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Arqueologia e a Interpretação do Evangelho de João: Uma Resenha Wilson Paroschi Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia Traduzido por André Gonçalves O Evangelho de João é ao mesmo tempo o mais influente e o mais controvertido livro do Novo Testamento. Por um lado, sua teologia única e profunda foi decisiva em moldar a compreensão da Igreja da pessoa de Jesus Cristo. Por outro, mais do que qualquer outro Evangelho ele tem sido acusado por não possuir nenhum valor na busca do Jesus histórico. No entanto, um número de descobertas arqueológicas tem questionado esta avaliação negativa. Apesar da arqueologia nunca poder provar a historicidade de eventos específicos registrados neste Evangelho, muito menos estabelecer as declarações teológicas de João sobre dados confirmáveis, algumas das suas descobertas têm lançado considerável luz sobre o cenário histórico e cultural do Evangelho e, como tal, levado vários eruditos a repensar a maneira pela qual a mensagem de João deveria ser interpretada. Este é o assunto do present artigo, o qual é divido em três partes: a primeira sintetiza como os traços distintivos de João têm sido compreendidos nos tempos modernos; a segunda recapitula as descobertas arqueológicas mais significativas relacionadas a este Evangelho; e a terceira descreve a influência destas descobertas sobre a pesquisa joanina contemporânea. Devido à natureza mais informativa deste estudo, não se deve esperar uma bibliografia extensa, nem uma avaliação crítica de todas as questões envolvidas. Semelhantemente, apesar da importante função que a arqueologia exerce em relação ao Quarto Evangelho na denominada Terceira Busca do Jesus histórico, também conhecida como Jesus Research, não se busca aqui relacionar a discussão às questões específicas dessa busca. 1 1 A Terceira Busca é o estudo do Jesus histórico que começou em torno de 1980, seguindo as antigas e novas buscas. Tanto a Antiga Busca (1774-1906) como a Nova Busca (1953-1970) era claramente motivadas por questões teológicas. A Terceira Busca (Jesus Research), no entanto, mudou o foco (o e o método) completamente. Liderados por uma grande variedade de especialistas, tanto Cristãos como Judeus, Católicos ou Protestantes, liberais ou conservadores, ele não segue uma agenda teológica em si, mas consiste em um estudo científico de Jesus em relação ao pano de fundo de sua vida e ministério e à luz de todos os dados relevantes. Pela primeira vez o estudo de textos, que incluem o Evangelho de João com as suas notáveis informações históricas, arquitectônicas e topográficas, é acompanhado de um exame sistemático de arqueologia e topografia. Para uma breve introdução à Terceira Busca, veja Darrell L. Bock, Studying the Historical Jesus: A guide to Sources and Methods (Grand Rapids: Baker, 2002), 141-152. Guias mais abrangentes incluem: Gerd Theissen e Annette Merz, The Historical Jesus: A Comprehensive Guide, trans. John Bowden (Minneapolis: Fortress, 1998); Ekkehard Stegemann e Wolfgang Segemann, The Jesus Movement: A Social History of Its First Century, trans. O. C. Dean (Minneapolis: Fortress, 1999); Gerd Theissen e Dagmar Winter, The Quest for the Plausible Jesus: The Question of Criteria, trans. M. Euguen Boring (Louisville: Westminster John Knox, 2002). Uma útil discussão introdutória com informação

Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

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Arqueologia e a Interpretação do Evangelho de João: Uma ResenhaWilson ParoschiSeminário Adventista Latino-Americano de TeologiaTraduzido por André Gonçalves

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Page 1: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

Arqueologia e a Interpretação do Evangelho de João: Uma Resenha

Wilson Paroschi

Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia

Traduzido por André Gonçalves

O Evangelho de João é ao mesmo tempo o mais influente e o mais

controvertido livro do Novo Testamento. Por um lado, sua teologia única e

profunda foi decisiva em moldar a compreensão da Igreja da pessoa de Jesus

Cristo. Por outro, mais do que qualquer outro Evangelho ele tem sido acusado

por não possuir nenhum valor na busca do Jesus histórico. No entanto, um

número de descobertas arqueológicas tem questionado esta avaliação negativa.

Apesar da arqueologia nunca poder provar a historicidade de eventos

específicos registrados neste Evangelho, muito menos estabelecer as declarações

teológicas de João sobre dados confirmáveis, algumas das suas descobertas têm

lançado considerável luz sobre o cenário histórico e cultural do Evangelho e,

como tal, levado vários eruditos a repensar a maneira pela qual a mensagem de

João deveria ser interpretada. Este é o assunto do present artigo, o qual é divido

em três partes: a primeira sintetiza como os traços distintivos de João têm sido

compreendidos nos tempos modernos; a segunda recapitula as descobertas

arqueológicas mais significativas relacionadas a este Evangelho; e a terceira

descreve a influência destas descobertas sobre a pesquisa joanina

contemporânea. Devido à natureza mais informativa deste estudo, não se deve

esperar uma bibliografia extensa, nem uma avaliação crítica de todas as

questões envolvidas. Semelhantemente, apesar da importante função que a

arqueologia exerce em relação ao Quarto Evangelho na denominada Terceira

Busca do Jesus histórico, também conhecida como Jesus Research, não se busca

aqui relacionar a discussão às questões específicas dessa busca.1

1 A Terceira Busca é o estudo do Jesus histórico que começou em torno de 1980, seguindo as antigas

e novas buscas. Tanto a Antiga Busca (1774-1906) como a Nova Busca (1953-1970) era claramente motivadas por questões teológicas. A Terceira Busca (Jesus Research), no entanto, mudou o foco (o e o método) completamente. Liderados por uma grande variedade de especialistas, tanto Cristãos como Judeus, Católicos ou Protestantes, liberais ou conservadores, ele não segue uma agenda teológica em si, mas consiste em um estudo científico de Jesus em relação ao pano de fundo de sua vida e ministério e à luz de todos os dados relevantes. Pela primeira vez o estudo de textos, que incluem o Evangelho de João com as suas notáveis informações históricas, arquitectônicas e topográficas, é acompanhado de um exame sistemático de arqueologia e topografia. Para uma breve introdução à Terceira Busca, veja Darrell L. Bock, Studying the Historical Jesus: A guide to Sources and Methods (Grand Rapids: Baker, 2002), 141-152. Guias mais abrangentes incluem: Gerd Theissen e Annette Merz, The Historical Jesus: A Comprehensive Guide, trans. John Bowden (Minneapolis: Fortress, 1998); Ekkehard Stegemann e Wolfgang Segemann, The Jesus Movement: A Social History of Its First Century, trans. O. C. Dean (Minneapolis: Fortress, 1999); Gerd Theissen e Dagmar Winter, The Quest for the Plausible Jesus: The Question of Criteria, trans. M. Euguen Boring (Louisville: Westminster John Knox, 2002). Uma útil discussão introdutória com informação

Page 2: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

A Interpretação Moderna de João

Todos os Evangelhos do Novo Testamento nos contam a história de Jesus,

mas não da mesma forma. Cada evangelista apresenta um retrato diferente de

Jesus.2 Contudo, as diferenças entre os primeiros três Evangelhos, que relatam

uma quantidade considerável de tradições em comum sobre Jesus, não são tão

significativos quanto as diferenças entre eles e João. Embora compartilhe o

esboço básico do ministério de Jesus como também algumas declarações e

eventos, João coloca o ministério de Jesus geralmente na Judeia, não na Galileia,

relata pelo menos três Páscoas em Jerusalém das quais Jesus participou, em vez

de uma apenas, e omite vários episódios importantes da vida de Jesus, como o

seu nascimento, batismo, transfiguração, exorcismo de demônios e a angústia

no Getsêmani. A última ceia e o discurso profético também estão faltando.

Outra diferença é o retrato do próprio Jesus. Fortes ênfases em João, como a

plena divindade e pré-existência de Jesus, estão virtualmente ausentes dos

Sinóticos. O Jesus joanino não usa parábolas ou ensinos breves, mas

preferivelmente discursos longos e bem elaborados. Ele também está

constantemente usando palavras que raramente são usadas nos outros

Evangelhos (i.e., amor, amar, verdade, verdadeiro, conhecer, trabalhar, mundo,

permanecer, julgar, enviar, testemunhar) e gosta de falar de si mesmo

metaforicamente como o pão do céu, a vinha verdadeira, o bom pastor, a porta,

e a luz do mundo.3 Mais significante, todavia, são os milagres de Jesus que, em

João, parecem ser mais extraordinários que aqueles relatados por outros

evangelistas.4 O erudito em Novo Testamento Ernst Käsemann está correto

naquilo que diz a respeito do Quarto Evangelho: “Julgado por meio do conceito

moderno de realidade, nosso Evangelho é mais fantástico que qualquer outro

escrito do Novo Testamento.”5

Até os meados do séc. XVIII, tais diferenças não apresentavam

dificuldades para a maioria dos intérpretes bíblicos. Por ser obra de João, o

discípulo amado e figura de destaque na Igreja Apostólica, assumia-se em geral

que seu relato de Jesus era mais pessoal e, portanto, mais autoritativo que o dos

bibliográfica detalhada e atualizada encontra-se em James H. Charlesworth, The Historical Jesus: Na Essential Guide (Nashville: Abingdon, 2008) 2 Veja esp. Richard A. Burridge, Four Gospels, One Jesus? (Grand Rapids: Eerdmans, 1994). Para uma

discussão mais concisa veja Richard A. Burridge e Graham Gould, Jesus Now and Then (Grand Rapids: Eerdmans, 2002), 47-68. 3 Uma lista completa do vocabulário e outras diferenças literárias pode ser encontrado em C. K. Barrett,

The Gospel according to St. John: An Introduction with Commentary and Notes on the Greek Text, 2d ed. (Philadelphia: Westminster, 1978), 5-9 4 Para mais detalhes quanto às diferenças entre João e os Sinóticos veja D. Moody Smith, John among

the Gospels, 2d ed. (Columbia: University of South Caroline Press, 2001), 1-11. 5 Ernst Käsemann, The Testament of Jesus: A Study of the Gospel of John in the Light of Chapter 17, trans.

Gerhard Krodel (Philadelphia: Fortress, 1968), 45.

Page 3: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

outros. Marcos e Lucas não foram testemunhas oculares dos eventos que

registram e Mateus, apesar de ser um dos doze, nunca teve a proeminência que

João teve. Usando João como ponto de partida era então possível harmonizar os

Evangelhos e assim minimizar as suas diferenças.6 Em 1776, entretanto, J. J.

Griesbach rompeu com esta abordagem, afirmando que os quatro Evangelhos

não podem ser tratados em conjunto. Na sua sinopse dos Evangelhos ele quase

que ignorou por completo o Evangelho de João e simplesmente agrupou os

relatos paralelos de Mateus, Marcos e Lucas com o propósito de comparação.7

A separação do Evangelho de João dos outros não foi em si

hermeneuticamente equivocada, mas uma vez separado suas diferenças e

peculiaridades vieram à tona exatamente no tempo em que o Iluminismo estava

começando a impactar a interpretação bíblica. Por um lado, sentia-se que

abordagens mais novas e críticas eram necessárias, especificamente em relação

à utilização e manuseio de evidências históricas, que, no mínimo, eram

completamente distorcidas, especialmente por causa da velha teoria da

inspiração verbal e inerrância de todas as partes da Escritura. Por outro lado, a

interpretação bíblica se tornou refém de um racionalismo radical, ou seja, a

rejeição de qualquer forma do sobrenatural e o consequente abandono da

própria noção de inspiração, levando a Bíblia a ser considerada nada mais que

um documento antigo que deveria ser estudado como qualquer outro

documento antigo.8

Como resultado a autenticidade do Evangelho de João ficou sob fogo

pesado. Na visão dos eruditos racionalistas bíblicos histórias como a das bodas

de Caná e a ressurreição de Lázaro não podiam ser verdadeiras, sugerindo que

o quarto evangelista não poderia ter sido uma testemunha ocular dos eventos

que descreveu. Um dos primeiros ataques já veio em 1792 através de Edward

Evanson, que fez referência ao milagre de Caná como sendo “inacreditável” e

“indigno de crença.”9 Se o Quarto Evangelho não era história (biografia) ou um

relato histórico confiável, o quê era então? Não demorou para que as

6 Para exemplos abrangendo desde Agostinho até o tempo da Reforma, veja Martin Hengel, The Four

Gospels and the One Gospel of Jesus Christ: Na Investigation of the Collection and Origin of the Canonical Gospels, trans. John Bowden (Harrisburg: Trinity International, 2000), 22-24 7 Esta foi a forma que o termo ‘Sinóticos’ veio a ser usada referente somente àqueles Evangelhos. Nos

estudos de Novo Testamento ele expressa a ideia de que Mateus, Marcos e Lucas podem ser arranjados ou contemplados lado-a-lado, como em colunas paralelas, e podem ser facilmente comparados através de uma sinopse por relatar traços gerais iguais para a história de Jesus. Veja esp. C. M. Tuckett, “Synoptic Problem,” ABD, 6 vols. (New York: Doubleday, 1992), 6:263-270, e Robert H. Stein, Studying the Synoptic Gospels: Origin and Interpretation, 2d ed. (Grand Rapids: Baker, 2001), 17-25. 8 O próprio Griesbach trabalhava a partir de uma perspectiva histórica, acreditando que “o Novo

Testamento precisa ser explicado como todo livro antigo é explicado” (William Baird, History of New Testament Research, vol. 1, From Deism to Tübingen [Minneapolis: Fortress, 1992], 139. Cf. David Laird Dungan, A History of the Synoptic Problem: The Canon, the Text, the Composition, and the Interpretation of the Gospels, ABRL [New York: Doubleday, 1999],309-326). 9 Veja John Ashton, Understanding the Fourth Gospel (Oxford: Clarendon, 1991), 15-16

Page 4: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

alternativas aparecessem. Em 1835, D. F. Strauss introduziu o termo “mito”

para descrever o conteúdo de João; outros termos que foram usados no séc. XIX

e no início do séc. XX incluem “ideia”, “filosofia”, “alegoria” e “teologia”.10

Independente do termo, a ideia era sempre a mesma: o Evangelho de João não

era o testemunho ocular pessoal do mais amado dentre os discípulos de Cristo e

seus relatos não deveriam ser aceitos como históricos. A mente moderna não

podia mais aceitar no nível meramente histórico o que ela sentia ser nada mais

que a expressão de uma ideia religiosa em forma concreta por um escritor

antigo.

A noção de que o Evangelho de João não era história, mas que foi escrito

para veicular uma ideia teológica, encontrou uma expressão criativa em F. C.

Baur, em meados do séc. XIX. Para Baur, João não era um documento

apostólico, mas sim uma reflexão cristã pós-paulina cujo propósito era

promover o conceito de uma Igreja unificada (Católica). Como tal, ele não

poderia ter sido escrito antes da segunda metade do segundo século e,

evidentemente, não era historicamente confiável. “O Evangelho joanino,” ele

disse, “do início ao fim ... não se preocupa com um relato puramente histórico,

mas sim com a apresentação de uma ideia que percorreu o seu curso ideal no

desenrolar dos eventos da estória do Evangelho.”11 Apesar das posições de

Baur serem muito artificiais e exegeticamente indefensáveis, a sua influência

sobre os estudos acadêmicos joaninos subsequentes foi notável. A chamada

Escola de Tübingen, da qual ele era o fundador e a figura mais destacada,

dominou a cena por toda uma geração.12 Na virada do séc. XX só uns poucos

intérpretes conservadores ainda mantinham a visão tradicional que este

Evangelho era o testemunho de João, o filho de Zebedeu.13

Outro golpe contra a historicidade de João foi a chegada da escola

religioso-histórica no fim do séc. XIX. Ao tentar ligar o surgimento e

crescimento de todas as religiões à causas puramente naturalistas e históricas

esta escola afirmou que o Cristianismo não era nada mais do que um fenômeno

entre os muitos fenômenos religiosos do mundo helenístico. Como tal, a

teologia e os conceitos joaninos eram explicados à luz das outras religiões

contemporâneas como as religiões-de-mistério e o Gnosticismo. Usando o

mesmo tema fornecido por Baur, Otto Pfleiderer, o fundador da escola 10

Ibid., 36 11

Ferdinand C. Baur, Kritische Untersuchungen über die kanonische Evangelien: Ihr Verhältnis zueinander, ihren Charakter und Ursprung (Tübingen: Fues, 1847), 239. Também veja Peter C. Hodgson, The Formation of Historical Theology: A Study of Ferdinand Christian Baur (New York: Harper & Row, 1966), 212-213. 12

Mesmo até 1959, Johannes Munck ainda considerava os resultados históricos da Escola de Tübingen como válidos (Paul and the Salvation of Mankind, trans. Frank Clarke [London:SCM, 1959], 69-70). 13

Em relação a Strauss e Baur, que havia sido o professor de Strauss em duas instituições diferentes, veja Werner Georg Kümmel, The New Testament: The History of the Investigation of Its Problems, trans. S. McLean Gilmour and Howard C. Kee (Nashville: Abingdon, 1972), 120-161.

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religioso-histórica, afirmou que o Evangelho de João não pertencia “aos livros

históricos do Cristianismo primitivo, mas aos seus escritos doutrinários

helenísticos”. 14 O Logos joanino, o dualismo luz/trevas, o motivo da

descida/subida e o termo grego kyrios (“Senhor”) são somente alguns exemplos

de conceitos que teriam sido assimilados quando o Cristianismo mudou da

Palestina e seu ambiente judeu para o mundo helenístico mais amplo.15

Estas ideias foram desenvolvidas ainda mais por Rudolf Bultmann na

primeira metade do séc. XX. Brilhante no raciocínio e consistente na aplicação

do método histórico-crítico, a interpretação de Bultmann do Evangelho de João

foi devastadora: a linguagem de João, ao refletir categorias sobrenaturais, era

inteiramente mitológica;16 ele não deve usado como fonte de informações em

termos históricos quanto à vida e os ensinos de Jesus;17 o seu mundo conceitual

não era judaico, mas gnóstico; o Redentor que veio do céu foi inspirado pelo

mito gnóstico; o Evangelho não é original, mas uma combinação de vários

documentos anteriores; ele não foi escrito por um único autor, mas é o resultado

de um processo de redação no qual vários editores ou redatores estiveram

envolvidos; o texto que nós temos não faz sentido e por isso ele precisa ser

reorganizado; e para ser compreendido ele precisa ser desmitologizado por

meio de uma interpretação existencialista.18 Em outras palavras, quase nada

sobrou da visão tradicional de João. A crítica radical de Bultmann foi tão

esmagadora que, por um tempo, criou-se a impressão de que o Evangelho

jamais se recuperaria.19

14

Otto Pfleiderer, Primitive Christianity: Its Writings and Teachings in Their Historical Connection, 4 vols., trans. W. Montgomery, (London: Williams & Norgate, 1906-1911), 4:2. 15

Para mais informações quanto a escola religioso-histórica, veja Kümmel, 206-280. 16

De acordo com Bultmann, “a cosmologia do Novo Testamento tem caráter essencialmente mítica. O mundo é visto como uma estrutura de três andares com o mundo no centro, o céu acima e o submundo abaixo. O céu é a morada de Deus e de seres celestiais – os anjos. O submundo é o inferno, o lugar de tormento. Até a terra é mais do que o cenário de eventos naturais e cotidianos, das tarefas triviais e comuns. É o cenário da atividade sobrenatural de Deus e dos Seus anjos de um lado, e de Satanás e os seus demônios do outro. Estas forças sobrenaturais intervêm nos eventos naturais e em tudo que o ser humano pensa, desejam e fazem” (Rudolf Bultmann, “New Testament and Mythology,” in Kerygma and Myth: A Theological Debate, ed. Hans Werner Bartsch, trans. Reginald H. Fuller, 2 vols. [London: SPCK, 1953-1962], 1:1). 17

No seu livro Jesus and the Word (trans. L. P. Smith e E. H. Lantero [London: Scribner, 1958]), que é um estudo crítico dos Sinóticos, Rudolf Bultmann menciona especificamente que “o Evangelho de João de maneira alguma pode ser levado em conta como fonte para o ensino de Jesus e este livro não o usará como referência” (17). 18

As principais obras de Rudolf Bultmann em relação ao Evangelho de João inclui “Untersuchungen zum Johannesevangelium,” ZNW 27 (1928): 113-163; “The History of Religions Background of the Prologue to the Gospel of John,” in The Interpretation of John, 2d ed., ed. John Ashton, SNTI (Edinburgh: T & T Clark, 1997), 27-46; and The Gospel of John: A Commentary, trans. G. R. Beasley-Murray (Philadelphia: Westminster, 1971). 19

Robert T. Fortna chega a falar de um tipo de “moratória tácita” nos estudos da literatura joanina que durou vários anos logo após a Segunda Guerra Mundial como resultado das teorias de Bultmann (The Gospel of Signs: A Reconstruction of the Narrative Source Underlying the Fourth Gospel [Cambridge: Cambridge University Press, 1970], 1, n.1).

Page 6: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

É verdade que nem todas as ideias de Bultmann tiveram aceitação

universal, mesmo entre os estudiosos joaninos mais radicais. 20 Também é

verdade que, apesar de todos os questionamentos, vários eruditos

conservadores continuaram mantendo uma visão mais tradicional a respeito da

autoria e data de João. Mas, na primeira metade do séc. XX, havia um consenso

bastante difundido em torno de pelo menos três pontos: (1) que o quarto

evangelista não era uma testemunha ocular e que, portanto, teve que depender

de fontes; (2) que sua formação não era judaica; e (3) que o seu Evangelho não

era a respeito do Jesus histórico, mas do Cristo da fé, ou seja, uma expressão

teológica da fé da Igreja no final do segundo século e projetada retroativamente

na vida de Jesus. Mas então as coisas começaram a mudar e a arqueologia teve

uma função importante nesta mudança.

A Arqueologia e o Evangelho de João

A primeira descoberta arqueológica a impactar a interpretação do

Evangelho de João foi um pequeno fragmento de papiro conhecido como

Papiro Rylands 457 e listado entre os manuscritos do Novo Testamento como

P52, medindo somente 6,5 por 9 centímetros e contendo alguns poucos

versículos de João 18: partes dos vss. 31-33 no anverso e os vss. 37-38 no verso.

Apesar de ter sido adquirido no Egito em 1920 por Bernard P. Grenfell para a

Biblioteca John Rylands em Manchester, Inglaterra, ele foi identificado e

publicado somente em 1934 por C. H. Roberts. Usando técnicas paleográficas,

Roberts datou o fragmento da primeira metade do segundo século; a maioria

dos eruditos propõe uma data não posterior a 125 AD.21

Apesar do tamanho, o significado deste papiro para a interpretação de

João não tem como ser enfatizada demasiadamente: é uma evidência física que

este Evangelho estava circulando no Egito no início do segundo século e, assim,

contradiz aquelas teorias segundo as quais João não teria sido escrito senão na

segunda metade do segundo século. 22 Isso mostra, entre outras coisas, a

20

Veja D. Moody Smith, “Johannine Studies,” em The New Testament and Its Modern Interpreters, ed. Eldon J. Epp and George W. MacRae (Atlanta: Scholars, 1989), 271-273. 21

Veja Jack Finegan, Encountering New Testament Manuscripts: A Working Introduction to Textual Criticism (London: SPCK, 1974), 85-90. 22

“Especificamente por causa do Papiro de Rylands (P52) João geralmente não é datado posterior a 110 e, provavelmente, uma ou duas décadas antes” (Smith, “Johannine Studies,” 272-273). Em anos recentes alguns eruditos têm questionado a data tradicional para P52: A. Schmidt argumenta por uma data em torno de 170 AD, mais ou menos vinte e cinco anos (“Zwei Anmerkungen zu P. Ryl. III 457,” APF 35 [1989]: 11-12), e Brent Nongbri critica todas as tentativas de uma datação paleográfica para papiros como P52 e sustenta que a extensão da datação para este fragmento de papiro precisa ser estendida até o fim do segundo e até o início do terceiro século (“The Use and Abuse of P52: Papyrological Pitfalls in the Dating of the Fourth Gospel,” HTR 98 [2005]:23-48). Todavia, a maioria dos eruditos do Novo Testamento continuam a preferir a datação mais anterior. Para referências veja J. Ed. Komoszewski, M. James Sawyer, e Daniel B. Wallace, Reinventing Jesus: How Contemporary Skeptics Miss the Real Jesus and Mislead Popular Culture (Grand Rapids: Kregel, 2006), 280, n.4

Page 7: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

inadequação da descrição de Baur do Cristianismo primitivo. De fato, não

somente João, mas todos os documentos do Novo Testamento são agora

geralmente classificados no primeiro século. 23 Portanto, não é de fato

impossível que o Quarto Evangelho tenha sido escrito por uma testemunha

ocular de Jesus. De qualquer forma ele não estaria necessariamente removido

do mundo e do ambiente que retrata.

Ainda na primeira metade do séc. XX várias outras descobertas

arqueológicas na Palestina pareciam questionar algumas das suposições aceitas

naquela época pela maioria dos especialistas joaninos. W. F. Albright chamou

atenção para este assunto numa série de publicações entre 1924 e 1956.24 Entre

outras coisas, Albright argumentou que várias referências topográficas no

Evangelho dificilmente poderiam ter sido feitas sem algum grau de

familiaridade com a situação da Palestina e, particularmente, da Judeia antes da

Primeira Revolta (66-70 AD). Na verdade o número de referências topográficas

de João é única no Novo Testamento. Há treze destas referências e se os

detalhes não mencionados nos Sinóticos são incluídos, este número aumenta

para vinte. Em uma época em que a maioria dos intérpretes acreditava que João

era fictício estas referências eram tratadas como simbólicas em vez de

reminiscências históricas.25 Entretanto, de acordo com Albright, levando-se em

conta o grau de devastação criado pelas tropas romanas na Palestina e,

especialmente, em Jerusalém e também da interrupção praticamente completa

da presença cristã nestas áreas após a guerra, qualquer dado fidedigno que

pudesse ser validado arqueológica ou topograficamente teria que haver sido

levado à Diáspora oralmente pelos refugiados cristãos.26 De fato, a tradição

cristã posterior nos informa da fuga de alguns cristãos de Jerusalém para Pella,

na Transjordânia.27

23

Por exemplo, Martin Hengel, “Eye-witness Memory and the Writing of the Gospels: Form Criticism, Community Tradition, and the Authority of the Authors,” em The Written Gospel, ed. Markus Bockmuehl e Donald A. Hagner (Cambridge: Cambridge University Press, 2005), 70-96 24

W. F. Albright, “Some Observations Favoring the Palestinian Origin of the Gospel of John,” HTR 17 (1924): 189-195; idem, From the Stone Age to Christianity (Baltimore: John Hopkins Press, 1940), 292-300; idem, The Archaeology of Palestine (Harmondsworth: Penguin, 1949), 239-248; idem, “Recent Discoveries in Palestine and the Gospel of John,” in The Background of the New Testament and Its Eschatology: In Honour of Charles Harold Dodd, ed. W. D. Davies and D. Daube (Cambridge: Cambridge University Press, 1956), 153-171 25

Por exemplo Norbert Krieger, “Fiktive Orte der Johannestaufe,” ZNW 45 (1954): 121-123 26

Albright, “Recent Discoveries in Palestine,” 156. Albright usou este mesmo argumento para a quantidade numerosa de palavras aramaicas no Evangelho. Palavras como rabbi (“meu mestre”) ou o equivalente grego didaskalos (“teacher”), além da maioria dos nomes em João como Maryam (Maria), Martâ (Marta), La’zar (Lázaro), Elisheba’ (Elisabete), e Shalôm (Salome), eram característicos do período de Herodes, o Grande até A.D. 70 e se tornaram bastante comuns nos primórdios cristãos provavelmente em função de reminiscências da tradição oral da Palestina antes da Primeira Revolta (ibid., 157-158). 27

Eusebius, Church History 3.5.3.

Page 8: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

No artigo de 1956, Albright discute somente três exemplos de locais que a

arqueologia considera ter identificado positivamente: o lugar onde Pilatos levou

Jesus, que era chamado Lithostroton em grego e Gabbatha em hebraico – na

verdade, em aramaico (19:13); “Enon perto de Salim,” onde João Batista efetuou

sua obra batismal, “porque havia ali muitas águas” (3:23); e o poço de Jacó, em

Sicar, “uma cidade Samaritana” (4:3-6), que ele identificou como sendo

Shechem.28 Curiosamente as primeiras duas identificações, como também a

exata localização de Sicar, seriam negadas por descobertas arqueológicas

posteriores. Em uma pesquisa atualizada e abrangente do estado arqueológico

de todas as referências topográficas em João, Urban C. Von Wahlde afirma que

dos vintes lugares, dezesseis foram identificados com segurança. Estes são

Betsaida (1:44), Caná (2:1, 11; 4:46-54; 21:2), Cafarnaum (2:12; 4:46; 6:17, 24; o

porto, 6:24-25; a sinagoga, 6:59), o poço de Jacó (4:4-6), o Monte Gerizim (4:20), a

localização de Sicar (4:5), a Porta das Ovelhas (5:2), o(s) tanque(s) de Betesda

(5:2), Tiberíades (6:1, 23; 21:2), a fonte de Siloé (9:1-9), Betânia perto Jerusalém

(11:1-17; 12:1-11), Efraim (11:54), o Vale de Kidrom (18:1), o Pretório (18:28, 33;

19:9), o Gólgata (19:17-18, 20, 41), e a tumba de Jesus (19:41-42). Dos quatro

restantes, dois podem ser reduzidos a uma área relativamente pequena: o lugar

nas dependências do templo destinada a manter os animais (2:13-16) e o

Lithostroton (19:13); e os outros dois ainda são altamente controversos: Enon

perto de Salim (3:23) e Betânia além do Jordão (1:28; 10:40).29

Nas suas considerações finais, von Wahlde faz duas importantes

declarações. A primeira é que a arqueologia tem confirmado a exatidão

admirável das informações topográficas de João, mesmo levando-se em conta a

grande quantidade de detalhes que são fornecidas em alguns casos. Na

verdade, afirma ele, “são exatamente aqueles lugares que são descritos com

mais detalhes”, como no caso dos tanques de Betesda, o lugar da crucifixão e a

localização da tumba de Jesus, “que podem ser identificados com mais certeza”.

A segunda declaração é que não há “evidência confiável que sugira que

qualquer desses vinte lugares seja simplesmente fictício ou simbólico”. Apesar

de reconhecer a possibilidade de que alguns destes lugares tenham um

significado simbólico secundário, von Wahlde conclui que “a historicidade e

exatidão intrínsecas das referências devem estar acima de qualquer suspeita”.30

Apesar das identificações prematuras endossadas por Albright, sua principal

alegação permanece válida: as antigas referências topográficas da Palestina e

28

Albright, “Recent Discoveries in Palestine,” 158-160. 29

Urban C. Von Wahlde, “Archaeology and John’s Gospel,” em Jesus and Archaeology, ed. James H. Charlesworth (Grand Rapids: Eerdmans, 2006), 523-586. Quanto à sua pesquisa em relação às evidências arqueológicas dos três lugares mencionados por Albright, veja, em especial, as páginas 555-556 (Aenon perto de Salim), 556-559 (Sicar), e 572-575 (o Lithostroton). Quanto à discussão de Betânia além do Jordão, um sítio que continua altamente controverso, veja as páginas 528-533. 30

Ibid., 583

Page 9: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

Judeia presentes em João devem ter derivado de cristãos da Diáspora no

mundo greco-romano, provavelmente passadas adiante por meio da tradição

oral. Isso significa que em vez de uma criação do segundo século,

completamente separada do tempo e dos lugares dos eventos descritos, o

Evangelho de João contém boas e antigas reminiscências, o que necessariamente

favorece a autenticidade do seu conteúdo.31 Paul N. Anderson declara que “a

contribuição arqueológica de Albright forçou os eruditos bíblicos a considerar

de novo aspectos significativos da historicidade joanina que haviam sido postos

de lado por por um século ou mais de pesquisas acadêmicas”.32

Os anos 40 testemunharam duas outras importantes descobertas

arqueológicas que tiveram que ver com a interpretação do Quarto Evangelho. A

primeira ocorreu no fim de 1945, quando treze códices encadernados em couro

do quarto século escritos em cóptico e contendo não menos que quarenta e nove

tratados foram descobertos em um pote debaixo de uma grande pedra em Nag

Hammadi, um sítio perto da vila egípcia de al-Qacr. Já que os códices

provavelmente refletem tradições do segundo século e combinam elementos

gnósticos e cristãos primitivos, toda a questão do impacto do Gnosticismo sobre

o Novo Testamento, em especial sobre João, foi reaberta. Foi afirmado que

agora havia provas irrefutáveis da influência gnóstica sobre o Quarto

Evangelho. 33 Investigações cuidadosas, no entanto, levaram a maioria dos

eruditos a rejeitar essa hipótese.34 Colocado de forma simples, os documentos

de Nag Hammadi não fornecem qualquer evidência de um redentor anterior ao

cristianismo, que possa ter influenciado a teologia e literatura da Igrejas

gentílicas, da qual o Evangelho de João seria o melhor exemplo, como descrito

por Bultmann e vários outros. Se esses documentos permitiram, pela primeira

vez, que os pesquisadores estudassem os gnósticos por meio de sua própria

literatura (e não somente como eles foram representados pelos heresiologistas

do início do cristianismo), eles também testemunham da grande distância que

existe entre ideias gnósticas e aquelas encontradas no Novo Testamento. Arthur

D. Nock diz que os escritos de Nag Hammadi confirmam aquilo que já está

implícito nos pais da igreja, que o Gnosticismo foi, de fato, uma “heresia cristã

com raízes no raciocínio especulativo”35 do segundo século.

31

Albright, “Recent Discoveries in Palestine”, 158 32

Paul N. Anderson, “Aspects of Historicity in the Gospel of John,” em Jesus and Archaeology, ed. James H. Charlesworth (Grand Rapids: Eerdmans, 2006), 590. 33

Por exemplo, Gesine Robinson, “The Trimorphic Protennoia and the Prologue of the Fourth Gospel” em Gnosticism and the Early Christian World: In Honor of James M. Robinson, ed. James E. Goehring, et al. (Sonoma: Polebridge, 1990), 37-50. 34

Veja, em especial, Craig A. Evans, Word and Glory: On the Exegetical and Theological Background of John’s Prologue, JSNTSup 89 (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1993), 13-76 35

Arthur D. Nock, “Gnosticism”, em Arthur Darby Nock: Essays on Religion and the Ancient World, 2 vols, ed. Zeph Stuart (Oxford: Clarendon, 1972), 2:956.

Page 10: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

A próxima e última descoberta que ajudou resgatar a reputação de

Evangelho de João em relação à confiabilidade histórica foram os Rolos do Mar

Morto. Encontrados acidentalmente em 1947 perto de Khirbet Qumran, nas

proximidades das ruínas de um antigo assentamento judaico, os Rolos

consistem em um grande número de manuscritos bíblicos, a maioria

fragmentários, além de outros documentos. Visto que foram datados dentro do

período das origens cristãs (200 aC – 70 AD) com base em testes paleográficos e

carbono-14, esses documentos são de grande interesse não somente para a

pesquisa de Antigo Testamento e a história do judaísmo, mas também para a

pesquisa do Novo Testamento, particularmente em relação ao pano-de-fundo

de João. Os Rolos tornaram claro que mesmo antes da era cristã já existia um

ambiente literário no qual ideias judaicas, gregas e até pré-gnósticas eram

combinadas em uma forma que uma vez se imaginou ser única de João e do

segundo século em diante.

Nos Rolos há vários exemplos do vocabulário teológico dualístico

encontrado nos escritos joaninos e na literatura gnóstica posterior. Isso é

principalmente evidente no Manual de Disciplina, ou Regras da Comunidade.36

Nas cols. 3 e 4, por exemplo, encontram-se palavras como “mundo”, “verdade”,

“falsidade”, “luz”, “trevas”, “paz”, “alegria” e “eterno”. Tais palavras são

típicas da literatura primitiva cristã, particularmente do Evangelho de João.

Expressões como “praticar a fé”, “o Espírito da Verdade”, “Príncipe da Luz”,

“filhos da luz”, “filhos das trevas”, “a luz da vida”, “andar em trevas”, “a ira de

Deus” e “as obras de Deus” são também usadas de maneira tal que claramente

relembram João.37

São numerosos os paralelos e pontos em comum entre os Rolos de

Qumran e João e isso foi decisivo para estabelecer a base judaica fundamental

do Quarto Evangelho. Não é mais necessário, nem correto, apelar para um

ambiente helenístico e gnóstico do segundo século para explicar a característica

distintiva deste Evangelho. Apesar das diferenças conceituais e teológicas entre

João e Qumran não poderem ser ignoradas, as similaridades em termos de

vocabulário e imagens são de grande importância para determinar a natureza

da tradição joanina: agora é possível demonstrar que esta tradição está mais

próxima do próprio Cristianismo do que anteriormente imaginado.38

Recentes Pesquisas Joaninas

36

A tradução é de Geza Vermes, The Complete Dead Sea Scrolls in English (New York: Penguin, 1997), 98-117. 37

Para mais veja James H. Charlesworth, “A Critical Comparison of the Dualism in 1QS 3:13-4:26 and the ‘Dualism’ Contained in the Gospel of John”, em John and the Dead Sea Scrolls, enl. ed., ed. James H. Charlesworth (New York: Crossroad, 1990), 76-106. 38

Stephen S. Smalley, John: Evangelist and Interpreter, 2d ed., NTP (Downers Grove: InterVarsity, 1998), 35.

Page 11: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

Os Rolos do Mar Morto iniciaram o que se tornou conhecido como “a

nova visão a respeito do Quarto Evangelho”. Esse é exatamente o título de um

artigo publicado originalmente em 1959 por John A. T. Robinson, no qual ele

questionou cinco velhas pressuposições a respeito da confiabilidade da tradição

joanina que havia estado na própria base da pesquisa em torno do Quarto

Evangelho nos cinquenta anos anteriores. 39 As pressuposições eram tão

amplamente aceitas e o consenso tão forte que Robinson até pôde falar do que

denominou de “ortodoxia crítica”.40 Ao se referir explicitamente aos Rolos e

outras descobertas arqueológicas que vindicavam o conhecimento de João

quanto à topografia e as instituições da Palestina antes da Guerra Judaica, ele

falou do que lhe parecia ser indícios, mas que ele estava inclinado a levar a

sério, pois todos os indícios apontando para a mesma direção.41 Então, no final

do artigo, ele expressou sua convicção de que a tradição joanina não era o

resultado de um desenvolvimento posterior, mas remontava ao período inicial

do Cristianismo.42 Portanto, a pergunta se o material de João é historicamente

confiável ou teologicamente condicionado, ou seja, se o autor deveria ser

considerado uma testemunha do Jesus da história ou do Cristo da fé somente,

Robinson responde de forma clara: “Por ele [João] ser o escritor

neotestamentário que, teologicamente falando, leva a história mais sério do que

muitos outros ele tem, pelo menos, o direito de ser ouvido, em relação tanto à

história quanto à teologia.”43

Desta forma o palco estava montado para mais ações concretas em relação

à questão da história em João. Os primeiros resultados práticos, embora

imperfeitos, vieram em 1968, quando J. Louis Martyn publicou seu aclamado

pequeno livro sobre a redação do Quarto Evangelho. Os documentos de Nag

Hammadi e os Rolos do Mar Morto ajudaram a restaurar a essência judaica

deste Evangelho e, através de análise da redação, Martyn tentou localizar o

ambiente apropriado que melhor explicasse a mais evidente característica de

João, que é a grande hostilidade entre Jesus e os judeus.44 Para Martyn a razão

39

John A. T. Robinson, “The New Look on the Fourth Gospel”, in Studia Evangelica: Papers Presented to the International Congress on “The Four Gospels in 1957” Held at Christ Church, Oxford, 1957, ed. Kurt Aland et al., TU 73 (Berlin: Akademie, 1959), 338-350; reprinted in John A. T. Robinson, Twelve New Testament Studies, SBT (Naperville: Allenson, 1962), 94-106. 40

Robinson, Twelve New Testament Studies, 94. 41

Ibid. 42

Ibid., 106 43

Ibid., 102. Robinson não foi o primeiro a suscitar novamente a questão da historicidade de João. Nos Sarum Lectures, proferidas em 1954-1955 na Universidade de Oxford, C. H. Dodd já havia falado desta nova situação, usando argumentos não muito diferentes daqueles usados por Robinson. Alguns anos depois, as palestras de Dodd foram expandidas em um livro intitulado Historical Tradition in the Fourth Gospel (Cambridge: Cambridge University Press, 1963). 44

O termo ioudaios ocorre 194 vezes no Novo Testamento; enquanto ele ocorre somente 16 vezes nos Sinóticos em João ele ocorre 71 vezes, na maioria no plural. Neste seu estudo definitivo, Urban C. von Wahlde conclui que destas 71 ocorrências 38 são utilizadas com sentido hostil (“The Johannine ‘Jews’: A

Page 12: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

para essa hostilidade é que o evangelista e a sua comunidade estavam

envolvidos em uma disputa séria e violenta com a sinagoga local, da qual eles

haviam se separado.45 A separação teria ocorrido perto do fim do primeiro

século quando os líderes religiosos judaicos excluíram os cristãos da adoração

pública ao adicionar uma maldição na liturgia da sinagoga contra eles, o Birkat

ha-Minim (Benção concernente aos Hereges).46

Embora bem poucos têm aceito a tese de Martyn integralmente,

virtualmente todos os intérpretes joaninos ficaram convencidos de que, apesar

de profundamente teológico, a teologia de João não está em um vácuo; não está

totalmente isolada ou não afetada pela realidade da história.47 Isso foi, de fato,

um imenso avanço em relação à pesquisas anteriores e é aqui que se encontra a

principal contribuição de Martyn aos estudos joaninos, apesar de ele

permanecer bastante cético quanto à historicidade da história do Evangelho

como um todo. É verdade que ele sugeriu que o Evangelho possui dois níveis

históricos, o de Jesus e o do evangelista, mas, alinhado com a crítica de redação

clássica que ainda estava sob a influência de uma forte visão anti-sobrenatural

da realidade ele, na prática, acreditava que as tradições acerca de Jesus haviam

sido tão completamente rearranjadas e reescritas de acordo com as

circunstâncias prevalecentes na época do evangelista que a figura histórica

daquele Galileu do início do primeiro século dificilmente pode ser vista através

das lentes joaninas.48

Após Martyn, e ainda dentro da atmosfera de empolgação criada pela

crítica de redação, um tópico relativamente novo começou a receber uma

atenção incrível e desproporcional dentro dos estudos joaninos – a comunidade

que supostamente seria responsável pela origem do Evangelho. Houve,

portanto, uma completa mudança de foco, abandonando a pessoa e identidade

do evangelista para focar na sua comunidade. As tentativas de reconstruir o

desenvolvimento histórico e teológico da comunidade, todavia, eram tão

diversificadas e especulativas que todo o empreendimento começou a ruir.

Martyn mesmo comparou a avalanche de reconstruções, incluindo a sua

Critical Survey”, New Testament Studies 28 [1982]:41 [cf. 57, ns. 68, 69]). O único livro que compete tanto em número de ocorrências (79 vezes) e hostilidade é Atos. 45

Veja J. Louis Martyn, History and Theology in the Fourth Gospel (New York: Harper & Row, 1968). 46

Para um resumo da posição de Martyn veja Robert Kysar, The Fourth Evangelist and His Gospel: Na Examination of Contemporary Scholarship (Minneapolis: Augsburg, 1975), 149-156, e esp. D. Moody Smith, “The Contribution of J. Louis Martyn to the Understanding of the Gospel of John”, no The Conversation Continues: Studies in Paul and John in Honor of J. Louis Martyn (Nashville: Abingdon, 1990), 275-294. 47

Veja D. Moody Smith, The Theology of the Gospel of John, NTT (Cambridge: Cambridge University Press, 1995), 48-56. 48

Para uma proveitosa discussão quanto à história e o caráter da crítica de redação, veja Grant R. Osborne, “Redaction Criticism”, em Interpreting the New Testament: Essays on Methods and Issues, ver. ed., ed. David A. Black e David S. Dockery (Nashville: Broadman & Holman, 2001), 128-149.

Page 13: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

própria, a um gênio que havia sido libertado da lâmpada e que estava sendo

“fora de controle”.49 Após cerca de duas décadas, a insatisfação com o valor das

abordagens histórico-críticas levou os estudos joaninos em duas direções

opostas. De um lado, vários novos métodos de interpretação foram adotados,

como a crítica sociológica e literária. A segunda, por exemplo, é essencialmente

uma metodologia pós-moderna e focada no leitor que tenta interpretar o texto

sem fazer referência a qualquer coisa que esteja fora ou além dele (e.g., seu

ambiente histórico) e assume a assumindo sua unidade mesmo em face de

todas as técnicas das críticas da fonte e da redação.50 Isso significa que as

antigas questões da autoria e historicidade perdem completamente a relevância.

Do outro lado, e parcialmente por causa das mesmas descobertas arqueológicas

mencionadas acima, a questão da história em João foi reaberta e começou a ser

abordada de novo de uma forma muito mais direta e objetiva como nunca

dantes.

Mesmo com a crítica da redação ainda em ascendência, a “nova visão” de

Robinson já estava tendo impacto crescente em várias frentes dos estudos

acadêmicos joaninos contemporâneos. Em 1966-1970, Raymond E. Brown

publicou o seu influente comentário do Quarto Evangelho em dois volumes, no

qual ele assumiu uma abordagem relativamente conservadora em relação à

autoria e historicidade.51 O mesmo pode ser afirmado a respeito de vários

outros importantes comentários publicados ao redor dos anos 70. Charles K.

Barrett, Rudolf Schnackenburg, e Barnabas Lindars assumiram aquilo que pode

ser descrito como uma posição intermediária entre o ceticismo largamente

difundido e a completa historicidade. Eles rejeitavam, por exemplo, a ideia de

49

Veja Thomas L. Brodie, The Quest for the Origin of John’s Gospel: A Source-Oriented Approach (New York: Oxford University Press, 1993), 21 (para um resumo das principais reconstruções até o início dos anos 90, veja 15-21). 50

Para uma introdução à crítica literária veja esp. Jeffrey A. D. Weima, “Literary Criticism” em Interpreting the New Testament: Essays on Methods and Issues, rev. ed., ed. David A. Black e David S. Dockery (Nashville: Broadman & Holman, 2001), 150-169. Uma discussão mais detalhada (com exemplos proveitosos) deste e outros métodos recentes em relação ao Novo Testamento pode se encontrado nas partes dois e três de Steven L. McKenzie e Stephen R. Haynes, Eds., To Each Its Own Meaning: An Introduction to Biblical Criticisms and Their Application, rev. and exp. ed. (Louisville: Westminster John Knox, 1999). A bibliografia mais recente de estudos joaninos, fornecendo amplas referências aos estudos sociológicos e literários é Watson E. Mills, comp., The Gospel of John, vol. 4, Bibliographies for Biblical Research: New Testament Series, ed. Watson E. Mills, 21 vols. (Lewiston: Mellen, 1995). 51

Raymond E. Brown, The Gospel According to John, 2 vols. AB 29-29A (Garden City: Doubleday, 1966-1970). Veja também as suas monografias anteriores, “Incidents That Are Units in the Synoptic Gospels but Dispersed in St. John” CBQ 23 (1961):143-160; “The Problem of Historicity in John”, CBQ 24 (1962):1-14. No seu The Community of the Beloved Disciple: The Life, Loves, and Hates of an Individual Church in the New Testament Times (New York: Paulist, 1979), 33-34, Brown rejeitou a sua visão anterior de que o autor do Evangelho era João o Apóstolo, mas mesmo tarde em sua vida, no seu imenso The Death of the Messiah (2 vols. [New York: Doubleday, 1994), ele permaneceu tão virtualmente confiante quanto no seu comentário anterior ao encontrar elementos históricos na maioria das passagens de João.

Page 14: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

que o Discípulo Amado era o autor ou até mesmo a pessoa que poderia ter

fornecido informação histórica de primeira-mão, mas estavam dispostos a

aceitar que quem quer que fosse responsável por este Evangelho tinha à sua

disposição pelo menos algumas tradições confiáveis.52

Duas áreas gêmeas de pesquisa nas quais posições aceitas havia longo

tempo começaram a mudar tinham a ver com o gênero do Quarto Evangelho e

sua relação com os Sinóticos. Mesmo sendo diferente, João não é um tratado

teológico em si, mas um Evangelho, ou seja, uma narrativa do ministério de

Jesus e, por isso, deve ser colocado junto com Marcos, Mateus e Lucas. Isso é o

que ele afirma a respeito de si mesmo (20:30-31), e isso é o que ele é. À

semelhança dos Sinóticos, ele começa com o aparecimento de João Batista e

termina com o relato da Paixão, tudo em uma moldura cronológica que parece

ser muito mais completa e exata que a dos outros. Já em 1969 Käsemann se

impressionou pelo fato de que “João se sentiu sob a obrigação de compor um

Evangelho em vez de cartas ou uma coleção de declarações” e considerou que

isso era prejudicial para alguns dos argumentos de Bultmann. “Pois me

parece”, disse ele, “que se alguém não tem interesse algum no Jesus histórico,

então não escreveria um Evangelho, mas, pelo contrário, acharia a forma de

Evangelho inadequada.” 53 Além do mais, o autor de João alega ser uma

testemunha ocular direta em pelo menos alguns dos eventos que relata (21:24;

19:34-35; cf. 1:14), o que enfatiza fortemente a importância da figura histórica de

Jesus para ele. Em I João ele é ainda mais explícito quanto a isso (cf. 1:1-3; 2:18-

25; 4:1-3; 5:6-9), e a Epístola faria pouco ou nenhum sentido sem o Evangelho.

Isso levou a uma completa reavaliação do consenso tradicional de que

João dependera dos Sinóticos ou, como no caso de Bultmann, que João

dependera de uma fonte de sinais e outra fonte da Paixão.54 Já desde 1938 P.

Gardner-Smith havia argumentado que João havia sido escrito

independentemente dos Sinóticos,55 uma tese que foi mais desenvolvida por C.

H. Dodd algumas décadas mais tarde e que era compatível com o valor

52

Charles K. Barrett, 100-144; Rudolf Schnackenburg, The Gospel According to St. John, 2 vols., trans. Kevin Smyth, et al. (New York: Herder & Herder, 1968-1982), 1:75-104; Barnabas Lindars, The Gospel of John, NCB (London: Oliphants, 1972), 28-34. Estudos recentes que representam posições intermediárias similares incluem George R. Beasley-Murray, John, 3 WBC (Waco: Word, 1987; 2d. ed. [Nashville: Nelson], 1999), lxxiii-lxxv; D. Moody Smith, “Historical Issues and the Problem of John and the Synoptics”, em From Jesus to John, ed. Martinus C. de Boer, JSNTSup 84 (Sheffield: JSOT, 1993), 252-267; idem, John, ANTC (Nashville: Abingdon, 1999), 24-27; R. Alan Culpepper, “The AMHN, AMHN Sayings in the Gospel of John”, em Perspectives on John: Methods and Interpretation in the Fourth Gospel, ed. Robert B. Sloan e Mikeal C. Parson (Lewington: Mellen, 1993), 57-101; idem, John, The Son of Zebedee: The Life of a Legend, SPNT (Minneapolis: Fortress, 2000), 56-88. 53

Ernst Käsemann, New Testament Questions for Today, trans. W. J. Montague (Philadelphia: Fortress, 1969), 41. 54

Veja Ashton, 45-50. Para mais informação a respeito da crítica das fontes em João, veja Gerard S. Sloyan, What Are They Saying about John? (New York: Paulist, 1991), 28-49. 55

P. Gardner-Smith, Saint John and the Synoptic Gospels (Cambridge: Cambridge University Press, 1938).

Page 15: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

histórico de João. Depois de uma análise exaustiva do Evangelho, Dodd

concluiu que era altamente provável que o quarto evangelista utilizara uma

antiga tradição (oral) independente dos outros Evangelhos e que merecia séria

consideração como uma contribuição ao conhecimento dos fatos históricos

relacionados a Jesus Cristo. 56 Independência, todavia, não é equivalente à

historicidade, assim como dependência não faz de uma composição

necessariamente uma ficção. Portanto, mesmo que possa ser demonstrado que

João conhecia e usou um (geralmente Marcos) ou mais Evangelhos,57 em vista

do acúmulo de evidência isso não mais pode comprometer o fato de que João

contém tradição genuína.

O fato é que, em anos recentes e como parte integral da Terceira Busca

pelo Jesus histórico, as pesquisas joaninas chegaram a um ponto em que o

caráter historiográfico do testemunho do Discípulo Amado é defendido tão

aberta e poderosamente como nunca. Isso tem sido feito, por exemplo, por

eruditos como Martin Hengel, James H. Charlesworth e, especialmente, Richard

Bauckham. 58 Apesar de não chegarem ao ponto de identificar o Discípulo

Amado com o apóstolo João,59 suas obras sinalizam uma tendência importante

na pesquisa contemporânea do Quarto Evangelho60: a reabilitação de João como

fonte para a busca do Jesus histórico.

Esta tendência culminou em 2002 no estabelecimento do Projeto João,

Jesus e História nos encontros anuais da Sociedade Bíblica de Literatura. Este

projeto, que agora está no seu terceiro triênio e tem atraído uma quantidade

considerável de atenção dentro das pesquisas acadêmicas de João e Jesus, tem a

intenção de examinar questões fundamentais tanto da natureza do Quarto

Evangelho quanto da sua historicidade. Um número das monografias mais

56

Dodd, 423. 57

Para uma pesquisa abrangente de posições em relação ao assunto do relacionamento de João com os Sinóticos desde Gardner-Smith e Dodd, veja Smith, John among the Gospels, 45-194. 58

Por exemplo Martin Hengel, The Johannine Question (London: SCM, 1989), posteriormente expandida como Die Johanneische Frage: Ein Lösungsversuch, WUNT 67 (Tübingen: Mohr, 1993); James H. Charlesworth, The Beloved Disciple: Whose Witness Validates the Gospel of John? (Valley Forge: Trinity, 1995); Richard Bauckham, Jesus and the Eyewitnesses: The Gospels as Eyewitness Testimony (Grand Rapids: Eerdmans, 2006); idem, The Testimony of the Beloved Disciple: Narrative, History, and Theology in the Gospel of John (Grand Rapids: Baker, 2007). 59

Enquanto Charlesworth sustenta que o Discípulo Amado era o Apóstolo Tomás (The Beloved Disciple 225-287), tanto Hengel como Bauckham pensam que ele era o elusivo João o Ancião da famosa citação de Papias preservada por Eusebius (Church History 3.39.4). De acordo com eles, ainda quando era um rapaz muito jovem e através do ministério de João Batista, este João foi atraído pela atividade de Jesus e se tornou um dos seus discípulos mais fiéis, apesar de não ser um dos Doze (Hengel, The Johannine Question, 109-135; Bauckham, The Testimony of the Beloved Disciple, 73-91). 60

Para estudos adicionais e mais especializados em relação a passagens e questões que lidam com a historicidade de João, veja Craig L. Blomberg, “John and Jesus”, em The Face of New Testament Studies: A Survey of Recent Research, ed. Scot McKnight e Grant R. Osborne (Grand Rapids: Baker, 2004), 220-224, e as várias resenhas em Richard Bauckham e Carl Mosser, eds., The Gospel of John and Christian Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 2008).

Page 16: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

importantes apresentadas nas sessões por pesquisadores joaninos de destaque

foram coletados em dois volumes que de agora em diante certamente serão

ponto de referência para os interessados no assunto.61 As vozes ainda não estão

em uníssono – elas provavelmente jamais estarão – mas é possível detectar

elementos de convergência significantes em meio às várias discussões, como,

por exemplo, mais atenção ao tipo específico de memória historiográfica e à

forma com que ele entende história, um afastamento considerável da análise

crítica das fontes, um interesse contínuo em relação à questão do

relacionamento entre João e os Sinóticos, uma nova abordagem quanto ao

debate histórico-teológico, um apelo por investigações interdisciplinares como

também uma abordagem com mais nuances nos estudos sobre Jesus. Embora os

estudos ainda não forneçam muitas respostas claras, há um verdadeiro esforço

em colocar o Evangelho de João no seu devido lugar em relação à busca do

Jesus histórico.62 E esta é uma das mais significativas mudanças na pesquisa

joanina moderna, sejam quais forem os resultados a longo prazo.63

De fato, parece haver uma lógica muito forçada ao concluir que por João

ser tão diferente dos Sinóticos e por ter um tom destacadamente teológico ele

não pode ter um caráter histórico. Do ponto de vista hermenêutico a abordagem

ou um/ou outro é completamente injustificada, e se os resultados da

arqueologia não forem confinados aos meandros dos livros especializados ou à

penumbra das salas de museus, seria possível dizer que tal abordagem está, na

verdade, equivocada. É intrigante, pondera Anderson, que mesmo tendo mais

material arqueológico e topográfico que todos os três Sinóticos juntos ainda há

aqueles que consideram que João é completamente não histórico. Neste caso,

como se justifica esse material? De onde veio e por que foi incluído? Foi

somente para efeito retórico ou para dar um ar de realismo à narrativa?64 Algo

que precisa ser dito alto e bom tom é que o ato de aceitar esse material como um

sinal positivo do caráter e da origem da tradição joanina não deveria ser tão

rapidamente descartado como um mau uso de sensibilidade crítica.65

61

Paul N. Anderson, Felix Just e Tom Thatcher, eds., John, Jesus and History, vol. 1, Critical Appraisals of Critical Views, SBLSymS 44 (Atlanta: SBL, 2007); idem, John Jesus and History, vol. 2, Aspects of Historicity in the Fourth Gospel, SBLECL 2 (Atlanta, SBL, 2009). 62

“João voltou”, diz D. Moody Smith em seu artigo (“John: A Source for Jesus Research?” John, History and Jesus, 1:177). 63

Um relato mais completo a respeito das tendências atuais da pesquisa acadêmica Joana pode ser encontrado em Klaus Scholtissek, “The Johannine Gospel in Recent Research”, em The Face of New Testament Studies: A Survey of Recent Research, ed. Scot McKnight e Grant R. Osborne (Grand Rapids: Baker, 2004), 444-472. Veja também várias resenhas em Tom Thatcher, ed., What We Have Heard From the Beginning: The Past, Present, and Future of Johannine Studies (Waco: Baylor, 2007). 64

Anderson, “Aspects of Historicity in the Gospel of John”, 596. 65

Não pode ser esquecido que há várias outras fontes de evidência a favor da historicidade de João. Além das referências topográficas, Anderson lista reivindicações retóricas a conhecimento de primeira mão, aspectos de espacialidade e incidentes topográficos, aspectos da familiaridade pessoal, referências cronológicas e o fato de detalhes empíricos (597-613). Concluindo seu artigo ele argumenta que

Page 17: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

Conclusão

As pesquisas joaninas têm uma dívida enorme para com a arqueologia. A

abordagem metodológica e filosófica dos eruditos pós-Iluminismo, que

raramente utilizaram análise histórica em relação ao Quarto Evangelho, foi

severamente enfraquecida por um número de descobertas topográficas e de

artefatos. Tais descobertas exigiram uma completa reavaliação da questão da

história neste Evangelho e deu origem a discussões mais objetivas em relação a

vários assuntos relacionados. Apesar de ser impossível à pá do arqueólogo

demonstrar a veracidade de declarações como “o Verbo se tornou carne e

habitou entre nós” (1:14), “Deus amou o mundo de tal maneira que deu Seu

único filho” (3:16) e “Jesus é o Cristo, o Filho de Deus” (20:31) ou episódios

como o milagre em Caná (2:1-11), a multiplicação dos pães para os cinco mil

(6:1-15) e a ressurreição de Lázaro (11:17-44), ela tem contribuído mais do que

qualquer outra oicsa para colocar o caráter judaico, a antiguidade e mesmo a

probabilidade histórica de João sobre fundamento firme.

Que este Evangelho não foi escrito depois da virada do primeiro século

dificilmente ainda pode ser contestado. Em relação ao seu pano-de-fundo

conceitual, são reconhecidamente poucos os eruditos que ainda trabalham

dentro das restrições da escola religioso-histórica, argumentando em favor do

helenismo em vez de judaísmo como fonte primária das ideias de João.66 Em

relação à autoria, é verdade que muitos intérpretes abstêm-se de identificar o

Discípulo Amado com João, o filho de Zebedeu, mas hoje em dia é reconhecido

abertamente que “há sempre a chance de que o apóstolo João poderia ter sido

de alguma forma o ‘autor’ do Evangelho que tradicionalmente denominamos

‘de João’”, como Francis J. Moloney afirma. Ele continua dizendo: “É arrogância

descartar qualquer possibilidade.” 67 Em relação à confiabilidade histórica,

apesar de praticamente todos os eruditos agora concordarem que por detrás do

“mesmo que muito de João seja teológico, alegar que tudo o seu conteúdo – o mesmo a maioria dele, seja atribuído aos cânones de uma historicidade e elucubrações é mais do que o autêntico erudito irá querer afirmar.” (“Aspects of Historicity in the Gospel of John”, 618). 66

Um exemplo clássico é Helmut Koester, que continua explicando as histórias de milagres e discursos típicos de João como uma interpretação gnóstica de culto e tradição dentro da comunidade Joana (From Jesus to the Gospels:Interpreting the New Testament in Its Context [Minneapolis: Fortress, 2007], 105-121). 67

Francis J. Moloney, The Gospel of John, SP4 (Collegeville: Liturgical, 1998), 8. A visão tradicional de que o Discípulo Amado era o apóstolo João ainda é mantida por um número considerável de eruditos recentes. E.g. John A. T. Robinson, The Priority of John, ed. J. F. Coakley (London: SCM, 1985), 93-122; D. A. Carson, The Gospel According to John (Grand Rapids: Eerdmans, 1991), 68-81; Gary M. Burge, Interpreting the Gospel of John, GNTE (Grand Rapids: Baker, 1992), 37-52; Herman N. Ridderbos, The Gospel of John: A Theological Commentary, trans. John Vriend (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 672-683; E. Earle Ellis, The Making of the New Testament Documents (Leiden: Brill, 1999), 143-146; Craig S. Keener, The Gospel of John: A Commentary, 2 vols. (Peabody: Hendrickson, 2003), 1:82-104; Colin G. Kruse, John, TNTC (Grand Rapids: Baker, 2004), 6-8; Paul N. Anderson, The Fourth Gospel and the Quest for Jesus: Modern Foundations Reconsidered (New York: T & T Clark, 2006), 8-15.

Page 18: Arqueologia e a Interpretação Do Evangelho de João

material de João existem algumas boas tradições, a maioria deles continua a

manter que a maior parte desse material é mais digno de desconfiança que de

confiança. 68 No entanto, como Craig L. Blomberg observa, isso é mais o

resultado de uma pressuposição que simplesmente rejeita qualquer forma de

sobrenatural que a conclusão de um argumento sustentado.69 E é aqui que a

discussão termina, pois no fim de tudo a reação a este Evangelho não estará

ligada tanto ao peso das evidências, mas a uma decisão individual. (cf. 12:37;

20:29).

68

No seu comentário recentemente publicado, Andrew T. Lincoln declara enfaticamente: “O Quarto Evangelho, como muitas antigas biografias, é uma narrativa que contém um substrato de eventos-chave da tradição com alegações substanciais quanto à confiabilidade, mas que agora é agora formatado por uma superestrutura interpretativa que contém uma quantidade considerável de enfeites, incluindo alguns elementos lendários ou fictícios” (The Gospel According to Saint John, BNTC [Peabody: Hendrickson, 2005], 46-47). Para uma crítica ainda mais cética em relação à historicidade de João veja Maurice Casey, Is o Evangelho de João verdadeiro? (London: Routledge, 1996), e os volumes duplos do Jesus Seminar: Robert Funk, Roy W. Hoover e o Jesus Seminar, The Five Gospels: The Search for the Authentic Words of Jesus (New York: Macmillan, 1993); Robert Funk and the Jesus Seminar, The Acts of Jesus: The Search for the Authentic Deeds of Jesus (San Francisco: HarperSanFrancisco, 1998). 69

Craig L. Blomberg, The Historical Reliability of John’s Gospel: Issues and Commentary (Downers Grove: InterVarsity, 2001), 283.