro m u i t o destro. Exausto, matraqueado sem t réguas pela du r í s s ima bengala, sua majestade o rei da selva baqueou ao f i m de duas horas de pertinaz resis tência. Tr iunfante , o vencedor da Esfinge saltou para terra, pousou o pé esquerdo em cima da fera caída, cumpr imentou com elegância os espectadores e declarou-se disposto a travar combates extras. Isto, bem entendido, no caso de haver luta-dores interessados. Todavia, n i n g u é m se manifestou. Ou melhor, uma turba delirante invadiu a arena, tomou o nosso heró i de assalto e, com ele em ombros, deu quinze voltas ao es tádio . , ,

R a m ó s i s , encantado da vida por n ã o ter arriscado um pataco contra o seu pintor , p o r é m algo decepcionado com os seus três c ampeões — o mais valente dos quais jazia por terra ao jeito de u m tareco entregue às inoscas —, disse para o seu hóspede :

— Excelência , este f i lho da mãe é u m bruxo e pêras. Conta h is tór ias e pinta letratos como n i n g u é m , recupera

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enfermos incuráve i s e ainda é capaz de pôr fora de combate gigantes n ú b i o s , toiros selvagens, leões ferocíssimos e pode-rosos bruxos-necromantes. Como vê, é um artista versátil , milagreiro a um alto grau e duro de esfolar. — Por momen-tos ficou sem fôlego. Depois volveu:

— Que lhe parece, governador? — Absolutamente fora do comum! — comentou o n ú -

mero u m de L u x o r , bastante desgostoso de n ã o ter visto o inter ior do r i q u í s s i m o porta-moedas do seu anf i t r i ão . «Com u m sovina destes nada feito», disse para consigo. E m i d u u m riso de chacal e a seguir acrescentou em voz alta:

— Excelênc ia , importa-se que seja o meu cavalo a colo-car a faixa de c a m p e ã o ao jovem herói?

— O seu cavalo?!... Oh, sim! É uma excelente ideia.

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O PRISIONEIRO - - UMA HISTÓRIA ^ DE PURO H O R R O R

N u m desses intervalos para comer doce de abóbora e fumar a d iv ina l palhinha, o escriba eg ípc io resolveu diverar--se enumerando para a bela Hatshepsut os i n t e rmináve i s cog-natos, derivados e s m ó n i m o s da palavra horror.

— A p r o p ó s i t o — disse a i n c o m p a r á v e l senhora —, conta-me uma h is tór ia de p m o horror, dessas de causar calafrios.

A cara do nosso heró i resplandeceu com i m i sorriso. — Bem, já que insiste, vou-lhe narrar uma semelhante a

um pesadelo — anuiu o vencedor da Esfinge, c o m e ç a n d o logo a seguir:

« C u s t o u - m e chegar a l i . Até desembocar nesse recinto em forma de h e x á g o n o , tive que atravessar u m imenso túnel , com ratazanas e morcegos cfiiando à minha volta.

As paredes desse compart imento, tingidas de um casta-nho já desbotado pela humidade, apresentavam-se nuas, t i -rante seis re lóg ios de areia — avariados e cobertos de lama. N ã o vi qualquer porta, nem mesmo ac|uela por onde, presu-mivelmente, havia entrado. No centro da sala — uma espécie de crij i ta concebida por a lgum estranho arquitecto ligado às c iências ocidtas — achava-se uma mesa comprida e rcctaugu-

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lar, coberta com um pano roxo. Quatro enormes castiçais, colocados era cada â n g u l o da mesa, sustiirham quatro velas acesas. Sobre a mesa, que fazia de leito funerár io , n ã o se via corpo algum. Apenas uma tún ica azul-escura (disposta ao comprido — com a respecdva cinta, a que se t inha dado u m nó perfeito —, de modo a sugerir u m cadáver amortalhado ao qua l faltavam a cabeça e os quatro membros).

Perto da mesa encontravam-se uma mulher a rondar os tr inta e um homem já entrado em anos. Quando apareci, vnaram-se ambos para m i m , pelos modos nada surpreendi-dos com a minha chegada.

— Temos estado à sua espera — disse-me a mulher. E ajuntou, em tom de quem dá uma ordem: — Encarregue-se de queimar a tún ica do vizir; aqui tem um par de luvas. — O l h o u de esguelha para o velho e disse-lhe: — Hekayb, dá--Ihe a carta do vizir.

O i n d i v í d u o chamado Elekayb t i rou do bolso u m rolo de papi ro e estendeu-rno. Aberta a mensagem, notei que ela vinha escrita em caracteres hierát icos . O seu autor redigira--a nestes termos:

A situação espantosa na qual le vês metido é uma das consequências da maldiçã,o que há três anos se abateu sobre a minha pessoa. A túnica que se encontra sobre a mesa — a minha mortalha simbólica — deve ser destruída pelo fogo, mas atenção: evita tocar-lhe com as mãos (para o efeito, hão--de entregar-le umas luvas apropriadas, as quais terás o cui-dado de queimar). Após a cremação da túnica e das luvas, recolhe as cinzas num vaso, em poder do Hekayb, e enterra-o num dos cantos desta sala. Cumprido isto, trata de limpar os seis relógios, de modo a ficarem aptos a funcionar. Dora-vante é como se fosses o guardador do tempo, quer dizer, terás de zelar pelos relógios, sempre neste lugar, até ao fim dos teus dias. O não cumprimento desta determinação atrai-ria para a tua pessoa todo o peso da maldição. É-te rigorosa-mente proibido investigar seja o que for acerca deste caso. Obedece e cala-le. Adeus, meu jilho.

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A carta que eu acabara de ler gelou-me o sangue. Com movimentos de s o n â m b u l o — de u m s o n â m b u l o sacudido por arrepios — removi os s imbó l i cos restos mortais do vizir e incinerei-os juntamente com as luvas. Feito isto, recolhi as cinzas n u m vaso e enterrei este num dos cantos da sala.

Os seis re lógios estão recuperados. É p o r é m difícil imaginar-se u m aborrecimento mais atroz do que esta vigí l ia rara vez interronrpida. Dia após dia, ano após ano — preso a estas seis paredes.

Nunca mais v i a mulher . As feições dela, contudo, gravaram-se para sempre na minha mente e revejo-as a cada instante. Mas é sobretudo nos escassos momentos de sono que essa face — à qua l se vem juntar uma voz plena de acen-tos sobrenaturais — acomete a irrinha alma (enquanto me afundo n u m abismo de aflição e águas lodosas).

Por vezes, ocorre-me l igar essa mulher à m a l d i ç ã o que se instalou nesta sala; no entanto, sempre que isso acontece, o aviso expresso na mensagem ressoa nos meus ouvidos, como se a l g u é m , de viva voz, mo estivesse lendo — sí laba a s í laba.

Quanto ao Hekayb, o fiel cão deste lugar, esse m a n t é m --se impass íve l e mudo como u m sepulcro. Mesmo assim, ele vai ocupando-se de todas as tarefas desdnadas a prolongar a vida de u m prisioneiro.

Salvo o rumor de a lgum insecto ou ratazana, está tudo silencioso nesta masmorra onde o tempo parece suspenso, n ã o obstante a p resença dos seis re lógios de que sou guar-d i ão até à mor te .»

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o E S C R I B A E X P L I C A A RAMÓSIS Q U E M SÃO OS U N I C Ó R N I O S E BICÓRNIOS

O implacável R a m ó s i s , t]ue era u m homem sensato acima dos cem por cento, às vezes dava-se ao luxo de perder tempo a ler coisas do arco-da-vclha. Foi desse modo que che-gou a u m fragmento de d i á l o g o da autoria de u m m a t e m á -tico da Idade Média Eg ípc ia , o mesmo que aventou a h i -pó tese de o peso da Terra ser igual ao de uma melancia elevado à t r igés ima m i l i o n é s i m a po tênc i a . Eis o fragmento, que mui to i n t r i go u Sua Excelência .

— (Os Unicórnios) devem ser uns bichos com um aspecto muito estranho.

— Lá isso são. * E m c o n s e q u ê n c i a disso, o poderoso R a m ó s i s ordenou

aos seus guardas que o escriba eg ípc io fosse arrancado da cama pela terceira vez.

Assim que o estremunhado heró i entrou na sala de audiê i ic ias , o m a n d ã o de Karnak proferiu:

— O U n i c ó r n i o n ã o existe. — N ã o é verdade — objectou o vencedor da Esfinge.

* Anicncmop — inntenidlico « /nilor jaiilá.Uiço que passuii pormetempsicoses. .4 sun úllimn reencarnação foi o inglês Lewis Cnrrotl. . . j v

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— Nesse caso, diz lá como é. — Nada mais simples: à parte as feições, realmente

indescr i t íveis , o U n i c ó r n i o é q u a d r í í p e d e , mu i to peludo c ostenta u m corno a meio da testa,

— Isso cheira-me a rinoceronte, — Se fosse rinoceronte, eu estaria calado. Naa,., Exce-

lência, queira fazer o favor de aguça r essas orelhas: é um •Uni i i i córn io!

— Está bem. Pode saber-se onde ele vive? — Na grande p l a n í a e de fogo que fica no centro da

Terra. — Alimentando-se de quê? De fogo, será? — Parece lóg ico , Excelência , mas n ã o . O U n i c ó r n i o

come ouro nos dias úteis e diamante aos domingos v feriados.

— É mesiTio rico o U n i c ó r n i o ! — Seria, se vivesse cá em cima, especialmente no Egipto.

Contudo, no centro da terra o ouro é cult ivado em grandes searas, e o diamante em vastas lavras.

( — Aposto que são plantas. — Ganhava, pois o ouro e o diamante nascem em arbus-

tos, com folhas e tudo. — O que quer dizer que o trigo e o arroz, para só men-

cionar os cereais, são m i n é r i o s n u m mundo assim. Estou certo?

— Cer t í s s imo . A tudo o que chamamos planta deste lado, eles denominam m i n é r i o do outro, e vice-versa. Os cereais, extremamente raros lá em baixo, são ap rec iad í s s imos pelo U n i c ó r n i o .

— Só porque são raros? — Essa é a razão subjectiva; o mot ivo, à luz da objectivi-

dade, é o seguinte: esses vegetais, melhor dizendo, miné r ios , são jó ias de grande valor, utilizadas na o r n a m e n t a ç ã o de templos, pa lác ios , sepulturas, máscaras funerár ias , tronos, coroas, anéis , brincos, et caelera.

— Que e n g r a ç a d o ! Agora diz-me; o U n i c ó r n i o organiza campanhas punidvas e bél icas , isto é, cul t iva a arte da repressão e da gueixa?

— Ele briga que se farta, mas nunca o faz contra os da sua espécie.

— Donde se conclui que há outras e s p é d e s contra as quais o U n i c ó r n i o arma os seus exérci tos .

— N ã o há outras e s p é d e s ; quer dizer: a l é m do Unicó r -nio, que vive nas regiões do Leste, h á uma outra espécie, e apenas essa, a qual , como é lógico, vive nas terras do Ocidente.

— Como se chama essa outra espécie? — Bicórn io . — Esses são os toiros. — Qual toiros, qual q u ê ! São b icórn ios , os toiros vivem

cá em cima. — Descreve-me esse bicho. — Para começar , eles n ã o se j u l g a m bichos. O Bicó rn io

é igua l ao U n i c ó r n i o , com a diferença de ter dois cornos. — E brigam uns com os outros. P o r q u ê ? — Odeiam-se de morte, pela simples razão de que uns

têm u m corno, enquanto os outros têm dois. — Desse modo, o acasalamento, melhor dizendo, o casa-

mento entre as duas espécies deve ser proibido. — Rigorosamente proibido. — De maneira que os h íb r idos são imposs íve i s . — Aparentemente, sim. Mas não , pois tem havido casos. — Aaaah! Aaaah! Fala-me de tais h íb r idos . — Para começar , n ã o são estéreis, porquanto certas leis

de r e p r o d u ç ã o , nomeadamente as que se apl icam às nossas mulas, n ã o têm qualquer efeito no centro da Terra, por razões ainda ignoradas. Mas n ã o é tudo, há mais. Oiça, grande R a m ó s i s , e pasme: se o macho for B icó rn io , os h íb r i -dos nascem com três chifres (são os chamados super-chifrudos); se o macho for U n i c ó r n i o , os derivados nascem com a testa lisa (são os infrachifrudos).

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— Verdadeiramente or ig ina l . Diz-mc agora como são os filhos desses h í b r i d o s .

— Bom, isso j á é querer saber de mais. Eu p r ó p r i o n ã o sei; o s a p i e n t í s s i m o Rei S a l o m ã o nunca soube; n i n g u é m sabe; os deuses talvez saibam. Para se ter o conhecimento dessa coisa, é preciso viajar ao centro da Terra e ver por si mesmo. Viagem ter r ib i l í ss ima e quase imposs íve l , pela boa razão de que p u l u l a m esfinges, fantasmas, aventesmas, anões corcundas, vampiros, lobisomens, centauros, crocodilos voa-dores, elefantes de cinco trombas, ogres, ciclopes, plantas ca rn ívoras , fúrias, dragões e toda a casta de monstros natu-rais e sobrenaturais à volta da grande muralha de enxofre que separa o nosso mundo do país dos cornudos.

— De ouvir tais coisas, eu, o I n t r é p i d o Cavaleiro, até fico com pe le -de -ga l ínha . Pode saber-se ao menos qual o tra-tamento que d ã o a esses h íbr idos? Matam-nos?

— Os u n i c ó r n i o s e b i có rn ios n ã o são es túp idos , u t i l izam os h í b r i d o s como bestas de montar, já que no país dos cornu-dos n ã o h á cavalos, nem muares, nem jumentos, nem came-los, nem d r o m e d á r i o s , nem elefantes.

— O que significa que o cruzamento das duas raças, embora proibido , é minimamente tolerado. As vantagens e c o n ó m i c a s saltam à vista.

— Pois claro, mas com a cond ição de que a c ó p u l a se dê em sít ios completamente às escuras, dentro da mais rigorosa discr ição. Senão, vejamos: o coito d iurno é pun ido com a pena capital , precedida de tortura; o beijo é castigado com a a m p u t a ç ã o dos quatro membros; u m simples olhar, interpre-tado como l ib idinoso, acarreta o corte das duas orelhas e a metade da l í n g u a ; uma carta de amor, se for apreendida, dá azo à decepação de u m corno, se o culpado for u n i c ó r n i o , e dos dois, se ele for b i có rn io , o que, em termos prá t icos , representa a t r a n s f o r m a ç ã o do infractor em cavalgadura; u m simples p i ropo acarreta a perda dos ó rgãos genitais. A grande safa desse clandestino relacionamento erót ico inter--racial reside nos dias de festa consagrados aos deuses, impe-

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radores e heróis nacionais. Por essa altura, sim, as relações sexuais entre as duas espécies são permitidas e até encoraja-das, mas só a par t i r do pôr-do-so l .

— Diz-me agora, ó escriba dum raio, de que vivem os b icórn ios .

— Do m á r m o r e azul e da sopa de péro las . — Plantas t a m b é m? — Pergunta já respondida. • ' ' ' — Sem dúv ida . O que fazein dos cereais? — Para contrariarem os u n i c ó r n i o s , desprezam-nos. Os

seus objectos de adorno são as pequenas abóbora s , os pepi-nos e as couves-flores, coisas que eu, o p in to r de Sua Exce-lência, detesto, sem ter nada contra os u n i c ó r n i o s , nem a favor dos b icórn ios .

— Diz-me agora, escriba dum raio, que armas usam esses bravos u n i c ó r n i o s e b i có rn ios .

— Os chifres, como é evidente. — Que se partem muitas vezes. Imagina tu que um

b icó rn io perde u m chifre; vira u n i c ó r n i o . Por outro lado, um u n i c ó r n i o , despojado do seu predicado frontal, transforma-se n u m bicho de testa lisa. Levando tais acidentes em conside-ração, o p r imei ro é aceito, ou devia sê-lo, entre os u n i c ó r n i o s (porquanto deixou de haver diferença) ao passo que o segundo — d e s g r a ç a d o a n i m a l — se transforma cm cavalgadura.

— Isso mesmo. Com sua au to r i zação . Governador, a persp icác ia do emér i to R a m ó s i s está apenas um furo abaixo de outros cinco grandes predicados seus, designadamente a m e m ó r i a , a valentia, a implacabil idade para com os i n i m i -gos de Sua Majestade Amenóf i s X X V I I I , o esp í r i to p rá t i co e o amor pela i n c o m p a r á v e l Hatshepsut. — A q u i o vencedor da Esfinge calou-se e pensou: «At r ibu tos aos quais j un to a longevidade sem limites, o c i ú m e , a avareza, a fealdade e a p a i x ã o torc ionár ia .»

— E m face dos acidentes atrás referidos, isto é, repor-tando à queda dos chifres, só vejo desvantagens para os

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bicórn ios , já que por essa via n ã o encontram maneira de tra-zer u n i c ó r n i o s às suas hostes. Elucida-me, ó escriba.

— Esclareço. Apesar do confl i to, m u i to mais comprido que as vinte m i l dinastias fiislóricas e l endár i a s do Sagrado Egipto, e cuja c o n s e q u ê n c i a menos grave são os cornos part i-dos, as duas espécies, mediante cimeiras, encontros ao mais alto nível, tratados, acordos e desacordos sem n ú m e r o , chega-ram, à coisa de vinte séculos , à seguinte plataforma de enten-d imen to : os in f rach i f rudos resultantes das pelejas são entregues aos b icó rn ios , para compensar. Como vê, excelente R a m ó s i s , as duas espécies possuem u m alto sentido a r i tmé-tico.

— De modo que a cavalaria b icó rn ia equi l ibra a infan-taria in imiga .

— Ora aí está a perspicácia ; realmente é como diz. '• ,' — T i n h a razão o autor; são uns bichos deveras extrava-gantes — comentou Ramós i s . • , , .

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O E S C R I B A C O N T A F I N A L M E N T E A HISTÓRIA DA M O C I N H A

DO G O R R O A Z U L .

Duas noites mal passadas graças a um bruxo-necro-mante engarrafador de n ú b i o s agigantados e aos estranhos animais de um m a t e m á t i c o com pachorra para inventar fá-bulas, o escriba eg ípc io sentia-se sem â n i m o para contar h i s tó r ias . Só que a in igua láve l Hatshepsut vinha teimando como uma mula .

— E porque n ã o aquela da mocinha do gorro azul, com arranjos teus?

— A h , bom! — disse o escriba, subitamente interessado. — IVIas é a derradeira, pois estou cambaleando de sono e nem sei se vou poder art icular a frase com que, por norma, fecho as h i s tó r i as deste género . . . •

— Sus! — encorajou-o a bel íss ima governadora. — Quando acabares, dorme bem e sonha com a tua flor preferida. - , ;

Depois de tapar u m bocejo, o nosso he ró i deu i n í c i o à n a r r a ç ã o :

«A Mocinha do gorro azul e o malvado. Lobo Lobante encontraram-se numa floresta (um lugar com u m monte de árvores e u m m i l h ã o de bichos que papam mocinhos e moci-nhas). Por sinal, nesse dia de claro sol, o ú n i c o bicho visível era Lobo Lobante, que, talvez para destoar, apresentava uns

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olhos mui to brandos e u m gorro azul na cabeça. Mocinha trazia o cabelo solto à frente e apanhado atrás com uma f i t i -nha li lás. Ma l se v i ram, Lobo Lobante fez m e n ç ã o de fugir, contudo Mocinha puxou-o por u m braço (mui to peludo, como é p r ó p r i o das feras), de maneira que Lobo Lobante teve de aceitar a proposta de Mocinha, isto é, de se sentarem em cima d u m tronco, ca ído de podre, para conversarem.

— Aonde vais com esse gorro tão bonito? — perguntou Mocinha.

— V o u levar r e m é d i o à minha avó, pois ela tem um dente furado que lhe causa dores horr íve i s — lespondeu Lobo Lobante. ,

— Calha bem, visto que t a m b é m vou para esses lados. Aposto em como chego lá pr imei ro que tu. Se eu ganhar, o teu gorro azul vai ficar para m i m ; se perder, dou-te a f i t inha l i lás . Negóc io fechado?

— N ã o me sinto em forma, mas u m lobo é u m lobo, sobretudo se é da famí l ia Lobante. Aceito o desafio. Mocinha do gorro azul.

— Isso era uma vez; agora sou Mocinha da f i t inha l i -lás, o gorro azul é teu.

— Tens razão. Mocinha do gorr... oh.. . pe rdão , da f i t i -nha l i lás .

— Uma vez que reconheces estar em baixo, e como n ã o gosto de ser oportunista, estou disposta a dar-te u m avanço . Ora bem, conto a té três e partes tu; cont inuo a contar até seis e parto eu. Que tal?

— N ã o ! U m lobo da famíl ia Lobante n ã o aceita vanta-gens. Partimos a u m tempo.

— E n t ã o vou contar: — um.. . dois... três. E lá arrancaram os dois — Mocinha na mecha e Lobo

Lobante em marcha de tartaruga. Correndo eles assim, é evi-dente que Mocinha levou a dianteira.

E entrando ela no covil da malvada, fez logo a pr imeira e a segunda pergunta, às quais vovó Loba respondeu tal e qua l vinha contado n u m rolo dos tempos de Pepi.

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Agora vamos à terceiía ciucstão. Por que tens uma boca ião grande?

Maior e]-a ainda a goela, e n u m repente Mocinha atravessou-a toda.

Agarrando a seguir na fita, que sc havia soltado da cabeça da sua nednha tão bela, a desalmada l i m p o u os bei-ços, subl inhando o gesto com uma dúzia de arrotos. De l)Ocarra ainda aberta, onde se viam caninos assustadores como facas de mato e um abcesso do tamanho d u m ovo de rok (o pássa ro gigante), a megera começo u a roncar, e de lal sorte que parecia ter-se al i instalado uma vara de porcos j)ara do rmi r a sesta.

Três horas mais tarde chegou Lobo Lobante, esbaforido c com a l í n g u a já quase branca de fora. 'Ué, 'nha mãe!!! ' O ])ateta ficou a l i boquiaberto. Depois, lentamente, uina luz foi nasceirdo na sua cabeça lup ina . ' Já sei, engol iu Mocinha. P o r é m desta vez vai ver-se comigo, que já n ã o sou neto de n i n g u é m ' , disse, numa voz arfante de corredor em má forma. Dirigiu-se, como pôde , à cubata do seu compadre Lenhador, sacou dal i a f iadíss ima catana e abriu a barriga da avozinha.

Mocinha foi descerrando as p á l p e b r a s , devagarinho, e jjareceu-lhe ver o P r í n c i p e Encantado a sorrir para ela. Mas (omo o P r í n c i p e trazia um gorro azul na cabeça em vez da coroa. Mocinha pôs-se a matutar se à q u i l o n ã o seria uma espécie de carnaval com Lobo Lobante brincando de F i lho tio Rei. Na dúv ida , achou preferível n ã o dai' asas à sua alegria.

'Diz-me', perguntou Mocinha à estranha visão, 'és o P r í n c i p e Encantado ou o malvado do L o b o Lobante?'

A estranha visão resj^ondeu: 'Ora sou P r í n c i p e Encan-tado, ora sou Lobo Lobante. Po rém, se Mocinha o desejar de todo o coração , para ela serei sempre o P r í n c i p e En-cantado.'

Mocinha ia falar, contudo sentiu-se fortemente sacu-dida. E, abrindo os olhos, v iu lun Sol m i n to claro, tão n í t i do e radiante, que em caso nenhum podia confundir-se com a Lua .

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•São horas de se pô r de pé, sua maudriona ' , exclamou a mãe de Mocinha. 'Pegue na merenda e vá ver sua avó ' .

Mocinha ia. e n t ã o perguntar: 'Vou levar r eméd io par;t ela?', mas, admit indo que tudo n ã o pas.sara de um sonho, preferiu manter a boca fechada.»

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O E S C R I B A D E I X A O F O R T E D E K A R N A K

Depois da promessa feita pela i n c o m p a r á v e l Hatshe-psut, o escriba eg ípc io sentiu-se retemperado, em vista da expectativa de obter au to r i zação de S. Exa. o Governador para deixar a Choça do Gaviã.o.

Mas n ã o . R a m ó s i s , durante toda a semana que se seguiu à promessa feita pela veneranda senhora, n ã o teve tempo para a mulher, nem mesmo para assinar qualquer ordem de soltura de u m ou outro pris ioneiro disposto a cola-borar com o regime de Sua Majestade. Com efeito, o terr ível ' Carcereiro do I m p é r i o t inha todas as horas tomadas, ocupa-d í s s i m o que estava no i n t e r r o g a t ó r i o dos i n ú m e r o s cegos e ladrões de t ú m u l o s que, de m i n u to a minu to , i a m dando entrada nas masmorras do forte a ver se a lgum deles era o monstruoso cabecilha da rebe l ião M L P R A - F R E N T E .

Deste modo, o vencedor da Esfinge via dissipar-se a es-p e r a n ç a de (dentro do prazo estipulado pelo Faraó) deslin-dar o mis té r io que envolvia a paternidade do seu progenitor. Qualquer outro ficaria perturbado ao extremo, amaldi-ç o a n d o a vida e os deuses. Qualquer outro, que n ã o o nosso heró i . «Sou como o protagonista de certas h i s tór ias , safo-me sempre na hora H » , disse consigo mesmo. « Q u e se l ixe o Faraó mais o Sumo Sacerdote.» Sem se ralar nada com coi-

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sa nenhuma, o escriba ia desbobinando para a in igua l áve l Haishepsul todas as h i s tó r ias conhecidas deste mundo e do ou t ro . Nos in tervalos , fumava erva p ro ib id a no seu cachimbo de barro azul e aprofundava-se nos mis tér ios da inebriante flor de ló tus (ciue o amor é mais delicioso que o vinho). ;. i , i >

Assim passava o tempo. Até que A m o n - R á (o d iv ino Sol) completou o t r igés imo giro desse mês em redor do pla-neta azul. Nesse preciso momento, em Mênfis , a corte do m u i t o poderoso Amenóf i s X X V I I I entrou em p â n i c o . N ã o que o a b o m i n á v e l cego do Vale dos Reis tivesse posto as suas hordas em pé de gueríci. A ameaça provinha de u m lugar m u i t o mais remoto que o l o n g í n q u o reino de Sabá. Ora, havia acontecido que os magos do i m p é r i o , olhando certa noite para as infini tas pastagens celestes e seus rebanhos de estrelas, t i nham ficado horrorizados e, como seria de esperar, anunciaram à autoridade m á x i m a da N a ç ã o o f i m do I m p é -r io e do Mundo. Observações a n á l o g a s feitas na B a b i l ó n i a vieram corroborar a c o n c l u s ã o dos sábios do N i l o .

Enquanto isso, sucedera igualmente que a no t íc ia das maravilhas operadas na Choça do Gavião por um a n ó n i m o letrado eg ípc io havia transposto as i n e x p u g n á v e i s portas de Tebas e a l c a n ç a d o a capital do I m p é r i o .

E m desespero, o Fa raó convocou os seus operacionais M S * e encarregou-os de levarem a cabo a i m p o r t a n t í s s i m a mi s são de trasladar vivo para Mênfis o p resumíve l neto do Sumo Sacerdote.

No momento de trepar para a luxuosa niontada que o transportaria à capital, o escriba piscou o olho esquerdo à lacrimosa Hatshepsut, sorr iu mostrando os dentes ao terrível governador e pensou: «Eis que se cumpre a pr imeira etapa da grande marcha para a g lór ia . O abutre, a barba e a ser-pente j á acenam àciuele cujo destino está escrito nas estrelas.»

M u i t o Secreios.

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O E S C R I B A C O N V E R S A D E N O V O C O M O FARAÓ

Pela terceira vez o escriba eg ípc io foi conduzido à pre-sença do Faraó .

O rosto do Imperador tomara uma expressão tacitui-na; a formidável peruca estava posta às três pancadas; decrescera luTi pouco a majestosa verruga nasal; os ombros estavam lite-ralmente caídos; tinha-se afundado o olho pres tável do sobe-rano; as e n x ú n d i a s do dup lo queixo, que tremiam quando .Sua Majestade largava uma das suas faraónicas gargalhadas, eram agora mui to menos salientes. T u d o isso, enfim, indica-livos de que o ultrapoderoso Amenóf is se achava abaddo.

O gav ião perdeu a pena, disse de si para si o vencedor da Esfinge, citando Khamsés, . o clássico n ú m e r o u m da poesia nacional. '

O desconsolado faraó abanou-se nervosamente com uma \entarola de paprro, l i m p o u a garganta e depois cuspiu para o chão , sem fazer caso do escriba, que o olhava com uma expressão brejeira.

Por f i m , após ter engolido bastante ar, levantou a cabeça c falou:

— H á que tempos, meu caro escriba! M u i t o prazer em \er-te de novo. Bom.. . era fatal que a fama dos teus p rod íg ios

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transpusesse uir i dia as sete portas de Tebas, a i n e x p u g n á -vel, e, como u m gav ião imper ia l , viesse poisar no Paço de Horus, onde te recebemos com uma e m o ç ã o idênt ica à que s e n t i r í a m o s caso fosses um enviado dos deuses. Ora bem, esperamos ouvir da tua boca a exp l icação que salva ou mata, pois na dúv ida é que n ã o podemos continuar. Meu caro, a q u e s t ã o resume-se no seguinte: os magos nacionais c tam-bém os da Bab i lón ia , após terem observado o céu com olhos de ver, c o n c l u í r a m e mandaram os seus emissár ios co-municar-me que o I m p é r i o e o M i m d o chegaram ao seu ter-mo. Ora, uma colossal estrela, a quel par t iu as amarras que a prendiam nos confins do Universo, aproxima-se da Terra com a velocidade de m i l in i lhões de cavalos. A col isão com o planeta azul, embora sem data marcada, é, no enten-der desses mesmos sábios, uma ciuestão de dias. Temendo pelo f im t rágico deste povo, do qual sou o Imperador e Guia, receio que torno extensivo a todo o mundo, em conse-cjuência do meu esp í r i to m a g n â n i m o e a l t ru í s ta , contudo impotente para travar a acção dessa espantosa força criada pelos deuses, e ignorando as medidas a tomar, entrego o assunto nas tuas mãos , n ã o para que nos salves, pois a salva-ção, se existe, compete às potestades dos Céus, mas tão-só para que nos forneças uma luz sobre o que se passa, a f im de que a dúv ida desapareça do nosso I m p é r i o de certezas absolutas.

Extenuado, Sua Majestade calou-se, olhando inteiroga-tivamente para o vencedor da Esfinge.

— Grande Faraó , nosso Imperador e Guia — disse o escriba eg ípc io . — Antes de mais, agradeço pela forma con-digna, e a té principesca, como Vossa Majestade mandou transportar à capital do I m p é r i o u m dos hóspedes de Sua Excelência R a m ó s i s ; em segundo lugar, congratulo-me pelas palavras generosas com que recebestes u m h u m í l i m o súb-dito, ainda por cima em falta, embora por razões alheias à sua vontade; por ú l t i m o , quero dizer que me sinto imensa-mente honTa.ào pela conllarvça que "Vossa Ma^esiadc em m i m

m

deposita, tanto mais que a responsabilidade que impende agora sobre os meus ombros é de longe mais pesada que a qUe em tempos antigos foi imposta ao gigante Atlas. Eis que u m mis té r io imensamente maior que o que se me tornou-a p r e o c u p a ç ã o dominante há precisamente um mês (refiro-me à i n c ó g n i t a que existe quanto à identidade do meu avô) me compele a pô r tudo de lado a f im de me ocupar do que é afl i t ivo para todos, mormente para Vossa Majestade, já que é o pai temporal e espiritual da maior e mais prestigiosa das nações. Adiante. Contrariamente à douta o p i n i ã o dos sábios nacionais e estrangeiros, estou convicto de que n ã o vai acabar aqui lo que, por p r i n c í p i o d iv ino , é indes t ru t íve l e eterno. Tenhamos em vista as palavras do s a p i e n t í s s i mo Eclesiastes: Uina geração passa, e a seguir vem outra; mas a terra fica para sempre. Ora bem, i l u s t r í s s imo Fa raó , garan-to-lhe solenemente que as conc lusões desses grandes sábios valem menos do que as m á x i m a s ditas por uma coruja. Veja-mos: todos quantos se aprofundaram no estudo das coisas sagradas (eu, por exemplo, conquanto dos mais jovens) de forma nenhuma ignoram que o L i v r o dos Livros, escrito pelo d iv ino T o t h logo a seguir à c r iação dos orbes, é impe-recível. Faça, Vossa Majestade, o favor de dizer-me onde se encontra o o r ig ina l desse texto sacra t í s s imo . N o Egipto, pois claro. Assim, como concil iar a ideia de uma obra imorre-doira, i naba l áve l e acima das leis que governam a Natureza e a de u m mundo suscept ível de acabar, precisamente aquele onde o L i v r o dos Livros está conservado e para o qua l (mundo) ele ( l ivro) foi concebido? Ora bem, se este mundo desaparecer, em que algures ou que a l ém irá situar-se a biblioteca possuidora desse papiro ún i co , de s o b r e n u m e r á -veis cap í tu los? No éter dos pseudofi lósofos? Ou , para levar o rac ioc ín io a um ponto extremo, será que a imperecibilidade do L i v r o dos Livros é uma impostura dos nossos sábios do passado? Absurdo e b las fematór io . Quanto aos magos, n ã o h á dúv ida que v i ram alguma coisa, pois, caso fossem cegos de verdade, estariam neste momento a bater com os ossos

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na... quero dizer Forte de Karnak, em companhia do magote de invisuais entregues aos cuidados do fabuloso R a m ó s i s : Portanto, esses doutos as t ró logos viram; só que v i ram com os olhos da cara, quando deviam ter visto com os olhos do espí-r i to , que é imor ta l como a essência dos deuses, omnisciente e sem limites. E, uma vez. que o caso está absolutamente fora de q u e s t ã o , que tal se Vossa Majestade mandasse à fava esses magos de trazer por casa? Foi o que fez S. Exa. R a m ó s i s em re lação a duas sumidades lá do forte (o ex-pintor e o ex--médico) , se bem que à minha natureza de letrado repugnem as medidas extremas do implacáve l governador. Perdoe-me, Majestade, este rompante de franqueza. Voltando agora ao caso: urge que me ponha em c o m u n i c a ç ã o com o d iv ino T o t h . Tenha, pois, a bondade de mandar vir os materiais necessários à i n v o c a ç ão do criador dos setecentos caracteres, isto é, o d é c i m o terceiro tomo do L i v r o de T o t h , uma cal-deira de três pés , u m fogão, uma faca de esfolar coelhos, uma botija com « Á g u a Sagrada do Ni lo» e dois gatos — u m bran-co e outro preto.

O Imperador piscou o olho são e, por incrível que pa reça , o destroço visual alumiou-se por uma fracção de segundo. Com renovado entusiasmo, Amenóf i s disse:

— Como dizia o meu falecido avô, o que lá vai, lá vai. Ora, em que pese à tua deplorável conduta passada, és a sabedoria personificada. Que sejam desterrados para as pedreiras os magos cha r l a t ães do I m p é r i o !

E, com esta dec la ração , o pequenino e grotesco Impera-dor tocou três vezes u m apito de baiubu com embutidos de ouro e lápis - lazúl i , a f i m de convocar o seu oficial às ordens, a quem ia i ncumbi r de proceder às necessár ias d i l igências , tendo em vista os materiais exigidos pelo escriba. Aprovei-tando o s i l ênc io reinante no mais nobre sa lão do I m p é r i o , o vencedor da Esfinge pensou; «É espantosa a facilidade com que o Destino (ou u m dos seus muitos escribas) conduz esta inacredi tável h is tór ia .»

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O E S C R I B A É N O M E A D O C O N D E S T Á V E L DO IMPÉRIO

Meia hora após a terceira assobiadela no apito de Sua Majestade, os materiais foram entregues ao escriba egíjicio.

Cumpridos os preliminares rela d vos à invocação da divindade, o vencedor da Esfinge dirigiu-se ao t e r r í hco fan-tasma nestes termos:

— D i v i n o T o t h , pela terceira vez me recorro a t i , ó d iv ino entre os divinos, para que nos esclareças sobre o que vai nos altos céus, lá onde o abutre jamais voou, nem o g a v i ã o caçou ou caçará . Apenas tu , ó poderoso T o i h , que criaste os Céus e a Terra, inventaste o n ú m e r o e a escrita, dividiste o tempo e colocaste no alto o k n n m a r dos mari -nheiros c]ue navegam paia o Norte, apenas tu , ó a l t í s s imo esp í r i to e suprema luz, nos podes aluir i iar nesta hora em que os grandes sábios deste mundo, confundidos pelo c la rão movente de uma estrela, mais n ã o vêem do que o f i m de tudo quanto vós criastes, deuses imortais . Elucida-nos, a l t í ss ima potestade, lira-nos do mar de dúv idas em que nos perdemos. A t i oramos, a t i suiDlicamos, d iv ino , sac ra t í s s imo T o t l i .

A terrífica divindade agigantou-sc no meio do vapor e

profer iu: — Cr ianças de colo, disfarçadas poi ' longas barbas, eis o

que são os vossos sábios. Que oiura atitude posso ter se n ã o a 12.']

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que se exprime pelo riso? Deixa-me r i r pr imeiro , meu dilecto afilhado. Pois bem, ca r í s s imo escriba, a tua cabeça é de ou-ro, ainda que os teus pés sejam de barro. Em verdade, és o homem prodigioso destes tempos, e eis que te abro uma das portas da sabedoria. Entra e ouve: uma enorme estrela cabe-luda, das milhentas que semeei pelos vastos céus, aproxima-se do planeta azul, n ã o para matar a l g u é m mas tão-só para anunciar que mimigos poderosos do Egipto se preparam para atravessar as fronteiras da Nação a quem doei o L i v r o dos Livros. É certo que Amenóf i s tetn os dias contados. O seu vetusto acó l i to t a m b é m vai apanhar a sua conta. Nestas duas coisas os magos estão certos. Em c o m p e n s a ç ã o , o sinal dos céus anuncia o advento do novo Guia, j á profetizado pela Esfinge. Mais n ã o é preciso dizer. Prepara-te agora, valente escriba, para que os acontecimentos se ajusteirr ao que há a lgum tempo desejas e provavelmente mereces.

O espectro do d iv ino T o t h sumiu-se na caldeira. O escriba manteve-se calado por longo tempo, até que o Faraó , saltando do t rono, o veio sacudir, com uma energia surpreendente.

— Estou à espera, desembucha — disse o Ntimero U m da N a ç ã o Egípc ia .

— Perdão , o d ivino T o t h acaba de confirmar o que eu afiancei logo de in íc io a Vossa Majestade, com base na lógica e na ciência das coisas sagradas. O Mundo , portanto, vai continuar a gozar de boa satide, se pusermos de parte um ou outro aspecto sem i m p o r t â n c i a de maior. O que se passa é o seguinte: uma enorme estrela cabeluda, naturalmente criada pelo d iv ino T o t h , aproxima-se do planeta azul a f im de anunciar que vamos ter flagelo e dos grandes. Eis que o eterno i n i m i g o estrangeiro volta a d i r ig i r o seu olhar de milhafre para a foz do grande r io . Consequentemente, urge que Vossa Majestade se prepare para a cruenta guerra que há-de vir .

Sua Majestade I m p e r i a l cambaleou. Para n ã o cair, segurou-se no espaldar do trono. O escriba, sempre de pé .

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esperou que o Fa raó se restaurasse. Transcorrida uma hora, o combalido Amenóf i s apertou as mãos uma na outra e falou:

— O que acabas de comunicar-me é deveras terrível. De certo modo ainda é p io r que o f i m do Mundo . Bem... o que impor ta antes do mais é matutar nos planos de defesa. Para começar , nomeio-te meu segundo condestável .

O F a r a ó deteve-se u m pedaço a f im de enxotar uma vespa decidida a converter em poleiro a majestosa verruga nasal. Após isso, cont inuou:

— O primeiro, como podes calcular, é R a m ó s i s , o prota-gonista de inar ráve is epopeias. Ora, ao I n t r é p i d o Cavaleiro estão confiadas as forças do Norte, Centro e Sul do I m p é r i o . Eu, na qualidade de Comandante Supremo da N a ç ã o (cargo

•que é inerente às minhas funções de Imperador e Magistrado Ntimero U m ) , encarregar-me-ei da defesa do P a l á c i o Impe-

.r ial , seus jardins, museus e casa do tesouro. O Sumo Sacer-dote, teu p resumíve l avô, rezará aos deuses tutelares para que as flechas e tnaças do b á r b a r o invasor percam a dureza e o fio, à moda dos objectos de cera quairdo sobre eles incide o olhar í gneo de A m o n - R á . T u , finalmente, a s sumi rá s o comando do nosso exérci to destacado na Síria, ponto estraté-gico de i m p o r t â n c i a vi ta l , j á que as tropas invasoras, desde que o mundo é mundo, al i têm montado a sua base de opera-ções n ú m e r o utri. « P a r a que se leve o toipe exérc i to i n i m i g o de vencida, impresc ind íve l se torna e m p e r r á - l o na retaguarda sír ia», assim foi e s t a tu ído pelo mais notável dos estrategis-tas nacionais. Tremenda, por conseguinte, é a tua responsa-bilidade, meu caro escriba. " '

— A h , pois! — exclamou o vencedor da Esfinge. — Agora podes retirar-te, que eu vou ter de aplicar uma

compressa de vinagre na testa. •> • • — Só unr momento. Majestade, careço de uma boa lança

e de u m cavalo árabe, coisas que u m general deve possuir assim como o lavrador precisa do boi e do arado.

— N ã o te preocupes, que vais ter tudo quanto é preciso: lança, cavalo, farda de gala e de campanha, tenda, marmita .

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r ação de combate, mochi la , faca de mato, dis t int ivo, apito, bas tão de comando, p luma para o barrete, caderneta, l i v ro de ponto, manual do R D M , carta topográf ica , ta l i smã protec-tor, medalha de mér i to , o santo-e-senha, enfim essas coisas que carac te r izam os comandantes a s é r i o . Mas , p o r enquanto, tem pac iênc ia , que a guerra n ã o se faz n u m só dia. Antes de mais, é mister que sejas armado cavaleiro pelo Comandante Supremo da N a ç ão e a b e n ç o a d o pelo Sumo Sacerdote, em obse rvânc ia à t rad ição m i l i t a r e às normas vigentes nas Forças Armadas Imperiais.

— A h , pois! — tornou a exclamar o mais jovem condes-tável da Hi s tó r i a .

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O E S C R I B A V I S I T A A CASA P A T E R N A

O Sumo Sacerdote, ao receber a noticia de que ia reben-tar a guerra, conquanto jamais tivesse estado n u m campo de batalha, começou a ter visões prefigurando de imediato a barulheira das lanças , o martelar das maças , o es t répi to dos cascos, o relinchar das cavalgaduras, o ] 3 a n d e m ó n i o dos guerreiros em fúria, os gemidos dos moribundos, o escabujar 'dos feridos, a vozearia dos comandantes e oficiais, a carni l i -cina, os c rân ios esmigalhados, os membros partidos, os ven-tres abertos, as tripas de fora, as enxurradas de sangue, o suor, o mi jo , as fezes, a baba, o horror, o inferno, o f i m do I m p é r i o , a hecatombe universal. Tomado de p â n i c o , com-preensível se torna que Sua E m i n ê n c i a se tenha deixado pegar por uma tremenda diarreia que o pôs de cama, ficando assim incapacitado para tomar parte na ce r imón ia respei-tante à i m p o s i ç ã o das i n s í g n i a s de cavaleiro à q u e l e que fora seu neto até há pouco tempo. Nestas c i rcuns tânc ias , o Faraó teve ciue protelar o acto siri.e die. No entanto, para n ã o des-moralizar o seu jovem condes tável , aconselhou-o a n ã o des-curar a sua p r e p a r a ç ã o m i l i t a i , isto é, que treinasse a voz de comando, fizesse alguns exercícios com uma vara de bambu (montado m m i cavalo de pau), além de marchas d iár ias e um

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pouco de g inás t ica r e sp i ra tó r i a para desenvolver os p u l m õ e s . O nosso heró i , m u i diplomaticamente, mandou bugiar o N ú m e r o U m da N a ç ã o Eg ípc ia . Em seguida, disse consigo, parafraseando os gregos: «O bom filho à casa torna. J á é tempo de saber, da boca do autor dos meus dias, o nome do maduro que o gerou, porque fica mal ao futuro imperador ser neto de avô incógn i to . »

Ao passar pela Grande Praça de Tu tankhamon , o escriba notou que, apesar da presença de meia dúzia de pom-bas ao pé do chafariz onde, h á tr inta dias, fizera a sua ablu-ção mat ina l , a vida continuava normal , mostra de que os estratos baixos e méd ios da p o p u l a ç ã o nada sabiam quanto à a p r o x i m a ç ã o da estrela cabeluda, ignorando de igual forma a i m i n ê n c i a da nova calamidade. U m c o m e n t á r i o i rón i co aflorou-lhe aos láb ios , mas ele, senhor de si, enviou-o para dentro. « S a i b a m o s conter o riso, que as c i r cuns t ânc ias n ã o são para b r incade i ra» , m u r m u r o u ele, estoirando uma gar-galhada.

O pai do nosso escriba encontrava-se como a arraia ir i iúda do Impé r io , c]ue é como quem diz: n ã o sabia de nada.

Ant igo f u n c i o n á r io dos Serviços de Agrinrensura e Venda de Terreno para Sepultura, a sabedoria as t ro lóg ica desse velho aposentado restringia-se ao planeta azul, à Lua, ao Sol e à Estrela Polar. Nem.p planeta Marte, nem os anéis de Saturno, nem as estrelas cabeludas figuravam na lista das coisas de que ao menos tivesse ouvido falar. O escriba, no entanto, pô - lo a par dessas novidades todas em dois minutos e dois segundos, posto o que lhe disse.

— Meu pai, agora já sabes o que são as estrelas cabelu-das, as quais foram inventadas pelo d iv ino T o t h para que sirvam de mensageiras da desgraça, ou das grandes mudan-ças. Mas h á uma coisa que ainda n ã o sabes: que fui nomea-do condestáve l do I m p é r i o pelo augusto Amenóf i s X X V I I I e que seguirei brevemente para a Síria, cabendo-me, portanto, a mis são rpais ingrata, p o r é m a mais honrosa, da tremenda guerra que se avizinha. H á t a m b é m outras que n ã o sabes:

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que venci a Esfinge, que fui o braço esquerdo de Sua Exce-lência o Governador do Forte de Karnak, que sou amigo í n t i m o da mulher do referido general e que derrotei uma quantidade de feras. Ainda h á outra coisa: dentro de dias serei armado cavaleiro pelo vosso actual faraó. Por ú l t i m o , a no t í c i a mais assombrosa: dentro em breve serei Imperador. Bom, agora vamos à q u i l o que preciso de saber: quem é o meu avô?

O pobre homem olhava boquiaberto para o seu rebento. Após u m prolongado s i lêncio disse:

— Nasceste j á destravado, mas agora estás mesmo louco de todo. Cala-te, boca, antes que a no t íc ia se espalhe e vás servir de jantar aos crocodilos azuis. Apre! Criar filhos des-miolados é pior que engolir serpentes vivas. Deixa-te de fan-tasias e firma os pés em terra. H u m ! Pelo que ouvi , estiveste a contar-me alguns dos teus sonhos antigos, desses com que entretinhas a garotada do bairro quando andavas a soletrar as primeiras letras. Caramba! Como é possível que estes anos todos n ã o tenham endire i tado m i n i m a m e n t e essa bola maluca que trazes em cima do pescoço?!

— Sempre foste um hotrrem sensato — repl icou, com' toda a calina, o vencedor da Esfinge. — E gente sisuda como tu nunca acredita nas coisas que se si tuam a mais de dez palmos do seu nariz, como se a realidade se limitasse ao preço da cevada e ao jumento mosqueado que lhe serve de cavalo. Gente sisuda como tu c o pobre diabo desse guarda que certo dia o lhou para m i m ao pé do chafariz da Grande Praça de Tu tankhamon , gente sisuda como o governador da Choça do Gavião; mas este, valha a verdade, soube reco-nhecer em m i m os predicados cjue me dist inguem das pes-soas o rd iná r i a s , e a té aprec iá - los , a ponto .de fazer-me seu p in to r e ainda contador de h is tór ias e iriédico da bela Flai-shepsut, uma senhora excepcional, apesar do fraco que teín pelo doce de abóbora . Todavia, para q u ê tentar conven<ei -te daqui lo que tens por simples a l u c i n a ç ã o de um desvai rado, ainda que o d iv ino Rá , de corpo presente, viesse gi ila:

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a plenos p u l m õ e s que a minha cabeça é excelente e que cada palavra que sai da minha boca é verdadeira como se fosse u m deus a proferi-la. Conforme dizem os gregos, Jião há pior surdo do que aquele que não quer ouvir. Mas vamos ao que importa , diz-me quem é o meu avô.

— Certamente que tens ouvido falar de Akenaton, «o Heresiarca Mald i to» — cic iou o ex- func ionár io . — Pois bem, o meu pai é tetraneto do Usurpador. Mas n ã o saias por aí a badalar. Se a coisa vier a lume, adeus sai^ide! — a tua e a minha —, pois u m édi to promulgado p o r T u t m ó s i s , «o Orto-doxo Perfeito» manda l iqu idar os descendentes do A n t i --Faraó até à ú l t i m a geração . O teu avô está completamente cego e, pelo que se diz, é o principal , r esponsáve l pela grande rebe l ião dos sete dias. No Vale dos Reis, onde ele leva exis-tência de foragido vai para uns c^uarenta anos, é provável que a lgum anacoreta, ou talvez um dos ladrões da seita dele, te possa informar sobre o paradeiro do maior de todos os clandesdnos. Mas nunca é de mais insistir: procede de forma discreta e n ã o digas a n i n g u é m , nem ao amigo mais í n t i m o , que és parente do grande l íder da opos ição , cuja cabeça, segundo estou informado, vale mais para o actual imperador que todo o tesouro com que foi inumado o faraó virgem Tu tankhamon . Embora te ache doido varrido, tive prazer em ver-te. Daqu i em diante todo o cuidado é pouco. I az a via-gem pela noite calada. Que Set, o ' e sp í r i t o das trevas, seja o teu guia.

— N ã o te aflijas comigo. Aquele que venceu a Esfinge, fez que u m portentoso bruxo-necromante mudasse de opi -n i ã o e desbaratou em campo fechado um gigante n ú b i o , u m touro selvagem e h m brav í s s imo leão do deserto n ã o pode sentir-se atrapalhado perante seja o que for. De resto, quem ousaria aborrecer u m condestável do Impé r io? V ã o ver, e n ã o tarda mui to , de q-ue lado sopra agora o vento. Vão ver.

Na rua, o nosso herói disse consigo mesmo: «Descenden-te, do grande Akenaton. Agora vejo que a escolha dos deuses n ã o foi à toa. A minha missão nas terras do Egipto é desfazer

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a grande mentira. O meu pr imeiro édi to terá por c o n t e ú d o a reab i l i t ação do meu hexavô , cujo nome mandarei inscrever na lista dos au tên t i co s faraós.» O escriba r i u a l t í s s imo e acres-centou. «Doravan t e chamo-me Akenaton. Quem n ã o concor-dar que se dane!»

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o E S C R I B A E N C O N T R A - S E C O M O LÍDER DA G R A N D E REBELIÃO

«Sou condestável do I m p é r i o e nem u m cavalo tenho para me levar ao Vale dos Reis», pensou o escriba mal se v iu na rua. « P o u c o i m p o r t a » , prosseguiu ele, « a l u g o u m rocim qualquer e mando pô r na conta do Faraó» .

No Vale dos Mortos (segrmdo a des ignação popular ) só havia terra vermelha de u m lado e rochas do outro. Por con-seguinte, n i n g u é m para o informar sobre o paradeiro do celebrado cabecilha da i n su r r e i ção M L P R A F R E N T E . Nessas c i rcuns tânc ias , era como se um cego andasse à procura de outro cego. O nosso heró i , sem nunca desanimar, pesquisou durante quinze dias e quinze noites. Mas, como n ã o calhava avistar n i n g u é m , ele começo u a ver as coisas u m pouco som-brias. Entretanto, n ã o arredou, até que, de repente, ouv iu utira espécie de gemido. «Espe ro que n ã o seja alguma besta famin ta» , disse ele int imamente. Nisto, reparou que, a trinta passos, hav ia uma c a b e ç a h u m a n a , rente ao solo. Aproximou-se e, com espanto, deu com um homem enter-rado na argila rubra. U m a floresta de pê los tapava-lhe a cabeça e o rosto. Os olhos, entretanto, apresentavam-se ina-nimados, como se pertencessem a uma es tá tua . O vencedor da Esfinge saudou o homem soterrado, o qua l reudbuiu.

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numa voz singularmenie forte para uma pessoa tão idosa. Em seguida, o nosso he ró i perguntou ao so l i tá r io por que é que ele se encontrava enterrado a l i .

— Porque sou u m homem de palavra — respondeu o cego, — Jurei pelo meu bem-amado tetravô e pelos deuses do Egipto que se a R e v o l u ç ã o fosse ao ar eu abrir ia u m buraco no c h ã o e, como u m arbusto a l i plantado, ficaida aguar-dando até que a l g u é m me viesse desencantar. Valeu. Es, indubitavelmente, o jovem de quem eu estava à espera. Quem, senão o predestinado, teria pac iênc ia e coragem para vir a té aqui?

— Jovem sou — disse o vencedor da Esfinge. — Paciente, corajoso e q u i ç á predestinado. Talvez eu seja a pes-soa de quem o senhor estava à espera. Agora, outra coisa: e se eu n ã o tenho aparecido, o senhor ficaria soterrado neste ermo até morrer?

— Eu n ã o posso morrer, sou uma alma. — Como, uma alma?! Que é uma alma? — É u m homem, ou uma mulher, que percorreu todas

as etapas da vida e algumas daqui lo a que chamais morte, Eu, o cego do Vale dos IVÍortos, sou uma alma.

— IVÍas tem uma cabeça e, pelo que depreendo, tambénr o resto do corpo, como as outras pessoas a quem estamos habituados a chamar viventes. Só lhe falta a visão, mas isso é o menos, já que a Choça do Gavião, donde saí há poucos dias, está abarrotada de invisuais que n ã o são tratados pelo governador R a m ó s i s com a benevolência e o respeito que as almas merecem, o que me leva a inferir que são pessoas vivas e n ã o almas. Acresce ainda que o senhor é o l íder de uma grande insur re ição , cjue foi engaiolado e conseguiu pôr-se ao fresco, que é procurado nas três regiões do I m p é r i o e que o faraó Amenóf i s X X V I I I está disposto a dar uma fortuna à pessoa que o desencovar vivo ou morto. Convenhamos que é mui ta coisa para quem é uma simples alma.

— N ã o está mal pensado, n ã o senhor. Só que as almas, na a p a r ê n c i a , são como toda a gente, mas com a seguinte

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diferença: es tão em toda a pane, tanto aqui como nos con-fins cio Universo.

— yVcredito. Eu p r ó p r i o talvez seja uma alma... em carne e osso, o que, por a q u i l o que estou vendo, n ã o é inconcebíve l .

— N ã o gracejes. T u és uin ser da terra, como eu f iu nou-tros tempos. Mas quando for tempo disso, t a m b é m serás uma alma.

— Todos os homens serão almas? — Todos, sem excepção, — R a m ó s i s , o governador, t a m b é m esse vai ser tmra

alma? — Com certeza, e dentro em breve. Mas uma alma do

estrato mais baixo, até que ascenda, o que pode levar qua.se uma eternidade.

— E o Faraó? •' ' ' ' — De igual maneira. — Outra coisa ainda: como sabia que a l g u é m , ademais

um jovem, vir ia ter a este ermo, donde as p r ó p r i a s feras se afastam, a f im de o pi'ocurar?

— Que é que as almas n ã o sabem? — Por exemplo, que a grande insu r re i ção ir ia por água

abaixo. Caso c o n t r á r i o , a sua tentativa n ã o teria passado de uma acção gratuita, para n ã o dizer absurda.

— Achas? — Por isso está soterrado aqui . — O facto de uma alma sabei- tudo n ã o obsta a c]ue seja

livre e tenha desejos, compreendes? — As almas t a m b é m sonham e por vezes se escpiecem. É

isso? — Exactamente, meu caro. s i > — Agora, se me dá l icença, preferia mudar de assunto.

Por que é que estava à minha espera? — Para te ungir , porquanto és o novo Imperador, aque-

le que veio para completar a obra iniciada pelo grande -Vkenaton, nosso antepassado comum, já que és meu neto e

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cu, por rnurha vez, tetraneto de «o Heresiarca Mald i to» . — O eremita calou-se por alguns instantes e depois prosseguiu: — Agora tira-me daqui; vamos para o meu reftigio e a l i dir-te-ei quem l o i o teu hexavô ; para isso é que vieste procurar-me.

O escriba desenterrou o cego e, em seguida, caminharam ambos em direcção à gruta que servia de esconderijo ao cabe-cilha dos rebeldes.

— Akenaton — c o m e ç o u o velho — era, na juventude, um simples guardador de cabras. Até que certo dia estando ele no cume de uma montanha, 'o Sol se desprendeu do fir-mamento, e, transformando-se n u m pássaro de oiro, veio ter com ele. « A k e n a t o n » , disse-lhe o pássaro , «de ixa as tuas cabras e dinge-te a Mênfis , para que sejas o nov.o pastor do povo de Aton» . O jovem pegureiro, em obed iênc ia à ordem do astro-rei, deslocou-se imediatamente à capital do I m p é r i o , onde, a p r i n c í p i o , se empregou como decifrador dos sonhos de Ramsés , «o P e r n a - d e - P a u » . Até que um dia o Fa raó teve um sonho m u i t o estranho. Sonhou ele que o Sol deixara o f i rmamento e viera falar com um jovem pastor de Cabras. Akenaton disse ao Perneta: «Essa visão significa que A m o n --Rá, ou melhor, o d iv ino Aton resolveu eleger u m novo sobe-rano.» Nisto começa o Faraó a ter ataques de possesso e manda supr imir todos os pastores do I m p é r i o , desconhe-cendo, p o r é m , que o seu in té rpre te de sonhos havia sido zagal antes de se hxar em Mênfis. As crueldades do Alei jadi -nho fazem crescer cada vez mais a sua impopularidade. As rebeliões grassam, os eternos in imigos do Egipto, isto é, os exérci tos h i t i t ãs e assír ios atacam as fronteiras do I m p é r i o e fazem grandes incursões , chegando, algumas vezes, a flagelar as terras do Delta. Sobrevêm pragas sem conta e o N i l o deixa de ler enchentes. Essa conjuntura toda, obviamente que favo-rece a ascensão do jovem Akenaton. Chegado ao poder, por via do referendo popular (caso ú n i c o no M u n d o ) , o antigo pasior procede a grandes retoimas sociais, religiosas, p o l i t i -cas e culturais c\ue, como n.ão podia deixar de ser, desagra-dam e p õ e m contra ele lodos os sacerdotes, generais, vizires e

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a l t í s s imos func ioná r ios do I m p é r i o , cuja acção, à maneira dos répteis , vem a provocar o derrube e a morte do Here-siarca, o qual , para mais, n ã o possui antecedentes reais, fac-tor de grande peso em casos deste género . E, assim, o maior de todos os faraós é cercado, preso, desterrado, decapitado e sepulto no p ó do deserto, sem quaisquer rituais e honrarias fúnebres. Eis que chega outro Akenaton, jovem, culto, pleno de dons e grande vontade de reiniciar a obra suspensa h á três séculos . O essencial, meu caro, é que sejas capaz de resistir às investidas dos avejões de rapina que hão-de rondar a tua corte. Que Aton , o Sol, uno e eterno, te proteja.

— A t o n e T o t h — n ã o p ô d e deixar de proferir .o vence-dor da Esfinge, consciente das obr igações que t inha para com o inventor dos setecentos caracteres.

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A G U E R R A D E KADESEI E A ASCENSÃO , ^ D O E S C R I B A A FARAÓ

S. M . Akenaion estava sentado de Coima pouco orto-doxa, pois, a lém de descalço, t inha as pernas pousadas n u m dos braços do trono anteriormente ocupado pelo faraó Ame-nófis, «o Zaro lho» , o qual fora decapitado seis meses antes por d e t e r m i n a ç ã o do alto comando hi t i ta , aquando da ocu-p a ç ã o de Mênfis pelo exérci to invasor. O antigo escriba, de acordo com o que ele jDróprio havia previsto, ostentava na cabeça as três i n s ígn i a s do poder imper ia l — o abutre, a barba e a serpente —, embora o jovem faraó n ã o estivesse de acordo com esse costume de os imperadores do Egipto exibi-rem uma barba na cabeça. Mas ele, que t inha mudado quase tudo no curto lapso de tempo em c]ue se encontrava a reinar, resolvera, se bem que de mal-grado, manter um ou out io uso do antigo regime. Daí a conservação da barba na cabeça.

Hatshejjsut, a favorita do Imperador e ex-mulher do dis-t into Ramós i s , conservava-se respeitosamente de pé, con-quanto a dois passos do trono imper ial se encontrasse um outro assento, ligeiramente mais baixo. Akenaton disse à veneranda senhora:

— Bem sabes, querida Hat, que revoguei todas as leis r e t róg radas dos antigos déspotas do Egipto. Elá duas horas

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que estou a pedir que te sentes, mas tu, aferrada aos usos e costumes que te inculcaram na infância, continuas aí plan-tada como se eu fosse u m faraó com teias de aranha no cére-bro. Senta-te, meu bem, e ouve a h is tór ia do que realmente se passou em Kadesh, na Síria, onde, reduzido a um exérci to de m i l e duzentas m ú m i a s , venci o comandante supremo das forças invasoras, cujas tropas eram trinta e cinco m i l guerrei-ros copiosamente armados. — Akenaton deu uma risada — a q u i n q u a g é s i m a dessa tarde — e acrescentou: — Senta-te, i n c o m p a r á v e l Hat , desta vez é uma ordem do teu Imperador.

A viúva do excelente R a m ó s i s , ex-condestável do I m p é -rio e aiatigo Carcereiro-mor da Choça do Gavião, instalou-se finalmente e perguntou ao seu ex-médico , p in to r e contador de h is tór ias se ela t a m b é m podia pousar as pernas num dos braços do segundo trono. « P o u s a o que quiseres», respondeu o antigo escriba.

A i n igua l áve l Hatshepsut, já à vontade, disse: — Conta lá, querido Nat, como foi essa guerra de

Kadesh. — Eu estava na margem esquerda do r io Orontes —

começou o vencedor da Esfinge. — Comigo, segundo disse há pouco, estavam m i l e duzentos r a q u í d c o s soldados. N u m lugar p r ó x i m o dali , tinham-se acampado as forças hititas, prontas a cair-nos em cima. Pode parecer estranho, mas eu ria-ine por dentro. E dizia comigo: «Escr iba de um raio, como te safas sempre na hora H , o melhor é fazeres uma soneca e deixar que o Destino (ou u m dos seus muitos escri-bas) se encarregue de contar a inacredi tável h i s tó r ia de como u m letrado do I m p é r i o levou à certa os imbat íve is gigantes do país dos hi t i tas .» Assim fo i . Adormeci e sonhei. O meu cavalo A l i Babá — u m soberbo puro-sangue que S. M . Ame-nófis me t inha oferecido no dia em que fui armado cavaleiro — veio ter comigo e disse-me: « C o m a n d a n t e , mete os teus homens em sacos de papiro e dirige-te ao campo i n i m i g o na qualidade de vendedor de m ú m i a s . Pede ao chefe-mor gua-rida por uma noite. Em dois ou três sacos, os quais terás o

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cuidado de abrir na presença do comandante das forças i n i -migas para que ele verifique que são realmente m ú m i a s as tuas mercadorias, introduzes os homens mais cadavéricos do teu exérci to , enrolados em panos velhos. Ao que penso, os hiti tas são como o resto da humanidade, isto é, gostam dos l í q u i d o s que entorpecem. Portanto, leva alguns odres e bot i -jas de qualquer suco fermentado. Quando for alta noite e a tropa in imiga estiver mergulhada no sono da embriaguez, faz u m sinal às tuas m ú m i a s vivas, as quais, naturalmente, es tarão bem armadas. Desta forma, n ã o h á errar coisa al-guma. É uma o p e r a ç ão exactamente igual à de quem l i m -pa o cu a men inos .» Ena, querida Hat! Segui à risca os conselhos do meu A l i Babá. E, tal como ele previra, os paler-mas c a í r a m na esparrela. Da l i em diante foi canja. Com o oiro e os objectos de valor capturados à tropa in imiga refor-cei os meus efectivos com duzentos m i l mercenár ios assírios, sudaneses e persas, e à frente desse poderoso exérc i to entrei em M ê n h s , desalojei os ocupantes hiutas e, como o Egipto estava sem rei nem roque, os meus l eg ionár ios (quase todos) e as p o p u l a ç õ e s do I m p é r i o (por unanimidade) a t r i b u í r a m --me o t í tu lo de Guia Vi ta l íc io e, logo a seguir, o de Faraó . Antecedentes reais n ã o me faltavam, embora desfavoráveis na o p i n i ã o dos legidmistas, já que venho de Akenaton, «o Here-siarca Mald i to» . Eis-me aqui , salvo e escorreito, querida Hat. Na verdade, sou como o heró i de certas h is tór ias , safo-me sempre na hora H . Compreensivelmente, pois sou o vence-dor da Esfinge, aquele cujo destino está escrito nas estrelas.

A bela Hatshepsut quis e n t ã o saber qua l t inha sido o verdadeiro f i m do seu ext into marido.

— As o p i n i õ e s divergem — in fo rmou Akenaton. — Uma delas afirma que o I n t r é p i d o Cavaleiro tombou n u m dos muitos recontros face às hostes invasoras, picado n u m calcanhar por uma flecha envenenada. A outra, mais trans-cendente, diz que o meu padrinho, o d iv inho T o t h , veio em pessoa buscá- lo e que o conduziu ao Vale dos Mortos, onde o sepultou com todas as honras funerár ias , como se de um

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imperador se tratasse. Eu, por m i m , preferia que ele estivesse ainda por cá. Sem esse finado, desisd da ideia de conservar os es tábulos imperiais, tanto assim que decretei a l iber tação de todos os cavalos do I m p é r i o , em homenagem e reconheci-mento à q u e l e que, no fundo, foi o grande vencedor da guerra de Kadesh, o excepcional A l i Babá, meu conselheiro--mor e u m dos vinte pares do Império . Quanto ao f im de Ra-mósis, bem feitas as contas, está certo. N ã o restam dúvidas de que o Vale dos Mortos é o lugar ideal para quem era m ú m i a h á já u m século. Que o d iv ino T o t h esteja sempre vigilante para que o defunto n ã o se escape e venha aqui com os seus gorilas n ú b i o s reclamar a princesa sequestrada pelo Usurpa-dor. Deste lado passamos inu i to bem sem ele. — E Akenaton emi t iu a q u i n q u a g é s i m a pr imeira gargalhada dessa tarde.

Neste ponto, o of ic ia l às ordens de Sua Majestade veio anunciar a chegada do cego do Vale dos Mortos, um dos vinte pares do I m p é r i o , consoante a nova i n s t i t u i ç ão criada pelo jovem Fa raó . «É j á» , disse o antigo escriba. E virando--se para a i n c o m p a r á v e l Hatshepsut: — Recebamos agora Sua Excelência o Grande Cabecilha, meu respei tável avô, antigo l ad rão de t ú m u l o s , ejc-chefe rebelde, alma do outro mundo e actual Sumo Sacerdote.

A q u i , o jovem faraó acendeu o cachimbo. Expel iu a p r i -meira fumaça e veio-lhe e n t ã o à m e m ó r i a a verruga nasal de S. M . Amenóf i s . Logo em seguida, imag inou o terrível R a m ó -sis —que envergava uma tún ica de estrebaria — a passar uma escova pelo seu cavalo A l i Babá . Recordou-se da Esfinge e do seu urro de morte, e, sucessivamente, do leão vencido à benga-lada, do velho feiticeiro do Baixo Egipto, da campanha contra os ratos azuis, do agente da Autoridade que certa vez cravara os olhos nele, do t i tu lar da pasta da Educação , do comandante das forças hititas, da Rainha de Sabá vista no sonho, da bela Hatshepsut transformada em homem, do chefe rebelde soter-rado na argila e do terrífico especno de T o t h . Achando uma imensa piada a esse carrossel de fantasmas, soltou a mais estrondosa gargalhada dessa tarde.

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— É verdade que o teu avozinho passou ciuarenta anos no deserto? — quis saber a i n c o m p a r á v e l Flatshepsut.

O an t igo escriba acenou af i rmat ivamente , com o cachimbo nos dentes.

-— Alimentando-se de quê? — De duas maneiras, conforme as c i rcuns tânc ias . De

m a n á , quando faltava o gafanhoto; e de gafanhoto, sempre que os deuses protectores se esciueciam do m a n á .

Neste comenos um vrdto d iáfano como u m fantasma penetrou no salão. E aconteceu que nem tempo houve para que o jov ia l imperador e a sua in igua láve l parceira ]3U-desseiTi olhar para o sít io onde a apa r i ção tinha estacado, já que tudo quanto a l i estava — cenár io e personagens — n u m repente se esfumou.

£ pronto, com esta me despeço. *

* O n ú m e r o ác vezes que o fabuloso escriba se .serviu desta frase para encenar as stias ficções é igual ao das estrelas que enchem os vastos cétis. '

14.8

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ÍNDICE

Prólogo 9

O Escriba Egípcio Vagueia por Mênfis 11 O Escriba Conversa com o Faraó 15 O Escriba Vence a Esfinge 17 Segunda Conversa com o Faraó 21 O Escriba é Preso 25 O Fone de Karnak 29 O Escriba Perante Ramósis, o Governador 31 O Sonho do Escriba 35 Ramósis Versus Rebelião 37 A Campanha Contra os Ratos do Nilo 41 Fim da Campanha Contra os Ratos do Nilo 43 A Estranha Doença da Mulher de Ramósis 45 O Escriba Invoca o Divino Toth 49 O Escriba Pede a Ramósis que se Retire 53 O Escriba Confessa a sua Perplexidade 57 O Escriba Comunica a Ramósis o Resultado da Visita . .' 61 O Escriba Invoca Toth pela Segunda Vez 65 O Escriba Cura a Mulher de Ramósis 69 O Escriba Comunica a Ramósis a Cura da Veneranda Se-

nhora 73 O Escriba Faz o Retrato da Mulher de Ramósis 77 O Escriba Conta a História do Cavaleiro Persa 81

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^ \ ^ I ^ i J

3

J J 3 J J

3

o Escriba Explica Alguns Factos da sua Vida a Hatshepsut 85 O Escriba Leva um Poderoso Bruxo-Necromante a Mudar

de Opinião 91 Ramósis Anuncia Novos Trabalhos ao Escriba 97 De Como se Travaram os Três Fabulosos Combates . . . . 99 O Prisioneiro — Uma História de Puro Horror 103 O Escriba Explica a Ramósis Quem são os Unicórnios e

Bicórnios 107 O Escriba Conta Finalmente a História da Mocinha do

Gorro Azul 113 O Escriba Deixa o Forte de Karnak 117 O Escriba Conversa de Novo com o Faraó 119 O Escriba é Nomeado Condestável do Império 123 O Escriba Visita a Casa Paterna 127 O Escriba Encontra-se com o Líder da Grande Rebelião , 133 A Guerra de Kadesh c a Ascensão do Escriba a Faraó . . . 139

1 i í

146

UNI ÃO D A S C I D A D E S C A P I T A I S DE LÍNGUA P O R T U G U E S A

A UCCLA patrocina com gosio c em exclusivo este livro,

í homenagem à língua portuguesa e à cultura lusófona.

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Arménio Vieira, poeta caboverdeano, natural da Praia, foi um dos elementos dinamizadores do grupo que criou Sèló, suplemento literário do Notícias de Cabo Verde (1962).

•lomalista, desenvolve actividade crítica e na sua geração desempenha um papel fundamental de reflexão sobre a moder-nidade literária.

Representado nas mais variadas antologias, com publi-cação dispersa em jornais e revistas, pubhca o seu primeiro livro em 1981, Poemas, que reúne a produção poética escrita eirtre 1971 e 1979.

Segundo Fernando J. B. Martinho, a imagem do «poeta» que se desenha na obra do autor «rnuito tem a ver coin toda uma tradição cuUivada nos dois irUimos séculos — a tradição do poeta inconformista, rebelde, irreverente, louco, e, enfim, maldito.» Postura que lhe vale, nas palavras do poeta cabover-deano Jorge Carlos Fonseca, a designação de «Irreverente, indomável espadachim da sorte e da morte, poeta de vento sem tempo.»

Em 1990, estreia-se na ficção com O Eleito do Sol, Hvro que inaugura novas vertentes temáticas e formais no panorama da prosa caboverdeana. Uma vez mais, Arménio Vieira instau-ra um discurso transgressor em relação aos poderes instituídos, reaUzando uma estranlra e surreal alegoria onde a figura de um escriba egípcio atravessa os trdhos do tempo em deinanda críhca do onírismo mais vital. Beleza e crueldade, saber e poder, ambição e despojamento equacionam, na encruzilhada picara e maravilhosa de O Eleito do Sol, a permanência de princípios e valores intemporais.

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