387
A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. Arqueologias de Império Autor(es): Leão, Delfim (coord.); Ramos, José Augusto (coord.); Rodrigues, Nuno Simões (coord.) Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/45208 DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/978-989-26-1626-1 Accessed : 22-Jul-2021 12:12:42 digitalis.uc.pt pombalina.uc.pt

Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar

A navegaccedilatildeo consulta e descarregamento dos tiacutetulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis

UC Pombalina e UC Impactum pressupotildeem a aceitaccedilatildeo plena e sem reservas dos Termos e

Condiccedilotildees de Uso destas Bibliotecas Digitais disponiacuteveis em httpsdigitalisucptpt-pttermos

Conforme exposto nos referidos Termos e Condiccedilotildees de Uso o descarregamento de tiacutetulos de

acesso restrito requer uma licenccedila vaacutelida de autorizaccedilatildeo devendo o utilizador aceder ao(s)

documento(s) a partir de um endereccedilo de IP da instituiccedilatildeo detentora da supramencionada licenccedila

Ao utilizador eacute apenas permitido o descarregamento para uso pessoal pelo que o emprego do(s)

tiacutetulo(s) descarregado(s) para outro fim designadamente comercial carece de autorizaccedilatildeo do

respetivo autor ou editor da obra

Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Coacutedigo do Direito

de Autor e Direitos Conexos e demais legislaccedilatildeo aplicaacutevel toda a coacutepia parcial ou total deste

documento nos casos em que eacute legalmente admitida deveraacute conter ou fazer-se acompanhar por

este aviso

Arqueologias de Impeacuterio

Autor(es) Leatildeo Delfim (coord) Ramos Joseacute Augusto (coord) Rodrigues NunoSimotildees (coord)

Publicado por Imprensa da Universidade de Coimbra

URLpersistente URIhttphdlhandlenet10316245208

DOI DOIhttpsdoiorg1014195978-989-26-1626-1

Accessed 22-Jul-2021 121242

digitalisucptpombalinaucpt

58

Arqu

eolo

gias

de

Impeacute

rio

Coimbra

Del

fim

leatilde

o J

oseacute

Au

gu

sto

RA

mo

s N

uN

o s

imotilde

es R

oD

Rig

ues

(co

oRD

s)

Delfim Leatildeo Joseacute Augusto RamosNuno Simotildees Rodrigues (coords)

Arqueologias de Impeacuterio

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

OBRA PUBLICADA COM A COORDENACcedilAtildeO CIENTIacuteFICA

HVMANITAS SVPPLEMENTVM bull ESTUDOS MONOGRAacuteFICOSISSN 2182-8814

Apresentaccedilatildeo esta seacuterie destina-se a publicar estudos de fundo sobre um leque variado de

temas e perspetivas de abordagem (literatura cultura histoacuteria antiga arqueologia histoacuteria

da arte filosofia liacutengua e linguiacutestica) mantendo embora como denominador comum os

Estudos Claacutessicos e sua projeccedilatildeo na Idade Meacutedia Renascimento e receccedilatildeo na atualidade

Breve nota curricular sobre os autores do volume

Delfim F Leatildeo eacute Professor Catedraacutetico do Instituto de Estudos Claacutessicos e investigador do Centro

de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra As suas principais aacutereas de

interesse cientiacutefico satildeo a histoacuteria antiga o direito e a teorizaccedilatildeo poliacutetica dos Gregos a pragmaacutetica

teatral e a escrita romanesca antiga Tem-se dedicado igualmente agrave aacuterea das Humanidades

Digitais

Joseacute Augusto Martins Ramos eacute Professor Emeacuterito da FLUL licenciado em Teologia (Instituto

Catoacutelico de Toulouse 1969) Ciecircncias Biacuteblicas e Orientais (Instituto Biacuteblico de Roma 1972)

doutorado em Histoacuteria Antiga (Universidade de Lisboa 1989) Aacutereas de trabalho Hebraico

Acaacutedico Ugariacutetico Histoacuteria da Antiguidade Preacute-Claacutessica e Histoacuteria das Culturas da Antiguidade

Preacute-Claacutessica Histoacuteria Comparada das Religiotildees Preacute-Claacutessicas Literaturas Preacute-Claacutessicas Histoacuteria

do Cristianismo Antigo tradutor e coordenador cientiacutefico desde 1972 ateacute ao presente em

vaacuterios projetos e modelos diferentes de traduccedilatildeo da Biacuteblia em colaboraccedilatildeo com a Sociedade

Biacuteblica a Difusora Biacuteblica e a Conferecircncia Episcopal Portuguesa Aleacutem do trabalho de traduccedilatildeo e

coordenaccedilatildeo as suas numerosas publicaccedilotildees inscrevem-se na variedade de temaacuteticas referidas

Nuno Simotildees Rodrigues eacute Doutor em Letras especialidade de Histoacuteria da Antiguidade Claacutessica

Professor da Universidade de Lisboa e investigador dos Centros de Histoacuteria e de Estudos Claacutessicos

da ULisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UCoimbra Tem-se dedicado ao estudo da

cultura grega (mitologia e religiatildeo) da sociedade e poliacutetica romanas do fim da Repuacuteblica e iniacutecio

do Principado e da receccedilatildeo de temas claacutessicos no cinema Publicou laquoIudaei in Vrbe Os Judeus em

Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacuteviosraquo (2007) e laquoMitos e Lendas da Roma Antigaraquo

(2ordf ed 2010)

Estas laquoArqueologias de Impeacuterioraquo consistem em 17 estudos que abrangem as vaacuterias aacutereas de

investigaccedilatildeo da Antiguidade A partir das fontes biacuteblicas propotildee-se uma estruturaccedilatildeo de

categorias e uma organizaccedilatildeo de semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento

da ideia de laquoimpeacuterioraquo Para o caso egiacutepcio foca-se a problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria

egiacutepcia e a terminologia utilizada para a definir Para o universo dos impeacuterios antigos da

Mesopotacircmia trata-se a emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise

da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammurabi em

dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio

feniacuteciosiro-palestinense recorre-se a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico-religiosas

elementos para o estudo das realidades poliacuteticas e apresenta-se uma reflexatildeo sobre

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas

estatildeo representadas por estudos sobre contextos de violecircncia acerca de Jeremias e do

Impeacuterio Neobabiloacutenico sobre Naboacutenido e ainda sobre os diferentes comportamentos

dos reis da regiatildeo relativamente ao culto de Marduk Podemos tambeacutem ler textos sobre a

teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta relativamente aos Persas e acerca das rainhas

na Peacutersia Antiga De igual modo sobre o periacuteodo heleniacutestico reflete-se sobre o papel e a

importacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera

do poder Nos uacuteltimos quatro estudos propotildee-se uma genealogia conceptual para a ideia

de imperium no mundo romano atraveacutes da sua historiografia sugerindo-se ainda uma ideia

de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio

HVMANITAS SVPPLEMENTVM bull ESTUDOS MONOGRAacuteFICOSISSN 2182-8814

Apresentaccedilatildeo esta seacuterie destina-se a publicar estudos de fundo sobre um leque variado de

temas e perspetivas de abordagem (literatura cultura histoacuteria antiga arqueologia histoacuteria

da arte filosofia liacutengua e linguiacutestica) mantendo embora como denominador comum os

Estudos Claacutessicos e sua projeccedilatildeo na Idade Meacutedia Renascimento e receccedilatildeo na atualidade

Breve nota curricular sobre os autores do volume

Delfim F Leatildeo eacute Professor Catedraacutetico do Instituto de Estudos Claacutessicos e investigador do Centro

de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra As suas principais aacutereas de

interesse cientiacutefico satildeo a histoacuteria antiga o direito e a teorizaccedilatildeo poliacutetica dos Gregos a pragmaacutetica

teatral e a escrita romanesca antiga Tem-se dedicado igualmente agrave aacuterea das Humanidades

Digitais

Joseacute Augusto Martins Ramos eacute Professor Emeacuterito da FLUL licenciado em Teologia (Instituto

Catoacutelico de Toulouse 1969) Ciecircncias Biacuteblicas e Orientais (Instituto Biacuteblico de Roma 1972)

doutorado em Histoacuteria Antiga (Universidade de Lisboa 1989) Aacutereas de trabalho Hebraico

Acaacutedico Ugariacutetico Histoacuteria da Antiguidade Preacute-Claacutessica e Histoacuteria das Culturas da Antiguidade

Preacute-Claacutessica Histoacuteria Comparada das Religiotildees Preacute-Claacutessicas Literaturas Preacute-Claacutessicas Histoacuteria

do Cristianismo Antigo tradutor e coordenador cientiacutefico desde 1972 ateacute ao presente em

vaacuterios projetos e modelos diferentes de traduccedilatildeo da Biacuteblia em colaboraccedilatildeo com a Sociedade

Biacuteblica a Difusora Biacuteblica e a Conferecircncia Episcopal Portuguesa Aleacutem do trabalho de traduccedilatildeo e

coordenaccedilatildeo as suas numerosas publicaccedilotildees inscrevem-se na variedade de temaacuteticas referidas

Nuno Simotildees Rodrigues eacute Doutor em Letras especialidade de Histoacuteria da Antiguidade Claacutessica

Professor da Universidade de Lisboa e investigador dos Centros de Histoacuteria e de Estudos Claacutessicos

da ULisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UCoimbra Tem-se dedicado ao estudo da

cultura grega (mitologia e religiatildeo) da sociedade e poliacutetica romanas do fim da Repuacuteblica e iniacutecio

do Principado e da receccedilatildeo de temas claacutessicos no cinema Publicou laquoIudaei in Vrbe Os Judeus em

Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacuteviosraquo (2007) e laquoMitos e Lendas da Roma Antigaraquo

(2ordf ed 2010)

Seacuterie Humanitas SupplementumEstudos Monograacuteficos

Estruturas EditoriaisSeacuterie Humanitas Supplementum

Estudos Monograacuteficos

ISSN 2182‑8814

Diretor PrincipalMain Editor

Delfim LeatildeoUniversidade de Coimbra

Assistentes Editoriais Editoral Assistants

Daniela DantasUniversidade de LisboaJoatildeo Pedro Gomes

Universidade de CoimbraMartim Aires HortaUniversidade de Lisboa

Comissatildeo Cientiacutefica Editorial Board

Carlos FabiatildeoUniversidade de Lisboa

Claacuteudia TeixeiraUniversidade de Eacutevora

Francisco CarameloUniversidade Nova de Lisboa

Inmaculada Vivas SaacuteinzUniversidad Nacional de Educacioacuten a Distancia Madrid

Juan Luis Montero FenolloacutesUniversidad de La Coruntildea

Juan Pablo VitaCCHS‑CSIC Espantildea

Judith MossmanUniversity of Coventry

Luciacutea Diacuteaz‑IglesiasILC‑CCHS‑CSIC Espantildea

Paolo FedeliUniversitagrave degli Studi di Bari laquoAldo Mororaquo

Roberto NicolaiUniversitagrave di Roma laquoLa Sapienzaraquo

Sabino Perea YeacutebenesUniversidad Nacional de Educacioacuten a Distancia Madrid

William J DominikUniversity of Otago

Todos os volumes desta seacuterie satildeo submetidos a arbitragem cientiacutefica independente

Delfim Leatildeo Joseacute Augusto RamosNuno Simotildees Rodrigues (coords)Universidade de Coimbra Centro de Histoacuteria da Universidade de Lisboa

Arqueologias de Impeacuterio

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

Conceccedilatildeo Graacutefica GraphicsRodolfo Lopes Nelson Ferreira

Infografia InfographicsNelson Ferreira

Impressatildeo e Acabamento Printed byKDP

ISSN2182‑8814

ISBN978‑989‑26‑1625‑4

ISBN Digital978‑989‑26‑1626‑1

DOIhttpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1

Tiacutetulo Title Arqueologias de ImpeacuterioArchaeologies of empire

Coords EdsDelfim Leatildeo Joseacute Augusto Ramos Nuno Simotildees Rodrigues

Editores PublishersImprensa da Universidade de CoimbraCoimbra University Presswwwucptimprensa_ucContacto Contact imprensaucptVendas online Online Saleshttplivrariadaimprensaucpt

Elaboraccedilatildeo de Iacutendices Index listing

Daniela DantasMartim Aires Horta

Coordenaccedilatildeo Editorial Editorial CoordinationImprensa da Universidade de Coimbra

copy Setembro 2018

Trabalho publicado ao abrigo da Licenccedila This work is licensed underCreative Commons CC‑BY (httpcreativecommonsorglicensesby30ptlegalcode)

POCI2010

Imprensa da Universidade de CoimbraClassica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis httpclassicadigitaliaucptCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra

Seacuterie Humanitas SupplementumEstudos Monograacuteficos

Projeto UIDELT001962013 ‑ Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra eProjeto UIDHIS043112013 ndash Centro de Histoacuteria da Universidade de Lisboa

Arqueologias de ImpeacuterioArchaeologies of empire

Coordenadores editorsDelfim Leatildeo Joseacute Augusto Ramos Nuno Simotildees Rodrigues (coords)

Filiaccedilatildeo AffiliationUniversidade de Coimbra Centro de Histoacuteria da Universidade de Lisboa Universidade de Lisboa

ResumoEste contributo portuguecircs para a discussatildeo da ideia de laquoImpeacuterioraquo consiste num conjunto de 17 estudos que abrangem tambeacutem as vaacuterias aacutereas de investigaccedilatildeo da Antiguidade A partir das fontes biacuteblicas propotildee‑se uma estruturaccedilatildeo de categorias e uma organizaccedilatildeo de semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento da ideia de laquoimpeacuterioraquo Aborda‑se o caso egiacutepcio focando‑se a problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria egiacutepcia e a terminologia utilizada para a definir bem como a desintegraccedilatildeo poliacutetica que ocorreu no Egito no final do Impeacuterio Novo Para o universo dos impeacuterios antigos da Mesopotacircmia foca‑se a emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammurabi em dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia a guerra contra o Elam e o ataque ao reino de Larsa e reflete‑se sobre o facto de habitualmente ser atribuiacutedo agrave dinastia de Akkad o estatuto de ldquoPrimeiro Impeacuteriordquo Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio feniacuteciosiro palestinense recorre‑se a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico‑religiosas elementos para o estudo das realidades poliacuteticas e apresenta‑se uma reflexatildeo sobre Imperialismo no mundo colonial feniacutecio As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas estatildeo representadas neste livro por estudos sobre contextos de violecircncia militar ou venatoacuteria sobre Jeremias e a defesa de uma submissatildeo divinamente fundamentada de Judaacute ao chamado Impeacuterio Neobabiloacutenico sobre a figura de Naboacutenido o uacuteltimo rei deste periacuteodo e ainda sobre os diferentes comportamentos de Naboacutenido e de Ciro relativamente ao culto de Marduk Sobre a Peacutersia lemos textos sobre a teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta em 380‑82 e acerca das rainhas na Peacutersia Antiga De igual modo sobre o periacuteodo heleniacutestico reflecte‑se sobre o papel e a importacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera do poder Nos uacuteltimos quatro estudos deste conjunto de ensaios propotildee‑se uma genealogia conceptual para a ideia de imperium no mundo romano trata‑se a representaccedilatildeo que na historiografia antiga se faz do processo de construccedilatildeo do imperialismo romano e dos seus intervenientes analisa‑se as Vidas dos Ceacutesares obra em que Suetoacutenio revela a sua interpretaccedilatildeo do poder imperial e a forma como ele deve ser exercido e sugere‑se uma ideia de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio

Palabras‑claveImpeacuterio Egiacutepcio Impeacuterio Assiacuterio Impeacuterio Babiloacutenico Impeacuterio Feniacutecio Impeacuterios Anatoacutelicos Impeacuterio Heleniacutestico Impeacuterio Romano

Abstract This Portuguese contribution to the debate on the concept of ldquoEmpirerdquo brings together 17 essays covering various areas and periods across Antiquity Biblical sources allow us to structure various categories and organize their related meanings as valuable paths to inform our understating of the idea of ldquoEmpirerdquo Egypt first serves as the opportunity to inquire the usefulness of ldquoEmpirerdquo as a concept within the larger discussion of periodization in History as well as the scope and limitations of its definitions as the observed political dissolution in the Late New Kingdom shows Regarding Ancient ldquoMesopotamian Empiresrdquo the first ldquoEmpirerdquo is usually attributed to the political formulas brought forth by the dynasty of Akkad which emerged before the hegemony of Babylon The underlying ideology to Hammurabirsquos social and military policies through two crucial moments in Babylonian History provides the ground to analyze the emergence of its first hegemony the war with Elam and the expedition to the Kingdom of Larsa Approaches to the Anatolian and the PhoenicianSyrian‑Palestinian territories follow a methodology focused on myth and religious narratives and the traces of political realities

found there as well as a reflection on the validity of ldquoimperialismrdquo when applied to the Phoenician colonial world Later Mesopotamian imperial formulas are analyzed within the context of violence military and ritual on Jeremias and the rationale for a heavenly justified submission of Judah to the so‑called ldquoNeo‑Babylonian Empirerdquo on Nabonidus the last king of this dynasty and on the diverging behavior of both Nabonidus and Cyrus to the cult of Marduk Herodotus a privileged source for the classical perception of eastern formulas displays the Persian Empire as the background for different Greek political proposals at play (famously in 380‑82) and informs us of the queenship and the queens of Ancient Persia Moreover the role and status of women in Hellenistic societies is further examined most notably in its relations to power The last four essays propose a conceptual genealogy for the idea of imperium through the Roman World from the representation Ancient Historiography creates of the processes structuring Roman ldquoimperialismrdquo and their agents the interpretation Suetonius proposes of imperial power and how it ought to be used to the validity of a certain notion of ldquoglobalizationrdquo applied to the Late Roman expanse

KeywordsEgyptian Empire Assyrian Empire Babylonian Empire Phoenician Empire Anatolian Empires Hellenistic Empires Ro‑man Empire

Coordenadores

Delfim F Leatildeo eacute Professor Catedraacutetico do Instituto de Estudos Claacutessicos e investiga-dor do Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra As suas principais aacutereas de interesse cientiacutefico satildeo a histoacuteria antiga o direito e a teori-zaccedilatildeo poliacutetica dos Gregos a pragmaacutetica teatral e a escrita romanesca antiga Tem-se dedicado igualmente agrave aacuterea das Humanidades DigitaisOrcid ID 0000-0002-8107-9165 (leoflucpt)

Joseacute Augusto Martins Ramos eacute Professor Emeacuterito da FLUL licenciado em Teologia (Instituto Catoacutelico de Toulouse 1969) Ciecircncias Biacuteblicas e Orientais (Instituto Biacuteblico de Roma 1972) doutorado em Histoacuteria Antiga (Universidade de Lisboa 1989) Aacutereas de trabalho Hebraico Acaacutedico Ugariacutetico Histoacuteria da Antiguidade Preacute-Claacutessica e Histoacuteria das Culturas da Antiguidade Preacute-Claacutessica Histoacuteria Comparada das Reli-giotildees Preacute-Claacutessicas Literaturas Preacute-Claacutessicas Histoacuteria do Cristianismo Antigo tradutor e coordenador cientiacutefico desde 1972 ateacute ao presente em vaacuterios projetos e modelos diferentes de traduccedilatildeo da Biacuteblia em colaboraccedilatildeo com a Sociedade Biacuteblica a Difusora Biacuteblica e a Conferecircncia Episcopal Portuguesa Aleacutem do trabalho de tra-duccedilatildeo e coordenaccedilatildeo as suas numerosas publicaccedilotildees inscrevem-se na variedade de temaacuteticas referidasOrcid ID 0000-0002-3247-2163 (joseramosletrasulisboapt)

Nuno Simotildees Rodrigues eacute Doutor em Letras especialidade de Histoacuteria da Antiguidade Claacutessica Professor da Universidade de Lisboa e investigador dos Centros de Histoacuteria e de Estudos Claacutessicos da ULisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UCoimbra Tem-se dedicado ao estudo da cultura grega (mitologia e religiatildeo) da sociedade e poliacutetica romanas do fim da Repuacuteblica e iniacutecio do Principado e da receccedilatildeo de temas claacutessicos no cinema Publicou Iudaei in Vrbe Os Judeus em Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacutevios (2007) e Mitos e Lendas da Roma Antiga (2ordf ed 2010)Orcid ID 0000-0001-6109-4096 (nonniusflulpt)

Editors

Delfim F Leatildeo is Full Professor at the Institute of Classical Studies and researcher at the Centre for Classical and Humanistic Studies at the University of Coimbra His main areas of scientific interest are ancient history law and political theory of the Greeks theatrical pragmatics and the ancient novel He also has a deep interest in Digital Humanities

Joseacute Augusto Martins Ramos is an Emeritus Professor at the School of Arts and Humanities graduated in Theology (Catholic Institute of Toulouse 1969) Oriental and Biblical Sciences (Biblical Institute at Rome 1972) and has a PhD in Ancient History (University of Lisbon 1989) His main areas of research on which he has published extensively are Hebrew Akkadian Ugaritic History and Culture of Ancient Near-

Eastern Societies Ancient Near-Eastern Literature Comparative History of Religions Ancient Christianity Since 1972 has translated and coordinated various projects on the Bible and its Portuguese translations in collaboration with the Portuguese Biblical Society Difusora Biacuteblica and the Portuguese Episcopalian Conference

Nuno Simotildees Rodrigues is Professor at the University of Lisbon and researcher at the Centres for History and Classical Studies at ULisbon and for Classical and Humanistic Studies at University of Coimbra He has a PhD in Ancient History (Classical History) and his main scientific areas of research are Greek culture (Mythology and Religion) Roman society and politics (from the end of the Republic to the beginnings of the Principate) and also to the reception of Classical themes in cinema He has published ldquoIudaei in Vrberdquo Os Judeus em Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacutevios (2007) and Mitos e Lendas da Roma Antiga (2nd ed 2010)

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De imperiis 13Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno S Rodrigues

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteriaseguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio 21

(Mythologies Theologies and Taxonomies of History through the biblical idea of empire)Joseacute A Ramos

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egipto em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo 37

(Empires in the History of Ancient Egypt on conceptual validity of laquoImpeacuterioraquo)Joseacute das Candeias Sales

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio 57

(Starting anew the laquorepetition of birthraquo and Egyptrsquos political transformation on the brink of the 1st Millenium)

Rogeacuterio Sousa

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemoniaa ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina 75

(Hammu-rabi and the beginning of his hegemonic ascent political order and divine legitimation)Maria de Faacutetima Rosa

laquoRei das Quatro RegiotildeesraquoSargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia 89

(lsquoKing of the four landsrsquo Sargon of Akkad and the imperial model in Mesopotamia)Marcel L Paiva do Monte

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita 107(The hurritisation of mythological concepts of power in the Hittite Empire)Joatildeo Paulo Galhano

Imperialismo no Mundo Colonial Feniacutecio 139(Imperialism in the Phoenician colonial World)Elisa de Sousa

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigocomo discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio 155

(Decapitation and exhibition of the enemy as discourse and exercise of power in the neo-Assyrian empire)

Marcel Paiva do Monte

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do Livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute 179

(To drink from the Nile or the Euphrates On the role of (the book of) of Jeremiah in legitimising the Neo-Babilonic imperium over Judah)

Joatildeo Pedro Vieira

Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico 201(Nabonidus and the end of the Neobabilonian Empire)Antoacutenio Ramos dos Santos

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk 209

(The fall of Babylon in 539 BC Nabonidus and Cyrus two different approaches to the cult of god Marduk)

Maria de Faacutetima Rosa

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedotolei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica 221

(Persian Kings in Herodotusrsquo Histories Law and Freedom roots of the monarchic ideology)Carmen L Soares

Ser rainha na Peacutersia antiga 237(To be a Queen in Ancient Persia)Maria de Faacutetima Silva

Peri BasilissasEm torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas 257

(Peri Basilissas Regarding the political importance of five Hellenistic queens)Nuno Simotildees Rodrigues

O Imperium da origem ao Principado 277(Imperium from origin to Principate)Filipe Carmo

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente 295

(Building the empire in Hispania contrasts amongst the narratives on the Roman conquest of the West)

Amiacutelcar Guerra

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio 311(A look over imperial power in Suetonius)Joseacute Luiacutes Brandatildeo

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado 331

(Peregrinationes ad loca sancta the strange route of Melania-the-Elder in a globalised Mediterranean)

Rodrigo Furtado

Iacutendice Teoniacutemico 347

Iacutendice Antroponiacutemico 349

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico 356

Iacutendice de Fontes Antigas 363

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

13

Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno Simotildees Rodrigues

Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis

O livro que agora se publica resulta de um seminaacuterio interdisciplinar de Histoacuteria Antiga organizado pelos Centros de Histoacuteria da Universidade de Lisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra1 O referido seminaacuterio decorreu na Universidade de Lisboa em trecircs momentos distribuiacutedos pelos seguintes subtemas ldquoFoacutermulas originaacuterias de Impeacuteriordquo ldquoImpeacuterios da era axialrdquo e ldquoImpeacuterios da globalizaccedilatildeordquo

O principal objetivo deste encontro que reuniu especialistas em Estudos da Antiguidade provenientes de seis Universidades portuguesas (Lisboa Coimbra Nova de Lisboa Porto Aberta e Eacutevora) foi refletir sobre o conceito de ldquoImpeacuteriordquo e a sua aplicaccedilatildeo aos momentos-chave da Histoacuteria Antiga do Egito ao Mundo Romano Se para este uacuteltimo caso a aplicaccedilatildeo de uma ideia que eacute na sua origem latinaromana natildeo coloca grandes problemas teoacutericos ou epistemoloacutegicos o mesmo natildeo se poderaacute dizer sobre todas as realidades poliacutetico-institucionais que antecedem o universo romano Com efeito como bem nota Filipe Carmo no texto que aqui se publica imperium eacute um conceito romano com uma evoluccedilatildeo proacutepria e uma aplicaccedilatildeo histoacuterica e historiograficamente especiacutefica pelo que apesar do pragmatismo e da sua utilidade enquanto ferramenta conceptual os historiadores como os arqueoacutelogos e os filoacutelogos devem estar conscientes dos perigos de anacronismo e das limitaccedilotildees epistemoloacutegicas que ele implica2 Isso natildeo obsta poreacutem que a matriz do que reconheceremos como modelo imperial romano remonte agrave Eacutepoca Preacute-Claacutessica como bem mostrou Francis Joannegraves3 Importa tambeacutem por isso refletir sobre a pertinecircncia e eficaacutecia do seu uso quando nos referimos a outras eacutepocas da Histoacuteria muito especialmente as que se definiram antes de Roma se ter assumido como uma macroestrutura poliacutetica que veio a trilhar de modo definitivo o caminho que a Humanidade tem vindo a percorrer desde entatildeo

Aleacutem disso importa ter tambeacutem presente como nota Christophe Badel4 que a noccedilatildeo de ldquoImpeacuteriordquo conhece nos dias de hoje interesse renovado por todos os que se interessam por geopoliacutetica e por cientistas e filoacutesofos poliacuteticos quando se debruccedilam sobre as formas contemporacircneas do nosso ldquouniverso globalizadordquo A

1 Esta investigaccedilatildeo foi realizada no acircmbito dos projetos UIDELT001962013 do Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra e UIDHIS043112013 do Centro de Histoacuteria da Universidade de Lisboa financiados pela FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia

2 Sobre esta problemaacutetica vide tambeacutem Jones 1951 Burchard 1957 Lintott 1981 Richard-son 1991 Martin 1995 Hurlet 2011 Hoeumlt-Van Cauwenberghe 2011 Cresci amp Gazzano 2018

3 Joannegraves 20114 Badel 2011 9

14

Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis

perceccedilatildeo de que aquela eacute uma noccedilatildeo complexa manifesta-se no texto de Badel logo no iniacutecio quando o autor faz questatildeo de explicitar que ldquolrsquousage veut que lrsquoon distingue les deux sens du mot empire par le choix de la minuscule ou de la majuscule en deacutebut de mot LrsquoEmpire designe le regime politique monarchique et lrsquoempire la domination territoriale Nous utiliserons donc la minuscule sauf dans le cas drsquoun empire particulier puisqursquoalors il srsquoagit drsquoun nom propre Nous parlerons donc lsquodes empiresrsquo mais de lsquolrsquoEmpire romainrsquo5

Parece-nos que o alerta de C Badel enuncia jaacute as problemaacuteticas subjacentes ao tratamento desta questatildeo Eacute com ela no horizonte que vaacuterios especialistas se dedicaram jaacute ao tema analisando-a eg no contexto da histoacuteria mesopotacircmica e persa6 grega e heleniacutestica em geral7 e romana (vide referecircncias na nota 2 desta introduccedilatildeo8)

A esses estudos tambeacutem natildeo eacute estranho o conceito de ldquoimperialismordquo enquanto ideia radicada na historiografia do seacuteculo XIX sobretudo e influenciada pelas realidades poliacuteticas de entatildeo nomeadamente o ldquoImpeacuterio Britacircnicordquo Com efeito cedo nos apercebemos de que muito do que a historiografia da Antiguidade ainda hoje utiliza enquanto ferramenta conceptual para o tratamento das questotildees da poliacutetica e do domiacutenio e administraccedilatildeo de territoacuterios a essa realidade muito deve Tambeacutem neste campo deve o historiador estar alerta9

Este contributo portuguecircs para a discussatildeo da temaacutetica consiste num conjunto de 17 estudos que abrangem tambeacutem as vaacuterias aacutereas de estudo da Antiguidade A tiacutetulo de introduccedilatildeo Joseacute Augusto Ramos apresenta um texto intitulado ldquoMitologias teologias e taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuteriordquo com que pretende a partir das fontes biacuteblicas estruturar categorias e organizar semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento da ideia em debate

Para o caso egiacutepcio Joseacute das Candeias Sales escreve sobre ldquoOs Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de lsquoImpeacuteriorsquordquo texto que se foca na problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria egiacutepcia e na terminologia utilizada para a definir Com efeito as foacutermulas ldquoImpeacuterio Antigordquo ldquoImpeacuterio Meacutediordquo e ldquoImpeacuterio Novordquo satildeo por norma as usadas pelos egiptoacutelogos portugueses sendo que o autor se interroga e nos faz interrogar sobre a pertinecircncia da aplicaccedilatildeo do conceito de ldquoimpeacuteriordquo a estas eacutepocas da histoacuteria egiacutepcia Rogeacuterio Sousa reflete acerca de ldquoComeccedilar de novo a lsquorepeticcedilatildeo do nascimentorsquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacuteniordquo sendo o seu ponto de partida a desintegraccedilatildeo poliacutetica que ocorreu no Egito no final do Impeacuterio Novo Segundo o

5 Badel 2011 96 Joannegraves 20117 Gregor 1953 Ste Croix 1954 Mosseacute 2011 Peacutebarthe 2011 Martinez Segraveve 20118 Veja-se ainda Garnsey et Whittaker [1978] 20079 Veja-se Barroll 1980 e Le Roux 2011

15

Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno Simotildees Rodrigues

autor esse periacuteodo partilha muitos aspetos com a crise que afetou as civilizaccedilotildees da bacia do Mediterracircneo na transiccedilatildeo da Idade do Bronze para a Idade do Ferro Muito mais bem documentada no espaccedilo egiacutepcio do que noutros contextos poreacutem esta transiccedilatildeo natildeo irrompeu de forma violenta nem foi acompanhada de uma crise cultural profunda como aparentemente se poderia supor Ainda assim o chamado Terceiro Periacuteodo Intermediaacuterio apresenta uma organizaccedilatildeo poliacutetica completamente distinta que parece ter sido posta em praacutetica ao longo do que se convencionou chamar de ldquoRepeticcedilatildeo do Nascimentordquo

Para o universo dos impeacuterios antigos da Mesopotacircmia contamos com a proposta de Maria de Faacutetima Rosa ldquoHammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divinardquo A autora foca-se na emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammu-rabi em dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia a guerra contra o Elam e o ataque ao reino de Larsa O contributo de Marcel Paiva do Monte tem por tiacutetulo ldquolsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmiardquo Com este estudo M Monte reflete sobre o facto de habitualmente ser atribuiacutedo agrave dinastia de Akkad (ca 2334-2154 aC) o estatuto de ldquoPrimeiro Impeacuteriordquo De facto apesar de o domiacutenio alargado que exerceu sobre o Proacuteximo Oriente revelar uma continuidade com realidades anteriores a vigecircncia de Akkad originou uma nova tradiccedilatildeo que estruturou e marcou definitivamente a cultura poliacutetica mesopotacircmica Akkad tornou-se o paradigma de um horizonte de poder universal e o seu primeiro rei Sargatildeo um modelo de realeza que viria a ser objeto de emulaccedilatildeo por parte de muitas das entidades poliacuteticas que surgiram posteriormente na Mesopotacircmia

Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio feniacuteciosiro-palestinense contamos com os contributos de Joatildeo Paulo Galhano e de Elisa de Sousa Galhano escreve sobre ldquoA hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hititardquo Este estudo recorre a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico-religiosas elementos para o estudo das realidades poliacuteticas Assim analisam-se sobretudo os processos de hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos hititas verificando-se apoacutes anaacutelise da hurritizaccedilatildeo eacutetnica do territoacuterio da Anatoacutelia que nos mitos de divindades ausentes subsistem conceccedilotildees de interdependecircncia e correlaccedilatildeo dos entes divinos a par de uma tendecircncia natildeo hieraacuterquica de organizaccedilatildeo do panteatildeo anatoacutelico antigo As narrativas hurritas trouxeram assim ao panteatildeo anatoacutelico estruturas que evidenciam ideias de realeza divina de valorizaccedilatildeo do horizonte familiar e de diferenciaccedilatildeo das instacircncias de poder Os mitos hurritas trouxeram ainda dimensotildees temporais alargadas e uma encenaccedilatildeo literaacuteria da soberania Sousa apresenta uma reflexatildeo sobre ldquoImperialismo no mundo colonial feniacuteciordquo estudo que se centra na problemaacutetica da colonizaccedilatildeo feniacutecia no Mediterracircneo Central Ocidental e nas costas atlacircnticas Com efeito este processo teve um impacte profundo natildeo soacute em termos socioeconoacutemicos mas tambeacutem culturais

16

Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis

nos territoacuterios ultramarinos da Feniacutecia A evidecircncia disso estaacute no facto de a heranccedila oriental se vir a sobrepor em muacuteltiplas ocasiotildees ao substrato autoacutectone precedente como mostra a evidecircncia da cultura material por exemplo Neste sentido estamos perante relaccedilotildees de domiacutenio que poderatildeo ser interpretadas segundo a autora e na linha de estudos desenvolvidos por Garelli ou Liverani no acircmbito de uma ideia de ldquoimperialismo culturalrdquo

As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas estatildeo representadas neste livro por quatro estudos Marcel Monte oferece-nos um texto sobre a ldquoDecapita-ccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoas-siacuteriordquo Com efeito em contextos de violecircncia militar ou venatoacuteria a decapitaccedilatildeo parece ter sido na Mesopotacircmia um ato de inusitada atrocidade mas com um propoacutesito simbologia e semioacutetica Assim atos como a apropriaccedilatildeo da cabeccedila de um inimigo ou caput hostis seriam essencialmente mecanismos de propaganda a componente visiacutevel de uma sineacutedoque poderosa que manifestava a derrota do adversaacuterio e a ruiacutena de tudo o que isso representava para o vencedor Em siacutentese expressotildees de poder de uma estrutura que se queria hegemoacutenica A investigaccedilatildeo de Joatildeo Pedro Vieira leva por tiacutetulo ldquoBeber do Nilo ou do Eufrates O papel (do Livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacuterdquo e estabelece a relaccedilatildeo entre o periacuteodo neobabiloacutenico e o espaccedilo dos Hebreus Com base em Jr 27-29 este estudo argumenta que Jeremias defendia uma submissatildeo divinamente fundamentada de Judaacute ao chamado Impeacuterio Neobabiloacutenico Suge-re-se ainda que a intervenccedilatildeo sociopoliacutetica daquele profeta poderaacute ter sido reco-nhecida pelas elites poliacuteticas neobabiloacutenicas como instrumento de legitimaccedilatildeo e imposiccedilatildeo do seu poder e domiacutenio sobre Judaacute O terceiro estudo deste grupo eacute da autoria de Antoacutenio Ramos dos Santos e tem por tema ldquoNaboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenicordquo Neste texto lemos sobre a figura de Naboacutenido o uacuteltimo rei daquele periacuteodo bem como sobre a questatildeo do poder reacutegio nesse mesmo contexto Por fim ainda no acircmbito da Babiloacutenia fazendo jaacute a transiccedilatildeo para o universo persa Maria de Faacutetima Rosa daacute-nos a ler ldquoA queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciro duas atitudes divergentes face ao culto do deus Mardukrdquo texto com que a autora analisa algumas fontes cuneiformes que servem para explorar os diferentes comportamentos de Naboacutenido e de Ciro relativamente ao culto de Marduk

Sobre a Peacutersia propriamente dita contamos com os trabalhos de Carmen Soares e de Maria de Faacutetima Silva Especialista em Heroacutedoto C Soares publica ldquoMonarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquicardquo Neste estudo a autora apoia-se na teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta em 380-82 e passa em revista passos fundamentais das Histoacuterias para a caracterizaccedilatildeo dos governos monocraacuteticos dos soberanos persas O que se busca clarificar eacute a forma como a relaccedilatildeo desses governantes com a lei e a liberdadeservidatildeo em que se encontram os que governam nos leva a concluir sobre a inexistecircncia de uma figura modelar de monarca Heroacutedoto

17

Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno Simotildees Rodrigues

oferece sim dos monarcas tanto ldquoretratos mistosrdquo (daqueles que se governam ora com justiccedila ora de modo despoacutetico como Ciro e Dario e antes deles Deacutejoces da Meacutedia) como um ldquoretrato purordquo (do tirano insolente Cambises) Igualmente perita nos textos do pater historiae M F Silva disserta acerca de ldquoSer rainha na Peacutersia Antigardquo Para isso poreacutem a autora recorre natildeo apenas agraves informaccedilotildees fornecidas por Heroacutedoto mas tambeacutem a outros textos gregos coevos ou posteriores como os de Eacutesquilo e Plutarco Com efeito estes satildeo os autores que em diferentes eacutepocas melhor retratam a vida na corte persa e a in-fluecircncia feminina que circundava os seus monarcas Mas eacute de salientar tambeacutem que apesar do muito que se sugere historicamente verdadeiro natildeo seraacute pouco o que ali lemos que teraacute sido composto sob as cores da fantasia e da ideologia do contexto poliacutetico-cultural dos autores desses textos

O periacuteodo heleniacutestico estaacute representado pelo estudo de Nuno Simotildees Rodrigues ldquoPeri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticasrdquo Com este trabalho o autor pretende refletir sobre o papel e a im-portacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera do poder a partir do estudo de cinco casos Oliacutempia do Epiro Laoacutedice I da Siacuteria Berenice I do Egito Arsiacutenoe II do Egito e Cleoacutepatra VII do Egito

Eacute ao periacuteodo romano que se dedicam os uacuteltimos quatro estudos deste conjunto de ensaios O primeiro deles eacute da autoria de Filipe Carmo e consiste num ensaio em que o autor tenta estabelecer uma genealogia conceptual para a ideia de imperium no mundo romano Assim em ldquoO Imperium da origem ao principadordquo F Carmo comeccedila por assinalar o facto de originalmente e para al-guns autores o conceito se relacionar com o ldquopoder soberano de comandordquo um poder absoluto de vida e de morte ndash e por isso tambeacutem de implicaccedilotildees religiosas que se manifestavam na esfera dos auspicia ndash ao qual os ldquosuacutebditosrdquo deviam obedecer sem restriccedilotildees O estudo da evoluccedilatildeo do conceito ndash que para outros historiadores poderaacute ter tido origem no estabelecimento de uma hegemonia do Estado Romano sobre outros estados ou no comando militar de uma alianccedila ou ainda numa afirmaccedilatildeo de caraacutecter pessoal uma potecircncia carismaacutetica condu-cente ao ecircxito assumida pelo chefe ndash leva-nos a verificar a sua compatibilidade com a ideia de cidadania e naturalmente a natildeo entender a referida obediecircncia de um modo absoluto A aquisiccedilatildeo do imperium pelos magistrados superiores da cidade estaria por outro lado estreitamente associada a uma sucessatildeo de atos de natureza civil e religiosa cujo natildeo cumprimento adequado poria em causa a legitimidade do exerciacutecio de tal poder Para Carmo teraacute sido precisamente uma crise dessa legitimidade iniciada pela atomizaccedilatildeo do poder e derivada das con-quistas romanas e das guerras civis que conduziu numa fase posterior ndash atraveacutes das ditaduras de Sula e de Ceacutesar dos triunviratos e da criaccedilatildeo do principado ndash a uma reaccedilatildeo que levou agrave concentraccedilatildeo progressiva do imperium e agrave institucio-nalizaccedilatildeo do imperium Romanum sob formas que jaacute satildeo proacuteximas dos conceitos modernos de ldquoimpeacuteriordquo e ldquoimperialismordquo Amiacutelcar Guerra analisa a problemaacutetica

18

Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis

de ldquoA construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircnia contrastes das narrativas da conquis-ta romana do Ocidenterdquo Com este estudo A Guerra trabalha a representaccedilatildeo que na historiografia antiga se faz do processo de construccedilatildeo do imperialismo romano e dos seus intervenientes Essa representaccedilatildeo parece depender de uma perspetiva enformada pela cultura greco-latina naturalmente bem como pelos seus paradigmas Deste modo o quadro que se transmite dos povos hispacircnicos deve ser sempre lido a partir dessa chave apresentando-se em oposiccedilatildeo agravequeles numa dicotomia que com frequecircncia se associa agrave oposiccedilatildeo entre civilizaccedilatildeo e barbaacuterie De qualquer modo verifica-se que a visatildeo desse mundo natildeo eacute necessa-riamente linear sendo que dispomos de um nuacutemero consideraacutevel de exemplos que ilustram a complexidade do panorama Neste sentido apresentam-se alguns exemplos em que de alguma forma se enuncia uma imagem reversa por um lado a arenga de Aniacutebal aos seus soldados antes da batalha do Ticino em que o general apresenta a sua perspetiva sobre o comportamento dos Romanos por outro referem-se alguns episoacutedios em que se potildee em evidecircncia o heroiacutesmo de mulheres hispacircnicas a comeccedilar pelo que ocorre entre os Braacutecaros no contexto da campanha galaica de Deacutecimo Juacutenio Bruto A Joseacute Luiacutes Brandatildeo cabe escrever acerca de ldquoUm olhar sobre o poder imperial em Suetoacuteniordquo Especialista nesse historiador latino Brandatildeo apresenta uma minuciosa anaacutelise das Vidas dos Ceacutesares obra em que Suetoacutenio revela a sua interpretaccedilatildeo do poder imperial e a forma como ele deve ser exercido Em Suetoacutenio esse eacute um poder que deve conduzir a um novo e melhor Estado como aquele fundado por Augusto mas que no entanto assenta numa sucessatildeo mal definida e imprevisiacutevel em que o destino desempenha um papel fulcral Com efeito esse poder sendo ilimitado e potencialmente incontrolaacutevel depende do caraacutecter de quem o possui podendo oscilar entre um comportamento tiracircnico e individualista e uma atitude pater-nal e por consequecircncia universalista que abarca todas as aacutereas de intervenccedilatildeo governativa todas as ordens e todos os povos Por fim Rodrigo Furtado propotildee uma ideia de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio em ldquoPeregrinationes ad loca sancta o estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizadordquo Com este estudo como nota o autor e perante incongruecircncias omissotildees lapsos e reconstruccedilotildees das fontes sobre Melacircnia-a-Antiga procura-se aduzir elementos que permitem concluir que Melacircnia partiu para o Oriente ca 374 no contexto das perseguiccedilotildees de Valentiniano I tendo primeiro rumado ao Egito e depois estabelecido na Palestina Deste modo R Furtado procura dar uma leitura da vida de Melacircnia num mundo que era jaacute ao seu modo globalizado e causa ao mesmo tempo que consequecircncia de uma administraccedilatildeo territorial de tipo ldquoimperialrdquo

Esperamos assim ir ao encontro das expectativas dos nossos leitores Devemos uma palavra de reconhecimento puacuteblico pelo meticuloso trabalho de ediccedilatildeo deste livro feito pelo Martim Aires Horta e pela Daniela Dantas investigadores juniores da aacuterea de Histoacuteria Antiga do CH-ULisboa De igual

19

Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno Simotildees Rodrigues

modo haacute que fazer um agradecimento ao Nelson Henrique investigador do CECH-UC que fez a paginaccedilatildeo da obra e agrave Imprensa da Universidade de Coimbra que a acolheu na sua seacuterie ldquoHumanitas ndash Supplementumrdquo Uma palavra de reconhecimento ainda ao nosso colega Hermenegildo Fernandes que enquanto Diretor do CH-ULisboa apoiou esta ideia e possibilitou que ela tivesse corpo Para terminar resta-nos evocar a nossa saudosa Professora Doutora Maria Helena da Rocha Pereira eminente classicista portuguesa e Mestra de todos noacutes que patrocinou este projeto desde o seu iniacutecio e para o qual contribuiu com uma proposta subordinada ao tiacutetulo vergiliano ldquoImperium sine finehelliprdquo Natildeo quiseram as Moirai contudo que nos deixasse escrito o texto que tanto nos prometia Fica o registo da nossa memoacuteria e da sua generosidade

Delfim F LeatildeoJoseacute A Ramos

Nuno Simotildees Rodrigues

20

Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis

Bibliografia

Badel C 2011 ldquoLes modegraveles impeacuteriaux dans lrsquoAntiquiteacuterdquo DHA 59-25Barroll M A 1980 ldquoToward a General Theory of Imperialismrdquo Journal of

Anthropological Research 36 (2)174-95Burchard J E 1957 ldquoSine Finerdquo Daedalus 86 (3)174-89Cresci L R amp Gazzano F 2018 laquoDe Imperiisraquo Lidea di impero universale e la

successione degli imperi nellantichitagrave Roma laquoLrsquoErmaraquo di BretschneiderGarnsey P e C R Whittaker eds (1978) 2007 Imperialism in the Ancient World

Cambridge Cambridge University PressGregor D B 1953 ldquoAthenian Imperialismrdquo GampR 22 (64)27-32Hoeumlt-Van Cauwenberghe C 2011 ldquoEmpire romain et heacutellenisme bilan

historiographiquerdquo DHA 5141-78Hurlet F 2011 ldquoRe(penser) lrsquoEmpire romain Le deacutefi de la comparaison

historiquerdquo DHA 5107-140Joannegraves F 2011 ldquoAssyriens Babyloniens Perses acheacutemeacutenides la matrice

impeacuterialerdquo DHA 527-47Jones A H M 1951 ldquoThe Imperium of Augustusrdquo JRS 41 (1-2)112-19Le Roux P 2011 ldquoLes empires antiques et lrsquoeacutecriture de lrsquohistoirerdquo DHA 5 179-

89Lintott A 1981 ldquoWhat was the lsquoImperium Romanumrsquordquo GampR 28 (1)53-67Martin J 1995 ldquoThe Roman Empire Domination and Integrationrdquo JITE 151

(4)714-24Martinez-Seacuteve L 2011 ldquoLe renouveau des eacutetudes seacuteleucidesrdquo DHA 589-106Mosseacute C 2011 ldquoPeacutericlegraves et lrsquoimpeacuterialisme atheacutenien de Thucydide agrave

lrsquohistoriographie contemporainerdquo DHA 549-55Peacutebarthe C 2011 ldquoLrsquoempire atheacutenien est-il toujours un empire comme les

autresrdquo DHA 557-88Richardson J S 1991 ldquoImperium Romanum Empire and the Language of

Powerrdquo JRS 811-19Ste Croix G E M de 1954 ldquoThe Character of the Athenian Empirerdquo Historia

3 (1)141

21

Joseacute Augusto Ramos

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio1

(Mythologies Theologies and Taxonomies of History through the biblical idea of empire)

Joseacute Augusto Ramos(joseramosletrasulisboapt ORCID 0000-0002-3247-2163)

Universidade de Lisboa Centro de Histoacuteria

Resumo - Apesar de o discurso poliacutetico das culturas orientais natildeo ter elaborado es-pecificamente o conceito de impeacuterio a historiografia assume que se podem exprimir com ele os dinamismos de vaacuterias das suas eacutepocas Na Biacuteblia o conceito de impeacuterio informa a sua concepccedilatildeo do tempo representando a realidade das muacuteltiplas subser-viecircncias histoacutericas bem como as suas configuraccedilotildees miacuteticas e teoloacutegicasPalavras-chave Egipto Assiacuteria Babiloacutenia Selecircucidas Romanos Quinto Impeacuterio

Abstract ndash Although the political speech of the Eastern cultures did not specifically elaborate the concept of empire historiography assumes that the dynamism of several of its epochs can be expressed with it In the Bible the concept of Empire informs its conception of time representing the reality of the multiple historical dominations as well as its mythic and theological configurations

Keywords Egypt Assyria Babylon Seleucids Romans Fifth Empire

Os textos recolhidos nesta ediccedilatildeo reportam-se a um horizonte de Histoacuteria Antiga em que o principal elemento ordenador da longa duraccedilatildeo histoacuterica eacute a ideia de impeacuterio As abordagens apresentadas tratam a questatildeo em diversas eacutepocas e em muacuteltiplas situaccedilotildees diversificadas Entretanto eacute realmente no vocabulaacuterio poliacutetico enraizado na eacutepoca do Impeacuterio Romano que esta designaccedilatildeo verdadeiramente se origina apesar de a ideia de impeacuterio ser significativa e muito frequentemente utilizada na historiografia para representar um ordenamento poliacutetico e formular siacutenteses histoacutericas a respeito de eacutepocas muito remotas E se eacute de Roma que lhe vem o nome de impeacuterio daiacute viraacute tambeacutem boa parte da definiccedilatildeo mais expliacutecita do conceito

Neste contexto romano com efeito as linhas de forccedila da semacircntica de impeacuterio definem-se a partir de um contexto militar onde uma figura de suces-so aparece rotulada de imperator e vai sendo sucessivamente projectada para uma funccedilatildeo poliacutetica de poder e soberania encontrando-se agrave cabeccedila de todo um

1 Este trabalho eacute financiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircn-cia e a Tecnologia no acircmbito do projecto UIDHIS043112013

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_1

22

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

universo geograacutefico e populacional que o imenso exeacutercito romano podia realmen-te representar Um tal sucesso e representatividade na vertente militar acrescido de um poder alargado intenso e dominador satildeo conotaccedilotildees caracteriacutesticas que se acentuam na ideia de impeacuterio no momento em que este conceito passa a ser transferido para outra entidade histoacuterica especiacutefica Mesmo natildeo constituindo nomenclatura poliacutetica expliacutecita dos mundos orientais preacute-claacutessicos o conceito e imagem dos impeacuterios tem-se mostrado muito naturalmente adequado para representar entidades poliacuteticas de especial impacte sobretudo tratando-se de uma forccedila poliacutetica externa que domina ou simplesmente condiciona e enquadra a histoacuteria de povos e naccedilotildees agrave sua volta Neste sentido o mundo oriental natildeo usou esta designaccedilatildeo mas de imediato sugeriu claramente que esta imagem e conteuacutedo se lhe podiam aplicar de forma adequada

Natildeo pode caber aqui a pretensatildeo de esquadrinhar toda a arqueologia orien-tal dos matizes que confluem para o conceito de impeacuterio definindo assim o conteuacutedo que precede e veio a informar a posterior designaccedilatildeo Eacute no entanto inegaacutevel que a cultura e a historiografia poliacutetica do Oriente desde havia muito tempo desenvolviam modalidades categoriais precursoras da ideia de impeacuterio Em convergecircncia com as anaacutelises e prestaccedilotildees que foram recolhidas neste volu-me temaacutetico apenas pretendemos valorizar o testemunho biacuteblico sobre a capa-cidade de sistematizaccedilatildeo da histoacuteria bem como das suas fases e realidades para as quais esta ideia aparece requisitada Este eacute provavelmente um dos aspectos em que a Biacuteblia oferece um horizonte mais pertinente sobre o seu mundo que abarca a totalidade do mundo preacute-claacutessico

Nos textos originais da Biacuteblia fala-se de reis e de reinos em termos concretos ou de realeza em abstracto mas nas traduccedilotildees e comentaacuterios em discurso mais historiograacutefico recorre-se frequentemente agrave designaccedilatildeo mais ampla de impeacuterio Para justificar esta equivalecircncia conceptual convergem os dados que caracterizariam o termo na semacircntica romana em que assentou o nome Isto eacute sublinha-se o poderio militar e uma soberania poliacutetica que tende para uma hegemonia com traccedilos de comportamento excessivo e de algum modo indevido e absoluto A utilizaccedilatildeo deste conceito implica por um lado uma avaliaccedilatildeo do processo histoacuterico visto pelos seus niacuteveis de sucesso e pelas suas dimensotildees de injusticcedila O discurso biacuteblico que se reporta a esta imagem toma-a como portadora de injusticcedila e de opressatildeo A voz eacute a dos oprimidos2 Todavia apesar desta negatividade frequentemente dramaacutetica os momentos nevraacutelgicos de hegemonia representados por potecircncias dominantes servem de maneira inteiramente loacutegica para sobre a linha dos impeacuterios assentar a mais eficaz periodizaccedilatildeo de toda a duraccedilatildeo histoacuterica como marcos no seu longo percurso

2 A injusta desumanidade deste poder absoluto estaacute na base do confronto entre o poder imperial romano e os primeiros cristatildeos Cf Jones 1992 5806-9

23

Joseacute Augusto Ramos

Neste espaccedilo funcionalmente delimitado apenas se podem sintetizar al-guns toacutepicos da imensa riqueza de matizes que este conceito chave eacute chamado a exercer na leitura ordenamento e representaccedilatildeo da histoacuteria humana que se espelha no horizonte da Biacuteblia

Impeacuterios de horizonte miacutetico

As mais marcantes figuras da Histoacuteria tendem naturalmente para garantir assento na galeria de formas miacuteticas da literatura essencial Dentro da Biacuteblia esta literatura miacutetica essencial da Histoacuteria na mais pertinente acepccedilatildeo que faz dela um universal humano encontra-se distendida ao longo dos primeiros 11 capiacutetulos do Geacutenesis E eacute precisamente ali que nos deparamos com a figura de Nimerod laquoo primeiro homem poderoso sobre a terraraquo3

Com este nome de Nimerod a concentrar em si diversas toponiacutemias e onomaacutesticas parece ter sido sintetizada e personificada a memoacuteria de virtua-lidades imperiais que o longo passado da Mesopotacircmia foi acumulando desig-nadamente as da Sumeacuteria e Babiloacutenia conjuntamente designadas com o nome de Chinear e ainda a Assiacuteria As conotaccedilotildees de forccedila e habilidade militar a significativa difusatildeo e ressonacircncia do seu poder bem como o caraacutecter inaugural e institucionalmente constituinte da sua imagem satildeo desde muito cedo caracte-riacutesticas chamadas a integrar o conceito de impeacuterio A origem desta personagem Nimerod comporta desde logo referecircncias africanas pois eacute apresentado como filho de Cam o segundo filho do miacutetico patriarca Noeacute de quem descenderiam as populaccedilotildees primitivas da regiatildeo nordeste do continente africano onde na antiguidade pontificou o Egipto faraoacutenico A sua memoacuteria poreacutem transcende o mundo egiacutepcio propriamente dito Mesmo que este desvio exagerado para os lados da Aacutefrica possa ser fruto de uma confusatildeo entre os cuchitas gentes de Aacutefrica e os cassitas gentes da Mesopotacircmia esta amplificaccedilatildeo geograacutefica com a consequente extensatildeo semacircntica enquadra-se bem como verdade proacutepria da miacutetica figura imperial de Nimerod4

O nome e a imagem de Nimerod parecem ter possibilidades de se ar-ticular nas profundidades da semacircntica histoacuterica com grandes figuras de poder real como Tukulti Ninurta do impeacuterio meacutedio assiacuterio e bem assim com representantes da mitologia do poder como sejam os proacuteprios deuses meso-potacircmicos Ninurta e Marduk A confluecircncia natural entre niacuteveis humanos e divinos do poder segundo a concepccedilatildeo oriental antiga eacute uma das caracteriacutes-ticas do conceito de impeacuterio Por essa razatildeo muitas memoacuterias da cultura me-sopotacircmica conservadas pelos hebreus podem confluir para dar conotaccedilotildees agrave

3 Cf Gn 108 1Cr 1104 Cf Gn 108-12 Speiser 1964 69-73

24

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

imagem de Nimerod5 No livro do profeta Miqueias6 contemporacircneo da fase ascendente do impeacuterio neo-assiacuterio Nimerod eacute associado precisamente com o impeacuterio assiacuterio

No interior de uma saga familiar e regional que dizia respeito ao clatilde patriarcal de Abraatildeo e Lot o mesmo bloco mesopotacircmico de um poder de intensa ressonacircncia e ampla repercussatildeo aparece representado pela foacutermula poliacutetica de uma pentaacutepole onde pontificam nomes de reis aos quais o tempo jaacute impusera formas de erosatildeo Por isso alguns daqueles nomes escapam agrave tentativa de identificaccedilatildeo com figuras histoacutericas conhecidas Era precisamente o que acontecia com o nome do proacuteprio Nimerod7 O impeacuterio unificado que aqui parece andar impliacutecito sob a forma de uma coligaccedilatildeo de reis eacute o de Amerafel rei de Chinear Arioc rei de Elassar Cadorlaomer rei de Elam Tidal rei de Goim A sequecircncia da narrativa8 acaba por colocar Cadorlaomer na posiccedilatildeo de lideranccedila e apresenta-o como a personificaccedilatildeo daquele grande poder que ameaccedilava o bem-estar da famiacutelia patriarcal de Abraatildeo Deste quadro resulta uma imagem ameaccediladora e ao mesmo tempo fraacutegil ateacute quase ao ridiacuteculo9 Estas satildeo caracteriacutesticas paradoxais que denotam biblicamente o conceito de impeacuterio

Tambeacutem neste caso como na anterior ocorrecircncia de Nimerod o concentra-do de referecircncias geograacuteficas e de nomes parece convergir bem com o aglomera-do miacutetico perceptiacutevel na referecircncia que se projeta para um tempo paradigmaacutetico das origens Eacute assim que acontece no iniacutecio das grandes narrativas miacuteticas da Mesopotacircmia10 A ideia de poder estaacute naquela narrativa marcada pela signifi-cativa aglomeraccedilatildeo de reis de grandes potecircncias enquanto Abraatildeo os enfrentava com as poucas centenas dos seus homens11

Face agrave grandeza do impeacuterio aparece a pequenez das forccedilas que lhe ofere-cem resistecircncia Neste desfasamento e evidente desequiliacutebrio de forccedilas consiste a grandeza do milagre Eacute a mesma foacutermula simboacutelica de desproporccedilatildeo que se verifica na confrontaccedilatildeo entre David e Golias12 O jogo desequilibrado entre o impeacuterio e as suas viacutetimas eacute sempre um campo de maravilha Esta capacidade de alimentar a expectativa de um milagre eacute a forccedila de resistecircncia dos condenados

5 Cf Machinist 1992 41116-1186 Mq 557 Gn 1418 Gn 144-99 Abraatildeo com os seus trezentos e dezoito servos a desbaratar a grande coligaccedilatildeo de reis com

seus exeacutercitos (Gn 1414-16) comporta uma situaccedilatildeo loacutegica que pode ter atractivos de maravi-lhoso mas eacute sem duacutevida humoriacutestica no seu desequiliacutebrio

10 A formula narrativa do ldquoquandordquo segundo as modalidades narrativas conhecidas no an-tigo Oriente traduz uma especiacutefica profundidade miacutetica e remete para o tempo primordial tal como acontece no iniacutecio das grandes narrativas de Atrahhasis e de Enuma elish

11 Gn 141412 1Sm 171-58

25

Joseacute Augusto Ramos

Eacute o que daacute resistecircncia ao pensamento apocaliacuteptico que assenta a sua resistecircncia numa atitude de tipo quietista e confiante13

Estas referecircncias poderiam mesmo ser um concentrado onde se acumulam as imagens dos inimigos de fora identificados simplesmente como inimigos de Abraatildeo e seus vizinhos podendo mesmo natildeo serem vizinhos entre si Com efeito o uacuteltimo nome daquele grupo de reis coligados o rei de Goim nome que quer dizer laquopovosraquo poderia mesmo estar ali jaacute como simples referecircncia geneacuterica aos outros povos tomados como diferentes e eventualmente como inimigos de Israel14 Estes inimigos podiam secirc-lo realmente ou virtualmente e podiam ateacute ser inimigos apenas paradigmaticamente O conceito biacuteblico de impeacuterio eacute o de um poder exterior condicionador e soberano Nem precisa forccedilosamente de ser uma foacutermula institucional especiacutefica e formal Por isso a Biacuteblia considera como impeacuterios certas realidades poliacuteticas que na realidade nos pode parecer que natildeo justificariam semelhante roacutetulo Uma boa parte das referecircncias biacuteblicas a forccedilas externas de hegemonia e domiacutenio situadas ao longo da histoacuteria dos hebreus podem caber neste modelo de designaccedilatildeo abrangente

Impeacuterios de horizonte histoacuterico

A histoacuteria biacuteblica natildeo proporcionou quase nunca ao povo dos hebreus a possibilidade de viverem como numa ilha em condiccedilotildees de autossuficiecircncia e de isolamento poliacutetico e cultural A longa duraccedilatildeo que nela aparece espelhada quer na sua realizaccedilatildeo concreta quer nos seus percursos de memoacuteria encontra-se explicitamente articulada em referecircncias maiores que lhe servem de enquadra-mento Eacute aqui que nos deparamos com as referecircncias aos impeacuterios numa funccedilatildeo natural que consiste em ir proporcionando definiccedilotildees e enquadramentos por meio dos quais o tempo histoacuterico se vai configurando O tempo dos hebreus e a sua narrativa histoacuterica satildeo recortados pelas transformaccedilotildees sucessivas de enquadramento em que uma potecircncia estrangeira se situa como referecircncia seja porque se afirma com hegemonia indirecta seja porque se constitui segundo a foacutermula de um domiacutenio directo Eacute o figurino dos impeacuterios predominantes que podem na realidade ser qualitativamente diferentes em versotildees boas ou maacutes mas que produzem sempre efeitos de condicionamento histoacuterico anaacutelogos sobre a vida dos povos e sobre a sua identidade

Nesta perspectiva a potecircncia poliacutetica e civilizacional que desde mais cedo e em eacutepoca histoacuterica serve de referecircncia incontornaacutevel para a histoacuteria dos hebreus eacute o Egipto cuja presenccedila continuada se recorta no horizonte da

13 Por muito que ande associada a imagens de combate a apocaliacuteptica eacute uma maneira de se confrontar com as injusticcedilas da Histoacuteria de maneira quietista isto eacute fazendo delas um manifesto sonante como declaraccedilatildeo de princiacutepios mas sem se organizar para a guerra

14 Cf Speiser 1964 105-9 Astour 1992 21057

26

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

eacutepoca preacute-monaacuterquica e se projecta por sobre todo o tempo dos patriarcas Com periacuteodos de maior ou menor domiacutenio este eacute um impeacuterio que suscita medo e manteacutem uma ameaccedila constante de opressatildeo Por outro lado e no entanto o Egipto tambeacutem oferece expectativas garantidas de esperanccedila e de vida A sua imagem enquanto referecircncia hegemoacutenica eacute por conseguinte de ressonacircncia ambivalente como o satildeo em geral e por sua natureza todos os impeacuterios As fases e coloridos com que se apresenta a histoacuteria sociopoliacutetica do Egipto nas suas sucessivas repercussotildees internacionais todas elas se repercutem de imediato e de forma muito concreta em vicissitudes praacuteticas de todo o geacutenero para a histoacute-ria da Biacuteblia Apesar dos altos e baixos mais ou menos notoacuterios e significativos que vatildeo conhecendo os 3000 anos de histoacuteria oferecem maleabilidade suficiente para que o Egipto possa marcar a sua presenccedila de forma continuada Mesmo quando natildeo lhe cabe o papel principal manteacutem-se por perto como forccedila impe-rial de segunda referecircncia e de recurso Eacute com efeito sob a eacutegide do Egipto que a histoacuteria biacuteblica se inicia O impacte desta imagem imperial do Egipto paira por cima da literatura essencial dos hebreus concentrada no Pentateuco

Desde o seacuteculo X ateacute agrave segunda metade do seacuteculo VII a C os hebreus viveram sob a hegemonia internacional e sucessivamente sob o domiacutenio do impeacuterio assiacuterio Na sua vizinhanccedila outras entidades poliacuteticas concretas podem natildeo chegar a merecer a designaccedilatildeo de impeacuterio apesar de mostrarem conteuacutedos e comportamentos sociais e poliacuteticos de grande relevacircncia Poderiacuteamos considerar aqui o impacte poliacutetico dos filisteus e dos feniacutecios Com efeito estes apresentavam ressonacircncias agressivas de alteridade cultural e poliacutetica e assumiam motivaccedilotildees especiacuteficas de concorrecircncia mas natildeo eram potecircncias de marcaccedilatildeo hegemoacutenica duraacutevel nem de amplitude significativa A sua sombra apreende-se com algum impacte por sobre os livros de Juiacutezes Samuel e Reis mas a sua conotaccedilatildeo eacute mais de vizinhos incoacutemodos que de impeacuterios dominantes

A partir da segunda metade do seacuteculo VIII a Assiacuteria servindo-se de uma foacutermula de afirmaccedilatildeo poliacutetica da Mesopotacircmia em eacutepoca mais recente afirma-se poderosamente no palco internacional onde as duas monarquias do Israel daquela altura tinham de se movimentar Alguns aspectos desta dimensatildeo imperial assiacuteria tornaram-se bastante visiacuteveis no reino do Norte a Samaria mais que no reino do Sul o de Judaacute A conquista militar e o recurso a uma metodologia radical de erradicaccedilatildeo da personalidade poliacutetica nacional satildeo o modelo mais sofisticado da sua estrateacutegia de domiacutenio como potecircncia imperial15 Eacute habitual que a historiografia considere o aparecimento subsequente dos samaritanos como uma transformaccedilatildeo de uma poliacutetica imperial que gerou um facto sociocultural e poliacutetico perene e persistente ateacute aos dias de hoje16 No

15 Cf 2Rs 1716 2Rs 17 624-41

27

Joseacute Augusto Ramos

horizonte do livro dos Reis das Croacutenicas e de Isaiacuteas eacute marcante o efeito da hegemonia e do domiacutenio exercidos pelos assiacuterios mesmo sobre o reino do Sul o de Judaacute que apesar de asseacutedios e cercos natildeo chegaram a conquistar17 Sobre os reinos dos hebreus a sua hegemonia foi curta mas foi profunda em consequecircncias de molde a transformar-se em memoacuteria paradigmaacutetica de impeacuterio opressor que ficou longamente registada na cultura biacuteblica18

A potecircncia imperial que se seguiu foi o impeacuterio neobabiloacutenico Historica-mente a Babiloacutenia tinha jaacute conhecido fases de modelo imperial anteriores no horizonte da Mesopotacircmia Para o horizonte poliacutetico dos hebreus no entanto esta uacuteltima Babiloacutenia a de Nabucodonosor eacute aquela que verdadeiramente in-teressa pois marca profundamente a experiecircncia do reino de Judaacute e cola-se agrave memoacuteria histoacuterica subsequente dos judeus A sua poliacutetica condiciona definitiva-mente o futuro cultural deste povo contribuindo decisivamente para a proacutepria configuraccedilatildeo das suas memoacuterias e da sua identidade com que se define As vaacuterias imagens da Babiloacutenia de fases anteriores podem ser culturalmente matriciais mas natildeo satildeo politicamente hegemoacutenicas para os hebreus Natildeo tinham por isso justificado para eles o tiacutetulo de impeacuterios Esta uacuteltima fase poreacutem apesar de ter sido bastante raacutepida foi absolutamente radical e mereceu por isso a designaccedilatildeo de potecircncia imperial na sua acepccedilatildeo mais intensa Por isso algumas das per-sonagens desta eacutepoca aparecem projectadas para o horizonte das linguagens e coordenadas mais marcantes do discurso biacuteblico sobre os imperialismos A sua fisionomia de cidade-impeacuterio oferece a foacutermula e designaccedilatildeo metafoacuterica para a cidade-impeacuterio que aparenta dominar o mundo tal como se recorta no horizon-te do Apocalipse19 Eacute nos livros de Jeremias e Ezequiel que podemos encontrar em registo de cariz contemporacircneo e dramaacutetico as vaacuterias tonalidades com que se pinta o impeacuterio neobabiloacutenico20 A segunda parte do livro de Isaiacuteas espelha o que o impeacuterio neobabiloacutenico deixou de sofrimento mas sugere jaacute muito daquilo que ele estaacute a permitir como esperanccedila21

Sem deixar de ter uma especiacutefica proeminecircncia simboacutelica que conser-vou durante seacuteculos na cultura biacuteblica o impeacuterio babiloacutenico foi rapidamente substituiacutedo pela presenccedila do impeacuterio persa que assumiu toda a sua expansatildeo poliacutetica e territorial Uma sua primeira fase transitoacuteria eacute culturalmente carac-terizada como medo-persa tendo a fase de domiacutenio da Meacutedia sido rapidamente ultrapassada Este impeacuterio persa ou aquemeacutenida durou por mais de dois seacuteculos e representou uma modalidade mais burocraacutetica administrativa e civilizacional

17 2Rs 1813-37 2Cr 32 Is 36-3718 O livro de Judite um romance histoacuterico provavelmente escrito no seacuteculo II a C trata

o proacuteprio rei neobabiloacutenico Nabucodonosor como se fosse um imperador da Assiacuteria (Jd 11)19 Ap 171820 Jr 34 37-39 Ez 1-1121 Is 40ss

28

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

do que militar Em mateacuteria de relacionamento poliacutetico e cultural a sua menta-lidade era mais aberta e colaborante que a dos dois impeacuterios mesopotacircmicos anteriores

Para as gentes do Oriente o tempo dos Persas manteacutem um modelo impe-rial pouco marcado do ponto de vista militar e natildeo muito exigente do ponto de vista econoacutemico Se excluirmos as relaccedilotildees com o Egipto e com a Greacutecia este modo de relacionamento do impeacuterio persa foi particularmente tranquilo comparativamente a outras aacutereas poliacuteticas e culturais Por isso se justifica o roacutetulo de uma eacutepoca de paz dos Aquemeacutenidas No panorama do Oriente este caso eacute um bom contributo para um conceito positivo dos impeacuterios Este impeacuterio persa serve de pano de fundo para os livros de Ageu Zacarias Esdras Neemias e enquadra uma fase de grande produtividade literaacuteria para a memoacuteria biacuteblica Durante os seacuteculos que durou para os hebreus o impeacuterio persa constituiu o en-quadramento para uma longa experiecircncia da comunidade hebraica como uma realidade sobretudo identificada com um modelo cultural centrada na funccedilatildeo do sumo sacerdote de Jerusaleacutem

Na eacutepoca heleniacutestica e pela consciecircncia histoacuterica que se apercebe na lite-ratura biacuteblica a forma de impeacuterio que se pode descortinar em primeiro lugar eacute a do helenismo alexandrino Esta eacutepoca eacute de boa convivecircncia entre a cultura grega e a tradicional cultura biacuteblica a relaccedilatildeo eacute algo semelhante em termos de ecumenismo cultural ao que acontecera no tempo dos persas apesar de a mentalidade judaica nem sempre lhe retribuir com atitudes de igual simpatia Foi a era de helenismo otimista para os judeus

Depois dos primeiros cerca de cem anos mais sossegados e por isso com menos histoacuteria seguiu-se uma outra fase de helenismo que decorreu sob o domiacutenio poliacutetico dos selecircucidas de Antioquia Natildeo era muito vistoso mas foi particularmente incisivo no que diz respeito aos judeus Muito do que na Biacuteblia e no judeo-cristianismo foi ganhando forma ficou a dever-se ao periacuteodo de um seacuteculo e meio que medeia entre o tempo do helenismo dos selecircucidas e a en-trada em cena do uacuteltimo impeacuterio que afecta realmente a historiografia biacuteblica isto eacute o Impeacuterio Romano No acircmbito helenista temos grande convergecircncia do patrimoacutenio cultural biacuteblico com o mundo cultural de raiz grega expressa na traduccedilatildeo da Biacuteblia para o grego em Alexandria e em livros biacuteblicos como o de Daniel da Sabedoria os dois livros dos Macabeus e muitos outros O confronto com os impeacuterios gregos e romanos induz uma grande produtividade literaacuteria entre os hebreus onde se insere praticamente todo o Novo Testamento

Lucas autor dos textos de cariz mais claramente historiograacutefico para as origens do cristianismo assume o horizonte do impeacuterio romano com natura-lidade e algum entusiasmo como enquadramento histoacuterico para apresentar o

29

Joseacute Augusto Ramos

nascimento de Jesus22 Esta referecircncia de tonalidade aparentemente feliz parece destinada a evoluir com alguma satisfaccedilatildeo em direccedilatildeo ao ponto em que o cris-tianismo passaria a assumir os destinos antropoloacutegicos de todo o mundo repre-sentado pelo Impeacuterio Romano Esta feliz convergecircncia estava de algum modo preparada na assunccedilatildeo de importantes modalidades heleniacutesticas de cultura que fizeram do modelo de cristianismo que chegou ateacute noacutes um cristianismo de recep-ccedilatildeo grega Por isso o cristianismo parece assumir com naturalidade e consciecircncia o horizonte ecumeacutenico do impeacuterio romano como representando o acircmbito do humano universal Eacute esta a sensibilidade dos anos setenta do seacuteculo primeiro da nossa era que se espraia pela literatura lucana desde o Evangelho ateacute aos Atos dos Apoacutestolos Esta imagem unificada do mundo no horizonte de Roma poderia mais uma vez representar a versatildeo positiva da ideia de impeacuterio e um vislumbre de uma consciecircncia de globalizaccedilatildeo humanitaacuteria

Pelo contraacuterio eacute evidente que o livro do Apocalipse apenas vinte ou trinta anos depois das perspectivas positivas de Lucas sobre o impeacuterio romano estaacute jaacute bastante longe de pintar com as mesmas cores de agrado os sentimentos de desagrado que o impeacuterio romano provocava junto de muitos cristatildeos

Impeacuterios eventualmente omissos

Algumas fases da histoacuteria da Biacuteblia poderatildeo ter eventualmente ficado menos claras na memoacuteria que as vaacuterias geraccedilotildees retiveram e na historiografia que se foi fazendo Jaacute referimos que a memoacuteria histoacuterica da Biacuteblia eacute demasiado recente e natildeo teve amplidatildeo suficiente para poder conservar incidecircncias directas de impeacuterios de origem mesopotacircmica muito antiga A Mesopotacircmia e as regiotildees que lhe satildeo afins funcionam para o mundo biacuteblico muito mais como matriz do que como percurso compartilhado Os proacuteprios sumeacuterios tiveram momentos histoacutericos de teor imperial O impeacuterio acaacutedico tem significativas razotildees para justificar o papel pioneiro que lhe eacute reconhecido para a foacutermula dos impeacuterios E ateacute a cidade siacuteria de Ebla logo a seguir ao tempo de predomiacutenio acaacutedico se poderia gabar de um certo ascendente regional de caracteriacutesticas algo imperiais ainda no decurso do terceiro mileacutenio antes de Cristo

A mesma coisa se pode dizer da era histoacuterica de predomiacutenio regional que coube aos hititas que aconteceu numa eacutepoca em que estaria ainda muito em-brionaacuterio o processo de definiccedilatildeo eacutetnica e poliacutetica que conduziu agrave formaccedilatildeo do grupo dos hebreus Com efeito estes hebreus conservaram memoacuterias dispersas dos hititas que eles designam com o nome de heteus As referecircncias a este povo satildeo jaacute memoacuterias radicadas no interior da histoacuteria das tribos hebraicas E se os hititas ou heteus marcam presenccedila na memoacuteria dos hebreus eles natildeo chegaram

22 Lc 21-6 31-3

30

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

no entanto a tempo de se apresentar com a definiccedilatildeo clara de um impeacuterio com-pleto que impotildee regras poliacuteticas e define e limita condiccedilotildees de vida

A mesma coisa se deve dizer de nuacutecleos de hegemonia internacional que afectaram de forma significativa algumas regiotildees geograficamente vizinhas da Biacuteblia mas que ali natildeo chegaram a implantar marcas notoacuterias de poder imperial Eacute o caso dos hurritas que mais uma vez aparecem em referecircncias intersticiais desfocadas com o nome de horritas O seu nome perde-se entre a imensidatildeo de povos referenciados no passado biacuteblico-cananaico Eacute evidentemente raacutepida a histoacuteria daquilo que natildeo foi mas a hipoacutetese de existirem eacutepocas de impeacuterios que o exerciacutecio da memoacuteria histoacuterica deixou omissos eacute um elemento igualmente importante

A questatildeo do condicionamento da histoacuteria biacuteblica pela acccedilatildeo de entidades poliacuteticas externas acaba por coincidir com as relaccedilotildees poliacuteticas que se verificam em relaccedilatildeo a qualquer entidade estrangeira que num dado momento ou de for-ma permanente tenha interferecircncia no teor de vida da sociedade hebraica Pode entrar nesta perspectiva de algum modo o caso de todos os povos que ao longo da Biacuteblia foram sendo objecto de um pronunciamento ou de juiacutezo histoacuterico ex-presso sob a forma de oraacuteculos profeacuteticos23 Nestes oraacuteculos de condenaccedilatildeo poliacute-tica estaacute marcado aquilo que eacute diferente e que eacute inimigo Por isso esses oraacuteculos se apresentam sob a forma de uma ameaccedila um juiacutezo negativo e condenatoacuterio sobre as actividades poliacuteticas desses povos Estes exemplos podem ser considerados como uma imagem desmultiplicada de todas as conotaccedilotildees negativas com que se caracteriza a ideia de impeacuterio Com isto se apresentam personificados todos os casos do outro que enquanto poder eacute visto como um inimigo

Os impeacuterios de horizonte apocaliacuteptico

O olhar caracteriacutestico que a apocaliacuteptica desenvolveu a respeito da Histoacuteria levou a que nesse ambiente o conceito de impeacuterio se tivesse cristalizado na sua forma mais representativa em toda a amplitude do horizonte biacuteblico e mesmo para toda a duraccedilatildeo do mundo Na sua forma cumulativa e evolutiva a apo-caliacuteptica desenvolveu uma visatildeo articulada e integral da Histoacuteria que poderia dar particular significado ao papel desempenhado pelas potecircncias poliacuteticas em torno a elas se organiza e decorre a vida das sociedades ao longo do tempo Vaacuterios textos de sabor apocaliacuteptico na eacutepoca de ouro desta produccedilatildeo literaacuteria que foi a partir do seacuteculo II a C cultivaram assim uma visatildeo integral da Histoacuteria e deleitaram-se em a expor de forma pormenorizada de modo a dar

23 Eacute muito frequente nos profetas o aparecimento de oraacuteculos de julgamento relativamente ao comportamento poliacutetico das naccedilotildees e cidades estrangeiras para com o povo de Israel Veja-se por exemplo Is 14-24 3446-47 Jr 25-38 46-51 Ez 25-31 Jl 4 Am 1-2 Na 2-3 Sf 1-2 Cf Ramos 2013 34-35

31

Joseacute Augusto Ramos

evidecircncia persuasiva agrave sua argumentaccedilatildeo Um caso vistoso deste recurso eacute o do Apocalipse das Semanas integrado na literatura do ciclo de Henoc24 A partir do tempo daquele patriarca antediluviano a histoacuteria do mundo futuro apresenta-se dividida em dez semanas A semana que representa o tempo do autor e da escrita desta narrativa que deve ter acontecido por volta de 160 aC eacute contada como sendo a oitava e esta eacute classificada como sendo a do grande sofrimento O traacutegico da Histoacuteria estaacute no presente Seguir-se-aacute a semana do desfecho e da destruiccedilatildeo vindo toda a marcha da Histoacuteria a culminar na semana eterna de um novo ceacuteu e uma nova terra isto eacute a reposiccedilatildeo da ordem ideal desejada para as sociedades e para o mundo

Tornou-se entretanto claacutessica na tradiccedilatildeo apocaliacuteptica uma formulaccedilatildeo destes impeacuterios que se revela essencial para o modo como decorrem os vaacuterios periacuteodos da Histoacuteria O livro de Daniel25 fez desta sequecircncia o esquema integral do tempo e instituiu-o de tal modo que este passou a servir de foacutermula perene para o pensamento apocaliacuteptico Mais do que uma sensibilidade miacutetica demasia-do ampla da Histoacuteria esta literatura concentrava-se numa visatildeo historiograacutefica e historiomeacutetrica de maior proximidade que incidia directamente sobre o contexto poliacutetico e afectava a vida dos hebreus26 Na eacutepoca em que isto estava a acontecer estes hebreus podem claramente ser jaacute designados com o nome de judeus Os impeacuterios desta histoacuteria apocaliacuteptica ficaram sintetizados numa sequecircncia inten-sa sob a forma de cinco impeacuterios Com eles se pretendia apresentar um esquema capaz de sintetizar todas as aventuras da histoacuteria humana antes da sua chegada agrave meta ideal que seria a de uma ordem universal garantida Eacute o desejo assumido como meta incontornaacutevel

O Impeacuterio Babiloacutenico em virtude dos acontecimentos paradigmaacuteticos da destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do exiacutelio em 587586 foi e ficaraacute a ser a referecircncia modelar O Impeacuterio Meacutedio eacute contabilizado como o segundo apesar de a sua incidecircncia directa sobre a histoacuteria da Judeia ser bastante mais modesta O terceiro eacute o Impeacuterio Persa O quarto eacute o impeacuterio que ocupa o tempo presente da escrita situado por volta de meados do seacuteculo II a C O quinto impeacuterio cor-responde ao tempo sobre o qual se projecta a antevisatildeo miacutetica do futuro Pode-mos dizer que o primeiro dos cinco impeacuterios representa a definiccedilatildeo histoacuterica de impeacuterio enquanto potecircncia maligna o segundo e o terceiro satildeo referecircncias de continuidade para exprimir a longa e paciente realidade que eacute a experiecircncia histoacuterica o quarto eacute aquele de que se faz uma narrativa pormenorizada e dra-maacutetica uma vez que ali eacute que se situam os graves problemas humanos cultu-rais e poliacuteticos dignos de condenaccedilatildeo que constituem a experiecircncia poliacutetica e

24 Integrado entre os cc 91 e 93 do Livro de Henoc Cf Collins 2010 101-5 Diez Macho 1984 15ss

25 Cf Dn 239ss 71 719-25 8-1126 Collins 2010 151-63

32

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

cultural da insatisfaccedilatildeo Desta maneira o impeacuterio do presente fica sobrecarre-gado com toda a injusticcedila e dramatismo que os seus oprimidos experimentam O quinto representa a radical mudanccedila de horizonte e de tonalidade literaacuteria eacute o impeacuterio do futuro pois comporta toda a utopia e todos os ideais Eacute a utopia paradisiacuteaca em coordenadas e modalidades completamente opostas agraves da Histoacuteria Este horizonte de utopia vai-se mantendo afastado por exigecircncias do proacuteprio estatuto da utopia apesar de a intensidade das expectativas continuar a sugerir sempre grande aproximaccedilatildeo e requerer muita urgecircncia Eacute de facto o sentimento de urgecircncia que caracteriza este estado de espiacuterito A vontade de proceder a uma intensa revisatildeo da Histoacuteria eacute em si mesma um processo de aceleraccedilatildeo e de impaciecircncia

Poreacutem como a utopia vai tardando em tornar-se realidade a soluccedilatildeo para os prolongamentos diferenciados consiste em ir procedendo a novas e sucessi-vas identificaccedilotildees para o quarto impeacuterio que domina cada eacutepoca presente dos sucessivos sujeitos da consciecircncia histoacuterica Eacute assim que assistimos ao longo de seacuteculos de Histoacuteria a sucessivas identificaccedilotildees do quarto impeacuterio27 Este tem sido o espaccedilo onde sucessivos autores em seacuteculos diferentes se tecircm esforccedilado por fazer uma releitura e apresentar uma reconstruccedilatildeo do processo histoacuterico ao longo dos seacuteculos Na primeira visatildeo de Daniel este quarto e terriacutevel impeacuterio era o dos Gregos de Alexandre Magno corporizados principalmente pela dinastia dos Selecircucidas Pouco depois jaacute em plena eacutepoca do Novo Testamento o quarto impeacuterio passou a ser identificado com o impeacuterio dos romanos Com o passar longo dos seacuteculos o proacuteprio cristianismo e ateacute o islamismo acabaram por ser considerados de algum modo herdeiros poliacuteticos do impeacuterio romano passaram desta maneira a ser igualmente considerados como sucedacircneos do quarto impeacute-rio No final da Idade Meacutedia pensadores judaicos como Abravanel mantinham--se ainda estritamente fieacuteis ao uso desta coordenada28

Mais uma vez identificada como quarto impeacuterio eacute ainda a fase em que se encontra a histoacuteria do mundo que no seacuteculo XVII o Padre Antoacutenio Vieira con-siderava ser a do seu tempo Por muito que o laquofilho de homemraquo que segundo Daniel29 recebe o poder correspondente ao quinto impeacuterio seja identificado com Cristo na hermenecircutica teoloacutegica do cristianismo as discussotildees de Vieira vatildeo inteiramente no sentido de perceber em que moldes se faraacute a transiccedilatildeo do estado de ainda quarto impeacuterio para o finalmente quinto impeacuterio30 Por essas alturas andava ele a sonhar com a ideia da transiccedilatildeo definitiva do quarto para o quinto impeacuterio e natildeo se cansava de elaborar foacutermulas precisas e modelos concretos para

27 Cf Asurmendi 2000 507-10 Ramos 2013 35-37 28 Cf Netanyahu 2012 261-6629 Dn 713-1430 Eacute agrave tarefa de definir as subtilezas desta transiccedilatildeo que Vieira consagra os longos tratados

que satildeo a Histoacuteria do Futuro e a Clavis Prophetarum

33

Joseacute Augusto Ramos

planear e preanunciar o quinto impeacuterio onde ele com a mesma intensidade e urgecircncia de sempre colocava o mundo novo do futuro

Os plurais e o singular

Em suma a categoria histoacuterica dos impeacuterios transformou-se numa foacutermula privilegiada para processar a mitologia do tempo Por meio deste conceito se concentram a alteridade e a tensatildeo com que se identifica a pluralidade das na-ccedilotildees Nesta linguagem em que se espelham os conflitos da convivecircncia histoacuterica encontra-se expressa uma versatildeo da alteridade que intensifica as dimensotildees da agressividade Eacute a pluralidade com as suas ressonacircncias negativas Os outros na medida em que constituem uma ameaccedila satildeo realmente assim multitudinaacuterios e confusos degenerados inimigos e opressivos Natildeo obstante isso existe tambeacutem a pluralidade com uma ressonacircncia positiva podendo mesmo ser levada ateacute ao ponto de utopia Eacute o conviacutevio plural e ateacute mesmo universal das naccedilotildees retratado com as conotaccedilotildees de conviacutevio que satildeo caracteriacutesticas da utopia

Deus faz parte de ambos os horizontes de utopia em que se exprime e se estrutura a Histoacuteria do mundo com horizontes de negativo e de positivo Ele eacute a utopia requerida pela necessidade de exigir a justiccedila e de restabelecer a ordem seguramente mais do que as mecacircnicas elaboradas para explicar a origem do mundo Deus estaacute no processamento e no desenvolvimento da Histoacuteria e do mundo mais que na procedecircncia ou origem do universo Os mitos de origem que sublinham a intervenccedilatildeo divina constituem na verdade verdadeiros tratados sobre a essecircncia das coisas e sobre o seu desenvolvimento histoacuterico

Por isso resulta biblicamente natural detectar-se alguma dialeacutectica entre a teologia e os impeacuterios como foacutermulas equivalentes aos vaacuterios estados de or-ganizaccedilatildeo da Histoacuteria Com efeito os impeacuterios satildeo coisas proacuteprias da Histoacuteria de Deus eacute o Reino Em mateacuteria de semacircntica fundamental Deus e a Histoacuteria assentam sobre os mesmos princiacutepios e partilham uma boa parte dos respecti-vos significados Eacute por isso que na Biacuteblia bem como nas culturas preacute-claacutessicas se fala sempre univocamente em reino tanto para a realeza divina utoacutepica como para as realezas histoacutericas A teologia poliacutetica da Mesopotacircmia articulava de forma tranquila e otimista a dimensatildeo divina e a realidade humana da reale-za31 Os dois campos semacircnticos que tambeacutem ali se podem claramente detectar encerram de qualquer modo uma dose de dialeacutectica que o proacuteprio conceito de realeza oriental e muito particularmente o da realeza biacuteblica partilhavam32

O choque ocorre entre o excesso das praacuteticas e do simbolismo imperial por parte das realezas humanas com incidecircncias restritivas nos direitos e na digni-dade dos suacutebditos humanos e o caraacutecter utoacutepico e inalienaacutevel em que assenta

31 Cf A famosa lista dos reis sumeacuterios em Kranmer 1977 361-6332 Cf Ramos 2005 14-18

34

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

a antropologia individual e social no acircmbito do Reino de Deus Eacute o caraacutecter absoluto da praacutetica poliacutetica como um excesso (hybris) de absolutismo em con-fronto com conotaccedilotildees incontornaacuteveis absoluto e dignidade que satildeo apanaacutegio e direito inalienaacutevel dos humanos Numa fronteira deste teor os conflitos satildeo frequentes e radicais Tanto mais que chega a ter-se a impressatildeo de existir uma incompatibilidade total e incontornaacutevel entre estas duas margens Precocemente na Biacuteblia esta sensibilidade chegou a levantar duacutevidas de se seria correto assu-mir a realeza como forma de governo apesar de ser uma foacutermula consagrada pela experiecircncia histoacuterica dos povos orientais As ressonacircncias absolutas que o conceito de monarquia concita pareciam contradizer a ideia de que tais valores absolutos soacute estariam representados de forma coerente pela realeza de Deus33 No final do seacuteculo XV o judeu lisboeta Isaac Abravanel tambeacutem considerava mais certa uma lideranccedila profeacutetico-carismaacutetica para um hipoteacutetico governo do povo dos hebreus de preferecircncia agrave monarquia34

Entretanto continuou a verificar-se claramente uma preferecircncia biacuteblico-cristatilde pela nomenclatura de rei e de reino aplicando a Deus e a Cristo o tiacutetulo de rei mais do que o de imperador Mesmo assim houve eacutepocas em que a soberania real de Cristo se acomodou igualmente bem ao conceito de impeacuterio tanto em linguagem grega (autokraacutetor pantokraacutetor) como latina O hino do estado-cidade do Vaticano continua a repetir o refratildeo Christus vincit Christus regnat Christus imperat No horizonte hermenecircutico do cristianismo e de acordo com a visatildeo hermenecircutica do Padre Antoacutenio Vieira o quinto impeacuterio identificava-se inteira-mente com o plano cristoloacutegico decorrendo uma natural cumplicidade para com o destino de Portugal e para com a funccedilatildeo do seu rei

33 Cf 1Sm 81-1834 Cf Ramos 2007 382-83

35

Joseacute Augusto Ramos

Bibliografia

Astour M A 1992 ldquoGoiimrdquo In The Anchor Bible Dictionary Vol 2 ed D N Friedman 1057 New York Doubleday

Asurmendi J M 2000 ldquoDaniel y la apocaliacutetpicardquo In Historia narrativa apocaliacuteptica ed A Gonzaacutelez Lamadrid 507-10 Estella Editorial Verbo Divino

Collins John J 2010 A imaginaccedilatildeo apocaliacuteptica Satildeo Paulo Paulus EditoraDiez Macho A Apocrifos del Antiguo Testamento Tomo 4 Madrid Ediciones

CristiandadFriedman D N ed 1992 The Anchor Bible Dictionary New York DoubledayJones D L 1992 ldquoRoman imperial cultrdquo In The Anchor Bible Dictionary Vol 5

ed D N Friedman 806-9 New York DoubledayKramer S N 1977 Os Sumeacuterios Lisboa Livraria BertrandMachinist P 1992 ldquoNimerodrdquo In Anchor Bible Dictionary Vol 4 ed D N

Friedman 1116-118 New York DoubledayNetanyahu B 2012 Dom Isaac Abravanel estadista e filoacutesofo Coimbra Ediccedilotildees

TenacitasRamos J A 2013 ldquoOraacuteculos biacuteblicos de fim projectados por sobre o fim de

Romardquo In A queda de Roma e o alvorecer da Europa ed Francisco de Oliveira Joseacute Luiacutes Brandatildeo Vasco Gil Mantas e Rosa Sanz Serrano 34-35 Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra

mdashmdashmdash 2007 ldquoDefinir o Messias segundo Abravanelrdquo In Rumos e escrita da Histoacuteria coord Maria de Faacutetima Reis 382-83 Lisboa Ediccedilotildees Colibri

mdashmdashmdash 2005 ldquoRei e Messias imagens contrapostas imagens sobrepostasrdquo In Turres Veteras VII Histoacuteria das figuras do poder 14-18 Torres Vedras Cacircmara Municipal de Torres Vedras

Speiser E A 1964 Genesis Garden City NY Anchor Bible

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

37

Joseacute das Candeias Sales

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo1

(Empires in the History of Ancient Egypt on conceptual validity of laquoImpeacuterioraquo)

Joseacute das Candeias Sales(JoseSalesuabpt ORCID 0000-0003-1087-1478)

Universidade Aberta Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de Histoacuteria

Resumo - No seio da Egiptologia cientiacutefica portuguesa convencionou-se uma divi-satildeo da histoacuteria da civilizaccedilatildeo faraoacutenica em trecircs periacuteodos principais designados por laquoImpeacuterioraquo isto eacute trecircs eacutepocas de grande estabilidade poliacutetica e apogeu civilizacional o Impeacuterio Antigo o Impeacuterio Meacutedio e o Impeacuterio Novo Seraacute todavia adequada a aplicaccedilatildeo do conceito de laquoimpeacuterioraquo para estas eacutepocas da histoacuteria egiacutepcia No contexto lusoacutefono este conceito eacute o que melhor exprime representa e discrimina o sentido do que se pretende qualificar Eacute este o termo que se adequa com maior clareza e propriedade ao que pretendemos significar Eacute essencialmente em torno da procura de resposta a estas questotildees que se desenvolve o presente texto A nossa reflexatildeo organiza-se em torno das caracteriacutesticas essenciais e definidoras da classificaccedilatildeo e do conceito de laquoimpeacuterioraquo e da laquovalidaderaquo da sua aplicaccedilatildeo ao caso da antiga histoacuteria egiacutepcia

Palavras-chave Divisatildeo cronoloacutegica impeacuterio reino territoacuterio Estado administraccedilatildeo

Abstract ndash In the scope of the Portuguese scientific Egyptology it has been conventionally accepted the division of the history of the pharaonic civilization in three main periods designated as laquoEmpiresraquo ie three eras of great political stability and civilizational apex the Impeacuterio Antigo the Impeacuterio Meacutedio and the Impeacuterio Novo We could nevertheless ask ourselves if the application of the concept laquoEmpireraquo is adequate for these periods of the Egyptian history Is this the concept that within the lusophone context best expresses and discriminates the sense of what we intend to qualify Is this the term that conveys the most clarity and accuracy to the idea we pretend to express The present essay revolves essentially around the search for an answer to these questions Our reflection is organized around the essential characteristics of the concept of laquoEmpireraquo and the laquovalidityraquo of its use in the case of the ancient Egyptian history

Keywords Chronological division empire kingdom territory State administration

Tendo principalmente como referente a atuaccedilatildeo da instituiccedilatildeo real conven-cionou-se no seio da Egiptologia cientiacutefica portuguesa uma divisatildeo instrumental

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_2

38

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

da histoacuteria da civilizaccedilatildeo faraoacutenica com um ou outro ajuste de pormenor em trecircs periacuteodos principais designados por laquoImpeacuteriosraquo isto eacute trecircs eacutepocas de gran-de estabilidade poliacutetica esplendor cultural e apogeu civilizacional (o Impeacuterio Antigo o Impeacuterio Meacutedio e o Impeacuterio Novo) correspondentes aos momentos prestigiosos ideais da histoacuteria intercalados por trecircs outros periacuteodos obscuros de decadecircncia e esfacelamento das instituiccedilotildees poliacuteticas sociais econoacutemicas e culturais os laquoPeriacuteodos Intermediaacuteriosraquo (o Primeiro o Segundo e o Terceiro) como que excluiacutedos do plano ideal da sucessatildeo histoacuterica Precedendo o Impeacuterio Antigo reconhece-se um laquoPeriacuteodo Arcaicoraquo tambeacutem chamado laquoEacutepoca Tinitaraquo Ao Terceiro Periacuteodo Intermediaacuterio segue-se a laquoEacutepoca Baixaraquo e por fim a laquoEacutepoca Greco-Romanaraquo completando assim um quadro cronoloacutegico de mais de 3000 anos (c 3100 aC a 395 dC)

Tendo em mente estas laquoalternacircnciasraquo ou laquoflutuaccedilotildeesraquo do poder poliacutetico egiacutepcio antigo independentemente das fontes disponiacuteveis para o nosso conhe-cimento do passado egiacutepcio e da operacionalidade da organizaccedilatildeo dinaacutestica transmitida por Maneton e usada pelos egiptoacutelogos modernos seraacute todavia adequada a aplicaccedilatildeo empiacuterica do conceito de laquoimpeacuterioraquo agraves eacutepocas consideradas gloriosas e memoraacuteveis da histoacuteria egiacutepcia No contexto lusoacutefono este conceito eacute realmente o que melhor exprime representa e discrimina o sentido do que se pretende qualificar Eacute este o termo que se adequa com maior clareza e proprie-dade ao que pretendemos significar Eacute essencialmente em torno da procura de respostas a estas questotildees que nos propomos desenvolver o presente texto Nou-tras palavras a nossa reflexatildeo organiza-se em torno dos caracteres essenciais definidores da classificaccedilatildeo e do conceito de laquoimpeacuterioraquo e da laquovalidaderaquo da sua aplicaccedilatildeo ao caso das divisotildees cronoloacutegicas egiacutepcias

1 O conceito de laquoimpeacuterioraquo - componentes analiacuteticas

Antes de se avanccedilar com qualquer tentativa de definiccedilatildeo conceptual eacute ne-cessaacuterio tomar consciecircncia de duas dificuldades consideraacuteveis inerentes a essa tentativa e que a podem frustrar a primeira que nem sempre o uso da designa-ccedilatildeo laquoimpeacuterioraquo recobre e define com o mesmo sentido e significado determina-das configuraccedilotildees poliacutetico-culturais do passado o que significa que eacute no fundo impossiacutevel estabelecer um conceito universalmente vaacutelido aplicado a todos os casos histoacutericos de todas as eacutepocas e lugares haacute sempre portanto um desfasa-mento entre a teorizaccedilatildeo e a anaacutelise particular A segunda derivada da primeira que haacute uma importante ambiguidade e flutuaccedilatildeo terminoloacutegica quando se usa o termo laquoimpeacuterioraquo que natildeo raro desenvolve ideias preconcebidas e cerceia a proacutepria anaacutelise e reflexatildeo comparativa ou especiacutefica No contexto lusoacutefono por exemplo este aspeto eacute significativo porque historicamente o pequeno laquoreinoraquo de Portugal esteve na base de um extenso e duradouro laquoimpeacuterio portuguecircsraquo com toda a deformaccedilatildeo conceptual e interpretativa que tal situaccedilatildeo pode provocar na

39

Joseacute das Candeias Sales

anaacutelise e perceccedilatildeo do fenoacutemeno quando aplicado a outras cronologias e geogra-fias Natildeo sendo o conceito neutro como natildeo satildeo outros (exs laquocidade-estadoraquo laquomonarquiaraquo laquoditaduraraquo laquotiraniaraquo laquodemocracia pluralistaraquo etc) os distintos elementos que para ele concorrem e que nele se conjugam de forma mais ou menos singular dificultam a sua utilidade e ateacute a sua definiccedilatildeo

Muitas vezes o uso do termo e conceito resulta de laquoassociaccedilotildees histoacutericasraquo estabelecidas por analogia ou por oposiccedilatildeo expliacutecita ou impliacutecita seja com o modelo claacutessico e estruturante de Roma (laquoEstado governado por um impera-dorraquo) seja com outros laquoimpeacuteriosraquo de outras localizaccedilotildees espaciais e temporais2 A aparente unicidade do vocaacutebulo pode pois e frequentemente faacute-lo dissimular a diversidade de sistemas poliacuteticos que recobre

Isto eacute particularmente relevante no que se refere agrave aplicaccedilatildeo ao Egito antigo pois os eruditos prussianos do seacuteculo XIX que o fizeram refletindo sobre os fundamentos do poder poliacutetico e da histoacuteria exprimiam de uma maneira mais ou menos assumida a nostalgia do I Reich Altes Reich Mittleres Reich e Neues Reich3 Na segunda metade do seacuteculo XIX a criacutetica aos trabalhos alematildees no-meadamente de autores franceses manteve e fixou poreacutem a terminologia com os termos Ancien Empire Moyenne Empire e Nouvel Empire usados e reproduzi-dos por exemplo pela historiografia portuguesa Saliente-se contudo que nunca os antigos Egiacutepcios ndash que organizaram e teorizaram sobre o seu proacuteprio lugar no universo ndash usaram um termo que significasse laquoImpeacuterioraquo ou laquoimperialismoraquo em-bora esse aspeto derive em parte do facto de eles muitas vezes natildeo necessitarem de denominar certas abstraccedilotildees de territorialidade4

Assim conscientes de que embora natildeo seja possiacutevel estabelecer um conceito de laquoimpeacuterioraquo clara e universalmente vaacutelido para abranger todos os exemplos histoacutericos conhecidos eacute possiacutevel poreacutem determinar os caracteres operatoacuterios do conceito mdash a sua laquodireccedilatildeo geralraquo digamos assim mdash que nos podem guiar tambeacutem na avaliaccedilatildeo da sua adequabilidade aos casos do Egito antigo

O campo conceptual de laquoimpeacuterioraquo afirma-se em parte por oposiccedilatildeo ao de laquoreinoraquo e eacute por isso mais ou menos consensual desde o seacuteculo XVIII que a

2 A estrutura desenvolvida pelo Impeacuterio Romano instituiu-se como um laquomodelo cognitivoraquo servindo de referecircncia para a anaacutelise de muitas das construccedilotildees ideoloacutegicas imperiais atraveacutes da Histoacuteria

3 Cf Duverger 1980 6 Vernus 2011 164 Cf Kemp 1978 7 Vernus 2011 20-38 Galaacuten 1995 4 Talvez o termo mais proacuteximo da ideia

de laquoimperialismoraquo seja swsx tASw isto eacute laquoampliar as fronteirasraquo um dos imperativos da funccedilatildeo faraoacutenica no sentido em que expressa o conceito de autoridade ou de influecircncia do faraoacute sobre os povos vizinhos (Cf Ibid 4 101-3 Vernus 2011 26) De igual modo a expressatildeo in Dw laquoadquirir fronteiras tomar as fronteiras dos inimigosraquo tanto no sentido geo-poliacutetico como econoacutemico pode tambeacutem apresentar o mesmo recorte conceptual (Cf Galaacuten 1995 102 103 128-32) No entanto a ausecircncia de termo concreto especiacutefico particular para denominar laquoimpeacuterioraquo ou laquoimperialismoraquo significa que os antigos Egiacutepcios natildeo sentiam necessidade de se referir a estes fenoacutemenos ou processos de forma independente abstrata ou individualizada (Cf Kemp 1978 7)

40

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

definiccedilatildeo se pode efetuar como laquoum Estado vasto governado por um soacute titular e composto por vaacuterios povosraquo5 Esta definiccedilatildeo encerra em si mesma trecircs compo-nentes que em termos analiacuteticos podemos dividir em

1 O impeacuterio eacute politicamente associado agrave monarquia trata-se de um sistema poliacutetico onde o poder supremo eacute assumido por um soacute titular (rei e imperador) designado hereditariamente e apresentando um caraacutecter sagrado ou sacralizado

Natildeo obstante esta laquounidaderaquo teoacuterica de base eacute possiacutevel constatar na Anti-guidade vaacuterias modalidades histoacutericas em que o titular pode ser encarado como i) deus incarnado ii) simples mandataacuterio da(s) divindade(s) ou iii) servidor da(s) divindade(s)

Tomando exclusivamente em linha de conta esta decomposiccedilatildeo compo-nente da definiccedilatildeo eacute difiacutecil distinguir laquoreinoraquo e laquoimpeacuterioraquo ou distinguem-se mal um do outro uma vez que quer o rei quer o imperador podem assumir e desempenhar e muitas vezes o fizeram cocircnscios da sua importacircncia a funccedilatildeo sacerdotal

2 O impeacuterio tem como criteacuterio fundamental a extensatildeo territorial Quer dizer natildeo podendo a distinccedilatildeo entre laquoimpeacuterioraquo e laquoreinoraquo ser efetuado a partir das relaccedilotildees existentes entre o soberano e a(s) divindade(s) eacute a natureza do es-paccedilo sobre o qual se exerce a soberania que possibilita o estabelecimento de uma fronteira de delimitaccedilatildeo conceptual

No entanto o criteacuterio eacute vago eacute impossiacutevel ser-se completamente exato e preciso no que agrave territorialidade diz respeito um laquoimpeacuterioraquo eacute um grande reino e um laquoreinoraquo eacute um impeacuterio mais exiacuteguo mas qual eacute o limite exato para efetuar a distinccedilatildeo A partir de que superfiacutecie um territoacuterio deve ser considerado su-ficientemente extenso para tornar pertinente o uso do termo laquoimpeacuterioraquo Dito de outra forma embora seja um criteacuterio fundamental o criteacuterio da vastidatildeo espaacutecio-territorial do poder natildeo eacute suficiente para definir laquoimpeacuterioraquo

3 O impeacuterio implica a existecircncia de uma pluralidade de povos tendo pre-sente que a unidade populacional e linguiacutestica caracteriza em regra o laquoreinoraquo Este elemento deriva e relaciona-se com a vastidatildeo territorial dos impeacuterios aci-ma enunciado A distacircncia fiacutesica real do espaccedilo territorial pressupotildee a inevitaacutevel diversidade cultural a necessaacuteria deslocaccedilatildeo de homens e mercadorias (atraveacutes de estradas canais navegaacuteveis vias de comunicaccedilatildeo abundantes e diversificadas pistas no deserto e na montanha etc) a criativa difusatildeo de ideias e a obrigatoacuteria superaccedilatildeo dos obstaacuteculos fiacutesico-naturais (rios montanhas desertos cataratas oceanoshellip) que por sua vez exigem uma racional organizaccedilatildeo do espaccedilo com uma delimitaccedilatildeo de fronteiras e uma demarcaccedilatildeo de limites mais ou menos

5 Duverger 1980 8 Esta definiccedilatildeo esboccedila-se em oposiccedilatildeo agrave de laquoreinoraquo em norma concebido como um espaccedilo territorial menos extenso e assente numa unidade da naccedilatildeo sobre a qual se forma (Cf Ibid 8)

41

Joseacute das Candeias Sales

fixos agraves matildeos de um Estado centralizado e autoritaacuterio a uma escala macro laquomundialraquo em contraste com a que subjaz agrave loacutegica mais micro mais regional mais local de um laquoreinoraquo

Por natureza os impeacuterios satildeo plurinacionais reunindo vaacuterias etnias comu-nidades e culturas com diferentes graus de integraccedilatildeo ou coexistecircncia podendo a sua laquounidaderaquo assumir vaacuterias modalidades a) sobreposiccedilatildeo do poder imperial a outras autoridades anteriores (locais reais imperiaishellip) com completa ru-tura com os quadros locais e sua substituiccedilatildeo pelos representantes-delegados do poder central (vice-reis governadores saacutetrapas legados prefeitos etc) b) uniatildeo pessoal de vaacuterias diversidades na figura do mesmo soberano que pelos seus siacutembolos e accedilatildeo laquounificaraquo os haacutebitos e costumes crenccedilas e cultos tradiccedilotildees e particularidades

Teoricamente a manutenccedilatildeo de um impeacuterio com todas as suas contradiccedilotildees e conflitos internos exige que a unidade alcanccedilada natildeo importa o meacutetodo usa-do confira algumas vantagens ou privileacutegios aos povos-comunidades-culturas nele englobados Este eacute talvez o desiderato mais difiacutecil de alcanccedilar e de manter o desequiliacutebrio do sistema ocorre quando as comunidades-culturas natildeo tecircm consciecircncia dos seus ganhos (materiais e ou simboacutelicos) com a pertenccedila e per-manecircncia no todo imperial e por isso preferem atraveacutes de revoltas rebeliotildees ou revoluccedilotildees de feiccedilatildeo beacutelica frequentemente sangrenta furtar-se ao controlo central na procura de satisfazer as suas pulsotildees de autonomia e autodetermi-naccedilatildeo Hegemonia imperial e espiacuterito nacionalista satildeo incompatiacuteveis

Daiacute que a organizaccedilatildeo imperial obrigue quase sempre a uma pressatildeo e coerccedilatildeo administrativo-burocraacutetica e militar forte6 hierarquizada e bem oleada para garantir a perceccedilatildeo regular dos tributos e impostos o controlo das eventuais tendecircncias separatistas ou de desordem puacuteblica a funccedilatildeo ordenada dos domiacutenios juriacutedico e judiciaacuterio numa palavra o regular funcionando das instituiccedilotildees e do sistema imperial Como escreve G Woolf

laquoEmpires are political systems based on the actual or threatened use of force to extract surpluses from their subjectshellip Preindustrial empires could not support large governmental institutions and so secured their power by promoting a community of interest among eacutelites within the empire and a sense of imperial membership based on participation in ruler worship and adherence to imperial cultural and symbolic systems Economically however empires were first and foremost tributary structures and much of the limited energy at their disposal was devoted to ensuring adequate supplies of cash labour and agricultural produce from the areas under their controlraquo7

6 Necessaacuterios para estabelecer os impeacuterios os exeacutercitos satildeo-no tambeacutem para os conservar (Cf Ibid 20)

7 Woolf 1992 28

42

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

Dito de outra forma na linguagem de Maurice Duverger

laquoLe concept drsquoempire implique agrave la fois une stabiliteacute qui deacutepasse le cadre drsquoune occupation et le remplacement des liens personnels par un systegraveme de bureaucratie non heacutereacuteditaire nommeacutee et reacutevoqueacutee par le souverainraquo8

2 O caso histoacuterico do antigo Egito a sacralidade do faraoacute ndash tiacutetulos e epiacutetetos

Quando procuramos aplicar este esquema tripartido ao caso histoacuterico do antigo Egito deparamo-nos com algumas interessantes constataccedilotildees Desde logo a inequiacutevoca conclusatildeo que a tipologia de poder nos coloca perante uma personagem humana que centraliza em si todas as vertentes do poder O per aa literalmente laquoA Grande Casaraquo ou seja originariamente a designaccedilatildeo do palaacute-cio real (estrutura fiacutesica) daquele que o habitava (entidade fiacutesica concreta) e do Estado que dirige (entidade abstrata) eacute desde o iniacutecio da histoacuteria civilizacional egiacutepcia o exemplo claacutessico de um deus incarnado como rei

Esta ideia de um deus tangiacutevel correspondia agrave necessidade de uma imagem muito concreta real fiacutesica que estabelecesse e assumisse o papel de inter-mediaacuterio e interlocutor entre os deuses e os homens O faraoacute eacute com efeito simultaneamente um deus e um rei humano estando as dimensotildees divina e humana inextricavelmente misturadas na sua personalidade Como cabeccedila do Estado competia-lhe zelar pela ordem e justiccedila Como laquosenhor do cumprimento dos ritosraquo era o garante e promotor da liturgia da piedade e da religiosidade Tudo na esfera poliacutetica social e econoacutemica tinha na realeza (nesit) no Faraoacute (nesut) o seu guardiatildeo privilegiado

Na feliz expressatildeo de Erik Hornung o faraoacute era laquoum homem desempe-nhando o papel de um deusraquo9 ou como diz Pascal Vernus laquolaquola diviniteacute peut se reacuteveacuteler agrave travers luiraquo10 Dito de outra forma o rei era um ser humano sendo que o que era divino e lhe transmitia a sacralidade era o ofiacutecio da realeza A realeza eacute que era divina sendo o faraoacute uma imagem do divino capaz de se tornar pela sua correta atuaccedilatildeo na sua manifestaccedilatildeo A manutenccedilatildeo das rela-ccedilotildees harmoniosas entre a esfera da sociedade humana e a dos poderes sobre-naturais e divinos a tarefa de provisatildeo dos principais meios de subsistecircncia e seu normal funcionamento eram conferidas ao faraoacute dependiam dele como homem e como deidade incarnada11 O faraoacute era o elemento imprescindiacutevel da identidade egiacutepcia laquole roi repreacutesente le meacutedium ideacuteologique gracircce auquel la

8 Duverger 1980 139 Hornung 1992 35710 Vernus 1986 3011 Cf Sales 2001 365

43

Joseacute das Candeias Sales

civilisation eacutegyptienne a maintenu contre tous les aleacuteas son identiteacute pendant plus de trois milleacutenairesraquo12

O direito e a legitimidade do monarca estavam teoricamente fundados na sua natureza divina transmitida pelo sangue Segundo a doutrina egiacutepcia a monarquia fora criada e exercida inicialmente no comeccedilo dos tempos pelos deuses que reinavam na terra sendo depois confiada aos homens13 A heredita-riedade da instituiccedilatildeo real fundava-se no mito da escolha pelo deus solar cada sucessor do faraoacute reinante era laquoescolhidoraquo pelo demiurgo que nele perscrutara e vira laquodesde o ovoraquo as suas qualidades Em regra esta laquoescolharaquo obedecia ao princiacutepio da primogenitura masculina14

As listas reais comeccedilavam com os deuses Reacute Chu Geb e Osiacuteris que nos Primeiros Tempos haviam reinado na terra antes de se retirarem para os ceacuteus continuando com Hoacuterus o herdeiro do trono de Osiacuteris o uacuteltimo dos grandes deuses a governar na terra e de quem todos os faraoacutes histoacutericos descendiam15 A transmissatildeo da funccedilatildeo real pertenceria ao filho do faraoacute reinante e da sua esposa oficial embora por vaacuterios exemplos histoacutericos conhecidos sem a forccedila de uma lei incontestaacutevel ou incontestada16 A legitimaccedilatildeo do poder real tinha na proclamada divindade e filiaccedilatildeo divina do faraoacute uma sanccedilatildeo suplementar A origem divina do poder explica o princiacutepio do governo de um soacute a monarquia e a modalidade de transmissatildeo a feiccedilatildeo hereditaacuteria da mesma suportada pelo proacuteprio exemplo das divindades17

O faraoacute era por isso encarado como o laquoHoacuterus viventeraquo reincarnaccedilatildeo desse primeiro rei miacutetico confundindo-se em si as duas dimensotildees humana e divina O faraoacute era Hoacuterus e vice-versa No iniacutecio da eacutepoca histoacuterica a identificaccedilatildeo era jaacute total A divindade do rei era afirmada em funccedilatildeo da sua descendecircncia de Hoacuterus O tiacutetulo de Hor (laquoHoacuterusraquo) que disso guarda memoacuteria eacute mesmo o seu

12 Vernus 1986 32 Como diz Leclant laquoLa personnaliteacute de Pharaon est consubstantielle agrave lrsquoexistence de lrsquoEacutegypteraquo (Leclant 1980 50)

13 Cf Vernus 1986 2914 Cf Ibid 32-3315 Cf Ryholt 2004 138-916 Agrave falta de herdeiro masculino da esposa real ou seja de conflito na primogenitura

masculina a funccedilatildeo real foi passada a irmatildeos uterinos do faraoacute ou mesmo a princesas quais depositaacuterias do poder a transmitir aos seus esposos Neste uacuteltimo caso satildeo arrolaacuteveis e apenas para citar os casos mais conhecidos I) Merneit (ou Meritneit) no Periacuteodo Tinita c 2950 aC II) Neitikeret (em grego Nitocris) no final da VI dinastia (c 2184-2181 aC) III) Sebekkareacute Sebekneferu no final da XII Dinastia (1785-1782 aC) IV) Hatchepsut na XVIII Dinastia (1498-1483 aC) V) Tauseret na XIX dinastia (c 1192-c 1190 aC) e VI) Cleoacutepatra VII Filopator a uacuteltima descendente da dinastia laacutegida (51-30 aC) - Rice 2002 114 136 140 196-97 210 211 Clayton 1995 22-23 67 89 158-59 Desroches-Noblecourt 1986 201 Vernus Yoyotte 1988 94 153 154 Tyldesley 2006 33-34 63 74-75 78 84 86 98 163-66 212-15 245-47 Grimal 1998 62-63 107 249 331-33 Ratieacute 1979 26 64 214 e 314 Valbelle 1992 80 81 1998 216

17 Cf Hornung 1992 353-54

44

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

tiacutetulo mais antigo (desde as primeiras dinastias da Eacutepoca Tinita ndash reinado de Den) e foi usado ateacute agrave Eacutepoca Romana18

Aleacutem do tiacutetulo Hor muitos outros tiacutetulos e epiacutetetos usados pelo faraonato egiacutepcio pretendiam enfatizar a profunda sacralidade intriacutenseca ou adquirida do titular do poder casos de Sa Reacute laquofilho de Reacuteraquo (que antecedia a cartela com o nome do faraoacute) meri Amon ou merimen laquoamado de Amonraquo merireacute ou merenreacute laquoamado de Reacuteraquo meriptah laquoamado de Ptahraquo merihathor laquoamado de Hathorraquo ou um englobante e altissonante meri-netjeru laquoamado dos deusesraquo Comum eacute igualmente como referimos a partir do Impeacuterio Meacutedio a atribuiccedilatildeo da realeza agrave laquoescolharaquo (setep en) de determinada divindade setepenreacute laquoo escolhido de Reacuteraquo setepenimen laquoo escolhido de Amonraquo setepenptah laquoo escolhido de Ptahraquo etc Todos estes epiacutetetos parecem referir-se a aspetos do rei como manifestaccedilotildees das divindades e pretendem pois acentuar a sua carga sagrada e fazer dele de iure e de facto o representante dos deuses na terra19

A anaacutelise deste vetor da definiccedilatildeo de impeacuterio no contexto egiacutepcio natildeo eacute em nossa opiniatildeo suficiente para determinarmos qual a designaccedilatildeo mais correta (laquoreinoraquo ou laquoimpeacuterioraquo) para aplicar aos periacuteodos historicamente conhecidos como eacutepocas de centralizaccedilatildeo do poder Passemos entatildeo agrave consideraccedilatildeo do segundo componente semacircntico-conceptual da definiccedilatildeo a extensatildeo territo-rial

3 O caso histoacuterico do antigo Egito a unificaccedilatildeo territorial

Desde a I Dinastia a titulatura real enfatizava jaacute a componente territorial em dois dos nomes o nome de Nebti (Nbty laquoo das Duas Senhorasraquo) numa refe-recircncia directa a uma altura em que o Egito estava dividido em Baixo Egito (Ta--mehu) e Alto Egito (Chemau) cada um geograficamente bem delimitado e sob a proteccedilatildeo simboacutelica de uma deusa ou laquosenhoraraquo a deusa-cobra do Baixo Egito Uadjit e Nekhebet a deusa-abutre do Alto Egito20 e o praenomen prenome (nome de coroaccedilatildeo que surgia dentro de uma cartela antecedido pela expressatildeo laquoRei do Alto e do Baixo Egitoraquo (nesut bit) que agrave letra se pode traduzir como laquoO do junco e da abelharaquo ou seja a planta heraacuteldica do Sul e o animal-siacutembolo do Norte O primeiro destes nomes fazia parte das titulaturas reais desde finais do

18 Cf Sales 2001 365 2007b 105 196 Leprohon 2013 8 12-1319 Cf Leprohon 2013 720 Cf Ibid 13-14 Sobre o conceito de fronteira e de demarcaccedilatildeo do territoacuterio egiacutepcio no

Impeacuterio Antigo veja-se Espinel 1998 9-30 para o Impeacuterio Novo veja-se Galaacuten 1995 114-35 Veja-se tambeacutem a conceccedilatildeo egiacutepcia de espaccedilo terrestre (fronteiras unilaterais fronteiras desti-nadas agrave extensatildeo e fronteiras co-extensivas ao mundo terrestre) apresentada por Pascal Vernus (Cf Vernus 2001 25-29) Sobre as laquoestelas-fronteiriccedilasraquo internas e externas veja-se Vogel 2011 320-41

45

Joseacute das Candeias Sales

periacuteodo preacute-dinaacutestico21 O tiacutetulo laquoO do junco e da abelharaquo foi introduzido na I dinastia pelos faraoacutes Den e Adjib22

Mas natildeo era apenas pelos muacuteltiplos nomes da sua titulatura que o faraoacute se distinguia dos demais humanos Tambeacutem as coroas (hedjet decheret pschent kheprech atef hemhemet) os ceptros (hekat uas nekhakha uadj djed ames sekhem) as maccedilas hedj e menu o machado akhu) as vestes (chendjit) e outras insiacutegnias (nemes barba posticcedila cauda taurina serpente-uraeus selos) que usava isolavam-no como um homem engendrado pelo(s) deus(es)23

As coroas (khau) demonstravam tambeacutem a unificaccedilatildeo territorial realizada na figura do faraoacute A coroa branca chamada em egiacutepcio hedjet era uma oblonga e longa mitra usada na eacutepoca preacute-dinaacutestica pelo rei do Sul e fazia tambeacutem parte dos emblemas usados pela deusa Nekhebet a deusa protectora do Alto Egito A coroa vermelha chamada em egiacutepcio decheret ou net era em contrapartida ostentada pelo soberano do Baixo Egito e pela deusa Uadjit divindade tutelar do Baixo Egito24

Quando o faraoacute usava isoladamente a decheret ou a hedjet proclamava a sua soberania sobre a respetiva aacuterea geograacutefica que essa coroa identificava Aquando da unificaccedilatildeo do territoacuterio sob um soacute rei por volta de 3000 aC a uniatildeo dos Dois Paiacuteses foi simbolizada pela uniatildeo destas duas coroas formando a designada pschent (do grego ψχηt) apropriadamente chamada em egiacutepcio pa-sekhemeti laquoa poderosaraquo ou laquoas duas poderosasraquo25 O poder maacutegico que lhe estava associado como entidade divina transmitia aos seus portadores uma aureacuteola de sobrenaturalidade instituindo-os ao mesmo tempo em intermediaacute-rios privilegiados entre os deuses e os homens26 Naturalmente foi uma coroa utilizadiacutessima pelos faraoacutes egiacutepcios de todas as eacutepocas como nos atestam os vaacuterios registos iconograacuteficos numa clara proclamaccedilatildeo da sua universalidade no territoacuterio egiacutepcio Coerentemente o faraoacute era o laquosenhor das Duas Terrasraquo (neb taui)

Mesmo quando os reis do Egito alcanccedilaram uma dominaccedilatildeo poliacutetica sobre territoacuterios fora da esfera territorial tradicional nacional (caso da Nuacutebia ou dos territoacuterios no corredor siro-palestinense) nunca o faraoacute egiacutepcio adotou outras insiacutegnias de poder diferentes das tradicionais Nunca se apropriou de emble-mas de poder dessas aacutereas em seu proveito proacuteprio Por definiccedilatildeo e costume o faraoacute comportava-se como um laquoreiraquo e natildeo como um laquoimperadorraquo embora a

21 Neste caso desde a segunda parte da I Dinastia (reinados de Adjib e Semerkhet) ndash Cf Goebs 2007 283 Leprohon 2013 8

22 Cf Sales 2001 365 Jimeacutenez Fernandes Jimeacutenez Serrano 2008 38-39 Leprohon 2013 1723 Cf Graham 2001 166 Hornun 1992 341-4224 Cf Goebs 2001 323 2013 Collier 1996 26 Hornung 1992 34125 Cf Goebs 2001 323 Hornung 1992 34126 Cf Goebs 2001 2013

46

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

panegiacuterica ideologia o proclamasse como vitorioso (kA nxt nsw nxt nb nxt ity nxt Hqt nxt) laquosenhor de tudo o que o sol cobreraquo considerando que o seu domiacutenio se estendia laquoateacute agrave extremidade do ceacuteuraquo laquoateacute aos pilares do ceacuteuraquo e laquoaos domiacutenios da obscuridaderaquo27 Frequentemente somos noacutes devido a estes hiperboacutelicos qualificativos repletos de pretensatildeo maacutegica e totalizante que quali-ficamos de laquoimperadoresraquo faraoacutes que a tradiccedilatildeo egiacutepcia e a proacutepria Antiguidade contemporacircnea sempre consideraram numa loacutegica simplesmente real como laquoreisraquo (nesu) poderosos autoritaacuterios eacute certo mas apenas laquoreisraquo Somos noacutes que pelo discurso e pela repeticcedilatildeo impensada das foacutermulas de denominaccedilatildeo histoacuterica tornamos a ideia imperial consubstancial agrave de faraoacute

Adotando uma visatildeo muito restritiva do alcance conceptual da titulatura faraoacutenica e das coroas laquonacionaisraquo usadas laquoA Casa Granderaquo exercia a sua au-toridade sobre um territoacuterio limitado delimitado grosso modo o Alto e Baixo Egito a laquoterra amadaraquo (Ta-meri) situado entre o mar Mediterracircneo a norte e a primeira catarata a sul e confinado agrave estreita faixa entre os desertos liacutebico e araacutebico e aos oaacutesis contiacuteguos Neste sentido eacute suficiente a designaccedilatildeo laquoreinoraquo para definir a forma de dominaccedilatildeo poliacutetica dos faraoacutes Nada exige a designaccedilatildeo de laquoimpeacuterioraquo ou uma teoria ou doutrina de imperialismo

4 O caso histoacuterico do antigo Egito a extensatildeo territorial e a pluralidade de povos

Se considerarmos as aacutereas de dominaccedilatildeo egiacutepcia por exemplo durante a segunda parte da XVIII dinastia (sobretudo depois da actividade sistemaacutetica de Tutmeacutes III) eacute inquestionaacutevel que a dominaccedilatildeo egiacutepcia assente num complexo dispositivo militar se estendia a territoacuterios para laacute do espaccedilo tradicional do Egito caso da Nuacutebia28 e do Retenu (Rtnw)29 Da quarta catarata a sul ao Eufrates

27 Cf Leclant 1980 56 Galaacuten 1995 52-69 Mesmo quando um dos imperativos cardeais da funccedilatildeo faraoacutenica ou frase ritual eacute como vimos laquoampliar as fronteirasraquo (swsx tAS) mesmo quando teoricamente a jurisdiccedilatildeo do faraoacute abarca a totalidade do mundo terreno (laquoo que rodeia o discoraquo Snnt itn) e ele eacute um laquosenhor soberano do que rodeia o discoraquo (nbHqA n Snnt itn) e quando laquosob os seus peacutesraquo e laquoas suas sandaacuteliasraquo estatildeo os laquoNove Arcosraquo pesedjet 9 (designaccedilatildeo tradicional para os povos estrangeiros vencidos e submissos) o faraoacute eacute sempre pela antiga fraseologia um dominador das laquoDuas Terrasraquo (Cf Vernus 2011 2627 Kemp 1978 10-12)

28 Os territoacuterios situados a sul de Elefantina geralmente divididos em Uauat (Baixa Nuacutebia) e Kuch (Alta Nuacutebia) Na eacutepoca de Tutmeacutes III a dominaccedilatildeo egiacutepcia chegou ateacute agrave zona da 4ordf catara-ta do Nilo perto de Napata (Guebel Barkal) Veja-se Frandsen 1979 170-73 Kemp 1978 22-33

29 Nome dado pelos Egiacutepcios agrave regiatildeo norte do corredor siro-palestinense habitualmente designada por Aacutesia correspondente aos atuais territoacuterios do Liacutebano e parte da Siacuteria Agrave zona da Palestina meridional chamavam Retenu Superior (Retenu heret) Tutmeacutes III levou a cabo a submissatildeo da Siro-Palestina em dezassete campanhas militares (wDyt) Como escreve Bill Manley laquoPharaon srsquoy reacutevegravele le policier drsquoun Orient plus que chaotique ougrave il lui faut sans cesse srsquoimposerraquo (Manley 1998 70) Veja-se tambeacutem Morris 2005 37 39 116-26

47

Joseacute das Candeias Sales

havia um imenso espaccedilo para organizar e governar recolhendo tributos es-tabelecendo e mantendo guarniccedilotildees gerindo as riquezas em produccedilatildeo e em circulaccedilatildeo30 No entanto para se ser completamente rigoroso a Nuacutebia nunca se tornou uma parte integrante do reino egiacutepcio nem o faraoacute egiacutepcio alguma vez assumiu a lideranccedila directa sobre essas populaccedilotildees linguisticamente diferentes e a zona do Proacuteximo Oriente culturalmente muito forte socialmente muito sofisticada e militarmente dotada de bem treinados exeacutercitos foi dividida em protetorados deixando poder e autonomia aos habitantes que juraram fideli-dade aos Egiacutepcios e cujos jovens priacutencipes foram trazidos para a corte egiacutepcia como refeacutens para serem acostumados aculturados aos modos de ser e estar dos Egiacutepcios e educados nas suas formas administrativas e assim se tornarem vassalos leais31

A partir de Amenhotep II e Tutmeacutes IV o domiacutenio da Siro-Palestina foi assegurado essencialmente atraveacutes de paradas militares com um ou outro massacre associado destinadas a intimidar as populaccedilotildees locais e assim desin-centivar eventuais processos de sediccedilatildeo mais do que atraveacutes de accedilotildees firmes de cariz militar voltadas para o alargamento territorial32 A esta poliacutetica de gestatildeo dos territoacuterios (baseada na salvaguarda da estabilidade regional e no controlo das rotas comerciais) juntaram-se os casamentos poliacuteticos com princesas de Mitanni ou de Hatti33 O veiacuteculo de comunicaccedilatildeo da diplomacia (embaixadores mensageiros tradutores e inteacuterpretes) nunca foi a liacutengua dos laquodominadoresraquo o egiacutepcio mas sim o acaacutedico a liacutengua franca escrita com signos cuneiformes em tabuinhas de argila34

Na Siro-Palestina a autonomia a especificidade e a salvaguarda dos po-deres locais tornou impossiacutevel uma relaccedilatildeo de vassalagem perfeita e completa A intervenccedilatildeo egiacutepcia nos assuntos asiaacuteticos foi sempre limitada35 Daiacute que a

30 Cf Bryant 2000 235-4031 Cf Frandsen 1979 169-70 174-76 Kemp 1978 19 5632 Cf Morris 2005 127 e ss33 No periacuteodo rameacutessida este laquosistema mistoraquo ou laquosistema dual de administraccedilatildeoraquo pros-

seguiu com base na presenccedila de contingentes militares egiacutepcios no Levante e no governo de vassalos egipcianizados responsaacuteveis sobretudo pela coleta dos impostos e vigilacircncia dos terri-toacuterios Eacute no fundo o designado modelo da laquoElite Emulationraquo oposto ao tradicional modelo do laquoDirect Ruleraquo (Cf Higginbotham 2000 71-73 129-32 136-40 Morris 2005 9)

34 De facto apesar de o domiacutenio e influecircncia que em meados do seacuteculo XV aC a coroa egiacutepcia exercia sobre a Palestina e sobre parte de Siacuteria a liacutengua egiacutepcia natildeo conseguiu implantar--se ou impor como liacutengua administrativa nem sequer entre o faraoacute e os seus vassalos naqueles territoacuterios (Cf Galaacuten 2011 303)

35 Cf Vernus 2011 18 A xenofobia egiacutepcia que se baseava na ideia de que o centro do mun-do terrestre era o Egito (Egiptocentrismo) e se referia muitas vezes aos estrangeiros Asiaacuteticos como laquomiseraacuteveis Asiaacuteticosraquo nunca permitiu alcanccedilar grandes niacuteveis de interaccedilatildeo cultural na Palestina No fundo o domiacutenio dessas regiotildees estava sobretudo ao serviccedilo do papel teoloacutegico e ideoloacutegico fundamental da realeza egiacutepcia a reduccedilatildeo do caos agrave ordem do incriado ao criado do perifeacuterico ao central (Cf Kemp 1978 8 Vernus 2011 21-22)

48

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

laquoimpeacuterioraquo seja realmente preferiacutevel a noccedilatildeo de laquocontrolo hegemoacutenicoraquo ou laquohegemoniaraquo36 Haacute quem use a designaccedilatildeo laquoimpeacuterio informalraquo37

No caso da Nuacutebia havia o sistema do vice-rei representante-delegado de confianccedila do poder central alto-funcionaacuterio assistido por uma administraccedilatildeo de escribas especiacuteficos designado pelo tiacutetulo sa-nesu en Kuch laquofilho real de Kuchraquo (instituiacutedo no final da XVII Dinastia pelo faraoacute Kameacutes38 e em vigor ateacute agrave extinccedilatildeo da XVIII Dinastia e abandono da Nuacutebia) que natildeo apresentava poreacutem qualquer ligaccedilatildeo bioloacutegica agrave famiacutelia real egiacutepcia O territoacuterio foi sempre uma proviacutencia anexada dirigida e explorada intensivamente como tal39 A Baixa Nuacutebia Uauat foi a zona com uma sujeiccedilatildeo mais estreita mais vinculativa quase anexaccedilatildeo que justifica segundo alguns autores a designaccedilatildeo laquoimpeacuterio formalraquo usada para a caracterizar40

No Impeacuterio Novo apesar de os textos e ilustraccedilotildees formais egiacutepcias enfa-tizarem de forma permanente e repetida uma filosofia de conquistas vitoacuterias e dominaccedilatildeo absolutas o espaccedilo territorial sob dominaccedilatildeo egiacutepcia natildeo foi portanto homogeacuteneo nem no tipo de administraccedilatildeo nem no niacutevel de presenccedila Houve significativas diferenccedilas entre a administraccedilatildeo da coroa egiacutepcia a sul e a norte a Aacutesia ocidental foi um territoacuterio de campanhas vassalagem e tributos e a Nuacutebia continuaccedilatildeo sul do vale do Nilo foi uma criaccedilatildeo administrativa41

No caso interno da administraccedilatildeo do territoacuterio egiacutepcio o paiacutes foi governado atraveacutes do sistema do vizirato centrado na figura iacutempar do vizir (tjati) o mais alto dignitaacuterio do paiacutes responsaacutevel maacuteximo pela maacutequina burocraacutetico-admi-nistrativa (destinado agrave estimativa da colheita e perceccedilatildeo dos correspondentes impostos agrave organizaccedilatildeo dos trabalhos coletivos agrave gestatildeo dos diversos recursos) designado pelo faraoacute laquoo segundo depois do rei na sala de entrada do Palaacutecioraquo42 Na XVIII Dinastia chegou a haver no Egito dois vizires um para o delta (laquovizir do Norteraquo) que residia em Mecircnfis Licht ou Pi-Ramseacutes e outro para o Alto Egito (laquovizir do Sulraquo) com sede em Tebas

Existirem dois vizires natildeo pode entatildeo ser entendido como uma marca ou sintoma de laquoimpeacuterioraquo ou de laquoimperialismoraquo Em nossa opiniatildeo natildeo porque a existecircncia do duplo vizirato natildeo tem a ver com a vastidatildeo territorial propriamente

36 Cf Leclant 1980 65 nota 1137 Cf Vernus 2011 18 Veja-se a laquorevisatildeo da bibliografiaraquo sobre o domiacutenio egiacutepcio no Levan-

te em Higginbotham 2000 2-6 onde entre outras satildeo mencionadas as contribuiccedilotildees de Helck Narsquoaman Edel Redford Weinstein Bartel e Frandsen

38 O primeiro laquofilho-real de Kuchraquo foi Turi39 Da Nuacutebia provinham produtos agriacutecolas madeiras gado e animais selvagens escravos

ouro marfim incenso e produtos exoacuteticos (peles de animais e penas de avestruz por exemplo) ndash Cf Kemp 1978 33 Tambeacutem em relaccedilatildeo aos Nuacutebios os Egiacutepcios natildeo mostravam respeito pela sua tecnologia religiatildeo ou costumes (CF Frandsen 1979 179)

40 Cf Vernus 2011 1841 Cf Galaacuten 2002 27 Kemp 1978 20 43-4442 Cf Sales 2001 871-72

49

Joseacute das Candeias Sales

dita (o espaccedilo interno egiacutepcio natildeo era maior do que fora em eacutepocas anteriores) ou com a existecircncia de uma pluralidade de povos e culturas (a populaccedilatildeo era natildeo obstante o ingresso de um ou outro contingente de estrangeiros basicamen-te a mesma) mas sim com a meticulosa e racional organizaccedilatildeo administrativa egiacutepcia talvez mais zelosa e empenhada em evitar alguns dos desmandos e atropelos do passado Somos noacutes que usamos o moderno conceito de laquoimperia-lismoraquo e o aplicamos agrave poliacutetica administrativa do Egito antigo e agraves suas laquoesferas de influecircnciaraquo43

Consideraccedilotildees finais

Utilizando a pluralidade de povos a diversidade cultural e a efetiva vasti-datildeo territorial como criteacuterios para a existecircncia de um laquoimpeacuterioraquo torna-se difiacutecil sustentar a ideia de um periacuteodo assim denominado na milenar histoacuteria do Egito antigo Mesmo a uacutenica eacutepoca que poderia ainda assim justificar melhor a de-signaccedilatildeo (o Impeacuterio Novo) natildeo se conforma integralmente agrave definiccedilatildeo operativa e institucional de laquoimpeacuterioraquo44

Quando observamos as inuacutemeras representaccedilotildees artiacutesticas da realeza e constatamos por um lado os tamanhos desproporcionados entre o faraoacute e os seus suacutebditos ou estrangeiros inimigos45 e por outro a sua equiparaccedilatildeo com as dimensotildees em que satildeo figurados os (outros) deuses concluiacutemos que elas indiciam jaacute ou comprovam a consideraccedilatildeo do faraoacute como indiviacuteduo superior como deus universal por direito proacuteprio Tambeacutem aqui sacralidade e divindade se misturam

Natildeo vemos neste periacuteodo nada que se aproxime de uma uniatildeo pessoal de vaacuterias diversidades na figura do mesmo soberano que pelos seus siacutembolos e accedilatildeo unifique ou pretenda unificar os distintos haacutebitos e costumes crenccedilas e cultos tradiccedilotildees e particularidades Independentemente da personalidade do detentor do poder a instituiccedilatildeo monaacuterquica egiacutepcia reenviava mais para modelos arquetiacutepicos e estereotipados do passado interno egiacutepcio do que para (novas) dominaccedilotildees geograacutefico-culturais-linguiacutesticas resultantes das (novas) hegemonias conseguidas no devir histoacuterico

Talvez por isso os antigos Egiacutepcios nunca usaram um termo que signifi-casse laquoImpeacuterioraquo ou laquoimperialismoraquo Talvez por isso a realeza (nesit) tenha sido sempre concebida como a demonstraccedilatildeo de laquoqualidades reaisraquo natildeo laquoimperiaisraquo Talvez por isso o faraoacute fosse sempre um neb taui (laquoSenhor das Duas Terrasraquo) mesmo quando pela vitoacuteria militar conquista outras terras massacrando real ou simbolicamente as suas populaccedilotildees (Nuacutebios Liacutebios ou Asiaacuteticos) ou pela forccedila

43 Cf Kemp 1978 744 Cf Vernus 2011 1745 Apesar de este cacircnone tambeacutem ser aplicado aos altos funcionaacuterios na sua relaccedilatildeo com os

seus dependentes ou servos interessa-nos aqui observaacute-lo apenas na oacuteptica do faraonato

50

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

da coerccedilatildeo econoacutemico-financeira as tutela Talvez por isso a designaccedilatildeo mais conveniente e correta para expressar as fortes dominaccedilotildees impostas pelo poder faraoacutenico nesses periacuteodos historicamente considerados de relevo seja laquocontrolo hegemoacutenicoraquo ou laquohegemoniaraquo Talvez por isso as formas usadas pela historio-grafia anglo-saxoacutenica (Old Kingdom Middle Kingdom New Kingdom) italiana (Antico Regno Medio Regno Nuovo Regno) e em certas tendecircncias recentes da investigaccedilatildeo em liacutengua espanhola (Reino Antiguo Reino Medio Reino Nuevo) sejam mais correctas deslocando todo o campo conceptual para o lado de laquorei-noraquo em vez de para o de laquoimpeacuterioraquo

51

Joseacute das Candeias Sales

Bibliografia

Andreu Guillemette 1996 ldquoLe vizirrdquo In AAVV LrsquoEacutegypte ancienne Paris Eacuteditions du Seuil 63-65

Arauacutejo Luiacutes Manuel 2001 ldquoDa teoria agrave praacutetica o exerciacutecio do poder real no Egito faraoacutenicordquo Clio 533-57

Arauacutejo Luiacutes Manuel e Nuno Simotildees Rodrigues 2006 As comunicaccedilotildees na Antiguidade Lisboa Fundaccedilatildeo Portuguesa das Comunicaccedilotildees

Baines John e Jaromir Malek 1984 Atlas of Ancient Egypt Oxford Phaidon Press Ltd

Bryan Betsy M 2000 ldquoThe Eighteenth Dynasty before the Amarna Period c1550-1352 BCrdquo In The Oxford History of Ancient Egypt ed I Shaw 235-40 New York Oxford University Press

Bonhecircme Marie Ange e Annie Forgeau 1998 Pharaon Les Secrets du pouvoir Paris Armand Colin

Carreira Joseacute Nunes 2001 ldquoLegitimaccedilatildeo do poder no Egito Faraoacutenicordquo Clio 519-33

Clayton Peter 1995 Chronique des pharaons Lrsquohistoire regravegne par regravegne des souverains et des dynasties de lrsquoEacutegypte ancienne Paris Casterman

Collier Sandra 1996 The crowns of the Pharaoh their development and significance in ancient Egyptian kingship Los Angeles University of California

Daumas Franccedilois 1998 ldquoHistoire peacuteriode pharaoniquerdquo In Dictionnaire de lrsquoEacutegypte ancienne 179-99 Paris Encyclopaedia Universalis Albin Michel

Derchain Philippe 1962 ldquoLe role du roi drsquoEgypte dans le maintien de lrsquoordre cosmiquerdquo In Le Pouvoir et le Sacreacute 61-73 Bruxelles Universiteacute Libre de Bruxelles

Desroches-Noblecourt Christiane 1986 La femme au temps des pharaons Paris Stock Laurence Pernoud

mdashmdashmdash 1996 Ramsegraves II la veacuteritable histoire Paris Eacuteditions PygmalionDiego Espinel Andreacutes 1998 ldquoFronteras y demarcaciones del territorio Egipcio

en el Reino Antiguo Egyptian frontiers and landmarks during the Old Kingdomrdquo In Stvdia Historica Historia Antigua 169-30 Salamanca Ediciones Universidad de Salamanca

Donadoni Sergio dir 1994 O Homem Egiacutepcio Lisboa Editorial PresenccedilaDrioton Eacutetienne e Jacques Vandier 1975 LrsquoEgypte ndash des origines agrave la conquecircte

drsquoAlexandre 5ordf ed Paris Presses Universitaires de FranceDuverger Maurice 1980 ldquoLe concept drsquoempirerdquo In AAVV Le concept drsquoempire

52

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

5-23 Paris Presses Universitaires de FranceFavard-Meeks Christine e Dimitri Meeks 1986 ldquoLrsquoheacuteritiegravere du Deltardquo In

Alexandrie IIIe siegravecle av J-C Tous les savoirs du monde ou le recircve drsquouniversaliteacute des Ptoleacutemeacutees 28-33 Paris Eacuteditions Autrement

Frandsen Paul John 1979 ldquoEgyptian Imperialismrdquo In Power and Propaganda A Symposium on Ancient Empires (Mesopotamia 7) ed M T Larsen 167-90 Copenhagen Akademisk Forlag

Gaacutelan Joseacute Manuel 2011 ldquoInteacuterpretes y traducciones en el Egipto Imperialrdquo Semata Ciencias Sociais e Humanidades 23295-313

mdashmdashmdash 2002 El Imperio Egipcio Inscripciones ca 1550-1300 a C Barcelona Edicions de la Universitat de Barcelona Editorial Trolla

mdashmdashmdash 1995 Victory and Border Terminology related to Egyptian Imerialism in the XVIIIth Dynasty Hildesheimer Gersteben Verlag

Gardiner Alan 1961 Egypt of pharaohs An Introduction Oxford Clarendon Press

Goebs Katja 2013 ldquoCrowns Egyptrdquo In The Encyclopedia of Ancient History ed R S Bagnall K Brodersen C B Champion A Erskine S R Huebner 1847-49 London Blackwell Publishing

mdashmdashmdash 2007 ldquoKinshiprdquo In The Egyptian World ed Toby Wilkinson 275-95 London New York Routledge

mdashmdashmdash 2001 ldquoCrownsrdquo In The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt Vol 1 ed D B Redford 321-26 Oxford Oxford University Press

mdashmdashmdash 1998 ldquoSome Cosmic aspects of the royal crownsrdquo In Proceedings of the Seventh International Congress of Egyptologists Cambridge 3-9 September 1995 ed C J Eyre Leuven 447-60 Leuven Peeters

Graham Geoffrey 2001 ldquoInsigniasrdquo In The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt Vol 2 ed D B Redford 163-67 Oxford Oxford University Press

Grimal Nicolas 2000 ldquoLes oasis di deacutesert libyque lrsquoeau la terre et la sablerdquo Comptes rendus des Seacuteances de lrsquoanneacutee ndash Acadeacutemie des Inscriptions et Belles-Lettres 144 (2)909-40

mdashmdashmdash 1988 Histoire de LrsquoEacutegypte ancienne Paris FayardHigginbotham Carolyn R 2000 Egyptianization and elite emulation in

Ramesside Palestine governance and accomodation on the imperial periphery Leiden Boston Koumlln Brill

Henry Roger 2003 Synchronized Chronology Rethinking Middle East Antiquity A Simple Correction to Egyptian Chronology Resolves The Major Problems In Biblical And Greek Archaeology New York Algora

Hobson Christine 1987 Exploring the world of pharaohs A complete guide to ancient Egypt London Thames amp Hudson

53

Joseacute das Candeias Sales

Hornung Erik 1992 ldquoLe pharaonrdquo In Lrsquohomme eacutegyptien dir Sergio Donadoni 337-73 Paris Eacuteditions du Seuil

Hornung Erik Rolf Krauss e David A Warbuton eds 2006 Ancient Egyptian Chronology Leiden Boston Brill

Husson Geneviegraveve e Dominique Valbelle 1992 Lrsquoeacutetat et les institutions en Eacutegypte Des premiers pharaons ax empereurs romains Paris Arman Colin

Jimeacutenez Fernandez Juan e Alejandro Jimeacutenez Serrano eds 2008 Historia de Egito ndash Manetoacuten Madrid Akal

Kemp Barry J 1989 Ancient Egypt anatomy of a civilization London Routledgemdashmdashmdash 1978 ldquoImperialism and Empire in New Kingdom Egyptrdquo In Imperialism

in the Ancient World The Cambridge University Research Seminar eds P D A Garnsey e C R Whittaker 7-57 Cambridge Cambridge University Press

Lalouette Claire 1991 Au royaume drsquoEacutegypte Les temps des rois-dieux Paris Fayard

mdashmdashmdash 1986 Thegravebes ou la naissance drsquoun empire Paris Fayardmdashmdashmdash 1985 Lrsquoempire des Ramsegraves Paris FayardLeclant Jean 1980 ldquoLes ldquoempiresrdquo et lrsquoimpeacuterialisme de lrsquoEacutegypte pharaoniquerdquo

In AAVV Le Concept drsquoempire 49-68 Paris Presses Universitaires de France

Leprohon Ronald 2013 The Great Name Ancient Egyptian royal titulary Atlanta Society of Biblical Literature

Loprieno Antonio 1998 ldquoLe pharaon reconstruit La figure du roi dans la litteacuterature eacutegyptienne au Ier milleacutenaire avant J-Crdquo Bulletin de la Socieacuteteacute Franccedilaise drsquoEgyptologie 1424-24

Malek Jaromir 1997 ldquoLa division de lrsquohistoire drsquoEacutegypte et lrsquoEacutegyptologie modernerdquo Bulletin de la Socieacuteteacute Franccedilaise drsquoEgyptologie 1386-17

Manley Bill 1998 Atlas historique de lrsquoEgypte ancienne De Thegravebes agrave Alexandrie la tumultueuse eacutepopeacutee des pharaons Paris Eacuteditions Autrement

Morris Ellen Fowles 2005 The architecture of imperialism Military bases and the evolution of foreign policy in Egyptrsquos New Kingdom Leiden Brill

OrsquoConnor David e David P Silvermann 1995 Ancient Egyptian Kingship Leiden Brill

Posener Georges 1960 De la diviniteacute du pharaon Cahiers de la Socieacuteteacute Asiatique 15 Paris Acadeacutemie des Inscriptions et Belles-Lettres

Posener Georges Serge Sauneron e Jean Yoyotte dir 1970 Dictionnaire de la civilisation eacutegyptienne Paris Fernand Hazan

Quirke Stephen 1990 Who were the Pharaohs A history of their names with a

54

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

list of cartouches London The British Museum PublicationsRachet Guy 1987 LrsquoEacutegypte ancienne Paris Eacuteditions du FeacutelinRaiteacute Suzanne 1979 La reine Hatchepsout Sources et problegravemes Leiden BrillRice Michael 2002 Whorsquos who in Ancient Egypt London New York RoutledgeRyholt Kim 2004 ldquoThe Turin King-Listrdquo Aumlgypten und Levante 14135-55Sales Joseacute das Candeias 2008 Poder e Iconografia no antigo Egipto Lisboa

Livros Horizontemdashmdashmdash 2007a Estudos de Egiptologia Temaacuteticas e Problemaacuteticas Lisboa Livros

Horizontemdashmdashmdash 2007b ldquoAs foacutermulas protocolares egiacutepcias ou formas e possibilidades do

discurso de legitimaccedilatildeo no antigo Egiptordquo Cadmo 16101-24mdashmdashmdash 2005 Ideologia e propaganda real no Egipto ptolomaico (305-30 a C)

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkianmdashmdashmdash 2001a ldquoFaraoacuterdquo In Dicionaacuterio do Antigo Egipto dir L M de Arauacutejo 364-

68 Lisboa Caminhomdashmdashmdash 2001b ldquoVizirrdquo In Dicionaacuterio do Antigo Egipto dir L M de Arauacutejo 871-

73 Lisboa Caminhomdashmdashmdash 1997 A ideologia real egiacutepcia e acaacutedica Representaccedilotildees do poder poliacutetico

preacute-claacutessico Lisboa Editorial EstampaShaw Ian 2000 ldquoIntroduction Chronologies and cultural change in Egyptrdquo

In The Oxford history of Ancient Egypt 1-16 London Oxford University Press

Shaw Ian e Paul Nicholson 1995 British Museum dictionary of Ancient Egypt London British Museum Press

Tyldesley Joyce 2006 Chronicle of the queens of Egypt From early dynastic times to the death of Cleopatra London Thames amp Hudson

Valbelle Dominique 1998 Histoire de lrsquoEacutetat pharaonique Paris Presses Universitaires de France

mdashmdashmdash 1992 Lrsquoeacutetat et les institutions en Egypte Des premiers pharaons aux empereurs romains Paris Armand Colin

mdashmdashmdash 1990 Les neuf arcs LrsquoEacutegyptien et les eacutetrangers de la Preacutehistoire agrave la conquecircte drsquoAlexandre Paris Armand Colin

Vandersleyen Claude 1992 LrsquoEgypte et la Valleacutee du Nil tome 2 ndash De la fin de lrsquoAncien Empire agrave la fin du Nouvel Empire Paris Presses Universitaires de France

Vercoutter Jean 1998 ldquoPharaonrdquo In Dictionnaire de lrsquoEacutegypte ancienne 296-300 Paris Enciclopaeligdia Universalis Albin Michel

mdashmdashmdash 1992 LrsquoEgypte et la Valleacutee du Nil tome 1 ndash Des origines agrave la fin de lrsquoAncien

55

Joseacute das Candeias Sales

Empire Paris Presses Universitaires de FranceVernus Pascal 2011 ldquoLos barbechos del demiurgo y la soberaniacutea del faraoacuten

El concepto de ldquoimperiordquo y las latencias de la creacioacutenrdquo In El Estado en el Mediterraacuteneo antiguo Egito Grecia Roma comps M Campagno J Gallego e C G Garcia Mac Gaw 13-43 Buenos Aires Mintildeo y Daacutevila

mdashmdashmdash 1986 ldquoLe concept de monarchie dans lrsquoEgypte anciennerdquo In Les monarchies dir E L Ladurie 29-42 Paris Presses Universitaires de France

Vernus Pascal e Jean Yoyotte 1988 Les Pharaons Paris MA EacuteditionsVogel Carola 2011 ldquoThis Far and Not a Step Further The Ideological Concept

of Ancient Egyptian Boundary Stelaerdquo In Egypt Canaan and Israel History Imperialism Ideology and Literature Proceedings of a Conference at the University of Haifa 3ndash7 May 2009 320-41 Leiden Boston Brill

Weinstein James M 1981 ldquoThe Egyptian Empire in Palestine A Reassessmentrdquo Bulletin of the American Schools of Oriental Research 2411-28

Wilkinson Toby 1999 Early Dynastic Egypt London RoutledgeWoolf Greg 1992 ldquoImperialisme empire and the integration of the Roman

economyrdquo World Archaeology 23 (3)283-93

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

57

Rogeacuterio Sousa

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica

do Egito na viragem para o I Mileacutenio1 (Starting anew the laquorepetition of birthraquo and Egyptrsquos political transformation

on the brink of the 1st Millenium)

Rogeacuterio Sousa(solarbenugmailcom ORCID 0000-0002-8253-1707)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de HistoacuteriaCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos Universidade de Coimbra

Resumo - A desintegraccedilatildeo poliacutetica que ocorreu no Egito no final do Impeacuterio Novo partilha muitos aspetos em comum com a crise que afetou as civilizaccedilotildees da bacia do Mediterracircneo na transiccedilatildeo da Idade do Bronze para a Idade do Ferro Muito mais bem documentada no Egito do que noutros contextos esta transiccedilatildeo natildeo irrompeu de forma violenta ou acom-panhada por uma crise cultural profunda Ainda assim o Terceiro Periacuteodo Intermediaacuterio apresenta uma organizaccedilatildeo poliacutetica completamente distinta que parece ter sido posta em praacutetica ao longo da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo atraveacutes da accedilatildeo combinada de Herihor - e dos seus sucessores no reino do Sul ndash e de Ramseacutes XI no reino do Norte

Palavras-chave Repeticcedilatildeo do Nascimento Herihor Ramseacutes XI

Abstract ndash The political disintegration occurred in Egypt at the end of the New Kingdom has much in common with the crisis that affected the civilizations of the Mediterranean basin in the transition from the Bronze Age to the Iron Age Much better documented in Egypt than elsewhere this transition did not irrupt violently with a sense of cultural crisis Nevertheless the Third Intermediate Period presents a completely distinct political organization of Egypt that seems to have been put in place during the laquoRepetition of birthsraquo through a combined action of Herihor and his successors in the South and Ramses XI in the North

Keywords Repetition of birth Herihor Ramses XI

O fim da XX dinastia (c 1100 aC) e do Impeacuterio Novo foi grandemente deter-minado pelas ondas de choque provocadas pelas grandes migraccedilotildees causadas pela queda do mundo miceacutenico e do impeacuterio hitita Embora o Egito tenha sido atingido apenas marginalmente por estes fenoacutemenos a verdade eacute que a batalha de Ramseacutes III contra os Povos do Mar representa um choque de civilizaccedilotildees que apesar da vitoacuteria obtida natildeo se traduziu de forma alguma no afastamento do inimigo2 Agraves

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013 e do projecto UIDELT001962013

2 Os liacutebios constituem uma presenccedila influente no Egito Embora as incursotildees dos Mechuech e dos Libu tivessem sido repelidas por Merenptah e Ramseacutes III muitos imigrantes

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_3

58

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

populaccedilotildees liacutebias autoacutectones juntaram-se mercenaacuterios oriundos dos chamados laquoPovos do Marraquo que se instalaram cada vez com mais expressatildeo no Delta3 desen-volvendo uma aristocracia militar que havia de marcar indelevelmente a geografia poliacutetica e militar do Egito4 Adicionalmente muitos imigrantes continuaram a instalar-se no Delta com um cunho fortemente militarizado No final do Impeacuterio Novo o exeacutercito era jaacute quase inteiramente constituiacutedo por mercenaacuterios liacutebios5

O domiacutenio dos Mechuech no Egito eacute assim equivalente agrave irrupccedilatildeo dos Etruscos na Itaacutelia ou dos Doacuterios na Greacutecia ou dos Filisteus na Palestina Em todos estes casos os processos de penetraccedilatildeo das novas populaccedilotildees foram acom-panhados pela incapacidade crescente do poder central em garantir a conectivi-dade poliacutetica desencadeando uma regionalizaccedilatildeo crescente com as populaccedilotildees locais entregues a si mesmas6

O final do Impeacuterio Novo eacute portanto antes de mais a expressatildeo de um fenoacute-meno global que afetou todo o Proacuteximo Oriente e Mediterracircneo desde a Iacutendia ao Egeu Internamente este fenoacutemeno traduziu-se na desintegraccedilatildeo do aparelho burocraacutetico real a qual se acelerou na proporccedilatildeo directa do empobrecimento das populaccedilotildees Sabe-se que uma seacuterie de maacutes colheitas ocorreram durante o reinado de Ramseacutes VII e prosseguiram com os seus sucessores levando a um aumento do preccedilo do trigo e a periacuteodos de fome7 O empobrecimento foi geral e a ineficaacutecia da administraccedilatildeo central agravou-o ainda mais gerando-se como refere Jan Assman uma crise de penetraccedilatildeo e de distribuiccedilatildeo Toda a infraestrutura crucial para o fun-cionamento de uma economia redistributiva estava agrave beira do colapso os bens natildeo chegavam aos armazeacutens reais e o abastecimento proporcionado por estes armazeacutens era insuficiente daiacute resultando fome instabilidade social e empobrecimento geral

Os reinados de Ramseacutes IX Ramseacutes X e Ramseacutes XI representam o momento mais grave desta tendecircncia Como os seus antecessores da XIX e da XX dinastia o faraoacute governava a partir da sua capital Pi-Ramseacutes situada no Delta oriental longe portanto dos principais centros locais do Egito e aparentemente sem capacidade real de intervenccedilatildeo neste processo

Sintomaticamente nem as obras reais de grande importacircncia simboacutelica e poliacutetica como a construccedilatildeo dos tuacutemulos reais foram poupadas No reinado de

continuaram a instalar-se no Delta com um cunho fortemente militarizado (Wainwright 1962 89-99) No final do Impeacuterio Novo o exeacutercito era jaacute quase inteiramente constituiacutedo por mercenaacuterios liacutebios (Taylor 2000 335)

3 Assmann 2002 2814 Este fenoacutemeno eacute visiacutevel atraveacutes da onomaacutestica as famiacutelias mais influentes tanto no norte

como no sul apresentam indiviacuteduos com nomes aparentemente de origem liacutebia A presenccedila liacutebia poderaacute ser mais expressiva sobretudo se admitirmos que sob nomes egiacutepcios se ocultem tambeacutem indiviacuteduos de origem liacutebia (Taylor 2000 335)

5 Taylor 2000 3356 Assmann 2002 2817 Trigger et al 1983 228

59

Rogeacuterio Sousa

Ramseacutes IX o fornecimento deficiente de geacuteneros aos trabalhadores dos tuacutemulos reais iria mesmo motivar uma greve consubstanciada num vigoroso movimento reivindicativo em Deir el-Medina que levou os operaacuterios a dirigirem-se ao sumo sacerdote de Aacutemon apresentando-lhe as suas queixas8 Segundo a do-cumentaccedilatildeo eles acabaram por ser pagos com o trigo retirado do celeiro dos templos de Montu quando tal pagamento competia agraves autoridades laquocivisraquo sob as ordens diretas do vizir de entatildeo Khamon Nos reinados de Ramseacutes X (KV 18) e de Ramseacutes XI (KV 4) a situaccedilatildeo foi aparentemente ainda pior jaacute que nenhum dos tuacutemulos foi terminado

Durante este periacuteodo a regiatildeo de Tebas foi assolada por grupos armados provenientes do deserto ocidental originando um periacuteodo criacutetico de violecircncia e fome que mais tarde seria evocado como o laquoano das hienasraquo Estes grupos tinham provavelmente origem liacutebia mas eacute provaacutevel que vivessem no Egito haacute vaacuterias geraccedilotildees e que em algum momento tivessem estado ao serviccedilo do proacute-prio faraoacute Sabe-se que Ramseacutes III na continuaccedilatildeo de idecircnticas atitudes tomadas pelos seus antecessores tinha instalado vaacuterias coloacutenias de liacutebios e de siacuterios no paiacutes alguns deles servindo como mercenaacuterios no exeacutercito9

A situaccedilatildeo de crise geral no entanto tinha tornado perigosos estes grupos que aproveitando a debilidade crescente do sistema pilhavam as populaccedilotildees mais vulneraacuteveis As incursotildees depredatoacuterias no territoacuterio tebano motivaram mesmo o abandono de Deir el-Medina cujos aldeotildees se refugiaram no com-plexo funeraacuterio de Ramseacutes III de Medinet Habu entretanto transformada em cidadela fortificada

A anarquia crescente foi agravada pela corrupccedilatildeo dos funcionaacuterios gerando um processo que se reforccedilava mutuamente Quanto maior era a ineficaacutecia do apa-relho burocraacutetico real maior era a corrupccedilatildeo o que gerava ainda mais ineficaacutecia Este processo eacute exemplarmente demonstrado pelo saque organizado aos tuacutemulos da necroacutepole Este processo eacute documentado no Papiro Abbott o qual conserva uma seacuterie de relatoacuterios relativos a roubos que tiveram lugar no ano 16 de Ramseacutes IX O escacircndalo estalou aparentemente devido agrave rivalidade entre o governador de Tebas Paser e o governador da necroacutepole Pauer-reacute Em face das denuacutencias o vizir Khaemuaset ordenou uma comissatildeo para investigar as alegaccedilotildees10 Dos dez tuacutemulos investigados apenas o de Amen-hotep I se apresentava entatildeo intacto Todos os restantes haviam sido espoliados em todo ou em parte11

8 Em Arauacutejo 1999 153 nota 269 Arauacutejo 1999 11510 A respeito dos roubos efetuados na necroacutepole ver Goelet 1996 107-2711 Clayton 1994 171 Foi em Deir el-Medina que foi encontrada a documentaccedilatildeo referente

aos roubos aos tuacutemulos reais Os culpados foram julgados no templo de Maet situado junto ao templo de Montu em Karnak O vizir Khaemuaset o governador de Tebas Paser o sumo sacer-dote de Aacutemon Amen-hotep e o governador da necroacutepole Pauer participaram no julgamento dos culpados que foram severamente punidos

60

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

Apesar da investigaccedilatildeo judicial em curso o saque continuou ao longo dos anos seguintes prolongando-se ateacute ao reinado de Ramseacutes XI durante o qual se registaram roubos no Vale das Rainhas em Medinet Habu e no Ramesseum12 Em tempos de escassez as riquezas ocultas na necroacutepole constituiacuteam portanto um foco criacutetico de instabilidade para a regiatildeo tebana

Perante o recuo da administraccedilatildeo central foi nos templos que se manteve em funcionamento uma administraccedilatildeo local que aliviada da supervisatildeo fa-raoacutenica oferecia o terreno ideal para a actividade de funcionaacuterios corruptos Satildeo conhecidos excessos cometidos por sacerdotes em Elefantina relatados no Papiro de Turim 188713 Esta tendecircncia atingiu certamente proporccedilotildees bem mais significativas em torno dos grandes templos do Egito onde a riqueza era ainda muito significativa O templo de Aacutemon detinha dois terccedilos da terra araacutevel do Egito noventa por cento da frota fluvial oitenta por cento das oficinas O seu controlo da economia do paiacutes era absoluto e tornou-se inevitaacutevel que o sumo sacerdote de Aacutemon adquirisse um peso poliacutetico sem precedentes

Numa cerimoacutenia ocorrida no ano 10 de Ramseacutes IX no templo de Aacutemon em Karnak o sumo pontiacutefice Amen-hotep foi cumulado de favores alguns dos quais consistiam na transferecircncia dos tributos destinados ao proacuteprio faraoacute para o tesouro do templo de Aacutemon Esta cerimoacutenia foi gravada no muro situado entre o seacutetimo e o oitavo pilone em Karnak Nela pode ver-se Amen-hotep diante do faraoacute Ramseacutes IX e facto inusitado ambos satildeo representados com o mesmo tamanho algo que noutros tempos teria sido inaceitaacutevel e anoacutemalo tendo em conta todas as convenccedilotildees milenares da ideologia real egiacutepcia14

Esta demonstraccedilatildeo de poder foi apenas o preluacutedio de um longo pontificado Amen-hotep sucedera ao seu irmatildeo mais velho Nesiamon15 Sintomaticamente agrave medida que o aparelho burocraacutetico real se degradava a cultura de meacuterito que antes ditava o acesso aos cargos de topo da hierarquia era agora substituiacuteda pelo caraacutecter hereditaacuterio dos mesmos Guindado no cargo pela legitimidade conferida pela sua linhagem familiar Amen-hotep manteve-o durante o reinado de Ramseacutes X acumulando-o com o cargo de intendente dos trabalhos no domiacutenio de Aacutemon grande intendente do palaacutecio real e tal como o seu pai chefe dos sacerdotes de todos os deuses

12 Ver Dodson 2012 1013 Arauacutejo 1999 118 14 Uma outra representaccedilatildeo ilustra Amen-hotep oferecendo um elemento floral do culto de

Montu ao faraoacute o qual aparece na imagem com o mesmo tamanho que o sumo sacerdote de Aacutemon Arauacutejo 1999 154 nota 34 Ver tambeacutem Černyacute 1965 629

15 Arauacutejo 1999 113 Ver tambeacutem Bierbrier 1975 3-13 A famiacutelia de Amen-hotep estava unida com outra famiacutelia importante que descendia de Bakenkhonsu (sumo sacerdote de Aacutemon no tempo de Ramseacutes III)

61

Rogeacuterio Sousa

1 O golpe militar de Panehesi

Esta tendecircncia foi brutalmente interrompida pelo golpe militar liderado por Panehesi o Vice-rei de Kuch Uma carta endereccedilada pelo faraoacute Ramseacutes XI a Pahenesi datada do Ano 17 atesta as boas relaccedilotildees entre ambos e seguramente antecede o eclodir daquele evento16 Provavelmente incentivado pelo proacuteprio faraoacute17 Panehesi o homem forte do momento ataca posiccedilotildees rebeldes ao norte de Tebas dominando Hardai a capital da XVII sepat do Alto Egito Na sequecircncia desta intervenccedilatildeo Panehesi fez o impensaacutevel e depocircs o sumo sacerdote Amen-hotep laquosem que nele houvesse faltaraquo18 Embora eventualmente sancionado pelo proacuteprio faraoacute o golpe desencadeou uma oposiccedilatildeo e indignaccedilatildeo tal que Amen-hotep foi reconduzido novamente nas suas funccedilotildees

Apesar de documentado em vaacuterias fontes incluindo o proacuteprio texto autobiograacutefico de Amen-hotep este acontecimento marcante para a evoluccedilatildeo poliacutetica registada ao longo da XXI dinastia e todo o Terceiro Periacuteodo Intermediaacuterio possui uma dataccedilatildeo muito incerta mas eacute provaacutevel que tenha ocorrido antes do Ano 19 de Ramseacutes XI portanto antes da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo19

O certo eacute que ambos os protagonistas deste episoacutedio viram a sua importacircn-cia poliacutetica esfumar-se daiacute em diante Na sequecircncia deste incidente o poderoso Panehesi eacute repelido para laacute das fronteiras meridionais da Nuacutebia e perde desde entatildeo toda a sua influecircncia em Tebas20 passando doravante a ser qualificado com o pejorativo determinativo de laquoinimigoraquo21 Amen-hotep por outro lado viu daiacute em diante secundarizado o seu estatuto Desconhece-se o destino final de Amen--hotep mas as escavaccedilotildees arqueoloacutegicas no seu tuacutemulo que se erguia imponente em Dra Abu el-Naga natildeo revelaram qualquer vestiacutegio de ter sido usado22

2 A laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo

No Ano 19 de Ramseacutes XI os documentos tebanos passam a ser datados de acordo com uma nova era a Uhem-mesut a laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo23 Eacute o caso do Papiro Mayer A que faz referecircncia ao laquoAno 1 da Repeticcedilatildeo do Nasci-mentoraquo ou do Papiro Abbott que alude ao laquoAno 1 primeiro mecircs de Akhet dia 2

16 Dodson 2012 1517 Arauacutejo 1999 115 Tambeacutem em Kitchen 1986 24718 PBM EA10383 sect25 Em Dodson 2012 1519 Dodson 2012 1420 Černyacute 1965 633 Ver Taylor 2000 33121 Dodson 2012 1622 Cooney 2011 10 23 A expressatildeo whm-mswt (uhem-mesut) laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo derivava segundo

Gardiner de uma foacutermula metafoacuterica alusiva ao renascimento ciacuteclico da lua Em Gardiner 1961 127 Tambeacutem em Arauacutejo 1999 124

62

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

correspondendo ao Ano 19 (de Ramseacutes XI)raquo24Era a terceira vez na histoacuteria egiacutepcia que ocorria uma laquoRepeticcedilatildeo do Nasci-

mentoraquo A primeira ocorreu com Amenemhat I (1991 aC) e a segunda com Seti I (1295 aC) A expressatildeo havia sido usada para proclamar esses reinados como o iniacutecio de uma nova era No Egito o interesse em assegurar a continuidade era em geral mais forte do que o desejo de mudanccedila Iniciar um periacuteodo de gover-naccedilatildeo proclamando-o como um renascimento correspondia a um desejo firme de afirmar uma rutura com o passado recente Amenemhat I havia usado esta expressatildeo para se distanciar do Primeiro Periacuteodo Intermediaacuterio e Seti I para se distanciar do periacuteodo amarniano e de algum modo buscavam o regresso a uma certa laquoortodoxiaraquo No entanto ao contraacuterio das anteriores a nova proclamaccedilatildeo de um renascimento natildeo evocava o regresso a um sistema de governaccedilatildeo previa-mente existente Pelo contraacuterio anunciava uma nova era que verdadeiramente se distinguia de tudo quanto havia existido previamente25 Esta era de renasci-mento natildeo corresponde a um periacuteodo de florescimento cultural mas representa uma das mais importantes viragens da histoacuteria egiacutepcia

3 Herihor e a formulaccedilatildeo da teocracia de Aacutemon

A historiografia deste periacuteodo eacute bastante problemaacutetica A reconstruccedilatildeo atualmente mais consensual faz coincidir o Ano 1 da laquoRepeticcedilatildeo do Nasci-mentoraquo com o iniacutecio do pontificado de Herihor pelo que se deduz que a nova contagem do tempo eacute implementada apoacutes o afastamento se natildeo definitivo pelo menos efetivo de Amen-hotep daquele cargo

A nomeaccedilatildeo de Herihor como sumo sacerdote de Aacutemon afigura-se por-tanto em clara rutura com o estatuto anteriormente detido por Amen-hotep o qual devia a legitimidade do seu cargo agrave sua linhagem familiar A nomeaccedilatildeo de Herihor como sumo sacerdote de Aacutemon contradiz esta tendecircncia jaacute que natildeo soacute natildeo apresenta qualquer genealogia como natildeo seguira sequer uma carreira sacerdotal preacutevia os seus tiacutetulos mencionam unicamente o cargo de superinten-dente dos carros de guerra e o de hauti (comandante do exeacutercito do Egito)26 Eacute portanto na qualidade de chefe militar que Herihor assume o pontificado tebano

A nomeaccedilatildeo de Herihor como sumo sacerdote de Aacutemon coroava portanto uma carreira militar mais do que sacerdotal27 Deste modo eacute legiacutetimo questio-nar ateacute que ponto Herihor representaria efetivamente os interesses do templo de Aacutemon28 A nomeaccedilatildeo de Herihor representou portanto uma rutura profunda

24 Arauacutejo 1999 116 Para outras fontes para a laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo ver tambeacutem Černyacute 1927 194-98

25 Assmann 2002 28926 Arauacutejo 1999 12127 Clayton 1994 17128 Tradicionalmente Herihor eacute visto como o arauto do clero de Aacutemon Veja-se Arauacutejo 1999

63

Rogeacuterio Sousa

nesta ordem e originou seguramente uma reaccedilatildeo no seio do clero tebano A nova contagem do tempo que decorria da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo de certa forma sancionava e legitimava o caraacutecter excecional da eleiccedilatildeo de Herihor e muito pro-vavelmente foi implementada para consolidar a rutura com o passado recente

A partir de Herihor os sumo sacerdotes de Aacutemon seriam doravante gene-rais chefes militares cuja origem egiacutepcia eacute na maior parte dos casos altamente questionaacutevel Contrariando os privileacutegios das linhagens locais e alicerccedilando o seu poder na forccedila militar a nova linhagem de sumo pontiacutefices introduzia uma rutura profunda na organizaccedilatildeo do clero amoniano rutura essa que parece ter servido os interesses do faraoacute29

A formulaccedilatildeo de uma nova era e de um monarca em Tebas fazia inaugurar uma nova relaccedilatildeo poliacutetica com Ramseacutes XI Estas relaccedilotildees que antes eram domeacutes-ticas assumiam agora o caraacutecter de relaccedilotildees entre estados30 E no entanto natildeo resultou desta cisatildeo o aumento de hostilidade entre Tebas e o Norte Muito pelo contraacuterio Uma espeacutecie de concordata caracterizou as suas relaccedilotildees poliacuteticas A laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo utilizava os instrumentos da diplomacia internacio-nal tatildeo eficazmente elaborados ao longo do periacuteodo ramseacutessida para assegurar o domiacutenio da tensatildeo interna a qual continuou a originar incidentes ao longo de toda a XXI dinastia31

A nomeaccedilatildeo de Herihor teve portanto um significado poliacutetico indissociaacutevel da declaraccedilatildeo da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo como uma nova era Herihor empe-nhou-se desde logo na estabilizaccedilatildeo da necroacutepole tebana essencial para controlar a regiatildeo Natildeo eacute certamente por acaso que a maior parte da documentaccedilatildeo referente agrave laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo se relacione com julgamentos relacionados com os roubos efetuados na necroacutepole32 e com as retumulaccedilotildees reais as quais aparentemente se iniciaram sob o seu comando Registos do seu reinado satildeo frequentes entre os restauros feitos agraves muacutemias e aos atauacutedes reais descobertos no tuacutemulo TT 32033

116 Tambeacutem Černyacute 1965 63429 Sinais da resistecircncia a estas medidas iriam continuar a fazer-se sentir no clero tebano pelo

menos ateacute o pontificado de Menkheperreacute altura em que os uacuteltimos focos de resistecircncia parecem ter sido definitivamente eliminados

30 Assmann 2002 28931 A morte aparentemente prematura de Masaharta parece ter sido acompanhada por

distuacuterbios na regiatildeo tebana os quais teratildeo culminado nos acontecimentos narrados na Estela do Banimento que assinala o regresso de Menkheperreacute a Tebas com o intuito expliacutecito de repor a ordem laquofoi ao sul em valor e vitoacuteria para pacificar a terra e suprimir o seu inimigoraquo (Arauacutejo 1999 141) Em seguida na sequecircncia de uma decisatildeo oracular Menkheperreacute anuncia o regresso de exilados (Goff 1979 66)

32 A este respeito ver Peet 193033 As inscriccedilotildees feitas nas faixas mortuaacuterias das muacutemias reais sobretudo nas de Ramseacutes II e

de Seti I satildeo fontes de informaccedilatildeo decisivas para a cronologia da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo O restauro destas muacutemias teria sido ordenado por Herihor provavelmente na sequecircncia da profanaccedilatildeo dos seus tuacutemulos

64

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

Ateacute ao Ano 5 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo nem Herihor em Tebas nem Smendes em Tacircnis detecircm ainda qualquer prerrogativa real como se depreende do relato patente na Viagem de Uenamon Datam ainda desta fase as campa-nhas de decoraccedilatildeo do templo de Khonsu o deus lunar filho de Aacutemon erguido no recinto do templo de Aacutemon-Reacute em Karnak Na sala hipoacutestila do templo de Khonsu Herihor enverga trajes sacerdotais mas eacute representado agrave mesma escala do faraoacute Ramseacutes XI executando os mesmos gestos lituacutergicos em princiacutepio reservados unicamente ao faraoacute Note-se que nem mesmo o sumo sacerdote Amen-hotep havia sido apresentado desta forma34

Contudo no Ano 6 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo (Ano 24 de Ramseacutes XI) verifica-se a assunccedilatildeo da realeza por parte de Herihor e a consequente eleiccedilatildeo de Piankh como sumo sacerdote de Aacutemon no Ano 7 Com a sua aclamaccedilatildeo real uma nova contagem do tempo eacute adicionada desta feita baseada nos anos de reinado de Herihor Esta viragem eacute documentada na decoraccedilatildeo do paacutetio colu-nado do templo de Khonsu em Karnak onde Herihor figura jaacute ataviado como um faraoacute e dotado de uma titularia real35 E no entanto o seu nome de coroaccedilatildeo - nome de rei do Alto e do Baixo Egito - natildeo era outro senatildeo o do seu cargo o de sumo sacerdote de Aacutemon A adoccedilatildeo deste tiacutetulo como nome de rei do Alto e do Baixo Egito o mais importante e significativo da titulatura real e aquele que melhor condensava a quintessecircncia do programa de reinado do faraoacute indica que Herihor integrava o cargo de sumo sacerdote de Aacutemon na sua definiccedilatildeo como laquofaraoacuteraquo o que parece refletir o desejo de reunir num uacutenico indiviacuteduo a autori-dade civil militar e religiosa Mas natildeo eacute tudo Ao adotar as prerrogativas reais Herihor iniciou como era habitual uma nova contagem do tempo atraveacutes dos seus proacuteprios anos de reinado36

A introduccedilatildeo de uma nova contagem do tempo (que se adiciona agrave contagem da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo e do reinado de Ramseacutes XI) estaacute entre as mais significativas medidas adotadas por Herihor assinalando a autonomia poliacutetica do territoacuterio de Tebas em relaccedilatildeo agrave governaccedilatildeo de Ra-mseacutes XI A adoccedilatildeo da titulatura real de Herihor surge portanto como uma consequecircncia decorrente da formulaccedilatildeo de um novo ciclo poliacutetico O tiacutetulo de sumo sacerdote inscrito na cartela real tem um papel chave na definiccedilatildeo deste novo laquoestadoraquo tebano seria na qualidade de pontiacutefice que Herihor iria adotar as prerrogativas reais submetendo a sua estrateacutegia poliacutetica aos dita-mes superiores do culto de Aacutemon Em suma a proclamaccedilatildeo do estatuto real de Herihor traduz a implementaccedilatildeo em pleno de um novo sistema poliacutetico em Tebas a teocracia de Aacutemon

34 Dodson 2012 2235 Clayton 1994 17136 James et Morkot 2010 255

65

Rogeacuterio Sousa

Ao associar o cargo de sumo pontiacutefice com o exerciacutecio do poder real este novo sistema poliacutetico tinha uma loacutegica concentracionaacuteria Tradicionalmente o sistema egiacutepcio assentava na separaccedilatildeo estrita entre a monarquia e o exerciacutecio de responsabilidades administrativas Era um facto sem precedentes que um rei fosse sumo sacerdote e chefe militar37 O novo sistema poliacutetico a teocracia de Aacutemon assentava portanto na concentraccedilatildeo de todos os poderes num uacutenico indiviacuteduo que era acima de tudo um chefe militar

4 Piankh e o fim da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo

Ao que tudo indica Herihor teve uma extensa prole No paacutetio colunado do templo de Khonsu em Karnak um extenso cortejo liderado por Nedjemet a sua mulher apresenta 19 filhos e 19 filhas38 Apesar disso no Ano 7 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo (Ano 24 de Ramseacutes XI) um ano apoacutes a assunccedilatildeo da realeza por Herihor seria Piankh a ser eleito sumo sacerdote de Aacutemon

Eacute sintomaacutetico que a sucessatildeo do sumo pontiacutefice natildeo se tenha traduzido na implementaccedilatildeo de uma nova contagem do tempo como era a regra no sistema de sucessatildeo faraoacutenico o que demonstra bem a demarcaccedilatildeo de poderes entre He-rihor e Piankh39 Durante o seu pontificado Piankh autointitula-se o laquogeneral do faraoacuteraquo expressatildeo que se pode aplicar tanto a Herihor como a Ramseacutes XI40 e que de resto se justificava em pleno jaacute que ao longo do seu curto pontificado Piankh parece ter desempenhado sobretudo o papel de chefe militar empenhando-se em campanhas militares dirigidas na Nuacutebia reclamando o cargo de vice-rei de Kuch As suas campanhas militares mantiveram-no no encalccedilo de Panehesi mas o con-trolo dos preciosos recursos de Kuch ndash as minas de ouro e as rotas caravaneiras com a Aacutefrica subsaariana ndash estava perdido41

Adicionalmente Piankh empenhou-se em assegurar a eliminaccedilatildeo dos opo-sitores ao regime Numa carta dirigida a Nedjemet Piankh natildeo hesita em referir despreocupadamente o seu envolvimento no assassinato de dois poliacutecias42 ciente da sua autonomia em relaccedilatildeo ao poder real laquoQuanto ao faraoacute (vida sauacutede e pros-peridade) como poderia ele aqui chegar E a quem eacute o faraoacute ainda superiorraquo43

37 O rei natildeo se limitava a delegar estas funccedilotildees num oficial eleito nas cuacutepulas da hierar-quia estas responsabilidades estavam bem delimitadas Nem estes cargos eram atribuiacutedos aos membros da famiacutelia real A exceccedilatildeo era o cargo de general supremo cargo que soacute se tornou prevalente no periacuteodo ramseacutessida e era exercido pelo priacutencipe herdeiro Os vizires (um para o Sul e outro para o Norte) e o sumo sacerdote de Aacutemon eram recrutados de outras famiacutelias Em Assmann 2002 290

38 Dodson 2012 34-2539 James et Morkot 2010 25540 Goff 1979 5441 Taylor 2000 33142 Dodson 2012 3243 PBerlim 10487 (LRL21)

66

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

Em todo o caso apesar da atitude insolente as relaccedilotildees de Piankh com Ramseacutes XI mantiveram-se com aparente normalidade Uma inscriccedilatildeo datada do Ano 7 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo redigida no pavilhatildeo de Amen-hotep II em Karnak faz referecircncia ao laquorei do Alto e do Baixo Egito Menmaetreacute-setepena-monraquo Ramseacutes XI mencionando um oraacuteculo solicitado por Piankh44

Piankh e Ramseacutes XI parecem ter morrido sensivelmente na mesma altura45 Piankh faleceu no Ano 10 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo (Ano 28 de Ramseacutes XI Ano 5 de Herihor) e Ramseacutes XI no Ano 11 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo Refletindo os ventos de mudanccedila impostos por Herihor na ne-croacutepole tebana Ramseacutes XI natildeo parece ter sido sepultado no tuacutemulo que havia sido preparado para si no Vale dos Reis (KV 4) As pesquisas desenvolvidas em 1979-1980 por John Romer ao serviccedilo do Museu de Brooklyn apontam para a possibilidade do tuacutemulo ter permanecido inacabado e que o faraoacute natildeo tenha sido de facto aiacute sepultado A verdade eacute que a muacutemia de Ramseacutes XI natildeo foi encontrada em nenhum dos esconderijos tebanos usados para inumar as muacutemias reais do Impeacuterio Novo46

Doravante Pinedjem I filho de Piankh iria assumir o pontificado tebano e a contagem do tempo prosseguiu com o reinado de Herihor o qual poderaacute ainda ter-se prolongado por mais 15 anos47 Durante o pontificado de Pinedjem I eacute notoacuterio que o tuacutemulo de Ramseacutes XI foi usado como oficina para reciclar material funeraacuterio proveniente dos tuacutemulos KV 20 (Hatchepsut) KV 34 (Tutmeacutes III) e presumivelmente KV 38 (Tutmeacutes I)48 refletindo a mudanccedila dramaacutetica da poliacutetica oficial tebana relativamente ao culto dos antepassados reais

No Norte Smendes ascendeu ao trono inaugurando a XXI dinastia Tambeacutem o sumo pontiacutefice tebano Pinedejm I acabaria por assumir aberta-mente prerrogativas reais (no Ano 16 de Herihor)49 e seratildeo na praacutetica os seus descendentes que iratildeo reger os destinos das Duas Terras Psusennes I em Tacircnis e Menkheperreacute em Tebas

44 Goff 1979 52 Inscriccedilatildeo e traduccedilatildeo em Nims 1948 157-6245 Clayton 1994 17646 Clayton 1994 171 Ver tambeacutem Reeves 199047 James et Morkot 2010 25548 A cacircmara funeraacuteria do tuacutemulo de Ramseacutes XI apresentava um poccedilo no lugar onde o

sarcoacutefago havia de ser depositado No fundo do poccedilo foram encontradas peccedilas fragmentadas provenientes de equipamentos funeraacuterios de diversos faraoacutes fragmentos de loiccedila de faianccedila azul com o nome de Hoacuterus de Tutmeacutes I e de Ramseacutes II fragmentos de gesso dourado alguns espoliados do atauacutede de Tutmeacutes III estilhaccedilos de estatuetas funeraacuterias reais provenientes do KV 34 dois deles com o nome de coroaccedilatildeo de Tutmeacutes III fragmentos de um atauacutede feminino real possivelmente pertencente a Hatchepsut e trecircs estatuetas funeraacuterias de Ramseacutes IV (Wilkinson 1996 173)

49 Pinedjem I apresenta o tiacutetulo de rei no Templo de Khonsu bem como na inscriccedilatildeo do Ano 8 do seu reinado e na inscriccedilatildeo do Ano 16 (de Herihor) sendo entatildeo Masaharta sumo pontiacutefice (Goff 1979 56)

67

Rogeacuterio Sousa

Com Smendes I (1069-1043) em Tacircnis e Pinedjem I (1070-1032) em Tebas as referecircncias agrave laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo terminam Chegara ao fim a Uhem--mesut que durara apenas doze anos (1080-1069) 50 ao longo dos quais uma transiccedilatildeo eficaz para uma nova configuraccedilatildeo poliacutetica foi plenamente assegurada Natildeo se conhece ainda qualquer vestiacutegio acerca do local de enterramento do faraoacute Herihor nem tatildeo-pouco de Ramseacutes XI os grandes obreiros desta transformaccedilatildeo poliacutetica mas eacute muito possiacutevel que ambos tenham sido sepultados no mesmo tuacutemulo coletivo ainda por localizar

5 A Ramificaccedilatildeo do poder

Embora em segundo plano na trama historiograacutefica da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo o papel desempenhado por Ramseacutes XI parece ter sido decisivo numa reforma que iria transformar o exerciacutecio do poder ao longo de todo o Ter-ceiro Periacuteodo Intermediaacuterio Embora silencioso eacute o seu vulto que se adivinha decisivo nos bastidores da cena poliacutetica para a afirmaccedilatildeo dos chefes militares liacutebios no contexto tebano e para a subsequente redefiniccedilatildeo do poder poliacutetico no Egito Em boa verdade o clero amoniano foi decepado da sua cuacutepula - os sumo sacerdotes de Aacutemon ndash e foi subordinado ao domiacutenio de chefes militares que embora egipcianizados natildeo conseguiam ou natildeo queriam disfarccedilar a sua origem liacutebia

A alianccedila entre o faraoacute e os chefes militares de origem liacutebia coloca grandemente em causa a imagem frequentemente divulgada de Ramseacutes XI como um monarca fraco Os dados satildeo longe de serem conclusivos mas eacute uma forte possibilidade a ter em conta o envolvimento direto do faraoacute nos acontecimentos que levaram agrave deposiccedilatildeo de Amen-hotep e agrave subsequente expulsatildeo de Panehesi para a Nuacutebia Num soacute golpe os dois homens fortes do momento foram afastados Estes factos desencadearam uma forte tensatildeo em Tebas e levariam agrave implementaccedilatildeo da laquoRepeticcedilatildeo dos Nascimentoraquo que mais natildeo foi do que um haacutebil e eficaz sistema para implantar na mais elevada hier-arquia tebana a casta militar laquoliacutebiaraquo que manifestou sempre uma fidelidade inquestionaacutevel ao faraoacute

No iniacutecio da XXI dinastia o Egito era constituiacutedo por dois estados que aplicavam entre si os princiacutepios do relacionamento diplomaacutetico fomentando estreitos laccedilos familiares Os sumo sacerdotes de Aacutemon detinham autoridade sobre todo o Alto Egito desde Uauat (regiatildeo norte da Nuacutebia) ateacute El-Hiba (a sul do Faium) 51 A jurisdiccedilatildeo praacutetica dos faraoacutes que reinavam em Tacircnis (Djanet em egiacutepcio) abrangia o Delta e a regiatildeo do Faium A fronteira formal entre os dois estados foi delimitada em El-Hiba a sul do braccedilo do Nilo que desagua no Faium

50 Arauacutejo 1999 13051 Taylor 2000 331

68

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

Sinal que esta fronteira natildeo era apenas simboacutelica eacute a construccedilatildeo de fortalezas nesta aacuterea52

Tacircnis a nova capital do Delta era a sede espiritual da nova linhagem real inteiramente construiacuteda com materiais reutilizados da antiga capital ramseacutessida Pi-Ramseacutes A sacralidade do seu estatuto foi robustecida com a sua eleiccedilatildeo como necroacutepole real Tebas no sul era a sede inquestionaacutevel da nova teocracia de Aacutemon o qual era o verdadeiro rei do Egito Neste siste-ma poliacutetico as decisotildees eram formalizadas atraveacutes de consulta oracular por ocasiatildeo do Festival da Divina Audiecircncia sediada em Karnak53 A Viagem de Uenamon documenta cruamente ateacute que ponto o novo sistema implementado em Tebas com ecircxito se desfasara da realidade poliacutetica internacional Quando o poderoso deus tebano encomendou uma nova barca sagrada Herihor confiou a Uenamon a importante missatildeo de adquirir madeira de cedro em Biblos mas aparentemente natildeo achou relevante incluir na bagagem do fiel emissaacuterio a prata necessaacuteria ao pagamento da preciosa madeira Diante do Priacutencipe de Biblos Uenamon natildeo pocircde senatildeo avanccedilar como retribuiccedilatildeo a simples mas generosa promessa de muitos e felizes anos de vida concedidos pelo poderoso Aacutemon ao Senhor de Biblos Este no entanto viu-se na obrigaccedilatildeo de lembrar a Uenamon como os seus antepassados haviam negociado trocando a madeira pela prata A situaccedilatildeo acabou por ser desbloqueada por Smendes que assegurou o paga-mento exigido pela madeira54 A situaccedilatildeo ilustra soberbamente o desfasamento atingido pelo sistema poliacutetico tebano o qual se baseava num isolamento cultu-ral e civilizacional sem precedentes

Apesar de entidades poliacuteticas distintas os dois reinos eram no entanto lideradas manifestamente pela mesma famiacutelia55

Com a bipolarizaccedilatildeo do Egito em dois reinos a XXI dinastia eacute em grande medida um preluacutedio para a organizaccedilatildeo poliacutetica do chamado laquoperiacuteodo liacutebioraquo (XXII-XIV dinastias) o qual na praacutetica eacute iniciado com Herihor O monopoacute-lio do poder que sempre havia caracterizado o Egito deu lugar a um sistema de alianccedilas no qual os vaacuterios pequenos estados se protegiam uns dos outros por forccedilas militares proacuteprias56 O monopoacutelio dos impostos foi substituiacutedo por tributos A laquofeudalizaccedilatildeoraquo da burocracia egiacutepcia foi uma consequecircncia da ascen-satildeo dos liacutebios agraves posiccedilotildees de topo da sociedade egiacutepcia57 O Egito natildeo escapou portanto aos efeitos que afetaram a queda dos impeacuterios do Bronze58

52 Taylor 2000 33353 Taylor 2000 33254 Assmann 2002 29455 Goff 1979 7056 Taylor 2000 338-4657 Assmann 2002 29658 Assmann 2002 296

69

Rogeacuterio Sousa

Este processo contudo natildeo foi visto como uma sujeiccedilatildeo a um poder estrangeiro algo que soacute seraacute verdadeiramente sentido sob a dominaccedilatildeo assiacuteria e persa Nem tatildeo pouco a desintegraccedilatildeo poliacutetica foi sentida como um tempo de caos como ateacute aiacute sempre acontecera e a fragmentaccedilatildeo do paiacutes natildeo originou qualquer elaboraccedilatildeo sobre a inversatildeo da ordem coacutesmica

A laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo fundou uma nova estrutura poliacutetica muito diferente da que havia caracterizado os impeacuterios do Bronze Eacute neste curto periacuteodo temporal e aparentemente sem as convulsotildees sociais e militares que caracterizaram esta transiccedilatildeo noutros quadrantes que se reorganizou o exerciacutecio do poder e se reformou o quadro teoloacutegico que o legitimava garantindo assim a reactualizaccedilatildeo do complexo sistema faraoacutenico no contexto das civilizaccedilotildees da Idade do Ferro

A laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo consistiu portanto num periacuteodo de transiccedilatildeo em que com uma surpreendente agilidade e rapidez se procedeu agrave reforma das milenares estruturas poliacuteticas do Egito e se criaram as fundaccedilotildees que haveriam de garantir a manutenccedilatildeo do Egito no mapa poliacutetico e civilizacional do Mediterracircneo por mais de um mileacutenio

70

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

Bibliografia

Assmann J 2002 The Mind of Egypt History and meaning in the time of the Pharaohs Cambridge MA London Harvard University Press

Arauacutejo L 1999 O clero do deus Aacutemon no Antigo Egipto Lisboa Ediccedilotildees CosmosBarguet P 1962 Le Temple d Aacutemon-Recirc agrave Karnak Essai dacuteExeacutegegravese Le Caire

Institut Franccedilais drsquoArchaeologie OrientaleBickerstaffe D 2009 Refugees for Eternity The Royal Mummies of Thebes Vol

4 London Canopus PressBierbrier M 1975 The late New Kingdom in Egypt (c 1300-664 BC) A genealogical

and chronological investigation Warminster Aris amp PhilipsČernyacute J 1965 ldquoEgypt from the dead of Ramesses III to the end of the 21st

Dynastyrdquo In The Cambridge Ancient History II (The Middle East and the Aegean Region c 1300-1000 BC) ed I E S Edwards C J Gadd N G L Hammond e E Sollberger 606-57 Cambridge Cambridge University Press

mdashmdashmdash 1946 ldquoStudies in the chronology of the twenty-first dynastyrdquo The Journal of Egyptian Archaeology 3224-30

mdashmdashmdash 1927 ldquoA note on the acuteRepetition of births rdquo The Journal of Egyptian Archaeology 15194-98

Cooney K 2011 ldquoChanging burial practices at the end of the New Kingdom Defensive adaptations in tomb commissions coffin commissions coffin decoration and mummificationrdquo Journal of the American Research Center in Egypt 473-44

Clayton P 1994 Chronicle of the Pharaohs The reign-by-reign record of the rulers and Dynasties of Ancient Egypt London Thames amp Hudson

Dodson A 2012 Afterglow of Empire Egypt from the fall of the New Kingdom to the Saite Renaissance Cairo New York The American University Press

Elias J 1993 ldquoCoffin inscription in Egypt after the New Kingdom A Study of Text Production and Use in Elite Mortuary Preparationrdquo Dissertaccedilatildeo de Doutoramento apresentada ao Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago

Epigraphic Survey 1979-1981 Scenes and Inscriptions in the court and the first Hypostyle hall The Temple of Khonsu 2 vols Chicago Oriental Institute Publications

Gardiner A 1961 Egypt of the Pharaohs An Introduction London Oxford New York Oxford University Press

Goedicke H 1975 The Report of Wenamun Baltimore John Hopkins Near Eastern Studies

71

Rogeacuterio Sousa

Goelet O 1996 ldquoA new ldquorobberyrdquo papyrus Rochester Mag 513461rdquo The Journal of Egyptian Archaeology 82107-27

Goff B 1979 Symbols of Ancient Egypt in the Late Period Twenty-first Dynasty The Hague Paris New York Mouton Publishers

James P e R Morkot 2010 ldquoHerihor s kingship and the High Priest of Amun Piankhrdquo Journal of Egyptian History 3 (2)231-60

Kitchen K 1986 The Third Intermediate Period in Egypt Warminster Aris amp Phillips

mdashmdashmdash 1982-1983 ldquoFurther thoughts on Egyptian chronology in the Third Intermediate Periodrdquo Revue drsquoEgyptologie 3459-69

mdashmdashmdash 1965 ldquoOn the chronology and history of the New Kingdomrdquo Chronique drsquoEgypte 40310-22

Lefebvre G 1929 Histoire des Grands Precirctres dacute Aacutemon de Karnak jusqursquo a la XXI dynastie Paris Paul Geuthner

Nims C 1948 ldquoAn Oracle dated in the acuteRepetition of Births rdquo Journal of Near Eastern Studies 7157-62

Niwinski A 1979 ldquoProblems in the Cronology and genealogy of the XXI dynasty New proposals for their interpretationrdquo The Journal of the American Research Center in Egypt 1649-68

Peet E 1930 The Great Tomb Robberies of the Twentieth Egyptian Dynasty being a critical study with translations and commentaries of the papyri in which these are recorded Oxford Clarendon Press

mdashmdashmdash 1928 ldquoThe chronological problems of the Twentieth Dynastyrdquo The Journal of Egyptian Archaeology 1452-72

Polz D 2001 ldquoThebesrdquo In Oxford Encyclopaedia of Ancient Egypt Vol 3 ed D Redford 384-87 Cairo The American University in Cairo Press

Reeves N 1990 The Valley of the Kings The decline of a royal necropolis London New York Kegan Paul International

Taylor J 2000 ldquoThe Third Intermediate Periodrdquo In The Oxford History of Ancient Egpyt ed I Shaw 330-68 Oxford Oxford University Press

mdashmdashmdash 1998 ldquoNodjmet Payankh and Herihor The end of the New Kingdom reconsideredrdquo In Proceedings of the Seventh International Congress of Egyptologists ed C Eyre 1144-55 Leuvein Peeters

Trigger B B Kemp D OacuteConnor e A Lloyd 1983 Ancient Egypt A social history Cambridge Cambridge University Press

Wainwright G A 1962 ldquoThe Meshweshrdquo The Journal of Egyptian Archaeology 4889-99

72

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

Fig 1 ndash Herihor na qualidade de sumo pontiacutefice oficia diante de Mut (esquerda) e Ramseacutes XI diante de Khonsu (direita) Sala hipostila do Templo de Khonsu em Karnak

Fig 2 ndash Entronizaccedilatildeo do faraoacute Herihor Paacutetio do Templo de Khonsu em Karnak

73

Rogeacuterio Sousa

Fig 3 ndash Cortejo liderado por Nedjemet (em cima agrave direita) dos filhos e filhas de Herihor Paacutetio do Templo de Khonsu em Karnak

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

75

Maria de Faacutetima Rosa

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina1

(Hammu-rabi and the beginning of his hegemonic ascent political order and divine legitimation)

Maria de Faacutetima Rosa(frosafcshunlpt ORCID 0000-0003-2302-7751)

Universidade Nova de Lisboa CHAM Universidade dos Accedilores

Resumo - Este estudo pretende analisar a ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammu-rabi em dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Estes dois episoacutedios a guerra contra o Elam e o ataque ao reino de Larsa constituem o ponto de viragem do reinado de Hammu-rabi e marcam o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia

Palavras-chave Babiloacutenia Hammu-rabi Larsa Elam Hegemonia

Abstract ndash This brief study intends to analyze the ideology underlying the social and military policies carried out by Hammu-rabi at two crucial moments in the history of Babylon These two episodes the war against Elam and the attack against the kingdom of Larsa constitute a turning point in the reign of Hammu-rabi and highlight the beginning of his hegemonic ascent

Keywords Babilonia Hammu-rabi Larsa Elam Hegemony

Este breve estudo pretende analisar a ideologia subjacente agraves poliacuteticas so-ciais e militares levadas a cabo por Hammu-rabi em dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Estes dois episoacutedios a guerra contra o Elam e o ataque ao reino de Larsa constituem o ponto de viragem do reinado de Hammu-rabi e marcam o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia

Alguns autores consideram que no seu apogeu o territoacuterio governado por Hammu-rabi constituiacutea um verdadeiro laquoimpeacuterioraquo2 O periacuteodo inaugurado pelo monarca em cerca de 1763 aC3 seria marcado pela preponderacircncia da Babiloacute-nia e viria a terminar apenas em 1595 aC com a tomada da cidade pelos hititas

1 Abreviaturas usadas AbB ndash Altbabylonische Briefe ARM ndash Archives Royales de Mari CH ndash laquoCoacutedigoraquo de Hammu-rabi LAPO ndash Litteacuteratures anciennes du Proche-Orient RA ndash Revue drsquoAssyriologie et drsquoArcheacuteologie Orientale RIME ndash The Royal Inscriptions of Mesopotamia Early Periods

2 Veja-se Charpin 2003 105-6 O autor considera que segundo os criteacuterios que geralmente definem um impeacuterio isto eacute a diversidade etnolinguiacutestica a extensatildeo territorial e o exerciacutecio de um poder forte e centralizado eacute possiacutevel designar a Babiloacutenia do final do reinado de Hammu-rabi como impeacuterio

3 Data da anexaccedilatildeo de Larsa

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_4

76

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

1 Os primeiros anos de reinado

Hammu-rabi pertencia a uma das vaacuterias dinastias amorritas que se haviam instalado na bacia mesopotacircmica Quando o soberano subiu ao poder em 1792 aC a Babiloacutenia tinha pouco mais de um seacuteculo e cobria uma extensatildeo territo-rial pouco significativa comparativamente agraves grandes potecircncias da altura4

As fontes de que dispomos para estudar o iniacutecio do reinado de Hammu-rabi satildeo muito escassas5 A julgar pela designaccedilatildeo atribuiacuteda aos primeiros anos do seu governo Hammu-rabi teria feito algumas incursotildees em territoacuterios vizinhos De entre estas accedilotildees militares destacam-se a tomada de Isin e Uruk (no 7ordm ano do reinado) e a conquista do Malgiucircm (no 10ordm ano do reinado) Contudo o facto de vermos estes territoacuterios retomarem a sua anterior suserania6 ou reconquistarem a sua independecircncia7 indica-nos que constituiacuteram accedilotildees pontuais sem grandes efeitos praacuteticos e pouco vocacionadas para uma verdadeira ambiccedilatildeo expansionista

A conjuntura poliacutetica de entatildeo marcada ateacute 1775 aC pelo domiacutenio de Samsicirc-Addu soberano do reino da Alta Mesopotacircmia e a posiccedilatildeo geograacutefica da Babiloacutenia localizada entre as potecircncias de Larsa e de Ešnunna teratildeo constituiacutedo entraves a uma possiacutevel expansatildeo Hammu-rabi teraacute por conseguinte con-centrado os seus esforccedilos no desenvolvimento interno promovendo a coesatildeo criando infraestruturas e sobretudo consolidando a sua relaccedilatildeo com o mundo divino Na designaccedilatildeo atribuiacuteda aos anos do seu reinado satildeo vaacuterias as referecircn-cias agrave construccedilatildeo de templos e agraves doaccedilotildees de tronos e de estaacutetuas aos deuses

2 Os anos das grandes convulsotildees

A morte de Samsicirc-Addu em 1775 aC inicia um periacuteodo de relativo equiliacute-brio entre as vaacuterias potecircncias do mundo siro-mesopotacircmico Apoacutes alguns anos

4 Cf Ibid 445 De entre estas destacam-se algumas inscriccedilotildees reais e documentos de arquivos privados

Para aleacutem destes textos a designaccedilatildeo dos anos do reinado de Hammu-rabi eacute um elemento importante que nos permite conhecer os principais acontecimentos poliacuteticos militares ou reli-giosos A partir de 1775 aC as fontes que testemunham com maior rigor as poliacuteticas diplomaacute-ticas de Hammu-rabi provecircm do palaacutecio real de Zimricirc-Licircm Os Arquivos Reais de Mari (ARM) abrangem o periacuteodo em que se desenrolam as principais guerras na bacia da Mesopotacircmia e terminam no ano de 1762 aC precisamente quando a cidade eacute tomada por Hammu-rabi No que respeita agrave administraccedilatildeo interna destaca-se a correspondecircncia trocada entre Hammu-rabi e os seus altos funcionaacuterios Šamaš-haṣir e Sicircn-iddinam Esta documentaccedilatildeo retrata o periacuteodo consequente agrave anexaccedilatildeo do reino de Larsa e as medidas tomadas para proceder agrave sua integraccedilatildeo no territoacuterio babiloacutenico

6 As cidades de Isin e de Uruk estavam no iniacutecio na posse de Larsa O soberano Ricircm-Sicircn teria reconquistado as possessotildees pouco tempo apoacutes a tomada de Hammu-rabi

7 O Malgiucircm dominava um sector importante do rio Tigre e controlava o fornecimento de aacutegua a Larsa Tal como se passou relativamente agraves possessotildees de Isin e de Uruk tambeacutem o reino do Malgiucircm se teria libertado pouco tempo depois do jugo de Hammu-rabi

77

Maria de Faacutetima Rosa

a situaccedilatildeo comeccedila a tornar-se cada vez mais propiacutecia a possiacuteveis ambiccedilotildees ex-pansionistas No entanto caso Hammu-rabi alimentasse algumas esperanccedilas de expansatildeo territorial as mesmas ver-se-iam comprometidas apoacutes a entrada em cena de um poder poliacutetico que ateacute entatildeo se mantivera agrave margem dos problemas da Mesopotacircmia o Elam De facto quando em 1765 aC8 o sukkal9 do Elam10 decide atacar o reino de Ešnunna Hammu-rabi coloca-se a seu lado envian-do os seus contingentes para ajudar na conquista da cidade O que o soberano certamente natildeo esperava era que apoacutes a vitoacuteria o sukkal se instalasse no trono dessa cidade Ora a razatildeo principal pela qual Hammu-rabi o auxiliara devera--se ao facto de pretender retomar as antigas cidades de Mankisum e Upi Estas possessotildees teriam pertencido agrave Babiloacutenia no reinado do seu avocirc Apil-Sicircn antes de caiacuterem nas matildeos do rei de Ešnunna

A presenccedila do sukkal em territoacuterio mesopotacircmico impunha algumas restriccedilotildees agrave accedilatildeo poliacutetica de Hammu-rabi Eacute que Ṣiwa-palar-huhpak era natildeo soacute rei do Elam como tambeacutem suserano de vaacuterios reinos siro-mesopotacircmicos entre os quais a Babiloacutenia As tensotildees entre ambos tecircm iniacutecio quando o sukkal fazendo valer a sua autoridade endereccedila a Hammu-rabi uma carta exigindo a libertaccedilatildeo das cidades recentemente reconquistadas O tom autoritaacuterio com que Ṣiwa-palar-huhpak se lhe dirige denota o esfriar das relaccedilotildees entre ambos laquoAs cidades que deteacutens natildeo satildeo minhas Liberta-as e submete-te ao meu jugo Senatildeo pilharei o teu paiacutesraquo11

A recusa de Hammu-rabi precipita a guerra que rapidamente se espalha por todo o mundo siro-mesopotacircmico Eacute precisamente este conflito que atinge uma dimensatildeo laquomundialraquo que vai catapultar Hammu-rabi para um lugar de primeiro plano na cena poliacutetica internacional e marcar o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia

Esta ascensatildeo eacute bastante ceacutelere Podemos dizer que no espaccedilo de escassos quatro anos o rei da Babiloacutenia se consegue afirmar como o soberano mais po-deroso da Mesopotacircmia Um aspeto que nos possibilita compreender o impacto das suas conquistas durante este periacuteodo eacute precisamente a titulatura que ele vai adotando Ora aquando da derrota do Elam no 30ordm ano do seu reinado

8 A data da queda de Ešnunna natildeo eacute consensual Em Charpin e Ziegler 2003 248 Domi-nique Charpin considera que a derrota do reino de Ibacircl-picirc-El II data de 1765 aC Todavia a intensidade do intercacircmbio de presentes entre o sukkal e alguns monarcas siacuterios nos dois anos precedentes poderaacute ser testemunho de que a mesma teraacute ocorrido numa data anterior De facto este intercacircmbio poderaacute ter sucedido a tomada da cidade e o reforccedilo das relaccedilotildees entre os aliados

9 sukkal ou sukkalmah eacute o tiacutetulo do governador do Elam10 O reino do Elam localizava-se na parte ocidental do atual Iratildeo nos montes Zagros locali-

zados a este da Mesopotacircmia O forte poder do Elam representava uma ameaccedila constante para a Mesopotacircmia

11 A3618 l 21rsquo-24rsquo (texto editado em Charpin 1999 122 n 37)

78

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

Hammu-rabi era simplesmente conhecido como o laquorei da Babiloacuteniaraquo A este tiacutetulo ele vai adicionando sucessivamente

- O tiacutetulo de laquorei do paiacutes de Sumer e Akkadraquo apoacutes a anexaccedilatildeo do reino de Larsa que tem lugar no 31ordf ano do reinado

- O tiacutetulo de laquorei de todo o paiacutes amorritaraquo apoacutes a derrota do reino de Mari12 que tem lugar no 32ordf ano do seu reinado

- O tiacutetulo de laquorei dos quatro cantos do mundoraquo (isto eacute do laquouniversoraquo) que o soberano adota a dada altura do seu reinado e que eacute aquele que melhor expressa as suas pretensotildees hegemoacutenicas e laquouniversaisraquo13

Resta-nos referir que entre a anexaccedilatildeo do reino de Larsa e a destruiccedilatildeo de Mari14 Hammu-rabi se apodera da cidade de Ešnunna15 anulando assim os dois poderes que teriam no iniacutecio constituiacutedo entraves agrave sua expansatildeo Larsa e Ešnunna

21 A derrota do ElamO ataque do sukkal do Elam natildeo se teria limitado agrave Babiloacutenia Outros esta-

dos foram afetados pela ofensiva elamita nomeadamente os pequenos reinos da regiatildeo da Jazira16 Estes paiacuteses estavam unidos por laccedilos de alianccedila aos poderosos reinos siro-mesopotacircmicos O soberano de Mari por exemplo teria desde cedo imposto uma poderosa rede de aliados (de vassalos) na regiatildeo do delta do rio Habur Como suserano competia-lhe prestar apoio militar aos seus vassalos O proacuteprio rei de Mari Zimricirc-Licircm seria por sua vez um laquoservoraquo do rei do Yamhad um importante centro de poder a oeste da Siacuteria Ora esta complexa teia de rela-ccedilotildees diplomaacuteticas obrigava a que em caso de guerra todos aqueles que tinham contraiacutedo uma alianccedila enviassem os seus contingentes militares para prestar auxiacutelio aos seus aliados Assim aquando do iniacutecio do conflito tanto Hammu--rabi como os monarcas da regiatildeo da Jazira recorreram agraves suas vaacuterias alianccedilas na esperanccedila de obterem apoio militar Compreendemos entatildeo o porquecirc desta guerra se ter espalhado tatildeo depressa por todo o Proacuteximo Oriente

12 O reino de Mari que controlava todo o sector do meacutedio Eufrates caracterizava-se pelo seu forte dimorfismo social Um dos aspetos que marca o reinado de Zimricirc-Licircm eacute a luta constante pela coesatildeo social e pela pacificaccedilatildeo interna As grandes tribos amorritas de entatildeo os bensima-litas e os benjaminitas teriam exercido um papel determinante no desenvolvimento interno e na poliacutetica externa do reino Apoacutes a queda de Larsa e de Ešnunna Mari passou a constituir o uacuteltimo grande reino amorrita que faltava a Hammu-rabi conquistar para se poder declarar rei do paiacutes de Amurru

13 Veja-se RIME 343 l 1-5 e 348 l 414 A conquista ocorre em 1762 aC no 31ordm ano do reinado de Hammu-rabi15 Ešnunna reconquista a sua independecircncia apoacutes a derrota do Elam pelas forccedilas aliadas

de Hammu-rabi A populaccedilatildeo do reino elege entatildeo como rei um general chamado Ṣillicirc-Sicircn As relaccedilotildees entre o novo soberano de Ešnunna e Hammu-rabi satildeo de iniacutecio amigaacuteveis No entanto divergecircncias poliacuteticas teratildeo levado a um distanciamento

16 Regiatildeo localizada no Norte entre os rios Eufrates e Tigre

79

Maria de Faacutetima Rosa

O Elam viria a ser derrotado cerca de um ano apoacutes os primeiros confrontos O facto de a batalha mais importante se ter desenrolado em territoacuterio babiloacuteni-co mais precisamente na cidade de Hicircricirctum contribuiu para que Hammu-rabi saiacutesse desta guerra laquopan-amorritaraquo como o grande vencedor Em grande parte podemos dizer que os esforccedilos de uniatildeo das tropas e de apelo agrave accedilatildeo partiram do proacuteprio Hammu-rabi Eacute ele quem incita o seu homoacutelogo Zimricirc-Licircm a escrever--lhe constantemente de modo a possibilitar uma accedilatildeo conjunta que pudesse travar a incursatildeo do Elam17 Eacute ele tambeacutem quem exerce pressatildeo junto dos seus aliados18 para que os seus contingentes militares se reuacutenam e ponham fim agrave guerra Natildeo obstante como lugar-tenente da sua divindade e devoto do mundo divino Hammu-rabi eacute o primeiro a reconhecer que a tatildeo almejada vitoacuteria soacute fora possiacutevel laquocom o poder supremo dos grandes deusesraquo19

De facto neste episoacutedio transparece uma ideologia de guerra muito clara segundo a qual o soberano agia segundo a ordem divina ou seja defendendo o interesse dos deuses Natildeo soacute a vitoacuteria lhes eacute atribuiacuteda como tambeacutem a proacutepria razatildeo pela qual Hammu-rabi se envolvera na guerra Uma vez que se tratara de um ataque o rei babiloacutenico vira-se obrigado a defender o seu territoacuterio Todavia ele soacute o fizera apoacutes Enlil descortinar os desiacutegnios do elamita Com efeito eacute do seguinte modo que se expotildee o motivo da guerra a um grupo de mensageiros elamitas

laquoO vosso senhor (sukkal do Elam) transgrediu o limite do juramento dos seus deuses e tenciona pecar e agir com inimizade Que ele venha e que Enlil veja o laquosimraquo e o laquonatildeoraquo do seu coraccedilatildeo (= as suas intenccedilotildees)raquo20

O que sobressai nesta exposiccedilatildeo eacute precisamente o facto do sukkal do Elam ter sido primeiramente sujeito a um laquoexameraquo por parte de Enlil O deus tecirc-lo-ia posto agrave prova apoacutes a transgressatildeo da vontade divina isto eacute do seu juramento Hammu-rabi era ainda um ator passivo nesta contenda O mesmo soacute teria agido

17 Eacute no Norte (na regiatildeo de influecircncia do rei de Mari) que a ameaccedila do Elam tem mais impacto Zimricirc-Licircm encontrava-se em viagem pelo Oeste quando tiveram iniacutecio os conflitos na Mesopotacircmia Os documentos ARM VI 51 e 52 e ARM XXVIII 7 8 e 9 testemunham esta ausecircncia de Zimricirc-Licircm e atestam a frequecircncia com que Hammu-rabi fazia chegar informaccedilotildees ao seu homoacutelogo porventura sublinhado a urgecircncia do seu regresso

18 Na praacutetica quem reuacutene a maior parte das tropas eacute Zimricirc-Licircm Contudo eacute Hammu-rabi quem o pressiona para a convocaccedilatildeo dos exeacutercitos e quem no fim recebe os louros Agrave Babiloacutenia teriam chegado vaacuterios contingentes mariotas As tropas fornecidas pelo Yamhad e pelo Zalma-qum (tambeacutem por intermeacutedio do monarca mariota) ter-se-iam deslocado para Kurdacirc com a intenccedilatildeo de travarem a ameaccedila do Elam no Norte

19 Veja-se a designaccedilatildeo atribuiacuteda ao 30ordm ano do seu reinado laquoano em que Hammu-rabi o rei o poderoso o amado de Marduk afastou o exeacutercito do Elam com o poder dos grandes deuses (hellip) e consolidou as fundaccedilotildees de Sumer e Akkadraquo

20 ARM XXVI2 370 l 15rsquo-17rsquo

80

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

apoacutes a decisatildeo de Enlil e a aprovaccedilatildeo dos deuses que lhe teriam entatildeo conferido o seu laquopoder supremoraquo Como o documento afirma o sukkal destabilizara a ordem poliacutetica e social da Babiloacutenia e por extensatildeo a proacutepria ordem divina Isto porque o juramento constituiacutea o ato mais importante aquando da conclusatildeo de uma alianccedila Era este passo que selava a uniatildeo entre os dois contraentes ao inscrever a ordem dos respetivos reinos na proacutepria ordem celeste

Questionamo-nos acerca desta referecircncia a Enlil Tratando-se de um deus supremo do panteatildeo sumeacuterio-acaacutedico podemos especular se o apelo a esta divin-dade especiacutefica natildeo estaraacute relacionado com o facto de ele estar muito associado ao exerciacutecio do poder Segundo alguns autores a guerra teraacute despertado senti-mentos de uma espeacutecie de laquonacionalismoraquo mesopotacircmico21 Como referimos o conflito ter-se-ia estendido por todo o mundo siro-mesopotacircmico ou seja pelo mundo amorrita Podemos dizer que pela primeira vez na Mesopotacircmia en-contramos indiacutecios concretos de uma noccedilatildeo do laquooutroraquo do estrangeiro22 E este foi certamente um dos aspetos que contribuiu para o prestiacutegio de Hammu-rabi apoacutes a vitoacuteria De facto natildeo eacute apenas a Babiloacutenia que sai vencedora da guerra mas todo o mundo amorrita Hammu-rabi emerge assim como o benfeitor dos amorritas como aquele que triunfara sobre a ameaccedila da instauraccedilatildeo do caos no Proacuteximo Oriente

A importacircncia do deus Enlil pode ser testemunhada no proacutelogo do famo-so laquocoacutedigoraquo de Hammu-rabi A inscriccedilatildeo aiacute gravada inicia com a seguinte afir-maccedilatildeo laquoQuando An e Enlil atribuiacuteram a Marduk o poder de Enlil (ellilūtum) sobre toda a populaccedilatildeoraquo23 Ora para que o deus tutelar da Babiloacutenia Marduk pudesse governar a populaccedilatildeo do paiacutes ter-lhe-ia sido outorgado pelos grandes deuses o ellilūtum Este poder divino no fundo o poder supremo o poder de exercer a realeza24 eacute bastante sintomaacutetico do lugar primordial que Enlil ocupava no panteatildeo mesopotacircmico Como deus supremo Enlil seria capaz de corresponder ao sentimento de identidade ao poder e agrave uniatildeo que Hammu--rabi esperava porventura obter dos deuses e dos mesopotacircmios neste periacuteodo inicial das hostilidades

Por outro lado tendo Enlil em seu poder as tabuinhas do destino25 pode-mos tambeacutem considerar que esta referecircncia estaria associada agrave sua capacidade

21 Sobre este aspeto veja-se o estudo Charpin et Durand 199122 Uma carta dos Arquivos Reais de Mari testemunha esta noccedilatildeo Um chefe noacutemada dirige-se

a Zimricirc-Licircm afirmando que se porventura os elamitas chegassem agraves margens do Eufrates facil-mente se distinguiriam dos amoritas tal como as formigas brancas se distinguiam das negras (A3080 texto editado em Durand 1990 104-6) Ver tambeacutem LAPO 17 733

23 CH Proacutelogo I l 3-8 e 11-1324 Segundo Sanmartiacuten et Loacutepez 1993 278 a ellilūtum era a laquodignidade o poder e a posiccedilatildeo

de Enlilraquo sinoacutenimo de laquodivindade supremaraquo25 Na mitologia mesopotacircmica Enlil era o detentor das tabuinhas do destino onde estavam

inscritos os destinos (šīmtum) de todos

81

Maria de Faacutetima Rosa

de antever certos acontecimentos futuros de conhecer as intenccedilotildees e os destinos de todos Eacute pois a Enlil que se apela para que veja o laquosimraquo e o laquonatildeoraquo isto eacute os sentimentos verdadeiros ou falsos do sukkal

A intervenccedilatildeo dos deuses natildeo se limitava ao simples ato de legitimar a guerra Sem o apoio da divindade muito dificilmente o rei se sagraria vencedor Nesta ideologia o deus natildeo eacute um mero espectador do conflito Pelo contraacuterio ele participa nele ativamente e eacute precisamente a sua presenccedila que dita a derrota do inimigo Assim quando Hammu-rabi consegue afastar os exeacutercitos elamitas da Mesopotacircmia e libertar a Babiloacutenia da sua pesada ameaccedila eacute no mundo divino que se encontra a explicaccedilatildeo para o sucedido Como se recorda num documento mais tardio

laquohellip ele (o elamita) planeou devorar o paiacutes da Babiloacutenia Se o deus do meu senhor26 natildeo tivesse aparecido ele teria agido durante longo tempo como se a semente do paiacutes da Babiloacutenia natildeo tivesse sido criadaraquo27

O interlocutor pretende sublinhar a mudanccedila observada na atitude do rei de Elam apoacutes a guerra Esta mudanccedila devera-se agrave apariccedilatildeo do deus que impedira o elamita de conquistar a Babiloacutenia Eacute a intervenccedilatildeo da divindade que altera as intenccedilotildees do sukkal fazendo com que este aceite a semente (a vida) do paiacutes de Hammu-rabi

A rejeiccedilatildeo da existecircncia do paiacutes da Babiloacutenia e a tentativa da sua anula-ccedilatildeo acusaccedilotildees de que Ṣiwa-palar-huhpak era alvo satildeo muito significativas do atentado que o mesmo cometia contra Hammu-rabi e contra a esfera celeste Isto porque paralelamente agrave outorga do ellilūtum a Marduk os deuses laquopronun-ciaram o nome sublime da Babiloacutenia e atribuiacuteram-lhe preponderacircncia sobre os quatro cantos do mundoraquo28

Na Mesopotacircmia laquopronunciar o nomeraquo equivalia a fixar o destino signi-ficava atribuir uma funccedilatildeo a algueacutem ou definir a natureza de uma determinada coisa A bem-aventuranccedila da Babiloacutenia teria entatildeo sido decretada pelos deuses O destino de Marduk a quem havia sido dado o poder unia-se assim ao destino da Babiloacutenia cidade que os deuses haviam eleito Negar a existecircncia do paiacutes da Babiloacutenia significava portanto negar a palavra pronunciada pelos deuses A puniccedilatildeo do sukkal ultrapassava assim o domiacutenio da justiccedila terrena vendo-se a esfera celeste envolvida na aplicaccedilatildeo do castigo29 Em suma a hegemonia que

26 O laquomeu senhorraquo referido no texto natildeo eacute Hammu-rabi mas sim um dos seus aliados que teraacute participado na guerra ndash Zimricirc-Licircm Todavia o que aqui importa sublinhar eacute a importacircncia da participaccedilatildeo dos deuses nos destinos humanos

27 A1931 l 8-11 (texto editado em Charpin 1999 126 n 53)28 CH Proacutelogo I l 16-1929 No documento ARM XXVIII 1 a desavenccedila entre as tropas elamitas e ešnunnitas suas

aliadas que teria em grande parte ditado a ruiacutena do Elam eacute descrita como partindo de uma

82

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

Hammu-rabi viria a alcanccedilar para a Babiloacutenia natildeo era senatildeo o cumprimento da vontade divina prevista e inscrita na ordem coacutesmica

O favoritismo que os deuses haviam concedido agrave Babiloacutenia explicava-se tam-beacutem pelo facto do seu soberano ser laquoo piedoso o devoto suplicante dos grandes deusesraquo30 Trata-se de uma relaccedilatildeo de complementaridade Porque Hammu-rabi era reverente e temente aos deuses porque ele cumpria os rituais as divindades outorgavam-lhe poderes engrandeciam a sua realeza e elevavam-no perante os demais Eacute o proacuteprio Hammu-rabi quem o indica laquoEu sou Hammu-rabi rei da justiccedila a quem Šamaš deu a verdade (kīnātum)raquo31

O deus Šamaš divindade solar mesopotacircmica estava muito associado aos conceitos de verdade de justiccedila e de equidade Era uma divindade na qual se projetavam as noccedilotildees de ordem e os ideais que possibilitavam a manutenccedilatildeo da harmonia coacutesmica O principal fundamento da ordem era precisamente o exer-ciacutecio da justiccedila Como tal Šamaš estava tambeacutem muito associado agrave adivinhaccedilatildeo e aos oraacuteculos que ditavam as normas a cumprir para alcanccedilar esse equiliacutebrio Por isso natildeo eacute de estranhar que Šamaš fosse um dos deuses mencionados aquando dos juramentos que se realizavam com o intuito de selar os acordos diplomaacuteticos

A ordem internacional assentava no cumprimento de acordos e tratados diplomaacuteticos Durante a guerra contra o Elam Hammu-rabi precisava de ga-rantir que as vaacuterias potecircncias do mundo siro-mesopotacircmico estavam do seu lado e que tinham um objectivo comum a derrota dos elamitas O soberano teria entatildeo procedido a uma seacuterie de negociaccedilotildees diplomaacuteticas com vista agrave conclusatildeo de alianccedilas poliacuteticas Ao seu homoacutelogo mariota Hammu-rabi pro-metera laquoPor ele (Zimricirc-Licircm) eu erguerei a minha matildeo para Šamaš Far-me-aacutes jurar32 diante de Šamašraquo33 A importacircncia deste juramento explica-se como dissemos pelo facto do futuro transgressor se tornar responsaacutevel perante as divindades Como vimos teria sido devido agrave transgressatildeo de um juramento idecircntico que o Elam sofrera o desaire imposto por Hammu-rabi No fundo estes acordos constituiacuteam um meio de impor a ordem e de legitimar o poder de accedilatildeo do rei em caso de traiccedilatildeo

Em suma para que se conservasse a ordem poliacutetica e a ordem coacutesmica Hammu-rabi teria de vencer a guerra contra o Elam Era esta a vontade dos grandes deuses E eacute aqui que tem iniacutecio o seu caminho ateacute agrave hegemonia Na verdade as ambiccedilotildees hegemoacutenicas do monarca babiloacutenico fazem-se sentir

accedilatildeo divina laquoos nossos deuses instalaram a hostilidade entre o Elam e Ešnunna Todos tiveram medo deles mas (agora) o deus ocupa-se delesraquo (l 5rsquo-6rsquo)

30 CH Proacutelogo IV l 64-6631 CH Epiacutelogo XXV R l 95-9832 O juramento eacute realizado na Babiloacutenia na presenccedila dos embaixadores mariotas33 A4626 l8rsquo-10rsquo (texto editado em Charpin 1990b 111)

83

Maria de Faacutetima Rosa

logo apoacutes o final do conflito quando o mesmo expressa a vontade de se instalar no trono de Ešnunna34 vagado apoacutes a retirada dos elamitas No entanto as suas expectativas sairiam goradas uma vez que a populaccedilatildeo do reino escolheria para a sua chefia um general saiacutedo do seio do exeacutercito de seu nome Ṣillicirc-Sicircn

22 A conquista de LarsaDepois do contratempo em Ešnunna Hammu-rabi decide voltar-se para

o sul para o reino de Larsa O ataque ao seu homoacutelogo ocorre no rescaldo da guerra contra o Elam Para Hammu-rabi a urgecircncia desta ofensiva explicava-se devido agrave necessidade de garantir a paz da Babiloacutenia e de impedir que a ordem do reino se diluiacutesse Eacute que segundo o mesmo Ricircm-Sicircn fizera vaacuterias incursotildees no seu paiacutes perturbando a sua estabilidade interna A justificaccedilatildeo da guerra eacute apresentada pelo proacuteprio Hammu-rabi do seguinte modo laquoldquoO homem de Lar-sa desrespeitou o meu paiacutes fazendo pilhagens () Depois de os grandes deuses terem afastado a garra do elamita deste paiacutes eu olhei pelo bem-estar do homem de Larsa (concedendo-lhe) numerosos favores mas ele natildeo me recompensou esses favores Agora eu queixei-me a Šamaš e a Marduk e eles responderam--me continuamente ldquosimrdquo Eu natildeo iniciei este ataque sem (o consentimento d)a divindaderdquoraquo35

Na realidade o ataque a Larsa devera-se natildeo tanto a este motivo mas sim ao facto de Ricircm-Sicircn ter adotado uma postura algo imparcial durante a guerra contra o Elam Hammu-rabi esperava na altura contar com o auxiacutelio militar de Larsa Contudo os exeacutercitos aliados prometidos por Ricircm-Sicircn nunca teriam chegado a territoacuterio babiloacutenico Esta atitude poderaacute ser explicada pelo facto de Ricircm-Sicircn estar unido ao sukkal do Elam atraveacutes de laccedilos dinaacutesticos

De qualquer forma Hammu-rabi natildeo agira sem antes consultar os deuses O ataque surge justificado pelas pilhagens operadas por Ricircm-Sicircn em territoacuterio babiloacutenico A guerra era necessaacuteria para garantir a ordem poliacutetica e a estabilida-de No epiacutelogo do laquocoacutedigoraquo de Hammu-rabi encontramos uma afirmaccedilatildeo que expressa muito bem a ideologia subjacente a estas accedilotildees militares Hammu-rabi afirma laquodevido ao poder que Marduk me concedeu eu aniquilei os inimigos em cima e em baixo acabei com as batalhas e providenciei o bem-estar do paiacutesraquo36 Como vemos o propoacutesito da guerra era aniquilar os inimigos era acabar com os possiacuteveis perturbadores da paz A guerra natildeo era senatildeo um meio de permitir ao rei garantir a ordem interna

34 Veja-se o documento A257 (= LAPO 16 300) l 8-10 Zimricirc-Licircm expressa o seu apoio relativamente agraves pretensotildees de Hammu-rabi laquoSe a populaccedilatildeo de Ešnunna te der o seu consen-timento exerce tu proacuteprio a realeza no paiacutes de Ešnunnaraquo

35 ARM XXVI2 385 l 8rsquo-15rsquo36 CH epiacutelogo XXIV R l 28-34

84

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

Contudo a guerra era tambeacutem uma accedilatildeo que carecia da aprovaccedilatildeo divi-na37 Assim sendo a ofensiva contra Larsa soacute teria ganho forccedila apoacutes Šamaš e Marduk responderem constantemente laquosimraquo agraves perguntas (agraves vaacuterias consultas oraculares) de Hammu-rabi laquoSimraquo o soberano tinha a aprovaccedilatildeo dos deuses laquoSimraquo a guerra era necessaacuteria e justificada Šamaš e Marduk satildeo referidos no documento como os deuses tutelares dos dois paiacuteses em confronto o reino de Larsa e a Babiloacutenia

Para compreendermos melhor o papel que cabia ao soberano na guerra recuperamos novamente a parte inicial do proacutelogo do laquocoacutedigoraquo de Hammu-rabi

laquoQuando An e Enlil atribuiacuteram a Marduk o poder de Enlil sobre toda a populaccedilatildeo () (quando) pronunciaram o nome sublime da Babiloacutenia e lhe atribuiacuteram preponderacircncia sobre os quatro cantos do mundo () Entatildeo () An e Enlil pronunciaram o meu nome para assegurar o bem-estar da populaccedilatildeoraquo38

Assim sendo natildeo soacute o destino de Marduk estava intimamente associado ao destino da Babiloacutenia como ambos eram indissociaacuteveis do proacuteprio destino de Hammu-rabi Se os deuses haviam decretado a supremacia da Babiloacutenia a Hammu-rabi seu soberano estava destinada a hegemonia perante os demais a realeza dos laquoquatro cantos do mundoraquo

Concluindo para ordenar o mundo os grandes deuses An e Enlil teriam nomeado um chefe supremo Marduk A esta medida juntara-se a elevaccedilatildeo da sua morada na terra a Babiloacutenia e a designaccedilatildeo de um lugar-tenente ndash algueacutem que pudesse honrar Marduk e simultaneamente desempenhar o seu papel no mundo terreno A pessoa escolhida para assumir essa funccedilatildeo fora Hammu-rabi A ele competia-lhe zelar pelo bem-estar da populaccedilatildeo defender o territoacuterio de Marduk e assegurar a paz Era seu dever tomar as disposiccedilotildees necessaacuterias de modo a responder convenientemente ao laquosimraquo dado pela divindade

A guerra contra Larsa teraacute durado mais de seis meses39 Apoacutes um prolongado cerco agrave capital a notiacutecia da vitoacuteria chegava finalmente ao soberano laquoHoje o deus

37 A intervenccedilatildeo da divindade na guerra tinha tambeacutem como fim aplacar eventuais receios do soberano A inquietaccedilatildeo do monarca no momento que precede o conflito eacute per-cetiacutevel no texto ARM XXVI2 379 laquoHammu-rabi estaacute receoso porque o inimigo pelo qual Šamaš perguntou eacute numerosoraquo Sublinhamos que Ricircm-Sicircn eacute posto agrave prova precisamente por Šamaš o deus da justiccedila (ou seja o deus pergunta por ele) Ora porque Šamaš decide fazer Ricircm-Sicircn pagar pelas suas desonestidades e pela sua conduta traiccediloeira Hammu-rabi na qualidade de laquofavoritoraquo dos deuses como aquele em quem recaiacutea a tarefa de agradar a Šamaš e a Marduk eacute impelido para o combate Em uacuteltima anaacutelise eacute a vontade divina que o rei cumpre

38 CH proacutelogo I l 3-8 11-13 27 e 45-4939 Como indica Mieroop 1993 63 eacute possiacutevel que o reino se encontrasse enfraquecido laquoIt

is more likely that to the contrary the second half of Rim-Sinrsquos reign was one of weakness allowing Babylon to organize military incursions deep into Larsarsquos territoryraquo

85

Maria de Faacutetima Rosa

do meu senhor marchou agrave frente das tropas do meu senhor A lanccedila do malfeitor e do inimigo foi quebrada A cidade de Larsa foi tomadaraquo40 Hammu-rabi torna-se entatildeo senhor de toda a zona meridional da Mesopotacircmia procedendo agrave integra-ccedilatildeo do antigo reino de Larsa no territoacuterio babiloacutenico Foi este o momento em que se diluiu o equiliacutebrio poliacutetico existente ateacute entatildeo no mundo siro-mesopotacircmico Ao conquistar o Sul e ao declarar-se senhor do paiacutes de Sumer e Akkad41 Hammu--rabi transformou-se no monarca mais poderoso da Mesopotacircmia

A reputaccedilatildeo alcanccedilada por Hammu-rabi eacute percetiacutevel nas diversas movi-mentaccedilotildees que ocorreram apoacutes a vitoacuteria Confrontados com o poder redobrado da Babiloacutenia alguns monarcas decidiram prescindir de antigas alianccedilas para se juntarem a Hammu-rabi42 Outros como Ṣillicirc-Sicircn aproveitaram a oportunidade para concluir acordos de paz pendentes43 Comeccedilou assim a desenhar-se um novo quadro poliacutetico-diplomaacutetico e a estabelecer-se uma conjuntura poliacutetica favoraacutevel agrave ascensatildeo do soberano da Babiloacutenia

3 A consolidaccedilatildeo do reino

Ao mesmo tempo que prossegue o seu percurso poliacutetico e militar conqui-stando Ešnunna destruindo Mari e jaacute no final do reinado tomando Ashur e a zona do Šubartum Hammu-rabi procede agrave gestatildeo e consolidaccedilatildeo do seu ter-ritoacuterio Um aspeto importante neste esforccedilo de consolidaccedilatildeo eacute a integraccedilatildeo do territoacuterio do antigo reino de Larsa na Babiloacutenia

O estabelecimento da ordem poliacutetica no territoacuterio recentemente con-quistado ter-se-ia operado em duas vertentes diferentes Porque Šamaš havia concedido a laquoverdaderaquo a Hammu-rabi competia-lhe exercer a justiccedila sobre a populaccedilatildeo O proacuteprio o afirma

laquo(eu sou) o sol da Babiloacutenia aquele que faz aparecer a luz sobre o paiacutes de Sumer e Akkad o rei que impotildee obediecircncia aos quatro cantos do mundo () Quando Marduk me encarregou de impor a ordem e de ensinar a reti-datildeo ao paiacutes eu coloquei a verdade (kittum) e a justiccedila (mīšarum) na boca do paiacutesraquo44

40 ARM XXVI2 386 l 6rsquo-10rsquo41 O tiacutetulo de laquorei do paiacutes de Sumer e Akkadraquo era de facto utilizado pelo senhor de toda a

regiatildeo sul da Mesopotacircmia Ricircm-Sicircn utilizara-o durante largos anos ateacute agrave sua queda agraves matildeos de Hammu-rabi (veja-se RIME 4 273 e ss)

42 Eacute o caso de Atamrum rei do Andarig Hammu-rabi ter-se-aacute conseguido impor lenta-mente regiatildeo norte afastando dessa zona os seus concorrentes mais diretos Veja-se Charpin et Ziegler 2003 233-34

43 As negociaccedilotildees para a conclusatildeo da paz entre a Babiloacutenia e Ešnunna teriam sido adiadas aquando da guerra contra Larsa Cf Ibid 227-28 e 232

44 CH proacutelogo V l 5-12 e 14-23

86

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

Estes dois termos kittum e mīšarum traduzem genericamente a ideia de laquojusticcedilaraquo Contudo as palavras provecircm de raiacutezes que tecircm sentidos diferentes e como tal exprimem ideias algo distintas

mīšarum proveacutem de uma raiz que tem o sentido de laquo(re)ordenarraquo45 Ora o que Hammu-rabi pretende quando chega ao trono de Larsa eacute precisamente comeccedilar do zero repor a ordem poliacutetica e social Para isso o soberano decreta um eacutedito (eacutedito-mīšarum) cuja finalidade eacute a remissatildeo das diacutevidas econoacutemicas e a libertaccedilatildeo daqueles que haviam caiacutedo na escravidatildeo Num domiacutenio mais ideoloacutegico o eacutedito pretendia estabelecer um novo comeccedilo restaurar e reforccedilar a ordem sociopoliacutetica O propoacutesito da medida era que Hammu-rabi se apresentas-se perante os habitantes de Larsa como um rei justo e benevolente46

Todavia ao contraacuterio do que esta ideia possa levar a crer a imposiccedilatildeo de Hammu-rabi em Larsa natildeo passa por anular as infraestruturas existentes De facto num plano mais ligado ao conceito de kittum de algo que eacute laquopermanenteraquo que eacute laquoestaacutevelraquo47 Hammu-rabi assegura uma certa continuidade poliacutetica Quando chega a Larsa o monarca afirma-se como se de um natural sucessor de Ricircm-Sicircn se tratasse Ao seguir as normas vigentes e possibilitar a manutenccedilatildeo das institui-ccedilotildees existentes Hammu-rabi aproxima-se dos seus cidadatildeos Podemos testemu-nhar este esforccedilo de continuidade num documento enviado por Hammu-rabi ao governador de Larsa laquoInvestiga o caso deles Determina a sentenccedila que lhes deve ser aplicada de acordo com as leis que estatildeo em vigor no Yamutbal48raquo

Os dois conceitos natildeo se anulam pelo contraacuterio eles satildeo complementares E satildeo ideias como estas que Hammu-rabi potildee em praacutetica de modo a anexar Larsa pacificamente e a evitar a eclosatildeo de revoltas A Babiloacutenia passa entatildeo a constituir um territoacuterio contiacutenuo e unificado Esta obra centralizadora explica em grande medida o sucesso de Hammu-rabi que no final do seu governo se torna senhor de um vasto domiacutenio territorial A sua hegemonia estendia-se entatildeo desde o Golfo Peacutersico ateacute agrave zona do Sindjar A supremacia alcanccedilada por Hammu-rabi possibilitar-lhe-ia adotar o tiacutetulo de laquorei dos quatro cantos do mundoraquo

45 Tem um sentido dinacircmico ao contraacuterio de kittum Veja-se Botteacutero 1987 330-3146 Era uma medida comum no mundo amorita O proacuteprio Hammu-rabi teria proclamado

um mīšarum depois de ser entronizado na Babiloacutenia47 De acordo com a laquoleiraquo48 Nome pelo qual era conhecido o antigo reino de Larsa AbB 13 10 l 9-12

87

Maria de Faacutetima Rosa

Bibliografia

Bonechi M 1993 ldquoConscription agrave Larsa apregraves la Conquecircte Babyloniennerdquo MARI 7129-64

Botteacutero J 1987 Meacutesopotamie Lrsquoeacutecriture la raison et les dieux Paris Eacuteditions Gallimard

Bouzon E 1986 As Cartas de Hammurabi Petroacutepolis Vozesmdashmdashmdash 1980 O coacutedigo de Hammurabi Petroacutepolis VozesCharpin D 2003 Hammu-rabi de Babylone Paris Presses Universitaires de

Francemdashmdashmdash 2000 ldquoLettres et procegraves paleacuteo-babyloniensrdquo In Rendre la justice en

Meacutesopotamie Archives judiciaires du Proche-Orient ancien (IIIe-Ier milleacutenaires avant J-C) ed F Joannegraves 69-111 Saint-Denis Presses Universitaires de Vincennes

mdashmdashmdash 1999 ldquoHammu-rabi de Babylone et Mari nouvelles sources nouvelles perspectivesrdquo In Babylon Focus mesopotamischer Geschichte Wiege fruumlher Gelehrsamkeit Mythos in der Moderne Colloquien der Deutschen Orient-Gesellschaft 2 ed J Renger 111-30 Saarland Saarbruumlcker Druckerei und Verlag

mdashmdashmdash 1990a ldquoLes eacutedits de ldquorestaurationrdquo des rois babyloniens et leur applicationrdquo In Du pouvoir dans lrsquoantiquiteacute mots et reacutealiteacute ed Cl Nicolet 13-24 Genegraveve Librairie Droz

mdashmdashmdash 1990b ldquoUne alliance contre lrsquoElam et le rituel du lipit napištimrdquo In Contribution agrave lrsquohistoire de lrsquoIran Meacutelanges offerts agrave Jean Perrot ed F Vallat 109-18 Paris Eacuteditions Recherche sur les Civilisations

mdashmdashmdash 1987 ldquoLes deacutecrets royaux agrave lrsquoeacutepoque paleacuteo-babylonienne agrave propos drsquoun ouvrage reacutecentrdquo AfO 3436-44

Charpin D e J-M Durand 1991 ldquoLa suzeraineteacute de lrsquoempereur (sukkalmah) drsquoElam sur la Mesopotamie et le lsquonationalismersquo amorriterdquo In Meacutesopotamie et Elam Actes de la XXXVIegraveme Rencontre Assyriologique Internationale (Gand 10-14 Julho 1989) ed L De Meyer e H Gasche 59-66 Ghent University of Ghent

Charpin D F Joannegraves S Lackenbacher e B Lafont 1998 Archives Eacutepistolaires de Mari 12 (Archives Royales de Mari XXVI) Paris Eacuteditions Recherche sur les Civilisations

Charpin D e N Ziegler eds 2003 Mari et le Proche-Orient agrave lrsquoeacutepoque amorrite ndash Essai drsquohistoire politique FM V (Meacutemoires de NABU 6) Paris Socieacuteteacute pour lrsquoeacutetude du Proche-Orient ancien

Durand J-M 1997-2000 Documents Eacutepistolaires du Palais de Mari vol 1-3 LAPO 16-18 Paris Les Eacuteditions du Cerf

88

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

mdashmdashmdash 1990 ldquoFourmis blanches et fourmis noiresrdquo In Contribuition agrave lrsquohistoire de lrsquoIran Meacutelanges offerts agrave Jean Perrot ed F Vallat 101-8 Paris Eacuteditions Recherche sur les Civilisations

Finet A 1973 Le Code de Hammurabi LAPO 6 Paris Les Eacuteditions du CerfFrayne D 1990 Old Babylonian Period (2003-1595 BC) RIME 4 Toronto

University of Toronto PressLacambre D 1997 ldquoLa Bataille de Hiricirctumrdquo MARI 8431-54Peterson J 2016 ldquoThe Literary Corpus of the Old Babylonian Larsa Dynasties

New Texts New Readings and Commentaryrdquo In Studia Mesopotamica 3 ed M Dietrich K A Metzler e H Neumann Muumlnster Ugarit-Verlag

Sanmartiacuten J e J Loacutepez 1993 Mitologiacutea y Religioacuten del Oriente Antiguo Vol I Egipto-Mesopotamia Sabadell Editorial Ausa

Sasson J M 1995 ldquoKing Hammurabi of Babylonrdquo In Civilizations of the Ancient Near East ed J M Sasson 901-15 New York Scribners

Mieroop Van de 2005 King Hammurabi of Babylon A Biography Oxford Blackwell Publishing

mdashmdashmdash 1993 ldquoThe reign of Rim-Sinrdquo RA 8747-69Soldt W H van ed 1994 Letters in the British Museum Part 2 Transliterated

and Translated Altbabylonische Briefe in Umschrift und Uumlbersetzung Vol 13 Leiden Brill

89

Marcel L Paiva do Monte

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia1 (lsquoKing of the Four Quarters Sargon of Akkad and the imperial model in

Mesopotamia)

Marcel L Paiva do Monte(marcelpetroskigmailcom ORCID 0000-0002-2811-3459)

CHAM - Centro de Humanidades NOVA FCSHUAc

Resumo - Eacute habitual ser atribuiacutedo agrave dinastia de Akkad (ca 2334-2154 aC) o estatuto de laquoprimeiro dos impeacuteriosraquo De facto apesar de o domiacutenio alargado que exerceu sobre o Proacuteximo Oriente revelar uma continuidade com realidades anteriores a sua vigecircn-cia deu origem a uma nova tradiccedilatildeo que estruturou a cultura poliacutetica mesopotacircmica Akkad tornou-se o paradigma de um horizonte de poder universal e o seu primeiro rei Sargatildeo (ca 2334-2279 aC) um modelo de realeza emulado muitas das entidades poliacuteticas que surgiram posteriormente na Mesopotacircmia Eacute a esta dimensatildeo cultural da figura de Sargatildeo de Akkad considerada num tempo longo que este trabalho daraacute relevo Por esse motivo seraacute colocado em segundo plano o contexto histoacuterico em que decorreu o seu reinado devido agrave relevacircncia do papel de Akkad nas tradiccedilotildees intercul-turais e milenares acerca do seu impeacuterio

Palavras-chave Sargatildeo de Akkad Impeacuterio Proacuteximo Oriente Antigo Cultura poliacutetica

Abstract ndash It is common to attribute to the Dynasty of Akkad (ca 2334-2154 BCE) the status of laquofirst empireraquo In fact although its widespread rule across the Ancient Near East reveals a continuity with earlier realities it gave origin to a new tradition that structured Mesopotamian political culture and tradition in centuries to come Akkad not only became a paradigm for universal rule but its first king and founder Sargon (ca 2334-2279 BCE) was turned into a model of kingship frequently emulated in many political entities that emerged afterwards in Mesopotamia This work will focus thus on the long-term cultural dimension of the figure of Sargon of Akkad For that reason and because of the millennial and intercultural traditions about the laquoempireraquo of Akkad the proper historical context of Sargonrsquos reign will only serve as a secondary background

Keywords Sargon of Akkad Empire Ancient Near East Political Culture

1 Abreviaturas usadas CAH I2 ndash The Cambridge Ancient History Vol 1 Parte 2 RIMA 1 ndash The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods Vol 1 KUB ndash Keilschrifturkunden aus Boghazkoumli LAPO 3 ndash Inscriptions royales Sumeacuteriennes et akkadiennes (Litteacuteratures Anciennes du Proche-Orient 3) MDP XI ndash Meacutemoires de la Deacuteleacutegation en Perse XI Textes Eacutelamites-Anzanites UET I ndash Ur Excavations Texts I Royal Inscriptions

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_5

90

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

1 As fontes

Poucos monumentos produzidos no tempo de Sargatildeo sobreviveram ateacute aos nossos dias Uma uacutenica estela fragmentada conteacutem a sua representaccedilatildeo com o nome inscrito diante da sua figura barbada2 Quanto a fontes escritas primaacuterias pouco mais que algumas inscriccedilotildees em objetos votivos dedicados por Enḫeduanna sua filha podem ser enumeradas3 Poreacutem existem vaacuterias coacutepias de inscriccedilotildees reais efetuadas em periacuteodos posteriores que se consideram ter sido produzidas no seu tempo Eacute o caso de alguns documentos babiloacutenicos do II mileacutenio aC (periacuteodo paleo-babiloacutenico) depositados no templo de Enlil em Nippur o Ekur4 O facto de a capital por ele fundada a cidade de Akkad (ou Agade) natildeo ter sido ainda encontrada pela Arqueologia impede-nos tambeacutem de aceder a arquivos e monumentos que poderiam aiacute existir5

Aleacutem destas coacutepias de inscriccedilotildees originais a grande maioria dos textos relacionados com o primeiro rei de Akkad forma o corpus de uma tradiccedilatildeo literaacuteria que reflete com fiabilidade discutiacutevel o contexto histoacuterico da formaccedilatildeo do seu laquoimpeacuterioraquo Essas referecircncias textuais satildeo antes de mais uma construccedilatildeo literaacuteria e ideoloacutegica desenvolvida em torno de Sargatildeo ao longo da Antiguidade que o transformaram numa personagem cujas origens e accedilatildeo adquirem contor-nos quase miacuteticos

Por esse motivo a maior parte destes textos pode ser considerada como sendo mais relevante para o estudo das intenccedilotildees dos seus autores e das conce-ccedilotildees vigentes acerca do poder de Akkad ao longo da Antiguidade no tempo em que foram produzidos do que para o estudo do tempo a que se reportam6 A sua utilidade eacute por isso maior para o estudo das maneiras como tais conceccedilotildees das eacutepocas em que esses textos foram redigidos influenciaram o desenvolvimento de uma cultura poliacutetica tradicional na Mesopotacircmia

A tradiccedilatildeo acerca do primeiro rei de Akkad foi transmitida atraveacutes de vaacuterios geacuteneros textuais desde a epopeia ateacute ao geacutenero chamado pseudo-autobiograacutefi-co7 Por outro lado podem ser tambeacutem referidas listas de reis8 e compilaccedilotildees

2 Louvre Deacutepartement des Antiquiteacutes Orientales Sb1 Consultar Amiet 1976 9-17 e Nigro 1998 85-102

3 Enḫeduanna foi nomeada por Sargatildeo como sacerdotisa do templo de NannaSursquoen em Ur UET 1 23 271 LAPO 3 IIA1c-d Amiet 1976 15 fig 10

4 Exemplos em LAPO 3 IIA1a-b 5 O que eacute notado por Mario Liverani (Liverani 1993a 6) Sobre as possiacuteveis localizaccedilotildees da

cidade de Akkad ver Wall-Romana 19906 Cf Liverani 1993b 41-67 Van de Mieroop 1999 3287 Westenholz 1997 33-49 textos 1 e 2 Westenholz integra todavia este geacutenero no plano

mais geral da laquoliteratura-narucircraquo (Westenholz 1983 327 nota 7)8 A Lista de Reis Sumeacuteria Jacobsen 1934 Rowton 1960 156-62 Michalowski 1983 237-

48

91

Marcel L Paiva do Monte

de signos divinatoacuterios que em particular mostram como o modelo de poder corporizado por Sargatildeo foi considerado como um repositoacuterio de precedentes uacuteteis para orientar as accedilotildees dos soberanos mesopotacircmicos9

Um exemplo da influecircncia que a memoacuteria acerca de Sargatildeo de Akkad exerceu enquanto fonte ancestral de legitimaccedilatildeo do poder pode ser observado numa inscriccedilatildeo de Samsicirc-Addu I (ca 1814-1775 aC) soberano da regiatildeo que seria mais tarde a Assiacuteria10 Este rei afirma ter restaurado uma parte do templo Emašmaš de Niacutenive dedicado a Ištar e que havia sido fundado por Maništušu rei de Akkad e um dos sucessores de Sargatildeo Samsicirc-Addu reclama o meacuterito de ter restaurado o templo que se encontrava delapidado

laquo e que laquonenhum dos reis que me precederam reconstruiu desde a queda de Akkad ateacute agrave minha soberaniaraquo11

Em outro extremo temporal a continuidade da feiccedilatildeo veneraacutevel do funda-dor de Akkad como elemento de uma cultura tradicional pode ser demonstrada por um documento bastante tardio que narra a histoacuteria de Naboacutenides uacuteltimo monarca da Babiloacutenia antes da conquista aquemeacutenida em 539 aC Este texto conta como Naboacutenides encontrou no Ebabbar o templo de Šamaš na cidade de Sippar vaacuterias inscriccedilotildees de Narām-Sicircn e uma estaacutetua danificada onde estaria representado o proacuteprio Sargatildeo de Akkad12 Naboacutenides ordenou que a imagem fosse reparada e que lhe fossem prestadas as devidas homenagens

laquoEle viu nesse recinto sagrado uma estaacutetua de Sargatildeo pai de Narām-Sicircn me-tade da sua cabeccedila desaparecera e estava tatildeo deteriorada que a sua face estava irreconheciacutevel Dada a reverecircncia [de Naboacutenides] pelos deuses e o seu respeito pela realeza convocou artesatildeos restaurou a cabeccedila dessa estaacutetua e recolocou--lhe uma face Ele natildeo alterou a sua localizaccedilatildeo mas colocou-a no Ebabbar e consagrou-lhe oblaccedilotildeesraquo13

Vaacuterias satildeo as versotildees neoassiacuterias e neobabiloacutenicas de epopeias e croacutenicas que nos informam acerca das tradiccedilotildees relacionadas com Sargatildeo Este cor-pus textual que eacute secundaacuterio mas vasto e diversificado14 inclui redaccedilotildees em

9 Cf exemplos e bibliografia em Goetze 1947 253-65 (sobre Sargatildeo 254-57) Ver tambeacutem acerca dos signos divinatoacuterios em contexto de hepatoscopia Liverani 1988 256-62

10 Conhecido como reino da laquoAlta Mesopotacircmiaraquo com capital em Šubat-Enlil11 RIMA 1 A0392 i 14-2212 J-J Glassner (Glassner 2004 312) indica que este documento deveraacute ter sido redigido jaacute

no periacuteodo selecircucida ou mesmo na eacutepoca dos Partos (seacutecs IV-III aC)13 RIMA 1 A0392 i 14-2214 Para uma listagem do corpus de fontes documentais primaacuterias e secundaacuterias acerca de

Sargatildeo consultar Westenholz 1997 3-5

92

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

Sumeacuterio Acaacutedico15 Hitita e Hurrita16 demonstrando assim que a grande ampli-tude da transmissatildeo das histoacuterias e tradiccedilotildees acerca de Sargatildeo natildeo se limitou agrave Mesopotacircmia e que persistiu muito aleacutem do periacuteodo paleo-babiloacutenico

Seguindo uma opiniatildeo corrente pode afirmar-se que a transmissatildeo das histoacuterias acerca de Sargatildeo e por conseguinte do modelo de realeza que este configurava se efetuara natildeo somente por via textual entre as elites cultas e po-derosas de templos e palaacutecios17 mas tambeacutem atraveacutes da oralidade integrando o que pode ser considerado como o folclore popular mesopotacircmico18

2 As origens e a ascensatildeo

As origens do fundador de Akkad satildeo envoltas em misteacuterio A versatildeo neoas-siacuteria do texto pseudo-autobiograacutefico conhecido como a Lenda de Sargatildeo diz-nos que este teraacute nascido numa localidade chamada Azupirānu situada algures nas margens do Eufrates19 Natildeo conheceu o pai20 mas afirma que o irmatildeo do seu pai vivia laquonas montanhasraquo Quanto agrave sua matildee ao que consta era uma sacer-dotisa (entum) que por alguma razatildeo obscura teraacute lanccedilado o filho agrave corrente do rio dentro de um cesto impermeabilizado com betume Vogando nas aacuteguas do Eufrates o bebeacute foi recolhido por um laquojardineiroraquo ou laquocarregador de aacuteguaraquo chamado Aqqi Este teraacute adotado a crianccedila e ter-lhe-aacute ensinado o seu ofiacutecio Deste modo quando o menino cresceu seguiu a profissatildeo do pai adotivo21

A partir deste ponto eacute a versatildeo mais antiga desta histoacuteria em liacutengua su-meacuteria22 que oferece outras informaccedilotildees Atraveacutes dela ficamos a saber que sobre Sargatildeo teraacute recaiacutedo o olhar favoraacutevel da deusa Inanna o que lhe teraacute permitido alcanccedilar um alto posto oficial como laquocopeiroraquo (MUgraveŠKAUL) na corte do rei de Kiš Ur-Zababa

Entretanto revela-nos a histoacuteria que Sargatildeo teraacute tido um sonho com ca-raacutecter profeacutetico segundo o qual a deusa Inanna causava a morte a Ur-Zababa

15 No grande corpus textual de Amarna no Egito estaacute incluiacuteda uma versatildeo em liacutengua acaacutedica da epopeia O Rei da Batalha o šar tamḫarim (Westenholz 1997 102-33 texto 9B)

16 Sobre os textos hititas sobre os reis de Akkad podemos referir os trabalhos de H Guumlterbock (Guumlterbock 1934 1938 e 1969) Referecircncias em textos hurritas relacionados com Sargatildeo KUB XXVII 38 KUB XXXI 3 apud Westenholz 1997 11-13 Speiser 1952 101

17 Oppenheim 1964 capiacutetulo 318 Drews 1974 387-9319 Utilizamos a ediccedilatildeo de Joan G Westenholz (Westenholz 1997 38-49 texto 2) a que

a autora chama de Sargon Birth Legend Esta versatildeo compotildee-se de vaacuterios documentos neoassiacuterios e um manuscrito neobabiloacutenico (ver paacuteginas 38-39)

20 A versatildeo em liacutengua sumeacuteria desta histoacuteria fornece uma variante o seu pai chamar-se-ia Larsquoibum (Cooper e Heimpel 1983 76 l 11rsquo)

21 Westenholz 1997 38-41 ls 1-1122 Redigida entre o periacuteodo de Ur III e o periacuteodo paleo-babiloacutenico Ver Cooper e Heimpel

1983 67-82

93

Marcel L Paiva do Monte

afogando-o num laquorio de sangueraquo23 O significado do sonho era oacutebvio o favor divino estaria prestes a ser retirado ao rei de Kiš e o dom da realeza concedido ao proacuteprio Sargatildeo laquoAn e Enlil com as suas ordens divinas ordenaram com autoridade que a sua realeza [de Ur-Zababa] fosse alienada que a prosperidade do seu palaacutecio fosse retiradaraquo24

Como bom servidor do seu soberano Sargatildeo ter-se-aacute apressado a relatar o sonho que o afligira a Ur-Zababa Consciente do significado desta revelaccedilatildeo oniacuterica e da ameaccedila que ela representava para o seu reinado Ur-Zababa utiliza vaacuterios subterfuacutegios para afastar o seu copeiro Um deles consistia em fazer com que este cometesse um sacrileacutegio no exerciacutecio das suas funccedilotildees Segundo a Croacute-nica do Esagila redigida jaacute no periacuteodo neoassiacuterio Ur-Zababa teraacute ordenado a Sargatildeo que fizesse uma modificaccedilatildeo irregular nas oferendas cuacutelticas ao templo do deus Marduk o Esagila Este desobedecendo ao seu soberano e recusando--se a cometer o sacrileacutegio foi visto com bons olhos por Marduk que por esse motivo lhe dera a laquosoberania sobre as Quatro Regiotildees [do mundo]raquo (LUGAL-ut kibrat arbarsquoi iddin-šu)25

Retomando a versatildeo em Sumeacuterio da Lenda de Sargatildeo o rei de Kiš aleacutem deste subterfuacutegio tecirc-lo-aacute enviado com uma mensagem ateacute Lugalzagesi o rei de Uruk A histoacuteria deixa impliacutecito que a missiva dirigida ao soberano estrangeiro seria provocatoacuteria Ur-Zababa esperaria que o mensageiro (Sargatildeo) fosse morto pelo teor da mensagem

Poreacutem tendo fracassado esta tentativa de Ur-Zababa contra Sargatildeo este apercebendo-se da ameaccedila e da traiccedilatildeo do seu proacuteprio soberano desencadeia uma revolta da qual sai vitorioso Por conseguinte retira o poder ao rei de Kiš e apropria--se do trono cumprindo a revelaccedilatildeo que a deusa lhe havia dado em sonhos

Eacute a partir desse momento que como parece ser oacutebvio adota o nome pelo qual ficou conhecido Sargatildeo eacute a grafia em liacutengua portuguesa do nome Šarru-kicircnu (ou Šarru-kēn) que significa em Acaacutedico laquorei verdadeiroraquo ou melhor laquorei legiacutetimoraquo26 A ecircnfase sobre este atributo real contido no nome atesta a necessi-dade de afirmaccedilatildeo da legitimidade de um poder obtido pela forccedila e de modo irregular27

23 Cooper e Heimpel 1983 77 l 14 (fragmento 3N T 296)24 Cooper e Heimpel 1983 76 ls 8rsquo-9rsquo (frag TRS 73)25 Glassner 2004 266-67 l 58 texto 38 O tema central desta versatildeo tardia eacute a piedade

mostrada pelos soberanos em relaccedilatildeo ao templo de Marduk na Babiloacutenia Eacute oacutebvio que esta versatildeo refunde certos detalhes substituindo por exemplo Inanna por Marduk de modo a dotaacute-la de um significado mais proacuteximo do seu tempo

26 O nome laquoSargatildeoraquo entra na liacutengua portuguesa tal como na generalidade das liacutenguas modernas por influecircncia do Antigo Testamento Poreacutem o texto biacuteblico natildeo se refere ao fundador de Akkad mas sim a Sargatildeo II rei assiacuterio do I mileacutenio aC (722-705 aC) a propoacutesito da conquista de Ashdod (ver Is 20)

27 Como referido em CAH 12 419 o nome de laquoRei Legiacutetimoraquo natildeo teria certamente sido dado a Sargatildeo aquando do seu nascimento

94

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

3 A legitimaccedilatildeo do poder

A usurpaccedilatildeo do poder por parte de Sargatildeo acentua a imagem de laquoarri-vistaraquo que a tradiccedilatildeo lhe associou Neste quadro o seu percurso ateacute agrave realeza poderia apenas ser justificada pelo seu meacuterito pessoal e ainda mais impor-tante pela escolha divina A este propoacutesito eacute interessante analisar as suas origens agrave luz de uma conceccedilatildeo que conheceu grande continuidade na tradiccedilatildeo literaacuteria e cultural mesopotacircmica a condiccedilatildeo do ser laquocivilizadoraquo como sendo oposta a um estado laquobaacuterbaroraquo aplicado a comunidades natildeo identificadas com o sedentarismo com a agricultura e a vida urbana Este elemento foi essencial na construccedilatildeo de uma identidade laquocivilizadaraquo nas sociedades mesopotacircmicas ao longo da sua histoacuteria28 Eacute possiacutevel que esteja tambeacutem presente na Lenda de Sargatildeo concorrendo justificar o seu poder e explicar a sua ascensatildeo Um exemplo eacute o caso da Epopeia de Gilgameš na qual Enkidu29 representa um homem que natildeo pertencia ao mundo civilizado Criado pelos deuses como a antiacutetese de Gilgameš o soberano de Uruk Enkidu nascera laquonas montanhasraquo e natildeo conhecia o patildeo nem a cerveja produtos que simbolizavam a vida seden-taacuteria e agriacutecola Assim Enkidu um homem selvagem comia antes como as feras suas semelhantes

laquoCertamente eacute Enkidu nascido nas montanhas () patildeo colocaram diante dele cerveja colocaram diante dele Enkidu natildeo comeu o patildeo mas olhou des-confiado Como comer patildeo Enkidu natildeo sabia como beber cerveja nunca lhe havia sido mostradoraquo30

A Enkidu eacute assim atribuiacuteda uma natureza proacutexima dos animais e natildeo com-pletamente humana ndash leia-se laquohumanoraquo como laquocivilizadoraquo31 Ao modus vivendi das comunidades noacutemadas que desde cedo se estabeleceram na Mesopotacircmia era associado por estas expressotildees literaacuterias produzidas em contexto urbano e letrado este desconhecimento da agricultura Se a pastoriacutecia era a actividade de subsistecircncia privilegiada pelos noacutemadas estes excluiacuteam tambeacutem de um modo geral uma plena vivecircncia da realidade urbana32

28 Sobre este assunto consultar Pongratz-Leisten 2001 195-3129 Esta caracterizaccedilatildeo de Enkidu ocorre sobretudo ao longo das tabuinhas I e II

Consultaacutemos a ediccedilatildeo de A George (George 1999 especialmente 5-11 Tab 1 e 12-13 Tab 2)30 George 1999 12-13 Tab 2 A certas populaccedilotildees habitando em contextos marginais

relativamente ao mundo urbano da Mesopotacircmia eram tambeacutem associadas estas caracteriacutesticas laquobaacuterbarasraquo No texto conhecido como A Geografia de Sargatildeo os homens de Karzina satildeo apresentados como laquocomedores de carne () cujas barrigas natildeo conhecem o patildeo cozido nem a cervejaraquo (Horowitz 1998 75 ls 57-59)

31 Pongratz-Leisten 2001 202-332 Segundo A Geografia de Sargatildeo os Lullubu laquonatildeo conhecem a construccedilatildeoraquo (Horowitz

1998 73 linha 52)

95

Marcel L Paiva do Monte

Habitar em cidades era um criteacuterio que se refletia nos textos literaacuterios que colocava os noacutemadas numa posiccedilatildeo marginal face agrave civilizaccedilatildeo Embora a historiografia tenha desde haacute deacutecadas matizado uma oposiccedilatildeo radical entre no-madismo e sedentarismo33 certo eacute que nas cidades se situavam duas referecircncias fundamentais para a definiccedilatildeo do ser civilizado o templo e a realeza Assim um texto do periacuteodo da III dinastia de Ur conhecido como O Casamento de Martu traduz claramente o estereoacutetipo associado aos noacutemadas Martu ou Amorritas O noacutemada laquoque vive em montanhas natildeo conhece as moradas dos deusesraquo eacute nele descrito como algueacutem que laquohabita em tendas fustigadas pelo vento e pela chu-varaquo algueacutem que laquodurante a sua vida natildeo tem uma casaraquo e que por conseguinte laquoquando morrer natildeo seraacute enterradoraquo34

A vida laquoem tendasraquo segundo estas expressotildees culturais provenientes de meios urbanos impedia que o culto aos deuses decorresse de um modo apropriado pelo facto de ela impedir a existecircncia de templos que lhes servissem de morada e que se constituiacutessem como referecircncias espaciais e identitaacuterias da comunidade Impediria tambeacutem o culto domeacutestico aos antepassados pois era entendido como impossiacutevel a quem vivesse em habitaccedilotildees moacuteveis a tradicional inumaccedilatildeo dos mortos debaixo dos pisos das habitaccedilotildees35 Entender-se-ia tambeacutem que a vida fora das cidades implicaria a inexistecircncia da instituiccedilatildeo real e da sua expressatildeo fiacutesica mais visiacutevel o palaacutecio sem o qual natildeo se conceberia existir a ordem a intermediaccedilatildeo exercida pelo rei entre os planos terreno e divino ou mesmo a aplicaccedilatildeo da justiccedila36

A Lenda de Sargatildeo nas suas diferentes versotildees poderaacute conter tambeacutem um elemento de legitimaccedilatildeo do primeiro rei de Akkad se a perspetivarmos agrave luz destes paracircmetros da cultura mesopotacircmica De facto segundo estas histoacuterias Sargatildeo natildeo conhecera o pai nem a matildee e por essa razatildeo natildeo possuiria antepas-sados a quem pudesse prestar o culto domeacutestico ou sancionar a sua pertenccedila a uma terra ou uma casa Por outro lado era tambeacutem uma espeacutecie de laquonoacutemadaraquo pois o berccedilo onde fora depositado pela matildee que o abandonou vogava sem rumo definido ao sabor do Eufrates

Todavia ao ser recolhido por Aqqi um jardineiro e ao aprender o seu ofiacutecio Sargatildeo pocircde ser introduzido numa das artes mais importantes da civilizaccedilatildeo a

33 Rowton 1973 201-15 Do mesmo modo a ideia de uma pretensa dicotomia intransponiacutevel entre Sumeacuterios e Semitas ndash como a que opotildee noacutemadas e sedentaacuterios ndash de uma natureza laquoracialraquo dos seus conflitos ou mesmo a teoria de uma laquoinvasatildeoraquo semita sobre a Baixa Mesopotacircmia em violenta rutura com a realidade sumeacuteria satildeo vetores de um paradigma haacute muito abandonado Consultar Jacobsen 1939 485-95

34 Foi consultada a traduccedilatildeo de Klein 1997 113-116 Cf o texto chamado A Geografia de Sargatildeo dos habitantes de Karzina o texto afirma que estes laquonatildeo conhecem o enterramentoraquo isto eacute o culto aos mortos (Horowitz 1998 75 l 58)

35 A inumaccedilatildeo dos familiares mortos por baixo dos pisos domeacutesticos pelo menos entre o periacuteodo Dinaacutestico Antigo e o periacuteodo paleo-babiloacutenico associava-se ao kispum ou seja aos rituais e libaccedilotildees aos espiacuteritos das familiares Consultar Postgate 1992 98-101

36 Pongratz-Leisten 2001 204

96

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

agricultura A recolha da crianccedila agrave deriva no rio a sua adoccedilatildeo e posterior acesso a um cargo oficial na corte do rei de Kiš podem ser consideradas como etapas na sua integraccedilatildeo plena na sociedade civilizada Talvez seja pertinente considerar que A Lenda de Sargatildeo ao incluir estes estereoacutetipos servia igualmente para explicar o sucesso do fundador de Akkad um homem que apesar de nascido entre laquobaacuterbarosraquo e de possuir uma origem que o colocava agrave margem de uma legitimidade dinaacutestica convencional teria sido capaz de estabelecer um impeacuterio sobre parte significativa do Proacuteximo Oriente

4 As conquistas

Apoacutes a sua tomada do poder em Kiš Sargatildeo inicia assim a sua senda de conquistas37 A primeira fase da sua expansatildeo seria marcada pelo confronto com Lugalzagesi (ca 2340-2316) Este reinando a partir da cidade de Uruk exer-ceu uma hegemonia efeacutemera sobre o paiacutes de Sumer O reinado de Lugalzagesi representa um importante precedente para o impeacuterio de Akkad38 Iniciando a sua ascensatildeo como ensi de Umma conquistara Lagaš Ur Larsa e Nippur ob-tendo finalmente a realeza sobre a cidade de Uruk Dominando toda a Baixa Mesopotacircmia Lugalzagesi proclamou-se laquoRei do Paiacutesraquo (LUGAL KALAMMA) Poreacutem assume tambeacutem um horizonte de poder concedido pelo deus Enlil que ultrapassava os estreitos limites da Sumeacuteria

laquoQuando Enlil o rei de todos os paiacuteses [KURKUR] concedeu a Lugalzagesi a realeza no paiacutes e a justificou aos olhos do paiacutes quando colocou todos os paiacuteses ao seu serviccedilo e quando do Levante ao Poente os submeteu agrave sua leiraquo39

Lugalzagesi antes da sua derrota agraves matildeos de Sargatildeo declarava assim exercer o poder laquodesde o Mar Inferior pelo Tigre e o Eufrates ao Mar Superiorraquo40 A ascensatildeo da dinastia de Akkad teraacute adotado como sua esta amplitude poliacutetica revelada no discurso de poder de Lugalzagesi concre-tizando-a e alargando-a Deste modo se justifica a posiccedilatildeo de M Liverani quando afirma que o impeacuterio de Akkad em vez de ser considerado como um laquoponto de partida de um processoraquo deve antes ser entendido como um culminar ou ponto de chegada41 As proacuteprias inscriccedilotildees reais de Sargatildeo che-gadas ateacute noacutes atraveacutes das suas coacutepias paleo-babiloacutenicas atestam a sua vitoacuteria sobre Lugalzagesi

laquoSargatildeo o rei de Akkad [] rei de Kiš ungido de Anum o rei do Paiacutes vigaacuterio

37 Ver mapa em anexo elaborado segundo os dados de M Liverani (Liverani 1988 233)38 Consultar CAH 12 420-2139 LAPO 3 94 (IH2b)40 Ibid41 Liverani 1993a 4

97

Marcel L Paiva do Monte

de Enlil venceu a cidade de Uruk e destruiu a sua muralha Desafiou Uruk numa batalha e aprisionou Lugalzagesi o rei de Uruk no decurso da batalha levou-o numa coleira ateacute agrave Porta de Enlilraquo42

Vencendo aquele que exercia hegemonia sobre a Sumeacuteria Sargatildeo herda tam-beacutem o poder que aquele exercera sobre a Baixa Mesopotacircmia Como o seu ante-cessor assume o tiacutetulo de laquorei de Kišraquo vangloriando-se de ter vencido um total de laquotrinta e quatro batalhasraquo Estabelecendo o seu controlo sobre as cidades sumeacuterias consta que efetuou um gesto simboacutelico com grande significado apoacutes a conquista de Lagaš que viria a ser repetido por diversos soberanos assiacuterios do I mileacutenio aC o primeiro rei de Akkad laquolavou as suas armas no marraquo43 afirmando desse modo a sua capacidade de alcanccedilar um dos limites do mundo conhecido o Golfo Peacutersico e de usufruir do comeacutercio que por essa via entrava na Mesopotacircmia

Com efeito o domiacutenio do traacutefego de produtos atraveacutes da Mesopotacircmia era uma das consequecircncias das conquistas de Sargatildeo Este declara que apoacutes a sua vitoacuteria na Baixa Mesopotacircmia os barcos de Meluḫḫa Magan e Tilmun subindo o Eufrates jaacute poderiam acostar no laquocais de Akkadraquo44 Esta declaraccedilatildeo transformar-se-ia num topos recorrente do discurso poliacutetico e ideoloacutegico em seacuteculos posteriores a capacidade do soberano em fazer canalizar para o centro do seu poder os produtos originaacuterios de regiotildees perifeacutericas natildeo apenas bens de luxo mas tambeacutem mateacuterias-primas escassas na Mesopotacircmia como eram os casos da pedra ou da madeira No entanto o controlo do fluxo de mercadorias natildeo se teria limitado ao Golfo Peacutersico ou laquoMar Inferiorraquo o acesso a vias de co-municaccedilatildeo dirigidas para Norte ao longo do curso dos rios Tigre e Eufrates constituiacuteram tambeacutem um alvo da dinacircmica expansionista de Sargatildeo De facto este afirma que com a anuecircncia do deus Dagan se apropriara do laquopaiacutes superiorraquo e das cidades siacuterias de Tuttul Mari Yarmuti e Ebla importantes entrepostos no fluxo comercial que atingia a Norte a laquoFloresta dos Cedrosraquo e as laquoMontanhas da Prataraquo designaccedilotildees que equivaliam agraves cadeias montanhosas da Siacuteria do Norte e do Liacutebano assim como agrave cadeia do Tauro no Sul da Anatoacutelia

laquoSargatildeo o rei prosternou-se em Tuttul orando diante de Dagan Dagan deu--lhe o paiacutes superior Mari Yarmuti e Ebla ateacute agrave Floresta dos Cedros e agraves Mon-tanhas da Prataraquo45

Apesar desta afirmaccedilatildeo de um alcance de poder que chegava ateacute agrave Anatoacute-lia devemos talvez ver aqui mais o reflexo de uma capacidade de obtenccedilatildeo de

42 LAPO 397 (IIA1a 1-28)43 LAPO 397 (IIA1a 29-63)44 LAPO 399 (IIA1b)45 LAPO 399 (IIA1b 17-35)

98

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

produtos por via comercial Contudo uma epopeia de que subsistem diversas versotildees46 vulgarmente conhecida como O Rei da Batalha atribui a Sargatildeo de Akkad uma expediccedilatildeo militar ateacute ao reino de Purušḫḫanda47 Segundo esta epo-peia da qual seguimos a versatildeo de Amarna (II mileacutenio aC) mercadores teriam pedido auxiacutelio a Sargatildeo contra Nur-Daggal o rei dessa cidade que os assediava com violecircncia e traiccedilotildees

laquoJuraacutemos lealdade pelo nome de Sargatildeo rei do Universo e por isso partimos [para Purušḫḫanda] agora enfrentamos violecircncia e natildeo somos heroacuteisraquo48

Sargatildeo ansioso pelo combate e atraiacutedo pelas riquezas dessa regiatildeo ndash onde existiria uma laquogrande montanharaquo feita de laacutepis-lazuacuteli e ouro ndash enceta a demo-rada e difiacutecil marcha ateacute Purušḫḫanda acompanhado pelos seus guerreiros Vencendo Nur-Daggal reza a histoacuteria que o rei de Akkad permanece na regiatildeo por trecircs anos49

O proacuteprio Sargatildeo natildeo refere nas suas inscriccedilotildees que resumem as suas conquistas qualquer campanha a esta regiatildeo da Anatoacutelia Por esse motivo as opiniotildees dividem-se quanto agrave historicidade desta epopeia Mario Liverani por exemplo recusa historicidade a estas informaccedilotildees atribuindo-lhe o valor de um modelo poliacutetico e ideoloacutegico a ser seguido Esta perspetiva confere maior relevacircncia ao tempo em que o texto foi redigido e agraves intenccedilotildees dos seus autores do que agrave tentativa de encontrar o que se costuma designar como historical kernel ie um nuacutecleo de informaccedilotildees contidas numa histoacuteria lenda epopeia ou mito que possa considerar-se ser baseado em acontecimentos histoacutericos concretos50

Por fim Sargatildeo afirma ter submetido agrave sua autoridade o Elam51 onde reina-va a dinastia de Awan Deve ser notado poreacutem que a influecircncia da dinastia de Akkad sobre essa regiatildeo pode ser atestada historicamente atraveacutes de um tratado segundo o qual um rei de Awan se submetia politicamente a Narām-Sicircn (ca 2291-2255 aC) um dos mais importantes sucessores de Sargatildeo52

Eacute bastante difiacutecil contudo aferir a real amplitude das conquistas e expe-diccedilotildees efetuadas por Sargatildeo A existecircncia de um texto chamado A Geografia

46 As diferentes versotildees ou recensotildees enumeradas por Westenholz 1997 10247 Este situar-se-ia possivelmente perto da atual cidade de Aksaray (Turquia) numa regiatildeo

jaacute proacutexima da Anatoacutelia Central Ver bibliografia em Liverani 1993b 52 nota 2848 Traduzido a partir de Westenholz 1997 114 l 1849 Westenholz 1997 131 ls 27-2850 Liverani 1993b 52-56 Para algumas referecircncias bibliograacuteficas a favor e contra esta

posiccedilatildeo consultar paacuteginas 52-53 nota 2951 LAPO 397 (IIA1a 1-34) Acerca da expediccedilatildeo de Sargatildeo ao Elam consultar Liverani

1988 234-3652 Publicado pela primeira vez em MDP XI lxxxviii Ver tambeacutem Briend et al 1992 8-10

99

Marcel L Paiva do Monte

do Impeacuterio de Sargatildeo53 que enumera as regiotildees controladas pelo fundador de Akkad acentua a controveacutersia em vez de esclarecer as duacutevidas Este texto apenas conhecido por duas tabuinhas54 enumera as regiotildees controladas por Sargatildeo e procura atraveacutes da discriminaccedilatildeo de distacircncias medir a amplitude do impeacuterio Natildeo desejando entrar na discussatildeo das suas fontes ou redaccedilatildeo primaacute-ria55 podemos apenas dizer que se trata de um texto de composiccedilatildeo complexa que conteacutem elementos que remetem para realidades pertencentes ao III II e I mileacutenios aC como por exemplo os topoacutenimos que enumera56 Todavia eacute consensual considerar-se este texto como a expressatildeo de um ideal de laquoimpeacuterio universalraquo corporizado pela figura de Sargatildeo de Akkad

A centralidade de Akkad e a sua capacidade de dominar militarmente uma vasta amplitude geograacutefica reflete-se nas inscriccedilotildees reais de Sargatildeo atraveacutes das quais este afirma manter em permanecircncia uma forccedila beacutelica que o limitado hori-zonte das cidades-estado sumeacuterias parecia nunca ter sido capaz de sustentar o rei de Akkad afirma manter laquo5400 homens comendo a sua refeiccedilatildeo diante dele todos os diasraquo57 Eacute por essa dinacircmica guerreira e por um poder de natureza caris-maacutetica que Sargatildeo unifica pela primeira vez toda a Mesopotacircmia58 fornecendo aos futuros soberanos dessa regiatildeo uma base ideoloacutegica que ajudaria a justificar a reivindicaccedilatildeo de um horizonte de poder laquouniversalraquo

6 Sargatildeo amp Sargatildeo

Um dos exemplos que ilustram a continuidade da influecircncia que a figura do fundador de Akkad exerceu sobre as conceccedilotildees da realeza na Mesopotacircmia eacute a adoccedilatildeo do seu nome por alguns reis posteriores59 Dois reis assiacuterios escolheram como seus nomes reacutegios o nome de Sargatildeo O mais importante foi Sargatildeo II monarca cujo papel foi marcante na expansatildeo assiacuteria da segunda metade do I mileacutenio aC Este como o seu homoacutenimo de Akkad usurpou o trono assiacuterio por volta de 722 aC apoacutes a morte de Salmanasar V cujo reinado durou pouco menos de cinco anos (726-722 aC) O facto de Sargatildeo II ter chegado ao trono de modo irregular antes de lhe ser exigido que consolidasse internamente o seu poder pela forccedila permite entender o motivo pelo qual este adotara o nome do fundador de Akkad consolidar um poder receacutem-adquirido e afirmar uma

53 Transliteraccedilatildeo traduccedilatildeo e estudo em Horowitz 1998 67-9554 Um manuscrito do periacuteodo neoassiacuterio encontrado em Aššur (Ass 13955rb) e um

manuscrito neobabiloacutenico hoje no Museu Britacircnico (BM 64382) Van de Mieroop 1999 33055 Ver bibliografia e resumo das posiccedilotildees em Van de Mieroop 1999 330-3156 Van de Mieroop 1999 33157 LAPO 399 (IIA1b 17-35)58 Liverani 1988 252-56 acentua o carisma guerreiro dos reis de Akkad como uma das

principais inovaccedilotildees da cultura poliacutetica trazidas por Sargatildeo agrave Mesopotacircmia59 Frahm 2005 46-50 nordm 2

100

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

legitimidade atraveacutes do nome inequiacutevoco de Šarru-kicircn ou laquorei legiacutetimoraquo como vimos acima60

Sargatildeo II como o fundador de Akkad resolveu construir uma nova capi-tal a que chamou Dūr-Šarrukicircn a laquoFortaleza de Sargatildeoraquo localizada na atual Khorsabad61 A fundaccedilatildeo de uma nova capital construiacuteda ex nihilo procurava instituir uma rutura com uma realidade poliacutetica anterior que proporcionasse um afastamento de contextos de poder tradicional que continham de forma latente ou aberta focos de oposiccedilatildeo62 Sargatildeo II poderaacute ter decidido a construccedilatildeo dessa nova cidade como meio de se afastar de uma atmosfera potencialmente conspirativa por parte de elites tradicionais que residiriam em boa parte em antigas capitais como Aššur ou Kalḫu onde teriam grande influecircncia

Natildeo sendo um expediente poliacutetico invulgar no Proacuteximo Oriente Antigo podemos afirmar com certeza que esta seria a mesma estrateacutegia que Sargatildeo pretendera seguir quando fundara a cidade de Akkad Esta seria o siacutembolo mais visiacutevel de rompimento com a tradicional realidade poliacutetica da Sumeacuteria que se caracterizava antes da experiecircncia de Lugalzagesi na fragmentaccedilatildeo em cidades-estado Esta cidade que pretendia certamente ser considerada como o laquocentroraquo do mundo que correspondesse agraves conquistas de Sargatildeo ainda natildeo foi revelada pelo esforccedilo arqueoloacutegico No entanto presume-se que estivesse situada numa zona de transiccedilatildeo entre a Alta e a Baixa Mesopotacircmia perto de Bagdad63

A Croacutenica do Esagila64 a que jaacute nos referimos e a chamada Croacutenica dos Reis Antigos65 relatam a fundaccedilatildeo de uma nova cidade por Sargatildeo diante de Akkad sua capital Estes textos refletem a atribuiccedilatildeo de um significado ao passado de um modo que era comum natildeo apenas na literatura babiloacutenica mas na proacutepria historiografia produzida no Oriente Antigo em geral o favor divino e o compor-tamento dos reis para com os deuses eram fatores determinantes na definiccedilatildeo do destino dos homens No caso concreto destas duas croacutenicas os seus autores pretendiam interpretar o percurso histoacuterico de vaacuterias dinastias mesopotacircmicas segundo o comportamento dos soberanos face ao Esagila o templo de Mar-duk na cidade da Babiloacutenia Este era o criteacuterio essencial para explicar a queda

60 Acerca da importacircncia do nome como veiacuteculo da essecircncia das coisas na cultura mesopotacircmica e em especial relativamente aos nomes dos reis cf Van de Mieroop 1999 329-30 (sobre a homoniacutemia de Sargatildeo de Akkad e Sargatildeo II da Assiacuteria)

61 Consultar as actas do coloacutequio dirigido por A Caubet (1995)62 Joffe 1998 549-80 O autor analisa entre outros o caso particular de Ducircr-Sharrukicircn

(Ibid 562)63 Consultar mapa em anexo Poderia estar mais propriamente entre Sippar e Kiš (Joffe

1998 556) Ver ainda Wall-Romana 199064 Glassner 2004 263-68 (texto 38)65 Glassner 2004 268-71 (texto 39)

101

Marcel L Paiva do Monte

e ascensatildeo de reis e dinastias66 incluindo Sargatildeo e outros dos seus sucessores como Narām-Sicircn

A Croacutenica dos Reis Antigos segue o fio das tradiccedilotildees literaacuterias acerca de Sar-gatildeo de Akkad ao relatar como o favor de Marduk recaiacutera sobre ele permitindo que este governasse laquoos paiacuteses como um soacuteraquo67 Todavia apoacutes aludir agraves suas con-quistas e agrave amplitude do seu domiacutenio o texto revela que o rei decide construir uma nova cidade reacuteplica da cidade de Babiloacutenia diante da sua capital Akkad

laquoEle [Sargatildeo] levou terra do ldquofosso de argilardquo de Babiloacutenia e construiu perto de Akkad uma reacuteplica [da cidade] de Babiloacutenia Por causa desta (falta) por ele cometida o grande senhor Marduk enfurecido diminuiu o seu povo atraveacutes da fome Desde Oriente ateacute ao Ocidente houve uma revolta contra ele e ele foi afligido com ldquoinsoacuteniardquoraquo68

Segundo estas croacutenicas este ato seria iacutempio e sacriacutelego pois Sargatildeo fun-dando desse modo uma cidade estaria a competir com a grandeza de Babiloacutenia e mais do que isso a substituir-se aos proacuteprios deuses ao encetar esse ato en-tendido como laquodemiuacutergicoraquo Como afirma M Van de Mieroop laquoThe building of a new city by a mortal man was considered to be an act of hybris to the Mesopotamians only gods were allowed to found citiesraquo69

Este tom negativo foi interpretado por este autor como uma criacutetica indireta natildeo ao fundador de Akkad mas ao proacuteprio Sargatildeo II da Assiacuteria Esta basear-se--ia no acontecimento inusitado que foi a morte de Sargatildeo II em combate em 705 aC e a natildeo recuperaccedilatildeo do seu cadaacutever Tal facto teria privado o rei dos ritos fuacutenebres e constituiacutea um sinal aos olhos de muitos dos seus contemporacircneos de uma puniccedilatildeo divina devido a uma falta que este houvesse cometido Falta o laquopecadoraquo que pode estar relacionado com a sua usurpaccedilatildeo do poder e a sua tentativa de imunizaccedilatildeo relativamente a oposiccedilotildees internas ao construir uma nova cidade de raiz e ao estabelecer nela a capital do impeacuterio assiacuterio Por ou-tro lado natildeo seraacute por acaso que esta memoacuteria construiacuteda acerca de Sargatildeo de Akkad retome forccedila no momento em que a Assiacuteria empreende um movimento de expansatildeo que a iria tornar paulatinamente o precedente para os impeacuterios do I mileacutenio aC como o neobabiloacutenico e o persa aquemeacutenida

Estes dois textos satildeo exemplos pungentes da complexidade das tradiccedilotildees literaacuterias no Proacuteximo Oriente Antigo Expressam uma utilizaccedilatildeo inteligente de uma tradiccedilatildeo cultural e poliacutetica antiga no sentido de estabelecer um criteacuterio

66 Estes textos refletem o anacronismo destes elementos ao associaacute-los agrave personagem de Sargatildeo de Akkad Este facto denuncia o propoacutesito interpretativo desta composiccedilatildeo literaacuteria agrave luz do tempo em que foi produzida

67 Ver supra nota 2468 Glassner 2004 271 texto 3969 Van de Mieroop 1999 338

102

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

valorativo para as accedilotildees dos soberanos de que Sargatildeo de Akkad constituiria elemento fundamental Esse criteacuterio estabelecia como valor positivo a emulaccedilatildeo das conquistas de Sargatildeo Uma passagem de um texto eacutepico com ele relaciona-do inscrito num texto do periacuteodo paleo-babiloacutenico revela de modo expliacutecito a natureza modelar do fundador de Akkad No final do texto este exorta qualquer soberano que lhe queira seguir os seus passos a imitaacute-lo laquoSargatildeo instrui as suas tropas lsquoOh o rei que me quiser igualar ndash onde eu fui que ele tambeacutem vaacutersquoraquo70

Consideraccedilotildees finais

A figura de Sargatildeo de Akkad ultrapassou em muito a sua dimensatildeo histoacuteri-ca concreta Ao longo de muitos seacuteculos a memoacuteria que sobre ele foi construiacuteda transformou-o numa personagem modelar e numa referecircncia poliacutetica e cultural incontornaacutevel Parte integrante e essencial dessa memoacuteria era a tradiccedilatildeo que lhe atribuiacutea a conquista das laquoQuatro Regiotildeesraquo isto eacute do mundo Esta expressatildeo apesar de nunca ter feito parte da sua titulatura durante o seu reinado traduz um horizonte universalista de poder reclamado por diversas entidades poliacuteticas surgidas no Proacuteximo Oriente Antigo Ainda que a amplitude das suas conquis-tas possa ter sido exagerada e alargada pela tradiccedilatildeo literaacuteria que construiu agrave sua volta uma verdadeira res gesta foi Sargatildeo de Akkad assim como a dinastia que fundou o responsaacutevel se natildeo pela concretizaccedilatildeo desse ideal de poder pelo menos agrave cristalizaccedilatildeo da sua ideia

70 Sargatildeo o Heroacutei Conquistador Westenholz 1997 76-77 texto 6 ls 120-123

103

Marcel L Paiva do Monte

Bibliografia

Amiet Pierre 1976 Lrsquoart drsquoAgadeacute au Museacutee du Louvre Paris Eacuteditions des Museacutees Nationaux

Brandenstein C G ed 1934 Kultische Texte in hethithischer und churrischer Sprache (Keilschrifturkunden aus Boghazkoumli 27) Berlin Akademie-Verlag

Edwards I E S C J Gadd e N G L Hammond eds (1971) 2006 The Cambridge Ancient History Early History of the Middle East Vol 1 Parte 2 Reimpressatildeo Cambridge The Cambridge University Press

Caubet A ed 1995 Khorsabad le palais de Sargon II roi drsquoAssyrie Actes du colloque organiseacute au Museacutee du Louvre par le Service Culturel le 21 et 22 janvier 1994 Paris La Documentation Franccedilaise

Cooper J e W Heimpel 1983 ldquoThe Sumerian Sargon Legendrdquo Journal of the American Oriental Society 10367-82

Drews R 1974 ldquoSargon Cyrus and Mesopotamian Folk Historyrdquo Journal of Near Eastern Studies 3387-93

Frahm E 2005 ldquoObservations on the Name and Age of Sargon II and Some Patterns on Assyrian Royal Onomasticsrdquo NABU 246-50

Gadd C J e Leon Legrain eds 1928 Ur Excavations Texts Royal Inscriptions Vol 1 London British Museum Museum of the University of Pennsylvania

George A 1999 The Epic of Gilgamesh A New Translation London Penguin Books

Glassner J-J 2004 Mesopotamian Chronicles Atlanta Society of Biblical Literature

Goetz A 1947 ldquoHistorical Allusions in Old Babylonian Omen Textsrdquo Journal of Cuneiform Studies 1253-65

Grayson A K ed 1987 The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods vol 1 Assyrian Rulers of the Third and Second Millennia BC (to 1115 BC) Toronto University of Toronto Press

Guumlterbock H 1969 ldquoEin neues Bruchstuumlck der Sargon-Erzaumlhlungsbquo Koumlnig der Schlachtrdquo Muskellunge der Deutsch Orient-Gesellschaft zoos Berlin 10114-26

mdashmdashmdash 1934 ldquoDie historische Tradition und ihre literarische Gestaltung bei Babyloniern und Hethitern bis 1200 (Erster Teil Babylonien)rdquo Zeitschrift fuumlr Assyriologie und verwandte Gebiete 421-91

mdashmdashmdash 1938 ldquoDie historische Tradition und ihre literarische Gestaltung bei Babyloniern und Hethitern bis 1200 (Zweiter Teil Hethiter)rdquo Zeitschrift fuumlr Assyriologie und verwandte Gebiete 4445-145

104

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

Horowitz W 1998 Mesopotamian Cosmic Geography Winona Lake Eisenbrauns

Jacobsen Thorkild 1934 The Sumerian King List (Assyriological Studies 11) Chicago Oriental Institute of the University of Chicago

Joffe A 1998 ldquoDisembedded capitals in Western Asian Perspectiverdquo Comparative Studies in Society and History 40549-80

Klein J 1997 ldquoThe God Martu in Sumerian Literaturerdquo In Sumerian Gods and their Representations ed L Finkel e M Geller 99-116 Groumlningen Styx

Liverani Mario 1988 Antico Oriente Storia Societagrave Economia Roma Laterzamdashmdashmdash 1993a ldquoAkkad an Introductionrdquo In Akkad The First World Empire

Structure Ideology Traditions ed M Liverani 1-10 Padova Sargon srlmdashmdashmdash 1993b ldquoModel and Actualization The Kings of Akkad in the Historical

Traditionrdquo In Akkad The First World Empire Structure Ideology Traditions ed M Liverani 41-67 Padova Sargon srl

Michalowski Piotr 1983 ldquoHistory as Charter Some Observations on the Sumerian King Listrdquo Journal of the American Oriental Society 103237-48

Nigro Lorenzo 1998 ldquoTwo steles of Sargon iconology and visual propaganda at the beginning of royal Akkadian reliefrdquo Iraq 6085-102

Oppenheim A L 1964 Ancient Mesopotamia Portrait of a Dead Civilization Chicago The University of Chicago Press

Pongratz-Leisten Beate 2001 ldquoThe Other and the Enemy in the Mesopotamian Conception of the Worldrdquo In Melammu Symposia II Mythology and Mythologies Methodological Approaches to Intercultural Influences ed R Whiting 195-231 Helsinki The Neo-Assyrian Text Corpus Project

Postgate John Nicholas 1992 Early Mesopotamia Society and Economy at the Dawn of History London New York Routledge

Puech Emile Jacques Briand e Reneacute Labrun 1992 Traiteacutes et Serments dans le Proche-Orient Ancien (Supplement aux Cahiers Eacutevangile 81) Paris Les Editions du Cerf

Rowton M B 1960 ldquoThe Date of the Sumerian King Listrdquo Journal of Near Eastern Studies 19156-62

mdashmdashmdash 1973 ldquoUrban Authonomy in a Nomadic Environmentrdquo Journal of Near Eastern Studies 32201-15

Scheil V 1911 Meacutemoires de la Deacuteleacutegation en Perse XI Textes Eacutelamites-Anzanites Paris Ernest Leroux

Sollberger E e J-R Kupper eds 1971 Inscriptions royales sumeacuteriennes et akkadiennes (Litteacuteratures Anciennes du Proche-Orient 3) Paris Centre National de la Recherche Scientifique Les Eacuteditions du Cerf

105

Marcel L Paiva do Monte

Speiser E 1952 ldquoSome Factors in the Collapse of Akkadrdquo Journal of the American Oriental Society 7297-101

Sturm J e Otten H eds 1939 Historische und religioumlse Texte (Keilschrifturkunden aus Boghazkoumli 27) Berlin Akademie-Verlag

Van de Mieroop Marc 1999 ldquoLiterature and Political Discourse in Ancient Mesopotamia Sargon II of Assyria and Sargon of Agaderdquo In Munuscula Mesopotamica Festschrift fuumlr Johannes Renger (AOAT 267) ed B Boumlck E Cancik-Kirschbaum e T Richter 327-39 Muumlnster Ugarit-Verlag

Wall-Romana Christophe 1990 ldquoAn Areal Location of Agaderdquo Journal of Near Eastern Studies 49205-45

Westenholz Joan G 1983 ldquoHeroes of Akkadrdquo Journal of the American Oriental Society 103327-36

mdashmdashmdash 1997 Legends of the Kings of Akkade The Texts Winona Lake Eisenbrauns

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

107

Joatildeo Paulo Galhano

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita1

(The hurritisation of mythological concepts of power in the Hittite Empire)

Joatildeo Paulo Galhano(jptsgalhanogmailcom ORCID 0000-0003-4934-2696)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de Histoacuteria

laquoAssim disse Ḫupašiya a InaralsquoSe me deito contigo irei e cumprirei o desejo do teu coraccedilatildeorsquo

E ele deitou-se com elaraquo2

Resumo - No presente estudo pesquisaacutemos os processos de hurritizaccedilatildeo dos conteuacute-dos mitoloacutegicos hititas Apoacutes anaacutelise da hurritizaccedilatildeo eacutetnica do territoacuterio da Anatoacutelia verificaacutemos que nos mitos de divindades ausentes subsistem conceccedilotildees de interde-pendecircncia e correlaccedilatildeo dos entes divinos a par de uma tendecircncia natildeo hieraacuterquica de organizaccedilatildeo do panteatildeo anatoacutelico antigo Jaacute o Mito de Illuyanka apresenta uma modalidade mitoloacutegica diferente assente na luta entre um deus e uma forccedila maacute As narrativas hurritas trouxeram ao panteatildeo anatoacutelico estruturas que evidenciam ideias de realeza divina de valorizaccedilatildeo do horizonte familiar e de diferenciaccedilatildeo das instacircn-cias de poder Os mitos hurritas trouxeram ainda dimensotildees temporais alargadas e uma encenaccedilatildeo literaacuteria do poder O mito O Desaparecimento do Deus Sol parece cru-zar elementos conceptuais que se podem encontrar nos mitos de divindades ausentes mas tambeacutem outros que satildeo tiacutepicos da mitologia de origem hurrita

Palavras-chave Hititas Hurritas mitos influecircncia

Abstract ndash In this research article we looked for the hurrianization processes of the hittite mythological contents After the analysis of the ethnic hurrianization of the Anatolian territory we confirmed that in the myths of disappearing gods there is an idea of interdependence and correlation of divine agents as well as a non-hierarchical tendency in the arrangement of the ancient Anatolian pantheon The Illuyanka Tales show a different mythological mode based in the fight between a god and an evil power The Hurrian myths have brought to the Anatolian pantheon some narrative structures that include the idea of divine kingship of emphasis on the familial order and of differentiation of the power levels Besides the Hurrian myths have included a wide temporal dimension and the literary play-acting of power The myth of The Disappearance of the Sun God seems to join elements found in the myths of disappea-ring gods and other ingredients typical of the Hurrian mythology

Keywords Hittites Hurrians myths influence

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013

2 CTH 321 Mito de Illuyanka A obv i 24 e ss

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_6

108

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

A histoacuteria hitita3 tem tido uma periodizaccedilatildeo similar agrave de outros reinos do Proacuteximo Oriente Antigo (em sentido lato) designadamente o egiacutepcio dando lugar agrave divisatildeo em Reino Antigo Reino Meacutedio e Reino Novo4 Alguns preferem simplificar o esquema e reduzir a histoacuteria hitita a duas fases principais o Reino Antigo e o Reino Novo propondo a cisatildeo no iniacutecio do reinado de Tudḫaliya I ou seja no final do seacutec XV ou iniacutecio do seacutec XIV aC5 Esta periodizaccedilatildeo se reflete uma viragem na orientaccedilatildeo poliacutetica hitita que a partir de Tudḫaliya I estaacute sob o desiacutegnio da conquista de terras longiacutenquas na Siacuteria e no oeste da Anatoacutelia natildeo daacute relevo ao momento de realizaccedilatildeo imperial conseguido com Šuppiluliuma I cuja maior concretizaccedilatildeo aconteceu no domiacutenio da diplomacia e da estrateacutegia militar laquointernacionalraquo resultando na anexaccedilatildeo do reino hurrita do Mitanni e de vastas zonas no norte da Siacuteria

A cultura religiosa e literaacuteria hitita do periacuteodo imperial ficou marcada por um elevado grau de fusatildeo da matriz autoacutectone hatiana com os aportes miacutetico--religiosos hurritas siriacuteos e mesopotacircmicos situaccedilatildeo que derivou dos contactos continuados das populaccedilotildees autoacutectones com os povos vizinhos do leste e sudeste da Anatoacutelia Este processo culminaria na integraccedilatildeo do Mitanni e do norte da Siacuteria nos domiacutenios hititas para aleacutem dos territoacuterios disputados a sudoeste com o reino de Arzawa Por essa via a histoacuteria cultural hitita ficou superlativamente marcada pela integraccedilatildeo de elementos hurritas a ponto de no periacuteodo imperial a cultura mitoloacutegica hurrita ser tatildeo hitita quanto a matriz hatiana originaacuteria da Anatoacutelia

Interessa entatildeo perceber o que significou a hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos hititas no que trata das conceccedilotildees de poder com o propoacutesito de compreender o que mudou com a assimilaccedilatildeo e adiccedilatildeo de estruturas narrativas mitoloacutegicas hurritas agrave matriz hatiana tenham sido ou natildeo acompanhadas de processos de sincretismo religioso Para tal importa comeccedilar por convocar os elementos histoacuterico-geograacuteficos que teratildeo possibilitado aquela hurritizaccedilatildeo

3 Por Hititas designa-se o que na literatura de expressatildeo inglesa surge denominado laquoHittitesraquo e na aacuterea alematilde laquoHethiterraquo Por Hatianos os povos anatoacutelios indiacutegenas que viveram na Anatoacutelia antes da chegada dos Indo-Europeus Sobre a problemaacutetica do nome dos povos da Anatoacutelia cf Galhano 2012 4-6

4 Horst Klengel (1998) distingue trecircs periacuteodos na histoacuteria hitita das aumlltere Reich (ateacute Telipinu) das ldquomittlererdquo Reich (de Taḫurwaili ateacute Tudḫaliya II) e das neue Reich (Groszligreichszeit) (de Šuppiluliuma I ateacute Šuppiluliuma II) Tambeacutem Harry Hoffner (2009 xi) distingue trecircs periacuteodos na histoacuteria hitita Old Kingdom (de c 1600 a c 1400 ie ateacute Muwattalli I) Early New Kingdom (ldquoMiddle Kingdomrdquo) (de Tudḫaliya I (II) ateacute Tudḫaliya II (III)) e New Kingdom (de Šuppiluliuma I ateacute Šuppiluliuma II)

5 Trevor Bryce (2005 6) segue esta periodizaccedilatildeo Segundo Gary Beckman laquo[] there was no coherent Middle Kingdom period of Hittite history nor an abrupt transition to the Empire Rather a single royal family ndash or perhaps clan ndash ruled Ḫatti from start to finishraquo (Beckman 2007 110) As datas indicadas no presente texto satildeo todas aC razatildeo para se dispensar esta elucidaccedilatildeo em referecircncias posteriores

109

Joatildeo Paulo Galhano

pelo menos ateacute Tudḫaliya IV quando o impeacuterio hitita estaacute ainda plenamente vigoroso

1 Poliacutetica e etnicidade

O local da futura Ḫattuša aparece com vestiacutegios de ocupaccedilatildeo humana pelo menos desde meados do III mileacutenio a par de outros pequenos reinos da Anatoacutelia central junto do rio posteriormente conhecido pelos Hititas por Maraššantiya o Haacutelis dos Gregos Ainda antes da viragem para o segundo mileacutenio teratildeo chegado agrave Anatoacutelia grupos populacionais Luvitas Palaiacutetas e Nesitas todos de matriz linguiacutestica indo-europeia6 Esta primeira incorporaccedilatildeo de elementos indo-europeus numa provaacutevel matriz autoacutectone hatiana teraacute produzido uma primeira amaacutelgama cultural mais por adiccedilatildeo do que por efetiva fusatildeo cultural dadas as persistecircncias linguiacutesticas natildeo indo-europeias no Ḫatti dos seacuteculos posteriores No periacuteodo do estabelecimento de feitorias assiacuterias na zona leste da Anatoacutelia7 nos primeiros seacuteculos do II mileacutenio nota-se uma forte compo-nente eacutetnica indo-europeia em Kaneš8 uma das mais importantes feitorias de comerciantes assiacuterios poreacutem nesse mesmo periacuteodo poderatildeo ter logo surgido elementos hurritas na Anatoacutelia central9

A incorporaccedilatildeo de populaccedilotildees hurritas na aacuterea anatoacutelica embora resul-tando inicialmente muito possivelmente das viagens de sacerdotes e adivinhos hurritas10 teve como causa importante a deportaccedilatildeo de tropas derrotadas nos confrontos militares posteriores tornando a guerra num importante processo de hurritizaccedilatildeo daquela aacuterea A primeira unificaccedilatildeo poliacutetica do Ḫatti protago-nizada por Pitḫana e Anitta em torno de Kaneš bem como o fim da maior parte das feitorias assiacuterias poderatildeo ter sido causadas precisamente pela intervenccedilatildeo

6 Klengel 1998 20 Bryce 2005 10-147 Designa-se laquofeitorias assiacuteriasraquo o que surge habitualmente denominado laquocoloacutenias assiacuteriasraquo

seguindo uma justa sugestatildeo de Maria de Lurdes Palma no decurso da primeira sessatildeo do coloacutequio Arqueologias de Impeacuterio em 26 de novembro de 2010 Em alematildeo eacute usada a designaccedilatildeo Handelsniederlassungen (Klengel 1998 21 ss)

8 Klengel 1998 24 laquoErste Hinweise auf die Anwesenheit von Bewohnern mit einer indoeuropaumlischen Sprache stammen vor allem aus Kaniš das mit dem in hethitischen Texten bezeugten Neša gleichgesetzt werden darfraquo Natildeo nos referimos aqui ao aporte hurrita nem agrave tese controversa de a liacutengua hurrita poder pertencer agrave famiacutelia indo-europeia Ilse Wegner por exemplo designa a liacutengua hurrita e a liacutengua do Urartu esta aparentada com a primeira de laquoldquoisoliertenrdquo Sprachenraquo (cf Wegner 2007 35)

9 Collins 2007 31-32 Bryce 2005 15 Mogens Trolle Larsen data o aparecimento da cidade--estado de Kaneš c 2250 (Larsen 2015 xi) de acordo com Gojko Barjamovic laquowhen and how Assyrian trade in Anatolia began is lost in time Direct textual evidence goes back to the early years of the reign of king Ikunum (1934-1921 BC) but a network of Assyrian trading colonies in Anatolia may have been established generations earlierraquo (Barjamovic 2011 1)

10 Bryce 2005 18

110

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

de elementos populacionais hurritas do sudoeste11 cedo se estabelecendo a tensatildeo hurro-hitita em territoacuterio anatoacutelico12 Ḫattušili I cuja orientaccedilatildeo poliacutetica levaria a expansatildeo hitita para o norte da Siacuteria13 estaria tambeacutem condenado ao confronto com os Hurritas do Mitanni designadamente em torno de Uršu En-quanto os esforccedilos militares hititas estavam concentrados na zona de Arzawa os Hurritas atacaram a Anatoacutelia deixando incoacutelume apenas a cidade de Ḫattuša14 Em resposta Ḫattušili I avanccedilou militarmente para leste e chegou mesmo a atravessar o Eufrates seguindo-se o saque de despojos de guerra para Ḫattuša sem ser conseguido um domiacutenio permanente sobre essas regiotildees A guerra surge tambeacutem neste caso como elemento propiciador do contacto eacutetnico entre Hur-ritas e anatoacutelicos15

Nesta primeira fase da histoacuteria hitita antes de Tudḫaliya I o conviacutevio com culturas natildeo anatoacutelicas natildeo se limitaria ao Mitanni e ao norte da Siacuteria dado que Muršili I legiacutetimo sucessor de Ḫattušili I poria fim agrave dinastia de Ham-murabi com a breve conquista de Babiloacutenia em 153116 Este avanccedilo militar pode bem ter tido a ajuda dos futuros governantes babiloacutenicos no acircmbito de uma estrateacutegia de alianccedila laquointernacionalraquo de Muršili I com os Cassitas motivada pela ameaccedila hurrita17 Durante a governaccedilatildeo de Telipinu (c 1510-1490) recomeccedilam as expediccedilotildees contra as proximidades do receacutem-criado reino do Kizzuwatna em Ḫaššuwa Zizzilipa e Lawazantiya18 Esta incursatildeo militar natildeo daria lugar agrave invasatildeo do Kizzuwatna pretendendo-se evitar novas hostilidades do Mitanni Em todo o caso as movimentaccedilotildees populacionais de semi-noacutemadas entre o Kiz-zuwatna e o Ḫatti continuaram apoacutes a morte de Telipinu o que pode deduzir-se a partir do tratado estabelecido entre um dos monarcas hititas posteriores a Telipinu (talvez Ḫantili II) e Paddatiššu rei do Kizzuwatna19 A integraccedilatildeo de elementos eacutetnicos hurritas na Anatoacutelia pode assim ter ocorrido tambeacutem na ausecircncia de guerra

11 Bryce 2005 6112 Cf Beckman 2007 109-10 laquoThe origins of the Old Kingdom and the process of its

consolidation remain obscure to us but it may now be recognized that Luwian and Hurrian influence was already present to a significant degree in the early Hittite state We must therefore abandon any remnants of the view that a pristine Indo-European culture was gradually ldquoOrientalizedrdquo in early Anatolia At least during the period covered by the available texts Ḫatti was always a multicultural civilizationraquo

13 Klengel 1998 4414 CTH 4 Anais de Ḫattušili I obv i 24-26 (Carreira 1999 48) CTH refere-se agrave numeraccedilatildeo

dos textos anatoacutelicos seguida em Laroche 197115 Carreira 2009 1416 Eder-Renger 2007 6717 CTH 19 Edicto Constitucional de Telipinu i 28 e ss (Carreira 1999 55) Bryce 2005 99

cf Klengel 1998 64 e ss18 Klengel 1998 79 Bryce 2005 10419 CTH 26 (KUB 341 17-20) trad em Liverani 2001 66-67 tambeacutem em Beckman-Hoffner

1999 11 e ss

111

Joatildeo Paulo Galhano

A conquista hitita de Alepo iniciada por Ḫattušili I e concluiacuteda por Muršili I provocou a desagregaccedilatildeo das estruturas de poder no norte da Siacuteria facto que teraacute potenciado a infiltraccedilatildeo de Hurritas nesse espaccedilo territorial travada apenas com o avanccedilo de Tutmeacutes I ateacute ao Eufrates A interrupccedilatildeo desta poliacutetica de expansatildeo egiacutepcia durante o reinado de Hatchepsut permitiria uma grande expansatildeo mitanniana para oeste permitindo que Alepo se tornasse um reino vassalo do Mitanni de Parrattarna20 Os avanccedilos militares egiacutepcios na aacuterea do Mitanni criaram condiccedilotildees para que Zidanta II (ou Ḫuzziya II) estabelecessem um pacto hitito-egiacutepcio dado que aqueles avanccedilos militares se mostravam uacuteteis para conter a ameaccedila hurrita no norte da Siacuteria e apenas vagamente perigosos para pocircr em crise o territoacuterio anatoacutelio

Com Tudḫaliya I inicia-se um novo periacuteodo na histoacuteria poliacutetica do Ḫatti essencialmente marcado pelo conflito aberto com os reinos vizinhos da Anatoacutelia do Bronze Recente assim se preparando o periacuteodo imperial hitita de Šuppiluliuma I meio seacuteculo mais tarde Nesta fase observa-se jaacute uma grande presenccedila hurrita nos assuntos poliacuteticos hititas nomeadamente aquando da que-rela sucessoacuteria e da rebeliatildeo de Muwa bastante apoiada militarmente pelos Hur-ritas do Mitanni21 A hurritizaccedilatildeo da Anatoacutelia tinha jaacute atingido um tal estado de maturidade que tornava os grupos dominantes da sociedade hitita permeaacuteveis agrave influecircncia hurrita No reinado de Tudḫaliya I o esforccedilo de guerra a oeste contra a Confederaccedilatildeo de Aššuwa enfraqueceu as fronteiras hititas a norte e a leste po-tenciando a inimizade do reino de Išuwa um territoacuterio laquotampatildeoraquo entre o Ḫatti e o Mitanni As campanhas militares de Tudḫaliya I naquele reino bem como no norte da Siacuteria facilmente teratildeo permitido a integraccedilatildeo de novos sujeitos hurritas na Anatoacutelia Aliaacutes a hurritizaccedilatildeo da Anatoacutelia ocorrida apoacutes Tudḫaliya I ocorre tambeacutem no espaccedilo linguiacutestico e religioso22

Jaacute com Arnuwanda I no trono hitita o novo rei do Mitanni tentou domi-nar novamente o norte da Siacuteria Poreacutem a situaccedilatildeo geopoliacutetica incluiacutea agora o interesse egiacutepcio de Tutmeacutes IV nessa regiatildeo Estabelecer-se-ia entatildeo um acordo mitano-egiacutepcio resultando na divisatildeo da Siacuteria em duas zonas de influecircncia a norte de Qadeš do Amurru e de Ugarit a intervenccedilatildeo seria hurrita ficando os territoacuterios a sul sob alccedilada egiacutepcia Tal acabaria por reforccedilar a presenccedila poliacutetica e consequentemente eacutetnica hurrita no norte da Siacuteria A habilidade poliacutetica e

20 Bryce 2005 116-1721 Bryce 2005 12122 Watkins 2001 51 laquoHittite religion and the pantheon underwent a profound Hurritization

from the Middle Hittite period onwards and the language played a major role in ritual and cult with numerous loanwords of varying degrees of assimilationraquo Klengel 1998 113 laquoDurch die enge Verbindung mit Kizzuwatna wurde zweifellos auch der Einfluszlig hurritischer Kultur auf Ḫatti verstaumlrkt der sich vielleicht auch im hurritischen Namen der Gemahlin des Tutḫalija Nikkalmati [] in den Namen spaumlterer Koumlniginnen sowie auch Zweitnamen der Groszligkoumlnige zeigtraquo

112

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

diplomaacutetica de Šuppiluliuma I (c 135550-1320) daria expressatildeo concreta ao imperialismo hitita cuja maior expansatildeo passaria pela inclusatildeo de territoacuterios mitannianos no Ḫatti Aliaacutes Šuppiluliuma I alimentou dissensotildees internas no Mitanni e aliou-se agrave Babiloacutenia cassita por meio do seu casamento com uma filha de Burnaburiaš II com o objetivo uacuteltimo de derrotar aquele reino As con-quistas de Šuppiluliuma I na primeira campanha siacuteria incliuriam Alepo Mukiš Niya Araḫtu Qatna e Nuhašše (a norte de Aba apenas ficaria por conquistar Karkemiš)23 Seguindo a poliacutetica de Tudḫaliya I Šuppiluliuma I deportou as famiacutelias reais dos conquistados para Ḫattuša inscrevendo a cultura dos venci-dos no centro poliacutetico do Ḫatti vencidos esses que vinham de aacutereas fortemente hurritizadas inclusive do proacuteprio Mitanni

Soacute na segunda campanha siacuteria tambeacutem conhecida como Segunda Guerra Siacuteria ou Guerra Hurrita Šuppiluliuma I conseguiria submeter de vez o Mitanni e conquistar definitivamente Karkemiš A profundidade da hurritizaccedilatildeo neste momento histoacuterico do Ḫatti pode ser exemplarmente observada no facto de Piyaššili filho de Šuppiluliuma I indicado como vice-rei em Karkemiš ter adotado o nome hurrita Šarri-Kušuḫ ou ainda no facto de Šuppiluliuma I ter deixado os templos de Kubaba e da divindade LAMMA intactos apoacutes a conquista de Karkemiš se a primeira deusa originaacuteria da Alta Mesopotacircmia era cultuada na Anatoacutelia desde o Reino Antigo a segunda era uma divindade tipicamente hurrita24 com ocorrecircncia na mitologia do Ciclo de Kumarbi ambas convivendo agora tanto em Karkemiš como em Ḫattuša A fusatildeo eacutetnica hurro-hitita estava jaacute convertida em cultura siro-anatoacutelica de variada composiccedilatildeo

As vice-realezas criadas por Šuppiluliuma I em Alepo e Karkemiš ambas governadas por filhos de Šuppiluliuma I Telipinu na primeira e Šarri-Kušuḫ na segunda incluiacuteam tambeacutem a direccedilatildeo religiosa tarefa igualmente desempenhada por Telipinu nos mais importantes centros religiosos da Siacuteria25 A instituiccedilatildeo da vice-realeza surge assim como instrumento de permanecircncia da cultura hitita fora da Anatoacutelia e como porta de entrada da cultura hurrita no poder hitita Ou seja a proacutepria vice-realeza hitita teraacute hurritizado a Anatoacutelia

O reinado de Muršili II (c 1318-1290) para aleacutem dos esforccedilos militares a oeste associados agrave continuidade da poliacutetica deportacional seguida desde Tudḫaliya I26 ficou marcado pelo caso de Tawannanna a uacuteltima esposa de Šuppiluliuma I que permanecia como tawannanna em exerciacutecio ainda no reinado daquele soberano

23 Bryce 2005 16124 Hoffner 1998 111 Note-se poreacutem que a divindade dLAMMA era hurrita mas de origem

mesopotacircmica25 Bryce 2005 18826 Cf por exemplo relativamente agrave populaccedilatildeo de Katḫaituwa CTH 61 Anais Completos de

Mursili II Ano 2 (Carreira 1999 75)

113

Joatildeo Paulo Galhano

sendo simultaneamente sacerdotisa-šiwanzanni27 A acusaccedilatildeo de Tawannanna de introduzir divindades simultaneamente babiloacutenicas e hurritas em Ḫattuša no caso a divindade LAMMA cujo templo de Karkemiš fora poupado por Šuppiluliuma I aquando da Guerra Hurrita mostra bem como a hurritizaccedilatildeo do espaccedilo hitita chegara jaacute ao acircmago do poder poliacutetico28 Aliaacutes a confirmaccedilatildeo da elevada hurritizaccedilatildeo do Ḫatti no tempo de Muršili II vem logo a seguir com o seu casamento com Tanu-ḫepa uma princesa de provaacutevel origem hurrita cujo nome se relaciona com a paredra do deus hurrita Tešub Ḫebat

Tambeacutem o futuro Ḫattušili III ainda enquanto dirigente militar na Siacuteria se uniria agrave hurrita Puduḫepa na cidade kizzuwatniana de Lawazantiya sob a eacutegide da deusa mesopotacircmica Ištar29 um verdadeiro siacutembolo do conuacutebio eacutetnico e cultural do Ḫatti imperial30 Puduḫepa cujo nome tambeacutem parece remeter para a deusa hurrita Ḫebat ordenou a recoleccedilatildeo e organizaccedilatildeo de textos religiosos do impeacuterio tendo propiciado uma profunda revisatildeo dos rituais e das cerimoacutenias hititas ou agora melhor designadas hurro-hititas O programa religioso de Puduḫepa teraacute mesmo incluiacutedo a recitaccedilatildeo do Ciclo de Kumarbi perante fun-cionaacuterios do palaacutecio e dos templos de Ḫattuša31 A assimilaccedilatildeo de divindades hurritas no panteatildeo hitita dava lugar a diversos processos de sincretismo sendo exemplo a identificaccedilatildeo da hurrita Ḫebat com a hatiana Deusa Sol de Arinna32

O impeacuterio hitita teria o seu uacuteltimo momento de gloacuteria com Tudḫaliya IV nomeado rei pelo seu pai ainda em vida A predominacircncia hurro-hitita na

27 Friedrich 1991 195 sv indica a traduccedilatildeo laquoGottesmuterraquo assim como Bryce 2005 447 n 71 propotildee a traduccedilatildeo laquomother of the godraquo Tawannanna seria assim sacerdotisa da deusa matildee hitita

28 Cf CTH 70 (KUB 144 ii 3ndash12) Muršili II Sobre o Caso Tawannanna laquoOacute deuses natildeo vedes como ela [Tawannanna] transformou a casa do meu pai na lsquocasa de pedrarsquo [ie num mausoleacuteu] do Deus Tutelar [LAMMA] e a lsquocasa de pedrarsquo do deus Algumas coisas ela trouxe da Terra de Šanḫara [ie de Babiloacutenia] Outras no Ḫatti [hellip] trouxe para a populaccedila Ela natildeo deixou nadahellip A casa do meu pai ela destruiuraquo (apud Bryce 2005 208) Eacute notaacutevel que Muršili II se refira agrave divindade LAMMA como uma divindade da laquoTerra de Šanḫararaquo (Babiloacutenia) a repulsa de Muršili II dirige-se agrave divindade por ser babiloacutenica e natildeo hurrita Tal opccedilatildeo revela o quatildeo a cultura hurrita estava jaacute arraigada na Anatoacutelia a ponto de a natureza tambeacutem hurrita de LAMMA ter de ser ignorada por Muršili para que o efeito poliacutetico desejado fosse obtido o afastamento de Tawannana

29 Cf CTH 81 Apologia de Ḫattušili sect 9 (Carreira 1999 138-39)30 Ḫattušili III e Puduḫepa surgem representados no monumento de Fraktin sendo

Puduḫepa aiacute designada por laquofilha do paiacutes de Kizzuwatna amada pelos deusesraquo (cf Yigit 2016 61-62) laquoThe Fraktin monument [] which has figures and hieroglyph inscriptions on the rock wall is 1 km from the Zamantı River southeast of the Develi dates back to the period where the Hittite Kingdom was at its strongest period and was under the greatest Hurrian influence The monument describes king Hattusili III who lived in the 13th century BC and his wife Puduhepe was the most important factor in the spread of Hurrian culture over the Hittite landsraquo (Yigit 2016 61-62)

31 Bryce 2002 22832 Cf CTH 384 Oraccedilatildeo de Puduḫepa agrave Deusa Sol de Arinna (Pritchard 1969 393)

114

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

cultura anatoacutelica com integraccedilatildeo de alguns elementos mesopotacircmicos se pode ser exemplificada pelo facto de o antepenuacuteltimo rei hitita ser simultaneamente sacerdote de Ištar e do Deus Tempestade de Nerik tem o seu maacuteximo expoente em Yazılıkaya o santuaacuterio ao ar livre que existindo desde o iniacutecio do Reino Antigo atinge o seu maior desenvolvimento neste periacuteodo O panteatildeo hurrita surge aiacute como o panteatildeo hitita por excelecircncia com a tripla representaccedilatildeo de Tudḫaliya IV junto ao seu deus patrono Šarruma o laquodeus da montanharaquo filho de Tešub e Ḫebat as duas divindades hurritas supremas O cortejo de divindades hurritas representado em Yazilikaya concretiza plenamente o programa religio-so iniciado por Puduḫepa e Ḫattušili III

Apoacutes o colapso do impeacuterio hitita e do abandono progressivo de Ḫattuša no final do seacutec XIII33 para aleacutem das persistecircncias poliacutetico-hititas em meio cultural hurrita como se verificou por exemplo em Karkemiš a heranccedila cultural a que agrave falta de melhor termo se pode chamar hurro-hitita persistiu nalguns reinos neo-hititas Em Tabal zona de forte influecircncia eacutetnica luvita tambeacutem foi cul-tuada a deusa Kubaba cujo principal centro de culto se localizou em Karkemiš natildeo obstante a sua origem alti-mesopotacircmica e o seu culto anatoacutelico no periacuteodo inicial do reino hitita

2 Da desordem agrave concoacuterdia

Boa parte da mitologia hitita mais antiga estaacute embutida em rituais destinados a superar momentos de crise atraveacutes da repeticcedilatildeo ritual de um acontecimento primordial entatildeo invocado um mugawar ou entatildeo enquadra-se em festivais religiosos do Estado hitita de que eacute exemplo o Mito de Illuyanka O mito do Desaparecimento de Telipinu34 pode ser considerado paradigma dos mitos de divindades ausentes Iniciando-se com o desaparecimento da divindade por razotildees indeterminadas segue-se com a descriccedilatildeo da interrupccedilatildeo do curso normal da natureza provocada pela ausecircncia do deus A repeticcedilatildeo ritualizada associada ao mugawar traz de novo o deus e com ele o restabelecimento da ordem natural das coisas A ausecircncia de Telipinu provoca sofrimento natildeo apenas no plano humano mas tambeacutem na esfera divina35 O sofrimento metaforicamente

33 laquoArchaeological evidence indicates widespread devastation by fire in the capital ndash on the royal acropolis in the temples of both Upper and Lower Cities and along stretches of the fortifications This has conjured up the scenario of a royal capital succumbing all at one time to violent destruction in an all-consuming conflagration However Dr Seeher the current director of excavations at Hattusa has come to a rather less dramatic conclusion His scenario is one of gradual abandonment of the capital firstly by its royal family and leading members of the palace bureaucracy who took with them all their valuable and portable possessions including the kingdomrsquos most important official records They must have done so once it became clear that the capital was doomedraquo Bryce 2005 345

34 CTH 324 Desaparecimento de Telipinu35 CTH 324 Desaparecimento de Telipinu A obv i 5-9 (Garciacutea Trabazo 2002 111) laquoA

115

Joatildeo Paulo Galhano

provocado pelo fumo atinge igualmente homens e deuses que ficam tatildeo sufocados nos seus altares como homens e animais o ficam nos seus habitates36

Haacute assim uma interdependecircncia no plano divino expressa no mito do Desaparecimento de Telipinu ainda que Telipinu natildeo seja colocado em niacutevel hierarquicamente superior aos outros deuses A ausecircncia da divindade revela a sua importacircncia para a manutenccedilatildeo do equiliacutebrio coacutesmico sobressaindo assim uma ideia de harmonia perdida quando uma das divindades se ausenta Essa mesma correlaccedilatildeo ocorre no mito do Desaparecimento do Deus Tempestade37 quando sucede um desaparecimento similar ou ateacute nos mitos do Deus Tempestade de Kuliwišna38 do Deus do Escriba Pirwa39 e do Deus Tempestade da Rainha Ḫarapšili40 A conceccedilatildeo de concoacuterdia entre deuses nos mitos de divindades ausentes que se expande para o plano humano tende assim a caracterizar o poder do ponto de vista mitoloacutegico como uma harmonia quase natildeo hieraacuterquica assente na necessidade que os deuses tecircm uns dos outros todos satildeo imprescindiacuteveis para que haja equiliacutebrio e abundacircncia no plano divino O proacuteprio facto de todos os deuses participarem no banquete organizado pelo Deus Sol41 denota a ausecircncia de rivalidade divina Tal situaccedilatildeo pode estar relacionada com a pouca especulaccedilatildeo teoloacutegica ou mesmo com a ausecircncia de uma teologia em sentido estrito nos periacuteodos anteriores a Ḫattušili III e a Puduḫepa42

A tendecircncia natildeo hieraacuterquica dos mitos de divindades ausentes assume por vezes registos de complementaridade funcional reconhecendo-se uma dependecircncia da conjunccedilatildeo das divindades para obter benefiacutecios Tal sucede no passo do mito As Fiandeiras Infernais associado ao Ritual Para a Construccedilatildeo de um Novo Palaacutecio43 onde se relaciona o par divino formado pela Deusa Sol e pelo Deus Tempestade ambos fenoacutemenos celestes divinizados

neblina tomou as janelas o fumo [tomou] a casa os lenhos consumiram-se na lareira os deuses sufocaram-se [nos altares] tambeacutem as ovelhas no curral [e] as vacas sufocaram-se no estaacutebulo a ovelha abandonou o seu cordeiro e a vaca abandonou o seu viteloraquo

36 Situaccedilatildeo semelhante ocorre por exemplo no mito do Deus do Escriba Pirwa (CTH 328) (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 106)

37 CTH 325 Desaparecimento do deus Tempestade sect5 A i 16-21 (Hoffner 1998 21)38 CTH 329 O Deus Tempestade de Kuliwišna ii 5 ss (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 108)39 CTH 328 O Deus do Escriba Pirwa KUB 3332 ii 5rsquo e ss (Pecchioli Daddi-Polvani 1990

107) Situaccedilatildeo semelhante se observa no mito Anzili e Zukki (CTH 333) com a diferenccedila que a desordem coacutesmica natildeo eacute provocada pelo desaparecimento de um deus mas causada pela irritaccedilatildeo de Anzili e de Zukki cf Bernabeacute 1987 72 ss

40 CTH 327 O Desaparecimento do Deus Tempestade da Rainha Ḫarapšili sect3 A iii 1-4 (Hoffner 1998 25) laquo[O Deus Tempestade da Rainha Ḫarapšili()] sentou-se numa cadeira-šarpas de madeira [hellip] A neblina libertou [a janela] [O fumo] libertou [a casa] O altar estava de novo em harmonia [Acima dele] os deuses estavam em harmoniaraquo cf sect8 D 10-17

41 Cf CTH 329 O Deus Tempestade de Kuliwišna ii 5 ss (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 108) e CTH 328 O Deus do Escriba Pirwa obv i 15rsquo e ss (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 106)

42 Bryce 2002 14543 CTH 414 Ritual para a Construccedilatildeo de um Novo Palaacutecio

116

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

laquolsquo[hellip] e invoquei a (deusa) Trono minha amiga lsquoNatildeo (eras) tu minha amiga do rei Proporciona-me essas aacutervores e (eu) as cortareirsquordquo E a Deusa Trono responde ao rei ldquoCorta-os corta(-os) A Deusa Sol e o Deus Tempestade proporcionaram-tosrdquoraquo44

Por vezes aquela conceccedilatildeo natildeo hieraacuterquica do poder divino daacute lugar a uma certa pusilanimidade divina como se pode observar no passo do mito A Lua Caiacuteda do Ceacuteu em que o Deus Tempestade sente medo e anguacutestia pelo desaparecimento do Deus Lua45 Observa-se aqui a ausecircncia de uma conceccedilatildeo de poder competitivo e belicoso antes se promovendo uma certa humanizaccedilatildeo das divindades pois o Deus Tempestade surge aqui afastado de um ideal de coragem e valentia beacutelica desembocando mesmo na pusilanimidade do medo

Nas relaccedilotildees de poder dos mitos de divindades ausentes tambeacutem haacute lugar para a superioridade de algumas entidades sempre sem recurso agrave categoria de realeza para estratificar o divino Pode ter-se Ḫannaḫanna como exemplo dessa discriminaccedilatildeo dado ser esta deusa que no mito do desaparecimento de Telipinu ordena ao Deus Tempestade que procure o deus ausente46 Concebe-se assim uma certa diferenciaccedilatildeo poliacutetica na laquosociedaderaquo divina porventura de-calcando a importacircncia poliacutetica da tawananna hitita Poreacutem a discriminaccedilatildeo positiva desta deusa parece assentar na sua natureza de sage conselheira47 A discriminaccedilatildeo de Ḫannaḫanna no meio divino evidencia tambeacutem a projeccedilatildeo das relaccedilotildees familiares de autoridade dos antepassados no campo do mito

44 CTH 414 Ritual para a Construccedilatildeo de um Novo Palaacutecio A obv i 34-38 (Garciacutea Trabazo 2002 489) Nova referecircncia ao par divino formado pela Deusa Sol e pelo Deus Tempestade ocorre no mesmo mito em A obv ii 47-49 (Garciacutea Trabazo 2002 499) tambeacutem noutros mitos de divindades que desaparecem surgem referecircncias a outros pares divinos como por exemplo o par Deus Tempestade ndash Deusa Sol de Arinna nos fragmentos CTH 335

45 CTH 727 A Lua Caiacuteda do Ceacuteu C obv ii 10-14 (Garciacutea Trabazo 2002 261) A mesma ideia em A obv ii 16-21 Nova referecircncia ao medo e agrave anguacutestia do Deus Tempestade surge na parte ritual do mito A Lua Caiacuteda do Ceacuteu (CTH 727 C rev iii 10rsquo-11rsquo) ainda que aqui com a possibilidade destas emoccedilotildees se referirem ao efeito das accedilotildees do Deus Tempestade no plano humano num comum momento de projeccedilatildeo das preocupaccedilotildees humanas no divino Cf Garciacutea Trabazo 2002 265

46 CTH 324 Desaparecimento de Telipinu A obv i 29-32 (Garciacutea Trabazo 2002 115) cf ainda CTH 324 Desaparecimento de Telipinu E obv ii 15rsquo-16rsquo (Garciacutea Trabazo 2002 117) e CTH 336 Mitos da Deusa Inara sect3 B ii 4-9 (Hoffner 1998 30)

47 Eg CTH 336 Mitos da deusa Inara sectsect1-2 ii 1-10 (Hoffner 1998 31) A diferenciaccedilatildeo positiva de Ḫannaḫanna enquanto conselheira saacutebia tambeacutem pode ser observada na parte final de CTH 336 (Mitos da Deusa Inara sectsect4-6 A rev 2-13 Hoffner 1998 32) laquoQuando estiveres perante o Deus Sol natildeo faccedilas de novo [hellip] tudo Tu iraacutes e encontraraacutes [hellip] Tu diraacutes [hellip] Quando o Deus Sol disser lsquoTu faz alguma coisarsquo ele diz lsquoTu [hellip]rsquo Mas se ele nada disser deixa-o estar em silecircncio()rdquo O Deus Guerra respondeu ldquoMas se eu natildeo for a lado nenhum que devo levarrdquo Ḫannaḫanna respondeu-lhe ldquoAno a ano continua a ir para campanhas militaresrdquo As trecircs crianccedilas da Serva Feminina [perguntaram] a Ḫannaḫanna ldquoEspera que devo levarrdquo [Ḫannaḫanna respondeu] ldquoIde [hellip] Natildeo vaacutes [hellip]rdquoraquo

117

Joatildeo Paulo Galhano

Aliaacutes o seu nome significa literalmente laquomatildee da matildeeraquo ou seja laquoavoacuteraquo48 tendo a sua autoridade paralelo na figura do avocirc do Deus Tempestade referido no mito do Desaparecimento do Deus Tempestade49 Contudo a toacutenica dos mitos de divindades ausentes estaacute na relativa igualdade e capacidade de convivecircncia entre deuses

O caraacutecter natildeo hieraacuterquico e coletivo do poder nos mitos de divindades ausentes parece divergir da conceccedilatildeo de superioridade do Deus Tempestade no interior do panteatildeo anatoacutelico pois cedo foi considerado garante da ordem coacutesmica e supremo protetor da laquoTerra do Ḫattiraquo com o rei a desempenhar a funccedilatildeo de seu deputado na terra50 Poreacutem tal posiccedilatildeo manifestada cultualmente natildeo teve correspondecircncia mitoloacutegica com a possiacutevel exceccedilatildeo do mito do Desaparecimento do Deus Sol como mais agrave frente se discutiraacute Releva ainda que as relaccedilotildees entre deuses de acordo com os mitos de divindades ausentes excluam de todo a categoria de rei divino Mesmo em situaccedilatildeo de policefalia divina na sua essecircncia as conceccedilotildees de poder dos mitos de divindades ausentes natildeo incluem o exclusivismo do mando

3 O deus e a serpente

A harmonia essencial dos mitos de divindades ausentes excluindo o mito do Desaparecimento do Deus Sol51 natildeo tem paralelo noutros mitos anatoacutelicos antigos No Mito de Illuyanka52 a harmonia divina daacute lugar agrave modalidade de luta entre um deus e uma forccedila maacute Em ambas as versotildees do Mito de Illuyanka o Deus Tempestade derrotado pela serpente num primeiro combate procura uma segunda oportunidade para reaver a sua superioridade beacutelica perante o terriacutevel ofiacutedio Na primeira versatildeo Inara procura a ajuda do humano Ḫupašiya e na se-gunda versatildeo o Deus Tempestade recorre a uma humana agrave laquofilha de um pobreraquo para engendrar um filho que o ajudaraacute a reaver os olhos e o coraccedilatildeo que perdeu no primeiro combate Em ambas as versotildees se pode presenciar uma modalidade de luta de recuperaccedilatildeo do poder em ambas se instrumentalizando um humano como estrateacutegia de recuperaccedilatildeo do poder No entanto esta instrumentalizaccedilatildeo varia da primeira para a segunda versatildeo do mito na primeira eacute uma deusa que usa um humano Ḫupašiya na segunda um deus socorre-se de uma mulher a laquofilha de um pobreraquo No primeiro caso o divino feminino instrumentaliza o humano masculino no segundo caso o divino masculino instrumentaliza o feminino humano

48 Cf Friedrich 1991 50 sv ḫanna-49 Cf CTH 325 Desaparecimento do Deus Tempestade sect9 A i 34-36 (Hoffner 1998 21)50 Bryce 2002 143 cf Gurney 1954 14051 CTH 32352 CTH 321

118

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

A ausecircncia de tensatildeo no exerciacutecio do poder revelada nos mitos de divin-dades ausentes transforma-se assim numa conceccedilatildeo de poder repetidamente ameaccedilado e recuperado conceccedilatildeo que decorreraacute da ligaccedilatildeo deste mito ao Purulli um dos mais importantes festivais anuais do calendaacuterio hitita Tatildeo im-portante que Muršili abandonou uma campanha militar para o celebrar tendo como propoacutesito revigorar as terras depois do duro inverno e assim assegurar a persistecircncia da chuva necessaacuteria agraves culturas Desta forma o combate ritual entre o Deus Tempestade e Illuyanka cujo nome parece significar laquoserpenteraquo53 sim-boliza o triunfo da vida sobre a morte da fertilidade sobre a seca ie a vitoacuteria do bem sobre o mal

Da perspetiva de conceccedilatildeo de poder a derrota inicial do Deus Tempestade natildeo implica ainda um problema de obtenccedilatildeo de realeza divina dada a diferente categoria dos opositores por um lado um deus por outro uma forccedila hostil O motivo inicial da luta poderaacute antes ser interpretado como uma luta pelo controlo das aacuteguas necessaacuterias agrave agricultura em que o Deus Tempestade domina as aacuteguas pluviais e a serpente as aacuteguas subterracircneas ateacute porque o ritual associado ao mito se desenvolveria junto a uma fonte sendo assim uma projeccedilatildeo na conceccedilatildeo do divino da luta humana pela aacutegua a fundamental preocupaccedilatildeo do festival Pu-rulli54 Em essecircncia o Mito de Illuyanka constitui uma estoacuteria de recuperaccedilatildeo do poder com preponderacircncia da divindade em detrimento da forccedila maacute Natildeo deixa de ser significativo que o nome do opositor do deus Illuyanka seja um lexema de significaccedilatildeo geral indicando apenas o seu ofidiomorfismo ao passo que o nome hitito-luvita do Deus Tempestade Tarḫunza signifique laquoo poderosoraquo55 Contudo a posiccedilatildeo do Deus Tempestade perante os seus pares varia de acordo com o seu sucesso perante Illuyanka Apoacutes a derrota inicial na primeira versatildeo do mito o Deus Tempestade parece ser abandonado pelos restantes deuses e assim conta apenas com a fidelidade de sua filha Inara56 Poreacutem apoacutes vencer a serpente restabelece-se a sua autoridade e a sua reputaccedilatildeo de deus capaz e poderoso57 numa situaccedilatildeo semelhante ao reconhecimento do poder de David pelo Deus dos Hebreus apoacutes haver consolidado a sua soberania poliacutetica58

O opositor do Deus Tempestade tambeacutem natildeo aparece caracterizado como especialmente dotado de poder Na primeira versatildeo do mito Illuyanka

53 Garciacutea Trabazo 2002 85 n 2754 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 40-41 Macqueen 1959 17555 O nome Tarḫunt- ou Tarḫu(na) deriva da raiacutez tarḫ- que significa laquopoderraquo Garciacutea Trabazo

2002 37 No Mito de Illuyanka ocorrem os sumerogramas dU e dIM(-)56 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 41 Cf CTH 321 Mito de Illuyanka A obv i 11-14 (Garciacutea

Trabazo 2002 86-87)57 CTH 321 Mito de Illuyanka B obv i 17rsquo-18rsquo (Garciacutea Trabazo 2002 89) laquoChegou o Deus

Tempestade e matou a serpente E os deuses estavam com eleraquo58 2Cr 11 laquoSalomatildeo filho de David consolidou-se no seu reino O Senhor seu Deus estava

com ele e engrandeceu-o no poderraquo

119

Joatildeo Paulo Galhano

eacute imobilizada pela accedilatildeo do humano Ḫupašiya natildeo por algueacutem especialmente poderoso e em consequecircncia da sua gulodice Tal como noutras aacutereas mi-toloacutegicas a serpente eacute vista como um glutatildeo desfavorecido pela estupidez agrave semelhanccedila do que conta Opiano na Halieutica59 acerca de como Patilde de Coacuterico enganou Tiacutefon oferecendo-lhe um banquete de peixe assim conseguindo que o monstro saiacutesse do seu covil para depois ser atacado por Zeus60 A estupidez dos opositores ao poder contudo tem registo tambeacutem nas narrativas mitoloacutegicas hurritas designadamente no que diz respeito a Ullikummi e a Ḫedammu como teremos oportunidade de verificar

Natildeo deixa de ser notaacutevel que a luta entre o Deus Tempestade e Illuyanka esteja estruturada em torno de dois princiacutepios um celeste representado pelo Deus Tempestade e um ctoacutenico representado pela serpente oposiccedilatildeo esta que apareceraacute tambeacutem nas narrativas mitoloacutegicas hurritas ainda que travestida de dinastias reinantes em competiccedilatildeo Ainda que o Mito de Illuyanka centre a sua atenccedilatildeo sobre o Deus Tempestade natildeo pode negligenciar-se o papel de Inara que segundo pesquisas recentes natildeo teria um papel subordinado na mitologia associada ao Purulli61 Esta posiccedilatildeo reforccedila a ideia de que o poder nos mitos anatoacutelicos antigos eacute tendencialmente horizontalizado ainda que perturbado por forccedilas maacutes Ainda assim natildeo possui aquela estrutura verticalizada das narrativas hurritas importadas para o Ḫatti

4 Realeza verticalizaccedilatildeo e ciclo complexo

Diversos textos em liacutengua hurrita foram incorporados na cultura hitita designadamente fragmentos de pressaacutegios textos histoacutericos e histoacuterico-mitoloacutegicos diversos rituais listas de divindades e outros textos62 Concomitantemente com a hurritizaccedilatildeo eacutetnica e poliacutetica da Anatoacutelia diversas narrativas mitoloacutegicas hurritas foram integradas na matriz hitita provocando fenoacutemenos de adiccedilatildeo assimilaccedilatildeo e sincretismo miacutetico e religioso O mais importante aporte tem hoje o nome de Ciclo de Kumarbi Composto por cinco laquocantosraquo mais um ndash O Canto de Kumarbi63 O Canto do Deus LAMMA64 O

59 Opp H 315-2560 Bernabeacute 1987 32 A Bernabeacute aponta ainda a semelhanccedila de Illuyanka com Tiacutefon em

Apolodoro (163) que prova os laquofrutos efeacutemerosraquo e por isso fica debilitado61 Hoffner 1998 1062 Dentre os textos hurritas mencionados avultam os rituais designadamente da seacuterie itkalzi

e itkaḫḫe bem com o importante Ritual de Allaituraḫi (CTH 780) este uacuteltimo existente tambeacutem em versatildeo hitita (cf Wegner 2007 30 e ss) cf CTH 774-791

63 CTH 34464 CTH 343

120

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

Canto de Prata65 O Canto de Ḫedammu66 e o Canto de Ullikummi67 a que se adicionou recentemente O Canto da Libertaccedilatildeo68 ndash tem por tema principal a ascensatildeo de Tešub agrave realeza divina seguida da sua resistecircncia aos ataques que sofre por parte de vaacuterios opositores uma boa parte conduzida por Kumarbi O tiacutetulo dado a todo o ciclo reflete o facto de a maior parte das narrativas que o integram constituirem a estoacuteria do ressentimento de Kumarbi perante a perda da realeza ganha por Tešub logo no Canto de Kumarbi O ressentimento cujo importantiacutessimo papel histoacuterico foi jaacute evidenciado por Marc Ferro69 assume o papel de motor em todo O Ciclo de Kumarbi

A introduccedilatildeo do tema da competiccedilatildeo pelo lugar de rei entre os deuses surge como um dos mais importantes contributos hurritas para a mitologia anatoacutelica o que pode bem ter sido mais-valia para os reis hititas visto pro-mover a proacutepria instituiccedilatildeo da realeza humana atraveacutes da congeacutenere divina70 No Canto de Kumarbi estabelece-se uma sucessatildeo real divina iniciada por Alalu seguida por Anu e Kumarbi e finalizada com Tešub Diferentemente de toda a mitologia hitita antiga as narrativas mitoloacutegicas hurritas introduzem a ideia de geraccedilotildees de deuses que governam uns apoacutes os outros com a particu-laridade das geraccedilotildees mais novas de deuses lutarem com as mais velhas pela obtenccedilatildeo do assento real

A sucessatildeo real do Canto de Kumarbi narra como o poder andou de matildeo em matildeo ateacute ser finalmente estabelecido por Tešub dando iniacutecio a uma nova era divina com a particularidade de a instabilidade do poder antes de Tešub o conseguir derivar da tensatildeo entre duas linhagens de soberanos com Alalu e Kumarbi a representar uma famiacutelia e Anu e Tešub a representar outra Assim a hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos hititas passou tambeacutem pela importa-ccedilatildeo do tema da rivalidade familiar entre divindades diferentemente do que se passa por exemplo no Mito de Illuyanka em que a oposiccedilatildeo natildeo eacute entre famiacutelias divinas mas sim entre um princiacutepio de bem o Deus Tempestade e outro de mal Illuyanka

As duas famiacutelias divinas em competiccedilatildeo representam as duas esferas baacutesi-cas da mitologia hurrita o mundo inferior e o domiacutenio celeste Se o proacuteprio nome Anu significa laquoceacuteuraquo quando Alalu eacute afastado do trono foge para a laquoTerra Escuraraquo E Anu quando tenta escapar a Kumarbi dirige-se para o ceacuteu71 Esta

65 CTH 36466 CTH 34867 CTH 34568 Recente nuacutemero CTH 789 A ediccedilatildeo standard do texto eacute de Neu 1996 Ateacute 1971 apenas o

Canto de Kumarbi o Canto do Deus LAMMA e o Canto de Ullikummi eram considerados partes integrantes do Ciclo de Kumarbi (Hoffner 1998 40)

69 Ferro 200970 Bryce 2002 22871 CTH 344 Canto de Kumarbi A obv i 12-14 18-22 (Garciacutea Trabazo 2002 163-65)

121

Joatildeo Paulo Galhano

rivalidade entre aquelas duas esferas o ceacuteu e o mundo inferior ganha relevacircncia na sua continuidade no conjunto de figuras miacuteticas que alinham por um lado ou por outro ao longo de todo o Ciclo de Kumarbi Alalu Mukišanu (vizir de Kumarbi) o Grande Deus Mar Impaluri (vizir do Deus Mar) Šertapšuruḫi (filha do Deus Mar) Ḫedammu Daganzipa (Terra) Prata Ullikummi as Di-vindades Irširra e provavelmente Upelluri alinham pelo lado de Kumarbi ao passo que Anu TašmišuŠuwaliyatta Ḫebat Takiti (serva de Ḫebat) ŠawoškaIštar os touros divinos Šerrišu e Ḫurri o Deus Sol o Deus Lua o Deus Guerra Aštabi o rio Aranzaḫ (irmatildeo de Tešub) o deus montanha Kanzura KAZAL e NAMḪEacute estatildeo do lado de Tešub72 Este conflito de base familiar ou dinaacutestica pode evidenciar o sentido inicial de um anterior mito antes de chegar agrave forma hurrita literariamente elaborada que chegou aos Hititas dado que este pode bem ser vestiacutegio de um anterior mito ritualizado cuja estrutura central passaria pela oposiccedilatildeo entre as forccedilas do mundo inferior e as do mundo superior com o triunfo destas uacuteltimas73

A importacircncia das ideias de linhagem e de famiacutelia no Ciclo de Kumarbi pode ser observada por exemplo no Canto de Prata quando Prata se sente enver-gonhado por ser reputado oacuterfatildeo74 Nesse episoacutedio sublinha-se a importacircncia da paternidade e da linhagem familiar para a afirmaccedilatildeo laquosocialraquo do deus no mundo divino refletindo essa mesma relevacircncia no plano humano atraveacutes do habitual fenoacutemeno de projeccedilatildeo mitoloacutegica de inquietaccedilotildees terrenas Aliaacutes neste passo o poder paternal parece sobrepor-se ao poder real pois a matildee de Prata sublinha o temor reverencial que o filho deve ter perante o seu pai mas natildeo perante Tešub o rei em exerciacutecio Concomitantemente no Ciclo de Kumarbi a preponderacircncia das relaccedilotildees familiares com especial ecircnfase no papel do pai observa-se ainda

laquoDurante nove anos contados Alalu foi rei no ceacuteu no nono ano Anu batalhou contra Alalu vencendo-o a ele a Alalu E este fugiu diante dele e para baixo da Terra Escura [hellip] Durante nove anos contados foi Anu rei no ceacuteu no nono ano Anu batalhou contra Kumarbi Kumarbi semente de Alalu batalhou contra Anu Anu jaacute natildeo resiste aos olhos de Kumarbi e de Kumarbi lhe escapou das matildeos e ele Anu voou e foi para o ceacuteuraquo

72 Hoffner 1998 4173 Bryce 2002 22574 CTH 364 Canto de Prata sectsect 32-33 (Hoffner 1998 49) laquoPrata [bateu] a um rapaz oacuterfatildeo

[com] um pau O rapaz oacuterfatildeo respondeu mal a Prata ldquoOacute Prata porque [nos estaacutes a bater] Porque nos bates Tu eacutes um oacuterfatildeo como noacutesrdquo [Agora quando Prata ouviu estas palavras] ele comeccedilou a chorar Chorando Prata foi para sua casa Prata comeccedilou por repetir as palavras a sua matildee ldquoOs rapazes a quem eu bati em frente do portatildeo desafiaram-me Eu bati a um rapaz com um pau e ele respondeu-me mal Ouve oacute minha matildee as palavras que o rapaz oacuterfatildeo me disse lsquoPorque [nos] estaacutes a bater [Porque nos] bates [Tu eacutes um oacuterfatildeo como noacutes]rsquo [hellip] [resposta da matildee de Prata] ldquo[O teu pai() eacute Kumarbi] o pai da cidade de Urkiš [Elehellip] e ele vive em Urkiš [hellip] as causas legais de todas as terras ele [satisfatoriamente] resolve() O teu irmatildeo eacute Tešub Ele eacute rei no ceacuteu E ele eacute rei na terra A tua irmatilde eacute Šawoška e ela eacute rainha em Niacutenive Tu [natildeo] deves recear nenhum [outro deus] soacute um deus [deves recear Ele (ie Kumarbi) agita] as terras inimigas e os animais selvagensraquo

122

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

no facto de no Canto de Prata Tešub medir as suas proacuteprias capacidades com as do pai de Prata apoacutes este conseguir temporariamente a realeza75 Kumarbi o pai de Prata continua a ser a medida e o termo de comparaccedilatildeo para a decisatildeo de Tešub em combater ou natildeo

Tambeacutem no Canto de Ḫedammu se pressente a importacircncia do instituto da paternidade no estabelecimento das relaccedilotildees de poder entre as divindades especialmente quando Kumarbi o rei deposto num periacuteodo em que tudo indica que Tešub estaacute no poder pretende realizar uma alianccedila poliacutetica com o Deus Mar continuando a intitular-se laquopai dos deusesraquo pretendendo manter o seu ascen-dente atraveacutes desta titulatura76 Aliaacutes Kumarbi volta a recorrer a esta titulatura no Canto de Ullikummi77 A oposiccedilatildeo de famiacutelias divinas no Ciclo de Kumarbi cada uma delas com uma alocaccedilatildeo proacutepria pode tambeacutem ser encarada como paralela ao ocorrido no Mito de Illuyanka em que o Deus Tempestade repre-senta a esfera celeste e Illuyanka o mundo inferior

O facto de no Canto de Kumarbi o poder ser sempre transmitido pela via belicosa ateacute chegar a Tešub pode tambeacutem representar mitologicamente a belicosidade do poder poliacutetico no domiacutenio hurrita ou por outro lado fazer en-tender a narrativa mitoloacutegica como meio de representaccedilatildeo do extraordinaacuterio em relaccedilatildeo agrave ordem poliacutetica humana fazendo do mito transformado em narrativa uma representaccedilatildeo do traumaacutetico com a memoacuteria coletiva a guardar o mais doloroso ou perigoso para a comunidade agrave semelhanccedila do mais fundo registo dos insucessos na memoacuteria individual um reflexo do instinto de preservaccedilatildeo Tambeacutem neste aspeto as narrativas mitoloacutegicas hurro-hititas se distinguem dos mitos anatoacutelicos antigos dada a toacutenica na superaccedilatildeo da desordem (nos mitos associados a rituais do tipo mugawar) ou na vitoacuteria do bem sobre o mal (no Mito de Illuyanka) centrando os mitos hititas antigos na soluccedilatildeo para o distuacuterbio mais do que no registo do traumaacutetico

O Canto de Kumarbi assemelha-se ao Mito de Illuyanka no facto de ambos comeccedilarem por favorecer o princiacutepio ctoacutenico e acabarem por outorgar a vitoacuteria ao princiacutepio celeste A narrativa mitoloacutegica hurrita dado que apresenta Anu como um cobarde que foge do combate por si iniciado dirigindo-se para o ceacuteu na sequecircncia do que Kumarbi o traz de novo ao combate parece favorecer inicialmente a linhagem de Kumarbi mas posteriormente outorga o triunfo agrave

75 CTH 364 Canto de Prata sectsect 51-52 (Hoffner 1998 50) laquo[Tašmišu comeccedilou] por dizer a Tešub ldquoNatildeo [eacute possiacutevel()]que tu trovejes Tu [natildeo] sabes [comohellip] Na()hellip [Prata()] tornou-se rei e [agora] ele [conduz()] todas as divindades com um aguilhatildeo() de madeira de pistachordquo Tešub [comeccedilou por] responder ao seu vizir ldquoVaacute vamos e comamos [hellip] O nosso pai [Kumarbi()] natildeo derrotou [Prata() Seraacute que noacutes] agora [vamos derrotar] Pratardquoraquo

76 CTH 348 Canto de Ḫedammu sect 93 (Hoffner 1998 53)77 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 6 A ii 1-8 (Hoffner 1998 57)

123

Joatildeo Paulo Galhano

linhagem celeste ie a Tešub78 De igual modo no Mito de Illuyanka a serpente vence o primeiro combate com o Deus Tempestade mas este acaba por obter a vitoacuteria final O poder obtido pelo deus celeste Tešub no final da sucessatildeo real no Canto de Kumarbi surge sempre ameaccedilado por descendentes de Kumarbi Ullikummi resulta da uniatildeo sexual de Kumarbi com um rochedo Ḫedammu muito possivelmente eacute filho de Kumarbi e Šertapšuruḫi Prata descende de Kumarbi e de uma humana mortal e mesmo LAMMA pode talvez ser filho de Kumarbi79 Assim a complexidade das narrativas mitoloacutegicas hurritas natildeo parece ter paralelo nos mitos anatoacutelicos antigos com a possiacutevel exceccedilatildeo do mito do Desaparecimento do Deus Sol

Natildeo obstante a derrota inicial do deus celeste colocando em risco a sua vitoacuteria final pode constituir um paralelo entre o Mito de Illuyanka e parte do Ciclo de Kumarbi Assim como o Deus Tempestade eacute derrotado inicialmente tambeacutem Tešub no Canto de Ullikummi80 eacute derrotado por Ullikummi no pri-meiro combate entre eles

A hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos hititas concretizou-se tambeacutem na adoccedilatildeo de mais complexas estruturas de poder agora repartido por vaacuterias instacircncias natildeo obstante a introduccedilatildeo tambeacutem hurrita da categoria de realeza divina No Canto do Deus LAMMA o poder real surge vinculado a um poder moderador concretizado em Ea o deus mesopotacircmico da sabedoria adotado pelos Hurritas do Mitanni81 Perante a arrogacircncia de LAMMA durante o seu breve reinado no ceacuteu Ea que antes o havia designado rei depotildee-no do trono divino num ato caracterizador de Ea como poder moderador da realeza um tanto agrave semelhanccedila do ugaritiano Ilu nos textos do Ciclo de Balsquolu mormente no mito da Luta Entre Balsquolu e Yammu82 Tambeacutem no Canto de Ḫedammu Ea intervecircm na refrega entre Kumarbi e Tešub advertindo-os e fazendo questatildeo de dizer que tambeacutem a ele chamam laquoreiraquo83 Poreacutem a moderaccedilatildeo exercida por

78 CTH 344 Canto de Kumarbi A obv i 18-26 (Garciacutea Trabazo 2002 165-67) laquoDurante nove anos contados foi Anu rei no ceacuteu no nono ano Anu batalhou contra Kumarbi Kumarbi semente de Alalu batalhou contra Anu Anu jaacute natildeo resiste aos olhos de Kumarbi e de Kumarbi lhe escapou das matildeos e ele Anu voou e foi para o ceacuteu Por detraacutes aproximou-se dele Kumarbi e agarrou Anu pelos peacutes e puxou-o para baixo desde o ceacuteu Mordeu os seus muacutesculos a sua virilidade uniu-se como o bronze com as entranhas de Kumarbiraquo

79 Cf Hoffner 1998 4180 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 40-42 e 49 (Hoffner 1998 61-63) A tabuinha que

conteria a derrota inicial de Tešub face a Ullikummi estaacute bastante fragmentada e natildeo permite uma completa leitura deste episoacutedio contudo o facto de no sect49 Tešub se preparar para novo combate com Ullikummi demonstra que o primeiro enfrentamento natildeo foi favoraacutevel ao deus celeste

81 CTH 343 Canto do Deus LAMMA sectsect 6-8 A iii 1-38 (Hoffner 1998 47-48)82 KTU 11 12 KTU refere-se agrave numeraccedilatildeo dos textos ugaritianos seguida em Dietrich-Loretz-

-Sanmartiacuten 1995 Trad de KTU 11-12 em Olmo Lete 1981 157-7783 CTH 348 Canto de Ḫedammu sectsect 61-62 (Hoffner 1998 52)

124

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

Ea natildeo estaacute livre de protesto especialmente da parte de Kumarbi que decide criar Ḫedammu com o propoacutesito de derrubar o rei divino em exerciacutecio julgando assim escapar agrave anterior reprimenda de Ea dirigida a obter a conciliaccedilatildeo entre Tešub e Kumarbi84

O papel de moderador na luta pelo poder no Canto de Ḫedammu evoluiraacute para a tomada de partido por Tešub no Canto de Ullikummi Tašmišu aconselha Tešub derrotado no primeiro combate contra Ullikummi a procurar a ajuda de Ea85 que entatildeo descobre o segredo do poder de Ullikummi o apoio do seu peacute no ombro direito de Upelluri Ea e as Divindades Primevas usam entatildeo a faca de cobre primeva antes usada na separaccedilatildeo o ceacuteu da terra para arrancar Ulli-kummi do seu apoio em Upelluri86 facilitando assim o laquocaminho para o poderraquo de Tešub Poreacutem a accedilatildeo de Ea em prol de Tešub natildeo segue sem arrependimento visto que apoacutes o enfraquecimento de Ullikummi Ea entristece-se ao ver as mortes provocadas pela luta entre Tešub e o monstruoso filho de Kumarbi87

A estruturaccedilatildeo do poder nos mitos hurritas incluiu natildeo soacute a conceccedilatildeo de poderes moderadores caso de Ea mas tambeacutem de instacircncias de poderes con-selheiros como o de Šerrišu no Canto de Kumarbi que aconselha Tešub a natildeo amaldiccediloar os deuses e especialmente Ea88 A mesma instacircncia de poder con-selheiro pode ser encontrada na figura do vizir seja do rei em exerciacutecio seja de Kumarbi Quando Ullikummi se aproxima dos portotildees de Kummiya a cidade de Tešub Tašmišu irmatildeo e vizir do rei aconselha-o a pedir ajuda a Ea89 De certo modo esta ativa instacircncia conselheira dos mitos hurritas eacute paralela agrave funccedilatildeo de Ḫannaḫanna nalguns mitos de divindades ausentes90 O conselho que o poder em exerciacutecio obteacutem deriva tambeacutem em poder sancionatoacuterio quando se trata de Kumarbi Depois de este se unir a uma rocha Ullikummi acaba por nascer com a ajuda das Deusas Destino e das Deusas Matildee91 estas que para Kumarbi lhe

84 CTH 348 Canto de Ḫedammu sect 71 (Hoffner 1998 52-53)85 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 49 A ii 17-26 (Hoffner 1998 56)86 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 56-60 A iii 1-39 (Hoffner 1998 63-64)87 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 65 A iv 9-12 (Hoffner 1998 64)88 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 20 A iii 30-39 (Hoffner 1998 45) laquoO touro Šerrišu

respondeu a Tešub ldquoMeu senhor porque os estaacutes a amaldiccediloar [hellip oshellip] deuses Meu senhor porque os [estaacutes a amaldiccediloar] Porque estaacutes a amaldiccediloar tambeacutem Ea Ea ouvir-te-aacute [hellip] comhellip Natildeo eacute assim [hellip] eacute grande O mal eacute grande como a terra Poderoso() para ti [eacutehellip] [hellip] viraacute Tu natildeo seraacutes capaz de levantar [o teu()] pescoccedilo()rdquoraquo

89 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 48-49 A ii 10-19 (Hoffner 1998 62-63)90 Eg CTH 336 Mitos da Deusa Inara d) sectsect 1-2 2-12 (Hoffner 1998 31)91 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 11-12 A iii 10-18 (Hoffner 1998 57-58 para uma

traduccedilatildeo diferente Garciacutea Trabazo 2002 193-95) laquo[Ashellip] mulheres fizeram-na dar agrave luz As Deusas Destino e as Deusas Matildee [ergueram a crianccedila] e colocaram[-na] nos joelhos de Kumarbi Kumarbi comeccedilou [a divertir-se com] a crianccedila e comeccedilou por o limpar() e ele deu [agrave crianccedila()] um nome adequado Kumarbi comeccedilou por dizer para si mesmo ldquoQue nome [hei-de dar] agrave crianccedila que as Deusas Destino e as Deusas Matildee me deram Ele saiacuteu do corpo como um eixo Portanto que Ullikummi seja o seu nomeraquo (trad minha)

125

Joatildeo Paulo Galhano

deram o filho mais que a rocha donde saiu Ullikummi O ato competitoacuterio de Kumarbi tem assim sancionamento ou legitimaccedilatildeo divina

A mitologia hurrita concebe o poder tambeacutem como alianccedila de vaacuterias instacircncias Para aleacutem das intervenccedilotildees de Ea ora em prol de Tešub ao enfraquecer Ullikummi92 ora ajudando Kumarbi a libertar-se do seacutemen de Anu93 tambeacutem o banquete preparado pelo Deus Mar para Kumarbi no Canto de Ullikummi94 exemplifica o modo como o tema da alianccedila poliacutetica preside a boa parte do conflito entre Kumarbi e Tešub Jaacute o Deus Sol alinha pela facccedilatildeo de Tešub sendo o primeiro a ver Ullikummi dirige-se ao rei celeste para lhe dar conta do perigo que se aproxima apoacutes o que Tešub oferece um banquete ao Deus Sol95 fazendo do simpoacutesio o momento ideal de realizaccedilatildeo das alianccedilas poliacuteticas

A guerra promovida por Kumarbi em resultado do seu ressentimento pela perda de poder implica tambeacutem uma mediaccedilatildeo na luta pelo poder pois na maior parte do Ciclo de Kumarbi satildeo criados monstros ou deuses para fazer frente a Tešub Prata LAMMA Ḫedammu e Ullikummi lutam em vez de Kumarbi Pode ver-se esta situaccedilatildeo como paralela ao Mito de Illuyanka onde tambeacutem se indicia uma certa mediaccedilatildeo na luta pelo poder pois na primeira versatildeo deste mito o Deus Tempestade eacute ajudado por Ḫupašiya Aliaacutes a estupi-dez da serpente que se deixa enganar pela sua gulodice surge tambeacutem como paralela agrave estupidez de Ullikummi caracterizado pela cegueira e surdez uma mais-valia do ponto de vista de Kumarbi dado que nessa situaccedilatildeo fiacutesica natildeo ficaria vulneraacutevel agraves seduccedilotildees de Šawoška96 as mesmas a que Ḫedammu natildeo consegue resistir97

A conceptualizaccedilatildeo do poder nas narrativas mitoloacutegicas hurro-hititas passou ainda pela introduccedilatildeo de uma dimensatildeo temporal alargada visiacutevel natildeo soacute no facto de o poder ser sucessivamente transmitido durante quatro geraccedilotildees de deuses em intervalos de nove anos98 mas tambeacutem na valorizaccedilatildeo da sageza dos antepassados como ocorre no Canto de Ullikummi quando Tašmišu e Tešub procuram Ea com o propoacutesito de conhecer as laquopalavras antigasraquo aquelas dos antepassados divinos e que agora se convertem em instrumentos divinatoacuterios necessaacuterios para conhecer o ponto fraco de Ullikummi99

A integraccedilatildeo da mitologia hurrita tambeacutem trouxe para solo anatoacutelico uma nova dimensatildeo de encenaccedilatildeo literaacuteria do poder Logo na abertura do Canto de Kumarbi o sentido reverencial do poder surge quase graficamente reproduzido

92 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 60-63 A iii 30-55 (Hoffner 1998 64)93 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 13 A ii 39-54 (Hoffner 1998 43)94 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 6-9 A ii 1-37 (Hoffner 1998 57)95 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 25-31 A iv 41 ndash B i 13 (Hoffner 1998 59-60)96 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 35-37 B ii 5-30 (Hoffner 1998 60-61)97 CTH 348 Canto de Ḫedammu sectsect 111 ndash 152 (Hoffner 1998 53-54)98 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 2 e ss (Hoffner 1998 42 e ss)99 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 49 e ss A ii 17 e ss ( Hoffner 1998 63)

126

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

numa cena de serviccedilo ao rei em exerciacutecio

laquoHaacute muito tempo nos primeiros anos Alalu era rei no ceacuteu Alalu estava sen-tado no trono e o pesado Anu o primeiro entre os deuses permanecia perante ele Ele inclinava-se aos peacutes dele (de Alalu) e colocava-lhe na matildeo taccedilas de bebidaraquo100

Tal como sucederaacute quando Anu estaacute no trono e Kumarbi no lugar de Anu101 a hierarquizaccedilatildeo divina tem aqui um registo literaacuterio de verdadeira encenaccedilatildeo do movimento das divindades no espaccedilo real com o ministrum que oferece bebidas ao rei subservientemente inclinado perante ele Cena similar ocorre no Canto de Ullikummi quer nas jaacute citadas cenas de banquete entre o Deus Mar e Kumarbi e entre o Deus Sol e Tešub102 quer no episoacutedio em que Šawoška e Tešub sobem de matildeos dadas ao monte Ḫazzi para observar Ullikumi numa visatildeo que faz Tešub deixar transparecer a sua ira atraveacutes das feiccedilotildees do rosto103 A encena-ccedilatildeo do sentido reverencial do poder tem ainda um peculiar episoacutedio no Canto de Ullikummi quando o vizir de Tešub Tašmišu beija trecircs vezes os joelhos e quatro vezes os tornozelos de Ea104

No iniacutecio do Canto do Deus LAMMA a encenaccedilatildeo do poder evolui mesmo para uma maior dramatizaccedilatildeo da competiccedilatildeo divina quando LAMMA conse-gue ferir Šawoška no peito e fazer Tešub cair do ceacuteu

laquo[hellip] Enquanto Šawoška falava [com o seu irmatildeo Tešub] a seta de LAMMA [voou] e atravessou() Šawoška no peito Uma segunda seta de LAMMA [voou] Eles [Tešub e Šawoška] apressaram-se em direccedilatildeo ao carro para [hellip] [mas a seta de LAMMA] atravessou [hellip] de tal forma quehellip natildeo pocircde maishellip eles natildeo puderam fugir LAMMA obrigou [hellip] Ele tomou [hellip] e [hellip] atraacutes de Tešub A pedra [foi()] atraacutes de Tešub Ela bateu no ceacuteu e abalou [o ceacuteu como se fosse um pano] de tal modo que [Tešub] caiu [do ceacuteu] LAMMA [hellip] e tomou as reacutedeas e o [chicote] das matildeos de Tešubraquo105

O registo mitoloacutegico hurrita inclui assim uma dimensatildeo dramaacutetica da luta divina similar ateacute a alguns episoacutedios homeacutericos Aliaacutes o poder surge ateacute simbolicamente mediado no caso pelas laquoreacutedeasraquo e pelo laquochicoteraquo de Tešub

100 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 2 A i 5-11 (Hoffner 1998 42)101 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 3 A i 12-17 (Hoffner 1998 42)102 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 6-9 A ii 1-37 e sectsect 25-31 A iv 41 ndash B i 13 (Hoffner

1998 57)103 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 32 B i 14-28 (Hoffner 1998 60)104 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 52 A ii 17-12 (Hoffner 1998 63) dado o estado

fragmentaacuterio da tabuinha que contecircm esta parte do texto eacute possiacutevel que o autor de tais atos seja Tešub e natildeo Tašmišu

105 CTH 343 Canto do Deus LAMMA sect 1-2 A i 2-20 (Hoffner 1998 46)

127

Joatildeo Paulo Galhano

demonstrando que a sofisticaccedilatildeo narrativa hurrita passou tambeacutem por uma maior mediaccedilatildeo

A dimensatildeo encenada do poder na mitologia hurrita incluiu tambeacutem mar-cas de introspeccedilatildeo numa verdadeira encenaccedilatildeo dos dilemas interiores de exerciacute-cio do poder como acontece num dos fragmentos do Canto de Ḫedammu106 mas eleva a encenaccedilatildeo literaacuteria a um grau superlativo com a introduccedilatildeo de elementos musicais na narrativa especialmente com a referecircncia aos instrumentos musicais designados por arkammi e galgaturi cuja natureza exata se desconhece ainda que parecendo serem de bronze107 Aliaacutes a associaccedilatildeo da muacutesica ao contrapoder repete-se no Canto de Ullikummi quando o Deus Mar organiza um banquete para Kumarbi onde estatildeo muacutesicos devidamente equipados com laquoinstrumentos de Ištarraquo108

A dramatizaccedilatildeo das narrativas hurritas ganha um focirclego maior com a amplificaccedilatildeo da estrutura sentimental dos agentes divinos atribuindo com frequecircncia registos emocionais humanos agraves principais divindades No Canto de Kumarbi Tešub entristece-se quando sabe da contestaccedilatildeo de Kumarbi agrave sua receacutem obtida realeza mas move-se imediatamente para um registo de arrogacircn-cia julgando-se superior a todos os deuses incluindo a Ea109 A emotividade de Tešub tem uma expressatildeo humanizada ainda mais evidente no seu choro cujas laquolaacutegrimas correm como torrentesraquo apoacutes ouvir a descriccedilatildeo de Ḫedammu da boca de Šawoška110 e depois de saber as novidades acerca de Ullikummi pelo Deus Sol111 A humanizaccedilatildeo do divino tem um desenvolvimento posterior no Canto da Libertaccedilatildeo em que Tešub tem como adversaacuterio natildeo um monstro criado por Kumarbi mas a sua situaccedilatildeo de pobreza e diacutevidas ou seja uma oposiccedilatildeo desper-sonalizada que pode tornar vulneraacutevel ateacute o rei divino em exerciacutecio112

Em resumo relativamente agraves conceccedilotildees de poder associadas agraves narrativas mitoloacutegicas hurro-hititas pode concluir-se que da hurritizaccedilatildeo resultou a intro-duccedilatildeo da categoria de realeza no concerto divino integrada num contexto de

106 CTH 348 Canto de Ḫedammu sect 71 (Hoffner 1998 52-53)107 CTH 348 Canto de Ḫedammu sect 11 (Hoffner 1998 51) laquoldquo[hellip] [O Deus Mar()] ouviu e o

seu espiacuterito regozijou-se() Ele [apoiou()] o seu peacute num banco Eles puseram um ritatildeo na matildeo do Deus Mar O grande Deus Mar comeccedilou por responder a Kumarbi ldquoO nosso acordo estaacute estabelecido Kumarbi Pai dos deuses Vem ateacute minha casa dentro de sete dias e [eu dar-te-ei] Šertapšuruḫi minha filha cujo comprimento eacute [hellip] e cuja largura eacute uma milha [Tu beberaacutes()] Šertapšuruḫi como uma doce natardquo Quando Kumarbi ouviu (isto) o seu [espiacuterito] regozijou-se A noite caiacuteu [hellip] Eles levaram o grande Deus Mar da casa de Kumarbi acompanhado pela (muacutesica dos) brocircnzeos instrumentos arkammi e galgaturi e acompanharam-no a sua casa (Aiacute) ele sentou-se numa boa cadeira feita de [hellip] O Deus Mar esperou sete dias por Kumarbiraquo

108 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 8 A ii 14-19 C ii 7-21 (Hoffner 1998 57)109 CTH 344 Canto de Kumarbi sectsect 18-19 A iii 2-29 (Hoffner 1998 44)110 CTH 348 Canto de Ḫedammu sectsect 51-52 (Hoffner 1998 52)111 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 30-32 B i 1-28 (Hoffner 1998 60)112 CTH 789 Canto da Libertaccedilatildeo sectsect 42-46 ii 4rsquo ndash 21rsquo (Hoffner 1998 75)

128

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

rivalidades divinas de base familiar em que a instituiccedilatildeo da paternidade ou o modelo patriarcal surge com destacado relevo Aleacutem disso as estruturas de po-der associadas ao mundo divino complexificaram-se com a inserccedilatildeo de poderes moderadores conselheiros e sancionatoacuterios integrados em alianccedilas poliacuteticas que associaram a verticalidade do mando agrave dimensatildeo coletiva do poder com frequecircncia disputado atraveacutes de mediadores divinos ou de criaccedilotildees monstruo-sas A superlativa encenaccedilatildeo do poder a que se associa o recurso ao siacutembolo como mediador literaacuterio de representaccedilatildeo a par da dramatizaccedilatildeo das narrativas hurritas surge como um importante contributo hurrita agrave mitologia dos Hititas

Riqueza e complexidade anatoacutelica antigaResta agora discutir se o aporte hurrita agrave mitologia hitita foi de todo

inovador face agrave natureza de mitos anatoacutelicos antigos mais complexos como o Desaparecimento do Deus Sol e Telipinu e a Filha do Deus Mar No primeiro destes dois mitos o Deus Mar enfrenta o Deus Tempestade atraveacutes de um processo radicalmente diferente do que ocorre nas narrativas hurritas o Deus Tempestade enfrenta o problema do desaparecimento do Deus Sol de forma atiacutepica pela presenccedila de uma forccedila negativa designada pela palavra hitita ḫaḫḫima traduziacutevel para inglecircs por laquoFrostraquo113 para castelhano por laquoLetargoraquo114 para italiano por laquoGeloraquo115 e para portuguecircs por laquoGeadaraquo ou laquoGeloraquo116

O mito do Desaparecimento do Deus Sol conceptualiza o poder divino como um combate entre um princiacutepio de vida concretizado no Deus Tempestade e um princiacutepio de morte materializado em ḫaḫḫima ou seja tal como sucede nos mitos hurritas olha-se para o poder divino como resultado de uma oposiccedilatildeo inicialmente caracterizada como rivalidade entre o Deus Mar e o Deus Tempestade Poreacutem diferentemente das narrativas mitoloacutegicas hurritas o desiacutegnio deste combate natildeo estaacute na obtenccedilatildeo do lugar cimeiro de rei dos deuses Parece haver mais semelhanccedilas com o tiacutepico mito associado ao ritual mugawar em que uma divindade desaparece e depois urge encontrar para que a ordem coacutesmica seja restabelecida ainda que difira deste tipo de mitos anatoacutelicos antigos pelo facto de o desaparecimento do Deus Sol natildeo ter causa ou origem indeterminada mas decorrer da disputa entre o Deus Mar e o Deus Tempestade a fim de se saber qual dos dois eacute o mais forte117

Ao desaparecimento do Deus Sol segue-se o aparecimento do seu contraacuterio ḫaḫḫima uma forccedila paralisante e bloqueadora do crescimento da vegetaccedilatildeo que parece pocircr em causa o poder do Deus Tempestade ainda que sem qualquer

113 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol (Hoffner 1998 27 e ss)114 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol (Bernabeacute 1987 62 e ss)115 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 63 e ss)116 Galhano 2010 351117 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol sectsect 1-2 A i 1-10 (Hoffner 1998 27)

129

Joatildeo Paulo Galhano

disputa por um hipoteacutetico lugar de rei divino A natureza inversa dos efeitos de ḫaḫḫima comparativamente aos efeitos do Deus Sol118 fazem dele mais do que uma forccedila negativa a ausecircncia de uma forccedila divina positiva jaacute que ḫaḫḫima eacute o que estaacute quando o Deus Sol natildeo estaacute ou seja um negativo do Deus Sol sem estatuto de laquodeusraquo Neste aspeto pode ser encontrada alguma semelhanccedila entre o Mito de Illuyanka e o mito do Desaparecimento do Deus Sol em virtude de em ambos os textos se tratar de uma luta entre o Deus Tempestade e um princiacutepio de mal ainda que a serpente do Mito de Illuyanka seja uma forccedila positivamente maligna ao passo que ḫaḫḫima se apresenta como ausecircncia de uma forccedila divina benigna o Deus Sol

Para lidar com o problema de ḫaḫḫima o Deus Tempestade envia con-secutivamente outras entidades divinas o Vento (irmatildeo do Deus Tempestade) o deus da guerra ZABA4BA4 o deus LAMMA e finalmente Telipinu (filho do Deus Tempestade) todos derrotados por ḫaḫḫima Na parte final do texto hoje perdida supotildee-se que num enfrentamento final protagonizado pelo Deus Tem-pestade ḫaḫḫima fosse finalmente vencido119 Tambeacutem neste aspeto se podem encontrar semelhanccedilas com as narrativas mitoloacutegicas hurritas a mediaccedilatildeo na luta pelo poder verificada nas narrativas hurritas (em que Kumarbi se opotildee a Tešub por intermeacutedio dos deuses Prata e LAMMA e dos monstros Ḫedammu e Ullikummi) tem paralelo no facto do Deus Tempestade enfrentar ḫaḫḫima tam-beacutem atraveacutes da mediaccedilatildeo de outras divindades (Vento ZABA4BA4 LAMMA e Telipinu)

Tambeacutem o Deus Mar luta por intermeacutedio de ḫaḫḫima ou seja de forma igualmente indireta A mediaccedilatildeo na luta pelo poder surge assim como mais um denominador comum agraves narrativas mitoloacutegicas hurritas e ao mito do Desapare-cimento do Deus Sol Pode ateacute ressalvar-se que na leitura de alguns hititoacutelogos o real opositor do Deus Tempestade natildeo seria o Deus Mar mas sim o Deus Sol que se teria ausentado talvez propositadamente para testar o poder do seu pai (do Deus Tempestade) atraveacutes da sua ausecircncia ie da presenccedila de ḫaḫḫima120 Em todo o caso a oposiccedilatildeo ocorre sempre entre dois deuses que se enfrentam por intermeacutedio de outros divindades ou natildeo

O Desaparecimento do Deus Sol interessa bastante em razatildeo de nele se cru-zarem os dois motivos baacutesicos da mitologia anatoacutelica antiga o tema da luta do Deus Tempestade com um adversaacuterio que natildeo obstante o sucesso inicial acaba derrotado como no Mito de Illuyanka e o tema da ausecircncia da divindade que provoca o desaparecimento de todos os bens da terra apenas regressando com a realizaccedilatildeo de um ritual do tipo mugawar O facto de na base do desaparecimento

118 Razatildeo pela qual a traduccedilatildeo para Portuguecircs poderia ser laquoGeloraquo de forma semelhante agrave soluccedilatildeo de traduccedilatildeo para Italiano

119 Cf Pecchioli Daddi-Polvani 1990 58-59120 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 60

130

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

do Deus Sol estar a rivalidade entre o Deus Mar e o Deus Tempestade coloca o mito do Desaparecimento do Deus Sol exatamente na interseccedilatildeo entre os mitos anatoacutelicos antigos e as narrativas mitoloacutegicas hurritas

O paralelo do Desaparecimento do Deus Sol com o Mito de Illuyanka parece contudo ter limites significativos visto que se neste uacuteltimo a luta se daacute entre o senhor das aacuteguas pluviais (o Deus Tempestade) e o detentor das aacuteguas subter-racircneas (Illuyanka) no mito do Desaparecimento do Deus Sol a rivalidade existe entre o Deus Tempestade enquanto senhor das aacuteguas doces e o soberano das aacuteguas salgadas o Deus Mar ainda que em ambos os casos venccedila o detentor das aacuteguas mais uacuteteis aos fins agriacutecolas Curiosamente em ambas as narrativas haacute preocupaccedilatildeo em preservar os olhos do Deus Tempestade121 instrumento essen-cial da sua accedilatildeo Natildeo obstante o paralelo do mito do Desaparecimento do Deus Sol com os outros mitos de divindades ausentes parece ser mais significativo do que aquele com o Mito de Illuyanka ateacute porque em ambos haacute recurso aos conselhos de Ḫannaḫanna122

Por responder fica a questatildeo de saber se foi o mito do Desaparecimento do Deus Sol que por cisatildeo deu origem aos temas baacutesicos da mitologia anatoacutelica antiga ou se inversamente foram estes temas que fundindo-se e sofrendo contaminaccedilatildeo hurrita produziram o mito do Desaparecimento do Deus Sol A intuiccedilatildeo diria que a simplicidade (dos temas baacutesicos da mitologia anatoacutelica antiga) teraacute antecedido a complexidade daquele mito relativo ao Deus Sol assim se estabelecendo uma hipoteacutetica cronologia relativa da mitologia anatoacutelica O problema torna-se de mais difiacutecil resoluccedilatildeo se lembrarmos que a presenccedila de ar-caiacutesmos linguiacutesticos e a existecircncia de um fragmento in ductus original em hitita antigo datam o mito do Desaparecimento do Deus Sol de um periacuteodo bastante recuado na histoacuteria hitita O problema complica-se em virtude de nos mitos de divindades ausentes os efeitos do desaparecimento da divindade se darem numa realidade socioeconoacutemica mais complexa e estruturada do que no mito do desaparecimento do Deus Sol123 assim se colocando este mito em fase anterior agravequeles Efetivamente se a maior parte dos mitos de divindades ausentes tem o seu referente quer no campo quer nos homens casas altares de deuses e recin-tos de animais no Desaparecimento do Deus Sol esses referentes estatildeo apenas na realidade agriacutecola e pastoral

Para laacute das rivalidades divinas presentes no Desaparecimento do Deus Sol importa saber se aiacute os poderes estatildeo mais verticalizados agrave maneira das narrativas mitoloacutegicas hurritas ou mais horizontalizados como sucede na generalidade dos mitos de divindades ausentes A estrateacutegia seguida pelo Deus Mar para

121 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol sect 7 B i 32-41 (Hoffner 1998 28) e CTH 321 Mito de Illuyanka (segunda versatildeo) sectsect 21 e ss D iii 2 e ss (Hoffner 1998 13)

122 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol sect 7 B i 32-41 (Hoffner 1998 28)123 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 61-63

131

Joatildeo Paulo Galhano

enfrentar o Deus Tempestade como visto passa pela ocultaccedilatildeo do Deus Sol o que poderia significar que do ponto de vista do Deus Mar o Deus Sol seria mais forte e superior do que o seu proacuteprio pai o Deus Tempestade assim se configurando uma situaccedilatildeo similar ao Canto de Kumarbi em que as geraccedilotildees mais jovens de deuses satildeo mais poderosas do que as mais antigas A parte final do mito contudo demonstra que esta perspetiva do Deus Mar eacute errada dado que presumivelmente o Deus Tempestade acabaraacute por derrotar ḫaḫḫima

Se o Deus Sol surge em primeiro lugar nas listas de divindades registadas nos tratados hititas124 e se no mito do Desaparecimento de Telipinu ele eacute apeli-dado de laquogrande Deus Solraquo125 ou mesmo de laquoDeus Sol dos Deusesraquo noutros loci126 em nenhuma passagem dos mitos anatoacutelicos antigos ele surge qualificado como rei dos deuses ainda que a funccedilatildeo de juiz e de dispensador da justiccedila que lhe eacute comummente adstrita o coloque num patamar superior em relaccedilatildeo aos humanos e em particular ao rei do Ḫatti assim cumprindo a sua funccedilatildeo de laquopas-tor da humanidaderaquo por intermeacutedio do rei127 Ou seja a organizaccedilatildeo do poder no Desaparecimento do Deus Sol assemelha-se mais com a horizontalidade dos mitos de divindades ausentes do que com a riacutegida verticalidade do mando das narrativas mitoloacutegicas hurritas

A estruturaccedilatildeo mitoloacutegica em ciclo visiacutevel nas narrativas hurritas se estaacute praticamente ausente da mitologia anatoacutelica antiga pode ter ocorrido no Desa-parecimento do Deus Sol e no texto Telipinu e a Filha do Deus Mar A razatildeo de tal possibilidade prende-se com a coincidecircncia de figuras divinas em ambas as narrativas (o Deus Sol o Deus Tempestade Telipinu o Deus Mar e a sua filha) e com o facto de a filha do Deus Mar ser dada como esposa a Telipinu no mito Te-lipinu e a Filha do Deus Mar e surgir no Desaparecimento do Deus Sol a chamar o seu pai laquodo ceacuteuraquo para onde teria ido apoacutes ser dada como esposa a Telipinu128

O tema deste hipoteacutetico ciclo estaria centrado na luta entre o Deus Mar e o Deus Tempestade em que a refrega entre as duas divindades no Desapareci-mento do Deus Sol teria tido um preacutevio episoacutedio de negociaccedilatildeo entre o Deus Mar e o Deus Tempestade cujo mediador eficaz teria sido Telipinu ao conseguir ganhar uma esposa e fazer com que o Deus Sol regressasse ao seu lugar habitual A proposta de leitura dos mitos do Desaparecimento do Deus Sol e Telipinu e a

124 Gurney 1954 139125 CTH 324 Desaparecimento de Telipinu sect 2 A i 4-6 (Hoffner 1998 18)126 CTH 671 Sacrifiacutecio e Oraccedilatildeo ao Deus Tempestade de Nerik sect 9 rev 11-17 (Hoffner 1998

24) e CTH 336 Mitos da Deusa Inara e) sect 4 A rev 2-5 (Hoffner 1998 32)127 Bryce 2002 141-42 Šuppiluliuma adotou a titulatura de laquoMinha majestade Šuppiluliuma

Grande Rei Rei do Ḫatti Heroacuteihellipraquo em que a expressatildeo laquoMinha Majestaderaquo corresponde ao heterograma dUTUŠI que contecircm o elemento de ligaccedilatildeo ao Deus Sol hitita cujo ideograma era dUTU assim se evidenciando quer a importacircncia do Deus Sol para o exerciacutecio da justiccedila terrena quer a quase identificaccedilatildeo do rei com aquele deus (Cf Beckman 2002 37-41)

128 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 61-62

132

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

Filha do Deus Mar como ciclo que se pode reputar razoaacutevel foi mesmo alargada no sentido de incluir tambeacutem o mito do Desaparecimento de Telipinu que daria sequecircncia agravequeles dois textos Esta inclusatildeo contudo tem pouca sustentaccedilatildeo dado que neste uacuteltimo a divindade natildeo desaparece em consequecircncia de alguma luta divina como ocorre no Desaparecimento do Deus Sol e em Telipinu e a Filha do Deus Mar mas antes por motivos imprevistos e desconhecidos que natildeo satildeo sequer relacionaacuteveis com alguma falta humana129

Em todo o caso a fixaccedilatildeo da trama inicial do mito Telipinu e a Filha do Deus Mar na tensatildeo entre dois deuses ndash o Deus Tempestade e o Deus Mar ndash ainda que possa ser mera reflexatildeo mitoloacutegica sobre fenoacutemenos naturais aproxima tambeacutem este mito das narrativas hurritas cujo tema principal estaacute na disputa entre Kumarbi e Tešub ainda que naquele mito sem quaisquer preocupaccedilotildees pela realeza divina Verifica-se ainda outra analogia do mito Telipinu e a Filha do Deus Mar com as narrativas mitoloacutegicas hurritas relativa agrave instacircncia do poder conselheiro se nas narrativas hurritas essa instacircncia surge concretizada por exemplo em Šerrišu e Tašmišu que aconselham Tešub no mito Telipinu e a Filha do Deus Mar eacute Ḫannaḫanna quem interveacutem para dar conselhos ao Deus Tempestade relativos ao pagamento do dote ao Deus Mar130 A caracterizaccedilatildeo de Ḫannaḫanna como um poder conselheiro no mito Telipinu e a Filha do Deus Mar tem confirmaccedilatildeo no Desaparecimento do Deus Sol em que o Deus Tempestade apoacutes ver frustradas todas as tentativas de derrotar o Deus Mar atraveacutes de terceiros decide procurar justamente Ḫannaḫanna

O facto de o Deus Mar entregar a sua filha a Telipinu juntamente com a libertaccedilatildeo do Deus Sol pode revelar uma estrateacutegia de aproximaccedilatildeo do Deus Mar ao Deus Tempestade ou seja o Deus Mar pode ter usado o casamento de sua filha como estrateacutegia de obtenccedilatildeo de poder assim se aproximando da divindade que ele proacuteprio qualifica de poderosa Esta leitura aproxima o mito Telipinu e a Filha do Deus Mar da segunda versatildeo do Mito de Illuyanka em que tambeacutem o casamento serve de expediente para a obtenccedilatildeo de poder no caso o casamento do filho do Deus Tempestade com a filha de Illuyanka com o objetivo de reaver os olhos e o coraccedilatildeo perdidos no primeiro combate com a serpente

Finalmente em abono da riqueza da mitologia anatoacutelica antiga segura-mente comparaacutevel agrave fertilidade de conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder das narrativas hurritas pode ainda ver-se que a accedilatildeo maleacutefica de ḫaḫḫima no Desaparecimento do Deus Sol tem um episoacutedio similar no mito O Conjuro da Atadura em que tambeacutem a forccedila maleacutefica Grande Rio surge como agente principal das complica-ccedilotildees sofridas quer no mundo agriacutecola e pastoral quer na esfera humana com a

129 Galhano 2010 349-58130 CTH 322 Telipinu e a Filha do Deus Mar sectsect 5-6 A ii 6-25 (Hoffner 1998 26-27)

133

Joatildeo Paulo Galhano

particularidade de neste mito tambeacutem o Deus Tempestade participar na accedilatildeo maleacutefica que prejudica natildeo soacute homens e animais mas tambeacutem a divindade LAMMA131

Consideraccedilotildees finais

A hurritizaccedilatildeo eacutetnica do territoacuterio hitita derivou de um longo processo de contactos populacionais entre Hititas e Hurritas tendo iniacutecio bem cedo na histoacuteria da Anatoacutelia A guerra e a poliacutetica expansionista dos Hititas foram dos principais agentes propiciadores deste intercacircmbio eacutetnico ainda que a hurritiza-ccedilatildeo populacional da Anatoacutelia tambeacutem tenha ocorrido em tempo de paz entre Ḫattuša e o Mitanni A ingerecircncia egiacutepcia no norte da Siacuteria designadamente com o estabelecimento do acordo mitano-egiacutepcio no reinado de Arnuwanda reforccedilou a presenccedila hurrita nas fronteiras do reino hitita preparando a substan-ciaccedilatildeo do perfil hurro-hitita da cultura anatoacutelica no tempo de Šuppiluliuma I As instituiccedilotildees poliacuteticas imperiais mormente a vice-realeza promoveram ainda mais essa condicionada fusatildeo cultural entre Hurritas e Hititas Desta perspetiva deve valorizar-se o papel de elementos como Puduḫepa na amalgamaccedilatildeo cultural dos setores hurrita e hitita desembocando mais tarde jaacute com Tudḫaliya IV no siacutembolo da hurritizaccedilatildeo religiosa hitita por excelecircncia os relevos de Yazılıkaya

Vimos que nos mitos anatoacutelicos de divindades ausentes exceccedilatildeo feita ao mito do Desaparecimento do Deus Sol e a outros mitos menores sobressaem conceccedilotildees de interdependecircncia e correlaccedilatildeo divina alinhadas pelo diapasatildeo da necessidade de harmonia celeste para o bom andamento da ordem coacutesmica ainda que estes primeiros mitos da Anatoacutelia estejam ligados a rituais destinados a superar momentos de crise A tendecircncia natildeo hieraacuterquica dos mitos anatoacutelicos antigos se tambeacutem assume registos de complementaridade no reconhecimento de pares divinos como eacute exemplo a dupla formada pelo Deus Tempestade e pela Deusa Sol chega a associar uma certa pusilanimidade a alguns agentes divinos Em todo o caso alguns deuses do panteatildeo autoacutectone da Anatoacutelia parecem ter algum ascendente sobre outras divindades como acontece exemplarmente com Ḫannaḫanna

A tendecircncia natildeo hieraacuterquica dos mitos anatoacutelicos antigos de divindades ausentes dissipa-se no seu quase contemporacircneo Mito de Illuyanka132 onde se observa uma modalidade de luta do Deus Tempestade com uma forccedila maacute generi-camente designada laquoserpenteraquo Aiacute a luta pelo poder simboliza a vitoacuteria do bem sobre o mal mas tambeacutem a competiccedilatildeo pelo domiacutenio das aacuteguas subterracircneas

131 CTH 390 O Conjuro da Atadura (Bernabeacute 1987 86-87)132 Cf Galhano 2010 349-58 onde se argumenta pela posteridade do Mito de Illuyanka em

relaccedilatildeo aos mitos de divindades ausentes fundamentando-se tal proposta no facto de no Mito de Illuyanka haver uma conceccedilatildeo teodiceica inexistente nos mitos de divindades ausentes

134

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

e das aacuteguas pluviais reconhecendo-se a superior valia das segundas para fins agriacutecolas O Mito de Illuyanka ostenta uma estoacuteria de recuperaccedilatildeo de poder perdido por parte do Deus Tempestade que aquando da sua primeira derrota eacute abandonado pelo coletivo divino apenas recuperando a sua reputaccedilatildeo depois de um segundo combate com a serpente Tal aspeto demonstra que a solidariedade divina dos mitos de divindades ausentes estaacute ali desaparecida

Com a adoccedilatildeo das narrativas mitoloacutegicas hurritas cujo aporte maior se concretizou no Ciclo de Kumarbi eacute introduzida a ideia de realeza divina dispu-tada em sucessivas conjunturas geracionais Uma vez Tešub nomeado rei divino o Ciclo de Kumarbi desenvolve o ressentimento de Kumarbi por ter sido destro-nado O poder surge aiacute integrado em duas linhagens familiares de divindades cada uma delas associada ou ao domiacutenio celeste ou ao mundo inferior sendo possiacutevel que esta base familiar da disputa possa ter tido um referente arcaico em mitos que reviviam e ritualizavam a oposiccedilatildeo entre as forccedilas do mundo inferior e potecircncias de ordem celeste Assim as narrativas mitoloacutegicas hurritas adotadas pelos Hititas valorizam o horizonte familiar A belicosidade associada agraves narrativas mitoloacutegicas hurritas se pode ser considerada um reflexo do con-texto poliacutetico hurrita em permanente tensatildeo com Ḫattuša tem tambeacutem fortes possibilidades de consubstanciar uma forma narrativa de registo do traumaacutetico coisa que natildeo acontece nem no Mito de Illuyanka nem nos mitos de divindades ausentes (exceccedilatildeo feita ao mito do Desaparecimento do Deus Sol) que na sua essecircncia tendem a valorizar a superaccedilatildeo da crise e a vitoacuteria das forccedilas celestes favoraacuteveis agrave agricultura

A complexificaccedilatildeo que resultou da integraccedilatildeo do Ciclo de Kumarbi no Ḫatti traduziu-se na adoccedilatildeo de diferentes instacircncias de poder Dentre as mais importantes destacaacutemos natildeo soacute a instacircncia do poder moderador e legitimante concretizado no deus Ea mas tambeacutem os niacuteveis de poder conselheiro encor-pados tanto em Šerrišu como nos vizires do poder e do contrapoder factos que permitiram estabelecer um paralelo com a conceccedilatildeo de poder associada agrave deusa Ḫannaḫanna dos mitos de divindades ausentes Aquela instacircncia do poder conselheiro deriva em poder sancionatoacuterio das Deusas Destino e das Deusas Matildee junto de Kumarbi especialmente no momento de criaccedilatildeo de Ullikummi Em todo o caso a ideia de alianccedila de vaacuterias instacircncias de poder subjaz a toda a mitologia do Ciclo de Kumarbi A mitologia de origem hurrita encena assim uma conceccedilatildeo de poder divino coletivo ainda que bastante hierarquizado e multi-estruturado O ressentimento de Kumarbi ao resultar na criaccedilatildeo de monstros maleacuteficos e de divindades concorrentes de Tešub demonstrou ainda que as narrativas do Ciclo de Kumarbi conceptualizaram as lutas pelo mando como uma accedilatildeo mediada do opositor ao poder

A multi-estruturaccedilatildeo do poder nas narrativas de origem hurrita incluiu ainda a introduccedilatildeo de uma dimensatildeo temporal alargada Esta conceptualiza-ccedilatildeo dos governos divinos foi tambeacutem acompanhada de uma nova dimensatildeo

135

Joatildeo Paulo Galhano

literaacuteria do poder em diversas ocasiotildees representada de forma extremamente graacutefica A encenaccedilatildeo literaacuteria levada a cabo nas narrativas mitoloacutegicas hurri-tas ganhou uma dramatizaccedilatildeo da competiccedilatildeo divina ainda maior atraveacutes da fixaccedilatildeo de cenas de pungente belicosidade divina e com a adoccedilatildeo literaacuteria de siacutembolos do poder Esta encenaccedilatildeo literaacuteria sem paralelo na mitologia anatoacute-lica antiga incluiu mesmo registos de introspeccedilatildeo divina trazendo os dilemas interiores do exerciacutecio do poder para o niacutevel mitoloacutegico No Ciclo de Kumarbi haacute ainda um adicional registo dramaacutetico com a introduccedilatildeo de elementos mu-sicais e com a estruturaccedilatildeo sentimental dos deuses em tons frequentemente humanizados

Natildeo obstante a variedade das conceccedilotildees de poder visiacuteveis nas narrativas mitoloacutegicas hurritas alguns mitos anatoacutelicos antigos mostram tambeacutem uma extraordinaacuteria riqueza e complexidade conceptual A luta entre deuses tem registo quer no mito do Desaparecimento do Deus Sol quer no texto Telipinu e a Filha do Deus Mar ainda que sem recurso agrave categoria hurrita de rei divino Esta competiccedilatildeo apresenta semelhanccedilas com o Mito de Illuyanka pelo facto de tambeacutem nos mitos do Desaparecimento do Deus Sol e Telipinu e a Filha do Deus Mar haver uma oposiccedilatildeo entre o Deus Tempestade e um princiacutepio de mal concretizado em ḫaḫḫima

As conceccedilotildees de poder no mito do Desaparecimento do Deus Sol satildeo comparaacuteveis aos registos das narrativas hurritas em virtude de em ambos os casos a competiccedilatildeo divina ocorrer atraveacutes da mediaccedilatildeo de outros agentes rivais dirigidos pelos oponentes principais O mito do Desaparecimento do Deus Sol estaacute mesmo na exata interseccedilatildeo conceptual dos mitos anatoacutelicos antigos com as narrativas hurritas visto cruzar os temas da ausecircncia divina tiacutepica dos mitos de divindades ausentes e da luta de um deus com uma forccedila maacute caracteriacutestica do Mito de Illuyanka com a conceptualizaccedilatildeo do poder em rivalidade essencial ao Ciclo de Kumarbi

Natildeo se podendo saber se foi o mito O Desaparecimento do Deus Sol que por cisatildeo originou os temas mais elementares da mitologia anatoacutelica antiga ndash a ausecircncia divina e a oposiccedilatildeo entre o Deus Tempestade e uma forccedila maacute ndash ou se inversamente foram esses temas que se fundiram e deram origem agravequele mito posteriormente enriquecido com o tema hurrita da rivalidade divina natildeo se pode estabelecer com seguranccedila uma cronologia relativa da mitologia hurro-hitita Contudo pode afirmar-se que a estruturaccedilatildeo do poder no Desapa-recimento do Deus Sol assemelha-se mais com a horizontalidade da generalidade dos mitos anatoacutelicos antigos do que com a verticalidade do poder das narrativas do Ciclo de Kumarbi A estruturaccedilatildeo narrativa em ciclo visiacutevel no Ciclo de Ku-marbi pode tambeacutem ter tido paralelo na mitologia anatoacutelica antiga dado que o mito do Desaparecimento do Deus Sol pode ser a consequecircncia diegeacutetica de Telipinu e a Filha do Deus Mar O texto Telipinu e a Filha do Deus Mar conteacutem tambeacutem outros ingredientes comuns ao Ciclo de Kumarbi designadamente a

136

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

conceptualizaccedilatildeo de poderes conselheiros na orquestra divinaEm suma se a hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos trouxe para solo

anatoacutelico novas estruturas de sentido assentes em novas conceccedilotildees de poder a mitologia anatoacutelica antiga continha jaacute uma grande diversidade de ingredientes conceptuais razatildeo pela qual natildeo exageramos o valor do aporte hurrita agraves conce-ccedilotildees de poder da mitologia anatoacutelica mais antiga

137

Joatildeo Paulo Galhano

Bibliografia

Barjamovic Gojko 2011 A Historical Geography of Anatolia in the Old Assyrian Period Copenhagen Museum Tusculanum Press

Beckman Gary 2007 ldquoFrom Ḫattuša to Carchemish The Latest on Hittite Historyrdquo In Current Issues and the Study of the Ancient Near East ed Mark W Chavalas Claremont California Regina Books

mdashmdashmdash 2002 ldquolsquoMy Sun-Godrsquo Reflections of Mesopotamian Conceptions of Kingship among the Hittitesrdquo In Ideologies as Intercultural Phenomena Proceedings of the Third Annual Symposium of the Assyrian and Babylonian Intellectual Heritage Project Held in Chicago USA October 27-31 2000 ed A Panaino e G Pettinato 37-43 Milano Universitagrave di Bologna

Beckman Gary e Harry Hoffner eds 1999 Hittite Diplomatic Texts 2ordf ed Atlanta Georgia Scholars Press Society of Biblical Literature

Bernabeacute Alberto 1987 Textos Literarios Hetitas Madrid Alianza EditorialBiacuteblia Sagrada 1995 Lisboa Difusora BiacuteblicaBryce Trevor 2005 The Kingdom of the Hittites Oxford Oxford University Pressmdashmdashmdash 2002 Life and Society in the Hittite World Oxford Oxford University PressCarreira Joseacute Nunes 2009 Mitos e Lendas Hititas Lisboa Colibrimdashmdashmdash 1999 Historiografia Hitita Lisboa Colibri Centro de Histoacuteria da

Universidade de LisboaCollins Billie Jean 2007 The Hittites and their World Atlanta Society of Biblical

LiteratureDietrich Manfried Oswald Loretz e Joaquiacuten Sanmartiacuten eds 1995 The

Cuneiform Alphabetic Texts from Ugarit Ras Ibn Hani and other places (KTU) Muumlnster Ugarit-Verlag

Eder W e J Renger eds 2007 Chronologies of the Ancient World Names Dates and Dynasties Leiden Boston Brill

Ferro Marc 2009 O Ressentimento na Histoacuteria Lisboa Editorial TeoremaFriedrich Johannes 1991 Kurzgefaszligtes Hethitisches Woumlrterbuch Heidelberg

Carl Winter ndash UniversitaumltsverlagGalhano Joatildeo Paulo 2012 Espaccedilo Tempo e Poder nos Mitos do Ḫatti de Ugarit

e de Hesiacuteodo Uma Morfologia Comparativa Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Histoacuteria Antiga apresentada agrave Universidade de Lisboa

mdashmdashmdash ldquoRepresentaccedilotildees e usos humanos nos mitos anatoacutelicos antigosrdquo Cadmo 20347-67

Garciacutea Trabazo Joseacute Virgilio 2002 Textos Religiosos Hititas Mitos Plegarias y Rituales Madrid Trotta

138

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

Gurney O R 1954 The Hittites Harmondsworth Penguin BooksGuumlterbock Hans G H Hoffner Jr e Theo van den Hout 2002-2013 The Hittite

Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago Vol Š Fascicles 1 2 e 3 Chicago The Oriental Institute

mdashmdashmdash 1997 The Hittite Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago Vol P Chicago The Oriental Institute

mdashmdashmdash 1989 The Hittite Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago Vol L-N Chicago Oriental Institute

Hoffner Harry 2009 Letters from the Hittite Kingdom Atlanta Society of Biblical Literature

mdashmdashmdash 1998 Hittite Myths 2ordf ed Atlanta Georgia Scholar PressKlengel Horst 1998 Geschichte des hethitischen Reiches Leiden BrillLaroche Emmanuel 1971 Catalogue des Textes Hittites Eacutetudes et Commentaires

Paris KlincksieckLarsen Mogens Trolle 2015 Ancient Kanesh A Merchant Colony in Bronze Age

Anatolia Cambridge Cambridge University PressLiverani Mario 2001 International Relations in the Ancient Near East 1600 ndash

1100 BC New York ndash BasingstokeMacQueen J G 1959 ldquoHattian Mythology and Hittite Monarchyrdquo Anatolian

Studies 9171-88Neu Erich ed trad e comentaacuterio 1996 Das hurritische Epos der Freilassung

I Untersuchungen zu einem hurritisch-hethitischen Textensemble aus Ḫattuša Wiesbaden Harrassowitz Verlag

Olmo Lete G del 1981 Mitos y Leyendas de Canaan Segun la Tradicion de Ugarit Madrid Ediciones Cristiandad

Pecchioli Daddi Franca e Anna Maria Polvani 1990 La Mitologia Ittita Brescia Paideia Editrice

Pritchard J B ed 1969 Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament 3ordf ed Princeton New Jersey Princeton University Press

Rieken E Daniel Schwemer Gerfrid Muumlller Doris Prechel e Gernot Wilhelm dir 2009- Mythen der Hethiter in Hethitologie Portal Mainz Em httpswwwhethportuni-wuerzburgde

Watkins Calvert 2001 ldquoAn Indo-European linguistic area and its characteristics Ancient Anatoliardquo In Areal Diffusion and Genetic Inheritance ed P Aikhenvald e R Dixon 44-63 Oxford Oxford University Press

Wegner Ilse 2007 Einfuumlhrung in die hurritisch Sprache 2 uumlberarbeite Auflage Wiesbaden Harrassowitz Verlag

Yigit Turgut 2016 ldquoThe political and cultural meanings of the Hittite empire period rock monumentsrdquo Athens Journal of History 2 (1)59-67

139

Elisa de Sousa

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio (Imperialism in the Phoenician colonial world)

Elisa de Sousa(esousacampusulpt 0000-0003-3160-108X)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras UNIARQ-Centro de Arqueologia

laquoInformal imperialism can exist without colonialism but colonialism cannot exist without imperialismraquo

B Bush

Resumo - A colonizaccedilatildeo feniacutecia no Mediterracircneo Central Ocidental e nas costas atlacircnticas teve um impacto muito profundo natildeo soacute em termos socioeconoacutemi-cos mas tambeacutem culturais nos territoacuterios ultramarinos A heranccedila oriental iraacute sobrepor-se em muacuteltiplas ocasiotildees ao substrato autoacutectone precedente atraveacutes de relaccedilotildees de domiacutenio que podem ser interpretadas no acircmbito de um imperialismo cultural

Palavras-chave Feniacutecios Indiacutegenas Colonizaccedilatildeo Cultura

Abstract ndash The Phoenician colonization in the Central and Western Mediterranean and in the Atlantic shores had a deep impact in the overseas ter-ritories not only in terms of society and economy but also in the cultural scene The oriental heritage will overlapse in many occasions the previous indigenous substratum through relations of dominance that can be interpreted under the concept of imperial culturalism

Keywords Phoenician Indigenous Colonization Culture

1 Introduccedilatildeo

O presente artigo resulta de um desafio que foi lanccedilado por ocasiatildeo do Se-minaacuterio Interdisciplinar de Histoacuteria Antiga Arqueologias de Impeacuterio ndash Impeacuterios da Era Axial relacionado com a questatildeo da existecircncia ou natildeo de uma qual-quer vertente de cariz imperialista no quadro da diaacutespora feniacutecia do Extremo Ocidente A resposta a esta problemaacutetica natildeo eacute naturalmente faacutecil de abordar considerando a escassez de dados histoacutericos e tambeacutem arqueoloacutegicos sobre as-petos especiacuteficos do processo de colonizaccedilatildeo feniacutecia do Mediterracircneo Central e das regiotildees mais ocidentais sobretudo no quadro de eventuais conflitos que se possam ter gerado entre estes grupos e as populaccedilotildees locais Ao que tudo indica natildeo teraacute existido um componente de cariz marcadamente militar no quadro destes contactos nem sequer uma forte intenccedilatildeo de conquista territorial destes

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_7

140

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

novos territoacuterios por parte dos colonos orientais pelo menos numa fase inicial1 Contudo eacute inegaacutevel que a expansatildeo de valores culturais de matriz orientalizante atinge um alcance verdadeiramente notaacutevel tendo em diversos cenaacuterios quase obliterado as tradiccedilotildees autoacutectones Com efeito e sobretudo a partir do seacuteculo VIII e VII aC que corresponde agrave fase de maacuteximo apogeu deste fenoacutemeno co-lonial surge em todo o Ocidente Mediterracircneo e em parte do litoral atlacircntico uma autecircntica koineacute orientalizante que se iraacute manter durante mais de duzentos anos

A difusatildeo da cultura semita nestes territoacuterios longiacutenquos prendeu-se ne-cessariamente com a existecircncia de relaccedilotildees de domiacutenio e de poder2 desiguais entre os receacutem-chegados e as comunidades autoacutectones com quem entraram em contacto Neste sentido torna-se entatildeo possiacutevel falar de um imperialismo feniacutecio de cariz essencialmente cultural3 que de certa forma se impocircs sobre sistemas socioculturais preacute-existentes

Naturalmente estas relaccedilotildees natildeo tiveram um caraacutecter exclusivamente unilateral sofrendo as proacuteprias comunidades feniacutecias instaladas nos territoacuterios ultramarinos metamorfoses que iratildeo configurar ainda durante a primeira me-tade do 1ordm mileacutenio aC diferentes quadros culturais No entanto a existecircncia e sobrevivecircncia de um substrato de matriz oriental constitui uma evidecircncia inegaacutevel nas margens mediterracircneas e atlacircnticas do Ocidente do Velho Mundo

2 A Feniacutecia e os antecedentes da colonizaccedilatildeo

A existecircncia de um imperialismo cultural feniacutecio natildeo foi um fenoacutemeno que se verificou exclusivamente no quadro da colonizaccedilatildeo ocidental

Apesar das cidades feniacutecias do Oriente se terem configurado ao longo da sua histoacuteria como entidades fundamentalmente autoacutenomas e independentes eacute possiacutevel identificar certas conjunturas onde um ou vaacuterios destes nuacutecleos conse-guiram alcanccedilar um certo poder hegemoacutenico

A partir da chamada crise de 1200 aC e sobretudo durante quase toda a primeira metade do 1ordm mileacutenio aC a principal protagonista destes episoacutedios foi a cidade de Tiro Em finais do 2ordm mileacutenio aC e na sequecircncia das profundas transformaccedilotildees e reestruturaccedilotildees econoacutemicas poliacuteticas sociais e comerciais que iratildeo afetar o Proacuteximo Oriente durante os momentos iniciais da Idade do

1 Contudo outras formas de agressatildeo satildeo equacionaacuteveis no acircmbito da interaccedilatildeo entre comunidades autoacutectones e os agentes colonizadores como foi jaacute defendido por Wagner 2005 178

2 Bush 20063 Neste trabalho eacute utilizada uma definiccedilatildeo simplificada de uma terminologia criada a partir

da segunda metade do seacuteculo XX denominada de laquoimperialismo culturalraquo e com implicaccedilotildees sobretudo no campo do poacutes-colonialismo Sobre a problemaacutetica relativa agrave multiplicidade de abordagens e interpretaccedilotildees relativas a este conceito ver Tomlinson 1991

141

Elisa de Sousa

Ferro4 este centro urbano parece ter emergido como uma das principais en-tidades comerciais da aacuterea substituiacutedo ao que parece o papel anteriormente desempenhado por Ugarit5

Esta hegemonia tiacuteria chegou em determinados momentos a ultrapassar a mera esfera cultural e comercial revestindo-se de um caraacutecter inclusivamente poliacutetico aproveitando o decreacutescimo do poder egiacutepcio sobre a regiatildeo6 Natildeo eacute portanto de estranhar que esse nuacutecleo tenha constituiacutedo anos mais tarde um dos principais impulsionadores na empresa colonial feniacutecia no Ocidente7

Eacute ainda durante os momentos iniciais da Idade do Ferro no Proacuteximo Orien-te a partir da segunda metade do seacuteculo XI aC que se verificam os primeiros indiacutecios desta poliacutetica expansionista tiacuteria que exerce uma influecircncia que se iraacute tornar progressivamente mais evidente no vale de Jezrael Os dados arqueoloacute-gicos recolhidos nesta aacuterea particularmente no quadro da composiccedilatildeo dos es-poacutelios funeraacuterios da necroacutepole de Achziv evidenciam uma importante presenccedila tiacuteria que teraacute tido como principais objetivos o controle de importantes recursos agraacuterios industriais e tambeacutem comerciais8 Paralelamente eacute tambeacutem durante esta fase que se observam quantidades muito significativas de importaccedilotildees tiacuterias em algumas aacutereas de Chipre como eacute o caso da necroacutepole de Paleopaphos Skales cuja intensidade conduziu inclusivamente agrave admissatildeo da existecircncia de grupos feniacutecios nos centros urbanos da regiatildeo9 Tal fenoacutemeno poderia ser tambeacutem uma realidade em Creta concretamente em Kommos10

Contudo e apesar desta crescente influecircncia tiacuteria no Proacuteximo Oriente a partir da segunda metade do seacuteculo XI aC o cenaacuterio poliacutetico parece revestir-se de um caraacutecter ainda pouco centralizado onde a iniciativa privada teria uma importacircncia acrescida11 situaccedilatildeo que parece alterar-se em momentos sucessi-vos12

Com efeito os monarcas tiacuterios das primeiras centuacuterias do 1ordm mileacutenio aC transformaram a cidade numa das principais potecircncias mariacutetimas e comer-ciais do Proacuteximo Oriente13 capaz de controlar e monopolizar os principais mercados e rotas comerciais da aacuterea Os tiacutetulos que ostentavam por exemplo Hiram I (970969-936 aC) Rei de Tiro e da Feniacutecia e Ithobaal I (887-856 aC) Rei dos Sidoacutenios satildeo indicadores da primazia da cidade sobre os restantes

4 Para uma siacutentese atualizada ver Ruiz-Gaacutelvez Priego 20135 Aubet 20006 Finkelstein e Piasetzky 2009 Ruiz-Gaacutelvez Priego 2013 e 1167 Aubet 19948 Aubet 20009 Karageorghis 1983 Bikai 1983 Aubet 2000 80 Ruiz-Gaacutelvez Priego 2013 12510 Aubet 2000 Shaw 199811 Ruiz-Gaacutelvez Priego 2013 12512 Galaacuten e Ruiz-Gaacutelvez 200713 Aubet 2008 182-83

142

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

nuacutecleos feniacutecios Tal realidade transparece inclusivamente na existecircncia de uma confederaccedilatildeo entre Tiro e Sidoacuten durante os seacuteculos IX e VIII aC onde parecem ter sido os reis tiacuterios os que exerceram de forma efetiva o poder14 A influecircncia poliacutetica de Tiro sobre outras cidades feniacutecias como Biblos verifica--se pela fundaccedilatildeo de um estabelecimento comercial tiacuterio (Botrys) no interior no territoacuterio giblita15 Tambeacutem em aacutereas mais longiacutenquas como o norte da Siacuteria e Ciliacutecia a existecircncia de nuacutecleos fundados por Tiro parece ter desencadeado uma forte influecircncia poliacutetica e cultural a julgar por algumas estelas e inscriccedilotildees recuperadas Por outro lado cabe natildeo esquecer o controle de algumas cidades da aacuterea israelita em consequecircncia do tratado estabelecido entre Hiram I e Salomatildeo16 Recentes investigaccedilotildees sobre a veracidade histoacuterica destes relatos biacuteblicos tecircm posto em questatildeo vaacuterios aspetos ateacute entatildeo assumidos entre os quais as aparentes relaccedilotildees de igualdade aiacute sugeridas entre a monarquia tiacuteria e a israelita Com efeito os dados arqueoloacutegicos que tecircm sido recolhidos na regiatildeo parecem contrariar as informaccedilotildees escritas17 indicando que Tiro teraacute exercido um domiacutenio efetivo sobre estes territoacuterios sendo inclusivamente proposto que os proacuteprios reis israelitas estariam de certa forma dependentes da casa real tiacuteria18

Este incremento da posiccedilatildeo hegemoacutenica de Tiro durante os iniacutecios do 1ordm mileacutenio aC respondeu claramente a condicionantes econoacutemicas estrateacutegi-cas O controle de redes comerciais e da exploraccedilatildeo de aacutereas essenciais para a obtenccedilatildeo de recursos quer metaliacuteferos quer agriacutecolas teratildeo sido os principais motivos que subjazem agrave preeminecircncia de Tiro face agraves restantes cidades feniacutecias e outras aacutereas do Proacuteximo Oriente

Mesmo a partir do seacuteculo IX aC quando a pressatildeo assiacuteria se faz sentir de forma mais substancial no Proacuteximo Oriente as cidades feniacutecias parecem ter continuado a usufruir de um estatuto privilegiado19 situaccedilatildeo que eacute justificada pela importacircncia destes nuacutecleos no quadro dos principais circuitos comerciais da regiatildeo Com efeito os tributos entregues por Tiro aos monarcas assiacuterios satildeo verdadeiramente impressionantes quer em diversidade quer em quantidade o que mostra a riqueza da cidade durante esta fase20 Mesmo as campanhas militares assiacuterias no norte da Siacuteria que aparentemente teratildeo condicionado o acesso das metroacutepoles feniacutecias agraves mateacuterias-primas da Anatoacutelia21 natildeo teratildeo tido impactos insuperaacuteveis no quadro econoacutemico e comercial destes nuacutecleos quiccedilaacute

14 Markoe 2000 3915 Aubet 1994 5016 Aubet 1994 53 e 7617 Finkelstein e Silberman 2007 Liverani 2005 Martiacuten Ruiz 201018 Martiacuten Ruiz 2010 26 Ruiz e Wagner 2005 10819 Markoe 2000 40 Aubet 200820 Jankowska 1969 Zaccagnini 1984 Bunnens 1985 Aubet 2008 18321 Aubet 1994 54

143

Elisa de Sousa

devido justamente agrave aquisiccedilatildeo de outros recursos estrateacutegicos derivados da poliacutetica colonial ultramarina que seria nesta altura jaacute uma realidade22

A reestruturaccedilatildeo da rede comercial das cidades feniacutecias e o seu redireccio-namento progressivamente sistemaacutetico face aos circuitos ocidentais que garan-tiam mateacuterias-primas essenciais para a induacutestria do Proacuteximo Oriente teraacute tido o seu iniacutecio ainda durante o seacuteculo X aC intensificando-se sobretudo a partir da centuacuteria seguinte23 possivelmente em consequecircncia dos esforccedilos em manter o seu imperialismo comercial no Proacuteximo Oriente e para fazer face agrave crescente pressatildeo tributaacuteria assiacuteria

Estes primeiros contactos entre o mundo feniacutecio-chipriota e o Extremo Ocidente encontram-se arqueologicamente plasmados nas extraordinaacuterias des-cobertas realizadas recentemente em Huelva24 e tambeacutem pela proacutepria presenccedila em contextos coevos de materiais supostamente produzidos nesta mesma aacuterea25 no Proacuteximo Oriente como eacute o caso das fiacutebulas de tipo Huelva descobertas em Meggido26 e nos contextos funeraacuterios de Achziv27 e do tuacutemulo 523 de Amathus28 Estas evidecircncias arqueoloacutegicas de contactos entre o Proacuteximo Oriente e o Ex-tremo Ocidente tecircm sido associadas a acontecimentos histoacutericos descritos nos textos biacuteblicos que ocorreram sobretudo durante o final do reinado de Hiram I em concreto as expediccedilotildees a Tarsish realizadas em parceria com Salomatildeo29

Para aleacutem destes passos iniciais no Extremo Ocidente a reestruturaccedilatildeo da poliacutetica econoacutemica e comercial tiacuteria refletiu-se paralelamente tambeacutem na fun-daccedilatildeo de outras coloacutenias no Mediterracircneo durante o uacuteltimo quartel do seacutec IX aC30 Em 820 aC a fundaccedilatildeo de Kition na ilha de Chipre permitiu o controlo dos recursos de cobre da ilha e das suas redes comerciais31 Poucos anos depois e de acordo com os dados das fontes claacutessicas em 814 e 813 aC momentos que se parecem aproximar das recentes dataccedilotildees raacutedio carboacutenicas obtidas em escavaccedilotildees recentes32 os tiacuterios fundaram Cartago metroacutepole que se tornou num ponto es-trateacutegico para o acesso aos recursos e redes comerciais do Mediterracircneo Central e tambeacutem um nuacutecleo de apoio para a exploraccedilatildeo dos territoacuterios mais ocidentais

22 Mederos Martiacuten 2006 Aubet 2008 Nuntildeez 201523 Mederos Martiacuten 2006 179 Nuntildeez 2015 28-2924 Gonzaacutelez de Canales Serrano et Llompart 200525 Mederos 199626 Finkelstein e Piasetzky 2006 Ruiz Galvez 2013 13727 Ruiz-Gaacutelvez Priego 2013 12028 Karageorghis 198729 Mederos Martiacuten 2006 179 Nuntildeez 2015 2930 A fundaccedilatildeo de Auza presumivelmente localizada no litoral liacutebio seria anterior a esta

data tendo ocorrido durante o reinado de Ihobaal (887-856 aC) No entanto a inexistecircncia de dados arqueoloacutegicos que permitam confirmar a sua antiguidade e a proacutepria existecircncia justificam a sua omissatildeo neste trabalho

31 Aubet 1994 5532 Docter et al 2005

144

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

Ateacute aos meados do seacuteculo VIII aC Tiro parece ter mantido a sua autono-mia hegemonia e prestiacutegio comercial no Proacuteximo Oriente33 Eacute apenas a partir deste momento quando verifica uma maior pressatildeo tributaacuteria e uma poliacutetica expansionista agressiva por parte do impeacuterio assiacuterio que a situaccedilatildeo se altera podendo ter gerado uma intensificaccedilatildeo da colonizaccedilatildeo ultramarina Durante os reinados de Tiglatpilaser III e Sargatildeo II34 as campanhas militares assiacuterias resultaram na conquista de vaacuterias aacutereas da costa feniacutecia tendo como consequecircn-cia a reduccedilatildeo dos territoacuterios de exploraccedilatildeo deportaccedilotildees e inclusive perda de alguma autonomia poliacutetica ainda que Tiro tenha permanecido grosso modo independente35 Contudo a instabilidade carecircncias alimentares e de mateacuterias--primas assim como as fortes pressotildees demograacuteficas e tributaacuterias parecem ser os principais fatores que desencadeiam uma nova vaga colonial que atingiu o Mediterracircneo Central e Ocidental e chegou inclusivamente e ainda que de for-ma indireta ao litoral atlacircntico36 A principal justificaccedilatildeo para uma tatildeo extensa diaacutespora tem sido a necessidade de captar recursos estrateacutegicos provavelmente metaliacuteferos indisponiacuteveis em aacutereas mais proacuteximas No caso concreto da Peniacuten-sula Ibeacuterica para aleacutem dos recursos auriacuteferos e estaniacuteferos atlacircnticos conveacutem recordar a riqueza argentiacutefera da zona de Huelva (Rio Tinto) sendo esta uma das aacutereas nevraacutelgicas do mundo feniacutecio ocidental37 Contudo as pressotildees demograacute-ficas que seguramente se teratildeo sentido no Proacuteximo Oriente durante esta fase poderatildeo tambeacutem explicar esta intensificaccedilatildeo do fenoacutemeno colonial assim como a instalaccedilatildeo de novos nuacutecleos em aacutereas mais afastadas dos principais recursos mineiros como ocorre por exemplo na aacuterea de Maacutelaga38

Independentemente das referecircncias das fontes claacutessicas que estabelecem o iniacutecio desta colonizaccedilatildeo ainda em finais do 2ordm mileacutenio aC39 este processo estaacute arqueograficamente atestado apenas a partir sobretudo do seacuteculo IX e de for-ma mais intensiva e sistemaacutetica durante os seacuteculos VIII e VII aC Com efeito eacute partir destes momentos que se comprova a presenccedila feniacutecia em locais como Uacutetica Leptis Magna Hippo Hadrumetum Cartago (Tuniacutesia) Motya Solunto Palermo (Siciacutelia ndash Itaacutelia) Nora Sulcis Tharros Bithia Caralis (Sardenha ndash Itaacute-lia) Ceuta Mogador Lixus (Marrocos) Caacutedis Castillo de Dontildea Blanca Huelva

33 Aubet 2008 18534 Markoe 2000 41-4435 Aubet 1994 60 Aubet 2008 18636 Arruda 1999-2000 Dietler 2009 737 Aubet 1994 242-24338 Wagner e Alvar 1989 e 2003 Wagner 2005 18339 Veleio Pateacuterculo situa a fundaccedilatildeo de Gadir (atual Caacutedis) cerca de 80 anos depois da

queda de Troacuteia (1110 ou 1104 aC) sendo Uacutetica na costa tunisina fundada pouco mais tarde (1100 aC) Por sua vez Pliacutenio indica que Lixus na costa marroquina possuiacutea um templo dedicado a Melkart ainda mais antigo que o de Gadir pelo que seria o estabelecimento mais antigo da diaacutespora feniacutecia no Ocidente

145

Elisa de Sousa

Carambolo Sevilha Cerro Macareno Carmona Morro de Mezquetilla Chor-reras Cerro del Villar Cerro del Prado Toscanos Maacutelaga Cerro Alarcoacuten Sexi Abdera La Fonteta (Espanha) Tavira Castelo de Castro Marim Abul Alcaacutecer do Sal Setuacutebal Lisboa Almaraz Santareacutem Santa Olaia (Portugal) e tambeacutem nas ilhas de Pantelaacuteria Lampedusa Gozo e Malta40

3 Os contactos coloniais

A maior parte dos territoacuterios atingidos pela vaga colonizadora feniacutecia eram jaacute ocupados por comunidades indiacutegenas do Bronze Final Apesar de estas uacutelti-mas serem notavelmente diversificadas em termos poliacuteticos sociais e culturais os dados existentes ateacute ao momento indicam que partilhavam estrateacutegias econoacute-micas baseadas sobretudo na agricultura e pecuaacuteria e apesar de manterem em vaacuterios casos contactos de iacutendole comercial com outras aacutereas mediterracircneas41 os impactos sofridos ateacute entatildeo natildeo satildeo comparaacuteveis aos que se iratildeo verificar com a instalaccedilatildeo efetiva de colonos orientais no territoacuterio

Independentemente do grau de complexidade sociocultural que as culturas do Bronze Final possam ter atingido nos momentos que precederam o iniacutecio da colonizaccedilatildeo feniacutecia eacute inegaacutevel a sua inferioridade tecnoloacutegica em relaccedilatildeo aos receacutem-chegados Esta disparidade teraacute constituiacutedo um dos principais fatores de impacto durante os primeiros contactos estabelecidos

Com efeito as comunidades que fundaram as novas coloacutenias feniacutecias de-tinham o conhecimento de tecnologias mais avanccediladas como por exemplo a produccedilatildeo de ceracircmicas a torno de objetos de pasta viacutetrea o uso do moinho giratoacuterio e a reduccedilatildeo do ferro Os modelos arquiteturais utilizados eram com-pletamente distintos estando consubstanciados por exemplo em construccedilotildees de planta retangular e em arquiteturas mais complexas do que as utilizadas pelas populaccedilotildees indiacutegenas42 Sobre as suas praacuteticas culturais e religiosas quer de acircmbito domeacutestico quer de acircmbito mais institucional satildeo ainda poucos os da-dos disponiacuteveis ainda que os existentes indiquem clivagens muito significativas com as tradiccedilotildees autoacutectones particularmente no quadro do aparato cerimonial arquitetura religiosa e conotaccedilotildees simboacutelicas

As relaccedilotildees estabelecidas entre feniacutecios e as elites das comunidades locais podem ter sido iniciadas nos paracircmetros da troca de keimelia que estabelecem natildeo soacute viacutenculos meramente econoacutemicos mas tambeacutem de forte iacutendole sociocul-tural43 que teratildeo aberto redes comerciais futuras44 Tais ligaccedilotildees parecem ter tido

40 Aubet 1994 146-4941 Para uma siacutentese atualizada deste processo ver Ruiz Galveacutez Priego 201342 Arruda 2010 43943 Mauss 1970 Parise 2000 29-3044 Aubet 1994 123 125-26

146

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

consequecircncias avassaladoras no interior da dinacircmica quotidiana das populaccedilotildees autoacutectones Se por um lado o incremento de elementos considerados de prestiacute-gio poderaacute ter intensificado certas divisotildees sociais preacute-existentes beneficiando as elites locais45 tais produtos teratildeo constituiacutedo simultaneamente veiacuteculos de difusatildeo da cultura feniacutecia nos territoacuterios ultramarinos46 A desigualdade das trocas estabelecidas natildeo eacute nesta perspetiva uma questatildeo a considerar dado que o significado de produtos e objetos tem de ser necessariamente avaliado nos contextos socioculturais em que circula

Cabe tambeacutem natildeo esquecer que a instalaccedilatildeo de comunidades orientais im-plicou a trasladaccedilatildeo de costumes e praacuteticas poliacuteticas sociais religiosas e cultu-rais47 que natildeo passaram seguramente despercebidas agraves comunidades indiacutegenas A sua influecircncia teraacute tido repercussotildees na estrutura interna destas sociedades num processo geralmente denominado por laquoorientalizaccedilatildeoraquo48 das comunidades ocidentais Com efeito as principais divindades do panteatildeo feniacutecio oriental Baal Melkart e Astarteacute foram transpostas para os ambientes coloniais existin-do indiacutecios que permitem estabelecer que em determinadas aacutereas tais cultos teratildeo sido tambeacutem adotados pelos grupos indiacutegenas49

Por outro lado a necessidade de aplicar novas tecnologias de forma a incre-mentar a exploraccedilatildeo dos recursos locais sobretudo metaliacuteferos teraacute estado na origem da instalaccedilatildeo de autecircnticos bairros feniacutecios em povoados indiacutegenas de vaacuterias aacutereas despoletando em definitivo o processo de laquoorientalizaccedilatildeoraquo50

Por uacuteltimo e natildeo menos importante a provaacutevel existecircncia de alianccedilas poliacuteticas sistemaacuteticas entre as comunidades autoacutectones e os grupos orientais possivelmente substanciadas em laquomatrimoacutenios mistosraquo teraacute seguramente contribuiacutedo para este processo51 dando origem a novas geraccedilotildees educadas em grande parte no quadro dos valores culturais semitas

Com efeito em pouco tempo os elementos culturais de cariz orientalizante seratildeo aqueles que iratildeo marcar o registo arqueoloacutegico das aacutereas colonizadas du-rante a primeira metade do 1ordm mileacutenio aC

Em alguns casos conhecidos como por exemplo no litoral atlacircntico da Peniacutensula Ibeacuterica o mundo indiacutegena dos iniacutecios do mileacutenio praticamente desapareceu quando se iniciaram os contactos coloniais52 Os modelos de po-voamento colapsaram as estrateacutegias de exploraccedilatildeo do territoacuterio alteraram-se

45 Delgado Hervaacutes 2008 3246 A utilizaccedilatildeo destes bens de prestiacutegio eacute particularmente observaacutevel por exemplo nos

contextos funeraacuterios do sul da Andaluzia e Extremadura espanhola47 Beleacuten Deamos 200948 Dietler 2009 2349 Beleacuten Deamos 200950 Delgado Hervaacutes 2008 Aubet 201251 Ruiz Galvez Priego 2013 23652 Arruda 2014 531

147

Elisa de Sousa

a cultura material transformou-se e os ritos e costumes funeraacuterios adquiriram novas particularidades que se prendem mais com costumes semitas que com as tradiccedilotildees da Idade do Bronze Com efeito uma parte muito significativa dos povoados de altura dos iniacutecios do 1ordm mileacutenio foram abandonados aquando da instalaccedilatildeo de gentes orientais no territoacuterio e nos casos em que se observou uma continuidade a arquitetura e a cultura material assumiram a partir de entatildeo um caraacutecter marcadamente oriental53

Eacute provaacutevel que estas populaccedilotildees autoacutectones tenham sido pelo menos em parte absorvidas pelos nuacutecleos de habitat ocupados durante os momentos ini-ciais da Idade do Ferro Quer em locais de cariz mais indiacutegena quer em centros de natureza colonial observa-se em maior ou menor quantidade a presenccedila de produccedilotildees ceracircmicas que se inscrevem ainda nas tradiccedilotildees do Bronze Final54 No entanto a sua relevacircncia parece diminuir progressivamente ao longo do tempo atingindo percentagens muito reduzidas durante os finais da primeira metade do 1ordm mileacutenio aC

Uma situaccedilatildeo muito similar eacute tambeacutem evidente em outras aacutereas do Mediterracirc-neo como no sul da Sardenha onde as notaacuteveis estruturas nuraacutegicas que caracte-rizam as fases finais da Idade do Bronze desta aacuterea parecem ter sido abandonadas salvo algumas exceccedilotildees durante os iniacutecios da Idade do Ferro55 coincidindo com a fase inicial da instalaccedilatildeo permanente de populaccedilotildees orientais no territoacuterio

Eacute contudo ainda difiacutecil determinar se estas alteraccedilotildees se relacionam diretamente com a evoluccedilatildeo da poliacutetica colonial semita que adquire nestes momentos um caraacutecter efetivo e permanente ou se teratildeo sido uma consequecircn-cia de fatores de instabilidade internos despoletados no quadro dos contactos preacute-coloniais

Consideraccedilotildees finais

Os dados que a anaacutelise histoacuterica e arqueoloacutegica tem vindo a revelar jaacute natildeo permitem defender que a presenccedila feniacutecia nos territoacuterios coloniais se limitou a meras transaccedilotildees de cariz comercial e agrave necessidade de obtenccedilatildeo de mateacuterias--primas Os contactos que estas comunidades estabeleceram com as populaccedilotildees indiacutegenas alteraram de forma definitiva e irremediaacutevel o contexto poliacutetico social e cultural dos grupos intervenientes

Mesmo admitindo um caraacutecter essencialmente paciacutefico que teraacute deter-minado a natureza desses contactos56 a laquoconquistaraquo destas aacutereas longiacutenquas

53 Veja-se por exemplo o caso da aacuterea de Huelva e do Vale do Guadalquivir no sul do territoacuterio peninsular

54 Arruda 1999-2000 Azuar et al 1998 Gonzaacutelez Prats 1998 Rouillard et al 2007 Aubet et al 1999 Delgado e Ferrer 2007 Torres Ortiacutez et al 2014 Sousa 2015 e 2016

55 Ruiz Galvez Priego 200556 Este caraacutecter laquopaciacuteficoraquo tem contudo vindo a ser discutido no contexto da colonizaccedilatildeo

148

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

transformou-se numa realidade Ainda que os mecanismos dessa difusatildeo natildeo tenham adotado os cacircnones das verdadeiras potecircncias imperiais do mundo antigo definidos sobretudo pela imposiccedilatildeo de relaccedilotildees de domiacutenio atraveacutes de meios poliacuteticos e militares a laquoculturaraquo feniacutecia converteu-se numa laquoarmaraquo de eficaacutecia extraordinaacuteria na legitimaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo da presenccedila oriental nos territoacuterios colonizados

Determinar a verdadeira intencionalidade desta laquoconquista silenciosaraquo eacute uma questatildeo difiacutecil de abordar Com a eventual exceccedilatildeo de Cartago as coloacute-nias feniacutecias no Mediterracircneo Central Ocidental e do Atlacircntico nunca deram indiacutecios de poliacuteticas territoriais agressivas e a componente militar parece estar em grande parte ausente no projeto de expansatildeo Os intuitos de cariz essencial-mente comercial que subjazem a este processo poderatildeo ter amenizado numa primeira fase eventuais confrontos com as comunidades locais uma vez que as transaccedilotildees seriam beneacuteficas pelo menos nos quadros sociopoliacuteticos superiores para ambas partes intervenientes A difusatildeo de valores culturais orientais pode ser encarada como uma consequecircncia espontacircnea da fixaccedilatildeo de gentes feniacutecias em novos territoacuterios O seu efeito foi contudo evidente dado que resultou na criaccedilatildeo de uma koine cultural orientalizante que em algumas zonas como eacute o caso do ocidente Atlacircntico do territoacuterio peninsular57 soacute seraacute substituiacuteda com a romanizaccedilatildeo

Com efeito durante a fase inicial da Idade do Ferro (seacutec IX a VI aC) a cultura material do litoral do Mediterracircneo Central e Ocidental assim como da fachada atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e de Marrocos reveste-se de caracte-riacutesticas que satildeo facilmente rastreaacuteveis na sua geacutenese ao mundo oriental ainda que possam ter adquirido posteriormente feiccedilotildees mais regionais No quadro das produccedilotildees ceracircmicas dominam os vasos feitos a torno que se integram nas principais categorias morfo-funcionais do mundo semita (ceracircmicas de engobe vermelho acircnforas de transporte de produtos alimentares vasos de armazena-mento com decoraccedilotildees pintadas etc) Os modelos arquitetoacutenicos substanciados em estruturas de planta ortogonal por vezes organizadas em torno a paacutetios cen-trais e as proacuteprias teacutecnicas construtivas utilizadas revestem-se tambeacutem elas de um claro cariz oriental encontrando-se difusas por todas as aacutereas directa ou in-diretamente afetadas pela diaacutespora feniacutecia Mesmo no plano religioso funeraacuterio e cultual satildeo frequentes as manifestaccedilotildees que se podem relacionar diretamente com esse processo como se verifica pela adoccedilatildeo de cacircnones orientais na cons-truccedilatildeo de edifiacutecios religiosos nas evidecircncias do culto de divindades do Proacuteximo Oriente e na ampla disseminaccedilatildeo de praacuteticas e ritos funeraacuterios feniacutecios58

feniacutecia ocidental ndash Wagner 200557 Arruda 1999-2000 Sousa 201658 Entre outros Arruda 1999-2000 Aubet 1994 Frankestein 1997 Loacutepez Castro 2007

Ruiz Mata et Celestino Peacuterez 2001

149

Elisa de Sousa

Contudo reconstituir a histoacuteria de periacuteodos tatildeo remotos e em territoacuterios tatildeo perifeacutericos face aos nuacutecleos primaacuterios da produccedilatildeo de documentos escritos esbarra inevitavelmente na ausecircncia de dados concretos que permitam confir-mar ou refutar modelos interpretativos O registo arqueoloacutegico por si soacute eacute em grande parte insuficiente na medida em que os dados que se podem extrair des-tes vestiacutegios do passado satildeo pela sua natureza muito limitados A dificuldade de avaliar a multiplicidade do seu significado e de compreender o seu contexto cultural nas vaacuterias dimensotildees existentes entre o indiviacuteduo e a comunidade pode por vezes desmotivar tentativas de interpretaccedilatildeo do passado

Compreender a verdadeira essecircncia dos primeiros contactos estabelecidos entre colonos feniacutecios e comunidades indiacutegenas torna-se assim numa tarefa virtualmente impossiacutevel Eacute inegaacutevel que os grupos intervenientes neste processo satildeo heterogeacuteneos na sua composiccedilatildeo Cada comunidade indiacutegena envolve um grau de complexidade que escala divisotildees sociais no seu interior Entre escravos agricultores metalurgistas sacerdotes e elites poliacutetico-sociais oscilam valores costumes e praacuteticas culturais assim como a sua interpretaccedilatildeo de fenoacutemenos contemporacircneos Os proacuteprios grupos feniacutecios natildeo satildeo por outra parte uma entidade homogeacutenea Apesar do peso que Tiro seguramente exerceu na diaacutespora para Ocidente a presenccedila de indiviacuteduos com origens distintas quer em termos geograacuteficos (Sidoacuten Biblios Chipre e mesmo de outras aacutereas do Mediterracircneo) quer em termos sociais implica uma multiplicidade cultural que mal consegui-mos ainda interpelar59

Por outro lado eacute tambeacutem indiscutiacutevel que os contactos entre estes grupos heterogeacuteneos natildeo se revestiram de um caraacutecter unilateral e que a sociedade dos colonizadores foi alterada estruturalmente pelas ligaccedilotildees com a multiplicidade de comunidades autoacutectones As diferentes aacutereas orientalizadas exibem com efeito num curto periacuteodo temporal caracteriacutesticas proacuteprias que permitem a sua ulterior individualizaccedilatildeo

No entanto e apesar de todas as condicionantes previamente indicadas a sobrevivecircncia de elementos culturais feniacutecios nos territoacuterios colonizados e a desestruturaccedilatildeo dos sistemas preacute-existentes refletem a difusatildeo e predomiacutenio de valores costumes e praacuteticas orientais sobre outras comunidades60 No acircmbito destas relaccedilotildees desiguais de domiacutenio e poder laquoculturalraquo pensamos que eacute possiacutevel legitimar a existecircncia de um imperialismo feniacutecio no seu mundo colonial que teraacute vigorado ateacute aos meados do 1ordm mileacutenio aC

59 Beleacuten Deamos 2009 19760 Arruda 1999-2000 2014

150

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

Bibliografia

Arruda Ana Margarida 2014 ldquoA oeste tudo de novo Novos dados e outros modelos interpretativos para a orientalizaccedilatildeo do territoacuterio portuguecircsrdquo In VI Congresso Internacional de Estudos Feniacutecios e Puacutenicos ed A M Arruda 512-35 Lisboa Uniarq ndash Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa

mdashmdashmdash 2010 ldquoFeniacutecios no territoacuterio actualmente portuguecircs e nada ficou como antesrdquo In El Carambolo 50 antildeos de un tesoro 439-52 Sevilla Universidad de Sevilla

mdashmdashmdash 1999-2000 Los feniacutecios en Portugal Feniacutecios y mundo indiacutegena en el centro y sur de Portugal (siglos VIII-VI aC) Cuadernos de Arqueologiacutea Mediterraacutenea 5-6 Barcelona Publicaciones del Laboratorio de Arqueologiacutea de la Universidad Pompeu Fabra

Aubet Maria Eugenia 2012 ldquoEl barrio comercial fenicio como estrategia colonialrdquo Rivista di Studi Fenici 40 (2)221-36

mdashmdashmdash 2008 ldquoPolitical and economical implications of the new phoenician chronologiesrdquo In Beyond the homeland Markers in Phoenician chronology ed C Sagona 179-91 Leuven Peeters

mdashmdashmdash 2000 ldquoAspects of Tirian trade and colonization in the Eastern Mediterraneanrdquo Munsterche Beitrage zur Antiken Handelsgeschichte 19 (1)70-120

mdashmdashmdash 1994 Tiro y las colonias feniacutecias de Occidente Edicioacuten ampliada y puesta al diacutea Barcelona Criacutetica

Aubet Maria Eugenia P Carmona E Curiagrave A Delgado A Fernaacutendez Cantos e M Paacuterraga 1999 Cerro del Villar 1 El asentamiento fenicio en la desembocadura del rio Guadalhorce y su interaccioacuten con el hiterland Sevilla Junta de Andalucia

Azuar R P Rouillard E Gailledrat F Sala Selleacutes e A Badie 1998 ldquoEl asentamiento orientalizante e ibeacuterico antiacuteguo de laquoLa Rabitaraquo (Guardamar del Segura Alicante) Avance de las excavaciones 1996-1998rdquo Trabajos de Prehistoria 55 (2)111-26

Beleacuten Deamos M 2009 ldquoPhoenicians in Tartessosrdquo In Colonial Encounters in Ancient Iberia 193-228 Chicago Chicago University Press

Bikai P M 1983 ldquoThe Imports from the Eastrdquo In Palaepaphos-Skales An Iron Age Cemetery in Cyprus ed V Karageorghis Vol 2 396-406 Konstanz Universitatverlag Konstanz Deutsches Archaoligisches Institut

Bunnens G 1985 ldquoLe luxe pheacutenicien drsquoapregraves les inscriptions royales assyriennesrdquo Studia Phoenicia 3121-33

Bush B 2006 Imperialism and postcolonialism Harlow Pearson Education

151

Elisa de Sousa

Delgado Hervaacutes A 2008 ldquoColonialismos fenicios en el sur de Iberia Historias precedentes y modos de contactordquo In De Tartessos a Manila Siete estuacutedios coloniales y poscoloniales 19-32 Valencia Universidad de Valencia

Delgado A e M Ferrer 2007 ldquoCultural Contacts in Colonial Settings The construction of New Identities in Phoenician Settlements of the Western Mediterraneanrdquo Stanford Journal of Archaeology 518-42

Dietler M 2009 ldquoColonial Encounters in Iberia and the Western Mediterraneanrdquo In Colonial Encounters in Ancient Iberia 3-48 Chicago Chicago University Press

Docter R H Niemeyer A J Nijboer e J Van der Plicht 2005 ldquoRadiocarbon dates of animal bones in the earliest levels of Carthagerdquo In Oriente e Occidente metodi e discipline a confront Riflesioni sulla cronologia dellrsquoetaacute del Ferro in Italia ed G Bartoloni e F Delpino 557-77 Roma Istituti Editoriali Poligrafici Internazionali

Finkelstein I e N A Silberman 2007 David y Salomoacuten en busca de los reyes sagrados de la Biblia y las raices de la tradicioacuten occidental Madrid Siglo XXI

Filkensten I e E Piasetvsky 2009 ldquoRadiocarbon-dated destruction layers a skeleton for Iron Age chronology in the Levantrdquo Oxford Journal of Archaeology 28 (3)255-74

mdashmdashmdash 2006 ldquo14C and Iron Age chronological debate Rehov Khibet-en-Nahas Dan and Megiddordquo Radiocarbon 48 (3)373-86

Frankenstein S 1997 Arqueologia del colonialismo El impacto fenicio y griego en el sur de la Peninsula Iberica y el suroeste de Alemania Barcelona Criacutetica

Galaacuten E e M Ruiz-Galveacutez Priego 2007 ldquoWriting ciphers self-consciousness and private trade at the eve of the Phoenician colonizationrdquo In VI Congresso Internacional de Estudos Feniacutecios e Puacutenicos ed A M Arruda 229-37 Lisboa Uniarq Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa

Gonzaacuteles de Canales F L Serrano e J Llompart 2005 El emporio fenicio precolonial de Huelva (ca 900-770 aC) Madrid Biblioteca Nueva

Jankowska N B 1969 ldquoSome problems of the economy of the Assyrian empirerdquo In Ancient Mesopotamia Socio-economic History A Collection of Studies by Soviet Scholars 253-76 Moscow USSR Academy of Science

Gonzaacutelez Prats A 1998 ldquoLa Fonteta El asentamiento fenicio de la desembocadura del riacuteo Segura (Guardamar Alicante Espantildea) Resultados de las excavaciones de 19961997rdquo Rivista di Studi Fenici 26 (2)191ndash28

Karageorghis V 1987 ldquoChronique des fouilles et deacutecouvertes agrave Chypre 1986rdquo Bulletin de Coacuterrespondence Helleacutenique 111 (2)663-733

mdashmdashmdash ed 1983 Palaepaphos-Skales An Iron Age Cemetery in Cyprus Konstanz Universitatverlag Konstanz Deutsches Archaoligisches Institut

152

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

Liverani Mario 2005 Maacutes Allaacute de la Biblia Historia Antigua de Israel Barcelona Criacutetica

Castro J L Loacutepez ed 2007 Las ciudades fenicio-puacutenicas en el Mediterraacuteneo Occidental Almeria Universidad de Almeria Centro de Estudios Fenicios y Punicos

Markoe Glenn 2000 Phoenicians Berkeley University of California PressMartiacuten Ruiz J A 2010 ldquoHiram I rey de Tirordquo Herakleion 37-35Mauss M 1970 The Gift Forms and functions of Exchange in archaic societies

London Cohen and WestMederos Martiacuten A 2006 ldquoFenicios en Huelva en el siglo X AC durante el

reinado de Hiratildem I de Tirordquo Spal 15167-88mdashmdashmdash 1996 ldquoLa conexiacuteon levantino-chipriota Indicios de comercio atlaacutentico

com el Mediterraacutenel Oriental durante el Bronce Final (1150-950 a C)rdquo Trabajos de Prehistoria 52 (5)95-115

Nuacutentildeez F J 2015 ldquoReflexiones sobre la cronologia de los iniacutecios de la Edad del Hierro en el Mediterraacuteneo ocidental y sus problemasrdquo Cuadernos de Prehistoria y Arqueologia de la Universidad Autoacutenoma de Madrid 4123-37

Parise N 2000 La nacita della moneta Segni premonetari e forme archaiche dello scambio Roma Donzelli editore

Shaw J 1998 ldquoKommos in Southern Crete na Aegean barometer for East-West interconnectionsrdquo In Eastern Mediterranean Cyprus- Dodecanese-Crete 16th ndash 6th cent BC ed V Karageorghis e N Stampolidis 13-28 Atenas Universidade de Creta A G Leventis Foundation

Sousa E 2016 ldquoA Idade do Ferro em Lisboa uma primeira aproximaccedilatildeo a um faseamento cronoloacutegico e agrave evoluccedilatildeo da cultura materialrdquo Cuadernos de Prehistoria y Arqueologia de la Universidad Autoacutenoma de Madrid 42167-85

mdashmdashmdash 2015 ldquoThe Iron Age occupation of Lisbonrdquo Madrider Mitteilungen 56109-38

Rouillard P E Gailledrat e F Sala Selleacutes 2007 Lrsquoeacutetablissement protohistorice de La Fontenta (fin VIIIe ndash fin VIe siegravecle av J C) Madrid Casa de Velaacutezquez

Ruiz L A e C Wagner 2006 ldquoDavid Salomoacuten e Hiran de Tiro una relacioacuten desigualrdquo Isimu 8107-12

Ruiz-Galveacutez Priego M 2013 Con el feniacutecio en los talones Los inicios de la Edad del Hierro en la cuenca del Mediterraacuteneo Barcelona Bellaterra Arqueologiacutea

mdashmdashmdash ed 2005 Territorio nuraacutegico y paisaje antiguo La meseta de Pranemuru (Cerdentildea) en la Edad del Bronce Madrid Universidad Complutense

153

Elisa de Sousa

Ruiz Mata D e S Celestino Peacuterez eds 2001 Arquitectura oriental y Arquitectura orientalizante en la Peniacutensula Ibeacuterica Madrid Consejo Superior de Investigaciones Cientificas

Tomlinson J 1991 Cultural Imperialism a critical introduction London Continuum

Torres Ortiacutez M E Loacutepez Rosendo J M Gener Basallote M A Navarro Garciacutea e J M Pajuelo Saacuteez 20014 ldquoEl material ceracircmico de los contextos fenicios del ldquoTetaro Coacutemicordquo de Caacutediz un anaacutelisis preliminarrdquo In Los Fenicios en la Bahiacutea de Caacutediz Nuevas investigaciones ed M Botto 51-82 Pisa Roma Fabrizio Serra

Wagner C 2005 ldquoFenicios en el Extremo Occidente conflito y violencia en el contexto colonial arcaicordquo Revista Portuguesa de Arqueologia 8 (2)177-92

Wagner C e J Alvar 2003 ldquoLa colonizacioacuten agriacutecola en la Peniacutensula Ibeacuterica Estado de la cuestioacuten y nuevas perspectivasrdquo In Ecohistoria del paisaje agrario La agricultura fenicio-puacutenica en el Mediterraacuteneo 187-203 Valencia Universitat de Valencia

mdashmdashmdash 1989 ldquoFenicios en Occidente la colonizacioacuten agriacutecolardquo Rivista di Studi Fenici 1761-102

Zaccagnini C 1984 ldquoLa circolazione dei beni di lusso nelle fonti neo-assirerdquo Opus 3235-47

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

155

Marcel L Paiva do Monte

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio1

(Decapitation and exhibition of the enemy as discourse and exercise of power in the Neo-Assyrian empire)

Marcel L Paiva do Monte(marcelpetroskigmailcom ORCID 0000-0002-2811-3459)

CHAM - Centro de Humanidades NOVA FCSHUAc

Resumo - Em contextos de violecircncia militar ou venatoacuteria a decapitaccedilatildeo eacute um ato de inusitada atrocidade cujo propoacutesito eacute sobretudo simboacutelico e semioacutetico Ato de propa-ganda elemento de rituais ou signo de triunfo a apropriaccedilatildeo da cabeccedila de um inimigo ndash componente visiacutevel fundamental da identidade e do ser ndash eacute uma sineacutedoque poderosa que manifesta a sua derrota e a ruiacutena de tudo o que representa para o vitorioso Neste trabalho satildeo expostas reflexotildees sobre o papel da caput hostis como instrumento discursivo do poder poliacutetico na Assiacuteria do I mileacutenio aC estabelecendo diferentes significados produzidos pelas suas modalidades de expressatildeo visual e textual

Palavras-chave Decapitaccedilatildeo Guerra Assiacuteria Assurbaniacutepal Teumman

Abstract ndash In military or venatory contexts of violence decapitation is a startling atrocity with a mostly symbolic and semiotic purpose An act of propaganda element of rituals or sign of triumph the appropriation of an enemyrsquos severed head ndash a crucial visible component identity and self ndash acts as a powerful synecdoche that manifests its physical defeat and the ruin of everything he stands for to the victor In this work are presented a few reflections concerning the role of the caput hostis as discoursive instrument of political power in Assyria during the 1st millennium BCE establishing some of the different meanings produced by several modes of textual and visual expressions

Keywords Decapitation Warfare Assyria Ashurbanipal Teumman

A decapitaccedilatildeo de um inimigo e a exibiccedilatildeo da sua cabeccedila como trofeacuteu tem um significado autoevidente a derrota e humilhaccedilatildeo de um homem e a suprema

1 Abreviaturas usadas CAH III-2 1991 ndash The Cambridge Ancient History Vol 3 part 2 The Assyrian and Babylonian Empires and other States of the Near East from the Eighth to the Sixth Centuries BC OIP 2 ndash Luckenbill D D 1924 The Annals of Sennacherib (Oriental Institute Publications 2) RIMA 2 ndash Grayson A K 1991 Assyrian Rulers of the Early First Millennium BC I (1114-859 BC) RINAP 31 ndash Grayson A Kirk Novotny Jamie (eds) 2012 The Royal Inscriptions of Sennacherib King of Assyria (704ndash681 BC) Part 1 SAA IV ndash Queries to the Sungod Divination and Politics in Sargonid Assyria (State Archives of Assyria IV) SAA IX ndash Assyrian Prophecies (State Archives of Assyria IX) SAA XI ndash Imperial Administrative Records Part II Provincial and Military Administration (State Archives of Assyria XI) ARAB ndash Luckenbill D D 1968 Ancient Records of Assyria and Babylonia 2 vols New York Greenwood Press

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_8

156

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

vitoacuteria de outro Utilizando essa demonstraccedilatildeo o vitorioso afirma dispor com-pletamente do adversaacuterio atraveacutes do seu corpo A cabeccedila do inimigo prova cabal da vitoacuteria converte-se tambeacutem num signo que a reifica que a torna visiacutevel e sensiacutevel imprimindo-a nas mentes de todos a quem tal exibiccedilatildeo pudesse ser dirigida

Estas observaccedilotildees serviratildeo aqui como mote a um estudo mais especiacutefico de um caso que permite observar num contexto histoacuterico concreto um exemplo da construccedilatildeo do imaginaacuterio acerca do rei no impeacuterio neo-assiacuterio Este rei idea-lizado Assurbaniacutepal seraacute contrastado com a imagem mais mundana de outro monarca que era natildeo apenas estrangeiro mas tambeacutem inimigo da Assiacuteria (logo um laquoanti-reiraquo) Teumman rei do Elam De tal comparaccedilatildeo resulta inevitaacutevel a derrota do Elamita cujo destino seria catastroacutefico desmascarado e exposto pela retoacuterica assiacuteria tambeacutem o relato da sua morte violenta e os seus restos mortais foram utilizados como veiacuteculos de propaganda uma oportunidade para refor-ccedilar a feiccedilatildeo imaginada positiva poderosa e legiacutetima do rei da Assiacuteria Este tema do argumentaacuterio poliacutetico neo-assiacuterio surge em representaccedilotildees visuais e textuais elaboradas entre os seacuteculos X e VII aC A decapitaccedilatildeo de Teumman durante a batalha de Til Tuba e a representaccedilatildeo de escribas assiacuterios inventariando o nuacutemero de inimigos mortos atraveacutes da contagem das suas cabeccedilas empilhadas satildeo dois aspetos diferentes do mesmo topos visual embora com significados opostos que alternam entre conhecimento (epistegraveme) e obliacutevio atributos de vitoacuteria e de derrota respetivamente

1 O teatro da violecircncia

A guerra e a vitoacuteria militar eram temas privilegiados na representaccedilatildeo do poder nos mais variados contextos geograacuteficos e culturais do Proacuteximo Oriente antigo Nesse acircmbito temaacutetico geral a violecircncia e a mutilaccedilatildeo de inimigos der-rotados eram elementos retoacutericos frequentes no registo iconograacutefico e textual A guerra e a sua violecircncia conduzida pelo poder integravam um discurso que acentuava a componente militar da realeza refletindo a capacidade do soberano de conservar e alargar natildeo apenas o territoacuterio mas tambeacutem a disponibilidade de recursos materiais Refletia tambeacutem de uma forma apologeacutetica a imposiccedilatildeo da paz domeacutestica e da tranquilidade externa pelo uso da forccedila Tal discurso expressava uma cultura poliacutetica com elementos comuns em vaacuterios contextos no Proacuteximo Oriente pese embora as diferenccedilas culturais por vezes profundas entre regiotildees como o Egito a Siacuteria ou a Mesopotacircmia

A decapitaccedilatildeo do inimigo enquanto topos iconograacutefico seria algo inco-mum na Mesopotacircmia ao contraacuterio do que sucedia por exemplo em certas regiotildees da Siacuteria Neste quadro o tema constituiria mais um dos vetores da in-fluecircncia cultural siro-hitita sobre a Assiacuteria como foi exposto por Rita Dolce que

157

Marcel L Paiva do Monte

seguindo caminhos abertos por Irene J Winter2 fornece uma perspetiva acerca da adoccedilatildeo do tema do inimigo decapitado nas inscriccedilotildees reais e na iconografia assiacuteria Como modelos e antecedentes para esta influecircncia artiacutestica e discursiva Dolce refere peccedilas iconograacuteficas siacuterias como o laquoestandarteraquo de Ebla ou esculturas produzidas no reino siro-hitita de Carchemiš3

Na Assiacuteria de facto este tema comeccedila a ser mais identificaacutevel nas inscri-ccedilotildees reais ao mesmo tempo que pela primeira vez surge o geacutenero analiacutestico durante o reinado de Tiglat-Falasar I4 Desde entatildeo vaacuterios reis assiacuterios relatam nas suas inscriccedilotildees com maior ou menor frequecircncia as crueldades incluindo a decapitaccedilatildeo infligidas sobre os inimigos derrotados Apesar de tais atos natildeo serem praticados de forma sistemaacutetica mas seletiva de acordo com o grau de ofensa cometida contra o poder assiacuterio e a relaccedilatildeo com ele preacute-existente5 a sua representaccedilatildeo nos programas artiacutesticos e nas inscriccedilotildees reais passam a assumir alguma preponderacircncia

Aššurnaṣirpal II foi um dos reis que utilizou com maior fulgor nos seus textos analiacutesticos o relato das seviacutecias punitivas perpetradas contra populaccedilotildees hostis Eacute possiacutevel citar como exemplo uma campanha que este efetuou contra o reino de Bicirct-Adini durante a qual ordenou o esfolamento de um grande nuacutemero de oficiais e soldados Ao proacuteprio rei inimigo a mesma medida foi aplicada antes de os seus restos mortais serem exibidos como sinal de vitoacuteria6 Referindo-se a outra ocasiatildeo Aššurnaṣirpal II apresenta mais um exemplo de um rol mais diversificado de tormentos cometidos contra inimigos insubmissos

laquoQueimei muitos cativos entre eles Capturei muitos soldados vivos a alguns cortei os braccedilos e as matildeos a outros cortei os narizes as orelhas e as extremidades Arranquei os olhos de muitos soldados Fiz uma pilha com os vivos e uma outra com cabeccedilas Pendurei as suas cabeccedilas em aacutervores em torno da cidaderaquo7

Num dos relevos esculpidos do palaacutecio de Aššurnaṣirpal II em Kalḫu eacute possiacutevel observar uma cena na qual cabeccedilas de inimigos satildeo objetos de mofa tal como num jogo soldados assiacuterios descontraem atirando-as uns para os outros Enquanto decorre tal brincadeira muacutesicos tocam os seus instrumentos confer-indo um certo lirismo agrave cena de escaacuternio do inimigo8

2 Dolce 2004 121-32 Winter [1982] 2010 1525-62 Ver tambeacutem Reade 1979 335 Harmanşah 2007 69-99

3 Ver as figs 5-11 em Dolce 2004 124-294 Grayson 1981 38 Tadmor 1997 325-38 (especialmente 327-28) Liverani 1988 763-655 Reed 2007 106 Cf Reade 1979 332-346 RIMA 2 A 01011 i 89-937 RIMA 2 A 01011 i 116-18 8 British Museum BM 124550 (fig 1)

158

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

Todavia a puniccedilatildeo de um vencido constituiacutea geralmente um espetaacuteculo puacuteblico mais sofisticado Como este que teraacute tido lugar no reinado de Assaradatildeo apoacutes a sua vitoacuteria contra Sarduaris rei do Urarṭu e Abdi-Milkuti rei de Siacutedon aliados contra a Assiacuteria

laquoPara que o poder de Aššur meu senhor se tornasse manifesto pendurei as suas cabeccedilas nos ombros dos seus nobres e com cacircnticos e muacutesica desfilei pela praccedila de Niacuteniveraquo9

Aleacutem da apropriaccedilatildeo do saque obtido pela guerra o esfolamento a imo-laccedilatildeo a mutilaccedilatildeo de olhos e membros sem esquecer a decapitaccedilatildeo eram alguns dos atos que os textos descreviam e que materializavam de forma pungente a forccedila do mando da Assiacuteria Tais supliacutecios eram cometidos como castigos mas tambeacutem serviam o intuito de propagar uma mensagem intimidatoacuteria junto de inimigos externos fossem estes reais ou meramente potenciais Pretendia-se assim que a fama do poder assiacuterio precedesse a marcha dos seus exeacutercitos A es-sas accedilotildees bem se adequa a expressatildeo de A T Olmstead que haacute muitas deacutecadas qualificou este tipo de discurso e de exerciacutecio de poder praticado pelos Assiacuterios como um modo de calculated frightfulness10

Esta brutalidade exercida pelo poder que ocorria sem duacutevida no plano da realidade e era projetada no plano da representaccedilatildeo literaacuteria e iconograacutefica adequa-se agrave qualificaccedilatildeo de laquofesta punitivaraquo que Michel Foucault atribuiu agrave pena e tortura capital aplicadas nos contextos por ele estudados11 Entre os objectivo da teatralizaccedilatildeo em torno de muitos supliacutecios infligidos sobre os corpos de solda-dos e reis inimigos natildeo estaria alheia a tentativa de gerar o temor e de dissuadir as revoltas um dos laquoefeitos positivosraquo que Foucault postula surgirem com a demonstraccedilatildeo da capacidade de violecircncia do poder

Esperar-se-ia que esses efeitos fossem gerados no contexto assiacuterio pela exibiccedilatildeo da violecircncia como laquotaacutetica poliacuteticaraquo12 que passaria tambeacutem em uacuteltimo plano pela execuccedilatildeo de um programa artiacutestico e pela utilizaccedilatildeo de uma retoacuterica textual e visual que induzisse determinados comportamentos por parte dos seus recetores13

Os efeitos da continuidade do emprego destes mecanismos de intimidaccedilatildeo ao longo da expansatildeo assiacuteria podem ser exemplificados por um trecho extraiacutedo

9 ARAB II sect 51410 Olmstead 1918 209-6311 Foucault 1975 1512 Foucault 1975 3113 Essas reaccedilotildees seriam naturalmente distintas consoante os observadores fossem estes

membros da elite proacutexima do poder pessoas de baixa extracccedilatildeo que tivessem o privileacutegio de en-trar num palaacutecio assiacuterio ou mesmo dignitaacuterios refeacutens ou prisioneiros estrangeiros reverecircncia ou identificaccedilatildeo por parte de uns temor e admiraccedilatildeo por parte de outros

159

Marcel L Paiva do Monte

da ceacutelebre Carta ao deus Aššur documento redigido no reinado de Sargatildeo II Este texto pertencente ao geacutenero literaacuterio das laquocartas aos deusesraquo relata a sua oitava campanha desencadeada contra as regiotildees montanhosas que rodeavam a Assiacuteria junto ao Urarṭu e agrave Meacutedia Um trecho escolhido serve como demons-traccedilatildeo do efeito dissuasor que se esperava provocar pela fama da capacidade militar assiacuteria

laquoContra Parsuaš me dirigi Os chefes da terra de Namri Sangibuti Bicirct-Abdadani e da terra dos poderosos Medos sabendo da vinda da minha expediccedilatildeo ndash como a devastaccedilatildeo das suas terras que tivera lugar no ano anterior estava ainda na sua memoacuteria o terror abateu-se sobre elesraquo14

A menccedilatildeo a estas brutalidades exercidas sobre os vencidos surge nas fontes textuais geralmente apoacutes a referecircncia agrave accedilatildeo beacutelica propriamente dita Natildeo se tratando assim de atos de guerra tout court seriam entendidos tambeacutem como a execuccedilatildeo de uma decisatildeo judicial equivalente agrave pena capital (dicircn napištim) uma das prerrogativas que na Mesopotacircmia era tradicionalmente exclusiva do rei Por isso mesmo num diferente niacutevel semacircntico laquocrimeraquo e laquocriminosoraquo eram expressotildees aplicadas tambeacutem a inimigos externos sobre os quais recairia a laquopenaraquo ou castigo laquojudicialraquo ndash a guerra punitiva cuja execuccedilatildeo se concebia como autorizada encorajada e confiada pelos deuses ao rei15

De facto do ponto de vista ideoloacutegico o rei assiacuterio afirmava-se como laquoo rei que com a ajuda de Aššur e de Šamaš os deuses que nele confiam age justa-menteraquo šarru ša ina tukūlti dAššur u dŠamaš ilāni tikli-šu mešeriš16 ou como o laquoguardiatildeo do que eacute correto e amante da justiccedilaraquo naṣir kitti u rarsquoim mešari17 Neste sentido a guerra natildeo era apenas concebida como fenoacutemeno unicamente situado num plano poliacutetico e militar mas apresentada como a justa retribuiccedilatildeo perante um casus belli cuja culpa recairia sempre no adversaacuterio segundo o discurso ideoloacutegico estruturante das inscriccedilotildees reais18 O inimigo era visto como um laquocri-minosoraquo um laquopecadorraquo o uacutenico responsaacutevel pelo seu proacuteprio castigo sofrido agraves matildeos do rei assiacuterio que mais natildeo faria do que agir como verdugo dos deuses na terra19 Senaquerib justifica desta forma a sua primeira campanha desencadeada

14 Extraiacutedo da ediccedilatildeo de Thureau-Dangin 1912 3915 Uma siacutentese fundamental sobre a guerra como ato de justiccedila em Oded 1992 29-4416 Aššurnaṣirpal II RIMA 2 A01011 i 2217 Senaquerib OIP 2 23 H2 i 4-518 Oded 1992 3019 Tal conceccedilatildeo do monarca como instrumento como arma de guerra utilizado pela divin-

dade eacute um elemento comum nas culturas do Proacuteximo Oriente antigo Ressurge com frequecircncia no Antigo Testamento por exemplo no oraacuteculo do profeta Isaiacuteas contra os Assiacuterios que satildeo designados pelas palavras de Yahweh como laquovara da minha coacuteleraraquo laquobastatildeo do meu furorraquo e como um laquomachadoraquo manejado pelo proacuteprio Deus (Is 10 5-16) Cf o versiacuteculo em que Yahweh vitupera a hybris do rei da Assiacuteria que na perspetiva do profeta biacuteblico contraria a confianccedila nas

160

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

contra os rebeldes caldeus na Babiloacutenia comandados por Marduk-apla-iddina liacuteder da tribo de Bicirct-Yakīn Este eacute apresentado como um laquo[instigador] de revoltas [baranū] um maquinador de traiccedilatildeo [karaš surrāti] causador de males [epeš limutti] cuja vilania eacute grande [ša anzilla-šu kabtu]raquo20

Seguindo Bustenay Oded pode entender-se este contraste entre os atributos do soberano assiacuterio com os dos seus adversaacuterios como um elemento moral de justificaccedilatildeo para a guerra Legitimar-se-ia assim a expansatildeo militar atraveacutes de laquoargumentos eacuteticosraquo que a explicavam e enquadravam numa conceccedilatildeo de laquoguerra justaraquo21 Esses argumentos faziam parte de um discurso e de uma retoacuterica que refletia os paracircmetros ideoloacutegicos que sustentavam a expansatildeo militar assiacuteria natildeo apenas por intermeacutedio de textos como as inscriccedilotildees reais mas tambeacutem com o recurso a imagens e peccedilas monumentais que preenchiam os palaacutecios assiacuterios22

2 Assurbaniacutepal vs Teumman

Um dos conjuntos monumentais assiacuterios mais importantes pela sua riqueza narrativa e execuccedilatildeo artiacutestica eacute constituiacutedo por vaacuterios ortoacutestatos esculpidos em baixo-relevo que pertenciam ao Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive construiacutedo por Senaquerib Este complexo palaciano fora utilizado mais tarde pelo seu neto As-surbaniacutepal que nele concentrou tambeacutem os esforccedilos da sua produccedilatildeo simboacutelica Parte desse esforccedilo resultou nos relevos que retratam a batalha de Til Tuba travada contra os Elamitas no ano de 653 (ou 664) aC episoacutedio culminante de uma conjuntura agitada no quadro do difiacutecil relacionamento entre a Assiacuteria e o Elam23

Apoacutes um periacuteodo de paz inaugurado ainda no reinado de Assaradatildeo24 Urtaku rei do Elam fora deposto por um indiviacuteduo chamado Teumman que se dispocircs a desencadear o conflito latente com a Assiacuteria Teumman eacute designado com

divindades e conta apenas com a sua arrogacircncia e poder laquoAcaso gloriar-se-aacute o machado contra quem o manejaraquo (Is 1015) ie o rei mortal contra a entidade divina que o instrumentaliza

20 OIP 248 A1 621 O objectivo desta argumentaccedilatildeo era segundo Bustenay Oded laquoto endow moral sanction

to Assyrian violence by presenting it as the punishment for evildoersraquo (Oded 1992 44)22 Reade 1979 329-43 Bachelot 1991 109-28 Ataccedil 2006 69-101 Algumas publicaccedilotildees

sobre os relevos assiacuterios Barnett 1970 Reade 1998 e Collins 200823 British Museum ME 124801a-c figs 2-4 Sala XXXIII do palaacutecio Sudoeste de Niacutenive Ver

Reade 1979 329-43 Watanabe 2004 103-14 Reed 2007 101-30 Bahrani 2008 22-55 sobre a batalha consultar Fales 2010 202-5 que defende a data de 664 aC Uma siacutentese da conjuntura e das relaccedilotildees entre a Assiacuteria e o Elam Brinkman 1965 161-66 Boardman et al 1991 47-53 147-54

24 Um inqueacuterito oracular (SAA IV 74) dirigido ao deus Šamaš pedido por Assaradatildeo mos-tra as duacutevidas que o lado assiacuterio alimentava sobre a sinceridade da oferta de paz enviada por Urtaku rei do Elam laquoŠamaš grande senhor dai-me uma resposta firme e positiva sobre o que eu vos estou a perguntar se Urtaku rei do Elam enviou a sua proposta para fazer a paz com Assaradatildeo rei da Assiacuteria ndash enviou ele na verdade do seu coraccedilatildeo [ina kitti libbi-šu] palavras verdadeiras e honestas de paz a Assaradatildeo rei da Assiacuteriaraquo

161

Marcel L Paiva do Monte

desprezo por Assurbaniacutepal como algueacutem laquosemelhante a um demoacutenioraquo tamšil gallē25 Apoacutes o rei assiacuterio ter recusado a solicitaccedilatildeo de Teumman para que aquele extraditasse para o Elam os filhos do rei elamita deposto refugiados na Assiacuteria26 travar-se-ia uma batalha em Til Tuba um local situado nas margens do rio Ulaya jaacute bem no interior do Elam

A batalha eacute vividamente retratada nos relevos do Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive atraveacutes de uma composiccedilatildeo narrativa complexa e dinacircmica com um grande cuidado no detalhe nos seus elementos figurativos e em cenas individualizadas que retratam a violecircncia do combate27 Por toda a parte soldados elamitas satildeo chacinados e empurrados para o rio que transporta inuacutemeros cadaacuteveres na sua correnteza O proacuteprio Assurbaniacutepal afirma que laquocom os seus cadaacuteveres bloqueei o rio Ulayaraquo28

Neste sentido o combate um acontecimento histoacuterico e as aacuteguas do rio elemento fiacutesico e concreto de uma paisagem real servem como perfeitas metaacuteforas para a funccedilatildeo intemporal atribuiacuteda agrave realeza de combater o caos e expulsar o inimigo da ordem civilizada que o rei tinha a obrigaccedilatildeo de estabe-lecer ou restaurar Este elemento aquaacutetico para onde era empurrado o exeacutercito elamita levava os mortos expulsos de volta para a esfera do caos do indistinto identificando-se de algum modo com a accedilatildeo de um laquodiluacutevioraquo (abūbu)

Assurbaniacutepal o rei assiacuterio estaacute no entanto ausente dos relevos que ex-potildeem o combate de Til Tuba Pelo contraacuterio em todo o conjunto da composiccedilatildeo Teumman eacute um elemento constante O rei do Elam e a sua cabeccedila surgem em vaacuterias accedilotildees que ocorrem ao longo da composiccedilatildeo Decapitado diante do proacuteprio filho29 por um soldado comum a sua cabeccedila eacute transportada ao longo de vaacuterios momentos da narrativa visual para ser entregue ao rei assiacuterio O momento em que se consuma tal encomenda natildeo surge representado visualmente mas tal se afirma textualmente nos anais de Assurbaniacutepal30 e na epiacutegrafe inscrita sobre uma das cenas da batalha que representa um soldado servindo agora como correio transportando velozmente a cabeccedila

laquoCabeccedila de Teumman rei do Elam que no meio da batalha um soldado comum do meu exeacutercito cortou Para me dar as boas novas despacharam-na velozmente para a Assiacuteriaraquo31

25 Piepkorn 1933 60-61 B iv 7426 Piepkorn 1933 61-63 B iv 87-9927 Ver abaixo figs 2-428 Piepkorn 1933 68-69 B v 97 Ver ARAB II sect 1072 Russell 1999 159 3529 O seu filho Tammaritu sofreria o mesmo destino que o pai laquoCom o encorajamento de

Aššur e Ištar matei-os As suas cabeccedilas eu cortei um diante do outroraquo (Gerardi 1988 31)30 Piepkorn 1933 61 B vii 61 laquoa cabeccedila cortada de Teumman que um soldado comum do

meu exeacutercito decapitouraquo nikis qaqqadi Teumman ša ikkisu aḫurū ummanatē-ia31 Citado a partir de Gerardi 1988 29 Cf Russell 1999 159 10a

162

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

De facto a cabeccedila do malogrado rei elamita eacute a componente principal de todos os paineacuteis aos quais confere coerecircncia narrativa32 A sua importacircncia enquanto princiacutepio fundamental de toda a composiccedilatildeo eacute reafirmada poreacutem em outro painel de relevo celebrizado pela designaccedilatildeo de Cena do Banquete neste relevo em abrupto contraste com a desordem violenta da batalha Assurbaniacutepal e a sua consorte satildeo representados em ameno bivaque num espaccedilo paciacutefico nos jardins de um palaacutecio onde aves plantas e aacutervores servos e muacutesicos compotildeem uma cena que se pode qualificar como idiacutelica33 No interior desse espaccedilo de tran-quilidade a cabeccedila de Teumman surge pendurada numa aacutervore introduzindo na composiccedilatildeo um aspeto contraditoacuterio Que niacuteveis de significado se podem aferir de todo este conjunto artiacutestico

A cabeccedila de um rei no plano simboacutelico eacute uma sineacutedoque representando a sua comunidade de suacutebditos a sua verdadeira quase literal caput regni Por este motivo o rei assume uma qualidade abstrata idealizada ou imaginada Se essa imaginaccedilatildeo acerca do rei incorre num certo grau de objetificaccedilatildeo por parte de muitos dos que com ele convivem e que agrave sua volta gravitam em proximidade ela tornar-se-ia mais forte pelo contraacuterio agrave medida que o sujeito que o imagina se acha social e geograficamente mais distante Essa abstraccedilatildeo de um modo comum aos mais diversos contextos histoacutericos e culturais do poder poliacutetico seria encorajada pelos rituais do poder pelo protocolo e outros mecanismos sociais que instituiacuteam juriacutedica e socialmente essa distacircncia entre o soberano e os outros seres humanos incluindo os seus suacutebditos34

A cabeccedila do rei do Elam que governava um paiacutes distante hostil e poderoso possuiria certamente essa feiccedilatildeo indistinta e imaginada nas mentes dos Assiacuterios que a dado momento se tornaram seus inimigos A sua forccedila como ideia seria naturalmente maior entre os soldados comuns do exeacutercito assiacuterio que ao contraacuterio das elites e populaccedilotildees residentes nas capitais teriam tambeacutem pouco ou nenhum conhecimento direto e concreto do seu proacuteprio soberano Assurbaniacutepal tambeacutem ele envolto numa espeacutecie de laquoneacutevoaraquo ritual sacra e protocolar do poder35

Teumman surge representado em modo metafoacuterico no relatoacuterio de um oraacuteculo remetido a Assurbaniacutepal relacionado diretamente com esta conjuntura de conflito O Elamita parece ser comparado a uma serpente (ṣerru) que o deus comunica o oraacuteculo teria arrancado do interior de uma arma (uma maccedila ou bastatildeo narrsquoamtu) e laquocortado aos pedaccedilosraquo

laquoPalavras sobre os Elamitas [o] deus diz assim ldquoFui e vimrdquo Ele disse cinco vezes seis vezes e depois ldquoVim do bastatildeo Arranquei a serpente que estava no

32 Watanabe 2004 103-1433 British Museum ME 124920 (fig 5) Consultar Bahrani 2008 22-55 34 Liverani 1979 302-335 Acerca da vida do rei em contexto de corte consultar Liverani 2009 81-91

163

Marcel L Paiva do Monte

seu interior cortei-a aos pedaccedilos e quebrei o bastatildeordquo Ele disse ldquoDestruirei o Elam O seu exeacutercito seraacute arrasado ao niacutevel da terrardquoraquo36

Atraveacutes deste oraacuteculo a divindade assegurava ao rei assiacuterio que o inimigo como um animal dissimulado e perigoso (uma serpente escondida dentro de uma arma) seria derrotado e deixaria de representar uma ameaccedila Esta metaacute-fora natildeo referindo a decapitaccedilatildeo do Teumman parece situar-se num momento anterior agrave sua morte em batalha e agrave derrota final do Elam em Til Tuba Poreacutem eacute sugestiva acerca do modo como o inimigo era comparado com uma serpente cuja decapitaccedilatildeo poderia trazer a vitoacuteria agrave Assiacuteria37

A decapitaccedilatildeo de Teumman adquire assim um valor simboacutelico poderoso o Elam a entidade coletiva que o sustinha perde a sua caput reacutegia o que significa a perda simboacutelica da sua identidade poliacutetica e da sua independecircncia Este ato promove uma alteraccedilatildeo na qualidade de ente imaginado do rei elamita a partir do momento em que este perde a vida e a cabeccedila nas margens do Ulaya a sua di-mensatildeo abstrata comeccedila a desvanecer-se Teumman o rei do Elam transforma-se gradualmente aos olhos dos seus inimigos e conquistadores em Teumman um homem

A apropriaccedilatildeo final do corpo de Teumman eacute demonstrada nos textos onde Assurbaniacutepal faz relatar como cuspiu na sua cabeccedila cortada38 como a exibiu na cidade de Arbela39 e pelas ruas de Niacutenive colocando-a aos ombros de Dunānu um dos aliados de Teumman que foram capturados40 Em pompa triunfal por entre muacutesica e laquoalegriaraquo o saque do Elam e os inimigos da Assiacuteria foram assim exibidos perante a populaccedilatildeo

laquoA cabeccedila de Teumman rei do Elam pendurei ao pescoccedilo de Dunanu () Com o saque do Elam e os despojos de Gambulu que ao comando de Aššur as minhas matildeos capturaram ndash com cantores e muacutesica entrei em Niacutenive por entre exclamaccedilotildees de alegria [ina ḫidāte]raquo41

Assurbaniacutepal teraacute depois consagrado a cabeccedila do seu inimigo aos deuses efetuando sobre ela libaccedilotildees de vinho em contexto ritual42 Eacute notoacuteria a seme-lhanccedila deste ato com as libaccedilotildees efetuadas sobre os cadaacuteveres dos leotildees mortos

36 SAA IX 8 (traduccedilatildeo portuguesa em Caramelo 2002 205-6) 37 Sugestatildeo de Francisco Caramelo Acerca dos oraacuteculos assiacuterios acerca desta conjuntura

poliacutetico militar consultar Caramelo 2002 232-4038 Bonatz 2004 94 Russell 1999 160 1139 Sobre a parada em Arbela ver referecircncias em tabuinhas cuneiformes que se planeavam

transpor para epiacutegrafes de relevos em ARAB II sectsect 1041 1043 1045 e 107140 Ver imagem 66 em Russell 1999 181 = British Museum ME 12480241 Piepkorn 1933 72-73 B vi 50-56 Ver Russel 1999 160-6142 Bonatz 2004 98-99 Russell 1999 161 14

164

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

pelo rei assiacuterio conforme eacute visiacutevel em vaacuterios dos seus relevos que representam a caccedila como actividade reacutegia43 A este propoacutesito afirma Dominik Bonatz que a oferta da cabeccedila de Teumman aos deuses seria um ritual poliacutetico inaugurado por Assurbaniacutepal que introduz assim de forma algo destoante uma actividade laquoprimitivaraquo no seio de uma sociedade urbana e estatal complexa44

Estas manifestaccedilotildees rituais em agradecimento aos deuses seriam consid-eradas como a prova cabal do ponto de vista ideoloacutegico e religioso da justiccedila da causa de Assurbaniacutepal e do apoio divino a ele dispensado O rei assiacuterio aliaacutes teria recebido a resposta agraves suas preces e duacutevidas atraveacutes de consultas oraculares

laquoIštar ouviu os lamentos que lhe dirigi e disse ldquoNatildeo temasrdquo [la tapallaḫ] e confortou o meu coraccedilatildeoraquo

Pelo contraacuterio ao rei elamita teriam surgido pressaacutegios nefastos dizem os textos assiacuterios provavelmente com engenho criativo e retoacuterico que um eclipse surgira no Elam prevendo a sua derrota45 e que um acidente teria deixado Teumman com alguns problemas de sauacutede O incauto Teumman apresentado como descrente do poder dos deuses ou pelo menos convencido que teria a sua ajuda teria ignorado todos estes avisos a sua proacutepria maacute-feacute e imoralidade teriam atraiacutedo a vinganccedila divina laquoTeumman maquinou males [limutti] o deus Sicircn planeou para ele portentos nefastosraquo46

A sua derrota e decapitaccedilatildeo seriam o corolaacuterio da sua impiedade e atos de injusticcedila Eacute entatildeo que aquilo que era indistinto abstrato imaginado (Teumman rei do Elam) se transformava em algo puacuteblico e conhecido as suas feiccedilotildees reais incluindo as suas caracteriacutesticas fiacutesicas concretas e proacuteprias (por exemplo as rugas a textura e cor da pele eventuais assimetrias do rosto)47 tornam-no aos olhos dos que o podem agora contemplar na sua destruiccedilatildeo num ser humano exposto no seu momento mais fraacutegil e vulneraacutevel A exibiccedilatildeo puacuteblica da cabeccedila do rei elamita destroacutei o mito da sua realeza mas natildeo a sua identidade humana em contraste com o soberano assiacuterio a quem os deuses teriam conferido laquoforccedila virilidade e um exaltado poderraquo dunnu zikrūtu emuqān ṣirāti48 Ao contraacuterio do que defende Davide Nadali relativamente agrave representaccedilatildeo do laquoinimigoraquo em geral Teumman natildeo eacute viacutetima de um annullamento49 Pelo contraacuterio a exibiccedilatildeo triunfal

43 Como eacute notado por Bonatz 2004 98 Ver Reade 1998 72-7944 Bonatz 2004 10045 Piepkorn 1933 B v 4-8 Ver Apecircndice de Joachim Mayr na mesma obra 105-946 Piepkorn 1933 62-63 B v 3-547 Os paineacuteis revelam um pormenor interessante a representaccedilatildeo da cabeccedila de Teumman

revela uma certa calviacutecie depois de cair o seu capacete Eacute especialmente visiacutevel em ME 124801a (registo superior) = fig 4

48 Piepkorn 1933 28-29 B i 1149 Nadali 2011-2003 53-57

165

Marcel L Paiva do Monte

dos seus restos mortais iluminava aquilo que por ser apenas imaginado estava oculto Expotildee-se assim aquilo que na perspetiva assiacuteria era um comportamento subversivo e hostil uma obstinaccedilatildeo ilegiacutetima na fuga ao controlo pelo rei assiacuterio natildeo pertencendo ao domiacutenio da ordem e do cosmos Teumman ao deixar de ser apenas uma ideia ou personagem imaginado de um rei inimigo estrangeiro passa a ser algo conhecido logo conquistado A vitoacuteria obtida contra ele e contra o Elam adquiria assim uma dimensatildeo laquoepisteacutemicaraquo que se pode abstrair atraveacutes da metaacutefora da exposiccedilatildeo e manipulaccedilatildeo impune dos seus restos mortais50

A fase final deste processo de humanizaccedilatildeo ou banalizaccedilatildeo de Teumman eacute natildeo obstante rica em significado A representaccedilatildeo onde o rei assiacuterio eacute re-tratado em convivecircncia tranquila com a sua consorte no jardim rodeados de muacutesicos aves e plantas inclui a imagem da cabeccedila do malogrado rei elamita pendurada numa aacutervore como trofeacuteu51 O propoacutesito deste contraste eacute oacutebvio ao caos da batalha de Til Tuba nas margens de um rio transformado em escoadouro de cadaacuteveres num espaccedilo de desordem e confusatildeo e onde o rei inimigo ainda surge como um ser vivente sucede a ordem e a tranquilidade representada pelo jardim onde Assurbaniacutepal beberica com a sua esposa Nesse jardim Teumman ainda existe mas apenas enquanto resto mortal soacute com o inimigo neste estado derrotado morto e banalizado seria possiacutevel o advento da paz e a construccedilatildeo de um espaccedilo poliacutetico e coacutesmico de ordem Pois enquanto aquele respirasse seriam a chacina o combate e a morte a imperar

A utilizaccedilatildeo do espaccedilo como elemento discursivo natildeo eacute verbalizada de modo expliacutecito poreacutem torna-se evidente que os lugares de algum modo se transformam em atributos da realeza ndash o jardim de Assurbaniacutepal eacute um siacutem-bolo ou uma metaacutefora para o ideal do mundo controlado pela Assiacuteria ameno proacutespero fecundo pacato52 Em oposiccedilatildeo o lugar onde se desenrola a batalha contra os Elamitas situado fora dos domiacutenios assiacuterios eacute um espaccedilo de morte de fuga em estouro nele corre um rio o Ulaya que como o Lethes romano faz escorrer para o apsucirc ie para o esquecimento para o torpor do obliacutevio que caracterizava o marido de Tiamat as veleidades de Teumman em comparar-se a Assurbaniacutepal

3 Vencer fazer esquecer

Em certos contextos do Proacuteximo Oriente antigo decepar e reunir partes dos cadaacuteveres de soldados inimigos como um meio de facilitar a contagem das baixas infligidas parece ter sido uma praacutetica comum Recordemos o Egito em que era costume cortar natildeo somente as matildeos direitas dos inimigos mortos mas

50 Liverani 1979 30751 Bonatz 2004 99-100 (cf Caramelo 2003 92)52 Ver as observaccedilotildees em Caramelo 2003 92

166

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

tambeacutem os seus oacutergatildeos sexuais A espoliaccedilatildeo da virilidade e da forccedila vital do inimigo deveraacute ser vista como um instrumento de caraacutecter laquomaacutegico-punitivoraquo que consubstanciava a vitoacuteria53

Na arte palaciana assiacuteria a decapitaccedilatildeo do inimigo como elemento discur-sivo e propagandiacutestico eacute ainda patenteada em cenas que representam uma dupla de escribas fazendo o trabalho de contagem de cabeccedilas cortadas Este topos visual aparece em diversos relevos assiacuterios a maior parte deles originaacuterios do Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive A contagem das cabeccedilas e natildeo dos corpos parece ter sido uma forma de facilitar esse inventaacuterio jaacute que nessas representaccedilotildees as cabeccedilas satildeo empilhadas diante dos escribas Efetuando um gesto de contagem estes registam as quantidades aferidas em tabuinhas de argila folhas de perga-minho ou papiro e em laquotaacutebuas de ceraraquo (lērsquou)54

Ao contraacuterio da decapitaccedilatildeo de Teumman cujo significado poliacutetico e sim-boacutelico eacute evidente nestes exemplos entendidos a partir de uma anaacutelise prelimi-nar descritiva a accedilatildeo que intentam representar aparenta ser mais prosaica natildeo possuindo qualidades simboacutelicas especiais55 Na aparecircncia tratar-se-ia de um ato puramente administrativo pois os exeacutercitos assiacuterios em tracircnsito contavam com escribas que cumpriam tarefas burocraacuteticas e logiacutesticas tais como o raciona-mento e distribuiccedilatildeo de equipamento o registo de tributos e de saque e mesmo o registo de baixas tantas as proacuteprias como as do inimigo56

No entanto a anaacutelise deste tema iconograacutefico permite-nos alcanccedilar out-ros niacuteveis de significado Um deles eacute a vitoacuteria sobre o inimigo por via da sua decomposiccedilatildeo ou dissoluccedilatildeo O conteuacutedo semacircntico destas imagens pretendia mostrar que o exeacutercito inimigo ainda que numeroso passara a ser atomizado pela acumulaccedilatildeo das suas baixas em pilhas disformes Eacute disso sintomaacutetico que em vaacuterias dessas imagens as cabeccedilas decapitadas surjam em associaccedilatildeo com os frutos do saque efetuado pelos Assiacuterios como armas mobiliaacuterio e toda a sorte de outros bens57

Reduzir o inimigo a um objecto de tratamento estatiacutestico equivalia a transformaacute-lo numa entidade anoacutenima58 Tal eacute a interpretaccedilatildeo de Davide Nadali que postula acertadamente que as cabeccedilas dos guerreiros adversaacuterios antes isoladas mas integradas na completude fiacutesica do seu ser e corpo perdem a sua personalidade e individualidade ao serem acumuladas como objetos Misturan-do-se confundindo-se com muacuteltiplas outras identidades numa massa amorfa o

53 Segundo Arauacutejo 2010 102-454 Dois exemplos de imagens de relevos do British Museum BM 124955-7 de Senaquerib

(fig 6) e ME 124825 (fig 7) de Assurbaniacutepal Sobre este tema iconograacutefico consultar ainda Russell 1991 292 nota 36 e o trabalho mais recente de Julian Reade (Reade 2012)

55 Bonatz 2004 9956 Saggs 1963 148 Reade 201257 Fig 7 ME 124825 Cf Nadali 2001-2003 6658 Bonatz 2004 93

167

Marcel L Paiva do Monte

inimigo torna-se segundo as palavras de Nadali laquoirreconheciacutevel e reduzido a um mero objectoraquo sobre o qual incidia a accedilatildeo militar assiacuteria59

Esvaziando-se a identidade do inimigo desta forma simboacutelica pode assim notar-se uma metaacutefora para a imersatildeo no laquocaos primordialraquo em que a inexistecircn-cia das coisas se definia antes de mais pela ausecircncia de uma forma de um nome de uma identidade De facto se Teumman um inimigo com um estatuto reacutegio pode ser visto ainda como um personagem importante na narrativa construiacuteda pelos produtores destas representaccedilotildees textuais e visuais os seus soldados pelo contraacuterio poderatildeo ser nelas considerados como meros figurantes Esta indis-tinccedilatildeo ou perda de individualidade do inimigo atraveacutes da morte equivale ao seu obliacutevio Neste contexto o esquecimento absoluto do derrotado constituiacutea uma inversatildeo da possibilidade que o vitorioso dispunha de perpetuar os seus laquofeitosraquo atraveacutes da celebraccedilatildeo monumental do registo literaacuterio e da construccedilatildeo da sua memoacuteria ndash isto eacute da sua sobrevivecircncia para laacute da morte

Reflexos sobre o obliacutevio do inimigo como um estado equiparado agrave sua morte absoluta surgem amiuacutede nos textos analiacutesticos A sua fuga ainda que bem-sucedida pode ser entendida como uma laquosaiacuteda de cenaraquo da Histoacuteria de acordo com a visatildeo oficial assiacuteria Sargatildeo II no seu oitavo palucirc (714 aC) duran-te a sua campanha militar contra Manneus e Medos derrotou Mitatti da terra de Zikirtu Depois de a sua capital Parda ser destruiacuteda Mitatti fugiu com o seu povo laquopara natildeo mais ser vistoraquo60

Por sua vez Šuzubu alias Mušēzib-Marduk liacuteder dos rebeldes caldeus teria fugido sozinho durante a quarta campanha do reinado de Senaquerib (700 aC) O pavor causado pela perspetiva de uma batalha contra os exeacutercitos assiacuterios tecirc-lo-ia feito escapar sozinho nunca mais tendo havido notiacutecia do seu paradeiro laquoEle fugiu sozinho como um lince [kima azari] e nunca se soube o seu paradeiroraquo61

O obliacutevio contudo poderaacute natildeo ser apenas considerado como metaacutefora para a morte ou fuga apavorada do inimigo como resultado da conquista e da vitoacuteria sobre o adversaacuterio a deportaccedilatildeo de populaccedilotildees eacute tambeacutem envolvida num dis-curso ideoloacutegico que lhe pode ser associado62 Esta praacutetica que se tornou bastante mais usual a partir do reinado de Tiglat-Falasar III63 consistia na deslocaccedilatildeo forccedilada de comunidades que viviam em territoacuterios conquistados pelos Assiacuterios e tornados depois em proviacutencias como meio de puniccedilatildeo de aproveitamento de

59 Nadali 2001-2003 66 laquonumerosi corpi acefali e denudati di nemici ormai irriconoscibili e ridotti a meri oggetiraquo

60 ARAB II sect 19 Fuchs 1993 110 Ann sect 12761 RINAP 31 nordm 15 ls iv 23 Se Šuzubu escapou como laquoum linceraquo um animal selvagem

Lulicirc rei de Siacutedon havia fugido no ano anterior (701 aC) para Chipre laquocomo um peixeraquo kima nūni iparšid

62 Nadali 2001-2003 56-5763 A melhor siacutentese sobre este tema Oded 1979

168

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

recursos humanos e como forma de destruir a identidade poliacutetica da comunidade afetada As populaccedilotildees deportadas espoliadas da sua personalidade proacutepria en-quanto membros de uma entidade poliacutetica passavam a ser integradas no interior do mundo controlado pelos Assiacuterios concebido como um espaccedilo onde imperava a ordem exigida para o equiliacutebrio coacutesmico e terreno

Ao niacutevel discursivo a ideia dessa integraccedilatildeo podia ocorrer por exemplo na absorccedilatildeo dos deportados pela proacutepria populaccedilatildeo assiacuteria Tal eacute refletido na ex-pressatildeo laquocontei-os entre as gentes da Assiacuteriaraquo itti nišē māt Aššur amnu-šunūti64 Estas expressotildees convencionais revelam que de algum modo estas gentes eram consideradas subsumidas imersas ainda que ao niacutevel discursivo e ideoloacutegico no conjunto dos suacutebditos do soberano Importa referir que a deportaccedilatildeo era um momento privilegiado para a atuaccedilatildeo dos escribas assiacuterios pois as deslocaccedilotildees de pessoas por territoacuterios vastos implicavam um aparato logiacutestico sofisticado e um esforccedilo organizativo acentuado para a sua realocaccedilatildeo posterior O registo escrito das famiacutelias e indiviacuteduos deportados com suas origens e destinos65 eacute um sinal de como a sua absorccedilatildeo na ordem assiacuteria era mais um aspeto da dimensatildeo episteacutemica da conquista

A estas observaccedilotildees deve ser adicionada uma outra os temas da con-tagem de tributos e dos restos mortais de inimigos como signos de vitoacuteria e a contagem de populaccedilotildees deportadas ref letem natildeo somente uma dimensatildeo simboacutelica de um discurso baseado na violecircncia mas tambeacutem uma faceta burocraacutetica do exerciacutecio do poder A natureza administrativa do poder complementa ao niacutevel discursivo a dimensatildeo religiosa heroica e carismaacuteti-ca do soberano revelando a complexidade da ideologia e cultura poliacutetica no impeacuterio neo-assiacuterio Natildeo era apenas o pathos da guerra ndash o furor a agressivi-dade e a coragem fiacutesica dos soldados Assiacuterios face ao inimigo ndash o uacutenico meio de demonstrar como fazem os relevos ninivitas onde se espraia a batalha de Til Tuba a capacidade e justeza do poderio da Assiacuteria a sua organizaccedilatildeo enquanto estado era um elemento racional que reforccedilava a sua imagem de superioridade

Consideraccedilotildees finais

A exibiccedilatildeo da cabeccedila de Teumman como um dos protagonistas do pro-grama monumental de Assurbaniacutepal e o tema da acumulaccedilatildeo de cabeccedilas de soldados inimigos mortos contribuem para banalizar e depreciar o inimigo em

64 Isto se afirma por exemplo acerca de Caldeus do Sul da Mesopotacircmia recolocados por Tiglat-Falasar III em diferentes proviacutencias assiacuterias apoacutes as suas campanhas na Babiloacutenia laquoe contei-os juntamente com o povo da Assiacuteria Sobre eles impus tal como aos Assiacuterios o jugo de Aššur meu senhorraquo (ARAB I sect 764)

65 Ver por exemplo os registos compilados em SAA XI cap 8

169

Marcel L Paiva do Monte

contraste com a projeccedilatildeo da majestade do soberano assiacuterio e da forccedila dos seus exeacutercitos cuja accedilatildeo era objecto de justificaccedilatildeo ideoloacutegica e moral

Todavia devemos identificar uma diferenccedila significativa nestes dois modos de tratamento simboacutelico e artiacutestico do tema do inimigo decapitado por um lado se Teumman atraveacutes da sua cabeccedila cortada eacute humanizado ao ser despido da sua aura reacutegia ao ser-lhe retirada a maacutescara da realeza os seus soldados pelo contraacuterio eram desumanizados e equiparados a objetos A sua morte equivalia agrave sua expulsatildeo para o caos primordial que o rei assiacuterio como qualquer soberano mesopotacircmico tinha o dever de combater66

Entre estas duas perspetivas se observa uma tensatildeo entre o ato de expor de trazer agrave luz e conhecer o inimigo conquistado (logo a sua transformaccedilatildeo em algo familiar que jaacute natildeo provoca tensatildeo ou medo) e o discurso que provoca simbolicamente o seu esquecimento a sua imersatildeo no obliacutevio e no caos Se como objetos de um registo contabiliacutestico que os agregava de modo indistinto os comuns soldados eram despidos da sua identidade e como tal remetidos ao obliacutevio os seus reis passariam a integrar a gesta narrativa da expansatildeo assiacuteria os seus nomes recordados como derrotados ou submetidos nas inscriccedilotildees que glorificavam os monarcas de Aššur

A inclusatildeo do tema da decapitaccedilatildeo dos inimigos nos programas artiacutesticos dos palaacutecios assiacuterios constituiacutea um ato comunicativo endereccedilado natildeo jaacute a partir da periferia como taacutetica psicoloacutegica que respondia a necessidades militares directa no terreno mas sim no centro do poder Este controlo sobre as imagens e representaccedilotildees assumia-se como uma siacutentese de uma forma de exerciacutecio de poder que refletia uma seleccedilatildeo cuidada e uma dimensatildeo propagandiacutestica67 Seria intenccedilatildeo dos produtores dessas representaccedilotildees linguiacutesticas e natildeo-linguiacutesticas (isto eacute o rei e a elite mais proacutexima do poder) provocar determinadas respostas nos observadores Poreacutem integrando-se no aparato simboacutelico dos palaacutecios e capitais assiacuterias estes relatos e imagens adquiriam uma dimensatildeo performa-tiva e maacutegico-religiosa que traduzia de modo mais sofisticado os paracircmetros ideoloacutegicos que o poder assiacuterio tencionava consubstanciar Assim esperar-se-ia que a representaccedilatildeo do inimigo morto tendo mais do que apenas um propoacutesito simboacutelico o mantivesse nesse estado de uma forma maacutegica68

Nestes elementos discursivos eacute notoacuterio um paradoxo o desencadear da guerra como actividade geradora de paz a celebraccedilatildeo da ordem coacutesmica pro-videnciada pelo soberano tornada possiacutevel apenas muitas vezes afrontando o ordaacutelio caoacutetico da batalha e por fim a exposiccedilatildeo da violecircncia e da crueldade infligida sobre corpos humanos pelo poder instituiacutedo ndash algo que a desejaacutevel

66 Reade 1979 332 Nadali 2001-200367 Reade 1979 329-43 Liverani 1979 297-31768 Nadali 2001-2003 64 Bahrani 2004 115-19

170

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

laquonormalidaderaquo da vida social aconselha agrave ocultaccedilatildeo ndash como forma de enaltecer a quietude de uma vida submissa e obediente Todavia estas contradiccedilotildees assim constatadas satildeo apenas aparentes e de resto estabelecidas a partir da nossa proacutepria perspetiva Guerra vs paz ordem vs caos o rei guerreiro vs o rei pastor piedoso para com o seu povo natildeo seriam antinomias tatildeo oacutebvias na visatildeo assiacuteria Estes opostos segundo paracircmetros culturais mais latos do Proacuteximo Oriente antigo coexistiriam na realidade mundana e divina desde a origem do mundo fazendo parte da sua estrutura e da sua loacutegica mais profunda

171

Marcel L Paiva do Monte

Bibliografia

Arauacutejo Luiacutes Manuel de 2010 ldquoA luta pela sobrevivecircncia no Egipto a expulsatildeo dos lsquoPovos do Marrsquordquo In A Guerra na Antiguidade Vol 3 ed A Ramos dos Santos e Joseacute Varandas 97-150 Lisboa Centro de Histoacuteria da Faculdade de Letras Caleidoscoacutepio

Ataccedil Mehmet-Ali 2006 ldquoVisual Formula and Meaning in Neo-Assyrian Relief Sculpturerdquo The Art Bulletin 88 (1)69-101

Bachelot Luc 1991 ldquoLa fonction politique des reliefs neacuteo-assyriensrdquo In Marchands diplomates et empereurs eacutetudes sur la civilisation meacutesopotamienne offertes agrave Paul Garelli ed Dominique Charpin e Francis Joannegraves 109-28 Paris Eacuteditions Recherche sur les Civilisations

Bahrani Zainab 2008 Rituals of War The Body and Violence in Mesopotamia New York Zone Books

mdashmdashmdash 2004 ldquoThe Kingrsquos Headrdquo Iraq 66115-19Barnett R D 1970 Assyrian Palace Reliefs in the British Museum London

Trustees of the British MuseumBonatz Dominik 2004 ldquoAshurbanipalrsquos headhunt an anthropological

perspectiverdquo Iraq 6693-102Boardman J I E S Edwards N G L Hammond et E Sollberger eds 1991

Cambridge Ancient History Vol 3 parte 2 The Assyrian and Babylonian Empires and other States of the Near East from the Eighth to the Sixth Centuries BC 2ordf ed Cambridge Cambridge University Press

Brinkman J A 1965 ldquoElamite Military Aid to Merodach-Baladanrdquo Journal of Near Eastern Studies 24 (3)161-66

Caramelo Francisco 2003 ldquoOs jardins reais na Assiacuteria uma reproduccedilatildeo idealizada da naturezardquo Revista da Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas 1585-92

mdashmdashmdash 2002 A linguagem profeacutetica na Mesopotacircmia (Mari e Assiacuteria) Cascais Patrimonia

Collins Paul 2008 Assyrian Palace Sculptures London British Museum PressDolce Rita 2004 ldquoThe lsquohead of the enemyrsquo in the sculptures from the palaces of

Nineveh an example of lsquocultural migrationrsquordquo Iraq 66121-32 Foster Benjamin R 1996 Before the Muses an Anthology of Akkadian Literature

2ordf ed 2 vols Bethesda CDL PressFoucault Michel 1975 Surveiller et Punir Naissance de la Prison Paris

GallimardGrayson A K 1981 ldquoAssyrian Royal Inscriptions Literary Characteristicsrdquo In

Assyrian Royal Inscriptions New Horizons in Literary Ideological and

172

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

Historical Analysis Papers of a Symposium held in Cetona (Siena) June 26-28 1980 ed F M Fales 35-47 Roma Istituto per LrsquoOriente

Harmanşah Oumlmuumlr 2007 ldquoUpright stones and building narratives formation of a shared architectural practice in the Ancient Near Eastrdquo In Ancient Near Eastern Art in Context Studies in Honor of Irene J Winter by her students ed J Cheng e M H Feldman 69-99 Leiden Boston Brill

Liverani Mario 2009 ldquoThe King in the Palacerdquo Orientalia 78 (1)81-91mdashmdashmdash 1988 Vicino Oriente Antico Storia Societagrave Economia Roma Laterzamdashmdashmdash 1979 ldquoThe Ideology of the Assyrian Empirerdquo In Power and Propaganda

A Symposium on Ancient Empires ed M T Larsen 297-317 Kobenhavn Akademisk Forlag

Luckenbill D D 1968a Ancient Records of Assyria and Babylonia 2 vols New York Greenwood Press

mdashmdashmdash 1968b Ancient Records of Assyria and Babilonia 2 vols New York Greenwood Press

mdashmdashmdash 1924 The Annals of Sennacherib (Oriental Institute Publications 2) Chicago University of Chicago Press

Nadali Davide 2001-2003 ldquoGuerra e morte lrsquoannullamento del nemico nella condizione del vintordquo Scienze dellrsquoAntichitagrave 1151-70

Oded Bustenay War Peace and Empire Justifications for War in Assyrian Royal Inscriptions Wiesbaden Ludwig Reichert Verlag

mdashmdashmdash 1979 Mass Deportations and Deportees in the Neo-Assyrian Empire Wiesbaden Ludwig Reichert Verlag

Olmstead A T 1918 ldquoThe Calculated Frightfulness of Ashur-nasir-apalrdquo Journal of the American Oriental Society 38209-63

Piepkorn A C 1933 Historical Prism Inscriptions of Ashurbanipal I ndash Editions E B1-5 D and K Chicago University of Chicago Press

Reade Julian 2012 ldquoVisual Evidence for the Status and Activities of Assyrian Scribesrdquo Leggo Studies Presented to Frederick Mario Fales on the Occasion of His 65th Birthday (Leipziger Altorientalische Studien 2) ed G B Lanfranchi D Morandi Bonacossi C Pappi e S Ponchia 699-717 Wiesbaden Harrassowitz

mdashmdashmdash (1998) 2007 Assyrian Sculpture Reimpressatildeo London The British Museum Press

mdashmdashmdash 1979 ldquoIdeology and Propaganda in Assyrian Artrdquo In Power and Propaganda A Symposium on Ancient Empires ed M T Larsen 329-43 Copenhaga Akademisk Forlag

Reed Stephanie 2007 ldquorsquoBlurring the Edgesrsquo A Reconsideration of the Treatment of Enemies in Ashurbanipalrsquos Reliefsrdquo In Ancient Near Eastern Art in

173

Marcel L Paiva do Monte

Context Studies in Honor of Irene J Winter by her Students ed J Cheng e M H Feldman 101-30 Leiden Boston Brill

Grayson A K 1991 Assyrian Rulers of the Early First Millennium BC I (1114-859 BC) Vol 2 de The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods Toronto Buffalo London Toronto University Press

Grayson A Kirk e Jamie Novotny eds 2012 The Royal Inscriptions of Sennacherib King of Assyria (704ndash681 BC) Part 1 (The Royal Inscriptions of the Neo-Assyrian Period 31) Winona Lake Eisenbrauns

Russell John Malcolm 1999 The Writing on the Wall Studies in the Architectural Context of Late Assyrian Palace Inscriptions Winona Lake Eisenbrauns

mdashmdashmdash 1991 Sennacheribrsquos Palace Without Rival at Nineveh Chicago The Chicago University Press

Starr I ed 1990 Queries to the Sungod Divination and Politics in Sargonid Assyria (State Archives of Assyria IV) Helsinki Helsinki University Press

Parpola S ed 1997 Assyrian Prophecies (State Archives of Assyria IX) Helsinki Helsinki University Press

Fales F M e J N Postgate eds 1995 Imperial Administrative Records Part II Provincial and Military Administration (State Archives of Assyria XI) Helsinki Helsinki University Press

Saggs H W F 1963 ldquoAssyrian Warfare in the Sargonid Periodrdquo Iraq 25145-54Tadmor Hayim 1997 ldquoPropaganda Literature Historiography Cracking the

Code of the Assyrian Royal Inscriptionsrdquo In Assyria 1995 Proceedings of the 10th Anniversary Symposium of the Neo-Assyrian Text Corpus Project Helsinki September 7-11 1995 ed S Parpola e R M Whiting 325-36 Helsinki The Neo-Assyrian Text Corpus Project

Thureau-Dangin Franccedilois 1912 Une relation de la huitiegraveme campagne de Sargon II Paris Geuthner

Watanabe C W 2004 ldquoThe lsquoContinuous Stylersquo in the narrative schemes of Ashurbanipalrsquos reliefsrdquo Iraq 66103-14

Winter Irene J [1982] 2010 ldquoArt as Evidence for Interaction Relations between the Neo-Assyrian Empire and North Syria as Seen from the Monumentsrdquo In On Art in the Ancient Near East Vol 1 Of the First Millennium BCE 525-62 Leiden Brill

Wiseman Donald J 1953 ldquoAssyrian writing-boardsrdquo Iraq 173-13

174

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

Fig 2 Batalha de Til Tuba (detalhe) Assurbaniacutepal Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive British Mu-seum ME 124801b copy The Trustees of the British Museum

Fig 1 Palaacutecio de Aššurnasirpal Kalḫu (Nimrud) British Museum ME 124550 copy The Trustees of the British Mu-seum

175

Marcel L Paiva do Monte

Fig 4 A cabeccedila de Teumman sendo despachada para junto do rei assiacuterio British Museum ME 124801a copy The Trustees of the British Museum

Fig 3 Teumman sendo decapi-tado por um soldado as-siacuterio Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive British Muse-um ME 124801c copy The Trustees of the British Museum

176

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

Fig

5 O

Ban

quet

e A

ssur

baniacute

pal

Palaacute

cio

Sudo

este

de

Niacuten

ive

Bri

tish

Mus

eum

ME

1249

20

copy Th

e Tr

uste

es o

f the

Bri

tish

Mus

eum

177

Marcel L Paiva do Monte

Fig 6 Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive British Museum ME 124955-7 copy The Trustees of the Brit-ish Museum

Fig 7 Escribas contando ca-beccedilas e tributos Palaacute-cio Sudoeste de Niacutenive British Museum ME 124825 copy The Trustees of the British Museum

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

179

Joatildeo Pedro Vieira

Beber do Nilo ou do Eufrates O papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do

imperium neobabiloacutenico em Judaacute1 (To drink from the Nile or the Euphrates On the role of (the book of)

Jeremiah in legitimising the Neo-Babilonic imperium over Judah)

Joatildeo Pedro Vieira(jpferreiravieiragmailcom ORCID 0000-0002-0318-9297)

Universidade de Lisboa

Resumo - Com base em Jr 27-29 o presente estudo argumenta que Jeremias defendia a submissatildeo divinamente fundamentada de Judaacute perante o Impeacuterio Neobabiloacutenico e que a sua intervenccedilatildeo sociopoliacutetica poderaacute ter sido reconhecida pelas elites poliacuteticas neoba-biloacutenicas como instrumento de legitimaccedilatildeo e imposiccedilatildeo do seu imperium sobre Judaacute

Palavras-chave Poliacutetica ideologia Jeremias Impeacuterio Neobabiloacutenico Judaacute

Abstract ndash Relying mainly on Jr 27-29 the present study contends that Jeremiah upheld Judahrsquos divinely ordained submission to the Neo-Babylonian Empire and that its socio-political action may have been acknowledged by the Neo-Babylonian elites as a means of legitimating and enforcing Neo-Babylonian rule over Judah

Keywords Politics ideology Jeremiah Neo-Babylonian Empire Judah

Introduccedilatildeo

A presente contribuiccedilatildeo pretende explorar e problematizar a dimensatildeo poliacutetico-ideoloacutegica inerente agrave tradiccedilatildeo textual jeremiana na perspetiva da expansatildeo poliacutetico-militar neobabiloacutenica na Palestina e das suas repercussotildees poliacuteticas e ideoloacutegicas entre as elites sociopoliacuteticas judaiacutetas Para tal propoacutesito seraacute necessaacuterio discernir linhas de pensamento e atuaccedilatildeo tanto no que se refere agraves entidades editoriaisredacionais envolvidas na textualizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo jeremiana como no que se reporta agrave presumiacutevel intervenccedilatildeo sociopoliacutetica de Jeremias enquanto agente histoacuterico A investigaccedilatildeo da atividade profeacutetica jere-miana sob o prisma de uma accedilatildeo protetora construtiva mas igualmente criacutetica e socialmente relevante da instituiccedilatildeo real enquanto epicentro da sociedade hierosolimita e representante da ordem divina em linha com os paralelos profeacute-ticos mariotas e neoassiacuterios seraacute um dos seus vetores estruturantes2

1 Abreviaturas usadas KAI (Donner-Roumlllig 2002) HALOT (Khoeler-Baumgartner 2000) SAA (Parpola-Watanabe 1988)

2 De Jong 2007 2011 A exiguidade do espaccedilo disponiacutevel natildeo permite tratar com o necessaacuterio desenvolvimento os muacuteltiplos pressupostos e aproximaccedilotildees conjeturais que fundamentam estruturalmente a presente contribuiccedilatildeo Em siacutentese assume-se que a intervenccedilatildeo sociopoliacutetica

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_9

180

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

A dimensatildeo poliacutetica e ideoloacutegica da tradiccedilatildeo textual jeremiana

A tradiccedilatildeo textual jeremiana representada principalmente pelas famiacutelias textuais alexandrina (LXX) e massoreacutetica (TM) eacute atravessada por muacuteltiplas tensotildees e contradiccedilotildees interpretativas resultantes da incorporaccedilatildeo de materiais diversos e ideologicamente contraditoacuterios ou mesmo antagoacutenicos Este caraacutecter compoacutesito e polifoacutenico da tradiccedilatildeo levou os inteacuterpretes agrave inferecircncia de vaacuterios estratos redacionais intervenccedilotildees editoriais configuraccedilotildees de interesses ideo-logias e grupos sociopoliacuteticos conflituantes situados em Judaacute na Babiloacutenia e no Egito

Respondendo possivelmente a um conflito de autoridade e legitimidade religiosa e sociopoliacutetica sobre a Judaacute poacutes-monaacuterquica a visatildeo dos dois cestos de figos (Jr 24) conserva um dos textos mais poleacutemicos e fraturantes da tradiccedilatildeo construindo um discurso manifestamente dicotoacutemico e exclusivista marcado pela bipolarizaccedilatildeo hiperboacutelica da comunidade3 De acordo com este texto apenas os grupos deportados em 597 aC equacionados com os figos oacutetimos beneficiam da eleiccedilatildeo divina e da sua promessa de restauraccedilatildeo enquanto Sedecias os seus altos oficiais os hierosolimitas remanescentes e os exilados no Egito equacio-nados com os figos peacutessimos intragaacuteveis se tornam no alvo de uma retoacuterica de execraccedilatildeo excluiacutedos e condenados ao oproacutebrio e ao extermiacutenio

A tradiccedilatildeo jeremiana dispotildee igualmente de materiais heuriacutesticos tex-tual redacional e literariamente heterogeacuteneos diretamente reportaacuteveis agrave conflituosidade sociopoliacutetica hierosolimita durante a crise de 609-586 aC com especial incidecircncia no periacuteodo de 597-586 aC Jr 2210-30 deixa en-trever atitudes jeremianas historicamente verosiacutemeis relativamente a Joacaz II (Šallum) Josias Joaquim e Joaquin Jr 28-29 evidencia a existecircncia de expetativas restauracionistas provavelmente centradas na figura reacutegia de Joaquin tanto em Judaacute como nas comunidades exiacutelicas babiloacutenicas expotildee a posiccedilatildeo de Jeremias quanto agrave relaccedilatildeo entre Judaacute e o Impeacuterio Neobabiloacutenico e sugere o desenvolvimento de fortes clivagens poliacuteticas e ideoloacutegicas Jr 38 retrata em particular o grau de inf luecircncia dos altos-oficiais reacutegios na conduccedilatildeo do estado judaiacuteta e a difiacutecil gestatildeo do officium regis nos momentos finais da monarquia daviacutedida

histoacuterica de Jeremias natildeo se teraacute desenvolvido em conformidade eou representaccedilatildeo nem de um cacircnone (proto-)deuteronoacutemico de caraacutecter centralizador exclusivista monoteiacutesta e fortemente intolerante nem de um reformismo josiano implementado nessas linhas nem de qualquer movimento poliacutetico-religioso de iacutendole reformista assente nessa ideologia (contra eg Holladay 1986-89 11-10 Albertz 1994a 195-242 Sweeney 2001 137-70 Leuchter 2006 2008)

3 Veja-se Ez 1115

181

Joatildeo Pedro Vieira

O Reino de Judaacute no contexto poliacutetico internacional de 626-582 a C

Considerando a evoluccedilatildeo poliacutetica de Judaacute entre c 734 e 586 aC e apesar do longo periacuteodo de dominaccedilatildeo neoassiacuteria eacute liacutecito afirmar que pelo menos parte substancial das elites sociopoliacuteticas judaiacutetas nunca se teraacute verdadeiramente conformado com a submissatildeo de Judaacute a uma potecircncia mesopotacircmica De facto sempre que criadas circunstacircncias poliacuteticas favoraacuteveis (705-701 630-620 601-597 588-586 aC) os grupos de decisatildeo hierosolimitas procuraram sacudir o jugo mesopotacircmico Os seus caacutelculos estrateacutegicos envolveram invariavelmente uma outra potecircncia regional ndash o Egito ndash a uacutenica teoricamente capaz de garantir a proteccedilatildeo externa e oferecer apoio poliacutetico-militar efetivo aos estados palestin-enses

Com a complexificaccedilatildeo do cenaacuterio geopoliacutetico internacional a partir da deacutecada de 620 aC a gestatildeo da poliacutetica externa judaiacuteta passou a caracterizar--se por uma alternacircncia forccedilosa e sinuosa de fidelidades poliacuteticas entre Egito saiacuteta e Babiloacutenia com consequecircncias internas amiuacutede dramaacuteticas O efeacutemero periacuteodo de autonomia poliacutetica controlada de Judaacute possibilitado pelo eclipse da hegemonia neoassiacuteria entre 626 e 609 aC e a concomitante ascensatildeo do Egito4 terminou drasticamente no 2ordm semestre de 609 Necao II ordenou a execuccedilatildeo (provaacutevel) de Josias5 a deportaccedilatildeo de Joacaz II a nomeaccedilatildeo coerciva de Joaquim e a imposiccedilatildeo de um avultado tributo (2 Rs 2329-34) Poreacutem a hegemonia egiacutep-cia sobre a Palestina foi de curta duraccedilatildeo Derrotados na batalha de Qarkemiš no 2ordm semestre de 605 aC os exeacutercitos egiacutepcios foram perseguidos e trucidados em Ḫamat e nos finais de 604 aC Nabucodonosor II voltava agrave Palestina para submeter ou destruir os recalcitrantes6 Joaquim natildeo teraacute tido outra opccedilatildeo senatildeo reconhecer a suserania neobabiloacutenica

A repulsatildeo das forccedilas de Nabucodonosor II agraves portas do Egito em finais de 601 aC criou a oportunidade para a rejeiccedilatildeo da hegemonia neobabiloacutenica em Judaacute7 No 1ordm trimestre de 597 aC Judaacute sofria as consequecircncias da sublevaccedilatildeo Apoacutes um cerco natildeo superior a 2 meses Jerusaleacutem capitulava pacificamente A cida-de e o estado judaiacuteta foram por isso poupados mas a famiacutelia real elites dirigentes e parte dos sectores militares e produtivos da cidade foram deportados Joaquin foi destituiacutedo e substituiacutedo por Sedecias e a cidade foi parcialmente espoliada8

O realinhamento mesopotacircmico de Judaacute revelou-se fraacutegil O ressurgimento

4 Veja-se Narsquoaman 2005 365-69 Miller-Hayes 2006 446-47 Schipper 20115 Narsquoaman 2005 381 Talshir 19966 Croacutenica Babiloacutenica BM 21946 frente ll 2-13 Glassner 2005 226-29 Wiseman 1956 23-28

66-69 Lipschits 2005 37-407 Croacutenica Babiloacutenica BM 21946 vordm ll 5-7 Glassner 2005 228-29 Wiseman 1956 29-31

70-71 Lipschits 2005 49-518 2Rs 2410-18 Croacutenica Babiloacutenica BM 21946 vordm ll 12-13 Glassner 2005 230-31 Wiseman

1956 32-35 72-73

182

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

poliacutetico-militar do Egito na Siacuteria-Palestina a partir de c 595 aC e o relativo afas-tamento da Babiloacutenia do cenaacuterio ocidental convenceram parte determinante das elites dirigentes hierosolimitas a furtarem-se novamente ao jugo mesopotacircmico o mais tardar em 588 aC num clima de progressiva agudizaccedilatildeo das clivagens poliacutetico-ideoloacutegicas internas Nos finais desse ano ou iniacutecios de 587 aC as forccedilas neobabiloacutenicas regressavam a Jerusaleacutem O receio de uma intervenccedilatildeo militar egiacutepcia levou ao levantamento provisoacuterio do cerco contudo pronta-mente retomado9 No veratildeo de 586 aC apoacutes ano e meio de cerco e muacuteltiplas depredaccedilotildees e destruiccedilotildees ao longo do territoacuterio judaiacuteta as forccedilas neobabiloacutenicas forccedilaram a entrada na cidade10 Seguiram-se deportaccedilotildees execuccedilotildees pilhagens com especial destaque para o palaacutecio e o templo e menos de um mecircs depois a destruiccedilatildeo sistemaacutetica da cidade Sedecias foi severamente punido e deportado a monarquia daviacutedida abolida e Judaacute provincializado sob a direccedilatildeo de um alto--oficial judaiacuteta Gedalyāhucirc b rsquoĂḥicircqām (Godolias)11

Godolias natildeo foi capaz de unificar os remanescentes em torno do governo sedeado em Miṣpah a norte de Jerusaleacutem sob observaccedilatildeo neobabiloacutenica Pou-cos meses depois da sua nomeaccedilatildeo um grupo dissidente liderado por Ismael de ascendecircncia real e apoiado por Balsquoalicircs de Amon regressou a Judaacute para derrubar o governo provincial e eventualmente restaurar a monarquia daviacutedida Godolias e os representantes da autoridade neobabiloacutenica teratildeo sido assassinados12 Apesar disso as forccedilas ismaelitas acabaram por ser repelidas e parte dos sobreviventes na nova capital dispersa por receio de represaacutelias tendo no Egito um dos principais destinos de exiacutelio13 Em 582 aC os neobabiloacutenios moveram a uacuteltima campanha militar conhecida no Sul da Palestina extraindo de Judaacute uma terceira leva de de-portados14 e acentuando a depressatildeo social poliacutetica e econoacutemica em que haviam mergulhado Judaacute e sobretudo Jerusaleacutem15

A intervenccedilatildeo poliacutetico-religiosa de Jeremias

Jr 2 Yahweh rsquoĕlōhicircm lebaddekā16

Jr 218 oferece um possiacutevel ponto de partida relativamente agrave conceptuali-zaccedilatildeo das relaccedilotildees poliacuteticas entre Judaacute e as potecircncias estrangeiras na tradiccedilatildeo jeremiana laquoIsraelraquo eacute retoacuterica e interrogativamente interpelado com a questatildeo laquoE agora que ganhas em seguir o caminho do Egito para beber das aacuteguas do Šihocircr

9 Jr 375 7-9 1110 Jr 393 526-7 2Rs 25311 2Rs 257-22 Jr 396-9 (TM) Jr 407 5210-26 29 (TM)12 2Rs 2525 Jr 411-313 2Rs 2526 Jr 4314 Jr 5230a (TM)15 Lipschits 2003 2005 186-27116 2Rs 1919

183

Joatildeo Pedro Vieira

Que ganhas em seguir o caminho da Assiacuteria para beber das aacuteguas do Nāhārraquo Como e em que sentido interpretar esta interrogaccedilatildeo Em que medida reflete o pensamento e a accedilatildeo de Jeremias

O v 18 insere-se na periacutecope constituiacuteda pelos vv 14-19 e numa unidade mais vasta delimitada por 21 e 4417 e centrada na temaacutetica da infidelidade de Israel a Yahweh O etnoacutenimo laquoIsraelraquo seraacute melhor entendido como designaccedilatildeo metoniacutemica para Judaacute e particularmente Jerusaleacutem ndash esta uacuteltima identificaccedilatildeo eacute jaacute sugerida por 22a (laquoVai e proclama a Jerusaleacutemraquo gt LXX) No contexto de 214-19 a imagem de Israel eacute construiacuteda atraveacutes de um leacutexico que enfatiza a servidatildeo humilhaccedilatildeo fraqueza dependecircncia assim como a destruiccedilatildeo da terra e do povo A infidelidade a Yahweh eacute equacionada com o faacutetuo recurso a duas potecircncias poliacuteticas internacionais metonimicamente evocadas atraveacutes dos potamoacutenimos Šihocircr (=Nilo ou um seu braccedilo oriental LXX Gecircocircn) referente ao Egito e Nāhār (=Eufrates) referente agrave Assiacuteria

A passagem natildeo esclarece qual a motivaccedilatildeo ou natureza desse recurso limitando-se a especificar que Israel bebe da aacutegua desses rios e a exprimir a inutilidade dessa accedilatildeo (mah lāk lederek hellip dativo de interesse) Ao procurar satisfazer a sua sede buscando conforto e salvaccedilatildeo nas aacuteguas desses caudalosos rios Judaacute abandonou e desprezou Yahweh laquofonte de aacuteguas vivasraquo (213bα2) A dupla interrogaccedilatildeo seraacute provavelmente um reflexo da flutuaccedilatildeo da poliacutetica exter-na judaiacuteta entre a fidelidade ao Egito e a fidelidade ao Impeacuterio Neobabiloacutenico ndash metonimicamente representado pelo etnoacutenimo laquoAssiacuteriaraquo18 ndash no periacuteodo 604-588 aC Acerca da primeira potecircncia afirma o v 16 considerado intrusivo por alguns autores que os filhos de Nōp e de Taḥpanḥēs laquoraparatildeoraquo19 a cabeccedila de Israel Um pouco antes o v 15 apresentava o Impeacuterio Neobabiloacutenico sob a imagem de leotildees os quais rugiam contra Israel e incendiaram e despovoaram as suas cidades sugerindo uma referecircncia aos acontecimentos de 597 aC

Partindo do pressuposto de que qualquer ato comunicativo profeacutetico ou escribal visaria cumprir genericamente um criteacuterio de relevacircncia maacutexima a referecircncia agrave destruiccedilatildeo e despovoamento de Judaacute e a projeccedilatildeo da humilhaccedilatildeo e dececcedilatildeo egiacutepcia num futuro proacuteximo enquadrar-se-atildeo mais adequadamente num periacuteodo criacutetico presumivelmente situado entre 597 e 588 aC Esta opccedilatildeo interpretativa natildeo estaacute poreacutem isenta de dificuldades ndash eg a referecircncia ale-gavelmente vaga e imprecisa (poeacutetica) agrave Babiloacutenia num periacuteodo em que dela havia jaacute um conhecimento direto e manifesto20 Natildeo obstante a assunccedilatildeo de um contexto preacute-609 aC com base na vaga alusatildeo agrave agressatildeo egiacutepcia (v 16) tornaria

17 Holladay 1986-89 162 Lundbom 1999 249 veja-se Albertz 2003 32818 Veja-se Lm 5619 Conjeturalmente revocalizado yerōlsquoucirck por McKane [1986] 2001 36-37 Lundbom 1999

269 272 ou yerēlsquoucirck preferido por Holladay 1986-89 151 contra Bartheacutelemy 1986 466-6720 Veja-se Jr 27-29

184

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

aparentemente pouco inteligiacutevel a poliacutetica externa hesitante de Judaacute alegada por Jr 218 e historiograficamente corroborada para os periacuteodos 604-601 e 595-588 aC21 O v 16 seraacute melhor entendido enquanto projeccedilatildeo da intervenccedilatildeo egiacutepcia de 609 aC na oacutetica dos acontecimentos de 597-586 aC

Jr 236-37 oferece informaccedilatildeo adicional acerca do modo como a relaccedilatildeo en-tre Judaacute o Egito saiacuteta e o Impeacuterio Neobabiloacutenico era concebida A inconstacircncia e infidelidade de Israel cuja identidade estaacute impliacutecita nos vv 33-37 sob a forma de um alocutaacuterio feminino22 haviam jaacute trazido a humilhaccedilatildeo do paiacutes agraves matildeos da Assiacuteria e resultaratildeo numa nova humilhaccedilatildeo agraves matildeos do Egito Daiacute23 sairaacute Israel com as matildeos sobre a cabeccedila (v 37a) uma manifestaccedilatildeo de desgraccedila e desespero sendo possiacutevel que o texto se reporte ao envio de emissaacuterios ao Egito no acircmbito de negociaccedilotildees para garantir o apoio saiacuteta contra o domiacutenio neobabiloacutenico Efe-tivamente eacute Yahweh quem traz o oproacutebrio a Israel ao rejeitar os seus aliados (v 37a)

As passagens acima tratadas defendem agrave semelhanccedila de Is 301-7 e Os 711-13 121-2 uma perspetiva teo-ideoloacutegica segundo a qual Judaacute deve rejeitar qualquer alianccedila poliacutetica com potecircncias estrangeiras e particularmente no caso vertente com o Egito Semelhante perspetiva se pode encontrar em Is 301-7 Nem o Egito nem o Impeacuterio Neobabiloacutenico se apresentam como alternativa a Yahweh Ambas as potecircncias agrediram e humilharam significativamente Judaacute no passado e o Egito voltaria certamente a fazecirc-lo pelo que qualquer das opccedilotildees equivalia claramente a um ato de traiccedilatildeo e infidelidade poliacutetico-religiosa temaacuteticas fortes em Jr 21 ndash 44 Estaacute aqui subjacente a convicccedilatildeo numa relaccedilatildeo de privileacutegio e fidelidade entre Yahweh e o seu povo ndash e natildeo entre Yahweh e o rei ndash especialmente caracteriacutestica de Dt e da linguagem dita laquodeuteronomistaraquo de tradiccedilotildees profeacuteticas como Is Os e Am

Embora soacute parcialmente reflitam a dinacircmica do debate poliacutetico interno em Jerusaleacutem no contexto de 594-588 aC os textos acima tratados satildeo surpreen-dentes na tradiccedilatildeo jeremiana agrave luz da atuaccedilatildeo sociopoliacutetica de Jeremias descrita em secccedilotildees como Jr 201-6 211-10 27-29 ou 37-38 onde a tradiccedilatildeo atribui ao profeta uma intervenccedilatildeo ativa fraturante e incisiva perante a realeza e as elites sociopoliacuteticas e religiosas hiersolimitas em defesa da urgente submissatildeo de Judaacute ao domiacutenio neobabiloacutenico como ordem poliacutetica divinamente sancionada por Yahweh Qual das atitudes poliacuteticas representaraacute mais fielmente a atividade sociopoliacutetica de Jeremias Eacute em Jr 27-29 onde repousam algumas das tradiccedilotildees presumivelmente mais antigas24 (apesar de grandes interpolaccedilotildees redacionais25)

21 Sharp 2003 115-1622 Veja-se Jr 232a23 Lundbom 1999 293-94 296 contra McKane [1986] 2001 55 Holladay 1986-89 111124 Veja-se eg De Jong 201225 Veja-se infra e eg modelo redacional de Albertz 2003 312-45

185

Joatildeo Pedro Vieira

que o esforccedilo de interpretaccedilatildeo seguinte se focaraacute privilegiando os testemunhos textuais fornecidos pela versatildeo alexandrina26

Jr 27-29 a submissatildeo agrave Babiloacutenia como imperativo divinoJr 27 a conferecircncia hierosolimita de 593 aC e o jugo da BabiloacuteniaJr 2727 relata uma intervenccedilatildeo profeacutetica de Jeremias no contexto do conveacute-

nio poliacutetico-diplomaacutetico que teraacute reunido em Jerusaleacutem sob provaacutevel instigaccedilatildeo egiacutepcia os emissaacuterios dos estados do Edom Moab Amon Tiro e Siacutedon O conveacutenio teraacute sido animado por um forte sentimento antibabiloacutenico e destinar--se-ia a discutir a insurreiccedilatildeo dos estados participantes contra a hegemonia neobabiloacutenica28 A dataccedilatildeo apresentada por TM v 1 (gtLXX) estaacute manifestamente incorreta (texto conflato) uma vez que os acontecimentos se referem ao reinado de Sedecias e natildeo de Joaquim devendo assumir-se aqui com base na ligaccedilatildeo temaacutetica e narrativa iacutentima entre Jr 27-28 um periacuteodo algo anterior ao quinto mecircs do ano 4 de Sedecias (Jr 281aα-β (TM))29 ie algures entre abrilmaio e setembro de 593 aC30

Carregando correias e cangalhos31 sobre o pescoccedilo Jeremias interpela os emissaacuterios afirmando-lhes que Yahweh criador no justo exerciacutecio do seu poder confiara ao rei da Babiloacutenia32 a soberania sobre a criaccedilatildeo e laquoestes paiacutesesraquo (vv 5-6) e ordenara a todos os povos e reinos o dever sagrado de carregar a canga ou jugo (lsquoōl) da Babiloacutenia e servir o seu rei (v 8) Os emissaacuterios satildeo ainda dissuadidos de confiarem nos agentes profeacuteticosdivinatoacuterios que defendem aconselham ou preveem a resistecircncia agrave Babiloacutenia ou o insucesso desta (v 9) a palavra daqueles eacute lapidarmente classificada de falsa (šeqer) e ilegiacutetima (vv 9-10) Soacute a submissatildeo poderaacute evitar o exiacutelio e a destruiccedilatildeo (vv 8 11)

26 O presente trabalho assume que LXX ndash cujo ideal-tipo textual reconstruiacutedo por Ziegler (1957) natildeo soacute eacute comparativamente mais breve que o ideal-tipo massoreacutetico em c 14 como apresenta uma disposiccedilatildeo de materiais significativamente diferente ndash testemunha indiretamente uma fase anterior e heuristicamente preferiacutevel da tradiccedilatildeo textual jeremiana em linha com Janzen (1973) Tov (1997 2003 143) Bogaert (2003) e De Jong (2011 484-87) entre outros e contra eg Lundbom (1999 57-63 2010 1-9) Cf a posiccedilatildeo mais prudente de Stipp 2010 106-7

27 Para a reconstruccedilatildeo do texto hebraico hipoteticamente subjacente a Jr 27 (LXX) veja-se Janzen 1973 Ziegler 1957 Stulman 1985 1986 86-89 Tov 1999 Rabin et al 1997 Bogaert 2003 Crawford et al 2008 De acordo com Stulman (1986 129) a versatildeo massoreacutetica conserva um texto c 73 mais longo que a Vorlage proto-massoreacutetica hipoteacutetica de LXX

28 Lipschits 2005 63-64 Malamat 2001 311-13 Kahn 2007 508-9 2008 143-4429 Janzen 1973 1430 Para uma perceccedilatildeo da correspondecircncia aproximada entre os calendaacuterios judaiacuteta neoba-

biloacutenico e juliano e dos problemas inerentes veja-se Parker et Dubberstein 1956 Galil 1996 108-15 2010

31 Sobre a interpretaccedilatildeo e traduccedilatildeo dos termos mocircṭāh mocircsērāh e lsquoōl veja-se HALOT sv mocircṭāh mocircsērāhlsquoōl Holladay 1986-89 2119-20 Becking 2004 151-52 Foreman 2011 190-95

32 O antropoacutenimo laquoNabucodonosorraquo eacute muito provavelmente omitido em todo o capiacutetulo 27 na versatildeo alexandrina

186

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

Tomando Sedecias por destinataacuterio (circunstancial A 2ordf p pl eacute inconsis-tente e subentende antes um coletivo e natildeo um indiviacuteduo) o oraacuteculo seguinte (vv 12 14-15) retoma o imperativo de submissatildeo ao rei da Babiloacutenia e reenfatiza a falsidade dos profetas O uacuteltimo oraacuteculo endereccedilado ao povo e sacerdotes (vv 16-20 22) omite qualquer referecircncia direta ao imperativo de submissatildeo para se consagrar exclusivamente agrave argumentaccedilatildeo contra os laquofalsosraquo profetas rejeitada a sua comissatildeo divina (v 17) e desafiados a interceder junto de Yahweh (v 18) O objetivo deste derradeiro oraacuteculo eacute evidente deslegitimar e rejeitar qualquer ma-nifestaccedilatildeo profeacutetica que anunciasse a restauraccedilatildeo da parafernaacutelia cultual levada para a Babiloacutenia em 597 aC (vv 16 19-20 21)33

Jr 27 (LXX) em perspetiva torna-se clara a preponderacircncia de duas te-maacuteticas de importacircncia estruturante (a) a submissatildeo voluntaacuteria agrave Babiloacutenia enquanto condiccedilatildeo sine qua non para a integridade e sobrevivecircncia de Judaacute e sobretudo (b) o laquofalsoraquo profetismo diretamente ligado agrave impugnaccedilatildeo da tese da submissatildeo Ao longo dos trecircs oraacuteculos eacute esta uacuteltima temaacutetica ndash mais nitida-mente em TM ndash que apresenta maior relevo No entanto no terceiro oraacuteculo TM confere visibilidade a uma terceira temaacutetica que aiacute desempenha um papel dominante mas natildeo menos irrelevante na oacutetica da accedilatildeo simboacutelica introduzida pelos vv 2-3 o regresso dos objetos do templo de Jerusaleacutem

Efetivamente TM incorpora uma seacuterie de adiccedilotildees redacionais que apro-fundando o deacutefice de coesatildeo interna de Jr 27 jaacute detetaacutevel na versatildeo alexandrina e assumindo uma provaacutevel perspetiva exiacutelica ou mesmo poacutes-exiacutelica ndash Jr 5217 20 e 2 Rs 2513 estatildeo aparentemente subentendidos e a adiccedilatildeo do v 19bβ indica Jerusaleacutem como espaccedilo de referecircncia dos autores (bālsquoicircr hazzōrsquot)34 ndash acentuam natildeo soacute a falsidade do anuacutencio do regresso dos objetos do templo projetando a sua restauraccedilatildeo por accedilatildeo divina num futuro indefinido como tambeacutem a longa duraccedilatildeo do domiacutenio neobabiloacutenico (v 7 gt LXX) Neste contexto natildeo seraacute for-tuito que Sedecias Jerusaleacutem e Judaacute como nota Sharp35 sejam implicitamente excluiacutedos da promessa de paz explicitamente formulada aos emissaacuterios e reis estrangeiros (v 11) O terceiro oraacuteculo contradiz inclusivamente o sentido das secccedilotildees anteriores eliminando a hipoacutetese de salvaccedilatildeo pela submissatildeo inicial-mente apresentada e transformando tacitamente a desobediecircncia e o exiacutelio em certezas (vv 19-22)

O horizonte exiacutelico ou poacutes-exiacutelico sugerido pela intensa atividade redacio-nal detetada em Jr 2716-22 (TM) eacute igualmente extensiacutevel agraves unidades anteriores do capiacutetulo e em particular agrave temaacutetica do laquofalsoraquo profetismo Agrave semelhanccedila de Jr 239-32 a rejeiccedilatildeo do profetismo assume em Jr 279-18 (TM) um aspeto

33 Veja-se 2Rs 2413 (TM)34 Bogaert 2003 64 Carroll 2006 2530-3735 Sharp 2013

187

Joatildeo Pedro Vieira

manifestamente poleacutemico operando no sentido natildeo soacute da vilificaccedilatildeo e deslegi-timaccedilatildeo dos agentes profeacuteticos e sua responsabilizaccedilatildeo pela cataacutestrofe de 586 aC36 como tambeacutem da promoccedilatildeo da superioridade e autenticidade do muacutenus profeacutetico jeremiano A poleacutemica contra os laquofalsosraquo profetas jaacute enraizada na fase textualredacional testemunhada por LXX e assinalada noutros capiacutetulos pela traduccedilatildeo de nebicircrsquoicircm por pseudoprophecirctai quando aplicado a antagonistas37 insere-se no quadro ideoloacutegico de passagens como Ez 138-10 e Zc 132-6 natildeo fazendo provavelmente parte do nuacutecleo primitivo de Jr 2738

Jr 28 o confronto com Hananias e as esperanccedilas restauracionistasEacute em Jr 28 que a poleacutemica contra os profetas que apoiam a resistecircncia agrave

Babiloacutenia e anunciam o regresso de Joaquin dos exilados e dos objetos do tem-plo atinge um dos seus momentos mais marcantes na tradiccedilatildeo jeremiana Jr 28 relata um presumiacutevel confronto entre Jeremias e Ḥănanyāh b lsquoAzzucircr (Hananias) ocorrido no templo de Yahweh e datado do quinto mecircs do ano 4 de Sedecias ie aprox entre agosto e setembro de 593 aC (vd supra)

Conforme observado a propoacutesito de Jr 27 o momento era particularmente sensiacutevel do ponto de vista da poliacutetica externa judaiacuteta Por um lado a subleva-ccedilatildeo babiloacutenica de 595-594 aC ainda que de curta duraccedilatildeo e logo seguida de uma campanha agrave Siacuteria39 alimentara esperanccedilas na derrocada do impeacuterio e na consequente repatriaccedilatildeo dos deportados que continuariam a ecoar tanto nas comunidades exiacutelicas como em Judaacute Por outro o Egito comeccedilava a reafirmar a sua influecircncia na Siacuteria-Palestina e Judaacute no acircmbito do conveacutenio internacional de Jerusaleacutem discutia externa e internamente a eventualidade cada vez mais certa de uma insurreiccedilatildeo As conversaccedilotildees poliacutetico-diplomaacuteticas e o recru-descimento da agitaccedilatildeo sociopoliacutetica testemunhados por Jr 27-28 ter-se-atildeo desenvolvido sem conhecimento do desfecho da campanha militar vitoriosa do Egito contra o Kuš cujas notiacutecias teratildeo chegado a Elefantina por volta de 10 de II Šemu do ano 3 de Psameacutetico II ie 26-10-593 aC40 No entanto eacute provaacutevel que os acontecimentos em Jerusaleacutem pressupusessem o conhecimento de que

36 Veja-se Jr 531 810 206 1411-1637 Jr 267 8 11 16 281 291 8 mas tambeacutem 27938 Veja-se McKane 1996 685-708 Carroll 2006 2530-3739 Segundo a Croacutenica Babiloacutenica BM 21946 vordm ll 21-24 Nabucodonosor enfrentou uma

sublevaccedilatildeo entre Kislev e Tebet do seu ano 10 (ie dezembro de 595 ndash fevereiro de 594) a qual teraacute exigido a sua intervenccedilatildeo direta Entre Tebet e Adar do mesmo ano (meados de janeiro ndash meados de abril) Nabucodonosor teraacute marchado triunfalmente pelo Ḫatti numa campanha de meacutedio alcance com o objectivo dissuadir qualquer intuito de sublevaccedilatildeo nas proviacutencias oci-dentais (Glassner 2004 230-31 Wiseman 1956 73-74)

40 Kahn 2008 147 Talvez esse desconhecimento ajude a explicar parcialmente o facto de o Egito se manter fora do horizonte impliacutecito inerente ao relato do confronto entre Jeremias e Hananias

188

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

a campanha fora desencadeada e talvez mesmo a expectativa de um desenlace favoraacutevel ao Egito41

Hananias anuncia de forma contundente que Yahweh quebraraacute a cangajugo (lsquoōl) do rei da Babiloacutenia e faraacute regressar a Jerusaleacutem num prazo de 2 anos natildeo soacute os objetos do templo como igualmente Joaquin e os exilados de Judaacute (vv 2-3) Reafirmando retoricamente o anuacutencio de Hananias sob a forma de uma epiacutetrope (v 7) ndash mas omitindo (intencionalmente) a referecircncia a Joaquin ndash Jeremias capta a atenccedilatildeo do seu antagonista para rapidamente alegar que conquanto os profetas desde sempre (min halsquoocirclām) tivessem profetizado sobre a guerra (lemilḥāmāh v 8 TM expande a sequecircncia para completar a triacuteade laquoguerra fome e pesteraquo) contra grandes potecircncias soacute quando a palavra do pro-feta que anunciava a paz (šālocircm) se concretizasse se saberia que esse profeta cuja accedilatildeo natildeo beneficiava da autoridade da tradiccedilatildeo fora verdadeiramente enviado por Yahweh (v 9)

Hananias reage agressivamente reiterando a sua mensagem atraveacutes da subversatildeo fiacutesica e performativa da accedilatildeo jeremiana ndash a trave (cangalhos Heb mocircṭāh ne gr kloioi) da canga que Jeremias carregava eacute arrancada e quebrada (v 10) ndash e da reafirmaccedilatildeo do fim da hegemonia neobabiloacutenica por intervenccedilatildeo divina (v 11) Publicamente humilhado e desmantelada a sua argumentaccedilatildeo Je-remias retira-se42 A reacuteplica a Hananias surge pouco tempo depois atraveacutes de dois oraacuteculos de tom vincadamente acusatoacuterio e poleacutemico o primeiro reafirmando contundentemente a hegemonia neobabiloacutenica atraveacutes da imagem renovada da canga de ferro (vv 13-14) o segundo rejeitando a comissatildeo divina de Hananias e anunciando imprecatoriamente a sua morte (vv 15-17)

O contraste entre os vv 6-9 e 12-16 relativamente agrave atitude de Jeremias eacute conspiacutecuo e argumenta no sentido da secundariedade do uacuteltimo segmento43 estreitamente ligado agrave temaacutetica do laquofalsoraquo profetismo (a ele acresce muito prova-velmente o v 17) Esta temaacutetica configura um estrato redacional jaacute presente em LXX ndash Hananias eacute aqui classificado de pseudoprophecirctes (v 1) ndash mas aprofundado em TM pela adiccedilatildeo de v 16bβ Hananias eacute condenado agrave morte porque profetizou a rebeliatildeo (sārā) contra Yahweh44 Aleacutem disso a adiccedilatildeo sistemaacutetica do tiacutetulo nābicircrsquo em TM vv 5 6 10 12 15 17 reflete uma fase avanccedilada do processo de construccedilatildeo da imagem profeacutetica paradigmaacutetica de Jeremias vincando a sua superioridade e autoridade contra todos os restantes profetas caracterizados pela falsidade da

41 A conjugaccedilatildeo das informaccedilotildees fornecidas pelas inscriccedilotildees de Abu Simbel e pela Carta de Aristeias (Fernaacutendez Marcos 1983 13-14 2000 41 Thackeray 1904 2-4) sugerem a participaccedilatildeo de tropas auxiliares judaiacutetas na campanha saiacuteta contra o Kuš (Albertz 2003 97 Freedy ndash Redford 1970 476 contra Kahn 2007 2008 145-46)

42 Possivelmente secundaacuterio para McKane 1996 721-2243 Com De Jong 2012 e McKane 1996 72544 Veja-se Dt 136 Hibbard 2011 348

189

Joatildeo Pedro Vieira

sua comissatildeo e da sua mensagem45Caso se reconheccedila valor heuriacutestico miacutenimo agrave representaccedilatildeo narrativa de

Jr 28 cuja versatildeo mais antiga estaraacute conservada em LXX o confronto entre Jeremias e Hananias testemunha um recrudescimento significativo de tensotildees divergecircncias e conflitos de natureza sociopoliacutetica e ideoloacutegica em Jerusaleacutem acerca do domiacutenio neobabiloacutenico sobre Judaacute A intervenccedilatildeo antibabiloacutenica de Hananias sugere que sectores importantes da sociedade hierosolimita incluin-do parte das suas elites dirigentes acalentavam a esperanccedila na restauraccedilatildeo de Joaquin e no regresso dos exilados e dos objetos do templo siacutembolo da plena restauraccedilatildeo de Judaacute Para esses sectores a reversatildeo ao statu quo ante passaria necessariamente pela destruiccedilatildeo do Impeacuterio Neobabiloacutenico impulsionada pela intervenccedilatildeo salviacutefica de Yahweh46 Nos termos da ordem poliacutetica entatildeo vigente instituiacuteda e conservada sob controlo poliacutetico-militar neobabiloacutenico diferido a atividade profeacutetica de Hananias revestia-se de um caraacutecter manifestamente sub-versivo assumindo a ilegitimidade de Sedecias e anunciando o fim divinamente determinado da sua realeza

Neste contexto ao defender o dever de submissatildeo de Judaacute agrave Babiloacutenia Jeremias agia em conformidade impliacutecita com os interesses da monarquia sedeciana e dos seus grupos de apoio conferindo-lhes a sanccedilatildeo divina que Hananias lhes negava Tal atuaccedilatildeo poderaacute eventualmente explicar a omissatildeo da referecircncia a Joaquin no v 7 facto congruente com a imagem criacutetica (ou ateacute hostil) de Joaquin transmitida por Jr 1318 (TM) e 2224a (LXX) 28-30ordf (LXX)47 De acordo com a presumiacutevel tendecircncia primitiva destas passagens Joaquin fora humilhado despojado da sua realeza e banido (heb lsquoăricircricirc gr ekkecircrukton) de Judaacute por Yahweh o qual rejeitara assim a sua relaccedilatildeo de privileacutegio e eleiccedilatildeo com o rei judaiacuteta Apesar de Joaquin e as elites dirigentes hierosolimitas terem acabado por se render a Nabucodonosor apoacutes um curto cerco evitando assim a

45 Carroll 1996 192 2004 77-80 De Jong 201146 Seitz 1989 20947 A anaacutelise da periacutecope suscita muacuteltiplas interpretaccedilotildees e reconstruccedilotildees de cariz redacional

por vezes francamente divergentes (Job 2006 79-97 McKane [1986] 2001 540-52 Holladay 1986-89 1604-12 Lundbom 2004 153-64) Assume-se aqui que Ag 223 eacute posterior a Jr 2224 e que os vv 24b-27 devem ser excluiacutedos como comentaacuterio exegeacutetico desenvolvido com base no v 24a eou 28 Quanto aos vv 28-30 e embora LXX possa refletir um texto-base hebraico defetivo por haplografia nalguns casos (v 28aα2 30aβ) o v 28b (TM) apresenta sinais muito significativos de intervenccedilatildeo redacional As formas verbais singulares do v 28b (LXX) indicam que wezarlsquoocirc (gtLXX) seraacute secundaacuterio e que as desinecircncias verbais teratildeo sido correspondente-mente harmoni- zadas em TM Aleacutem disso a forma declarativa do v 28 (LXX) carecendo de correspondente para halsquoeṣeb e da referecircncia agrave descendecircncia do rei transmite um significado diferente ao v Joaquin foi efetivamente dispensado como um vaso inuacutetil expulso de Judaacute No v 30 lsquoăricircricirc significaraacute muito provavelmente laquobanidoraquo segundo LXX e natildeo laquosem filhosraquo pelo que o v 30b deveraacute ser considerado uma glosa secundaacuteria hipoteticamente ligada agraves intervenccedilotildees responsaacuteveis pela inserccedilatildeo da temaacutetica do destino e estatuto da descendecircncia joaquinita e por uma ressemantificaccedilatildeo de lsquoăricircricirc

190

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

ocupaccedilatildeo violenta e destruiccedilatildeo da cidade Jeremias parece ter subalternizado o ato de submissatildeo perante as consequecircncias disruptivas da resistecircncia Todavia natildeo eacute possiacutevel determinar se a atuaccedilatildeo do profeta implicava um compromisso ou simplesmente um alinhamento sociopoliacutetico e ideoloacutegico ainda que parcial com a elite dirigente sedeciana

Jr 29 Babiloacutenia uma nova JudaacuteConstruto literaacuterio eivado de problemas textuais redacionais e interpreta-

tivos48 Jr 29 transfere para as comunidades exiladas na Babiloacutenia o horizonte da conflituosidade sociopoliacutetica e ideoloacutegica em torno da suserania neobabiloacutenica e introduz uma perspetiva escatoloacutegica de restauraccedilatildeo aparentemente em bene-fiacutecio exclusivo dos deportados de 597 aC A sobrescriccedilatildeo editorial constituiacuteda pelos vv 1-3 identifica o texto sequente como uma carta (heb sēper gr biacuteblou) de Jeremias dirigida aos anciatildeos sacerdotes e profetas (LXX pseudoprohecirctas) de-portados para a Babiloacutenia em 597 aC O v 2 data a carta de forma algo imprecisa limitando-se a situaacute-la apoacutes a deportaccedilatildeo de 597 aC (ie 597-596 aC) embora essa dataccedilatildeo seja francamente duvidosa e natildeo pareccedila ser igualmente aplicaacutevel ao episoacutedio de Acab e de Sedecias (vv 21-23) melhor enquadraacutevel no contexto da insurreiccedilatildeo babiloacutenica de 595-594 aC49 nem porventura ao alegado surgimento de figuras profeacuteticas na Babiloacutenia (v 15b)

Jeremias exorta os exilados a instalarem-se de modo permanente e a desenvolverem pacificamente a sua existecircncia na Babiloacutenia assumida como espaccedilo de vivecircncia efetivo (presente) e aparentemente transgeracional (futuro) da comunidade deportada (vv 5-6) O v 7 representa o paroxismo da poliacutetica submissiva e colaboracionista propugnada por Jeremias os exilados satildeo instados a procurar o sucessoprosperidade (šalocircm) da Babiloacutenia (TM lsquoicircr mas LXX gecircn) e a rogar por ela (TM) a Yahweh pois da prosperidade da Babiloacutenia (TM) depen-dia intimamente a prosperidade dos exilados50 Deste modo Jeremias afirmava a identidade total e divinamente prescrita entre os destinos da comunidade exiacutelica e os destinos do Impeacuterio Neobabiloacutenico contra qualquer esperanccedila de colapso do

48 A anaacutelise de Jr 29 abaixo esboccedilada revela a coexistecircncia de perspetivas divergentes sobre o exiacutelio o estatuto das comunidades judaiacutetas em Jerusaleacutem e na Babiloacutenia a restauraccedilatildeo de Judaacute e o proacuteprio papel de Jeremias na sua dupla aceccedilatildeo de personagem histoacuterica e tradiccedilatildeo textual indiciando o desenvolvimento de intensos conflitos pela autoridade religiosa e sociopoliacutetica sobre Jerusaleacutem e Judaacute nos periacuteodos neobabiloacutenico e persa Sobre os conflitos sociopoliacuteticos e ideoloacutegicos dos periacuteodos neobabiloacutenico e persa veja-se eg Person 2002 Leuchter 2008 Sharp 2003 157-64 Carroll 1996 72-73 258-60

49 Veja-se Holladay 1986-89 1 contra Lundbom 200450 A inextricabilidade entre os destinos da comunidade deportada e o Impeacuterio Neobabiloacuteni-

co eacute mitigada em LXX atraveacutes da traduccedilatildeo dos sufixos pronominais hebraicos na 3ordf p sg (-āh) por pronomes pessoais na 3ordf p pl (autocircn) desvinculando da Babiloacutenia natildeo soacute o imperativo de intercessatildeo como igualmente a prosperidade da comunidade exilada

191

Joatildeo Pedro Vieira

impeacuterio e de repatriaccedilatildeo dos deportados a curtomeacutedio prazo51As secccedilotildees seguintes carecem de uma ligaccedilatildeo orgacircnica ao nuacutecleo da

mensagem jeremiana surgindo de forma aparentemente apositiva algo desconexa e tematicamente algo irrelevante devendo ser mais propriamente interpretadas como expansotildees redacionais e exegeacuteticas centradas na (re)in-terpretaccedilatildeo dos vv 5-752 Usando de fraseologia tiacutepica os vv 8-9 regressam agrave poleacutemica contra o profetismo rejeitando categoricamente quaisquer formas de mediaccedilatildeo profeacutetica ou divinatoacuteria e classificando natildeo soacute a mensagem desses agentes ndash cujo conteuacutedo o texto natildeo explicita ndash de falsa como tambeacutem a sua comissatildeo divina de ilegiacutetima Segue-se nova viragem discursiva e temaacutetica compreendida pelos vv 10-14aα1 que introduzem uma perspetiva escatoloacutegica e salviacutefica em benefiacutecio dos exilados de 597 aC Yahweh anuncia que dentro de 70 anos faraacute regressar a laquoeste lugarraquo (rsquoel hammaqocircm hazzeh) ndash provavelmente Jerusaleacutem ndash os deportados de 597 aC

O texto longo da versatildeo massoreacutetica insere neste ponto duas extensas adiccedilotildees redacionais constituiacutedas pelos vv 14aα2 e 16-20 e apresenta um texto desconexo cuja sequecircncia primitiva provaacutevel (vv 14 16-20 15 21) eacute testemu-nhada pela recensatildeo luciacircnica53 Estas inserccedilotildees introduzem viragens discursivas profundas e natildeo menos irrelevantes na oacutetica dos vv 5-7 Enquanto o v 14aα2 expande a promessa de restauraccedilatildeo a todos os deportados e exilados assumin-do uma perspetiva poacutes-586 aC e contradizendo a tendecircncia exclusivista dos vv 10-14aα1 os vv 16-20 centram-se na condenaccedilatildeo total da realeza daviacutedida e da comunidade judaiacuteta que permaneceu em Jerusaleacutem em 597 aC votadas ao extermiacutenio recuperando para isso vaacuterios toacutepicos e estruturas fraseoloacutegicas caracteriacutesticas do idioleto deuterojeremiano54

Com base no v 15 os vv 21-31 regressam agrave poleacutemica contra o profetismo e respondem negativamente agrave pretensatildeo de acesso agrave mediaccedilatildeo profeacutetica na Babiloacute-nia declarada pelos exilados (v 15) Agrave exceccedilatildeo de carta de Šemalsquoyāhucirc (Chemaiacuteas)

(vv [25]26-28) todo o restante material em forma oracular poderaacute ser conside-rado uma excrescecircncia redacional em torno da temaacutetica do laquofalsoraquo profetismo embora o valor heuriacutestico dos seus componentes seja variaacutevel

Assim os vv 21-23 contecircm um oraacuteculo consagrado agrave difamaccedilatildeo e anatemi-zaccedilatildeo de Acab (TM + b Qocirclāyāh) e de Sedecias (TM + b Marsquoăśēyāh) aos quais

51 Veja-se Hill 1999 147-53 O autor enfatiza a similaridade fraseoloacutegica iacutentima entre Jr 295-7 Dt 205-8 e Is 6521-23

52 McKane 1996 735-46 Carroll 2006 2555-5853 Esta ordem apresenta a conspiacutecua vantagem de oferecer uma sequecircncia discursiva mais

coerente e inteligiacutevel aos vv 14-21 (Janzen 1973 118 Ziegler 1957 346-47)54 Perseguiccedilatildeo e extermiacutenio pela espada fome e peste transformaccedilatildeo num objecto de horror

maldiccedilatildeo etc a recusa em ouvir a palavra de Yahweh o envio continuado dos profetas servos de Yahweh De referir ainda a menccedilatildeo inicial agrave imagem dos figos baseada em Jr 24 Relativamente agrave fraseologia e aos toacutepicos deuterojeremianos veja-se Stulman 1986 89-94 Stipp 1998 2009

192

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

TM atribui um estatuto claramente profeacutetico atraveacutes da adiccedilatildeo do v 21aβ ainda que os motivos avanccedilados para tatildeo perentoacuteria condenaccedilatildeo pareccedilam insuficien-tes e vagos senatildeo mesmo inconsequentes Finalmente os vv 24-32 direcionam a poleacutemica contra Chemaiacuteas atraveacutes de dois oraacuteculos O primeiro incompleto (vv 25-28) censuraria Chemaiacuteas por repreender o sacerdoacutecio hierosolimita por natildeo reprimir e castigar Jeremias que anunciava a longa duraccedilatildeo do exiacutelio (interpretaccedilatildeo baseada no v 6) e incentivava os exilados agrave aceitaccedilatildeo do status quo Jaacute o segundo oraacuteculo (vv 31-32) dirigido aos exilados critica asperamente Chemaiacuteas por ter profetizado de forma falsa e ilegiacutetima (v 31) ndash TM acrescenta o tema da rebeliatildeo (sārāh v 32b) em linha com 2816bβ ndash Chemaiacuteas seraacute castigado e a sua descendecircncia excluiacuteda do plano divino de restauraccedilatildeo de Judaacute (v 32)

Eacute provavelmente no nuacutecleo heuriacutestico constituiacutedo pelos vv 5-7 (25)26-28 que se concentraratildeo os dados mais relevantes e fiaacuteveis acerca da atitude de Jere-mias para com o imperium neobabiloacutenico e do modo como essa atitude era per-cecionada entre as elites deportadas na Babiloacutenia Agrave luz da injunccedilatildeo jeremiana dos vv 5-7 a Babiloacutenia natildeo deveria ser encarada como um espaccedilo de privaccedilatildeo submissatildeo e servidatildeo mas sim como um espaccedilo positivo e ateacute promissor onde os deportados tinham oportunidade de beneficiar apesar de tudo da continui-dade transgeracional das becircnccedilatildeos divinas e nesse sentido de uma existecircncia tatildeo paciacutefica e proacutespera quanto maior fosse a sua cooperaccedilatildeo com o impeacuterio Daiacute que Hill considere a existecircncia de uma identificaccedilatildeo metafoacuterica entre Judaacute e a Babiloacutenia por um lado e Jerusaleacutem e a cidade da Babiloacutenia por outro55

Ao exortar os judaiacutetas deportados agrave aceitaccedilatildeo do status quo adquirido e ao incitaacute-los agrave geraccedilatildeo de descendecircncia (v 6) Jeremias reconheceria implicitamente a improbabilidade de uma reposiccedilatildeo do status quo anterior a 597 aC e aceitava claramente a possibilidade da longa duraccedilatildeo do exiacutelio parecendo ignorar em simultacircneo de forma talvez intencional natildeo somente as privaccedilotildees e humilhaccedilotildees inerentes agrave deportaccedilatildeo como tambeacutem as pretensotildees sociopoliacuteticas das elites deportadas agrave sua repatriaccedilatildeo e agrave recuperaccedilatildeo do seu anterior estatuto e poder em Jerusaleacutem Os protestos de Chemaiacuteas provavelmente um membro qualificado do sacerdoacutecio hierosolimita ou da administraccedilatildeo reacutegia ndash e natildeo profeta ndash sugerem que as elites hierosolimitas deportadas continuavam a exercer influecircncia sobre Jerusaleacutem repudiavam natural e veementemente qualquer cenaacuterio de prolon-gamento do exiacutelio e procuravam dissuadir e reprimir todo e qualquer discurso nesse sentido Uma vez mais Jeremias parece agir em conformidade com os interesses da realeza sedeciana e sua envolvecircncia sociopoliacutetica cujo estatuto seria profundamente afetado pelo regresso das elites deportadas56

55 Hill 1999 147-53 199 20556 No entanto a evoluccedilatildeo poliacutetica de Judaacute entre 592-587 com a ascensatildeo das inclinaccedilotildees e

grupos proacute-babiloacutenicos em Jerusaleacutem e a aproximaccedilatildeo cada vez maior ao Egito teraacute contribuiacutedo para um desgaste crescente das relaccedilotildees entre Jeremias e a realeza sedeciana (Jr 3711-16 384-

193

Joatildeo Pedro Vieira

Conclusatildeo Jeremias e o desenvolvimento de uma ideologia de submissatildeoO lugar do Egito no discurso jeremianoA manifesta importacircncia do Egito na poliacutetica externa judaiacuteta entre 594 e

586 aC corroborada por Ez 171557 e pelo oacutestraco nordm 3 de Laqiš58 faria esperar o afloramento de referecircncias a essa potecircncia no acircmbito de Jr 27-29 No entanto o Egito estaacute surpreendentemente ausente de Jr 27-29 quer nas suas formas mais antigas quer no texto longo massoreacutetico Esta natildeo eacute poreacutem uma situaccedilatildeo cir-cunscrita a Jr 27-29 Considerando o conjunto da tradiccedilatildeo jeremiana e excluindo agrave partida natildeo soacute materiais claramente exiacutelicos disseminados ao longo de Jr 4114 ndash 44 ndash que reduzem o Egito de forma poleacutemica e difamatoacuteria a um espaccedilo de puniccedilatildeo execraccedilatildeo e extermiacutenio dos judaiacutetas natildeo deportados ndash como tambeacutem os materiais oraculares de Jr 461-2659 ndash cuja atribuiccedilatildeo se afigura altamente proble-maacutetica ndash restam apenas escassos materiais associaacuteveis ao Egito e enquadraacuteveis na actividade sociopoliacutetica coeva de Jeremias eg Jr 376-8 4210-12 Mesmo aqui o Egito saiacuteta permanece uma realidade poliacutetica impliacutecita natildeo nomeada60

Por conseguinte para o discurso jeremiano a opccedilatildeo poliacutetica alternativa agrave submissatildeo ao Impeacuterio Neobabiloacutenico parece nunca se ter colocado nos termos de um alinhamento poliacutetico com o Egito saiacuteta mas simplesmente nos termos da rejeiccedilatildeo da ndash e da resistecircncia agrave ndash suserania neobabiloacutenica Tal posiccedilatildeo poliacutetica e ideoloacutegica contrasta nitidamente com Jr 218 36 passagens que criticam veementemente a poliacutetica de alianccedilas de Judaacute entendida como inaceitaacutevel mani-festaccedilatildeo de infidelidade e apontam para um isolacionismo teopoliacutetico centrado na suserania de Yahweh pouco compatiacutevel com a difiacutecil situaccedilatildeo poliacutetica de Judaacute no periacuteodo 609-586 aC

Esta leitura sugere que Jr 218 36 e sua envolvecircncia apesar de historicamente

5)57 De acordo com este v Sedecias teraacute procurado o apoio militar (e certamente poliacutetico) do

Egito atraveacutes do fornecimento de cavalos e tropas58 Dataacutevel do periacuteodo 592-588 aC o oacutestraco nordm 3 de Laqiš (ll 14-18) menciona uma deslo-

caccedilatildeo do comandante (śar haṣābārsquo) Konyāhucirc b rsquoElnātān em direccedilatildeo ao Egito que poderaacute indiciar a existecircncia de relaccedilotildees poliacutetico-militares ativas com essa potecircncia no acircmbito da assistecircncia a que Ez 1715 alude (Lemaire 1977 108 Veja-se Lipschits 2005 64-65)

59 Trata-se de materiais que celebram a derrota de Necao II em Qarkemiš (605 aC) e a vin-ganccedila de sangue obtida por Yahweh pelas humilhaccedilotildees infligidas a Judaacute e anunciam a invasatildeo e subjugaccedilatildeo do Egito agraves matildeos de Nabucodonosor II

60 Em Jr 376-8 ainda que Jeremias advirta implicitamente contra as falsas esperanccedilas depo-sitadas no auxiacutelio egiacutepcio o foco discursivo repousa sobre a inamovibilidade da ameaccedila militar neobabiloacutenica (veja-se Ez 1715-17) Jaacute em Jr 4210-12 na sequecircncia do assassiacutenio de Godolias e perante a iminecircncia de uma fuga para o Egito o profeta garantia aos judaiacutetas a proteccedilatildeo de Yahweh contra uma eventual intervenccedilatildeo babiloacutenica e desaconselhava implicitamente o exiacutelio para o Egito Veja-se Lipschits 2005 304-49 Stipp 2012

194

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

relevantes oferecem uma representaccedilatildeo tardia da atividade historiograficamen-te presumida de Jeremias Contrariamente o discurso jeremiano de Jr 27-29 revela-se criticamente orientado para a proteccedilatildeo e conservaccedilatildeo da realeza judaiacute-ta e para a sobrevivecircncia etnopoliacutetica de Judaacute correspondendo assim ao perfil profeacutetico sociologicamente construtivo e mais antigo identificado por De Jong61 Os motivos pelos quais o Egito constitui um elemento marginal no discurso poliacutetico de Jr 27-29 natildeo satildeo facilmente identificaacuteveis

A aceitaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico como condiccedilatildeo de sobrevivecircncia poliacuteticaA anaacutelise de Jr 27-29 indica que Jeremias teraacute sido muito provavelmente

um defensor inveterado da submissatildeo poliacutetica agrave Babiloacutenia possivelmente desde a eacutepoca da primeira deportaccedilatildeo O seu discurso incorpora um entendimento realista das circunstacircncias poliacuteticas de Judaacute no contexto geopoliacutetico da Aacutesia Ocidental e emerge como um verdadeiro discurso de submissatildeo marcado pela interiorizaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo ideoloacutegica da estrutura de relaccedilotildees de poder vi-gente (subalternidade) Para Jeremias a submissatildeo era a condiccedilatildeo divinamente sancionada da sobrevivecircncia da monarquia judaiacuteta Este desenvolvimento ideo-loacutegico e discursivo acomodatiacutecio e cooperante exemplarmente ilustrado em Jr 295-7 natildeo eacute totalmente inaudito no contexto cultural siro palestinense Em-bora num contexto significativamente diferente as inscriccedilotildees de Panammuwa II e Bar-Rakib (c 733-725 aC) ilustram o modo como as elites sociopoliacuteticas e a realeza de Samlsquoal desenvolveram uma retoacuterica e ideologia de subalternidade em que o estatuto de vassalidade do reino foi incorporado como um facto poliacutetico positivo gerador de poder e prestiacutegio62

Eacute provaacutevel que a atividade sociopoliacutetica de Jeremias oferecendo ao domiacutenio neobabiloacutenico uma sanccedilatildeo divina local tenha chegado ao conhecimento das eli-tes neobabiloacutenicas Efetivamente se essa atividade teve a inclinaccedilatildeo ideoloacutegica e pelo menos alguma da visibilidade e impacto que os segmentos mais fiaacuteveis da tradiccedilatildeo jeremiana lhe atribuem afigura-se provaacutevel que a corte neobabiloacutenica estivesse minimamente ciente do valor sociopoliacutetico e religioso de Jeremias e o encarasse como instrumento local de legitimaccedilatildeo e imposiccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico sobre Judaacute

Existem alguns dados que corroboram este cenaacuterio A praacutetica poliacutetica im-perial neoassiacuteria63 Ez 1712-19 e 2Cr 3613 sugerem que Nabucodonosor II teraacute coagido Sedecias a celebrar um tratado jurado que invocaria Yahweh como uma das testemunhas e garantes divinos da sua observacircncia e executor das maldiccedilotildees

61 De Jong 2011 507-862 KAI 215-216 Hallo 2003 158-61 veja-se Hamilton 1998 221-3063 Veja-se eg tratado de Assaradatildeo com Balsquoal de Tiro IV ll 6-18 (SAA 25)

195

Joatildeo Pedro Vieira

previstas em caso de incumprimento64 Tal inclusatildeo significava a ocorrecircncia de um aproveitamento e instrumentalizaccedilatildeo estrateacutegicos dos recursos simboacutelicos e ideoloacutegicos locais ao serviccedilo da imposiccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico Para aleacutem disso os corpora profeacuteticos mariota e neo-assiacuterio assim como o tratado de sucessatildeo de Assaradatildeo com Humbareš de Nahšimarti65 ilustram eloquentemente o poder poliacutetico e ideoloacutegico que a realeza mesopotacircmica reconhecia ao fenoacuteme-no profeacutetico cujas manifestaccedilotildees procurava ativamente monitorizar e controlar66

O reconhecimento do valor sociopoliacutetico do profetismo jeremiano poderia assim explicar tanto o pretenso tratamento de exceccedilatildeo que os altos oficiais mili-tares neobabiloacutenicos teratildeo reservado a Jeremias como igualmente a transmissatildeo da tutela sobre o profeta ao governo provincial de Miṣpāh sob a lideranccedila de Godolias na sequecircncia da ocupaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do desmante-lamento da monarquia judaiacuteta (Jr 3914 cf 401-3) Teraacute sido nestas condiccedilotildees que Jeremias teraacute dado continuidade agrave mensagem poliacutetica preacutevia defendendo que os babiloacutenios natildeo deveriam ser temidos ndash em linha com o discurso poliacutetico do governo provincial (Jr 409aβ-10) ndash e que (apoacutes o assassiacutenio de Godolias) os judaiacutetas deveriam permanecer em Judaacute (Jr 4210-12)67

64 Wong 2001 59-65 Monte 2010 9265 ND 4336 ll 108-122 (SAA 26)66 Nissinen 2003 Caramelo 200267 Veja-se Stipp 2012 122 125-32

196

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

Bibliografia

Albertz Rainer 2003 Israel in Exile The History and the Literature of the Sixth Century BCE Atlanta Society of Biblical Literature

mdashmdashmdash 1994 From the Beginnings to the End of the Monarchy Vol 1 de A History of Israelite Religion in the Old Testament Period Louisville Westminster John Knox Press

Bartheacutelemy Dominique 1986 Isaiumle Jeacutereacutemie Lamentations Vol 2 de Critique Textuelle de lrsquoAncien Testament Fribourg Goumlttingen Eacuteditions Universitaires Fribourg Vandenhoeck amp Ruprecht

Becking Bob 2004 Between Fear and Freedom Essays on the Interpretation of Jeremiah 30-31 Leiden Brill

Bogaert Pierre-Maurice 2003 ldquoLa vetus latina de Jeacutereacutemie texte tregraves curt teacutemoin de la plus ancienne Septante et drsquoune forme plus ancienne de lrsquoheacutebreu (Jer 39 et 52)rdquo In The Earliest Text of the Hebrew Bible The Relationship between the Masoretic Text and the Hebrew Base of the Septuagint Reconsidered ed Adrian Schenker 51-82 Atlanta Society of Biblical Literature

Caramelo Francisco 2002 A linguagem profeacutetica na Mesopotacircmia (Mari e Assiacuteria) Cascais Patrimonia

Crawford Sidnie Jan Joosten e Eugene Ulrich 2008 ldquoEditions of the Oxford Hebrew Bible Deuteronomy 321-9 1 Kings 111-8 and Jeremiah 271-10 (34 G)rdquo Vetus Testamentum 58352-66

Carrol Robert P 2006 Jeremiah 2 vols Sheffield Sheffield Phoenix Pressmdashmdashmdash 1996 Uses of Prophecy in the Book of Jeremiah London Xpress ReprintsDonner Herbert e Wolfgang Roumlllig 2002 Kanaanaumlische und aramaumlische

Inschriften Vol 1 Wiesbaden Harrassowitz VerlagElliger Karl e Wilhelm Rudolph eds 1997 תורה נביאים וכתובים Biblia Hebraica

Stuttgartensia Stuttgart Deutsche BibelgesellschaftFernaacutendez Marcos Natalio 1983 ldquoCarta de Aristeasrdquo In Apoacutecrifos del Antiguo

Testamento Tomo 2 dir Alejandro Diez Macho 9-64 Madrid Ediciones Cristianidad

Foreman Benjamin A 2011 Animal Metaphors and the People of Israel in the Book of Jeremiah Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht

Freedy Kenneth S e Donald B Redford 1970 ldquoThe Dates in Ezekiel in Relation to Biblical Babylonian and Egyptian Sourcesrdquo Journal of the American Oriental Society 90 (3)462-85

Galil Gershon 1996 The Chronology of the Kings of Israel and Judah Leiden Brill

Glassner Jean-Jacques 2005 Mesopotamian Chronicles Leiden Brill

197

Joatildeo Pedro Vieira

Hallo William W ed 2003 Monumental Inscriptions from the Biblical World Vol 2 de The Context of Scripture Canonical Compositions Monumental Inscriptions and Documents from the Biblical World Leiden Brill

Hamilton Mark W 1998 ldquoThe Past as Destiny Historical Visions in Samrsquoal and Judah under Assyrian Hegemonyrdquo The Harvard Theological Review 91 (3)215-230

Hill John 1999 Friend of Foe The Figure of Babylon in the Book of Jeremiah MT Leiden Brill

Holladay William L 1986-89 Jeremiah A Commentary on the Book of the Prophet Jeremiah 2 vols Philadelphia Minneapolis Fortress Press

Hibbard J Todd 2011 ldquoTrue and False Prophecy Jeremiahrsquos Revision of Deuteronomyrdquo Journal for the Study of the Old Testament 35 (3)339-58

Janzen John Gerald 1973 Studies in the Text of Jeremiah Cambridge Harvard University Press

Jong Matthijs J de 2012 ldquoThe Fallacy of lsquoTrue and Falsersquo in Prophecy Illustrated by Jer 288-9rdquo Journal of Hebrew Scriptures 12 (5) Disponiacutevel em httpwwwjhsonlineorgArticlesarticle_172pdf (12-10-2012)

mdashmdashmdash 2011 ldquoWhy Jeremiah is Not Among the Prophets An Analysis of the Terms נביא and נבאים in the Book of Jeremiahrdquo Journal of Hebrew Scriptures 35 (4)483-510

Kahn Danrsquoel 2008 ldquoSome Remarks on the Foreign Policy of Psammetichus II in the Levant (595-589 BC)rdquo Journal of Egyptian History 1 (1)139-57

mdashmdashmdash 2007 ldquoJudean Auxiliaries in Egyptrsquos Wars against Kushrdquo Journal of the American Oriental Society 127 (4)507-16

Khoeler Ludwig e Walter Baumgartner 2000 The Hebrew and Aramaic Lexicon to the Old Testament Leiden Brill

Lemaire Andreacute 1977 Les Ostraca Tomo 1 de Inscriptions heacutebraiumlques Paris Les Eacuteditions du Cerf

Leuchter Mark 2008 The Polemics of Exile in Jeremiah 26-45 Cambridge Cambridge University Press

mdashmdashmdash 2006 Josiahrsquos Reform and Jeremiahrsquos Scroll Historical Calamity and Prophetic Response Sheffield Sheffield Phoenix Press

Lipschits Oded 2005 The Fall and Rise of Jerusalem Judah under Babylonian Rule Winona Lake Eisenbrauns

Lundbom Jack R 2010 Jeremiah Closer Up the Prophet and the Book Sheffield Sheffield Phoenix Press

mdashmdashmdash 2004 Jeremiah 21-36 A New Translation with Introduction and Commentary New York Doubleday

198

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

mdashmdashmdash 1999 Jeremiah 1-20 A New Translation with Introduction and Commentary New York Doubleday

Malamat Abraham 2001 History of biblical Israel major problems and minor issues Leiden Brill

McKane William 1996 Commentary on Jeremiah XXVI-LII Vol 2 de A Critical and Exegetical Commentary on Jeremiah Edinburgh T amp T Clark

mdashmdashmdash (1986) 2001 Introduction and Commentary on Jeremiah I-XXV Vol 1 de A Critical and Exegetical Commentary on Jeremiah Reimp Edinburgh New York T amp T Clark

Miller James M e John H Hayes 2006 A History of Ancient Israel and Judah Louisville Westminster John Knox Press

Monte Marcel 2010 ldquoOs tratados adē ndash instrumentos poliacuteticos e juriacutedicos na construccedilatildeo imperial assiacuteria (seacutecs VIII-VII aC)rdquo Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Narsquoaman Nadav 2005 Ancient Israel and Its Neighbors Interaction and Counteraction Collected essays Vol 1 Winona Lake Eisenbrauns

Nissinen Marti 2003 Prophets and Prophecy in the Ancient Near East Atlanta Society of Biblical Literature

Parker Richard A e Waldo H Dubberstein 1956 Babylonian Chronology 626 BC-AD 75 Providence Brown University Press

Parpola Simo e Kazuko Watanabe eds 1988 Neo-Assyrian Treaties and Loyalty Oaths Vol 2 de State Archives of Assyria Helsinki Helsinki University Press

Person Raymond F 2002 The Deuteronomic School History Social Setting and Literature Atlanta Society of Biblical Literature

Rabin Chaim Shemaryahu Talmon e Emanuel Tov eds 1997 The Book of Jeremiah Jerusalem Magnes Press

Schipper Bernd U 2011 ldquoEgyptian Imperialism after the New Kingdom The 26th Dynasty and the Southern Levantrdquo In Egypt Canaan and Israel History Imperialism Ideology and Literature Proceedings of a Conference at the University of Haifa 3-7 May 2009 ed S Bar Danrsquoel Kahn e J Shirley 268-90 Leiden Boston Brill

Seitz Christopher 1989 Theology in Conflict Reactions to Exile in the Book of Jeremiah Berlin Walter De Gruyter

Sharp Carolyn J 2003 Prophecy and Ideology in Jeremiah Struggles for Authority in Deutero-Jeremianic Prose London New York T amp T Clark

Stipp Hermann-Josef 2010 ldquoThe Concept of the Empty Land in Jeremiah 37-43rdquo In The Concept of Exile in Ancient Israel and its Contexts ed Ehud Ben Zvi e Christoph Levin 103-54 Berlin New York Walter de Gruyter

199

Joatildeo Pedro Vieira

mdashmdashmdash 1998 Deuterojeremianische Konkordanz St Ottilien Eos VerlagStulman Louis 1986 The Prose Sermons of the Book of Jeremiah A Redescription

of the Correspondences with Deuteronomistic Literature in Light of the Recent Text-Critical Research Atlanta Scholars Press

mdashmdashmdash 1985 The Other Text of Jeremiah A Reconstruction of the Hebrew Text Underlying the Greek Version of the Prose Sections of Jeremiah With English Translation Lanham New York London University Press of America

Sweeney Marvin Alany 2001 King Josiah The Lost Messiah of Israel Oxford Oxford University Press

Talshir Zipora 1996 ldquoThe Three Deaths of Josiah and the Strata of Biblical Historiography (2 Kings XXIII 29-30 2 Chronicles XXXV 20-5 1 Esdras I 23-31)rdquo Vetus Testamentum 46 (2)213-36

Thackeray Henry 1904 The Letter of Aristeas translated into English London Macmillan

Tov Emanuel 1999 The Greek and Hebrew Bible Collected Essays on the Septuagint Leiden Boston Koumlln Brill

mdashmdashmdash 1997 ldquoSome Aspects of the Textual and Literary History of the Book of Jeremiahrdquo In Le Livre de Jeacutereacutemie Le prophegravete et son milieu Les oracles et leur transmission ed Pierre-Maurice Bogaert 145-67 Leuven Leuven University Press

Wiseman Donald John 1956 Chronicles of the Chaldean Kings (626-556 BC) in the British Museum London Trustees of the British Museum

Wong Ka Leung 2001 The idea of retribution in the Book of Ezekiel Leiden Brill

Ziegler Joseph ed 1957 Ieremias Baruch Threni Epistula Ieremiae Vol 15 de Septuaginta Vetus Testamentum Graecum Auctoritate Societatis Literarum Gottingensis editum Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

201

Antoacutenio Ramos dos Santos

Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico1 (Nabonidus and the end of the Neobabilonian Empire)

Antoacutenio Ramos dos Santos(ajr-santossapopt ORCID 0000-0002-6610-9733)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de Histoacuteria

Resumo - Este estudo trata a figura de Naboacutenido o uacuteltimo rei do impeacuterio neoba-biloacutenico Pretende-se apresentar uma breve biografia expondo eventos decorridos ao longo do seacuteculo VI a C bem como analisar a questatildeo do poder real e respetiva subdivisatildeo relacionando-o com eventos de instabilidade poliacutetica em particular a sua deslocaccedilatildeo agrave Araacutebia em 553 aC

Palavras-chave Naboacutenido Babiloacutenia Imperialismo Araacutebia Teima

Abstract ndash This study regards the figure of Nabonidus the last king of the Neobabilonian empire It is intended to present a brief biography exposing events which occurred throughout the 6th century BCE and to analyse the matter of royal power and its subdivision relating it to events of political instability particularly relating to the Arabian expedition of 553BCE

Keywords Nabonidus Babilonia Imperialism Arabia Tayma

Natildeo se sabe praticamente nada acerca das atividades do uacuteltimo rei de Ba-biloacutenia antes da sua subida ao trono Pensou-se que desempenhara o cargo de prefeito durante o reinado de Nabucodonosor porque aparece um personagem chamado Naboacutenido que tinha esse tiacutetulo citado em 597 num documento Mas tal implicava que tivesse uma vintena de anos e consequentemente assumido o poder com a idade de 70 anos O que parece pouco provaacutevel devendo-se dis-tinguir os personagens Por outro lado a estela de Pognon2 parece indicar um nascimento tardio tendo a sua matildee dado agrave luz em 610-600 mas natildeo mais tarde

Segundo elementos informativos procedentes da estela de Adad-guppi3

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013

2 Veja-se Beaulieu 1989 703 Ver ADAD-GUPPI - IM-gu-up-pi-I (649-547aC) - Matildee do rei Naboacutenido da X dinastia

de Babiloacutenia (dinastia caldaica) e mulher conhecida sobretudo pelas suas estelas ndash uma com uma autobiografia ndash de Kharran cidade nativa e onde foi devota (palikhtu) como sacerdotisa do templo Ekhulkhul dedicado ao deus Sicircn (deus lua) Soube demonstrar a sua piedade tambeacutem demonstrada agraves divindades Ningal Nusku e Sadarnunna no seu filho fazendo por ele tudo quanto foi necessaacuterio para introduzi-lo na corte de Nabucodonosor II e de Neriglissar Alcanccedilado esse objectivo Naboacutenido aproveitando um golpe militar produzido contra Labashi-Marduk com um reinado efeacutemero ficou com o controlo de Babiloacutenia Segundo a documentaccedilatildeo existente Adad-guppi morreu centenaacuteria (102 anos)

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_10

202

Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico

esta teraacute introduzido Naboacutenido na corte de Nabucodonosor e de Neriglissar ten-do recebido uma educaccedilatildeo de priacutencipe na sequecircncia Ignoram-se os motivos do movimento sedicioso que o levou ao trono assim como a data da reconstruccedilatildeo do templo de Harran Naboacutenido teraacute empreendido os trabalhos apoacutes a sua estada em Harran Este facto eacute contraditoacuterio com uma inscriccedilatildeo de Harran segundo a qual o rei empreendeu os trabalhos depois da sua permanecircncia em Teima Este testemunho contradiz uma outra inscriccedilatildeo real neobabiloacutenica segundo a qual o Ehulhul4 foi terminado depois de 553

Mas o enigma principal deste reinado reside no motivo da sua grande per-manecircncia na Araacutebia Nenhum dos argumentos invocados desde o querer vigiar o Egito enquanto enfrentava os saqueadores aacuterabes tinha pedido instalar-se na Palestina e enviar um chefe militar a Teima Nada prova que o comeacutercio do golfo Peacutersico fora entatildeo desviado ateacute agrave peniacutensula araacutebica e que fora suficientemente importante para justificar a presenccedila do soberano num oaacutesis perdido Apenas resta o motivo religioso isto eacute a atraccedilatildeo de um grande centro lunar

Naboacutenido controlou o paiacutes durante 17 anos atraveacutes da mediaccedilatildeo do filho de quem natildeo parece ter havido oposiccedilatildeo O uacuteltimo rei do Impeacuterio babiloacutenico foi uma figura estranha cujas intenccedilotildees poliacuteticas escapam quase por completo Filho de um governador provavelmente de origem aramaica apesar do seu nome babiloacutenico Nabu-balatsu-iqbi e de uma sacerdotisa do deus Sicircn de Har-ran Adad-guppi Naboacutenido natildeo era de ascendecircncia real como reconhecido nas estelas de Hilleh e de Harran Entronizado por uma conspiraccedilatildeo pretendia ser o continuador de Neriglissar e de Nabucodonosor e mesmo dos grandes sobe-ranos da Assiacuteria

As suas inscriccedilotildees e a autobiografia da sua matildee redigida sob a sua super-visatildeo refletem uma vontade de continuidade imperial Natildeo pode negar-se a influecircncia desta mulher na devoccedilatildeo de seu filho por Sicircn e que parece ter ditado as suas decisotildees poliacuteticas mais importantes

Ao ter lugar a sua subida ao trono em 556 Naboacutenido teve uma visatildeo na

em Dur-Karashu na regiatildeo de Sippar O seu filho Naboacutenido retirado no oaacutesis aacuterabe de Teima natildeo compareceu ao seu funeral Na eacutepoca de Assurbaniacutepal residiu em Harracircn em 649 a C e cuja histoacuteria eacute conhecida atraveacutes de uma pseudo-autobiografia gravada numa estela que integrada seguidamente na estrutura da mesquita da atual povoaccedilatildeo de Eski Harracircn Antes de morrer em 547 ela pode ver o seu filho Naboacutenido o uacuteltimo dos reis neobabiloacutenicos empreender a restauraccedilatildeo do culto no Ehulhul saqueado pelos Medos A sua autobiografia foi redigida de acordo com as instruccedilotildees de Naboacutenido e guardada no templo do deus Sicircn em Hacircrran Adad-guppi estava muito ligada a este centro religioso do qual ela era provavelmente originaacuteria e manifestava uma devoccedilatildeo particular ao deus Sicircn deus da Lua sem ter nunca exercido uma funccedilatildeo religiosa a ele ligada eacute sem dano que ela eacute apresentada frequentemente como uma sacerdotisa de Sicircn de Hacircrran a qualificaccedilatildeo de laquodevotaraquo do deus seria mais apropriada Na sua pseudo-autobiografia apraza o reinado de 42 anos a Assurbaniacutepal isto eacute ateacute 627 aC

4 O templo de Sicircn em Harran Cf Beaulieu 1989 73

203

Antoacutenio Ramos dos Santos

qual Marduk lhe ordenava a reconstruccedilatildeo do Ehulhul o templo de Sicircn em Har-ran que permanecera em ruiacutenas desde a expediccedilatildeo de 610 O rei natildeo via pos-sibilidade em cumprir a missatildeo visto que por essa eacutepoca os Medos ocupavam o paiacutes5 O deus acalmou os temores do rei anunciando o desaparecimento dos Medos Em 555 Naboacutenido mudou-se para Larsa para resolver vaacuterios problemas administrativos Durante trecircs anos reavivou uma seacuterie de expediccedilotildees siacuterias que o levariam ateacute aos confins de Edom

No ano 3 isto eacute em 553 a profecia divina cumpriu-se Ciro rei de Anzan haacute seis anos sublevou-se contra Astiacuteages e as tropas medas abandonaram a regiatildeo de Harran Naboacutenido apressou-se a reconstruir o Ehulhul com grande indignaccedilatildeo por parte do clero de Marduk Para aleacutem disso a situaccedilatildeo econoacute-mica devia ser pouco favoraacutevel e uma seacuterie de distuacuterbios tiveram lugar em Babiloacutenia Borsippa Nippur Ur Uruk e Larsa Contudo o rei natildeo abandonou o seu propoacutesito e tomou a decisatildeo de partir para a Araacutebia apoacutes ter confiado o governo de Babiloacutenia ao seu filho Bel-sharra-usur6 Naboacutenido dirigiu-se ao oaacutesis de Teima que foi possivelmente tomado em 552 assim como as cidades de Dadanu Padakku Hibra Iadihu e Iatribu Permaneceu dez anos na Araacutebia impedindo assim a celebraccedilatildeo das festas do Ano Novo em Babiloacutenia Durante este tempo a situaccedilatildeo internacional evoluiu rapidamente com a ascensatildeo de Ciro e dos Persas

A permanecircncia do rei de Babiloacutenia em Teima eacute um enigma O uacutenico motivo aparente eacute de tipo religioso Teima era um grande centro lunar Naturalmente existem duacutevidas em invocar este factor No entanto teraacute sido importante A devoccedilatildeo de Naboacutenido a Sicircn era grande e este intentou impor o culto deste deus agrave proacutepria Babiloacutenia levando agrave revolta dos sacerdotes jaacute exasperados pelo incre-mento do controlo real sob a administraccedilatildeo dos templos

O controlo das rotas comerciais a recolha de tributo ou qualquer outra operaccedilatildeo militar ou comercial poderia ser assegurada por um governador em Teima e pelo estacionamento permanente de tropas A presenccedila do rei natildeo era necessaacuteria e pode ser explicada como o resultado de uma crise poliacutetica em Babiloacutenia De acordo com o proacuteprio Naboacutenido a partida para a Araacutebia foi pro-vocada pela falta de piedade dos Babiloacutenios que negligenciaram a lideranccedila de Sicircn e cometeram faltas contra ele Todavia natildeo existe prova de uma rebeliatildeo em Babiloacutenia no 1ordm ano do seu reinado embora devesse ter havido alguma oposiccedilatildeo agraves suas crenccedilas religiosas e a ortodoxia tenha sido restabelecida por

5 O tema da presenccedila dos Medos em Harran continua em discussatildeo Alguns autores afirmam que Harran foi ocupada pelos Medos ateacute 553 a C Contudo haacute fontes que nos permitem duvidar disso assim como de que o impeacuterio neobabiloacutenico controlava a Siacuteria e o norte da Mesopotacircmia Ver Curtis 2003 157-67

6 Seria morto em Opis depois de ter ajudado Naboacutenido contra Ciro Os acontecimentos satildeo descritos na laquoCroacutenica de Naboacutenidoraquo Ver Glassner 2004 201-5 e Roux 1985 327

204

Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico

Bel-sharra-usur As suas convicccedilotildees devem tecirc-lo levado a confrontos com seg-mentos da oligarquia e da populaccedilatildeo particularmente com o clero de Marduk

A estada em Teima pode ser explicada como o resultado das divergecircncias poliacuteticas entre Naboacutenido e o seu filho enquanto a conquista do norte araacutebico foi motivado objetivos puramente imperialistas como a vasta riqueza da regiatildeo Tiveram lugar por seu turno deserccedilotildees importantes como a de Goacutebrias o go-vernador do Gutium que se uniu a Ciro7

Natildeo se sabe a razatildeo do abandono de Teima por Naboacutenido se uma ofensiva de Ciro preparadora do assalto a Babiloacutenia ou outra qualquer8 O certo eacute que depois de dez anos este saiu de Teima em 542 O Ehulhul foi entatildeo solenemente inaugurado em Harran o regresso do rei a Babiloacutenia permitiu o recomeccedilo das cerimoacutenias religiosas Ignoram-se os detalhes das medidas tomadas para pre-venir os perigos de um ataque que os uacuteltimos acontecimentos tornavam faacuteceis de prever Assim no Outono de 539 tudo se desenvolveu muito depressa tendo Bel-sharra-usur sido morto no seu palaacutecio Naboacutenido sido feito prisioneiro e Ciro entrado como triunfador na capital

A tradiccedilatildeo lanccedila duacutevidas acerca da sorte do uacuteltimo rei Segundo Xenofonte o monarca foi morto mas Josefo disse que foi exilado o que estaria mais de acordo com a clemecircncia e poliacutetica tolerante de Ciro9

A divisatildeo do poder

Naboacutenido confiou formalmente a laquorealezaraquo ao filho aquando a sua partida para o oeste e a Araacutebia Ao fazecirc-lo o rei natildeo desejava abdicar mas apenas insti-tucionalizar a divisatildeo das prerrogativas reais entre os dois Algumas prerroga-tivas reais natildeo foram legadas a Bel-sharra-usur a saber o tiacutetulo de rei os anos de reinado que continuaram datados de acordo com os anos de Naboacutenido no trono o natildeo ter lugar o festival do Ano Novo durante a permanecircncia em Teima reassumido logo que este voltou a construccedilatildeo de inscriccedilotildees que sempre referiam

7 Nada nos permite dizer que Gutium era uma proviacutencia babiloacutenica e que UgbaruGobrias era um babiloacutenico A uacutenica referecircncia eacute de Xenofonte (Cyr 461-11) e deve-se ter cuidado quando tratamos essa obra como uma fonte A julgar pelas fontes babiloacutenicas Gutium eacute um termo geograacutefico bastante vago nesse periacuteodo e foi conquistado por essa eacutepoca como Meacutedia Segundo o Cilindro de Ciro o rei Persa alcanccedilou as suas primeiras vitoacuterias no paiacutes de Gutium e as tropas dos Medos Ugbaru podia ser governador de uma proviacutencia persa que compreendia pelo menos partes do ocidente da Meacutedia e nordeste da Assiacuteria e que delimitava com o territoacuterio babiloacutenico Eacute notaacutevel que tendo conquistado Babiloacutenia Ciro devolvesse os deuses e cidadatildeos deportados para Babiloacutenia por Naboacutenido De acordo com o texto do Cilindro de Ciro essas cidades estendiam-se ao laquoterritoacuterio de Gutiumraquo o que parece uma clara indicaccedilatildeo de que a regiatildeo natildeo era parte do impeacuterio neobabiloacutenico

8 Acerca do destino de Naboacutenido existe o testemunho de Beroso (FGrH 680 frag 10a) e a Profecia Dinaacutestica Veja-se Kuhrt 2013 80-81 e Liverani 2003 1-12

9 Veja-se Beaulieu 1989 219-32

205

Antoacutenio Ramos dos Santos

o rei como o dirigente ativoOutras prerrogativas foram partilhadas como eacute o caso de refeiccedilotildees sacrifi-

ciais as oferendas reais e os juramentos que prometiam o desempenho de vaacuterios tipos de serviccedilos e a divisatildeo das forccedilas armadas marchando o rei para a Araacutebia com as laquoforccedilas de Akkadraquo

Todavia Bel-sharra-usur desempenhava alguns deveres aparecendo em alguns documentos com a expressatildeo laquofilho do reiraquo durante a sua regecircncia Naboacutenido natildeo interferiu directamente nos assuntos de Babiloacutenia durante o periacuteodo de estada em Teima mas manteve seguramente a correspondecircncia com o filho

Bel-sharra-usur rapidamente tomou uma posiccedilatildeo proeminente no reino apoacutes a ascensatildeo do seu pai Manteve para aleacutem das atividades oficiais um lado privado explicitado em vaacuterios documentos Como membro da famiacutelia Nur-Sin e com a famiacutelia Egibi a que pertencem os documentos o regente aparece como um proeminente homem de negoacutecios e o chefe de uma Casa rica

Aparentemente a usurpaccedilatildeo de 556 natildeo envolveu apenas uma mudanccedila de dirigente mas tambeacutem a confiscaccedilatildeo das propriedades da famiacutelia de Neriglissar em proveito de Bel-sharra-usur Muitas ligaccedilotildees existiam como a de Nabucirc--ahhecirc-iddina chefe da Casa de Egibi Este aparece em transaccedilotildees privadas do regente e dos seus servidores Mesmo em reinados anteriores como o de Nabu-codonosor ou do proacuteprio Neriglissar Nabucirc-ahhecirc-iddina foi um agente por mais de quarenta anos de Neriglissar desempenhando a funccedilatildeo com Bel-sharra-usur tendo sido uma fonte de capital para os vaacuterios creacuteditos

Consideraccedilotildees finais

O final do impeacuterio caldaico e a anexaccedilatildeo persa satildeo duas faces de uma mes-ma moeda A tentativa de secularizaccedilatildeo por parte de Naboacutenido modificando a estrutura dos templos dominados ateacute entatildeo pelo clero do deus diminuindo rendimentos a esses cleros particularmente ao do deus Marduk e as reformas fundiaacuterias foram agravadas ao que tudo leva a crer pelas questotildees religiosas propriamente ditas O monarca babiloacutenico foi visto como um desafio ao poder dos sacerdotes e o rei dos Persas como aquele que iria repor uma ordem violada anteriormente pelo soberano caldaico Os Persas foram para o clero de Marduk libertadores Eles assumiram as crenccedilas e tradiccedilotildees babiloacutenicas e assimilaram Babiloacutenia ao Impeacuterio que se dilatava e se dirigia para as costas do Mediterracircneo O legado de sedentarizaccedilatildeo urbanizaccedilatildeo e burocratizaccedilatildeo babiloacutenicas foram recebidos como parte do Impeacuterio Aquemeacutenida num longo caminho de cosmo-politismo e universalidade Como uma continuidade da tradiccedilatildeo imperial no Proacuteximo Oriente antigo

206

Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico

Documentos

Documento nordm1Divisatildeo de campos por ordem real

YOS VI103 ndash laquoA terra araacutevel de Becircl que no mecircs Nisanu o seacutetimo de Naboacute-nido rei de Babiloacutenia Belshazzar o filho do rei por ordem do rei dividiu entre os oficiais racircb sucirctu

[ hellip ]raquordquo

Documento nordm2Empreacutestimo de dinheiro

Nbn 184 ndash laquoA respeito da Casa de Nabucirc-ahecirc-iddin o filho de Shulacirc filho de Egibi que eacute contiacutegua agrave Casa de Becircl-iddin filho de Ricircmucirct filho do oficial dikucirc por trecircs anos a Nabucirc-mukicircn-ahi o escriba de Belshazzar o filho do rei por uma mina e meia de prata ele deu com a provisatildeo da qual natildeo deve existir renda para a casa nem juro sobre o dinheiro O madeiramento da casa ele renovaraacute e qualquer abertura da parede e taparaacute Apoacutes trecircs anos o dinheiro acrescido a uma e meia minas Nabucirc-ahecirc-iddin a Nabucirc-mukicircn-ahi daraacute e Nabucirc-mukicircn-ahi deixaraacute a casa agrave disposiccedilatildeo de Nabucirc-ahecirc-iddinraquo

Documento nordm3Transacccedilatildeo monetaacuteria do Administrador de Bel-sarra-usur

Nbn 688 ndash laquoRelativo a uma mina e quinze siclos de prata diacutevida e juro a reivindicaccedilatildeo de Nabu-sabit-qati o mordomo de Bel-sarra-usur o filho do rei pela quantia devida por Bel-iddina o filho de Bel-sum-iskun filho de Sin-tabni e pela qual o campo de sementeira que estaacute entre as portas da cidade foi tomado como cauccedilatildeo pela diacutevida na quantia de uma mina e quinze siclos Nabu-sabit--qati recebeu de Itti-Marduk-balatu o filho de Nabu-ahhe-iddin filho de Egibi como for a debitado a Bel-iddina

Testemunhas Babiloacutenia 27ordm dia do mecircs de Adaru 12ordm do reinado de Naboacutenidoraquo Documento nordm 4Eacutedito de Becircl-sharra-usur

YBT VI 103 ndash laquo(Eacutedito repeitante) agrave terra araacutevel de Becircl que Becircl-sharra-usur o filho do rei no mecircs de Nisannu do 7ordm ano do reinado de Naboacutenido rei de Babiloacutenia por ordem do rei repartiu entre os grandes arrendataacuterios

Por um kurru de terra araacutevel plantada (de palmeiras a renda seraacute) de 40 kurru (de tacircmaras)

207

Antoacutenio Ramos dos Santos

Aiacute dentro estaratildeo (contidos) 5 kurru (de tacircmaras) para o salaacuterio dos arbo-ricultores que escavaratildeo canais e solo faratildeo o muro do pomar e suportaratildeo os encargos que o filho do rei lhes confiara

(Quanto agraves) obrigaccedilotildees e agraves raccedilotildees de manutenccedilatildeo do chefe do distrito dos encaregados de contas dos encarregados de tirar as medidas e dos guardas-por-tatildeo as suas obrigaccedilotildees (seratildeo) de 130 kurru 5 qucirc 12 por kurru (de rendas) dar-se-agrave ao chefe do distrito aos contabilistas aos medidores e aos porteiros reccedilotildees de manutenccedilatildeo de 3 qucirc 12 (de tacircmaras) por kurru (de rendas) Estes poderatildeo beneficiar disso (imediatamente)

Se o filho do rei daacute 125 kurru de terra laquode culturaraquo(o tomador) daraacute 1200 kurru de cevada por toda a (renda) por lote de 125 kurru (de terra) 5 kurru de terra araacutevel lhe seratildeo entregues para todas as raccedilotildees de manutenccedilatildeo do chefe do distrito dos contabilistas dos medidores e dos porteiros

Por cada arado dar-se-lhe-aacute 4 bois 2 animais de cornos jovens 4 agricul-tores Os bois natildeo deveratildeo enfraquecer Os instrumentos de ferro satildeo levados em conta

Por kurru (as rendas dos tomadores) acrescentaratildeo agrave renda fundiaacuteria 130 de kurru 5 qucirc 12 de cevada e de tacircmaras como raccedilotildees de manutenccedilatildeo (de Becircl) e as daratildeo ao Esagil

Eles entregaratildeo a cevada e as tacircmaras na totalidade no EsagilPor kurru (rendas) eles daratildeo a mais da sua renda fundiaacuteria 3 qucirc 12 de

raccedilotildees de manutenccedilatildeo ao chefe do distrito aos contabilistas aos medidores e aos porteiros

No primeiro ano [o Esagil] daraacute 125 kurru de cevada para as sementeiras assim como 145 kurru de cevada para as raccedilotildees de manutenccedilatildeo dos agricultores (agrave razatildeo de) 4 kurru cada uma [e]para os animais do gado corniacutegeroraquo

208

Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico

Bibliografia

Beaulieu Paul-Alain 1989 The Reign of Nabonidus King of Babylon 556-539 BC Michigan Yale University

Chavalas Mark W 2006 The Ancient Near East Oxford Blackwell PublishingCurtis J 2003 ldquoThe Assyrian heartland in the period 612-539 BCrdquo In

Continuity of Empire () Assyria Media Persia Padova eds Giovanni B Lanfranchi Michael Roaf et Robert Rollinger 157-68 Padova Sargon Editrice e Libreria

Glasser Jean-Jacques dir 2004 Chroniques Meacutesopotamiennes Paris Les Belles Lettres

Grayson A Kirk 2000 Assyrian and Babylonian Chronicles Winona Lake Eisenbrauns

Joannegraves Francis dir 2001 Dictionnaire de la Civilisation Meacutesopotamienne Paris Robert Laffont

mdashmdashmdash 2000 La Meacutesopotamie au 1er milleacutenaire avant J-C Paris Armand ColinKuhrt Ameacutelie 2010 The Persian Empire A Corpus of Sources from the

Achaemenid Period London RoutledgeLecoq Pierre 1977 Les inscriptions de la Perse acheacutemeacutenique Paris GallimardLiverani M 2003 ldquoThe Rise and Fall of Mediardquo In Continuity of Empire ()

Assyria Media Persia Padova eds Giovanni B Lanfranchi Michael Roaf et Robert Rollinger 1-12 Padova Sargon Editrice e Libreria

Pritchard James B ed (1950) 1992 Ancient New Eastern Texts Relating to the Old Testament Princeton Princeton University Press

Roux George 1985 La Meacutesopotamie Essai drsquohistoire politique eacuteconomique et culturelle Paris Seuil

Saggs H W F 1996 Babylonians London British Museum PressWiseman D J 1956 Chronicles of Chaldean Kings (626-556 BC) in the British

Museum London The Trustees of the British Museum

209

Maria de Faacutetima Rosa

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciro duas atitudes divergentes face ao

culto do deus Marduk1 (The fall of Babylon in 539 BC Nabonidus and Cyrus two different

approaches to the cult of god Marduk)

Maria de Faacutetima Rosa(frosafcshunlpt ORCID 0000-0003-2302-7751)

Universidade Nova de Lisboa CHAM Universidade dos Accedilores

Resumo - Partindo da anaacutelise de algumas fontes cuneiformes este breve estudo pre-tende explorar os diferentes comportamentos de Naboacutenido e de Ciro face ao culto do deus Marduk As suas atitudes suscitam importantes questotildees tais como Qual teria sido o peso da accedilatildeo dos dois soberanos no domiacutenio religioso na queda da Babiloacutenia em 539 aC De que modo e em que campos se joga a laquopropagandaraquo poliacutetico-religiosa efetuada pelo monarca aquemeacutenida Satildeo questotildees como estas que pretendemos estu-dar neste artigo

Palavras-chave Marduk Naboacutenido Sicircn Ciro II Babiloacutenia

Abstract ndash Through the analysis of some important cuneiform sources this brief study intends to explore the different attitudes of Nabonidus and Cyrus in relation to the cult of god Marduk In fact some important questions arise What was the weight of the action of the two sovereigns in the religious domain with the progressive distancing of Nabonidus from the clergy of the laquonationalraquo god in the fall of Babylon at the hands of a Persian dynasty In what way did the Achaemenid monarch construct his political and religious laquopropagandaraquo These are the questions that we intend to study in this article

Keywords Marduk Nabonidus Sicircn Cyrus II Babylon

Segundo relata o Cilindro de Ciro na origem da queda da Babiloacutenia esteve uma ordem dada pelo deus Marduk ao imperador persa no sentido de conquis-tar a cidade O deus tutelar da Babiloacutenia pretendia punir o rei Naboacutenido pelo seu desrespeito pelo culto Para tal Marduk ordenara a Ciro que marchasse sobre a cidade e com ele partira para a batalha laquocomo um verdadeiro amigoraquo2

As fontes cuneiformes denotam um contraste entre as atitudes poliacuteticas e religiosas de Ciro imperador persa e de Naboacutenido uacuteltimo soberano do periacuteodo

1 Abreviaturas usadas AJA ndash American Journal of Archaeology ANET ndash Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament ETCSL ndash Electronic Text Corpus of Sumerian Literature JNES ndash Journal of Near Eastern Studies

2 ANET 315

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_11

210

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk

neobabiloacutenico Enquanto o primeiro eacute retratado como um monarca justo e te-mente aos deuses o segundo demarca-se pela sua conduta improacutepria e pela sua impiedade Este contraste dever-se-aacute ao facto de a grande maioria das fontes de que dispomos datar de um periacuteodo posterior agrave tomada da cidade Logo eacute possiacute-vel que muitas tenham sido escritas por instigaccedilatildeo do proacuteprio Ciro3 No entanto tudo aponta para que as reformas religiosas levadas a cabo por Naboacutenido e a sua prolongada ausecircncia da capital tenham levado a um crescente descontentamento da populaccedilatildeo Assim ao entrar na Babiloacutenia Ciro pocircde aproveitar este descon-tentamento para se apresentar perante os seus habitantes como um verdadeiro libertador O discurso de Ciro pretendia certamente angariar uma base de apoio local que lhe permitisse proceder a uma integraccedilatildeo segura da Babiloacutenia no im-peacuterio persa

A mensagem ideoloacutegica era simples Marduk retirara o poder a Naboacutenido e outorgara-o a Ciro porque ele era ao contraacuterio daquele bondoso para a sua populaccedilatildeo

1 A gloacuteria e o esplendor da Babiloacutenia

Naboacutenido sobe ao poder em 556 aC apoacutes uma conjura Agrave data a Babiloacutenia era uma das maiores e mais esplendorosas cidades do mundo antigo em grande parte devido aos trabalhos de reconstruccedilatildeo e de embelezamento levados a cabo por Nabucodonosor II Respeitada e enaltecida a cidade constituiacutea o centro poliacutetico de um extenso territoacuterio Na sua arquitetura monumental transparecia toda a grandeza e majestade do poder real

Estima-se que a sua populaccedilatildeo rondasse os 100000 habitantes Na urbe conviviam natildeo soacute babiloacutenios como tambeacutem habitantes de outras partes do impeacuterio e ateacute mesmo estrangeiros A sua heterogeneidade devia-se em grande medida agraves vaacuterias vagas de deportaccedilotildees ocorridas em anos anteriores A coloacutenia judaica que aiacute se estabeleceu como resultado das deportaccedilotildees levadas a cabo em 598 aC e em 587 aC eacute um exemplo desta situaccedilatildeo O poder exercido pelo rei sobre uma populaccedilatildeo tatildeo diversificada necessitava de meios que assegurassem e justificassem a sua legitimidade Ora na Mesopotacircmia essa legitimidade vinha sempre laquode cimaraquo4 eram os deuses que a concediam

Eacute na segunda metade do segundo mileacutenio aC que o deus tutelar da Babiloacutenia Marduk ascende ao cume do panteatildeo sumeacuterio-acaacutedico5 Data desta altura a redaccedilatildeo da epopeia de criaccedilatildeo designada enūma eliš O texto descreve a vi-toacuteria de Marduk sobre o caos e a sua consequente nomeaccedilatildeo como chefe supremo

3 Beaulieu 1993 244 e Briant 1998 504 Conta o relato sumeacuterio do diluacutevio que laquoa realeza desceu dos ceacuteusraquo (ETCSL 174)5 Charpin 2003 114 n 1

211

Maria de Faacutetima Rosa

(como laquorei dos deusesraquo) pela assembleia divina6 Atraveacutes da contenccedilatildeo do caos imaginado como uma imensa massa de aacutegua7 Marduk permitira a ordenaccedilatildeo do mundo e a criaccedilatildeo da humanidade A Babiloacutenia fora entatildeo construiacuteda como o seu santuaacuterio no centro do mundo8 passando a assumir um papel fundamental na organizaccedilatildeo e estruturaccedilatildeo do universo Ora segundo a ideologia babiloacutenica para governar os destinos da populaccedilatildeo deste universo as divindades teriam de-signado um lugar-tenente um representante de Marduk na terra No periacuteodo em questatildeo esse representante era Naboacutenido Como facilmente se depreende o que os deuses haviam concedido prontamente poderiam retirar caso aquele que por eles fora escolhido para assumir a realeza natildeo desempenhasse condignamente a sua missatildeo

O culto do deus Marduk compreendia simultaneamente trecircs vertentes distintas o culto da cidade da Babiloacutenia o culto do paiacutes da Babiloacutenia (uma espeacutecie de culto nacional) e o culto da realeza A celebraccedilatildeo mais importante ocorria anualmente no mecircs de nisannu e durava cerca de 12 dias Durante as cerimoacutenias o poema enūma eliš era recitado e recriado relembrando a ameaccedila que pendia sobre a populaccedilatildeo caso Marduk decidisse retirar a sua proteccedilatildeo ao rei e agrave populaccedilatildeo o mundo mergulharia novamente no caos

O primeiro aspeto que podemos destacar entre as acusaccedilotildees de que Naboacutenido eacute alvo eacute precisamente o facto de o soberano ter cessado as celebraccedilotildees Segundo consta na Narrativa em Verso de Naboacutenido o monarca teraacute declarado laquoEu omitirei (todos) os festivais eu ordenarei (ateacute) a cessaccedilatildeo da festa do Ano Novoraquo9

2 O culto do deus Marduk e a festa do Ano Novo (akītu)

No iniacutecio do seu reinado Naboacutenido teraacute abandonado a capital deixando o governo da cidade entregue ao seu filho Becircl-šarra-uṣur (conhecido como Baltasar por intermeacutedio do relato vetero-testamentaacuterio) O soberano ter-se-aacute instalado no oaacutesis de Teima localizado no nordeste da peniacutensula araacutebica10 A ausecircncia do soberano impedia a realizaccedilatildeo da cerimoacutenia do Ano Novo Como referimos a festa natildeo celebrava apenas a entronizaccedilatildeo de Marduk a delegaccedilatildeo dos seus poderes ao rei era um dos aspetos mais importantes da celebraccedilatildeo Era esta espeacutecie de acordo esta alianccedila entre Marduk e o soberano que o akītu como se denominava em acaacutedico celebrava A renovaccedilatildeo anual da alianccedila possibilitava

6 Proclamaccedilatildeo que culmina com a atribuiccedilatildeo dos seus cinquenta nomes (nas tabuinhas VI e VII)

7 Personificada na epopeia pela deusa Tiacircmat que assume no combate coacutesmico a forma de uma serpente

8 Esta ideia transparece no conhecido mapa-mundo babiloacutenico em exposiccedilatildeo no museu britacircnico

9 Texto naturalmente exagerado para denegrir a imagem do rei (ANET 313)10 O rei teraacute permanecido em Teima 10 anos (ANET 562) provavelmente de 553 aC a 542 aC

212

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk

ao rei consolidar o seu poder e permitia agrave Babiloacutenia manter a sua proteccedilatildeo divina Para aleacutem disto esperava-se que atraveacutes dos rituais e das preces que entatildeo tinham lugar os deuses pudessem propiciar boas colheitas e proporcionar um bom ano agriacutecola Podemos dizer que diferentes correntes de pensamento convergiam no akītu para aleacutem da componente poliacutetica e cosmogoacutenica segundo a qual se recriava o combate coacutesmico entre a ordem (personificada por Marduk) e o caos a celebraccedilatildeo contemplava aspetos mais ligados aos ciclos da natureza e agrave fertilidade

Descurando o akītu Naboacutenido arriscava perder o favoritismo que o deus lhe concedera e mergulhar o mundo no caos na desordem Com efeito segundo conta o Cilindro de Ciro fora precisamente devido agrave sua constante negligecircncia e ao seu desrespeito pelo culto que a populaccedilatildeo ficara como laquomortaraquo11 As accedilotildees de Naboacutenido teriam levado Marduk a abandonar a regiatildeo12

A importacircncia poliacutetica do akītu natildeo era negligenciaacutevel Senatildeo vejamos Conforme conta a Croacutenica de Naboacutenido durante repetidos anos laquoo rei natildeo veio agrave Babiloacutenia [para as cerimoacutenias do mecircs de nisannu] o deus Nabucirc natildeo veio agrave Babiloacutenia o deus Becircl13 natildeo saiu (do Esagila em procissatildeo) a fes[ta do Ano Novo foi omitida]raquo14 Um dos momentos principais das celebraccedilotildees ocorria quando a estaacutetua de Marduk era transportada numa procissatildeo de grandes dimensotildees desde o seu templo o Esagila15 ateacute ao chamado templo do akītu localizado no exterior da cidade16 Para a cerimoacutenia chegavam agrave capital diversas divindades17 que par-ticipavam no cortejo liderado por Marduk A um niacutevel cosmoloacutegico podemos interpretar estas deslocaccedilotildees como a necessidade das divindades confirmarem presencialmente a sua lealdade ao deus-rei Marduk18 Jaacute a um niacutevel poliacutetico a presenccedila dos deuses tutelares das vaacuterias partes do territoacuterio tinha como fim as-severar a sua submissatildeo ao poder central agrave Babiloacutenia No fundo podemos dizer que o akītu era a ocasiatildeo em que se exibia todo o poder poliacutetico da Babiloacutenia Descuidar o akītu e negligenciar o culto de Marduk deus nacional significava assim menosprezar a identidade poliacutetica da Babiloacutenia De facto era atraveacutes das estaacutetuas divinas que participavam na procissatildeo do akītu que os cidadatildeos babiloacute-nios e estrangeiros tinham uma noccedilatildeo mais precisa do imenso territoacuterio sobre o qual a Babiloacutenia reinava19

Por fim referimos que durante a estadia dos deuses no akītu o rei entregava

11 ANET 31512 Ibid13 Nome pelo qual Marduk eacute designado nos periacuteodos mais tardios Significa laquosenhorraquo14 Ibid 30615 O Esagila ficava localizado no centro da urbe16 Sobre a procissatildeo e todo o cerimonial que a rodeava veja-se Van de Mieroop 2003 27217 As estaacutetuas divinas eram transportadas por barco Na Mesopotacircmia a estaacutetua divina natildeo

era uma mera representaccedilatildeo da divindade mas sim o proacuteprio deus18 O motivo principal era a coraccedilatildeo de Marduk19 Ibid 271-72

213

Maria de Faacutetima Rosa

doaccedilotildees aos diferentes cultos esperando obter o apoio divino necessaacuterio agraves suas conquistas militares Ora a cessaccedilatildeo das celebraccedilotildees teria certamente pesado na relaccedilatildeo entre o soberano e a classe sacerdotal que se via privada dos dona-tivos que recolhia nesta ocasiatildeo A par desta medida um conjunto de reformas religiosas levadas a cabo por Naboacutenido sobretudo a partir de 553 aC viria agudizar o descontentamento do clero em relaccedilatildeo ao monarca

3 O culto de Sicircn deus lunar

Maior estranheza teraacute causado o facto de Naboacutenido segundo referem alguns textos20 ter transferido a atenccedilatildeo que devia ser dispensada ao deus ba-biloacutenico para uma outra divindade do panteatildeo sumeacuterio-acaacutedico o deus lunar Sicircn A devoccedilatildeo a Sicircn teraacute surgido por influecircncia da sua matildee Adad-guppi uma mulher consagrada a esta divindade Um texto gravado numa estela erigida em Harran local onde Adad-guppi nascera e cumprira as suas funccedilotildees como sacerdotisa de Sicircn constata a relaccedilatildeo de proximidade entre Naboacutenido e a sua matildee21 Natildeo admira portanto que Naboacutenido tenha expressado desde o iniacutecio do seu reinado o desejo de reconstruir o templo do deus em Harran22 projeto que viria a concretizar passados poucos anos23

Segundo Naboacutenido a ordem de reconstruccedilatildeo do templo fora dada pelo proacute-prio deus laquoSicircn24 fez-me ter um sonho e disse o seguinte ldquoReconstroacutei o Ehulhul o templo de Sicircn em Harran e eu dar-te-ei todos os paiacutesesrdquoraquo25 Esta devoccedilatildeo ao

20 Trata-se sobretudo da Narrativa em Verso de Naboacutenido As inscriccedilotildees de Naboacutenido encon-tradas em Harran parecem evidenciar tambeacutem esta situaccedilatildeo Contudo devemos ter em conta que as mesmas se inserem num contexto de culto muito particular onde Sicircn eacute a figura central

21 Trata-se de uma espeacutecie de autobiografia da matildee de Naboacutenido Cf ANET 560-56222 Harran era um centro comercial importante situado no cruzamento das rotas que ligavam

a Mesopotacircmia agrave Anatoacutelia Desde 610 aC data que coincide com o afastamento do jugo assiacuterio o templo encontrava-se em ruiacutenas

23 Segundo a visatildeo mais tradicional os Medos teriam ocupado Harran ateacute 553 aC bem como outras regiotildees da antiga Assiacuteria No entanto estudos mais recentes contestam esta ideia Jursa (2003 177) com base nas fontes neobabiloacutenicas indica que a maior parte do territoacuterio da antiga Assiacuteria caiacutera sob o domiacutenio babiloacutenico e natildeo Medo uma visatildeo partilhada tambeacutem por Liverani (Liverani 2003 7) que vai mais longe contestando inclusivamente a noccedilatildeo de um laquoimpeacuterio medoraquo tal como o faz aliaacutes Rollinger (2009 51) Segundo Liverani os medos que se assemelhavam mais a uma confederaccedilatildeo de chefes tribais teriam ficado apenas com os Zagros que jaacute haviam sido previamente perdidos pela Assiacuteria O autor sustenta que laquothe Medes assumed the dirty job of destruction while the Babylonians assumed the role of restorersraquo (ibid) Para Curtis laquothe idea that the Medes were controlling Harrān may have to be abandoned but it is still significant that they were in this area at least in 555 BCraquo (Curtis 2003 166)

24 Uma outra inscriccedilatildeo gravada numa estela de basalto alega que quem deu a ordem de reconstruccedilatildeo a Naboacutenido foi o proacuteprio Marduk (veja-se ANET 319)

25 Ibid 562 Esta iniciativa insere-se na realidade num programa mais vasto de reconstru-ccedilotildees na proacutepria Babiloacutenia que incluiacuteram por exemplo o famoso Esagila o templo de Marduk Naboacutenido ficou para a histoacuteria como o laquorei arqueoacutelogoraquo devido agrave sua pesquisa no solo dos edifiacutecios reconstruiacutedos de depoacutesitos de fundaccedilatildeo dos seus antecessores (Roux 1995 427)

214

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk

deus lunar patente natildeo soacute na sua dedicaccedilatildeo agrave reconstruccedilatildeo do Ehulhul como tambeacutem na sua estadia em Teima um importante centro de culto do deus lunar e na nomeaccedilatildeo de uma das suas filhas como grande sacerdotisa do deus Sicircn em Ur teraacute certamente chocado o clero de Marduk A ligaccedilatildeo de Naboacutenido a Sicircn natildeo teraacute sido bem aceite pela comunidade religiosa

No rescaldo da conquista da Babiloacutenia surge um texto jaacute aqui referido que testemunha o descontentamento face ao monarca devido agrave sua ligaccedilatildeo a Sicircn O documento alega que Naboacutenido agira de forma inconveniente confecionando a estaacutetua de um deus estranho laquoEle criou um fantasma [um deus] que ningueacutem tinha visto [antes] no paiacutes [hellip] Ele instalou-o num pedestal [] ele chamou--o pelo nome de Nanna26raquo27 Podemos ter uma ideia mais clara do peso desta conduta improacutepria num verso onde se afirma que Naboacutenido tendo reconhecido o siacutembolo do crescente lunar no Esagila interrogara laquoPara quem foi este templo construiacutedoraquo28 Em resposta o proacuteprio afirmara laquoSicircn assinalou o seu templo com o seu siacutemboloraquo29 Como vemos segundo a visatildeo de uma parte da elite babiloacutenica Naboacutenido escolhera menosprezar a importacircncia do seu deus tutelar e dar prima-zia a um deus que natildeo detinha no seio do panteatildeo babiloacutenico agrave semelhanccedila de Bel30 o lugar cimeiro Esta atitude desrespeitosa era sobretudo inadequada a um sumo-sacerdote de Marduk facto que teraacute contribuiacutedo para a formaccedilatildeo desta opiniatildeo criacutetica

Visatildeo muito diferente teria o proacuteprio Naboacutenido o rei natildeo soacute defendia a soberania de Sicircn31 como acusava a sua populaccedilatildeo de desrespeitar o culto por ele imposto o culto do deus que laquosuplanta todos os outrosraquo32 Vejamos laquoos cidadatildeos da Babiloacutenia Borsippa Nippur Ur Uruk (e) Larsa os administradores dos tem-plos (e) as pessoas dos centros de culto do paiacutes de Akkad ofenderam a sua (de Sicircn) grande divindade portaram-se mal e pecaram (porque) desconheciam a grande ira do rei dos deuses Nannaraquo33 A impiedade dos cidadatildeos dos centros poliacuteticos e religiosos da Mesopotacircmia teraacute sido o motivo apresentado por Naboacutenido para justificar a sua saiacuteda da capital

Um uacuteltimo aspeto a ressaltar prende-se com um dos epiacutetetos atribuiacutedo por Naboacutenido a Sicircn Para aleacutem de laquoCrescente Divinoraquo o deus era considerado como o laquorei de todos os deusesraquo Ora este tiacutetulo referia-se normalmente a Marduk a

26 Nome sumeacuterio de Sicircn27 Beaulieu 2007 161-6228 Ibid29 Ibid30 bēl (laquosenhorraquo) eacute o tiacutetulo atribuiacutedo a Marduk a partir do final do segundo mileacutenio altura

em que se torna o deus par excellence (Oshima 2007 348)31 Eacute esta a realidade que transparece na leitura de alguns textos32 ANET 56333 Beaulieu 2007 145

215

Maria de Faacutetima Rosa

divindade que o conquistara apoacutes derrotar o caos Os babiloacutenios34 conheciam o seu deus nacional como um verdadeiro deus-rei que ascendera ao topo da soberania divina apoacutes o difiacutecil combate que dera origem ao mundo tal como era conhecido Assim sendo a titulatura laquoSicircn senhor dos deuses do ceacuteu e da terra rei dos deuses deus(es) dos deusesraquo35 natildeo poderia senatildeo ter causado uma certa apreensatildeo

A questatildeo que se coloca eacute porquecirc esta devoccedilatildeo a Sicircn Eacute possiacutevel que Naboacutenido fosse filho de um governador de origem arameia A sua estadia em Teima apesar de envolta em grande misteacuterio deveraacute ter sobretudo um motivo de ordem religio-sa36 Como referimos Teima era um importante santuaacuterio de Sicircn e um centro de culto para as populaccedilotildees que veneravam este deus Ora Sicircn era tambeacutem adorado entre os arameus e os aacuterabes37 Eacute por conseguinte possiacutevel que expressando a sua devoccedilatildeo agrave divindade o soberano tambeacutem ele um arameu pretendesse unificar sob a sua hegemonia as diversas populaccedilotildees dispersas pelo territoacuterio38

Por outro lado H Lewy aponta divergecircncias entre a poliacutetica seguida por Naboacutenido e aquela que fora seguida pelos seus antecessores Segundo o autor o soberano pretendia governar seguindo a tradiccedilatildeo imperial assiacuteria que preconi-zava um ideal assente no estabelecimento de um impeacuterio universal consagrado natildeo a uma divindade nacionalista como Marduk mas sim a um deus universal39

4 A queda da Babiloacutenia

Durante a ausecircncia de Naboacutenido datildeo-se novos desenvolvimentos na cena poliacutetica internacional Em 550 aC Ciro derrota os Medos tornando-se senhor do maior impeacuterio que a antiguidade conhecera ateacute entatildeo40 Embalado pelo sucesso desta conquista o imperador persa prossegue a sua poliacutetica expansionista e dirigindo-se para oeste anexa vaacuterias regiotildees De entre estas conquistas destaca-se a tomada de Urartu provavelmente em 547 aC41 e da Liacutedia algures entre

34 Ou pelo menos a elite babiloacutenica35 Sobre estes tiacutetulos a questatildeo dos epiacutetetos normalmente atribuiacutedos a Marduk e a discussatildeo

em torno da designaccedilatildeo laquodeuses dos deusesraquo (DINGIRMEŠ ša DINGIRMEŠ) veja-se Beaulieu 1993 254

36 A este podemos juntar motivos de ordem poliacutetica Em Teima o soberano estava mais perto do Egito e da Palestina podendo controlar e vigiar melhor estas regiotildees Para aleacutem disto Teima estava localizada num local propiacutecio ao controlo de certas rotas comerciais pelo que tambeacutem podem ter pesado nesta sua deslocaccedilatildeo agrave Araacutebia motivos de ordem econoacutemica

37 Black ndash Green 1992 3538 Veja-se Green 1992 37 e J Lewy 1948 apud Beaulieu 2007 16339 Sobre a discussatildeo deste assunto veja-se Lewy 1949 apud Garelli ndash Nikiprowetzki 1977

247-4840 Roux 1995 42941 Veja-se o estudo de Rollinger (2009) acerca das campanhas de Ciro e a sua interpretaccedilatildeo

da Croacutenica de Naboacutenido

216

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk

545 e 542 aC42 famosa pela sua riqueza Estas movimentaccedilotildees a agitaccedilatildeo junto agraves fronteiras da Babiloacutenia e a traiccedilatildeo de alguns dos seus aliados43 poderatildeo ter precipitado o regresso do monarca agrave capital

De facto na veacutespera da queda da Babiloacutenia Naboacutenido regressa agrave cidade retoma a celebraccedilatildeo do akītu e toma as disposiccedilotildees necessaacuterias com vista agrave preparaccedilatildeo da capital para um possiacutevel ataque persa Um indiacutecio em particular elucida-nos sobre este ponto44

Paul-Alain Beaulieu relacionou o facto de Naboacutenido ordenar a reuniatildeo das estaacutetuas dos deuses de Sumer e de Akkad na capital com a sua intenccedilatildeo de evitar que as mesmas fossem capturadas pelo inimigo A captura da estaacutetua divina por um poder estrangeiro e o seu transporte ateacute ao paiacutes conquistador onde se tornava refeacutem assinalava a cisatildeo definitiva entre o deus e o seu paiacutes Segundo a loacutegica de entatildeo esta realidade representava uma atitude da divindade que escolhia favorecer o paiacutes inimigo castigando assim o seu eleito (o rei) e a sua populaccedilatildeo

No relato da Croacutenica de Naboacutenido relativo ao deacutecimo seacutetimo e uacuteltimo ano do governo de Naboacutenido consta o seguinte

laquoNo mecircs de [Lugal-Marada e os outros deuses] da cidade de Marad Zababa e os (outros) deuses da cidade de Kiš a deusa Ninlil [e os outros deuses de] Hursagkalama entraram na Babiloacutenia Ateacute ao final do mecircs de Ululu (todos) os deuses de Akkad () entraram na Babiloacutenia Os deuses de Borsippa Kutha e Sippar (no entanto) natildeo entraramraquo45

O envio das estaacutetuas para a capital previa dois objetivos por um lado Naboacutenido impedia que estas fossem tomadas pelos persas e por outro lado o soberano garantia o apoio dos deuses na esperada batalha Com a presenccedila das divindades a seu lado Naboacutenido teria mais hipoacuteteses de derrotar os persas Contudo testemunhos apontam para o facto de nem todos os centros urbanos terem enviado os seus deuses voluntariamente46 A contestaccedilatildeo a Naboacutenido era forte Para aleacutem da classe sacerdotal descontente com as reformas do soberano os exilados47 em territoacuterio babiloacutenico expressavam o seu apoio crescente a Ciro Eacute por conseguinte possiacutevel que se tenha formado uma opiniatildeo proacute-persa que veria mais benefiacutecios na chegada de Ciro do que na continuaccedilatildeo das poliacuteticas de Naboacutenido

42 Natildeo se sabe ao certo a data desta conquista eacute possiacutevel que se situe entre 545 e 542 aC ou ateacute mesmo apoacutes a tomada da Babiloacutenia (ibid 56 n 23)

43 Eacute o caso do governador dos guacutetios Gobias que se teria aliado a Ciro44 Sobre este assunto veja-se o estudo de Beaulieu 1993 45 ANET 30646 Op cit Beaulieu 1993 25747 Visatildeo patente no Livro de Isaiacuteas

217

Maria de Faacutetima Rosa

Todavia a investida final contra a Babiloacutenia natildeo teraacute partido de uma accedilatildeo voluntaacuteria de Ciro Com efeito o imperador alega ter agido sob a ordem do deus Marduk laquo(Marduk) ordenou-lhe que marchasse contra a cidade da Babiloacuteniaraquo48 Eacute o deus nacional quem decide retirar o seu favor a Naboacutenido e desta forma destronar o rei que laquonatildeo o adoravaraquo49 Para tal Marduk escolhera um substituto um soberano que ao contraacuterio daquele era justo e piedoso A escolha de Marduk fora metoacutedica e cuidada A divindade laquoexaminou todos os paiacuteses procurando um governante justo que estivesse disposto a levaacute-lo (na procissatildeo anual)raquo 50 Eacute aqui que Ciro coloca a toacutenica do seu discurso isto eacute no respeito pela celebraccedilatildeo do akītu A poliacutetica persa passa por apresentar Ciro como um legiacutetimo sucessor dos reis nacionais e como o restaurador do culto de Marduk Ciro natildeo eacute apenas outro soberano mas sim aquele que fora escolhido por estar disposto a liderar Marduk na procissatildeo

A concentraccedilatildeo das estaacutetuas na capital evento acima referido constitui um dos episoacutedios em que Ciro baseia a sua laquopropagandaraquo Segundo o imperador persa Naboacutenido natildeo protegera os deuses Muito pelo contraacuterio o soberano tecirc-los-ia aprisionado na capital contra a sua vontade deixando as cidades desprotegidas e abertas a possiacuteveis ameaccedilas Fora Ciro quem uma vez chegado agrave capital ordenara o regresso das estaacutetuas agraves suas capelas laquoEu recoloquei segundo a ordem de Marduk o grande senhor todos os deuses de Sumer e de Akkad que Naboacutenido tinha trazido para a Babiloacutenia para ira do senhor dos deuses intactos nos seus santuaacuterios os lugares que os fazem felizesraquo51 O ato de Ciro toma o sentido de uma libertaccedilatildeo A sua chegada agrave Babiloacutenia simboliza simultaneamente a libertaccedilatildeo da populaccedilatildeo (que relembramos estava laquocomo mortaraquo) e a libertaccedilatildeo dos deuses que se teriam visto livres para regressarem agraves suas moradas

Segundo consta Ciro teraacute permitido o restabelecimento dos antigos cultos52 e ordenado inclusivamente o incremento laquodas oferendas regulares ao senhor dos senhoresraquo53 Marduk O governo de Ciro seria marcado pelo respeito pelos costu-mes religiosos Atraveacutes desta poliacutetica de toleracircncia o imperador teraacute conquistado o apoio da populaccedilatildeo local

48 ANET 31549 Ibid 31650 Ibid 31551 Ibid 31652 A visatildeo segundo a qual Ciro seria um apoacutestolo da toleracircncia deve ser revista De facto

Ciro atua em vaacuterios aspetos como muitos dos seus antecessores assiacuterios que teratildeo permitido o retorno de exilados e conferido privileacutegios (kidinnūtu) agrave Babiloacutenia O discurso de Ciro no seu famoso cilindro eacute aliaacutes bastante semelhante a algumas inscriccedilotildees de Sargatildeo II Veja-se a este propoacutesito Van der Spek 2014 sobretudo 241-49

53 Ibid 315

218

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk

Um ano apoacutes a tomada da Babiloacutenia em 538 aC Ciro nomeia o seu filho Cambises como governador da nova unidade administrativa do impeacuterio persa a Babiloacutenia54 A coroaccedilatildeo de Cambises ocorre na festa do Ano Novo no akītu

54 Cambises teraacute adotado o tiacutetulo de laquorei da Babiloacuteniaraquo durante cerca de um ano

219

Maria de Faacutetima Rosa

Bibliografia

Beaulieu P-A 2007 ldquoNabonidus the mad king a reconsideration of his stelas from Harran and Babylonrdquo In Representations of political power case histories from times of change and dissolving order in the Ancient Near East ed M Heinz e M Feldman 137-66 Winona Lake Eisenbrauns

mdashmdashmdash 1993 ldquoAn episode in the fall of Babylon to the Persiansrdquo JNES 52 (4)241-61

Black J A G Cunningham J Ebelin E Fluumlckiger-Hawker E Robson J Taylor e G Zoacutelyomi eds 1998-2006 The Electronic Text Corpus of Sumerian Literature Oxford Em httpetcslorinstoxacuk

Black J e A Green 1993 Gods demons and symbols of Ancient Mesopotamia London British Museum Press

Briant P 1998 Histoire de lrsquoempire perse De Cyrus agrave Alexandre Paris FayardCharpin D 2003 Hammu-rabi de Babylone Paris Presses Universitaires de

FranceCook J M 1983 The Persian Empire London Joseph Malaby DentCurtis J 2003 ldquoThe Assyrian heartland in the period 612-539 BCrdquo In Continuity

of Empire () Assyria Persia Padua ed G Lanfranchi M Roaf e R Rollinger 157-68 Winona Lake Eisenbrauns

Garelli P e V Nikiprowetzki 1974 Le Proche-Orient asiatique Les empires meacutesopotamiens Israel Paris Presses Universitaires de France

Green T 1992 The city of the moon god Religious traditions of Harran Leiden Brill

Jursa M 2003 ldquoObservations on the Problem of the Median ldquoEmpirerdquo on the Basis of Babylonian Sourcesrdquo In Continuity of Empire () Assyria Persia Padua ed G Lanfranchi M Roaf e R Rollinger 169-79 Winona Lake Eisenbrauns

Liverani M 2003 ldquoThe Rise and Fall of Mediardquo In Continuity of Empire () Assyria Persia Padua ed G Lanfranchi M Roaf e R Rollinger 1-12 Winona Lake Eisenbrauns

Petit T 1990 Satrapes et satrapies dans lrsquoempire acheacutemeacutenide de Cyrus le Grand agrave Xerxegraves Ier Paris Les Belles Lettres

Pritchard J B ed 1969 Ancient Near Eastern texts relating to the Old Testament Princeton Princeton University Press

Rollinger R 2009 ldquoThe Median ldquoEmpirerdquo the End of Urartu and Cyrusrsquo the Great Campaign in 547 BC (Nabonidus Chronicle II 16)rdquo Ancient West amp East 7 49-63

Roux G 1995 La Meacutesopotamie Paris Eacuteditions du Seuil

220

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk

Santos A R dos 2003 A Babiloacutenia dos Caldeus uma caracterizaccedilatildeo socioeconoacutemica Lisboa Colibri

Oshima T 2007 ldquoThe Babylonian God Mardukrdquo In The Babylonian World ed G Leick 348-60 New York London Routledge

Mierrop M Van de 2003 ldquoReading Babylonrdquo AJA 107257-75Spek R J Van der 2014 ldquoCyrus the Great Exiles and Foreign Gods A

Comparison of Assyrian and Persian Policies on Subject Nationsrdquo In Extraction amp Control Studies in Honor of Matthew W Stolper ed M Kozuh W F M Henkelman C E Jones e Ch Woods 233-64 Chicago Chicago Oriental Institute

Waerzeggers C 2001 ldquoThe Babylonian Priesthood in the Long Sixth Century BCrdquo Bulletin of the Institute of Classical Studies 54 (2)59-70

221

Carmen Soares

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica1

(Persian Kings in Herodotusrsquo Histories Law and Freedom roots of the monarchic ideology)

Carmen Soares(cilsoaresgmailcom ORCID 0000-0003-3005-4635)

Universidade de Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Resumo - O presente estudo apoiando-se na teorizaccedilatildeo poliacutetica que o proacuteprio au-tor apresenta em 380-82 passa em revista passos fundamentais das Histoacuterias para a caracterizaccedilatildeo dos governos monocraacuteticos dos soberanos persas O que se busca clarificar eacute a forma como a relaccedilatildeo desses governantes com a lei e a liberdadeservidatildeo em que se encontram os que governam nos levam agrave conclusatildeo da inexistecircncia de uma figura modelar do monarca Heroacutedoto oferece sim dos monarcas tanto laquoretratos mistosraquo (daqueles que se governam ora com justiccedila ora de modo despoacutetico como Ciro e Dario e antes deles Deacutejoces da Meacutedia) como um laquoretrato puroraquo (do tirano insolente Cambises)

Palavras-chave teorizaccedilatildeo poliacutetica monarquia tirania lei liberdade

Abstract ndash In this paper after a brief analysis of Histories 380-82 the author addres-ses the issue of the Persian monarchsrsquo autocratic governments What he tries to make clear is the close relationship there is between those sovereigns and the law and also the degree of freedom or slavery experienced by the people under their rule The main conclusions reached are none of Herodotusrsquo Persian kings corresponds to a portrait of the perfect monarch on the contrary we can find what could be called laquomixed portraitsraquo (when a king acts in some cases justly but in others assumes a despotic way of ruling ndash as do Cyrus and Darius as also Dejoces from Media) and a laquopure portraitraquo (of the insolent tyrant Cambyses)

Keywords political theory monarchy tyranny law freedom

Fonte escrita incontornaacutevel para o conhecimento da visatildeo grega do seacutec V a C sobre a ideologia das monarquias orientais as Histoacuterias de Heroacutedoto desde sempre cativaram o leitor graccedilas sobretudo agrave sua forma atraente de apresentar os factos Vestidos com uma roupagem bastante proacutexima das personagens traacutegicas do drama ateniense os protagonistas da histoacuteria persa satildeo natildeo obstante esse laquocolorido dramaacuteticoraquo alvo de um tratamento poliacutetico-filosoacutefico coerente e devidamente fundamentado O retrato dos monarcas persas soacute pode ser bem compreendido se tivermos em conta a articulaccedilatildeo entre dois

1 Trabalho desenvolvido no acircmbito do projeto UIDELT001962013 financiado pela FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_12

222

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

vetores de anaacutelise que emanam da duplicidade geneacutetica do discurso poliacutetico por um lado patenteando uma reflexatildeo teoacuterica sobre o assunto (theoria) pelo outro a sua manifestaccedilatildeo praacutetica (praxis)2 Isto eacute Heroacutedoto tem a preocupaccedilatildeo racional de fornecer uma reflexatildeo epistemoloacutegica sobre o regime monaacuterquico (entendido no sentido neutro e etimoloacutegico de lsquogoverno de um soacutersquo) a qual serve como jaacute tive oportunidade de defender noutro lugar3 de laquoficha de leituraraquo para os perfis concretos que vai apresentando do monarca (termo tambeacutem usado com o seu valor baacutesico de lsquogovernante uacutenicorsquo) Consciente desta dupla perspetivaccedilatildeo do universo poliacutetico do texto herodotiano entendi dividir em duas partes complementares o meu estudo a saber 1 Fundamentaccedilatildeo teoacuterica do regime monaacuterquico 2 Materializaccedilotildees do regime os retratos dos monarcas

1 Fundamentaccedilatildeo teoacuterica do regime monaacuterquico

Eacute no livro III (caps 80-82) que deparamos com a apresentaccedilatildeo de seis for-mas de governaccedilatildeo distintas passiacuteveis de distribuir por dois grupos opostos do ponto de vista moral a que entendo chamar com base na caracterizaccedilatildeo eacutetica de que satildeo alvo de laquoos melhoresraquo e laquoos pioresraquo regimes4 Sem nunca deixar transparecer a sua opiniatildeo sobre a presente mateacuteria Heroacutedoto coloca na boca de trecircs nobres persas a apresentaccedilatildeo dos fatores que contemporaneamente seriam tidos pelo menos entre algumas elites pensantes gregas como laquomarca-dores da identidaderaquo de cada uma das politeiai Se eacute verdade que mesmo sem lhes atribuir nomes diferentes o historiador daacute conta de uma forma laquoperfeitaraquo (ou como se lecirc em grego aristos) e de outra laquodegeneradaraquo (correspondente a kakistos) para a democracia e a oligarquia jaacute quando estaacute em causa o lsquogoverno de um soacutersquo satildeo dois os nomes empregues Mounarchie (correspondente ioacutenico do substantivo aacutetico monarchia que havia de entrar via latim nas liacutenguas modernas) pelo sentido neutro que comporta vem aplicada tanto ao modelo despoacutetico apresentado por Otanes5 como agrave sua forma perfeita defendida por Dario6 O outro dos nomes usado para apelidar a constituiccedilatildeo monocraacutetica eacute tyrannis7 e restringe-se tal como hoje ao perfil opressivo do que continuamos a designar de lsquotiraniarsquo

2 Jaacute procedi anteriormente a uma anaacutelise mais alargada da abordagem theoria e praxis poliacute-tica nas Histoacuterias de Heroacutedoto ndash Soares 2014a ndash bem como agrave comparaccedilatildeo entre os retratos dos regimes tiracircnico e democraacutetico ndash Soares 2014b

3 Cf Soares 20164 Cartledge (2009 21) tambeacutem reconhece neste trecho das Histoacuterias a identificaccedilatildeo de seis

formas de constituiccedilatildeo geacutermen da tipologia platoacutenica constituiacuteda por trecircs forma laquoboasraquo e ou-tras tantas laquodegeneradasraquo de constituiccedilatildeo O paralelismo entre Heroacutedoto e as seis constituiccedilotildees reais caraterizadas no diaacutelogo O Poliacutetico de Platatildeo jaacute foi objeto da minha reflexatildeo (Soares 2014a)

5 38036 382347 3811

223

Carmen Soares

Embora a questatildeo da historicidade do laquoDiaacutelogo dos Persasraquo permaneccedila em aberto e quanto a mim seja marginal relativamente agravequele que me parece o motivo principal para a sua inclusatildeo na obra (a racionalidade do Autor) o facto eacute que Heroacutedoto introduziu o episoacutedio com a afirmaccedilatildeo expressa de que foram proferidos discursos inacreditaacuteveis (na opiniatildeo de alguns Gregos) mas a verdade eacute que foram proferidos8 Esta espeacutecie de juramento de autenticidade natildeo tem para mim que ser entendida como uma prova irrefutaacutevel de que o historiador acreditava que os Persas tivessem mesmo tido semelhante conversa algures entre 52221 a C por ocasiatildeo do golpe que levou agrave deposiccedilatildeo do mago Gaumata O seu desiacutegnio poderia apenas ser dar a entender ao puacuteblico que tal como al-guns Gregos repudiavam a tirania avaliada pelo Coriacutentio Socles como a mais injusta e sanguinaacuteria das realizaccedilotildees humanas9 tambeacutem os Persas (pela boca de Otanes) concebiam o regime com idecircnticas cores negras Em suma Gregos e Persas aparecem irmanados no seu oacutedio agrave tirania perspetiva concordante com a funcionalidade aqui dada pelo historiador ao Baacuterbaro paradigma do Grego

Atentemos agora ainda que sumariamente nos elementos caracterizadores e distintivos das duas formas de governo de um soacute Na base da argumentaccedilatildeo sobre as vaacuterias constituiccedilotildees deparamos com um princiacutepio que haveria de per-manecer como fundamento da filosofia poliacutetica posterior a saber a correlaccedilatildeo entre eacutetica e poliacutetica Este diaacutelogo pode no entanto dar-se em sentidos opostos Esclarecendo melhor ou eacute o exerciacutecio do poder absoluto que influencia o caraacutecter do governante ou ao inveacutes cabe a este aspeto determinar a forma de governaccedilatildeo A conceccedilatildeo de tirania (retratada por Otanes e Megabizo) deriva da primeira leitura donde ressalta a ideia de que mesmo ao indiviacuteduo com uma conduta moral exemplar (a quem os Gregos da eacutepoca atribuiacuteam o tiacutetulo de lsquoo melhor dos homensrsquo10) o poder ilimitado corrompe-o11 Jaacute a monarquia (tal como a apresenta Dario) fica a dever ao ethos do governante o estatuto de regime perfeito (aristos) e regenerador i e o uacutenico que pode restabelecer a ordem social arruinada sob as disputas dos oligarcas pelo protagonismo12 ou sob as cumplicidades danosas dos governantes de origem popular13 Em suma o caraacutecter do governante afigura-se um motivo central da aceccedilatildeo claacutessica grega da ideologia poliacutetica

8 3801 Todas as traduccedilotildees apresentadas satildeo da minha autoria9 592α110 380311 Note-se que como alerta a helenista Emily Baragwanath (2015 21-22) a apreciaccedilatildeo de

Otanes natildeo deve ser entendida como evidecircncia de que Heroacutedoto acreditava na universalida-de de comportamentos humanos o que implicaria que nas Histoacuterias todos os governantes autocraacuteticos teriam percursos absolutamente idecircnticos Segundo propotildee a autora a presente observaccedilatildeo do aristocrata persa natildeo deve pois ser lida como uma verdade absoluta aplicando--se concretamente ao comportamento de Cambises

12 382313 3824

224

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

Das consideraccedilotildees acabadas de fazer retiramos tambeacutem a conclusatildeo de que a tirania corresponde agrave versatildeo defeituosa do governo de um soacute como bem con-firma o facto de nas Histoacuterias vir sempre associada a conotaccedilotildees pejorativas14 Na verdade o regime colhe apenas criacuteticas todas elas verdadeiros atentados contra os principais fundamentos da vida em sociedade tal como os Gregos a concebiam as normas (sejam elas sociais ou juriacutedicas noccedilotildees ambas contidas no termo nomos) a moderaccedilatildeo (reverso da condenada hybris) e a justiccedila (ou cumprimento das leis) Em concreto esses viacutecios do poder tiracircnico deduzimo-los respetivamente das seguintes praacuteticas denunciadas por Otanes alterar os costumes paacutetrios exercer violecircncia sobre as mulheres e condenar agrave morte sem julgamento15

Para que fique completo o retrato da tirania falta ainda lembrar dois traccedilos de caraacutecter do tirano a inveja (incompreensiacutevel numa pessoa que vive na pros-peridade) e a inseguranccedila (que se traduz na desconfianccedila que domina as relaccedilotildees do governante com os suacutebditos e na sua recetividade face agraves caluacutenias) Porque a personagem que procede a esta caracterizaccedilatildeo do regime eacute o defensor da de-mocracia faz sentido que tendo em mente dois mecanismos identitaacuterios da sua constituiccedilatildeo preferida aponte agrave tirania a seguinte falha a ausecircncia de controlo das financcedilas puacuteblicas e da atuaccedilatildeo do governante Ou seja como diz Otanes o tirano natildeo tem que prestar contas e faz o que lhe apetece16

Por contraste com esta caracterizaccedilatildeo detalhada da ideologia tiracircnica o perfil da monarquia assenta apenas na jaacute referida eacutetica do governante e num valor que modernamente associamos mais agrave democracia a liberdade No termo da fala de Dario deparamos com as seguintes declaraccedilotildees

Para resumir tudo o que foi aduzido num uacutenico termo a liberdade donde nos veio e quem nos a deu Do povo da oligarquia ou de um monarca Sou por conseguinte da opiniatildeo de que visto noacutes termos sido libertados por um uacutenico homem defendamos esse tipo de regime e aleacutem disso porque temos por bem natildeo dissolver os costumes paacutetrios Realmente esta natildeo eacute a melhor atitude17

Duas ideias sobressaem da argumentaccedilatildeo final do nobre persa para eleger a monarquia como o melhor regime a liberdade natildeo eacute prerrogativa exclusiva de um determinado modelo de constituiccedilatildeo (visto que se aventa a hipoacutetese de vigorar tanto num governo de soberania popular numa oligarquia como numa monarquia) mas eacute criteacuterio decisivo na afericcedilatildeo da qualidade do mesmo o res-peito pelos nomoi paacutetrios traduz o que numa linguagem moderna poderiacuteamos

14 Veja-se o recurso abundante a vocabulaacuterio da raiz kak- No seu estudo Ferrill (1978 391-97) documenta com exemplos vaacuterios o uso herodotiano do termo tyrannos aplicado aos reis orientais com esse sentido negativo

15 380516 380317 3825

225

Carmen Soares

designar de lsquoconservadorismorsquo ideoloacutegico Ou seja Dario em uacuteltima instacircncia confessa preferir a monarquia a qualquer outro sistema governativo (mesmo que esse se paute pela excelecircncia18) por razotildees de conformidade agrave tradiccedilatildeo persa E esta em termos poliacuteticos era monaacuterquica A figura do governante uacutenico evocada como abonaccedilatildeo da escolha de Dario natildeo o esqueccedilamos eacute precisamente Ciro rei fundador do Impeacuterio Persa nascido da libertaccedilatildeo do jugo da Meacutedia Lendo nas entrelinhas do discurso do futuro rei persa eacute pois a seguinte a loacutegica da sua argumentaccedilatildeo se os Persas tecircm vivido sob a intendecircncia de um monarca desde que se libertaram da sujeiccedilatildeo opressiva dos Medos natildeo haacute qualquer argumento vaacutelido para contestar a sapiecircncia de um lsquocostumersquo (nomos) paacutetrio e incorrer na sua perniciosa lsquotransgressatildeorsquo (anomia)

As transgressotildees ao nomos natildeo restringidas como aqui ao plano mera-mente institucional constituem em grau diverso um dos traccedilos mais marcantes dos perfis dos monarcas persas governantes insolentes que agrave luz da visatildeo grega da condiccedilatildeo humana se encontram fatalmente condenados agrave ruiacutena No fim desventurado desses liacutederes de homens estaacute simbolicamente contido o anuacutencio inevitaacutevel da queda do regime a que datildeo corpo o impeacuterio

Quanto agrave virtude libertadora da monarquia nos termos em que eacute evocada soacute faz sentido para quem passa de um estado de submissatildeo ao de domiacutenio Eacute o que sucede precisamente no contexto histoacuterico em que Heroacutedoto situa o laquoDiaacutelo-go dos Persasraquo apoacutes a deposiccedilatildeo do governo do Mago usurpador Gaumata Mas se tivermos em conta a perspetiva dos Gregos por ocasiatildeo das invasotildees dos reis persas percebemos que eacute por idecircntica razatildeo que o historiador lhes coloca na boca queixas acesas contra a escravidatildeo que para eles acarreta o governo (tiracircnico) de um soacute senhor o monarca oriental pois priva-os da liberdade Em suma monarquia tanto significa liberdade como escravidatildeo depende da pers-petiva

3 Materializaccedilotildees do regime os retratos dos monarcas

Desde a publicaccedilatildeo em 1966 da obra de referecircncia Form and Thought in Herodotus de H R Immerwahr que se identificou um padratildeo narrativo comum ao retrato dos chefes dos povos baacuterbaros contemplados nas Histoacuterias Condicio-nados pelos princiacutepios universais da instabilidade da fortuna e da fragilidade da condiccedilatildeo humana todos os liacutederes vivem um percurso de ascensatildeo e queda (que pode ser apenas de decliacutenio ou de total destruiccedilatildeo) O que me proponho fazer natildeo eacute acompanhar pari passu essa biografia dramatizada dos reis persas (anaacutelise que vaacuterios estudiosos consagrados jaacute levaram a cabo19) Natildeo eacute minha intenccedilatildeo igual-mente dar conta da presenccedila nos retratos dos governantes uacutenicos (mounarchoi)

18 Cf 382219 Veja-se Waters 1971 Gammie 1986 Silva 1995 1997 e 2000

226

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

de todos os marcadores das identidades tiracircnica e monaacuterquica apresentados no ceacutelebre passo de teorizaccedilatildeo poliacutetica por mim brevemente analisado na primeira parte desta intervenccedilatildeo20 Pretendo sim demonstrar em que medida o historiador exemplifica na caracterizaccedilatildeo e atuaccedilatildeo das suas personagens sobretudo aqueles fundamentos poliacuteticos que agrave luz da mentalidade do autor e dos seus mais diretos destinataacuterios os Gregos satildeo fundamentais ao exerciacutecio do poder a lei e a liberdade

No que concerne a importacircncia conferida ao nomos eacute por demais conhecido o primado que Heroacutedoto lhe reconhece em todas as culturas21 Como o que nos interessa agora considerar eacute a relaccedilatildeo do governante com a lei eacute sobre a imagem do rei-juiz que me irei debruccedilar Se como vimos no laquoDiaacutelogo dos Persasraquo o monarca elogiado por Dario eacute um indiviacuteduo da melhor iacutendole (aristos) e obser-var os costumes paacutetrios uma evidecircncia de tal distinccedilatildeo eacute natural que quando os Medos escolheram o seu primeiro rei tenham tido por criteacuterio de meacuterito ser ele o uacutenico homem a aplicar a justiccedila com retidatildeo22 Embora os caps 96-101 do livro I se reportem a um monarca medo (e natildeo a um persa) Deacutejoces o primeiro rei dos Medos natildeo podemos esquecer que os dois povos (e respetivas ideologias reacutegias) se fundem graccedilas aos laccedilos de sangue que ligam Ciro tambeacutem ele o primeiro rei (agora) dos medo-persas ao avocirc o uacuteltimo soberano da Meacutedia independente e dominadora Astiacuteages Ou seja conhecer a imagem que Heroacutedoto desenha do nascimento da monarquia meda eacute necessariamente aceder aos fundamentos da monarquia persa (ou talvez fosse melhor chamar-lhe monarquia medo-persa)23

No episoacutedio em apreccedilo dois termos satildeo usados para designar o exerciacutecio do governo de um soacute tirania (τυραννίς) e realeza (βασιληίη) O primeiro continua a ter uma conotaccedilatildeo negativa designando um poder despoacutetico ao passo que o segundo eacute sinoacutenimo de soberania legiacutetima24 Esta diferenccedila semacircntica decorre dos contextos em que satildeo empregues A palavra laquotiraniaraquo aparece duas vezes Embora a primeira ocorrecircncia se tomada isoladamente possa corresponder ao valor neutro de lsquosoberaniarsquo o facto de ser esse o termo usado para designar o verdadeiro mas inconfesso moacutebil da atuaccedilatildeo juriacutedica exemplar de Deacutejoces consiste num aviso ao leitor da natureza despoacutetica das suas intenccedilotildees Estas seratildeo desveladas por completo assim que lhe for confiada a lsquorealezarsquo Note-se ainda

20 Sobre este assunto veja-se Romilly 1959 Evans 1981 Rocha Pereira 1981 e 1990 Lateiner 1984 Pelling 2002

21 Ideia sintetizada de forma magistral na maacutexima atribuiacuteda por Heroacutedoto (3384) a Piacuten-daro segundo a qual a lei eacute rainha de todas as coisas (fr 169 a Snell-Maehler) Sobre os valores de nomos e sua importacircncia na obra herodotiana leia-se Evans 1965 Humphreys 1987 Quanto aos significados do termo e evoluccedilatildeo do conceito na Greacutecia antiga veja-se Ostwald (1969 1-54) e Romilly (1971 51-71)

22 196323 Dewald (2002 27) reconhece que este episoacutedio permite implicitamente uma criacutetica e

anaacutelise do desenvolvimento do poder monaacuterquico24 Concordo pois com posiccedilatildeo idecircntica defendida por Ferrill (1978 388-91)

227

Carmen Soares

que eacute a palavra basileus25 aquela que o historiador usa para designar o tipo de governante que os Medos pretendiam e que quando surge pela segunda vez o termo τυραννίς este vem associado a um adjetivo com sentido pejorativo χαλεπός (lsquoimplacaacutevel intransigentersquo) A inflexibilidade mesmo aplicada ao exerciacutecio da justiccedila como eacute o caso presente26 eacute reveladora quanto a mim de falta de moderaccedilatildeo virtude tatildeo apregoada pelos Gregos e reverso do defeito mais censurado aos homens em geral e ao tirano em particular a hybris27 Atentemos na sequecircncia segundo a qual no texto se alude aos dois regimes poliacuteticos

Heroacutedoto conta que a motivaccedilatildeo para Deacutejoces se ter empenhado mais na aplicaccedilatildeo da justiccedila no seio da sua aldeia foi por desejar ardentemente a tirania (ἐρασθεὶς τυραννίδος28) O mesmo eacute dizer que as funccedilotildees de juiz servem de cata-pulta para as funccedilotildees poliacuteticas29 Aleacutem desta relaccedilatildeo umbilical entre os poderes juriacutedico e poliacutetico30 haacute que considerar tal como vimos a propoacutesito da fala de Dario no laquoDiaacutelogo dos Persasraquo a faceta regeneradora da monarquiarealeza Na verdade eacute o clima de desordem generalizada (ἐούσης ἀνομίης πολλῆς ibidem ἐούσης ὦν ἁρπαγῆς καὶ ἀνομίης31) que leva os Medos a tomarem a decisatildeo de nomear um rei (βασιλέα) cuja missatildeo seraacute precisamente estabelecer a boa ordem (veja-se o uso do verbo εὐνομέομαι οὕτω ἥ τε χώρη εὐνομήσεται32) Diante do curriculum exemplar de Deacutejoces enquanto juiz os Medos foram unacircnimes em elegecirc-lo rei33 Na mente dos Medos estaacute sem margem para duacutevidas o desiacutegnio de serem governados por um basileus e natildeo um tyrannos34 Mas seraacute precisamente

25 198126 1100127 Num estudo sobre a caracterizaccedilatildeo dos reis Katherine Clarke (2015) explora ateacute que ponto

a manipulaccedilatildeo do mundo natural pelos reis pode ou natildeo ser lida como sinal do despotismo dos governantes O seu estudo eacute particularmente interessante por chamar a atenccedilatildeo para a necessidade de considerarmos a origem do foco de censura o que leva agrave conclusatildeo de que muitas das vezes natildeo se pode conceber essa visatildeo negativa como sendo a posiccedilatildeo do historiador mas de terceiros

28 196229 Ou como propotildee Baragwanath (2015 30) a atuaccedilatildeo de Deacutejoces como juiz natildeo reflete o

seu caraacuteter justo mas sim o desejo de ser tirano da Meacutedia30 Esta constitui aliaacutes uma ideia comum agrave ideologia monaacuterquica grega da eacutepoca Veja-se a

tiacutetulo ilustrativo alguns exemplos relativos agrave Eacutepoca Arcaica (Odisseia 199-11 em que se afir-ma que o rei irrepreensiacutevel decide de forma justa ou seja cabe-lhe exercer a justiccedila Hesiacuteodo Trabalhos e Dias 35-39 passo em que se atribui aos basileis essa mesma funccedilatildeo que no caso vertente aplicam injustamente por se deixarem corromper) e na Eacutepoca Claacutessica (com destaque para a ecircnfase que Platatildeo atribui ao laquoJustoraquo ndash to dikaion ndash como predicado distintivo da iacutendole do laquopoliacutetico verdadeiroraquo cf eg O Poliacutetico 293d8)

31 197232 197333 198134 No seu estudo sobre o uso do termo tyrannos (em vez de basileus) para Eacutedipo em alguns

passos na peccedila homoacutenima de Soacutefocles Knox (1954 97-98) sublinha tal como aqui a ideia de que aquele designa o governante nomeado mas natildeo o descendente de uma linha hereditaacuteria monaacuterquica

228

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

com a mudanccedila de estatuto de homem privado para homem puacuteblico que se tor-nam claros os marcadores da identidade poliacutetica tiracircnica de Deacutejoces

Se o palaacutecio (βασιλήια35) uma exigecircncia do novo senhor pode ser entendido como um atributo material natural do poder reacutegio (um verda-deiro signum imperii36) jaacute a extrema fortificaccedilatildeo de que eacute alvo o edifiacutecio e os procedimentos protocolares para o acesso dos suacutebditos ao rei parecem-me marcas camufladas de uma conceccedilatildeo tiracircnica do poder Embora a inacessibi-lidade do rei possa ser vista sob o prisma favoraacutevel do reconhecimento que lhe eacute feito lsquode ser distintorsquo (ἑτεροῖος37) natildeo julgo ser essa a uacutenica explicaccedilatildeo a ter em conta Aliaacutes Heroacutedoto apresenta razotildees humanas bem diversas dessa para as seguintes medidas a formaccedilatildeo de uma guarda pessoal do rei a in-clusatildeo da sua residecircncia e tesouros no meio de uma cintura de sete muralhas a obrigatoriedade de contacto indireto entre monarca e suacutebditos (atraveacutes de mensageiros) e a criaccedilatildeo de um corpo de espiotildees pessoais (os chamados laquoolhos e ouvidos do reiraquo)38

Foi para se proteger a si e aos seus tesouros que Deacutejoces mandou construir essa Ecbaacutetana inexpugnaacutevel39 A desconfianccedila tiacutepica da alma tiracircnica insegura dos seus meacuteritos revela-se na forma como afasta de si os seus pares aqueles que como se lecirc no texto natildeo satildeo menos do que ele em qualidades (οὐδὲ ἐς ἀνδραγαθίη λειπόμενοι40) Eacute destes em particular que se quer resguardar pois neles lsquoima-ginarsquo (ἐσέμνυνε ibidem) potenciais rivais ao trono A inveja que implicitamente atribui aos outros mais natildeo eacute do que o reflexo de um viacutecio pessoal tiacutepico do tirano Tambeacutem a rede de espiotildees encobre e legitima defeitos proacuteprios de uma governaccedilatildeo opressora a denuacutencia e a caluacutenia Ateacute a faceta de juiz determinante como vimos para a nomeaccedilatildeo de Deacutejoces como rei da Meacutedia se mostra alterada pelo exerciacutecio despoacutetico do poder Os termos distintos em que o historiador apresenta Deacutejoces-juiz antes e depois de ser investido das funccedilotildees de chefe do povo satildeo suficientemente expliacutecitos pelo que passo a confrontar em citaccedilatildeo os dois passos do texto

Pela sua forma de atuar recebia dos concidadatildeos elogios de natildeo pouca mon-ta de modo que as gentes das outras aldeias tomaram conhecimento de que Deacutejoces era o uacutenico indiviacuteduo a aplicar a justiccedila com retidatildeo (κατὰ τὸ ὀρθὸν

35 198436 Outros satildeo trono carro real cavalos Sobre as representaccedilotildees e as ideologias monaacuterquicas

dos Aquemeacutenidas veja-se Briant (1996 217-65)37 199238 Dewald (2002 28) qualifica este exerciacutecio da tirania de laquoautocracia burocraacuteticaraquo uma

vez que complexifica o protocolo institucional e distancia em muito o governante dos go-vernados

39 199140 1992

229

Carmen Soares

δικάζων)41Depois de tomadas estas medidas protocolares e de ter fortalecido o seu poder com a tirania tornou-se um guardiatildeo implacaacutevel da justiccedila (ἦν τὸ δίκαιον φυλάσσων χαλεπός)42

A toacutenica deixa de assentar numa ideia positiva de exerciacutecio imparcial da justiccedila para passar a distinguir-se pela intransigecircncia A situaccedilatildeo eacute tanto mais grave para as partes do processo quando ao contraacuterio do que sucedia quando Deacutejoces natildeo governava deixou de haver um contacto direto entre juiz e julgado(s) Ou seja o exerciacutecio da lei faz-se em diferido o que poderia com-prometer a desejaacutevel retidatildeo dos julgamentos Natildeo obstante esse distanciamento entre justiccedila e indiviacuteduos forccedilado pela ideologia poliacutetica monaacuterquica a missatildeo do juiz eacute resumida nestes termos julgar cada crime de acordo com o meacuterito43 Para entendermos cabalmente o sentido da expressatildeo grega κατrsquo ἀξίην temos de trazer agrave colaccedilatildeo deste passo o cap 137 (sect 1)

Aiacute Heroacutedoto elogia o costume persa de fazer depender a aplicaccedilatildeo de penas extremas de uma avaliaccedilatildeo da conduta do reacuteu na sua globalidade Em causa estaacute a interdiccedilatildeo de por causa de uma uacutenica falta o rei-juiz condenar agrave morte e de os Persas aplicarem aos servos da sua casa um sofrimento irremediaacutevel Tais castigos soacute podem ser aplicados se da ponderaccedilatildeo entre crimes (ἀδικήματα) e serviccedilos prestados (ὑπουργήματα) resultar uma proporccedilatildeo maior dos primei-ros Respeitam os monarcas persas este nomos dando assim mostras de possuir a idoneidade que os torna merecedores do tiacutetulo de rei Ou pelo contraacuterio desrespeitam-no incorrendo na transgressatildeo (anomia) proacutepria do soberano insolente (hybristes) o tyrannos A resposta a estas interrogaccedilotildees encontramo-la nos retratos de Cambises e Dario Se quanto ao primeiro natildeo temos a miacutenima duacutevida em identificaacute-lo com o exemplo mais bem acabado da galeria herodoti-ana de monarcas anomoi o rei regenerador da monarquia persa eacute alvo de um tratamento mais complexo no que se refere agrave sua faceta de juiz Eacute por essa razatildeo que dedicarei mais atenccedilatildeo ao perfil de Dario

Padecendo de um estado de demecircncia que lhe inspira uma espeacutecie de laquoesquizofreacutenicaraquo mania da perseguiccedilatildeo Cambises enceta uma seacuterie de execuccedilotildees sumaacuterias44 Por baixo da capa da inveja e da necessidade de desagravar pretensas injuacuterias agrave sua autoridade o soberano esconde um caraacutecter inseguro Eacute por conseguinte um indiviacuteduo intolerante face a qualquer tipo de concorrecircncia ao seu poder A imaginaacuteria pretensatildeo do irmatildeo Esmeacuterdis ao

41 196342 1100143 1100244 Sobre o assunto veja-se Silva 1997 Soares (2003 418-42)

230

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

trono leva-o a cometer o primeiro fratriciacutedio45 Segue-se-lhe a morte da irmatilde-esposa voz que decide silenciar por intoleracircncia absoluta face a manifestaccedilotildees de bom senso46 O lastro homicida estende-se ainda a indiviacuteduos fora do ciacuterculo familiar mais proacuteximo agravequeles que por serem seus pares (ὁμοίους47) facilmente rotularia de usurpadores As censuras que estas e outras condenaccedilotildees agrave morte de concidadatildeos suscitam tanto na boca do historiador48 como na do conselheiro real Creso49 ganham maior verosimilhanccedila narrativa se as entendermos precisamente como materializaccedilotildees do desrespeito (anomia) de Cambises pelo atraacutes elogiado costume paacutetrio da pena capital Ao mandar matar pessoas sem uma uacutenica razatildeo que o fundamente (ἐπrsquo οὐδεμιῇ αἰτίῃ ἀξιοχρέῳ) o soberano contradiz o coacutedigo eacutetico-juriacutedico persa ou seja natildeo corresponde ao perfil do mounarchos ou basileus dikaios mas ao do tyrannos hybristes o mesmo eacute dizer adikos Em resumo insolente injusto e transgressor satildeo os qualificativos que ressaltam do retrato de Cambises e que legitimam a sua inclusatildeo entre a galeria dos governantes tiranos50

Passemos agora a considerar a imagem de Dario agrave luz do desempenho das competecircncias de rei-juiz Logo no iniacutecio do seu reinado o novo senhor do impeacuterio persa delibera a condenaccedilatildeo agrave morte de compatriotas do mais alto estatuto social Intafernes um seu par (pois fazia parte como ele do grupo dos sete conjurados responsaacuteveis pela deposiccedilatildeo do Mago usurpador 3118-119) Oretes governador de Sardes51 Embora sequenciais no contexto da narraccedilatildeo os dois episoacutedios revelam formas distintas de o rei aplicar a justiccedila No caso de Intafernes eacute dupla a insolecircncia (Ἰνταφέρνεαhellip ὑβρίσαντα52) cometida Natildeo soacute desrespeitou o nomos receacutem-criado da prerrogativa conce-dida aos seis conjurados de poderem falar diretamente com o rei (exceto se ele estivesse deitado com uma mulher) como infligiu danos fiacutesicos irreparaacuteveis (correspondentes ao supra referido ἀνήκεστον πάθος53) em servos que natildeo eram seus A mutilaccedilatildeo do nariz e das orelhas dos mensageiros figuras indis-pensaacuteveis desde os tempos do medo Deacutejoces ao protocolo reacutegio revela tanto a prepotecircncia do nobre persa como o seu temor de um potencial rival ao trono A soluccedilatildeo que Dario toma para erradicar semelhante ameaccedila eacute se quisermos usar o vocabulaacuterio juriacutedico que jaacute nos surgiu anteriormente lsquoimplacaacutevelrsquo De

45 33046 331-3247 335548 Ibidem49 336150 O seu soacutesia grego eacute Periandro de Corinto figura que jaacute tive ocasiatildeo de tratar noutra oca-

siatildeo (Soares 2003 442-48)51 3127-12852 3118153 11371

231

Carmen Soares

facto a sentenccedila de morte recai natildeo soacute sobre o infrator mas atinge tambeacutem todos os varotildees da famiacutelia (medida que visava eliminar potenciais vingadores da morte do chefe do clatilde)

No entanto ao inveacutes do seu antecessor Dario natildeo vem desenhado com as tintas carregadas da obstinaccedilatildeo doentia O restaurador da boa ordem na Peacutersia goza de um caraacutecter suficientemente ponderado para sem comprometer a afir-maccedilatildeo inequiacutevoca da sua autoridade reduzir uma pena que pela sua radicali-dade poderia contribuir para criar dele a imagem do tirano e natildeo a do monarca De facto aquele a quem Heroacutedoto atribui o papel de defensor da monarquia como o melhor regime sabe fazer a leitura poliacutetica correta do desgosto que tatildeo implacaacutevel pena causaria na esposa de Intafernes Concede-lhe pois a graccedila de poupar a vida do seu irmatildeo e do filho primogeacutenito A misericoacuterdia do monarca constitui quanto a mim uma estrateacutegia narrativa para revelar como no retrato do bom monarca-juiz se fundem rigor e toleracircncia

No episoacutedio seguinte a histoacuteria da morte de Oretes o leitor das Histoacuterias depara com a exemplificaccedilatildeo do nomos juriacutedico persa da condenaccedilatildeo agrave morte mediante a avaliaccedilatildeo ponderada da conduta do julgado O poderoso governador da Liacutedia Friacutegia e Ioacutenia vem apresentado como autor de um vasto conjunto de crimes (ἐξύβρισε παντοῖα54 πάντων τῶν ἀδικημάτων εἵνεκεν55) Uma ambiccedilatildeo crescente de poder levou-o a liquidar dois ilustres aristocratas persas Mitrobates e o filho Cranaspes mortes que lhe valeram a passagem da proviacutencia da Friacutegia para o seu controle No entanto como seria de prever esse reforccedilo de influecircncia pessoal de um saacutetrapa natildeo eacute visto com bons olhos pelo monarca receacutem-chegado ao poder Dario a braccedilos numa fase de afirmaccedilatildeo de autoridade com uma seacuterie de sublevaccedilotildees um pouco por todo o impeacuterio56 Ou seja a atuaccedilatildeo de Oretes soacute pode ser vista pelo rei como um prejuiacutezo (κακὰ δὲ μεγάλα57) e natildeo um serviccedilo (veja-se o uso do verbo lsquoajudarrsquo ὠφέλησε ibidem) prestado aos Persas Digo laquoaos Persasraquo (Πέρσας58) e natildeo laquoao rei dos Persasraquo pois satildeo esses os termos em que Dario expotildee a culpa de Oretes perante uma assembleia dos mais notaacuteveis Persas (Περσέων τοὺς λογιμωτάτους59) Oretes corresponde por conseguinte agrave figura do inimigo puacuteblico a abater Reproduzo de seguida a argumentaccedilatildeo empregue para encontrar um carrasco voluntaacuterio para a insolecircncia intoleraacutevel (ὕβριν οὐκ

54 1126255 3127156 Essas revoltas vecircm atestadas na inscriccedilatildeo de Behistun para as regiotildees de Elam Babiloacutenia

Assiacuteria Egito e Paacutertia entre outras Como refere Briant (1996 127-28) natildeo se pode falar com base no testemunho de Heroacutedoto de uma verdadeira revolta da Liacutedia mas apenas de insubor-dinaccedilatildeo do seu saacutetrapa

57 3127358 3127359 31272

232

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

ἀνασχετόν60) do saacutetrapa pois nela se evoca o nomos persa que autoriza o rei-juiz a condenar um suacutebdito agrave morte

Entre voacutes haacute algueacutem que seja capaz de me trazer Oretes vivo ou de mataacute-lo A esse homem que natildeo prestou nenhum auxiacutelio aos Persas mas que pelo con-traacuterio lhes causou grandes males61

Se como tentaacutemos demonstrar Dario encarna as qualidades do rei-juiz e Cambises representa o seu reverso no que se refere agrave faceta de rei libertador ela continua a estar retratada no primeiro graccedilas agrave sua condiccedilatildeo de monarca regenerador do impeacuterio mas jaacute surgira antes nas Histoacuterias ligada agrave caracterizaccedilatildeo de Ciro o Grande Rei62

De Dario jaacute consideraacutemos esta imagem de paladino da liberdade a propoacutesi-to do seu papel na recuperaccedilatildeo do poder dos Persas face aos Medos Nesse sen-tido podemos designaacute-lo de segundo unificador do impeacuterio medo-persa sob comando persa O primeiro o fundador do impeacuterio e como tal justo merecedor do tiacutetulo de lsquopairsquo (πατήρ63) Ciro conquistou o apoio dos seus compatriotas na rebeliatildeo contra o jugo de Astiacuteages com a promessa de os tornar livres (γίνεσθε ἐλεύθεροι64) Importa todavia natildeo esquecer o real sentido que no contexto da poliacutetica expansionista intriacutenseca agrave ideologia monaacuterquica oriental assume a noccedilatildeo de liberdade lsquoSer livrersquo significa lsquoser senhor de escravosrsquo Dos numerosos exemplos que ao longo da obra datildeo conta desse entendimento lembro apenas um outro envolvendo tambeacutem os Medos aiacute apresentados na perspetiva oposta agraves que evoquei Sobre eles conta Heroacutedoto que combatendo contra os Assiacuterios em prol da liberdade revelaram-se valerosos guerreiros e ao repelirem a escravidatildeo tornaram-se livres65

Mas seraacute essa liberdade agrave luz do pensamento grego a verdadeira liberdade A resposta a esta questatildeo levar-nos-ia pelo caminho fascinante mas longo e por essa razatildeo de momento inviaacutevel da visatildeo herodotiana sobre a eleutheria grega Lembro apenas que a sobejamente conhecida aversatildeo dos Gregos (Atenienses e Espartanos em especial) agrave soberania persa passa por uma mundividecircncia diferente de soberania de um soacute e sua relaccedilatildeo com a liberdade A conhecida conversa entre Xerxes e Demarato rei espartano exilado na sua corte travada na sequecircncia da inspeccedilatildeo das forccedilas navais pelo monarca persa encerra as id-eias principais do pensamento grego nessa mateacuteria Na boca do Persa coloca

60 3127361 3127362 A primeira vez que lhe vem atribuiacutedo esse tiacutetulo (βασιλεὺς ὁ μέγας) eacute em 1188163 389364 1126665 1952

233

Carmen Soares

Heroacutedoto um novo sentido de liberdade natildeo ser governado por um soacute homem Eis os termos em que se exprime

Se [os Lacedemoacutenios] fossem governados agrave nossa maneira por uma soacute pessoa com receio dela natildeo soacute se tornariam melhores do que satildeo por natureza como poderiam estando em desvantagem fustigados pelo chicote avanccedilar contra um maior nuacutemero [de adversaacuterios] Todavia entregues agrave liberdade nenhuma dessas coisas seratildeo capazes de realizar66

A imagem opressiva que transparece deste retrato do soberano uacutenico faacute-la o historiador ser verbalizada primeiro por um monarca persa depois por um ex-diarca grego Quanto a mim estamos uma vez mais perante a conhecida universalidade de valores tiacutepica do texto herodotiano Haacute no entanto diferenccedilas de perspetiva denunciadoras de identidades distintas De facto nas palavras pronunciadas por Demarato fica tambeacutem impliacutecita a ideia de que a liberdade dos Gregos decorre de natildeo serem governados por um monarca O estatuto de soberania natildeo o reconhecem a um homem mas sim a princiacutepios normativos rigorosos (νόμος ἰσχυρός e δεσπότης νόμος67) Daiacute que o Lacedemoacutenio tenha dito dos seus compatriotas que embora sejam livres natildeo o satildeo em absoluto (ἐλεύθεροι γὰρ ἐόντες οὐ πάντα ἐλεύθεροί εἰσι68)

Em conclusatildeo a imagem herodotiana do papel da liberdade e da lei na construccedilatildeo da ideologia do governo de um soacute e respetivo governante assenta em princiacutepios filosoacutefico-poliacuteticos proacuteprios da mundividecircncia heleacutenica do seu autor Assim a monarquia (ou realeza) corresponde agrave versatildeo perfeita do regime a tirania agrave forma degenerada o monarca (ou rei) encarna virtudes o tirano viacutecios

Da conjugaccedilatildeo entre esta bipolaridade poliacutetica e a crenccedila profundamente grega na fragilidade de todos os mortais sem exceccedilatildeo (onde se inclui por conseguinte o rei) resulta que nenhum dos retratos considerados corresponde ao modelo do governante de excelecircncia Se nos casos de Ciro e Dario ainda somos confrontados com o que proponho designar de laquoretratos mistosraquo (de monarca e tirano) ndash pois os comportamentos louvaacuteveis permitem compensar outros indignos ndash no de Cambises deparamos com um laquoretrato puroraquo (de tirano)

66 7103467 Cf respetivamente 71021 e 7704468 71044

234

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

Bibliografia

Baragwanath E 2015 ldquoCharacterization in Herodotusrdquo In Fame and Infamy Essays for Christopher Pelling on Characterization in Greek and Roman Biography and Historiography eds R Ash J Mossman and F B Titchener 15-35 Oxford Oxford University Press

Briant P 1996 Histoire de lrsquoempire perse De Cyrus agrave Alexandre Paris FayardCartledge P 2009 Ancient Greek Political Thought in Practice Cambridge

University PressClarke K 2015 ldquoPutting up Pyramids Characterizing Kingsrdquo In Fame and

Infamy Essays for Christopher Pelling on Characterization in Greek and Roman Biography and Historiography eds R Ash J Mossman and F B Titchener 37-51 Oxford Oxford University Press

Dewald C 2003 ldquoForm and Content the Question of Tyranny in Herodotusrdquo In Popular Tyranny Sovereignty and Discontents in Classical Athens ed K Morgan 25-38 Austin University of Texas Press

Evans J A S 1965 ldquoDespotes nomosrdquo Athenaeum 43142-53Ferrill A 1978 ldquoHerodotus on tyrannyrdquo Historia 27 (3)385-98Gammie J G 1986 ldquoHerodotus on kings and tyrants objective historiography

or conventional portraiturerdquo Journal of Near Eastern Studies 45 (3)171-195

Humphreys S C 1987 ldquoLaw Custom and Culture in Herodotusrdquo Arethusa 20211-20

Immerwahr H R 1966 Form and Thought in Herodotus Cleveland Scholars PR

Knox B 1954 ldquoWhy is Oedipus Called Tyrannosrdquo CJ 50 (3)97-102 130 = 1979 ldquoWhy is Oedipus Called Tyrannosrdquo In Word and Action Essays on the Ancient Theater 87-95 Baltimore London The John Hopkins University Press

Lasserre F 1976 ldquoHeacuterodote et Protagoras le deacutebat sur les constitutionsrdquo MH 33 (2)65-84

Lateiner D 1984 ldquoHerodotean historiographical patterning the constitutional debaterdquo Quaderni di Storia 20257-84

Evans J A S 1981 ldquoNotes on the debate of the Persian Grandees in Herodotus 3 80-82rdquo Quaderni Urbinati di Cultura Classica 3679-84

Ostwald M 1969 Nomos and the Beginnings of the Athenian Democracy Oxford Oxford University Press

Parker V 1988 ldquoΤύραννοςThe semantics of a political concept from Archilochus to Aristotlerdquo Hermes 126 (2)145-72

235

Carmen Soares

Pelling C 2002 ldquoSpeech and action Herodotusrsquo Debate on the Constitutionsrdquo Proceedings of the Cambridge Philosophical Society Vol 48 123-58 Cambridge Cambridge University Press

Rocha Pereira M H 1990 ldquoO lsquoDiaacutelogo dos Persasrsquo em Heroacutedotordquo In Estudos Portugueses Homenagem a Antoacutenio Joseacute Saraiva 351-62 Lisboa Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

mdashmdashmdash 1981 ldquoO mais antigo texto europeu de teoria poliacuteticardquo Nova Renascenccedila 1364-70

Romilly J 1971 La loi dans la penseacutee greque des origines agrave Aristote Paris Socieacuteteacute drsquoEacutedition ldquoLes Belles Lettresrdquo

mdashmdashmdash 1959 ldquoLe classement des constitutions drsquoHeacuterodote agrave Aristoterdquo Revue des Eacutetudes Greques 7281-99

Rosivach V J 1988 ldquoThe Tyrant in Athenian Democracyrdquo QUCC 5943-57Silva M F 2000 ldquoO desafio das diferenccedilas eacutetnicas em Heroacutedoto Uma questatildeo

de inteligecircncia e saberrdquo Humanitas 523-26mdashmdashmdash 1997 ldquoCambises no Egipto Croacutenica de um rei loucordquo In Historiografiacutea

y bibliografia Actas del coloquio internacional sobre historiografia y biografia (de la antiguedad al renac) eds J A Sanchez Mariacuten J Lens Tuero e C L Rodriacuteguez 1-14 Madrid Ediciones Clasicas

mdashmdashmdash 1995 ldquoDario o Grande Rei personagem em Histoacuterias de Heroacutedotordquo Maacutethesis 463-88

Soares C 2016 ldquoRegimes poliacuteticos nas Histoacuterias de Heroacutedoto O ldquoDiaacutelogo dos Persasrdquo (3 80-82)rdquo In PoacutelisCosmoacutepolis Identidades Globais amp Locais coords Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho e Thomas Figueira 43-52 Coimbra Satildeo Paulo Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

mdashmdashmdash 2014a ldquoTheoria e praacutexis poliacutetica em Heroacutedotordquo Cuadernos de Filologiacutea Claacutessica Estudios griegos e indoeuropeus 2457-79

mdashmdashmdash 2014b ldquoDiaacutelogos nas Histoacuterias de Heroacutedoto entre teoria e praxis poliacutetica Tirania e democracia contrastes e semelhanccedilasrdquo Phoicircnix 20 (1)25-39

mdashmdashmdash 2003 A morte em Heroacutedoto Valores universais e particularismos eacutetnicos Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia

Waters K H 1971 Herodotus on Tyrants and Despots A Study in Objectivity Historia Einzelschriften 15 Wiesbaden Franz Steiner-Werlag

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

237

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

Ser rainha na Peacutersia antiga1 (To be a queen in Ancient Persia)

Maria de Faacutetima Sousa e Silva(fanp13gmailcom ORCID 0000-0001-5356-8386)

Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra

Resumo - Eacutesquilo Heroacutedoto e Plutarco satildeo os autores que em diferentes eacutepocas me-lhor retratam a vida na corte persa e a influecircncia feminina que circundava o monarca Sob as cores da fantasia muito de verdadeiro ressalta da sua intervenccedilatildeo pessoal e poliacutetica

Palavras-chave Atossa Amestris Parisaacutetide Persas Vida de Artaxerxes Histoacuterias

Abstract Aeschylus Herodotus and Plutarch are the authors who in different times give a portrait of the Persian court and of female influence on the monarch Under fiction their true personal and political influence is undeniable

Keywords Atossa Amestris Parisatis Persians Life of Artaxerxes Histories

Abordar o tema do estatuto e intervenccedilatildeo da rainha da Peacutersia atraveacutes do olhar grego da eacutepoca claacutessica ndash aquela em que o acesso a uma outra cultura foi estimulado pelo conflito entre as duas margens do Egeu o impeacuterio persa e a Greacutecia ndash eacute utilizar sobretudo dois testemunhos os Persas de Eacutesquilo e Heroacutedoto o pai da Histoacuteria Comprometidos o poeta traacutegico e o historiador com uma versatildeo inspirada em acontecimentos verdadeiros mas a que natildeo falta o elemento ficcional sem o rigor que uma investigaccedilatildeo minuciosa e um relato imparcial exigiriam mesmo assim projetam a opiniatildeo que a Greacutecia do seacutec V a C tinha da cultura oriental neste aspeto concreto A focagem adotada por cada um eacute diversa natildeo soacute em funccedilatildeo dos pressupostos dos diferentes geacuteneros em que se ex-primiam mas tambeacutem pela proacutepria sensibilidade e experiecircncia de vida Eacutesquilo um combatente contra a invasatildeo persa em terreno grego traccedila do inimigo em termos sobretudo simboacutelicos e universalistas a imagem de uma grande potecircn-cia apesar disso natildeo imune ao castigo divino que um excesso de arrogacircncia acarreta Heroacutedoto um grego da Aacutesia desenvolve a longa trajetoacuteria que leva agrave constituiccedilatildeo de um grande impeacuterio do oriente e justifica dentro de uma tradiccedilatildeo aquemeacutenida a campanha decisiva que os Persas se determinaram a levar a cabo na Europa Num e noutro destes dois autores Atossa esposa de Dario e matildee de Xerxes assume um papel determinante como paradigma da ideologia reinante

1 Este trabalho foi desenvolvido no acircmbito do projeto UIDELT001962013 financiado pela FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_13

238

Ser rainha na Peacutersia antiga

e exemplo da influecircncia que a rainha consorte ou regente podia ter na corte persa Seacuteculos mais tarde inspirado ainda nos autores claacutessicos e na recriaccedilatildeo de paradigmas do passado Plutarco dedica a Artaxerxes uma das suas Vidas2 insistindo em quadros do quotidiano do palaacutecio onde o ciacuterculo feminino em torno do rei tem uma relevacircncia inegaacutevel Somados estes testemunhos podemos rever o trajeto da corte persa durante pouco mais de um seacuteculo (seacutec V e iniacutecio do IV a C) com as suas querelas paixotildees oacutedios influecircncias Dentro de um de-terminado conceito literaacuterio todos estes relatos focam sobretudo tagrave genoacutemena as praacuteticas do quotidiano sem deixarem de reconhecer que os grandes momentos e as tomadas de decisatildeo poliacutetica tecircm com estes bastidores uma relaccedilatildeo estreita

Ao envolver Gregos sobretudo Espartanos na questatildeo sucessoacuteria que con-frontou os dois filhos de Dario II Artaxerxes II e Ciro3 Plutarco4 resume assim a opiniatildeo grega sobre a corte persa lsquoComprovaram agrave evidecircncia que o impeacuterio persa e o seu rei possuiacuteam ouro em abundacircncia luxo e mulheres mas em tudo o mais eram de uma ostentaccedilatildeo vaziarsquo Este sentimento sempre animou a Greacutecia agrave resistecircncia contra um inimigo apenas na aparecircncia superior sem no entanto impedir o fasciacutenio e a curiosidade por um mundo inegavelmente contrastante com o espiacuterito heleacutenico pela sua riqueza e ostentaccedilatildeo

As leis consuetudinaacuterias dos Persas eram estritas quanto ao casamento do soberano a noiva devia ser escolhida de entre as filhas das melhores famiacutelias da aristocracia persa A escolha era feita pelos progenitores de acordo com criteacuterios poliacuteticos no sentido da consolidaccedilatildeo de alianccedilas que pudessem robustecer o poder do monarca Os exemplos satildeo inequiacutevocos Segundo Heroacutedoto o grande Ciro casou com Cassandane filha de Farnaspes de linhagem aquemeacutenida5 Cambises seu filho com Fedima filha de Otanes6 Atossa filha de Ciro o Grande

2 Manfredini et Orsi 1996 XXVII sublinham a lsquosingularidadersquo desta Vida de acordo com os criteacuterios habituais no bioacutegrafo Artaxerxes natildeo era nem grego nem romano mas um baacuterbaro e Plutarco natildeo era um apreciador de baacuterbaros Daiacute a Vida de Artaxerxes resultar numa espeacutecie de lsquoretrato negativorsquo que natildeo deixa de ser surpreendente dentro do sentido pedagoacutegico que justifica as Vidas

3 A Xerxes filho de Dario I e condutor da campanha contra a Greacutecia sucedeu Artaxerxes I (465-425 a C) avocirc de Artaxerxes II Entre eles ocorreu o reinado curto de Xerxes II herdeiro legiacutetimo de Artaxerxes I rapidamente assassinado seguido de um irmatildeo bastardo filho do mes-mo Artaxerxes I que se chamou Dario II Deste Dario II (424-405 a C) e de Parisaacutetide ndash ambos filhos de Artaxerxes I mas de diferentes concubinas ndash nasceram lsquoquatro filhos Artaxerxes o mais velho seguido de Ciro e os mais novos Ostanes e Oxartesrsquo (Vit Artax 12) Alguma dis-paridade de testemunhos rodeia este ciacuterculo familiar X An 11 menciona apenas Artaxerxes e Ciro tambeacutem referidos por Cteacutesias com nomes distintos (FGrHist 688 F 15a 51) D S 1755 menciona Ostanes como irmatildeo de Artaxerxes II e pai de Dario III Cteacutesias atribui a Dario II e Parisaacutetide treze filhos Sobre o assunto veja-se Manfredini et Orsi 1996 267 As grandes fontes de Plutarco para a Vida de Artaxerxes satildeo Diacutenon Cteacutesias e Xenofonte

4 Plut Vit Artax 201 Perrin 1975 5 Hdt 211 3226 Hdt 3683

239

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

casou com Dario I7 por fim Xerxes I filho de Dario desposou Ameacutestris filha de Otanes8 Plutarco em consonacircncia recorda o casamento de Artaxerxes II o epoacutenimo da sua Vida com lsquouma mulher bonita e de bom caraacuteter por imposiccedilatildeo dos paisrsquo9 Entre os compromissos que Artaxerxes II assumiu de casar vaacuterias das suas filhas com nobres estaacute a promessa feita a Tiribazo de lhe conceder a matildeo de Ameacutestris10 quando poreacutem levado pela paixatildeo pela mesma filha desejou quebrar o compromisso lsquoprometeu em seu lugar como esposa a Tiribazo a mais novarsquo Atossa11 Em momentos particulares da histoacuteria persa como aquele que se seguiu agrave crise de sucessatildeo aberta pela morte de Cambises sem herdeiros a tradiccedilatildeo afeta ao casamento real podia tornar-se ainda mais restritiva Entre os compromissos assumidos pelo grupo de aristocratas que derrubaram o falso Esmeacuterdis contava--se uma claacuteusula de importacircncia para a solidariedade que entre eles se alicerccedilava12 lsquoDecidiram que natildeo seria permitido ao rei casar com nenhuma mulher que natildeo da estirpe dos conjuradosrsquo Ciente da relevacircncia do coacutedigo tradicional de alianccedilas por matrimoacutenio o mesmo Dario I que agora acedia ao trono lsquocontraiu casamen-tos de grande importacircncia para os Persas desposou duas filhas de Ciro Atossa e Artistone ndash Atossa jaacute tinha sido casada com Cambises seu irmatildeo e depois com o Mago13 Artistone era virgem14 Outra mulher com quem casou foi uma filha de Esmeacuterdis filho de Ciro chamada Paacutermis Desposou tambeacutem uma filha de Otanes a que desmascarou o Magorsquo15 Eacute oacutebvio nesta multiplicidade de uniotildees o desejo de Dario de consolidar a sua legitimidade primeiro elegendo filhas e

7 Hdt 313318 Hdt 7619 Plut Vit Artax 25 Dario II e Parisaacutetide no desejo de aproximaccedilatildeo agrave famiacutelia de Hidarnes

(um dos aliados de Dario I na luta contra o Mago) promoveram uma dupla uniatildeo do herdeiro real Artaxerxes com Estatira e tambeacutem da princesa Ameacutestris com um outro filho do aristo-crata Teritucme Apaixonado por uma das suas irmatildes Teritucme matou Ameacutestris e organizou contra o soberano uma rebeliatildeo Este crime acarretou a morte do filho de Hidarnes bem como de todos os outros parentes Estatira foi dos poucos que escapou por intervenccedilatildeo empenhada de Artaxerxes Cf Cteacutesias FGrHist 688 F15 Poupado foi tambeacutem Tissafernes seu irmatildeo entatildeo residente na Aacutesia Menor Jaacute no poder Artaxerxes II por influecircncia da mulher tomou atitudes favoraacuteveis aos seus parentes para lhes desagravar a memoacuteria mandou matar o escudeiro delator da conspiraccedilatildeo de Teritucme e reintegrou o filho deste seu cunhado Mitradates na satrapia paterna (FGrHist 688 F16)

10 Plut Vit Artax 27411 Plut Vit Artax 27412 Hdt 384213 De todos os maridos de Atossa foi sem duacutevida o uacuteltimo Dario aquele que deu agrave corte

persa maior dignidade e poder Por isso Eacutesquilo nos Persas faz de Atossa simplesmente a viuacuteva de Dario sem qualquer alusatildeo aos seus casamentos anteriores

14 Talvez esta ideia de umas primeiras nuacutepcias com o monarca justifique a preferecircncia afetiva que Dario manifestava por Artistone Por isso lhe dedicou uma estaacutetua em ouro cinzelado (Hdt 7692) Da uniatildeo de Dario com Artistone nasceram dois filhos Aacutersames (Hdt 7692) e Goacutebrias (7722)

15 Hdt 3882

240

Ser rainha na Peacutersia antiga

esposas dos monarcas seus predecessores de quem natildeo provinha em sucessatildeo directa aleacutem de privilegiar a filha de um dos seus correlegionaacuterios na rebeliatildeo de acordo com o pacto estabelecido Superiores interesses da corte deixavam ao rei em nome das suas preferecircncias ou sentimentos uma margem de escolha muito limitada

Pontualmente a dinacircmica de conquista podia aconselhar uma estrateacutegia a proposta de alianccedila com uma estrangeira que natildeo passa de um golpe di-plomaacutetico e eacute suscetiacutevel de levantar suspeitas de tal modo era divergente da praacutetica consagrada Assim Cambises (530-522 a C) futuro conquistador do Egito integrou nos seus planos de anexaccedilatildeo do reino do Nilo uma proposta de casamento com uma princesa egiacutepcia16 filha de Amaacutesis Heroacutedoto justifica esta proposta com uma vinganccedila pactuar com os interesses de um meacutedico egiacutepcio ao serviccedilo da corte persa e por isso afastado da paacutetria e da famiacutelia que pretendia vingar a escolha que o faraoacute fizera impender sobre a sua competecircncia O pedido de Cambises natildeo aparecia portanto como uma homenagem ou pacto de alianccedila mas como um desafio Assim o entendeu tambeacutem o faraoacute que apenas se preocu-pou com uma questatildeo difiacutecil como recusar sem recusar na certeza de que se acedesse lsquoficava mortificadorsquo e se negasse lsquoincorria na ira de Cambisesrsquo Imaginou entatildeo ao que conta Heroacutedoto um dolo o de substituir a proacutepria filha por outra jovem Niteacutetis filha do monarca anterior Apries A descoberta deste ludiacutebrio uma ofensa pessoal e poliacutetica a Cambises tornou-se uma etiologia para o ataque ao Egito17 A esta versatildeo decerto persa que justificava a campanha Heroacutedoto contrapotildee outra egiacutepcia para fundamentar a aproximaccedilatildeo entre as duas casas reais Essa outra versatildeo tambeacutem interessante defendia que Cambises era filho de Ciro e desta Niteacutetis e que teria sido Ciro a pedir a matildeo da princesa egiacutepcia e natildeo o filho18 Revelador eacute o motivo que Heroacutedoto invoca para depreciar a veracidade desta segunda versatildeo19 lsquoEacute que antes de mais nada os Egiacutepcios estatildeo fartos de sa-ber ndash porque se haacute povo que conheccedila as leis persas eacute sem duacutevida o egiacutepcio ndash que aqueles tecircm por regra natildeo entregar o trono a um bastardo quando haacute um filho legiacutetimorsquo Com esta observaccedilatildeo o autor de Histoacuterias confirma a impossibilidade de um casamento entre o rei persa e uma estrangeira verdadeiramente o uacutenico ponto em comum nas duas leituras do episoacutedio

A algumas destas alianccedilas poliacuteticas a tradiccedilatildeo soma o sentimento Plutarco assinala este condimento na alianccedila de Artaxerxes II com Estatira uma noiva imposta pelos pais mas que o marido mais tarde natildeo quis perder lsquoapesar da

16 Hdt 311-31317 Hdt 31518 Hdt 321 A versatildeo que faz de Cassandane a matildee de Cambises tem todas as condiccedilotildees

para ser a mais fidedigna e estaacute de acordo com o testemunho dos textos cuneiformes Veja-se CAH2 419

19 Hdt 322

241

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

opiniatildeo daquelesrsquo20 De facto convulsotildees posteriores21 tornaram mal vista a famiacute-lia da consorte real e punidos de morte alguns dos seus elementos o rei (Dario II) queria tambeacutem eliminar a nora natildeo fosse Artaxerxes lsquoter conseguido conven-cer a matildee a duras penas com pedidos e laacutegrimas de que a poupassem e o natildeo separassem da mulherrsquo22 Este episoacutedio salienta a autoridade da rainha-matildee e a precariedade das alianccedilas poliacuteticas alterados os pressupostos que as justificaram

A Cambises eacute atribuiacuteda a iniciativa de uma alteraccedilatildeo profunda nos casa-mentos reacutegios e a praacutetica progressivamente alargada de alianccedilas consanguiacuteneas Segundo Heroacutedoto foi a paixatildeo do rei por uma das suas irmatildes que desencadeou a revisatildeo do nomos instituiacutedo23 para o que o monarca teve de consultar os conselheiros da corte os uacutenicos com autoridade para promover alteraccedilotildees nos costumes Receosos do acircnimo perturbado de Cambises os conselheiros respon-deram a uma lacuna legal com outra lei em vigor24 lsquoQue natildeo se encontrava uma lei que permitisse a um irmatildeo casar com uma irmatilde mas em contrapartida havia uma que autorizava o rei dos Persas a agir segundo a sua vontadersquo Cambises pocircde entatildeo casar com a irmatilde que amava e mais tarde com outra ainda Atossa25 A mesma praacutetica veio a repetir-se segundo Plutarco Dario II e Parisaacutetide os pais de Artaxerxes II eram tambeacutem meios-irmatildeos filhos ambos de Artaxerxes mas de diferentes concubinas26 Seguindo a mesma tradiccedilatildeo Artaxerxes II apaixonou--se por uma das suas filhas Atossa27 com quem veio a casar com o patrociacutenio da rainha-matildee e lsquohaacute mesmo quem diga que aleacutem de Atossa o rei casou tambeacutem com outra das suas filhas Ameacutestrisrsquo28 Parisaacutetide faz neste contexto o mesmo papel que Heroacutedoto tinha atribuiacutedo aos conselheiros de Cambises Mesmo que Artaxerxes por pejo a natildeo consultasse e ao que parece mantivesse na clandes-tinidade uma relaccedilatildeo com a filha a velha rainha repetiu a doutrina progressista dos conselheiros de Cambises natildeo por receio da fuacuteria de um Artaxerxes fraco mas para lhe conquistar a simpatia e o dominar Parisaacutetide aconselhou29 lsquoque casasse com a jovem e fizesse dela sua esposa legiacutetima mandando passear as leis e os costumes agrave grega jaacute que para os Persas o rei era a lei e tinha sido designado

20 Plut Vit Artax 2121 Veja-se supra nota 822 Plut Vit Artax 2223 Hdt 331224 Hdt 331425 Hdt 3316 cf 3311 Sobre este casamento consanguiacuteneo de Cambises cf Cteacutesias

FGrHist 688 F13 (14) Strab 1715 Cteacutesias identifica a primeira das irmatildes que Cambises despo-sou e que o acompanhou ao Egito com Roxana e Estrabatildeo com Meacuteroe As outras duas filhas de Ciro e Cassandane eram Atossa e Artistone (3882 7692)

26 Plut Vit Artax 12 cf Cteacutesias FGrHist 688 F15 Outros exemplos satildeo referidos por Man-fredini et Orsi 1996 297-98

27 Plut Vit Artax 232-428 Plut Vit Artax 23429 Plut Vit Artax 233

242

Ser rainha na Peacutersia antiga

pelos deuses para arbitrar o bem e o malrsquo E interveio no processo como uma verdadeira casamenteira louvando junto de Artaxerxes a beleza e o caraacuteter de Atossa30 O amor de Artaxerxes por sua filha Atossa ficou comprovado nos anos em que a lepra a vitimou31 aleacutem de dar mostras de um grande desgosto a que os suacutebditos e amigos responderam com presentes generosos assumiu o gesto de hu-mildade de se prostrar numa suacuteplica diante da deusa Hera32 em mais uma quebra da etiqueta motivada pelo sentimento a que Artaxerxes era atreito Este foi um gesto que ganhou popularidade quando lsquoos dezasseis estaacutedios que separavam o templo do palaacutecio se atravancaram de ouro prata puacuterpura e cavalosrsquo33

Agrave consorte real assistia uma distinccedilatildeo particular que se assinalava desde logo com a etiqueta que rodeava as bodas reacutegias Com o mesmo aparato se as-sinalava o termo da vida da soberana motivo de honras fuacutenebres luxuosas e de um luto alargado aos suacutebditos34

Ostentaccedilatildeo equivalente era de regra no quotidiano do palaacutecio onde a sobe-rana comparecia coberta de joias e em trajo esplendoroso de seu uso exclusivo e que ningueacutem mais poderia utilizar35 Grave quebra do protocolo seria tambeacutem que algueacutem dela se abeirasse ou lhe tocasse Eacute neste pressuposto que Eacutesquilo retrata em cena a vinda de Atossa36 viuacuteva de Dario e matildee de Xerxes desfilando por entre os cortesatildeos Sobre um carro magnificente37 seguida de um seacutequito numeroso ela impotildee a atitude respeitosa dos velhos do coro que se prostram e lsquolhe dirigem as homenagens que lhe satildeo devidasrsquo38 Esta eacute a imagem sumptuo-sa da rainha da Peacutersia na plenitude de todo o seu poder ainda que sejam as apreensotildees que a todos afligem a razatildeo da sua vinda Mas quando a crise poliacutetica se instala com a notiacutecia da derrota na Greacutecia numa segunda entrada em cena Eacutesquilo despoja Atossa de toda a magnificecircncia anterior faacute-la vir agora a peacute em trajos soacutebrios como imagem de partilha do sofrimento do seu povo e de clarividente sentido poliacutetico39 Uma enorme popularidade cercou Estatira esposa

30 Plut Vit Artax 233 Plutarco (234) invoca o testemunho de Heraclides de Cumas (autor de uns Persikaacute seacutec IV a C) que igualmente regista o casamento de Artaxerxes com as suas duas filhas Atossa e Ameacutestris

31 Saacutenchez Hernaacutendez Gonzaacutelez Gonzaacutelez 2009 540 recordam o que diz Heroacutedoto (1138) sobre a lepra ndash o isolamento a que era relegado o paciente por se entender a doenccedila como um castigo divino ndash e imaginam que esse foi o motivo do lsquoescruacutepulo religiosorsquo do rei

32 Plut Vit Artax 234-5 Anaitis a deusa ora identificada por Plutarco com Atena (Artax 31) ora com Aacutertemis (273)

33 Plut Vit Artax 23534 Hdt 21135 Seria uma tremenda quebra de etiqueta que algueacutem comparecesse no banquete real com

trajos reacutegios mesmo que os tivesse recebido por benesse do monarca (Vit Artax 152)36 Sobre o tratamento da personagem de Atossa nos Persas veja-se Silva 2005 108-1137 Era interdito ao rei persa sair do palaacutecio a peacute Deveria circular sempre num carro ou a

cavalo (Heraclides de Cumas FGrHist 689 F1 Diacutenon FGrHist 690 F26)38 Pers 150-15439 Pers 607-609

243

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

de Artaxerxes II que nas suas saiacutedas do palaacutecio tomou a iniciativa de se deixar admirar pelo povo40 lsquoSempre se apresentava sem cortinas o que permitia que as mulheres do povo se aproximassem para abraccedilaacute-la Por isso a rainha era amada de todosrsquo Deveraacute esta atitude de Estatira ser entendida como uma exceccedilatildeo de apurado sentido poliacutetico Ou teria havido na corte persa com o curso dos anos alguma abertura no sentido de uma maior exposiccedilatildeo da casa real e de proximi-dade com o povo41

No quotidiano do palaacutecio agrave rainha-matildee como agrave esposa do rei estavam des-tinados privileacutegios no acesso e contacto com a figura reacutegia Dentro das regras de um protocolo que pretendia protegecirc-lo como intocaacutevel no cume da hierarquia soacute agraves duas mulheres diz Plutarco42 era permitido partilhar a mesa do rei43 Esta-va tambeacutem conferido agrave rainha-matildee e agrave consorte participar nos passatempos do soberano Parisaacutetide jogadora haacutebil de dados encontrava nesse dom uma forma de ter acesso a Artaxerxes retirando daiacute dividendos de influecircncia44 Apesar de as divergecircncias poliacuteticas terem trazido algum esfriamento agraves relaccedilotildees matildee-filho Parisaacutetide lsquonatildeo soacute teve artes de se mostrar amaacutevel como tambeacutem partilhava das suas diversotildees era confidente dos seus amores que favorecia e ateacute presenciava em suma deixou pouco espaccedilo ao conviacutevio e presenccedila de Estatira porque Pari-saacutetide odiava entre todos Estatira e o que pretendia era exercer influecircncia sobre o reirsquo Anexas agraves prerrogativas que a corte dispensava agrave rainha-matildee e agrave consorte real esta referecircncia de Plutarco deixa patentes as disputas e intrigas a que a rela-ccedilatildeo entre as duas mulheres estava sujeita na concorrecircncia pelos favores reacutegios45 O conviacutevio quotidiano entre as duas parecia ocultar um intuito de controle e de vigilacircncia permanente46 Assim no costume de se visitarem e de partilharem refeiccedilotildees Plutarco adivinha mais do que uma convivecircncia natural um indiacutecio lsquode que se temiam e deste modo se asseguravam de que comiam os mesmos ali-mentos servidos pelas mesmas pessoasrsquo Esta observaccedilatildeo estabelece uma medida extrema para a animosidade e ciuacutemes desenvolvidos na corte persa Entre as duas vontades fortes Artaxerxes oscilava dobrado por uma subserviecircncia que causou alguma desintegraccedilatildeo e decadecircncia no impeacuterio que governava47

40 Plut Vit Artax 5341 Pseudo-Plutarco Moralia 173f diz que Estatira natildeo comparecia diante do povo por

iniciativa proacutepria mas por determinaccedilatildeo de Artaxerxes o que poderaacute significar que os dois pressupostos ndash objetivos poliacuteticos e progresso na etiqueta ndash se harmonizam

42 Plut Vit Artax 5343 Diacutenon FGrHist 689 F2 retoca este princiacutepio ao afirmar que o rei costumava tomar as re-

feiccedilotildees sozinho Pontualmente podiam ser admitidos a esse conviacutevio alguns membros da famiacutelia real mas sempre em mesas separadas e menos luxuosas Soacute em ocasiotildees festivas os cortesatildeos partilhavam a mesma sala com o soberano

44 Plut Vit Artax 172-345 Plut Vit Artax 19146 Plut Vit Artax 19247 Cf Pl Lg 694-698 X Cyr 8812

244

Ser rainha na Peacutersia antiga

O mesmo privileacutegio da consorte e da rainha-matildee junto do soberano serviu de motivo a Eacutesquilo no seu desenho dramaacutetico da corte persa Ao fantasma de Dario seu marido soacute Atossa se atreve a dirigir a palavra face agrave discriccedilatildeo respeitosa dos cortesatildeos que nem a crise profunda que se abateu sobre Susa per-mitiu romper48 Como tambeacutem na qualidade de rainha-matildee lhe estaacute conferida a missatildeo de receber o soberano derrotado no regresso da campanha Com os trajos sumptuosos que poraacute agrave sua disposiccedilatildeo para substituir os farrapos do vencido Atossa garante a Xerxes a reintegraccedilatildeo simboacutelica no trono e na autoridade sobre a Peacutersia49

Esta convivecircncia privilegiada faz da rainha da Peacutersia uma figura de enor-me influecircncia dentro da corte intervindo diretamente nas decisotildees reacutegias ou substituindo a autoridade real nas suas ausecircncias Natildeo surpreende portanto que a rainha tenha alguma visibilidade e mereccedila dos diversos testemunhos a tentativa de se criar da sua personalidade um perfil Trate-se de Roxana50 a irmatilde-esposa que acompanhou Cambises na campanha do Egito51 de Ameacutestris esposa de Xerxes ou de Parisaacutetide esposa de Dario II e matildee de Artaxerxes II todas elas revelam inteligecircncia sagacidade e sentido poliacutetico Roxana eacute chamada a intervir junto de Cambises com a sua opiniatildeo sobre uma questatildeo tatildeo delicada como a da descendecircncia e das relaccedilotildees entre os herdeiros reais Perante as vio-lecircncias perpetradas por um rei que Heroacutedoto retratou como louco Roxana natildeo hesitou em o censurar abertamente em mateacuteria tatildeo suscetiacutevel como o homiciacutedio a mando do rei do seu irmatildeo Esmeacuterdis Envolta em fantasia52 esta intervenccedilatildeo da esposa de Cambises assenta no pressuposto da influecircncia e audiccedilatildeo que a rainha podia ter junto do soberano de quem lhe era ateacute possiacutevel discordar no conhecimento dos segredos de Estado53 Eacute certo que Roxana se tornou mais uma viacutetima da sua frontalidade avisada junto do rei que a agrediu ateacute agrave morte54 Sem que esse assassinato tenha segundo Heroacutedoto outro sentido sobre o estatuto da soberana perante um Cambises que natildeo poupou igualmente parentes cortesatildeos e leais servidores aos seus arroubos de loucura

Dentro da mesma convenccedilatildeo Heroacutedoto envolve em cada uma das campa-nhas projetadas pelos soberanos da Peacutersia a intervenccedilatildeo da rainha Determi-nante foi sem duacutevida o papel assumido por Atossa na campanha contra a Greacutecia planeada por Dario e levada a cabo por Xerxes O curriculum que faz dela esposa de trecircs monarcas e matildee de um quarto natildeo foi de somenos para desenvolver

48 Pers 694-70649 Pers 832-83850 Veja-se supra nota 25 51 Hdt 331152 Hdt 33253 Cf Heroacutedoto 3303 3611 375254 Hdt 3311

245

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

na mulher inteligente que era uma capacidade poliacutetica e um ascendente de-terminantes no futuro do impeacuterio De acordo com as Histoacuterias55 Atossa foi a impulsionadora dessa investida ela mesma eco junto de Dario dos jogos de poder que se desenrolavam no palaacutecio56 atuou de facto por sugestatildeo do grego Democedes de Crotona57 meacutedico da corte e detentor de um enorme prestiacutegio pelas curas obtidas junto do rei e da rainha mas apesar do sucesso e da genero-sidade reacutegia Democedes aspirava ao regresso agrave paacutetria para o que se valeu desse mesmo prestiacutegio de modo a influenciar primeiro Atossa e atraveacutes dela o proacuteprio monarca58 O cenaacuterio escolhido por Heroacutedoto para a conversa entre o casal reacutegio sobre mateacuteria poliacutetica foi a alcova Na intimidade do quarto Atossa deu conta da sua sagacidade e prudecircncia Lembrou ao rei o lema da corte persa o princiacutepio de que o condutor dos destinos da Peacutersia natildeo devia ficar inativo mas promover conquistas59 aproveitando da energia juvenil Dario ganharia a consideraccedilatildeo do seu povo aleacutem de o manter ocupado e submisso agrave sua autoridade Aos argumen-tos poliacuteticos a Atossa de Heroacutedoto acrescentou um toque de capricho feminino o sonho de ter escravas gregas ao seu serviccedilo60 Dario natildeo contestou a oportu-nidade nem o conteuacutedo do conselho reconheceu ateacute que ele coincidia com os seus propoacutesitos Contrapocircs apenas outra prioridade a Ciacutetia antes da Greacutecia Mas incapaz de repudiar a opiniatildeo de Atossa enveredou pelo compromisso avanccedilar primeiro para a Ciacutetia mas ir desencadeando os preliminares para um ataque agrave Greacutecia e cedeu naquele que era o principal objetivo da consorte encarregar De-mocedes de conduzir uma incursatildeo de espiotildees no territoacuterio grego Abria-se com o beneplaacutecito reacutegio para o meacutedico de Crotona o sonhado caminho do regresso

Influente na mesma campanha a Atossa dos Persas atua num cenaacuterio diverso Eacute como regente apoacutes a morte do marido e o desfecho iminente da campanha que evidencia curiosidade poliacutetica e idoneidade para uma avaliaccedilatildeo da natureza do inimigo e das causas profundas da derrota Vemo-la interrogar

55 Hdt 3129-13756 Asheri Medaglia et Fraschetti 1990 344 consideram este diaacutelogo como lsquoetioloacutegicorsquo ou

seja expressivo das causas que determinaram a campanha persa contra a Greacutecia Tal como He-lena se tornou causa paradigmaacutetica de um conflito terriacutevel Atossa eacute considerada a motivadora das guerras peacutersicas

57 Hart 1982 77 considera esta cena um misto de um conto tradicional mas lsquocom um soacutelido substrato de verdadersquo nomeadamente no que diz respeito agrave identidade de Democedes

58 As Histoacuterias de Heroacutedoto datildeo conta da presenccedila de meacutedicos estrangeiros na corte persa detentores de um enorme prestiacutegio e de uma influecircncia poliacutetica relevante Assim o oftalmolo-gista egiacutepcio (311-2) que o faraoacute mandara exilado para a Peacutersia e que usa do seu poder junto de Dario I para estimular um ataque ao Egito (cf 31292) Plutarco refere como uma das suas fontes para a Vida de Artaxerxes Cteacutesias de Cnidos meacutedico da famiacutelia real e um conhecedor profundo da sua vida iacutentima que registou num relato intitulado Persikaacute (Vit Artax 1 2) Houve quem considerasse que Cteacutesias se deixou influenciar na narrativa que produziu por Parisaacutetide a rainha-matildee (FGrHist 688 F15a 51)

59 Cf Hdt 7860 Cf Ael VH 1127

246

Ser rainha na Peacutersia antiga

os cortesatildeos do coro sobre os Gregos de acordo com os criteacuterios proacuteprios da mentalidade persa61 sobre a localizaccedilatildeo geograacutefica do inimigo o seu potencial financeiro estrateacutegia de combate e as chefias que o conduzem A conversa com Dario agora que a morte do velho soberano se interpocircs tornou-se puacuteblica para um balanccedilo e compreensatildeo do desastre que coroou a campanha da Greacutecia mas sem perder um certo tom de confidencialidade pelo facto de ser Atossa o interlo-cutor privilegiado do fantasma A Atossa esquiliana ouve mais do que comenta mas compete-lhe fornecer agrave interpretaccedilatildeo do fantasma uma siacutentese do ocorrido dos pressupostos e responsaacuteveis

Por fim Parisaacutetide teve uma influecircncia indesmentiacutevel no reinado do ma-rido Dario II (424-405 a C) e sobretudo de acordo com Plutarco na questatildeo sucessoacuteria e no novo monarca o seu filho mais velho Artaxerxes II Deu mostras de uma personalidade que a literatura grega considerou tiacutepica da soberana persa Perspicaacutecia e sagacidade destacam-se como suas carateriacutesticas fundamentais62 aleacutem de uma crueldade verdadeiramente baacuterbara63

Questotildees relacionadas com a sucessatildeo reacutegia foram responsaacuteveis por momen-tos de instabilidade na corte de Susa A importacircncia de um sucessor legiacutetimo do trono revela-se por exemplo com Cambises que entre os seus atos de loucura cometeu o crime de matar a mulher que estava graacutevida64 e assim privou a corte de um herdeiro e facilitou o acesso a um usurpador e a necessidade de uma re-volta para trazer de regresso a normalidade Apesar de prudente esta disposiccedilatildeo confrontou-se com inuacutemeras dificuldades e controveacutersias Uma situaccedilatildeo difiacutecil ocorreu com Dario I na altura de avanccedilar contra o Egito Recorda Heroacutedoto65 que o monarca apesar de ter jaacute quando acedeu ao trono trecircs filhos do casamen-to com uma filha de Goacutebrias acabou designando como seu sucessor Xerxes o primogeacutenito de quatro outros filhos que teve com Atossa66 filha de Ciro por este ser o filho mais velho nascido depois de o pai ter estatuto de rei Esta soluccedilatildeo foi sugerida por Demarato um soberano lacoacutenio no exiacutelio residente na corte e conselheiro do rei de acordo com uma praacutetica espartana Ao reconhecer como sensata a sugestatildeo de Demarato Dario I fixou um precedente que haveria de ser invocado mais tarde em situaccedilotildees semelhantes Sem que no entanto Heroacutedoto deixe de reconhecer que lsquomesmo sem este conselho Xerxes teria sido rei porque Atossa era todo-poderosarsquo67

Poleacutemica de dimensotildees bastante mais graves envolveu a sucessatildeo de Dario

61 Pers 230-24462 Plut Vit Artax 172 23363 Plut Vit Artax 6564 Hdt 332465 Hdt 72-366 Aleacutem de Xerxes Histaspes (Hdt 7642) Masistes (782) e Aqueacutemenes (797)67 Hdt 73

247

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

II com a intervenccedilatildeo da soberana Parisaacutetide Plutarco68 deixa claro que o caraacute-ter de Artaxerxes o primogeacutenito deacutebil e fraco contrastava com a determinaccedilatildeo de Ciro o filho segundo que cativou o apoio da matildee69 O argumento da rainha foi o usado no caso de Xerxes o de que quando Artaxerxes nasceu o pai era um cidadatildeo comum e jaacute rei quando Ciro veio ao mundo Designado saacutetrapa da Liacutedia e comandante dos exeacutercitos na costa Ciro iniciou uma rebeliatildeo contra o herdeiro indigitado suspeito como traidor Ciro foi salvo por Parisaacutetide ape-sar da gravidade da acusaccedilatildeo Com o afastamento de Ciro para o litoral foram criadas condiccedilotildees para uma verdadeira guerra de sucessatildeo Nos bastidores Pa-risaacutetide favorecia os interesses de Ciro70 a quem disponibilizava recursos numa demonstraccedilatildeo de autoridade e de liberdade na gestatildeo de bens consideraacuteveis71 e conspirava em segredo72 Esta teia de intrigas aproveitava ainda do feitio mole do rei73 Todo este empenho pelos interesses de Ciro justificou a acusaccedilatildeo contra Parisaacutetide de ser com alguns amigos a verdadeira causadora da guerra Entre os que mais a hostilizavam estava Estatira incomodada com a influecircncia da sogra e com o risco que significava para a seguranccedila do rei74 O contencioso entre as duas mulheres que na versatildeo de Plutarco representavam as duas faccedilotildees em litiacutegio havia de fazer de Estatira uma viacutetima da vinganccedila da rainha-matildee75

A vitoacuteria de Ciro que implicou a sua morte76 abriu um longo percurso de preacutemios e vinganccedilas em que Parisaacutetide deu largas ao ressentimento e a uma fero-cidade baacuterbara Natildeo soacute demoveu Artaxerxes a eliminar alguns dos seus inimigos pessoais como chamou a si o prazer de liquidar alguns por suas proacuteprias matildeos77 A um sujeito da Caacuteria que se vangloriava de ter sido o autor do golpe mortal contra Ciro e que o rei mandara matar Parisaacutetide reclamou-o para lhe aplicar uma morte de requintada malvadez78 a Mitridates que se arrogava igual faccedilanha Parisaacutetide denunciou-o ao rei que o mandou torturar e executar79 o eunuco do rei Masabates que tinha decepado a cabeccedila e matildeos de Ciro Parisaacutetide obteve-o

68 Plut Vit Artax 2169 Plut Vit Artax 22 cf X An 11470 Plut Vit Artax 4171 Manfredini et Orsi 1996 274 lembram que Parisaacutetide dispunha de um territoacuterio designa-

do por lsquocintura da rainharsquo na Siacuteria de grandes recursos em cereais gado e outros proventos a que competia fornecer agrave rainha fundos para os seus gastos cf X An 149 Cteacutesias FGrHist 688 F16 Pl Alcib 123 b-c

72 Plut Vit Artax 4173 Plut Vit Artax 43-4 51-374 Plut Vit Artax 64-575 Plut Vit Artax 65 cf 17676 A guerra terminou com a batalha de Cunaxa em 401 a C77 Sobre as viacutetimas deste processo de vinganccedila veja-se Almagor 2009 131-4678 Plut Vit Artax 14579 Plut Vit Artax 161

248

Ser rainha na Peacutersia antiga

do rei como aposta numa partida de dados80 de posse da sua presa lsquoordenou que os carrascos castigassem Masabates tirando-lhe os olhos em vida e que o crucificassem e lhe arrancassem a pelersquo Por fim agrave censura real respondeu com sobranceria a Clearco um dos estrategos gregos das hostes de Ciro foi garantida na prisatildeo uma raccedilatildeo agrave parte por empenho de Cteacutesias e com o beneplaacutecito de Parisaacutetide81 e perante a condenaccedilatildeo que o aguardava a rainha-matildee empenhou-se junto do monarca para que o poupasse

Clearco veio a converter-se na mola impulsionadora de uma vinganccedila que de haacute muito bailava no espiacuterito da velha rainha82 quando Artaxerxes influen-ciado pela mulher Estatira se decidiu por quebrar o juramento feito agrave matildee e eliminaacute-lo O estratego centralizou portanto mais uma intriga protagonizada pelas duas mulheres mais influentes do ciacuterculo real E foi extrema a decisatildeo de Parisaacutetide a de envenenar a rival A intervenccedilatildeo da rainha-matildee neste atentado de uma gravidade limite parece ao proacuteprio Plutarco uma versatildeo inverosiacutemil imaginada por Cteacutesias Mas no progressivo desafio agrave vontade de Artaxerxes que o Queroneu vai somando o assassinato de Estatira aparece como um cliacutemax na-tural como um sinal da confianccedila que Parisaacutetide tinha na sua proacutepria influecircncia e ascendente junto do rei Simulando passar uma esponja sobre as dissensotildees do passado aproveitou-se da convivecircncia com a esposa real e da conivecircncia de uma criada fiel83 para servir agrave nora uma refeiccedilatildeo envenenada No maior sofri-mento Estatira pocircde ainda denunciar ao marido a responsabilidade da matildee na sua morte Mas apesar da investigaccedilatildeo que desencadeou Artaxerxes deu prova de fraqueza e dependecircncia da vontade materna foi sobre a serva que o castigo incidiu deixando a que para Plutarco seria a mandante do crime incoacutelume Das suas duacutevidas Artaxerxes deu sinal com uma discreta rutura de relaccedilotildees e com o envio de Parisaacutetide para um exiacutelio em Babiloacutenia Rutura essa aliaacutes de pouca du-raccedilatildeo (401-395 a C) Ao rei afinal fazia falta a presenccedila da matildee a sua perspicaacutecia e determinaccedilatildeo para suprir as suas proacuteprias debilidades Parisaacutetide acolheu de bom grado esta nova disposiccedilatildeo do monarca e lsquocolaborou de boa mente em tudo com o rei natildeo o contradizendo em nada que ele fizesse Em contrapartida tinha um enorme poder sobre ele e conseguia dele tudo o que queriarsquo84

80 Plut Vit Artax 171-6 Cf compromisso semelhante obtido por Ameacutestris de Xerxes em Hdt 91111

81 Plut Vit Artax 181-482 No sect6 Plutarco anuncia o atentado de Parisaacutetide contra a nora em consequecircncia da posiccedilatildeo das

duas na disputa entre Artaxerxes e Ciro pelo trono Mas protela a descriccedilatildeo deste episoacutedio para o sect19 nas consequecircncias da guerra Com esta dispersatildeo alude a divergecircncia similar entre outros testemu-nhos de Diacutenon que integra o atentado no curso da guerra e de Cteacutesias que o coloca no seu termo

83 Plutarco (192) utiliza a intervenccedilatildeo da senhora e da escrava de uma forma que retoma a estrateacutegia traacutegica da senhora ama as culpas de uma satildeo adensadas ou aligeiradas em funccedilatildeo do grau de conivecircncia da outra Sobre as versotildees controversas deste episoacutedio cf Diacutenon FGrHist 690 F15b Cteacutesias FGrHist 688 F29b Plut Vit Artax 193-4

84 Plut Vit Artax 231-2

249

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

O conflito sucessoacuterio que opocircs Artaxerxes II e Ciro renovou-se na geraccedilatildeo seguinte entre Dario o primogeacutenito e Oco seu irmatildeo mais novo mas muito mais ambicioso e obstinado quando o rei anunciou como seu sucessor Dario III Oco natildeo olhou a meios para reivindicar o poder Tentou utilizar a preferecircncia de que Atossa sua irmatilde gozava junto do rei85 Passou a adulaacute-la a prometer-lhe casamen-to e a posiccedilatildeo de consorte real apoacutes a morte do pai E Plutarco recorda86 lsquoCorria ateacute o boato de que mesmo em vida do pai Atossa se encontrava com o irmatildeo agraves escondidas ainda que a Artaxerxes essa traiccedilatildeo passasse despercebidarsquo Tudo parece indicar que os objetivos de Oco tivessem encontrado em Atossa correspondecircncia sobretudo quando apoacutes a execuccedilatildeo de Dario o herdeiro indigitado as suas espe-ranccedilas se viram reforccediladas ainda uma vez lsquoincentivadas por Atossarsquo87

O ciacuterculo feminino em volta do rei incluiacutea muitas concubinas cujo estatuto revestia algum desprestiacutegio para uma mulher de distinccedilatildeo Daiacute como vimos a reserva de Amaacutesis em enviar para a Peacutersia a sua filha para tatildeo desprestigiante destino88 Haacute mesmo uma hierarquia no hareacutem segundo o ascendente de cada mulher89 A obtenccedilatildeo de concubinas resultava da compra90 do saque de guerra91 ou da exigecircncia do rei de filhas de famiacutelia da proacutepria aristocracia persa92 Imagem desta reivindicaccedilatildeo pode ser a exigecircncia que Xerxes no regresso da campanha contra a Greacutecia fez da cunhada por quem se sentia apaixonado93 Dados os elos familiares com Masistes seu irmatildeo Xerxes evitou uma ordem direta e enveredou pelo dolo Tentou primeiro seduzir a cunhada frustradas as suas pretensotildees usou o estratagema de casar o proacuteprio filho com a sobrinha para provocar uma aproximaccedilatildeo Os objetivos de alcance poliacutetico que estas alianccedilas representavam para a corte persa Heroacutedoto converteu-os num processo de alcance pessoal Plutarco afirma que Artaxerxes II embora tivesse pela mulher um sentimento afetuoso mesmo assim se rodeou de lsquo360 concubinas de excelsa belezarsquo94

O costume persa preservava este ciacuterculo feminino como propriedade ex-clusiva do monarca O zelo da exclusividade que Plutarco considera proacuteprio de baacuterbaros justificava a pena de morte para quem ousasse tocar uma concubina reacutegia ou para quem dela se aproximasse ou a abordasse nos seus trajetos de carro95 Foi com incoacutemodo que Artaxerxes II recebeu do filho Dario III que

85 Plut Vit Artax 261-286 Plut Vit Artax 26287 Plut Vit Artax 30188 Hdt 31289 Hdt 31490 Hdt 113591 Hdt 976292 Hdt 3159293 Hdt 9108194 Plut Vit Artax 272 Ou seja o equivalente ao nuacutemero de dias do ano cf D S 1777695 Plut Vit Artax 271

250

Ser rainha na Peacutersia antiga

acabava de nomear seu herdeiro o pedido ndash legiacutetimo por provir do herdeiro indigitado mas inconveniente ndash de que lhe concedesse Aspaacutesia96 sua concubina antes favorita de Ciro o irmatildeo do rei97 Escacircndalo agravado por a jovem que pocircde escolher ter optado pelo priacutencipe herdeiro98 Artaxerxes tudo fez para a conservar ou pelo menos para evitar que o filho a possuiacutesse como uacuteltimo recur-so nomeou-a sacerdotisa de Aacutertemis em Ecbaacutetana obrigando-a a um voto de castidade vitaliacutecia99

O hareacutem englobadas as mulheres legiacutetimas e as concubinas fazia parte da heranccedila que se transferia de um monarca para o seu sucessor Assim aconteceu com as mulheres de Cambises em relaccedilatildeo ao Mago que ainda que ilegitimamen-te lhe sucedeu no trono ateacute ser desmascarado100 Este episoacutedio de instabilidade poliacutetica serviu ainda para demonstrar a intervenccedilatildeo destas mulheres nos destinos da Peacutersia Otanes um dos conjurados serviu-se da filha Fedima para apurar a identidade de Esmeacuterdis que entatildeo reinava sobre a Peacutersia101 sem hesitar em a pocircr em perigo em nome dessa importante informaccedilatildeo Eacute na cama que a filha de Otanes toca as orelhas do desconhecido com quem dormia e obteacutem a prova de que natildeo se trata do filho de Ciro mas de um Mago usurpador102

Das concubinas esperava-se que animassem com os seus cantos e danccedilas os banquetes da corte103 Apesar de lhe ser devido o respeito das concubinas a rainha tinha de aceitar-lhes a proximidade com o soberano Em termos de coabitaccedilatildeo as mulheres encontravam-se rotativamente com o monarca104 numa privacidade respeitada os proacuteprios conjurados que destronaram o Mago e leva-ram Dario I ao poder no seu pacto de proximidade e cooperaccedilatildeo abriram uma claacuteusula de exceccedilatildeo para este aspeto105 Uma infraccedilatildeo a esta regra era punida de morte fosse qual fosse o estatuto do transgressor106

Eacute consensual nos diversos testemunhos a abundacircncia de recursos e a liberdade no seu uso por parte das mulheres A Democedes o meacutedico de

96 Esta mulher da Foceia na Ioacutenia livre de nascimento ficou famosa pela beleza caraacuteter e educaccedilatildeo superiores o que lhe valeu os apelidos de lsquosensatarsquo e lsquobelarsquo (X An 1102 Ael VH 121 Ath 13576d Plu Per 2411-12) Aspaacutesia foi primeiro incorporada no campo de Ciro como sua concubina e apoacutes a derrota deste transitou para o hareacutem do soberano vitorioso (Plu Vit Artax 269 X An 1102)

97 Plut Vit Artax 26598 Plut Vit Artax 27299 Plut Vit Artax 274100 Hdt 3683101 Hdt 368-69102 O mesmo plano para desmascarar o Mago eacute referido por Justino (1917) Trata-se de um

recurso eficaz por o falso Esmeacuterdis ter sofrido a mutilaccedilatildeo das orelhas como castigo103 Diacutenon FGrHist 689 F1 27104 Hdt 3696105 Hdt 3842106 Hdt 31181

251

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

Crotona que tratou com sucesso de Dario as mulheres presentearam com taccedilas de ouro mergulhadas num cofre onde ele era tanto que lsquoum criado chamado Ciacuteton juntou uma grande riqueza em ouro soacute por ter apanhado as moedas que transbordavam das taccedilasrsquo107

No hareacutem real viviam em conjunto as esposas e as concubinas do rei108 Entre elas era habitual a convivecircncia as conversas as disputas os zelos Quebrar esta rotina e isolar as mulheres era sinal de uma anormalidade suspeita proacutepria por exemplo de um monarca ilegiacutetimo como o Mago que sucedeu a Cambises109 E apesar dos costumes que estipulavam uma rotatividade nos favores reacutegios tudo indica que a natureza humana suscitasse atritos entre concorrentes Um caso significativo eacute o que Heroacutedoto110 narra a propoacutesito do desagrado de Cassandane por alguma desatenccedilatildeo da parte de Ciro seu marido envolvido nos encantos de uma concubina egiacutepcia eacute claro que a situaccedilatildeo motivou comentaacuterios e divisotildees no hareacutem Cassandane tinha a seu favor o que qualquer persa consideraria uma credencial de peso tinha dado ao rei muitos filhos esbeltos e fortes todos eles apesar de o monarca se mostrar desatento ou insensiacutevel Esta indiferenccedila validou o rancor da soberana e ateacute a vinganccedila do seu primogeacutenito que assumindo as dores da matildee entendeu atacar o Egito de onde a rival era oriunda Nos seus contornos excessivos este episoacutedio assenta num quadro aceitaacutevel o das tensotildees pessoais de que o hareacutem persa era cenaacuterio

Proacuteximo do fecho das Histoacuterias111 Heroacutedoto introduz um conto de ficccedilatildeo situado em Sardes e depois em Susa112 finda a invasatildeo persa da Heacutelade113 O pro-tagonista eacute Xerxes viacutetima de uma paixatildeo por duas mulheres rivais da consorte legiacutetima Ameacutestris a mulher de Masistes seu irmatildeo e a filha deste casal Artaiacutente Num esboccedilo raacutepido Heroacutedoto desenha o perfil do objeto dessa paixatildeo trata-se de uma anoacutenima lsquoa mulher de Masistesrsquo Natildeo se lhe exalta a beleza mas uma superioridade moral que faz dela mais do que uma viacutetima uma criatura inocente e honesta que resiste agraves pretensotildees do rei A proacutepria condiccedilatildeo de mulher de Masistes lhe serve de escudo No entanto apesar de aparentemente protegida estaacute destinada a sofrer uma violecircncia profunda e de todo inesperada

Incapaz de se fazer obedecer Xerxes inventou um dolo casar o filho com a sobrinha filha de Masistes para provocar uma aproximaccedilatildeo Mas inespera-damente a inconstacircncia de Xerxes leva-o a focar-se numa nova paixatildeo agora pela sobrinha e nora lsquoa mulher de Dario seu filhorsquo114 e com sucesso Pouco eacute

107 Hdt 31304108 Hdt 3683-5 3882-3 31304-5109 Hdt 3685110 Hdt 331-3111 Hdt 9108-113112 Hdt 91081-2113 Sobre esta histoacuteria veja-se Wolff 1964 51-81114 Hdt 91082

252

Ser rainha na Peacutersia antiga

adiantado sobre esta outra figura feminina tem nome Artaiacutente e recebe o es-tigma de uma imoralidade que a distancia da matildee na forma de se entregar agraves pretensotildees reais

O aparato das roupas habitual na corte funciona como um isco que volun-taacuteria ou involuntariamente Ameacutestris a consorte reacutegio lanccedila agrave imponderaccedilatildeo e vaidade do marido com a oferta de um trajo imponente feito por suas matildeos Natildeo se enganou a perspicaacutecia de Ameacutestris jaacute desconfiada da infidelidade do rei Xerxes rejubilou e atraacutes desse gozo apoderou-se dele uma generosidade impru-dente A Artaiacutente lsquoordenoursquo que pedisse da sua magnacircnima solicitude o que quisesse A jovem joga no processo com ligeireza e uma vaidade que partilhava com o monarca acrescida de um desafio muito feminino que a amante lanccedilava sobre a mulher legiacutetima

Colocado perante um pedido imprudente o rei tenta recusar eacute sobretudo o medo115 de Ameacutestris que o domina Desdobra-se noutras promessas sem con-seguir lsquopersuadi-larsquo116 Por isso cede com a mesma fraqueza que eacute apanaacutegio de outros monarcas persas na intimidade Cometido o delito chega o momento de a rainha lsquoverrsquo e lsquocompreenderrsquo a ofensa de que foi viacutetima verifica-a na imponde-raccedilatildeo da rival que natildeo cessa de se gabar117 fascinada com o seu tesouro e sem se dar conta de que ofendia uma fera em potecircncia

Ameacutestris vai revestir o papel da soberana que cobra a reparaccedilatildeo mas falha o alvo da vinganccedila lsquosuspeitandorsquo que a inspiraccedilatildeo do delito viesse da matildee a mulher de Masistes Por isso a decisatildeo racional e fria que tomou de lsquoarruinar a adversaacuteriarsquo118 falhou o alvo e pela injusticcedila tornou-se de uma tremenda cruel-dade119

Ameacutestris comeccedila por aprisionar a vontade real aguarda para fazer o pe-dido o dia do aniversaacuterio real120 em que segundo o protocolo o rei natildeo podia negar um pedido que lhe fosse feito121 Foi entatildeo que lhe pediu o seu presente a mulher de Masistes

Apesar do lsquohorror e indignaccedilatildeorsquo que sentiu por razotildees de natureza fami-liar e eacutetica122 Xerxes anuiu Ameacutestris essa foi inflexiacutevel Serviu-se dos guardas do rei para aprisionar a sua viacutetima E optou como cobranccedila pela mutilaccedilatildeo123 Ao conceder a Ameacutestris a satisfaccedilatildeo do seu pedido o monarca lsquopercebia-lhe as

115 Hdt 91093 cf 191116 Hdt 91093117 Hdt 91093118 Hdt 91101119 Cf 7114 sobre a crueldade de Ameacutestris120 Sobre a forma persa de celebrar o aniversaacuterio cf Heroacutedoto 1133121 Hdt 91111122 Hdt 91103123 Hdt 9112 Heroacutedoto vulgariza entre os soberanos baacuterbaros este tipo de praacuteticas cf

2162 3693-6 373 31181 31542 4201

253

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

intenccedilotildeesrsquo124 e portanto entregava conscientemente uma viacutetima nas suas matildeos E natildeo satisfeito em lsquoconceder a Ameacutestris que procedesse a seu bel prazerrsquo125 pocircs em marcha uma maacutequina de hipocrisia junto de Masistes Fingiu generosidade apelou ao parentesco avanccedilou com elogios126 para lhe propor outra companhei-ra em vez da esposa e matildee dos seus filhos uma filha do rei

A reaccedilatildeo de Masistes foi de estupefaccedilatildeo e recusa com base nas regras ele-mentares de convivecircncia conjugal127 Na sua reaccedilatildeo ficou patente que natildeo era um irmatildeo que reconhecia em Xerxes mas a prepotecircncia de um soberano A causa que os confrontou natildeo foi apenas pessoal mas sobretudo poliacutetica Ferido na sua arrogacircncia Xerxes depocircs a maacutescara retirou-lhe a oferta da filha sem lhe devolver a mulher porque natildeo se tratava de uma escolha mas de uma imposiccedilatildeo Masistes partiu com o desafio de resistir agrave tirania por que se sentia atingido

De regresso a casa concertou-se com os filhos para obter a reparaccedilatildeo que se impunha pela sublevaccedilatildeo militar Xerxes poreacutem avisado a tempo mobilizou as suas forccedilas e massacrou-o128 junto com os filhos e com os apoiantes num aniqui-lamento pessoal e poliacutetico Heroacutedoto deixava impliacutecita a ideia de que enquanto o avanccedilo grego prosseguia no sentido da libertaccedilatildeo da Europa a casa e o poder real persas se fraturavam em disputas intestinas Incoacutelume ficou Ameacutestris de um gesto de cobranccedila em si mesmo legiacutetimo ainda que manchado por um sabor a injusticcedila

Do todo fornecido por estes diversos testemunhos mesclados de ficccedilatildeo e de tradiccedilotildees populares resulta a ideia do peso e da autoridade que a soberana detinha na corte da Peacutersia apesar do aparente distanciamento que protegia a superior figura do rei Proacuteximas e influentes sobretudo quando o monarca manifestava um caraacuteter deacutebil estas figuras agiram com visibilidade e interferecircncia no fluir histoacuterico da corte

124 Hdt 91103125 Hdt 91111126 Hdt 91112127 Hdt 91113128 Hdt 91131-2

254

Ser rainha na Peacutersia antiga

Bibliografia

Almagor E 2009 ldquoA ldquobarbarianrdquo symposium and the absence of philanthropia (Artaxerxes 15)rdquo In Symposion and philanthropia in Plutarch 131-46 Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Asheri D S M Medaglia e A Fraschetti 1990 Erodoto Le Storie III La Persia Milano Fondazione Lorenzo Valla-Mondadori Editore

Beck M ed 2014 A Companion to Plutarch Chichester BlackwellBriant P 1996 Histoire de lrsquo empire perse De Cyrus agrave Alexandre Paris FayardDesideri P 1995 ldquolaquoNon scriviamo storie ma viteraquo (Plut Alex 1 2) la formula

biografica di Plutarcordquo In Testis temporum Aspetti e problemi della storiografia antica 15-25 Pavia Universitagrave

mdashmdashmdash 2012 ldquolaquoNon scriviamo storie ma viteraquo (Plut Alex 1 2) la formula biografica di Plutarcordquo In Saggi su Plutarco e la sua fortuna ed A Casanova 219-27 Firenze Firenze University Press

Fuscagni S 2000 ldquoLe Vite parallele come genere letterario ovvero Plutarco uno storico e il suo genererdquo In I Generi Letterari in Plutarco (Atti de VIII Convegno plutarcheo Pisa 2-4 giugno 1999) ed I Gallo e C Moreschini 19-28 Napoli M DrsquoAuria

Gallo I e C Moreschini ed 2000 I generi letterari in Plutarco Atti del VIII Convegno plutarcheo Pisa 2-4 giugno 1999 Napoli M DrsquoAuria

Garvie A F 2009 Aeschylus Persae Oxford Oxford University PressGeiger J 2014 ldquoThe Project of the Parallel Lives Plutarchrsquo conception of

Biographyrdquo In A Companion to Plutarch ed Mark Beck 292-303 Chichester Wiley-Blackwekk

mdashmdashmdash 2000 ldquoPolitical Biography and the Art of Portraiture some Parallelsrdquo In I Generi Letterari in Plutarco (Atti de VIII Convegno plutarcheo Pisa 2-4 giugno 1999) ed I Gallo e C Moreschini 39-45 Napoli M DrsquoAuria

Hart J 1982 Herodotus and Greek History London-Camberra Croom HelmHumble N ed 2010 Plutarchrsquos Lives Parallelism and Purpose Swansea

Classical Press of WalesManfredini N e D P Orsi 1996 Plutarco Le Vite di Arato e di Artaserse

Milano Fondazione Lorenzo Valla-Mondadori EditorePeacuterez Jimeacutenez A 2000 ldquoRetrato literario y biografiacutea menor en el corpus

Plutarcheumrdquo In I Generi Letterari in Plutarco (Atti de VIII Convegno plutarcheo Pisa 2-4 giugno 1999) ed I Gallo e C Moreschini Napoli M DrsquoAuria 29-37

Perrin B 1975 Plutarchrsquos Lives Vol 9 Cambridge (MS) Harvard University Press-Leadership College London

255

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

Saacutenchez Hernaacutendez J P e M Gonzaacutelez Gonzaacutelez 2009 Plutarco Vidas paralelas Vol 7 Madrid Gredos

Silva M F 2005 Eacutesquilo o primeiro dramaturgo europeu Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra

Sores C 2007 ldquoRules for a good description theory and practice in the Life of Artaxerxes (sectsect1-19)rdquo Hermathena 182 86-89

Stadter P A 2016 Plutarch and his Roman Readers Oxford Oxford University Press

mdashmdashmdash 1992 Plutarch and the Historical Tradition London- New York RoutledgeWolff E 1964 ldquoDas Weib des Masistesrdquo Hermes 92 51-81

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

257

Nuno Simotildees Rodrigues

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas1

(Peri Basilissas Regarding the political importance of five Hellenistic queens)

Nuno Simotildees Rodrigues(nonniusflulpt ORCID 0000-0001-6109-4096)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras CEC e CH-ULisboa Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UC

Resumo - Este ensaio visa refletir sobre o papel da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera do poder a partir do estudo de cinco ca-sos Oliacutempia do Epiro Laoacutedice I da Siacuteria Berenice I do Egito Arsiacutenoe II do Egito e Cleoacutepatra VII do Egito

Palavras-chave Oliacutempia do Epiro Laoacutedice I da Siacuteria Berenice I do Egito Arsiacutenoe II do Egito Cleoacutepatra VII do Egito

Abstract ndash This essay aims to think about womenrsquos role in Hellenistic times and society taking the sphere of power as specific context through five case-studies Olympias of Epirus Laodice I of Syria Berenice I of Egypt Arsinoe II of Egypt and Cleopatra VII of Egypt

Keywords Olympias of Epirus Laodice I of Syria Berenice I of Egypt Arsinoe II of Egypt Cleopatra VII of Egypt

Durante o periacuteodo heleniacutestico as figuras femininas ganham um lugar na literatura grega designadamente na historiografia que ateacute entatildeo lhes estivera se natildeo vedado pelo menos bastante condicionado Isso dever-se-aacute muito provavel-mente ao facto de tambeacutem no processo e vivecircncia histoacutericos as mulheres terem conquistado um espaccedilo de accedilatildeo que ateacute entatildeo lhes era estranho Natildeo temos obviamente a veleidade de pensar que a mulher grega comum teraacute alcanccedilado nessa eacutepoca um lugar de que fora ateacute entatildeo constantemente afastada Isso seria demasiado anacroacutenico Mas parece-nos evidente que as rainhas heleniacutesticas em particular enquanto membros das elites surgem nas fontes da eacutepoca com um protagonismo poliacutetico que jamais alguma mulher grega conhecera seja ele negativo ou positivo Vejamos alguns exemplos

1 Oliacutempia do Epiro

O primeiro caso emblemaacutetico desta laquonovaraquo realidade e forma de olhar o feminino eacute Oliacutempia a matildee de Alexandre da Macedoacutenia Esta princesa do Epiro

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013 e do projeto UIDELT001962013

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_14

258

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

viveu entre c 373 e 316 a C Muito provavelmente a filha do rei Neoptoacutelemo da Moloacutessia nasceu com o nome de Poliacutexena tendo sido renomeada Oliacutempia por Filipe da Macedoacutenia depois que ela lhe deu um filho varatildeo o que coincidiu com a vitoacuteria dos cavalos do marido nos Jogos Oliacutempicos2 Este casamento aconteceu em 359 aC tendo-se Oliacutempia separado do soberano macedoacutenio em 337 aC depois de ter dado agrave luz Alexandre e Cleoacutepatra e na sequecircncia de uma seacuterie de alegadas infidelidades conjugais por parte do marido Oliacutempia autoexilou-se entatildeo no Epiro com o filho Alexandre ao mesmo tempo que Filipe celebrava um novo casamento desta vez com uma mulher da nobreza macedoacutenica igualmente chamada Cleoacutepatra Por detraacutes da atitude da rainha e do filho dela deveraacute ter estado muito por certo o processo de sucessatildeo do trono que os vaacuterios casamentos de Filipe determinavam e respetivas descendecircncias almejavam Apoacutes o assassiacutenio de Filipe em 336 aC que para alguns natildeo teraacute sido estranho a Oliacutempia3 a basilissa encarregou-se de eliminar a sua rival Cleoacutepatra bem como os familiares dela mais influentes e regressou ao reino do marido4 Depois de Alexandre ter partido para o Oriente a regecircncia da Macedoacutenia foi assumida por Antiacutepatro mas Oliacutempia manteve-se influente na corte e consequentemente na poliacutetica do reino Enquanto Oliacutempia poreacutem representava na Macedoacutenia uma faccedilatildeo estrangeira Antiacutepatro e a sua famiacutelia traduziam um partido autoacutectone cuja oposiccedilatildeo aos interesses da matildee de Alexandre a julgar pelas cartas trocadas entre o general e Oliacutempia ia crescendo significativamente5 Entre os argumentos que orientavam o partido macedoacutenico incluiacutea-se a ideia de que o controlo feminino dos destinos poliacuteticos do reino soacute poderia ser prejudicial para o Estado Essa oposiccedilatildeo levou a que em 331 aC Oliacutempia retornasse ao Epiro onde a filha Cleoacutepatra era entatildeo a regente Juntas constituiacuteram ali um partido de oposiccedilatildeo ao governo de Antiacutepatro o qual era entatildeo coadjuvado pelo seu filho Cassandro

Em 323 aC contudo a morte de Alexandre em Babiloacutenia provocou uma luta de poder sem precedentes entre a nobreza macedoacutenica Entre as faccedilotildees em confronto encontrava-se a da proacutepria Oliacutempia cujo peso era tatildeo grande quanto o de qualquer um dos diaacutedocos Enquanto os generais do rei dividiram entre si o territoacuterio que se estendia da Greacutecia agrave Iacutendia e ao Egito o trono da Macedoacutenia foi atribuiacutedo a um filho de Alexandre e de uma princesa da Sogdiana chamada Roxana6 Tratava-se de um herdeiro mesticcedilo que cumpria um dos projetos do filho de Oliacutempia a miscigenaccedilatildeo entre orientais e europeus Mas era essa

2 Plu Alex 2 Moralia 401b Sobre os vaacuterios nomes de Oliacutempia ver Macurdy 1985 24 Miroacuten 2002 1617 Carney 2006 15-17

3 Sobre esta questatildeo ver Arist Pol 1311b4 Sobre o tiacutetulo de basilissa ver Macurdy 1985 85 Em parte eacute o que podemos deduzir de passos como Plu Alex 278 e Gell 134 nos quais

lemos sobre as cartas trocadas entre matildee e filho Ver nota 206 Waterfield 2011

259

Nuno Simotildees Rodrigues

mesma caracteriacutestica que fazia crescer focos de oposiccedilatildeo entre os sectores greco-macedoacutenicos mais conservadores pelo que se nomeou um co-rei Filipe Arrideu meio-irmatildeo de Alexandre Sendo ambos os reis ainda crianccedilas Antiacutepatro manteve a regecircncia do paiacutes

Em 319 aC os novos reis chegaram agrave Macedoacutenia e pouco depois morria o regente Foi contudo Poliperconte e natildeo o filho de Antiacutepatro Cassandro quem lhe sucedeu na regecircncia Perante a resistecircncia de Cassandro a essa escolha Poliperconte solicitou a ajuda de Oliacutempia fazendo-a regressar tambeacutem agrave Macedoacutenia Esta atitude do novo regente eacute relevante do valor poliacutetico que a matildee de Alexandre angariara entre os Macedoacutenios e natildeo soacute Cassandro pelo seu lado encontrou apoio em Aacutedea Euriacutedice a mulher de Filipe Arrideu Inteirando-se da situaccedilatildeo Oliacutempia fez-se acompanhar de um exeacutercito com o qual defrontou o de Aacutedea Euriacutedice O efetivo confronto beacutelico todavia nunca aconteceu visto que os homens de Aacutedea se renderam e colocaram-se ao lado de Oliacutempia aparentemente impressionados pela majestade dela O testemunho de Duacuteris daacute conta de duas mulheres que aparecem no campo de batalha equipadas com as armas que melhor dominavam Aacutedea Euriacutedice envergando uma armadura macedoacutenica visto que havia sido militarmente treinada enquanto Oliacutempia surgia como uma meacutenade avanccedilando agrave frente do seu exeacutercito tocando uma flauta dionisiacuteaca7 Como salienta D Miroacuten talvez aqueles soldados simplesmente natildeo estivessem preparados para lidar com a chefia de uma mulher que se vestia laquoagrave homemraquo como se fosse uma amazona8 Mas natildeo deixa de ser curiosa a adesatildeo a uma outra que representa a desmesura dionisiacuteaca Parece-nos evidente que estamos no domiacutenio da historiografia pateacutetica um estilo de texto historiograacutefico que se rege pela presenccedila de categorias associadas a outros estilos poeacuteticos como o traacutegico ou temas em que predominam as emoccedilotildees dos intervenientes

Tendo ganhado este confronto Oliacutempia tratou de eliminar imediatamente a ameaccedila que Filipe Arrideu e Aacutedea Euriacutedice representavam para o exerciacutecio do seu poder Nesse contexto foram mesmo executados vaacuterios dos nobres macedoacutenios que representavam oposiccedilatildeo a Oliacutempia Talvez tenha sido essa atitude que a fez perder apoios entre os Macedoacutenios e aumentar os de Cassandro pelo que a situaccedilatildeo poliacutetica de Oliacutempia no territoacuterio agravou-se Em 317 aC a rainha retirou-se para Pidna juntamente com a sua corte em que se incluiacuteam Roxana e o filho dela a enteada Tessalonica a princesa epirota Deidamia aleacutem de parentes e vaacuterios amigos9 Ao fim de um longo periacuteodo de cerco e de

7 Ath 13560 et sq Sendo Aacutedea Euriacutedice descendente das aristocracias iliacutericas fora educada por sua matildee na tradiccedilatildeo das artes militares tal como acontecia com as mulheres da regiatildeo e o que era estranho ao resto da Greacutecia Ver Miroacuten 2002 26 Carney 2006 16 44 72-76 84-85 87 96-97 126-27 129 136

8 Miroacuten 2002 279 Miroacuten 2002 28

260

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

muitos desaires num eventual processo de ajuda Oliacutempia reconheceu a derrota e entregou-se a Cassandro acreditando que teria direito a viver10 Mas depois de um julgamento em que nem sequer esteve presente Oliacutempia foi condenada agrave morte O processo de execuccedilatildeo da rainha tambeacutem natildeo foi paciacutefico e apenas quando recorreu aos familiares das viacutetimas de Oliacutempia Cassandro conseguiu a execuccedilatildeo da matildee de Alexandre Magno11

Eacute em Diodoro Siacuteculo autor contemporacircneo de Augusto e em Plutarco que viveu na transiccedilatildeo do seacuteculo I para o seacuteculo II que encontramos as principais referecircncias a Oliacutempia do Epiro Mas apesar de relativamente tardios no que diz respeito agrave proximidade cronoloacutegica com a personagem em causa Diodoro e Plutarco deveratildeo refletir uma tradiccedilatildeo que teraacute tambeacutem dado origem agraves fontes em que radicam as suas informaccedilotildees Muitos dos elementos a que estes dois autores gregos recorrem para compor a figura de Oliacutempia coincidem na toacutenica que derivaraacute natildeo apenas da exatidatildeo da laquoverdade histoacutericaraquo mas tambeacutem de uma laquoideiaraquo de Oliacutempia que se teraacute construiacutedo na historiografia claacutessica e que foi sucessivamente retransmitida

A figura da laquomatildeeraquo domina o caraacutecter desta mulher De facto em grande parte ela existe apenas pela relaccedilatildeo com o filho Alexandre Apesar disso eacute inegaacutevel que Oliacutempia ganha por momentos direito a um protagonismo autoacutenomo designadamente no que diz respeito agrave luta que enceta pelo domiacutenio do reino macedoacutenico Ao que parece no Epiro as mulheres gozavam de uma liberdade relativamente maior do que acontecia nas cidades gregas do Sul ou ateacute mesmo na Macedoacutenia e o papel das rainhas-matildees como mostra o caso de Oliacutempia aponta para essa realidade12 Estar-se-aacute assim em consonacircncia com o que acontecia no Oriente Muito provavelmente Aiacute era comum o soberano ser sucedido de uma forma consuetudinaacuteria pelo filho varatildeo mais velho Mas nem sempre isso acontecia de forma paciacutefica Muitas vezes os atos de poligamia ou o repuacutedio de uma rainha levavam a que os seus filhos fossem preteridos em favor dos descendentes de uma segunda ou terceira mulher a quem o rei se unisse Criavam-se assim as condiccedilotildees para uma luta de sucessatildeo na qual o papel das rainhas-matildees se revelava essencial De facto a provaacute-lo encontramos o caso de Ahatmilku rainha de Ugarit que chefiou uma luta para que apoacutes a morte do rei Niquemepa seu marido lhe sucedesse um filho seu o da rainha hitita Puduhepa esposa de Ḫattušili III o de Tii e Nefertiti no Egito os de Haguite e Betsabeacute que apoacutes a morte de David defenderam cada qual os seus interesses nas pessoas dos seus filhos ambos candidatos ao trono

10 D S 1949-5111 Just 1469-11 Uma siacutentese da biografia de Oliacutempia pode ser lida em Macurdy 1985

22-48 e em Carney 2000 114-52 Carney 2006 8412 Na verdade jaacute Euriacutedice a matildee de Filipe tinha agido de uma forma pouco normal para o

que era haacutebito no contexto em causa

261

Nuno Simotildees Rodrigues

de Israel o exemplo de Maaca matildee do rei Abias13 ou ainda os de Neuacutesta matildee de Joiaquim14 Samuramat rainha da Assiacuteria e matildee de Adad-Nirari Naquirsquoa-Zakuto outra rainha assiacuteria matildee de Assaradatildeo Adad-Guppi rainha babiloacutenia matildee de Naboacutenido e Atossa da Peacutersia filha de Ciro esposa de Dario e matildee de Xerxes15 Um conjunto de mulheres que em certa medida intervieram e controlaram mesmo a poliacutetica do Proacuteximo Oriente Antigo do seacuteculo XIII ao V aC16 Alguns destes casos satildeo mesmo testemunhados pelas fontes gregas nomeadamente por Heroacutedoto cujas rainhas baacuterbaras satildeo exemplo de praacuteticas desta natureza17 Este quadro permite-nos aproximar a realidade da Macedoacutenia do seacuteculo IV aC do que ocorrera jaacute antes nos territoacuterios orientais

Por outro lado o facto de Oliacutempia reclamar uma ascendecircncia miacutetica eacute sintoma de uma importacircncia que se deseja acentuar ainda que isso possa ser uma construccedilatildeo historiograacutefica feita a posteriori Ao reclamar Teacutetis como sua antepassada Oliacutempia tornava-se semelhante agrave matildee de Aquiles com quem por sua vez o filho Alexandre fazia questatildeo de se identificar (eg Plu Alex 57)

Quando comparado com o que conhecemos da restante Greacutecia este elemento surge como uma peculiaridade mas outra caracteriacutestica desta rainha da Macedoacutenia eacute o facto de ser laquoestrangeiraraquo Tanto o Epiro como a Macedoacutenia pertenciam ao universo comum da Heacutelade apesar das diferenccedilas que os separavam e das que os afastavam das regiotildees gregas do Sul balcacircnico ou da Aacutesia Menor Mas a unidade linguiacutestica era uma realidade entre outras a ter em conta e tanto os Epirotas como os Macedoacutenios se consideravam membros dessa koine que formava o Mundo Heleniacutestico Ainda assim em relaccedilatildeo agrave Macedoacutenia o Epiro era tido como uma regiatildeo estrangeira com costumes distintos o bastante para se assinalar a diferenccedila A posiccedilatildeo social e a funccedilatildeo poliacutetica das mulheres na comunidade seriam categorias atraveacutes das quais se marcariam tais diferenccedilas levando Alexandre a afirmar que a matildee tinha escolhido bem ao colocar-se ao lado da faccedilatildeo que se refugiara no Epiro visto que laquoos Macedoacutenios jamais tolerariam ser governados por uma mulherraquo18

Aleacutem da afirmaccedilatildeo expliacutecita do caraacutecter estrangeiro de Oliacutempia outros elementos haacute que nos historiadores antigos permitem a definiccedilatildeo da personali-dade da rainha como alheia ao universo heleacutenico em geral Consideramos que entre esses elementos estaacute o caraacutecter politicamente emancipado que fornece as coordenadas principais do retrato da matildee de Alexandre

13 2Cr 1121-2214 2Rs 248-1615 Hdt 72316 Sobre esta questatildeo vide Tavares 1998 15-28 Ben-Barak 1987 30-52 Andreasen 1983

186-9017 Ver Amaral 1994 Agradecemos agraves nossas colegas Doutora Carmen Leal Soares e Doutora

Ana Luacutecia Amaral Curado as sugestotildees que deram para esta parte do nosso estudo18 Apud Miroacuten 2002 24 cf D S 1911

262

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

A atividade e iniciativa poliacuteticas da rainha surgem em quase todos os textos antigos que a mencionam As manobras que leva a cabo para se apropriar do poder e as forccedilas cuja chefia assume satildeo disso evidecircncia19 A atividade epistolar a ela associada aponta inclusive nesse sentido20 Eacute tambeacutem enquanto rainha-matildee que grande parte da sua imagem poliacutetica se define Qual sombra por detraacutes de Alexandre Oliacutempia manobra forccedilas e projeta objetivos21 As suas atitudes poliacuteti-cas revelam-se fundamentais no contexto em causa e Oliacutempia toma decisotildees que fatalmente condicionaratildeo a sua imagem A crueldade que demonstra ter ao aprisionar Filipe e Euriacutedice e as execuccedilotildees que daiacute decorrem contribuem para definir o caraacutecter da rainha condicionando a sua imagem histoacuterica Justifica-se assim a sua morte ingloacuteria se natildeo mesmo indigna como um castigo pelas crueldades e ateacute certo ponto injusticcedilas que demonstrou para com os seus ad-versaacuterios poliacuteticos22 Esta acaba por ser uma imagem retoricamente definida pela ideia de crimecastigo ou em termos comparatistas com a poeacutetica do traacutegico hybrisnemesis Tais accedilotildees inscrevem-se num quadro de categorias cuja evocaccedilatildeo literaacuterio-historiograacutefica estava em voga desde o seacuteculo V aC e em particular nos dois primeiros seacuteculos do Impeacuterio em que determinadas caracteriacutesticas para uma representaccedilatildeo positiva ou negativa da personalidade que se pretendia construir eram particularmente evidenciadas Neste caso concreto o retrato de Oliacutempia passa por um crivo em grande parte de influecircncia estoica em que a ex-ibiccedilatildeo do furor por exemplo em nada contribui para a sua dignificaccedilatildeo enquanto femina politica23 Aliaacutes esta mesma ideia eacute por si soacute pejorativa no contexto em causa Esse furor contudo contrasta com a sensatez de uma resposta iroacutenica como a que podemos ler em Aulo Geacutelio e em Plutarco como Alexandre tinha escrito uma carta agrave matildee em que se autointitulava filho de Zeus Aacutemon a rainha ter-lhe-aacute respondido laquoPeccedilo-te filho que te cales e que natildeo me difames ou me acuses perante Hera pois por certo ela vingar-se-aacute de mim se continuares a

19 Nep Eum 186 D S 1911 49-50 Hyp Eux 31-3620 Nep Eum 186 D S 1911 49-50 Gell 134 Plu Alex 78 39 Curt 7136-40 Ath

14659f-660a A relaccedilatildeo de Oliacutempia com a epistolografia eacute uma constante assinalada por quase todos os autores que a ela se referem o que parece indicar a sua real existecircncia e importacircncia apesar da possibilidade de as cartas citadas nas fontes conhecidas serem apoacutecrifas Tendo-se dedicado a escrever cartas Oliacutempia demonstra natildeo soacute ser uma personalidade de interesses poliacuteticos definidos como tambeacutem eventualmente dominar a escrita o que natildeo seria vulgar para uma mulher na eacutepoca De igual modo uma ceacutelebre resposta dada a Alexandre numa carta exemplifica a sua inteligecircncia poliacutetica cf Miroacuten 2002 36-37 59

21 Plu Alex 39 Cf a construccedilatildeo historiograacutefica da figura de Agripina Menor Sobre esta questatildeo ver Girod 2015 esp 207-28

22 D S 1911 A condenaccedilatildeo de Oliacutempia numa assembleia in absentia contribui para essa inglorificaccedilatildeo D S 1951 Natildeo eacute de excluir evidentemente a hipoacutetese de existir algum exagero retoacuterico nas descriccedilotildees das crueldades de Oliacutempia cujo objectivo seraacute o de construir intencio-nalmente uma determinada imagem cf Paus 877

23 Por exemplo Curt 7136-40 Cf Pimentel 1993

263

Nuno Simotildees Rodrigues

admitir nas tuas cartas que sou amante do seu maridoraquo24 Na verdade estamos perante uma suave mas seacuteria admoestaccedilatildeo poliacutetica que natildeo deixa de ser uma autoproclamaccedilatildeo

Por outro lado eacute inegaacutevel que Oliacutempia assume as suas responsabilidades desejando um julgamento justo para todo o seu percurso A justiccedila natildeo eacute mesmo alheia ao seu caraacutecter como podemos deduzir do passo de Plutarco em que a rainha reconhece as qualidades de uma rival nos amores com Filipe25 Neste sen-tido sugere-se tambeacutem que seria capaz de fazer mudar a opiniatildeo da Macedoacutenia que ao ouvi-la em assembleia deduziria a sua importacircncia poliacutetica natildeo soacute pela associaccedilatildeo a Alexandre e a Filipe como tambeacutem pelas suas capacidades oratoacuterias e retoacutericas A composiccedilatildeo laquovirilizadaraquo de Oliacutempia a que estas conceccedilotildees dizem respeito ganha maior consistecircncia com a descriccedilatildeo da sua presenccedila em campo de batalha preparada para o confronto com a rival Aacutedea Euriacutedice Analisadas em pormenor estas referecircncias indicam que Aacutedea Euriacutedice era ainda mais laquomascu-linizadaraquo do que Oliacutempia mas a princesa epirota natildeo deixa por isso de estar agrave frente de um exeacutercito acabando mesmo por aliciar os soldados adversaacuterios para o seu lado dado o carisma que tinha enquanto rainha da Macedoacutenia Este aspeto confirma a laquovirilidaderaquo de Oliacutempia uma vez que tais periacutecias e competecircncias eram fundamentalmente masculinas26 O fator confere-lhe tambeacutem uma digni-dade que acaba por afastar os que estavam encarregados da sua execuccedilatildeo o que em termos literaacuterios eacute significativo pois este seu caraacutecter nobre confere agrave matildee de Alexandre uma importacircncia suplementar De igual modo a morte de Oliacutempia eacute descrita por Diodoro obedecendo a essa mesma laquovirilidaderaquo visto que a rainha morreu sem proferir qualquer tipo de laquosuacuteplica ignoacutebil ou femininaraquo ao mesmo tempo que alcanccedilava a laquomaior dignidade das mulheres do seu temporaquo27

Esta composiccedilatildeo masculinizada eacute tambeacutem percetiacutevel no retrato familiar que dela daacute conta esse mesmo Diodoro ao apresentaacute-la como sempre ligada a laquoum grande homemraquo28 Posteriormente reencontraremos figuras em que essa imageacutetica se repete29

Faz tambeacutem parte desta composiccedilatildeo o espiacuterito religioso da rainha apesar dos traccedilos comuns agrave comunidade heleacutenica que nele possamos encontrar Neste domiacutenio o passo que se conserva nos escritos de Ateneu no qual a rainha defronta

24 Gell 134 Plu Moralia 141c25 Plu Moralia 141b-c26 D S 1951 Natildeo seraacute de excluir tambeacutem alguma associaccedilatildeo a Atena deusa da guerra Ou-

tras mulheres como Fuacutelvia e Agripina Maior foram representadas em situaccedilotildees semelhantes Vide eg Kaplan 1979 et Delia 1991

27 D S 195128 D S 195129 Uma vez mais este eacute o caso de Agripina Menor sempre apresentada como matildee irmatilde

mulher sobrinha e neta de imperadores independentemente das suas capacidades e vocaccedilatildeo poliacuteticas

264

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

os exeacutercitos de Aacutedea Euriacutedice eacute talvez dos mais emblemaacuteticos Quando nele se conta que Oliacutempia ia vestida como uma meacutenade avanccedilando ao som de uma flauta dionisiacuteaca enquanto Aacutedea Euriacutedice ia de amazona30 o texto fornece material para a definiccedilatildeo religiosa da matildee de Alexandre caracterizando-a como uma bacante que surge num campo de batalha Satildeo vaacuterios os documentos que apontam para a especial predileccedilatildeo da rainha pelos cultos misteacutericos designadamente pelos de Dioniso e Orfeu Sabemos por exemplo que teraacute sido quando se iniciava nos misteacuterios de Samotraacutecia que teraacute conhecido Filipe31 Este apontamento define Oliacutempia como algueacutem que possui uma aura religiosa algo marginal apesar de no seacuteculo IV aC na Greacutecia o dionisismo jaacute natildeo sofrer da estigmatizaccedilatildeo de que padecera Nesta caracterizaccedilatildeo Oliacutempia surge proacutexima de figuras importantes da literatura grega tambeacutem elas de certo modo marginalizadas como a personagem feminina central das Bacantes de Euriacutepides Agave Associado a esse caraacutecter misteacuterico vem um outro natildeo menos marcante e igualmente catalogador o comportamento associado agrave imagem da feiticeira que eacute um dos paracircmetros e toacutepicos mais recorrentes da definiccedilatildeo pejorativa do feminino na Antiguidade De facto Oliacutempia foi acusada de ter usado faacutermacos para atentar contra a vida de um dos filhos de Filipe32 Tambeacutem aqui Oliacutempia reencontra a sua natureza marginal desta vez proacutexima de personagens como Medeia ou Circe ou de divindades como Heacutecate que apesar do seu protagonismo e da maior ou menor simpatia que possamos nutrir por elas natildeo deixam de evocar uma alteridade negativa do feminino na cultura grega Para a caracterizaccedilatildeo de Oliacutempia como personalidade laquoestranharaquo porque laquoestrangeiraraquo contribui tambeacutem a jaacute aludida lenda segundo a qual se teria deitado com Zeus metamorfoseado em serpente com o que a rainha angaria uma morfologia divina e ao mesmo tempo perigosa dado o seu caraacutecter de fronteiracharneira A associaccedilatildeo a serpentes confirma aliaacutes tudo o que referimos33

Com Oliacutempia estamos sem duacutevida longe da conceccedilatildeo da mulher claacutessica ateniense silenciosa e recolhida no gineceu ainda que proveniente das elites revelando-se um importante grau de emancipaccedilatildeo talvez associado a uma certa pujanccedila econoacutemica que se traduz na influecircncia puacuteblica destas figuras34

2 Laoacutedice I da Siacuteria

Outra personalidade em quem eacute possiacutevel detetar este mesmo tipo de caracterizaccedilatildeo eacute a rainha Laoacutedice I da Siacuteria Laoacutedice I era mulher do rei Antiacuteoco

30 Ath 13560f D S 191131 Plu Alex 232 Miroacuten 2002 19 e fontes citadas apud Carney 2006 92 105 17933 Plu Alex 2-334 Miroacuten 2002 13 Na verdade natildeo sendo ateniense e detentora do estatuto de rainha a sua

condiccedilatildeo e o seu comportamento poliacutetico-social seria sempre distinto daquele da esmagadora maioria das atenienses evidentemente

265

Nuno Simotildees Rodrigues

II soberano da dinastia selecircucida Eacute possiacutevel que ambos fossem irmatildeos mas as fontes natildeo satildeo unacircnimes quanto a essa eventual relaccedilatildeo de parentesco35 Outra possibilidade eacute a de que fossem primos diretos Desconhecem-se as datas exatas do nascimento e do casamento de Laoacutedice I mas eacute verosiacutemil que se tenha casado em 267 aC36 Como tal eacute sensato pensarmos que esta princesa selecircucida teraacute nascido na deacutecada de 85 a 75 do seacuteculo III aC

Em 252 aC na sequecircncia de um tratado de paz estabelecido com o rei do Egito Ptolemeu II Filadelfo Antiacuteoco recebeu como garantia a filha daquele Be-renice com quem se casou Como salienta G Macurdy este facto deveraacute significar que Antiacuteoco II se divorciou da esposa anterior afastando-a assim por razotildees de natureza poliacutetica A accedilatildeo significava tambeacutem que doravante os filhos de Berenice ganhavam a possibilidade de herdar o trono selecircucida uma vez que a esposa an-terior havia sido relegada para segundo plano Efetivamente esta nova uniatildeo era de extrema importacircncia para o equiliacutebrio das potecircncias que se haviam constituiacutedo no Proacuteximo Oriente apoacutes a morte de Alexandre Magno Pelo seu lado Laoacutedice era recompensada com propriedades na regiatildeo da Babiloacutenia e de Borsippa como recorda uma inscriccedilatildeo cuneiforme da eacutepoca ao mesmo tempo que se retirava para Eacutefeso na Aacutesia Menor juntamente com os seus filhos Seleuco e Antiacuteoco III37

Mais tarde poreacutem a conjuntura poliacutetica voltou a inverter-se e sabemos que Berenice caiu na desgraccedila do rei que recuperou a proximidade com Laoacutedice Aliaacutes foi o seu filho Seleuco quem acabou por ser nomeado herdeiro de Antiacuteoco II em 247 aC Surgiu entatildeo o rumor de que Laoacutedice havia envenenado o soberano receando que ele desejasse voltar atraacutes e assim impedir que o filho de ambos reinasse na Siacuteria Mas natildeo eacute certo que isso tenha de facto acontecido38

Laoacutedice recuperou assim o seu estatuto de rainha e recebeu a corregecircncia do reino uma vez que o filho natildeo atingira ainda os vinte anos Mas a permanecircncia de Berenice e do filho dela em territoacuterio selecircucida era razatildeo mais do que suficiente para provocar inseguranccedila e incertezas O pai de Berenice havia entatildeo morrido e no Egito subira ao trono o irmatildeo dela Ptolemeu III Para evitar a possibilidade de Ptolemeu angariar apoios agrave custa da presenccedila da irmatilde na Siacuteria e vice-versa Laoacutedice decidiu eliminar tanto a rival como o enteado descendente direto de Antiacuteoco II

Outro episoacutedio associado agrave pujanccedila poliacutetica de Laoacutedice I da Siacuteria eacute contado por Filarco o qual eacute citado por Ateneu Segundo aquele autor Laacuteodice tinha uma aia de nome Daacutenae filha de uma hetera e disciacutepula de Epicuro que se havia enamorado de um militar chamado Soacutefron Quando Laoacutedice estava em

35 Polyaen 850 Porph FHG 370736 Macurdy 1985 8337 Ver referecircncias em Macurdy 1985 83-8438 Cf App Syr 65 Plin Nat 753 Hier Expl Dan 96 V Max 910 Polyaen 850 Macurdy

1985 84 sugere que esta seja a versatildeo egiacutepcia do acontecimento

266

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

Eacutefeso Soacutefron era a maacutexima autoridade militar laacute instalada Mas a rainha de-posta suspeitava da falta de lealdade de Soacutefron pelo que ordenou que o homem se apresentasse perante ela Daacutenae estava presente na audiecircncia e como sabia que a sua senhora tencionava executar Soacutefron tentou ajudar o homem de quem gostava comunicando com ele atraveacutes de sinais Soacutefron percebeu o que se es-tava a armar e ajudado por Daacutenae conseguiu escapar da audiecircncia acabando por fugir e aliando-se a Ptolemeu III Pelo seu lado tendo resistido a todos os interrogatoacuterios Daacutenae foi condenada por Laoacutedice a ser lanccedilada do alto de um rochedo Quando estava para ser arremessada do promontoacuterio a serva teria dito laquoNatildeo admira que os homens desprezem os deuses Salvei o meu amado que era para mim como um marido e eacute esta a recompensa que o ceacuteu me daacute Laoacutedice matou o homem que era seu marido e recebe toda esta gloacuteriaraquo39 O discurso de Daacutenae implica uma retoacuterica historiograacutefica de influecircncia mitograacutefica que natildeo era estranha agraves obras dos autores da eacutepoca mas acarreta tambeacutem uma imagem especiacutefica que pretendemos destacar O episoacutedio da aia de Laoacutedice sugere aliaacutes algo de romanesco natildeo sendo impossiacutevel que se trate precisamente disso de uma historieta inserida na narrativa da rainha com o objectivo de dar dela uma determinada impressatildeo40 Se a tradiccedilatildeo que reclamava a culpa do envenenamento de Antiacuteoco II para Laoacutedice associava tambeacutem a rainha ao assassiacutenio de Berenice do Egito e do seu filho a histoacuteria de Daacutenae recupera essa imagem e constroacutei a de uma rainha cruel que serve de braccedilo armado para a aplicaccedilatildeo dos caprichos divinos que fazem com que os Homens natildeo passem de joguetes Mas natildeo deixa de ser igualmente impressionante o sentido de justiccedila da rainha que natildeo hesita em castigar implacavelmente a traiccedilatildeo de uma amiga com a morte dela

Assim a atitude claramente poliacutetica leva a retratar Laoacutedice com a mesma forccedila de personalidade que haviacuteamos antes encontrado em Oliacutempia da Macedoacutenia Muitos dos historiadores antigos condenaram Laoacutedice pela sua crueldade enquanto outros ainda que poucos tenham preferido reconhecer nela a forccedila da necessidade pontual de afastar os rivais em defesa da proacutepria vida e da dos seus filhos41 Assim se justifica a eliminaccedilatildeo de Berenice e do seu herdeiro bem como a de Daacutenae Neste sentido tambeacutem Laoacutedice I da Siacuteria surge como uma femina politica de caraacutecter bem definido

Apesar de pouco mais sabermos acerca desta mulher um passo de Plutarco permite-nos deduzir que durante a guerra que opocircs os seus dois filhos mais tarde Laoacutedice se manteve ao lado do mais novo Antiacuteoco entatildeo com apenas catorze anos de idade contra o mais velho Seleuco42 Alguns autores sugerem que a intenccedilatildeo de

39 Ath 13593 FHG 133940 Este tipo de artifiacutecio estava em voga na eacutepoca como atesta Braun 193841 Macurdy 1985 85 Processo semelhante eacute o que encontramos eg na composiccedilatildeo da

figura de Messalina Sobre este caso ver Rodrigues 200342 Plu Mor 489a

267

Nuno Simotildees Rodrigues

Laoacutedice ao associar-se ao filho mais novo teraacute sido a de tentar precisamente controlar o jovem conseguindo desse modo manter-se mais proacutexima da poliacutetica do que aconteceria no caso de Seleuco subir ao trono Se assim foi tambeacutem Laoacutedice recorreu ao argumento da laquorainha-matildeeraquo para atingir os seus objetivos poliacuteticos Apiano refere que Laoacutedice foi morta por Ptolemeu III apesar de alguns historiadores colocarem o laquofactoraquo em duacutevida43 O certo eacute que o seu prestiacutegio na Antiguidade foi de tal modo grande que a partir dela vaacuterias rainhas receberam o seu nome44

3 Berenice I do Egito

Entre os Laacutegidas encontramos tambeacutem alguns nomes em que se reconhecem as caracteriacutesticas ateacute agora enunciadas O primeiro deles eacute Berenice I do Egito casada com Ptolemeu I Soacuteter em finais do seacuteculo IV aC Satildeo muitos e complexos os problemas historiograacuteficos colocados em torno desta rainha desde a data do seu nascimento tido por alguns no ano de 340 aC agrave relaccedilatildeo consanguiacutenea que teria ou natildeo com o marido Natildeo eacute nosso objectivo trataacute-los neste pequeno estudo45 Desejamos em vez disso salientar a atuaccedilatildeo poliacutetica da soberana Toda a prole de Berenice assumiu cargos importantes na poliacutetica do seu tempo Foi o filho dela que sucedeu a Ptolemeu I Soacuteter em 284 aC e natildeo o primogeacutenito deste nascido de outra princesa de nome Euriacutedice Isso mostra que a influecircncia de Berenice foi significativa e natildeo eacute de descartar a hipoacutetese de ela se ter feito uma vez mais nos bastidores da poliacutetica em que dominavam as rainhas-matildees Aleacutem disso o poeta Teoacutecrito testemunha a boa relaccedilatildeo que existia entre a rainha e o rei do Egito46 De igual modo a sua filha mais velha Arsiacutenoe II casou-se com o irmatildeo e tambeacutem ela veio a ser rainha do Egito Apesar de nunca se ter casado a terceira filha de Berenice chamada Filoacutetera recebeu altas honras dos irmatildeos Antiacutegona a quarta filha casou-se com Pirro em 298 aC e o seu filho Magas veio a ser rei de Cirene Como nota G Macurdy dificilmente estas alianccedilas se teriam feito se Berenice natildeo fosse tida como um elemento politicamente importante na casa real laacutegida47 Efetivamente Teoacutecrito elogia a sabedoria de Berenice e Plutarco refere-se mesmo ao poder intelectual da rainha destacando-a no quadro poliacutetico coevo Eacute tambeacutem isso que explica o facto de Berenice I ter recebido juntamente com o marido o tiacutetulo de laquoSoacuteterraquo ou laquoSalvadoraraquo laquoA que salvaraquo ou laquoA que protegeraquo e com ele alcanccedilado tambeacutem a apoteose com direito a um templo proacuteprio na cidade de Alexandria o Bereniceum48

43 App Syr 65 cf Macurdy 1985 8644 Sobre esta rainha ver ainda Ogden 1999 119-2445 Ver por eg Macurdy 1985 104-946 Theoc 1747 Macurdy 1985 106-10748 Ath 5202D Ogden 1999 61 68-73 215-17

268

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

4 Arsiacutenoe II do Egito

Mas entre os Laacutegidas outras mulheres se destacam como figuras de proa no contexto poliacutetico do seu tempo A jaacute mencionada Arsiacutenoe II eacute outro exemplo a ser considerado Tambeacutem esta nascida em 315 aC era uma mulher de sangue macedoacutenico visto que era irmatilde daquele que veio a ser seu marido Ptolemeu II Filadelfo do Egito Filha de Berenice I e de Ptolemeu I Soacuteter Arsiacutenoe II comeccedilou a sua carreira poliacutetica ao casar-se com o rei da Traacutecia Lisiacutemaco um dos diaacutedocos Aiacute a princesa laacutegida ter-se-aacute envolvido numa histoacuteria de contornos romacircnticos como sugerem alguns historiadores em que se percebem elementos do tema de Fedra e Hipoacutelito contudo verosiacutemil49 Seja como for ter-se-aacute criado e difundido a ideia de que a rainha da Traacutecia teria tentado envenenar o velho marido por se ter apaixonado pelo jovem filho dele Agaacutetocles Tal contexto teria granjeado a Arsiacutenoe uma fama pouco simpaacutetica de que o epiacuteteto laquoPeneacutelope de Lisiacutemacoraquo seria a expressatildeo mais iroacutenica50 As peripeacutecias que se contam na sequecircncia de tais atos poliacuteticos natildeo satildeo menos pejorativas para a rainha Uma das menos elogiosas narra como para escapar agraves tropas de Seleuco Arsiacutenoe teria ordenado que uma das criadas envergasse os seus vestidos para que desse modo a serva fosse confundida com a rainha e assim executada em vez de ela proacutepria51 Disfarccedilando-se de mendiga Arsiacutenoe conseguiu entatildeo embarcar e fugir para a Macedoacutenia52 Uma vez aiacute com a ajuda do meio-irmatildeo Ptolemeu Cerauno Arsiacutenoe veio a ser aclamada rainha do territoacuterio Mas a sua alegria durou pouco uma vez que Cerauno acabou por eliminar dois dos trecircs filhos da antiga rainha da Traacutecia ao mesmo tempo que o terceiro conseguia fugir para a Iliacuteria53 Muito provavelmente Arsiacutenoe apenas escapou agraves armas do irmatildeo porque este teraacute temido uma vinganccedila proveniente de Alexandria54

Depois da derrota de Ptolemeu Cerauno agraves matildeos dos Gauleses Arsiacutenoe fugiu para a Samotraacutecia e daiacute para o Egito Apesar de aclamada rainha entre os Macedoacutenios foi apenas no paiacutes do Nilo que esta laacutegida acabou por concretizar o exerciacutecio efetivo do poder poliacutetico cujo cliacutemax se verificou no facto de ter sido a primeira mulher macedoacutenia a receber a divinizaccedilatildeo ainda em vida55 A sua conquista do poder foi paulatina e natildeo sem desaires pessoais mas eficaz Comeccedilou por afastar a enteada e cunhada do poder e entre 276 e 275 aC casou-se com o irmatildeo Ptolemeu II Filadelfo Deste modo a dinastia laacutegida recuperava o costume da uniatildeo

49 Efetivamente a influecircncia de Euriacutepides parece ser grande na composiccedilatildeo deste episoacutedio Sobre a sua verosimilhanccedila ver Macurdy 1985 113 Ogden 1999 61

50 Cf Plu Dem 2551 A histoacuteria de Acerroacutenia em Tac Ann 145 tem contornos semelhantes aos desta narrativa52 Polyaen 85753 Just 1727-9 242-354 Macurdy 1985 11555 Ver documentos citados em Macurdy 1985 128-29 ver ainda Longega 1968 Carney 2013

269

Nuno Simotildees Rodrigues

fraternal praticada no Antigo Egito como expressa no mito de Iacutesis e Osiacuteris mas ateacute entatildeo inusitada entre Macedoacutenios e Gregos em geral56 Apenas hierogamias como a de Zeus e Hera57 davam conta dela correspondendo por certo a um fundamento ritual antigo A intenccedilatildeo teraacute sido claramente a apropriaccedilatildeo do poder ao mesmo tempo que se encetava uma forma de propaganda poliacutetica grega no Oriente ateacute entatildeo desconhecida que granjearia apoios populares e muito em especial das classes sacerdotais O ecircxito de tal manobra foi tal que ateacute mesmo Teoacutecrito motivado talvez pela necessidade de manter o patrociacutenio reacutegio ou pelo envolvimento no contexto poliacutetico de entatildeo elogia a uniatildeo incestuosa como uma reacuteplica da hierogamia grega mais conhecida58 Esta decisatildeo juntamente com a divinizaccedilatildeo em vida satildeo como eacute evidente a assunccedilatildeo de costumes orientais e para alguns historiadores o seu aproveitamento ter-se-aacute feito por iniciativa da proacutepria Arsiacutenoe59

Eacute hoje indiscutiacutevel que Arsiacutenoe II participou directa ou indiretamente no afastamento e eliminaccedilatildeo de adversaacuterios poliacuteticos Haacute contudo que natildeo olvidar a praacutetica da eacutepoca em que a eliminaccedilatildeo fiacutesica era um recurso habitual na administraccedilatildeo dos poderes De qualquer modo eacute significativo que Arsiacutenoe assuma esse papel o qual costumava ser mais facilmente atribuiacutedo a personalidades masculinas Na realidade na anaacutelise que temos vindo a expor verificamos um padratildeo de comportamento relativamente agraves mulheres sob estudo e respetivos contextos sociopoliacuteticos

Mas a partir de algumas fontes antigas eacute possiacutevel perceber tambeacutem que esta rainha laacutegida natildeo se limitou agraves intrigas de corte Efetivamente em 273 aC acompanhou o marido a Herooacutepolis numa campanha de inspeccedilatildeo dos mecanismos de defesa da fronteira egiacutepcia Outros documentos datildeo-na como instigadora de diretrizes poliacuteticas que vieram a ser aproveitadas pelo proacuteprio marido O recurso agrave sua imagem por parte de poetas como Teoacutecrito que para ela cultivaram formas de adulatio comprova tambeacutem a sua importacircncia Este conjunto de elementos permite portanto a inserccedilatildeo de Arsiacutenoe II no grupo das politicamente ativas rainhas heleniacutesticas60 Esta soberana faleceu em 270 aC

56 Macurdy 1985 117 nota que tanto na Macedoacutenia como na Greacutecia se tolerava a uniatildeo de irmatildeos natildeo uterinos o que natildeo era o caso de Arsiacutenoe e Ptolemeu II Filadelfo Theoc 12 5 chama a Arsiacutenoe laquotrecircs vezes esposaraquo

57 Il 14224-35358 Theoc 1459 Macurdy 1985 118 O que poderaacute ser discutiacutevel visto que a evidecircncia da utilidade poliacutetica

desta praacutetica eacute tatildeo grande que atribuiacute-la a Arsiacutenoe poderaacute natildeo passar de especulaccedilatildeo parcial60 Documentaccedilatildeo citada por Macurdy 1985 119 126-27 Uma siacutentese da atuaccedilatildeo poliacutetica

de Arsiacutenoe II pode ser lida nesta mesma obra 111-130 A este propoacutesito vale a pena citar Macurdy laquoArsinoe had beauty and intellect She appears to have been one of the greatest admi-nistrative women who have ever lived and she had all conceivable honors It is difficult to call her a good woman I believe that no record of a single good deed on her part has been handed down to us In her energy political foresight and utter unscrupulousness the Gods made her to match the men of her timeraquo (ibid 130) Ver tambeacutem Longega 1968 Ogden 1999 57-62 Carney 2013

270

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

5 Cleoacutepatra VII do Egito

Para finalizar este breve peacuteriplo pelas personalidades femininas que dominaram o periacuteodo heleniacutestico em termos poliacuteticos e que contribuiacuteram para uma nova perceccedilatildeo das mulheres na cultura grega condicionando desse modo a sua interpretaccedilatildeo ocidental citamos ainda o exemplo de Cleoacutepatra VII Filopator61 Esta figura foi por noacutes jaacute estudada sobretudo a partir de duas das principais fontes que acerca dela fornecem informaccedilotildees Flaacutevio Josefo e Plutarco62 Sendo estes dois autores centrais na caracterizaccedilatildeo da uacuteltima rainha dos Ptolemeus encontramos neles os elementos fundamentais que permitem o eixo principal na definiccedilatildeo desta mulher

Nascida em 69 aC Cleoacutepatra VII era uma das filhas de Ptolemeu XII Auletes Depois da morte deste em 51 aC sucedeu-lhe o filho Ptolemeu XIII ainda muito jovem que entretanto se casara com a irmatilde Cleoacutepatra segundo o costume que entatildeo se tinha jaacute instituiacutedo no Egito laacutegida O casamento dos dois irmatildeos contudo natildeo passou de uma alianccedila poliacutetica em que rapidamente se perceberam as forccedilas e interesses em confronto Em 48 aC Cleoacutepatra foi afastada do poder pelos partidaacuterios do irmatildeo mas Juacutelio Ceacutesar que na ocasiatildeo se encontrava no Egito na sequecircncia da guerra com Pompeio interveio no processo apoiando os interesses da rainha laacutegida No decurso das Guerras Alexandrinas que entatildeo eclodiram Ptolemeu XIII perdeu a vida e Cleoacutepatra assumiu o poder no Egito como legiacutetima herdeira dos Laacutegidas Para isso contudo desposou o mais novo dos seus irmatildeos Ptolemeu XIV

A relaccedilatildeo que teraacute desenvolvido com o general romano foi um dos grandes apoios que a rainha encontrou para a manutenccedilatildeo o seu poder A ideia de que Ceacutesar poderaacute ter sido o pai do primeiro filho de Cleoacutepatra reforccedila essa tese ainda que haja autores que ponham em causa tal paternidade63 Seja como for em 46 aC Cleoacutepatra seguiu Juacutelio Ceacutesar ateacute Roma acabando por regressar ao Egito apenas apoacutes o assassiacutenio do general romano Pouco depois morreu Ptole-meu XIV talvez envenenado pela proacutepria irmatilde64 Em 41 aC a rainha aliou-se a Marco Antoacutenio o oficial romano que representava os interesses de Ceacutesar e a proximidade entre ambos tornou-se de tal modo significativa que em 32 aC Octaacutevio declarou guerra agrave soberana do Egito tendo como objectivo evidente afastar definitivamente Antoacutenio das pretensotildees ao poder em Roma Agrave Urbe chegavam boatos de que a rainha greco-egiacutepcia se vangloriava de controlar os destinos do Capitoacutelio65 Os filhos que ela tivera do tribuno romano soacute ajudaram

61 Sobre as vaacuterias Cleopatras heleniacutesticas vide Macurdy 1937 7-18 Whitehorne 199462 Cf Rodrigues 1999 217-59 Rodrigues 2002 127-49 Rodrigues 2011 Rodrigues 2012

Rodrigues 201363 Vide eg Goldsworthy 2006 604-5 Goldsworthy 2010 220-2164 I AI 1589 Roller 2010 74-7565 Ver remissatildeo para fontes em Hughes-Hallet 1990 64-82 Walker e Higgs 2001 Jones 2006

271

Nuno Simotildees Rodrigues

Octaacutevio a formular as declaraccedilotildees de guerra O confronto das forccedilas em causa deu-se em Aacuteccio no ano 31 aC Antoacutenio e Cleoacutepatra foram derrotados e em 30 aC perante a possibilidade de se terem de humilhar a Octaviano e a Roma ambos optaram pelo suiciacutedio

Tambeacutem a histoacuteria de Cleoacutepatra VII estaacute repleta de pormenores que fa-vorecem o romanesco e o novelesco e que os historiadores devem usar com cautela66 Mas satildeo esses mesmos elementos que permitem em grande parte a construccedilatildeo de uma determinada imagem da uacuteltima rainha heleniacutestica e que a coloca na sequecircncia dos exemplos anteriormente citados Por outro lado apesar de quaisquer histoacuterias que se contem acerca de Cleoacutepatra VII eacute evidente que ela foi suficientemente importante para inquietar os Romanos e o seu Estado

De facto a construccedilatildeo de Cleoacutepatra como femina politica eacute o primeiro objectivo dos autores que acerca dela escreveram67 Para a concretizaccedilatildeo dessa imagem a Cleoacutepatra satildeo atribuiacutedas atitudes e opccedilotildees viris que a masculinizam e a fazem contrastar com as personagens femininas consideradas ideais de que Octaacutevia mulher de Antoacutenio eacute o paradigma bem como accedilotildees que no campo amoroso ultrapassam o limite da temperanccedila68 Essa definiccedilatildeo eacute conseguida graccedilas a caracteriacutesticas como o domiacutenio do poder e a ambiccedilatildeo ou por atributos que a transformam numa figura malquista maacute anfitriatilde traidora lasciva impiedosa mentirosa eroticamente ativa e sedutora tentando dominar o oculto atraveacutes da feiticcedilaria manifestando alguma loucura exibindo crueldade e assumindo-se mesmo como assassina69 Todas estas caracteriacutesticas satildeo percetiacuteveis nos autores que acerca dela escreveram ou deixaram registos Eacute mesmo evidente que muitas delas se aproximam do que analisaacutemos relativamente a Oliacutempia da Macedoacutenia uma das suas laquoantepassadasraquo O que equivale a dizer que a uacuteltima das laacutegidas eacute uma reediccedilatildeo da primeira das rainhas heleniacutesticas Isto eacute Cleoacutepatra VII Filopator completa um ciclo de imagens inaugurado pela matildee de Alexandre e que sem duacutevida alterou definitivamente a forma de olhar o feminino na cultura grega e por consequecircncia na cultura ocidental

Com efeito quando as Actas do julgamento que condenou agrave morte Maria Antonieta Arquiduquesa da Aacuteustria e Rainha de Franccedila se referiam agrave mulher comparaacutevel laquoagraves perversas rainhas da Antiguidaderaquo quem estaria no imaginaacuterio daqueles juiacutezes senatildeo mulheres como estas70

Ashton e Walker 200666 Hughes-Hallet 199067 Becher 196668 Rodrigues 2012 Rodrigues 201369 Cf Rodrigues 1999 217-59 Rodrigues 2002 127-49 Rodrigues 2011 Rodrigues 2012

Rodrigues 201370 Lever 2000 334

272

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

Em suma

Sendo o periacuteodo heleniacutestico o do encontro das culturas orientais e europeias favorecido ao niacutevel das elites e natildeo soacute pela rede de casamentos que entatildeo se estabeleceu eacute inevitaacutevel considerar que a ideia de alteridade ganhou espaccedilo consideraacutevel com essa convergecircncia71 Efetivamente no Proacuteximo Oriente Antigo encontramos elementos suficientes para que se estabeleccedila uma comparaccedilatildeo viaacutevel com esta nova forma de olhar a mulher que se define como laquoOutraraquo tanto pelo geacutenero a que pertence como pelo ambiente cultural em que germina Assinalaacutemos os casos das rainhas-matildees que encontraram um espaccedilo proacuteprio e omnipresente nas literaturas orientais antigas Mas podemos acrescentar outros modelos que poderatildeo ter surgido como referecircncias a autores como Josefo ao reconstruiacuterem a histoacuteria de uma soberana como Cleoacutepatra por exemplo Casos como os de Dalila Ataacutelia e Jezabel poderatildeo ter estado subjacentes agrave sua composiccedilatildeo Possivelmente trata-se de um produto da influecircncia da literatura e cultura orientais com as quais os Gregos passaram a ter a possibilidade de se familiarizarem Por outro lado para um grego a ideia de Cleoacutepatra como uma laquoreencarnaccedilatildeoraquo de outra lendaacuteria rainha oriental Ocircnfale como evoca Plutarco natildeo seria de todo despropositada72 Que outros modelos poderatildeo ter estado subjacentes agraves composiccedilotildees que assinalaacutemos Sugerimos paralelos com personagens da cultura grega como Heacutecate Medeia Circe e Fedra e parece-nos evidente que os Gregos olhariam para estas rainhas tendo estes e outros caracteres como referecircncias Comparaacute-las-iam a Peneacutelope figura presente mas discreta ou a Clitemnestra protoacutetipo da imagem feminina negativa73 Ou recorreriam mesmo agrave Histoacuteria e teriam como matrizes Safo ou Aspaacutesia Ao seu modo miacuteticas ou reais essas mulheres tinham ajudado a construir como por ela tinham sido laquoconstruiacutedasraquo uma determinada ideia de feminino Rejeitadas ou aceites como modelos de comportamento eacute no Helenismo que descobrimos a mulher que comeccedila a ser de facto autoacutenoma que se permite a conduzir destinos poliacuteticos Se as anteriores indicaram o caminho eacute com as rainhas heleniacutesticas que se concretiza a accedilatildeo e isso traduz uma mudanccedila social poliacutetica e mental que permitiu se natildeo os factos que natildeo negamos pelo menos a sua imagem e representaccedilatildeo Neste campo haveria que saber qual era de facto a verdadeira accedilatildeo da mulher ateniense no seacuteculo V por exemplo Seria mesmo como por vezes se pretende Por outro lado haacute que natildeo esquecer que a laquoHistoacuteria escrita pelos vencedoresraquo conduziu a uma anatematizaccedilatildeo do feminino

Eacute verdade que jaacute antes os textos gregos tinham dado a conhecer mulheres interventoras Jaacute referimos a obra de Heroacutedoto como caso em que surgem exemplos paradigmaacuteticos como Artemiacutesia e Toacutemiris Mas a novidade eacute que

71 A este propoacutesito recordemos as chamadas Bodas de Susa Plu Alex 36 37 70 Eum 172 Plu Ant 90 4 Jaacute Aspaacutesia o fora na biografia de Peacutericles Per 24973 Rodrigues 2010

273

Nuno Simotildees Rodrigues

as mulheres agora intervenientes na vida puacuteblica natildeo satildeo mais exclusivamente baacuterbaras Efetivamente a rainha heleniacutestica eacute grega de origem ou pelo menos falante de grego sendo esta a liacutengua de uma cultura essencialmente androcecircntrica A rainha heleniacutestica tornou-se contudo mais do que isso ao viver a sua experiecircncia no espaccedilo natildeo-grego Essas mulheres alimentaram-se das vivecircncias culturais do Outro e redefiniram-se tornando-se figuras politicamente ativas a que os historiadores gregos imprimiram doses de reprovaccedilatildeo e censura Trata-se de um novo paradigma de feminino para o modelo imperial que se comeccedilava a definir no horizonte perante e a partir de matrizes e modelos como Peneacutelope Lucreacutecia ou Corneacutelia a matildee dos Gracos74

Naquelas eacute igualmente impossiacutevel natildeo reconhecer a inovaccedilatildeo e a diferenccedila no caminho de uma emancipaccedilatildeo ateacute entatildeo estranha Como a esfinge criatura da mitologia concebida de uma ideia oriental mas que ganhou vida no espaccedilo heleacutenico tambeacutem estas mulheres se deixaram representar atraveacutes de escul-turas e efiacutegies que obedeceram a cacircnones classicizantes75 mas comportando-se como liberdade de accedilatildeo nova que no entanto se insere no espiacuterito heleniacutestico da oikoumene Aparentemente muitos dos seus contemporacircneos conviviam jaacute muito bem com essa laquonovidaderaquo Assim apesar das mudanccedilas que o medievo trouxe agrave Histoacuteria da Europa parece-nos indiscutiacutevel que neste espaccedilo e tempo heleniacutesticos se processaram alteraccedilotildees e mudanccedilas de perspetiva que alteraram para sempre as formas de olhar a mulher

74 Ver Rodrigues 200575 Cf Sales 2005

274

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

Bibliografia

Amaral A L 1994 ldquoDuas rainhas em Heroacutedoto Toacutemiris e Artemiacutesiardquo Humanitas 461741

Andreasen N A 1993 ldquoThe role of the Queen Mother in the Israelite societyrdquo Catholic Biblical Quarterly 45 (2)186-90

Arauacutejo L M 2001 ldquoEsfingerdquo In Dicionaacuterio do Antigo Egito coord L M Arauacutejo 337 Lisboa Editorial Caminho

Ashton S e S Walker 2006 Cleopatra London Duckworth Bristol Classical PressBecher I 1966 Das Bild der Kleopatra in der griechischen und lateinischen

Literatur Berlin Akademie-VerlagBen-Barak Z 1987 ldquoThe Queen consortrdquo In La femme dans le Proche Orient

antique ed J-M Durand 30-52 Paris Eacuteditions Recherche sur les civilisations

Braun M 1938 History and Romance in Graeco-Oriental Literature Oxford Blackwell

Carney E D 2013 Arsinoeuml of Egypt and Macedon a Royal Life Oxford Oxford University Press

mdashmdashmdash 2006 Olympias Mother of Alexander the Great London Routledgemdashmdashmdash 2000 Women and Monarchy in Macedonia Norman University of

Oklahoma PressDelia D 1991 ldquoFulvia Reconsideredrdquo In Womenrsquos History and Ancient History

ed S B Pomeroy 173-96 London Chapel Hill University of North Carolina Press

Girod V 2015 Agrippine Sexe crimes et pouvoir dans la Rome impeacuteriale Paris Tallandier

Goldsworthy A 2010 Antony and Cleopatra London PhoenixGoldsworthy A 2006 Caesar The Life of a Colossus London PhoenixHughes-Hallett L 1990 Cleopatra Histories Dreams and Distortions London

BloomsburyJones P J 2006 Cleopatra A Sourcebook Norman University of Oklahoma PressKaplan M S 1979 ldquoAgrippina semper atrox A Study in Tacitusrsquo Characterization

of Womenrdquo In Studies in Latin Literature and Roman History ed C Deroux 410-17 Turnhout Latomus

Lever E 2000 Marie Antoinette The Last Queen of France New York PortraitLongega G 1968 Arsinoe II Roma ldquoLrsquoErmardquo di BretschneiderMacurdy G H 1985 Hellenistic Queens A Study of Woman-Power in Macedonia

275

Nuno Simotildees Rodrigues

Seleucid Syria and Ptolemaic Egypt Chicago Ares PublishersMacurdy G H 1937 Vassal-Queens and Some Contemporary Women in the

Roman Empire Baltimore Johns Hopkins Press Miroacuten D 2002 Olimpia (ca 373-316 aV) Madrid Ediciones del OrtoOgden D 1999 Polygamy Prostitutes and Death The Hellenistic Dynasties

London Duckworth The Classic Press of WalesPimentel M C 1993 ldquoQuo uerget furorrdquo Aspectos estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca

Lisboa ColibriRodrigues N S 2013 ldquoAmimetobiou the One ldquoof the Inimitable Liferdquo

Cleopatra as a Metaphor for Alexandria in Plutarchrdquo In Alexandrea ad Aegyptum The Legacy of Multiculturalism in Antiquity ed R Sousa M C Fialho M Haggag e N Simotildees Rodrigues 58-69 Porto Ediccedilotildees Afrontamento Centro de Investigaccedilatildeo Transdisciplinar ldquoCultura Espaccedilo amp Memoacuteriardquo

mdashmdashmdash 2012 ldquoNomos e kosmos na caracterizaccedilatildeo do Antoacutenio e da Cleoacutepatra de Plutarcordquo In Nomos Kosmos amp Dike in Plutarch eds J Ribeiro Ferreira D F Leatildeo e C A Martins de Jesus 101-8 Coimbra Classica Digitalia Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

mdashmdashmdash 2011 ldquoA ldquoDa Vida Inimitaacutevelrdquo A Cleoacutepatra de Plutarco como Metaacutefora orientalrdquo Caliacuteope 2282-97

mdashmdashmdash 2010 ldquoAinda Clitemnestra a laquomulher de maacutescula vontaderaquordquo Cadmo 20393-405

mdashmdashmdash 2005 ldquoA heroiacutena romana como matriz de identidade femininardquo In Mito claacutessico no Imaginaacuterio Ocidental coord D F Leatildeo MC Fialho e MF Silva prefaacutecio M Claacuteudio 67-85 Coimbra Ariadne Editora

mdashmdashmdash 2003 ldquoMessalina ou Aphrodita tragica in Vrberdquo In Presenccedila de Victor Jabouille org A Ventura 513-34 Lisboa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

mdashmdashmdash 2002 ldquoPlutarco historiador dos Laacutegidas o caso de Cleoacutepatra VII Filopatorrdquo In Actas do Congresso ldquoPlutarco educador da Europardquo coord J Ribeiro Ferreira 127-49 Porto Fundaccedilatildeo Eng A Almeida

mdashmdashmdash 1999 ldquoO Judeu e a Egiacutepcia o retrato de Cleoacutepatra em Flaacutevio Josefordquo Polis Revista de Ideas y Formas Poliacuteticas de la Antiguumledad Claacutesica 1121759

Roller D W 2010 Cleopatra A Biography Oxford Oxford University PressSales J C 2005 Ideologia e propaganda real no Egito Ptolomaico (305-30 aC)

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia

Tavares A A 1998 ldquoA mulher nas lutas pela sucessatildeo do poder real no Meacutedio Oriente Antigordquo In Poder e Sociedade Da Antiguidade ao periacuteodo

276

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

contemporacircneo (Actas das Jornadas Interdisciplinares) org M J Ferro Tavares 15-28 Lisboa Universidade Aberta

Walker s e P Higgs 2001 Cleopatra of Egypt From History to Myth London British Museum Press

Waterfield R 2011 Dividing the Spoils The War for Alexander the Greatrsquos Empire Oxford University Press

Whitehorne J 1994 Cleopatras London New York Routledge

277

Filipe Carmo

O Imperium da origem ao Principado1 (Imperium from origin to Principate)

Filipe CarmoUniversidade de Lisboa Faculdade de Letras Universidade de Lisboa

(filcarmgmailcom ORCID 0000-0002-7093-6248)

Resumo - O imperium teria sido para alguns historiadores e num determinado periacuteodo histoacuterico um poder soberano de comando um poder absoluto de vida e de morte ao qual os laquosuacutebditosraquo deviam sem restriccedilotildees obedecer O estudo da evoluccedilatildeo do conceito ndash que poderia para outros ter tido origem no estabelecimento de uma hegemonia do Estado Romano sobre outros estados ou no comando militar de uma alianccedila ou ainda numa afirmaccedilatildeo de caraacutecter pessoal uma potecircncia carismaacutetica conducente ao sucesso assumida pelo chefe ndash conduz-nos atraveacutes dos seacuteculos que vatildeo desde a fundaccedilatildeo de Roma ateacute aos primeiros tempos do principado a constatar a sua compatibilizaccedilatildeo com a existecircncia da cidadania e naturalmente a natildeo entender a referida obediecircncia de modo absoluto A aquisiccedilatildeo do imperium pelos magistrados superiores da cidade estaria por outro lado estreitamente associada a uma sucessatildeo de atos de natureza civil e religiosa cujo natildeo cumprimento adequado poria em causa a legitimidade do exerciacutecio de tal poder Eacute precisamente uma crise de tal legitimidade iniciada pela atomizaccedilatildeo do poder e derivada das conquistas romanas e das guerras civis que conduz numa fase posterior ndash atraveacutes das ditaduras de Sula e de Ceacutesar dos triunviratos e da criaccedilatildeo do principado ndash a uma reaccedilatildeo que leva agrave concentraccedilatildeo progressiva do imperium e agrave institucionalizaccedilatildeo do imperium Romanum sob formas que jaacute satildeo proacuteximas dos conceitos modernos de impeacute-rio e imperialismo O que natildeo ocorre contudo sem um retorno a sentidos do conceito que pressupotildeem o poder reacutegio e aspiraccedilotildees a um estatuto divino

Palavras-chave Roma lex curiata imperium domi imperium militiae auspicia imperium Romanum

Abstract Imperium was for some historians and in a very specific historical period a sovereign power of command an absolute power of life and death to which laquosubjectsraquo should unreservedly obey The study of the evolution of the concept ndash which could have originated for some other scholars either in the establishment of a hegemony of the Roman state over other states or in the military command of an alliance or even in a personal assertion of a charismatic power conducive to success assumed by the king ndash leads us through the centuries from the foundation of Rome to the earliest days of the Principate to corroborate its compatibility with citizenship and of course not to understand the obedience referred to in an absolute way Further the acquisition of imperium by the cityrsquos higher magistrates was closely associated with a succession of acts of a civil and religious nature whose inadequate compliance could jeopardize

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_15

278

O Imperium da origem ao Principado

the legitimacy of the exercise of such power It is precisely a crisis of such legitimacy initiated by the atomization of power and derived from the Roman conquests and the civil wars that leads at a later stage ndash throughout the dictatorships of Sulla and Caesar the triumvirates and the creation of the Principate ndash to a reaction conducive to the progressive concentration of imperium and to the institutionalisation of the imperium Romanum in forms that are close to modern concepts of empire and imperialism This does not happen however without a return to the senses of the concept that presuppose regal power and aspirations to a divine status

Keywords Rome lex curiata imperium domi imperium militiae auspicia imperium Romanum

Poder reacutegio durante a Monarquia poder consular durante a Repuacuteblica e mais tarde comeccedilando com Augusto o poder do priacutencipe tecircm em comum na Roma antiga um elemento fundamental que eacute o imperium Trata-se em princiacute-pio de um poder soberano de comando um poder absoluto de vida e de morte ao qual os laquosuacutebditosraquo devem sem restriccedilotildees obedecer

Eacute esta uma definiccedilatildeo contudo que natildeo estaacute isenta de problemas e que soacute pode ser tida como meramente provisoacuteria e adequada no sentido de ajudar a colocar a questatildeo numa perspetiva o mais geral possiacutevel Assim jaacute em 1966 Robert Combegraves face agraves dificuldades em sistematizar satisfatoriamente as nu-merosas teorias existentes sobre o referido conceito se havia visto obrigado a recuar na sua ideia de elaborar um quadro sinteacutetico de tais teorias2 Refletindo alguns anos depois sobre tais dificuldades Henk Versnel haveria de reforccedilar tal sentimento de complexidade excluindo a hipoacutetese de optar por um dos opostos pontos de vista incidentes sobre uma eventual controveacutersia jaacute que natildeo soacute as posiccedilotildees em conflito eram muitas como natildeo havia encontrado dois acadeacutemicos que estivessem de acordo em todos os aspetos em causa3

Um dos aspetos em que natildeo havia acordo e que surgiria como uma primeira linha divisoacuteria entre as diferentes posiccedilotildees em confronto eacute referido pelo proacuteprio Versnel e coloca de um lado acadeacutemicos como Mommsen Rubino Leifer Ernst Meyer e de Francisci que defendiam que o imperium originariamente expri-mia o poder absoluto do rei tanto nas questotildees civis como militares opiniotildees a que se opocircs Heuss cuja posiccedilatildeo apoiada por Alfoumlldi Bernardi Arangio-Ruiz Mazzarino e Catalano restringia tal poder absoluto aos assuntos militares De imediato contudo se haviam observado diferenccedilas de opiniatildeo no seio destes grupos de acadeacutemicos traduzidas pela contraposiccedilatildeo de conceitos vizinhos como auctoritas e potestas ou de utilizaccedilotildees correspondentes diferenciadas no tempo e no espaccedilo Eacute neste enquadramento que Versnel apresenta uma perspeti-va mais historicista do conceito admitindo com Heuss que soacute progressivamente

2 Combegraves 1966 36-83 Versnel 1970 313

279

Filipe Carmo

o conceito de imperium teraacute passado a cobrir o poder soberano situaccedilatildeo que contudo viria a ser restringida mais tarde pelo surgimento do direito de provo-catio4

1 Duas noccedilotildees de imperium

Integrando-se agrave primeira vista no segundo grupo de acadeacutemicos que limitam o imperium aos assuntos militares Ugo Coli destaca-se dele contudo porque natildeo atribui ao rex romano enquanto tal esse poder Para Coli o imperium surge como o comando militar supremo da federaccedilatildeo latina exercido por um dos chefes dos estados aliados (socii) escolhido para o efeito Eventual imperator (comandante uacutenico a unicidade sendo fundamental na guerra) dos exeacutercitos aliados do nomen Latinum (povo no sentido de grupo eacutetnico latino) o rex ro-mano exerceria nessa qualidade um poder distinto do que exercia a niacutevel interno do Estado Romano (regnum para Coli) e que era uma potestas ndash noccedilatildeo oposta agrave de libertas ndash de caraacutecter absoluto sobre os seus suacutebditos natildeo-livres (essa geneacuterica potestas do rex sobre os seus suacutebditos seria assim equivalente ao conceito de imperium tal como provisoriamente definido acima) O que contrastava com as relaccedilotildees estabelecidas entre os socci do nomen Latinum que eram Estados sobe-ranos (relaccedilotildees portanto entre iguais relaccedilotildees estabelecidas no contexto de um embrionaacuterio direito internacional) Porque o imperium surge como um comando militar supremo e assenta numa relaccedilatildeo entre iguais Coli soacute admite a aplicaccedilatildeo do conceito no foro interno do Estado romano apoacutes o regnum ser extinto e dar lugar agrave res publica Soacute entatildeo o populus se afirma como soberano eacute sujeito de relaccedilotildees juriacutedicas e os cidadatildeos adquirindo a libertas satildeo iguais entre eles O po-der de comandar estendido da guerra a outras atividades comuns (a convocaccedilatildeo dos contingentes a sua organizaccedilatildeo a celebraccedilatildeo das cerimoacutenias propiciatoacuterias e uma vez a guerra vencida o agradecimento aos deuses a reparticcedilatildeo do saque e eventualmente o destino a dar ao territoacuterio conquistado) eacute assumido natildeo dire-tamente pelo populus que natildeo eacute uma entidade fiacutesica mas pelo seu representante eleito o magistrado supremo Esse novo poder por analogia com o que sucede a niacutevel das relaccedilotildees inter estatais eacute designado imperium5

4 Versnel 1970 314-15 A provocatio era um direito de apelo ao populus reunido na assembleia das centuacuterias contra as decisotildees dos magistrados supremos (ver a este propoacutesito Humbert 2007 295-97 e 304-5)

5 Coli 1951 145-68 Essa magistratura suprema de caraacutecter ordinaacuterio e mandato limitado a um ano (um praetor maximus ou um ditador) admitida por alguns autores daraacute lugar deacutecadas mais tarde ao consulado dual o que implicaraacute uma partilha do imperium por dois magistrados supremos Para outros autores fieacuteis agrave tradiccedilatildeo literaacuteria o consulado dual surge logo no iniacutecio da Repuacuteblica Ocasionalmente o poder supremo na Repuacuteblica eacute assumido por um magistrado de caraacutecter extraordinaacuterio o ditador coadjuvado por um magister equitum exercendo ambos essas funccedilotildees por um periacuteodo natildeo superior a seis meses (ver Carmo 2010 17-20 23-24 e 89-90)

280

O Imperium da origem ao Principado

O cidadatildeo um liber estaacute assim sujeito ao dever de obedecer agraves ordens da-quele o magistrado supremo que tem o direito (ius imperandi) de as dar Dever--se-aacute sublinhar no entanto que Coli se defronta com dificuldades em explicar condiccedilotildees intermeacutedias entre um liber e um suacutebdito como satildeo os casos do cliens e do escravo liberto que explica serem situaccedilotildees que embora de inferioridade satildeo compatiacuteveis com a libertas Eacute de realccedilar neste enquadramento a analogia que o acadeacutemico estabelece entre essas situaccedilotildees individuais e as que refere como envolvendo os Estados

middot o cidadatildeo natildeo submetido a nenhuma situaccedilatildeo de inferioridade compa-raacutevel ao Estado soberano que exerce quando chega a sua vez a prerrogativa de comando da alianccedila

middot o suacutebdito que eacute assimilado ao antigo Estado que perde tal qualidade porque eacute conquistado pelo Estado hegemoacutenico (vi capti e deditio-receptio in potestatem)

middot o cliente equiparado ao Estado que reconhece a superioridade (maies-tas) do Estado hegemoacutenico coloca-se sob a sua proteccedilatildeo mas manteacutem a condi-ccedilatildeo de Estado

middot o liberto equivalente agrave coletividade dos vencidos que recupera por decisatildeo do Estado hegemoacutenico a sua anterior condiccedilatildeo de Estado6

Uma alternativa agrave origem da ideia de imperium a sua proveniecircncia da Et-ruacuteria em vez das relaccedilotildees estabelecidas no seio do nomen Latinum eacute defendida por vaacuterios autores modernos e referida como possiacutevel pelo proacuteprio Coli Sendo a tradiccedilatildeo literaacuteria unacircnime relativamente agrave proveniecircncia da Etruacuteria de insiacutegnias do imperium como os doze lictores com os feixes e os machados uma hipoacutetese sobre o momento de concretizaccedilatildeo dessa adoccedilatildeo seria o da guerra vitoriosa que segundo Dioniacutesio de Halicarnasso7 Tarquiacutenio Prisco teria conduzido contra o nomen Etruscum e que teria sido concluiacuteda com a colocaccedilatildeo em estado de sujei-ccedilatildeo dessa naccedilatildeo O envio dos doze lictores a Tarquiacutenio seria o reconhecimento da sua situaccedilatildeo de comando sobre o exeacutercito comum das doze cidades da liga etrusca em substituiccedilatildeo do anterior comandante por elas escolhido siacutembolo portanto da respetiva hegemonia Coli conclui que nesta hipoacutetese de proveniecircn-cia do imperium dos etruscos esse natildeo seria o poder despoacutetico dos soberanos do oriente (de que aliaacutes segundo o acadeacutemico os reis romanos jaacute dispunham

6 Coli 1951 145-51 e tambeacutem 104-97 D H 357-62

281

Filipe Carmo

internamente8) mas a mera laquohegemoniaraquo grega9Teriacuteamos assim em conclusatildeo uma primeira noccedilatildeo de imperium a do

direito internacional instituiccedilatildeo primordial e uma segunda noccedilatildeo a do direito puacuteblico interno (o imperium consular o imperium do ditador ) a segunda sendo derivada da primeira10

2 Uma alternativa agrave origem do conceito

Uma alternativa agrave origem do conceito de imperium como um comando mi-litar assente numa relaccedilatildeo entre iguais eacute analisada por Versnel na sua obra sobre o triunfo Trata-se de um significado maacutegico-religioso cuja origem primitiva assentaria numa laquopotecircncia pessoal carismaacutetica que conduz ao sucessoraquo O impe-rium assim concebido cuja detenccedilatildeo pelo rex romano seria um caso particular significativo encontrar-se-ia investido no proacuteprio chefe ndash ao qual o povo os sol-dados laquose submetem devido agrave confianccedila que tecircm na sua forccedila na sua coragem na sua potecircncia maacutegica pessoalraquo ndash e natildeo seria suscetiacutevel de transferecircncia11 Essa submissatildeo que na origem se afirmaria espontaneamente ndash na sequecircncia de uma vitoacuteria ou outra demonstraccedilatildeo de forccedila coragem ou potecircncia maacutegica e que se traduziria por uma cerimoacutenia um rito em que o chefe era aclamado12 chamado pelo seu tiacutetulo ndash teria passado ainda durante o periacuteodo reacutegio a assumir um caraacutecter impessoal abstrato atraveacutes da preacutevia atestaccedilatildeo pelo deus supremo das qualidades necessaacuterias ao exerciacutecio de funccedilotildees de direccedilatildeo e de comando Eacute o rex inauguratus que recebe o augurium favoraacutevel de Juacutepiter13 A regularidade da

8 Seria assim absurdo segundo Coli isolar um direito de comandar o imperium em quem tem um poder absoluto e incondicional ao qual a pessoa sujeita natildeo pode resistir Um tal poder iria assim muito aleacutem do mero direito militar de comando Coli refere ainda que esse poder absoluto do rei era equivalente ao do pai sobre os filhos ao do dominus sobre os escravos ao do vencedor sobre os derrotados na guerra (vi capti)

9 Coli 1951 154-5610 Ibid 15811 Versnel 1970 315-18 Versnel cita de Francisci que adotaria uma posiccedilatildeo intermeacutedia

entre Haumlgerstroumlm e Wagenvoort acadeacutemicos que estudaram a noccedilatildeo primitiva de mana e as suas relaccedilotildees com o imperium

12 Os autores antigos usam nestes casos natildeo o termo acclamare mas appellare ou salutare e em particular appellatio imperatoria ou salutatio imperatoria (Combegraves 1966 90 nota 50)

13 Versnel 1970 315-18 e 340-49 O autor refere que esta cerimoacutenia a appellatio regia teria equivalentes posteriores nas appellatio praetoria (relativa ao pretor mais tarde ao cocircnsul enquanto comandantes militares) e appellatio imperatoria (atestada uma primeira vez no caso de Cipiatildeo um privatus em 210 aC na Hispacircnia aclamado imperator pelos seus soldados) Tanto a appellatio regia como a appellatio praetoria teriam lugar imediatamente apoacutes a creatio (designaccedilatildeo do rei ou eleiccedilatildeo do magistrado superior) enquanto a appellatio imperatoria surgiria apoacutes uma vitoacuteria na guerra A creatio seria aliaacutes precedida de uma auspicatio a cerimoacutenia de tomada ou observaccedilatildeo dos auspicia a consulta agrave vontade dos deuses Dever-se-aacute observar por outro lado que Andreacute Magdelain embora admitindo a appellatio regia natildeo concorda com a conceccedilatildeo do rex inauguratus Segundo este acadeacutemico o rei eacute investido

282

O Imperium da origem ao Principado

cerimoacutenia passaria com a Repuacuteblica a ser anual e a exigir um formalismo que mais tarde os juristas haveriam de classificar como constitucional

3 A lex curiata

Uma das questotildees criacuteticas com que os revolucionaacuterios do final do seacuteculo VI aC que expulsaram Tarquiacutenio o Soberbo se defrontaram teraacute estado relacionada com a legitimidade do magistrado ou magistrados que substituiacuteram o rex nas suas funccedilotildees de comando civil e militar A legitimidade do rex teraacute sido aparentemen-te garantida pela sua aclamaccedilatildeo nos comitia curiata assembleia que o proacuteprio rei teria convocado apoacutes ter tomado o poder e pelos auspiacutecios de investidura que satildeo tomados pelo rei e atraveacutes dos quais o soberano pede a Juacutepiter para o inves-tir14 Que o novo regime tenha adotado desde logo um elemento de anualidade na legitimaccedilatildeo dos magistrados parece paciacutefico para a historiografia Que esse elemento no que concerne a investidura civil dos magistrados tenha sido desde logo a lex curiata ou tenha derivado da continuidade da aclamaccedilatildeo agora com periodicidade anual na assembleia das cuacuterias eacute questatildeo jaacute mais controversa Ainda mais controversa seraacute ainda a questatildeo da eleiccedilatildeo dos magistrados que dissociada da investidura segundo alguns acadeacutemicos soacute teria surgido mais tarde provavelmente em meados do seacuteculo V aC A investidura tendo lugar

por Juacutepiter no decurso da cerimoacutenia da tomada de auspiacutecios que eacute da iniciativa do proacuteprio soberano e que pelo menos no caso de Roacutemulo e segundo as fontes antecede a aclamaccedilatildeo pelo povo (Magdelain 1968 39)

14 Andreacute Magdelain critica as conceccedilotildees de acesso ao poder dos reis por parte de Ciacutecero e Taacutecito que incluem a rogatio de uma lex curiata pelo proacuteprio rei Eacute um procedimento que Magdelain considera transposto da praacutetica republicana relativa agrave investidura do ditador e dos cocircnsules Magdelain critica igualmente as conceccedilotildees de Tito Liacutevio e de Dioniacutesio de Halicarnasso que ignoram a existecircncia da lex curiata mas para os reis latinos que sucedem a Roacutemulo estatildeo desvirtuadas por elementos de origem republicana (1) a rogatio que eacute feita por um interrex (2) uma eleiccedilatildeo que tem a particularidade de incidir sobre um uacutenico candidato e (3) uma confirmaccedilatildeo do voto pela auctoritas dos patres No que concerne os reis etruscos por outro lado aquelas fontes excluem o interrex e a auctoritas patrum colocando o proacuteprio rei a presidir a assembleia popular Eacute menos niacutetida nesses autores a alternativa entre a existecircncia de um voto ou uma simples aclamaccedilatildeo embora a opccedilatildeo por esta uacuteltima pareccedila mais provaacutevel (Magdelain 1968 30-33 e 37-40) Observe-se no entanto que Magdelain natildeo esclarece como teraacute sido a tomada do poder pelos reis admitindo-se que na sua oacutetica ela estaria isenta de qualquer formalismo e assente em meras relaccedilotildees de forccedilas militares ou poliacuteticas Francesco de Martino por outro lado fiel agrave sua conceccedilatildeo de monarquia resultante de uma federaccedilatildeo gentiacutelica defende uma posiccedilatildeo diferente Faria sentido segundo ele que a lex curiata tivesse surgido com a transformaccedilatildeo constitucional que havia tido lugar quando Roma foi organizada como polis com um poder central a sobrepor-se agrave assembleia federativa A soberania enquanto atributo dos patres teria entatildeo deixado de ser suficiente para a investidura do chefe passando a ser necessaacuterio ligar os dois elementos unitaacuterios do Estado ou seja o magistrado e o povo O ato formal requerido para tal objetivo teria sido precisamente a lex curiata mediante a qual a exigecircncia poliacutetica unitaacuteria havia ganho expressatildeo juriacutedica e o populus havia adquirido pela primeira vez a qualidade de oacutergatildeo constitucional (De Martino 1972-1975 158-59 ver tambeacutem Carmo 2010 11-12)

283

Filipe Carmo

conforme jaacute referido na assembleia das cuacuterias a eleiccedilatildeo uma escolha entre vaacuterios candidatos seria realizada pelo menos para os cocircnsules na assembleia das centuacuterias Assim no iniacutecio da Repuacuteblica segundo esses acadeacutemicos o povo natildeo elegeria os magistrados limitando-se a investi-los Presume-se que a reivin-dicaccedilatildeo pelo povo do direito de eleger os candidatos que a seguir investe tenha surgido na sequecircncia das movimentaccedilotildees plebeias que conduziram agrave criaccedilatildeo e eleiccedilatildeo dos seus proacuteprios magistrados15

A questatildeo do conteuacutedo e do significado da lex curiata eacute colocada logo agrave partida pela sua designaccedilatildeo que em muitos acadeacutemicos surge como lex curiata de imperio Poder-se-ia concluir daqui que o objetivo da lei era muito simples-mente a atribuiccedilatildeo do imperium aos magistrados Natildeo eacute essa a posiccedilatildeo de Andreacute Magdelain que considera a expressatildeo ndash lex curiata de imperio ndash enganadora e forjada pelos modernos O imperium natildeo esgotaria o conteuacutedo da lex curiata que de facto se estenderia a outras atribuiccedilotildees nem seria compatiacutevel com o seu emprego a favor dos magistrados menores (eleitos nos comitia tributa) Os poderes que ela atribuiacutea aos magistrados superiores aleacutem do imperium seriam a jurisdictio e o auspicium Magdelain natildeo deixa contudo de admitir referindo Ciacutecero16 que na investidura dos magistrados pelas cuacuterias a peccedila mais impor-tante eacute a atribuiccedilatildeo do direito de auspiacutecios jaacute que graccedilas a ele seraacute possiacutevel ao magistrado tomar posse dos seus poderes civis atraveacutes dos auspiacutecios de entrada em funccedilotildees e do comando militar atraveacutes dos auspiacutecios de partida17 Assim tudo se passaria como se a lex curiata procedesse a uma atribuiccedilatildeo imediata efetiva do auspicium e a uma atribuiccedilatildeo meramente potencial do imperium e da jurisdictio poderes estes que seriam ativados oportunamente pelo proacuteprio

15 Magdelain 1968 34-35 Ver tambeacutem nota precedente16 Cic Leg agr 227 231 (as cuacuterias soacute teriam subsistido ateacute ao seacuteculo I aC por causa da

atribuiccedilatildeo dos auspicia) Ver tambeacutem Cic Leg agr 230 (a lex curiata seria indispensaacutevel ao exerciacutecio do comando militar)

17 Magdelain 1968 17-20 A inclusatildeo da jurisdictio o poder de se ocupar da justiccedila civil e criminal deduzir-se-ia de um vasto plano de neutralizaccedilatildeo da vida puacuteblica que teraacute tido lugar em 56 aC e que se teria articulado agrave volta de intercessiones dos tribunos da plebe contra a passagem de leges curiatae que visariam em particular o funcionamento do Estado e da justiccedila A questatildeo do conteuacutedo da lex curiata eacute objeto de um trabalho especiacutefico de JJ Nicholls escrito um ano antes do livro em referecircncia de Magdelain e que este desconhece Nicholls coloca em particular a questatildeo de saber se a lex curiata tinha de facto o conteuacutedo de uma lei ou se se tratava meramente de uma declaraccedilatildeo solene uma adoccedilatildeo unilateral de imperium por parte do magistrado superior feita independentemente da aprovaccedilatildeo ou desaprovaccedilatildeo da assembleia (Nicholls 1967 258) Mais agrave frente (274-77) Nicholls refere-se especificamente a trabalhos anteriores de Magdelain datados de 1964 em que este jaacute exprime a opiniatildeo de que a lex curiata eacute a peccedila fundamental do regime republicano preenchendo o vazio constitucional que deriva da inexistecircncia de uma lei que esteja na origem das magistraturas antigas O facto de tal lei natildeo existir diversamente do que sucede nos regimes poliacuteticos modernos teria conduzido agrave necessidade de uma investidura pessoal pelas cuacuterias que atribuiacutesse aos magistrados os respetivos poderes (ver a este respeito Magdelain 1968 5-12)

284

O Imperium da origem ao Principado

magistrado atraveacutes como referido dos auspiacutecios de entrada em funccedilotildees e dos auspiacutecios de partida

A relaccedilatildeo entre auspicium e imperium nomeadamente a questatildeo de saber qual o poder que eacute predominante se um eacute determinado pelo outro ou vice-versa natildeo eacute contudo objeto de tratamento incontroverso na historiografia contempo-racircnea Versnel procede agrave anaacutelise desta questatildeo em toda a sua complexidade em toda a sua faacutecies labiriacutentica e entre outras ilaccedilotildees conclui que o povo tinha que se pronunciar sobre o imperium dos magistrados que a lex curiata visava sobretudo embora natildeo exclusivamente os assuntos militares (e nestes dois aspetos natildeo satildeo visiacuteveis contradiccedilotildees com as teses de Magdelain) e que a cerimoacute-nia de aprovaccedilatildeo da lei embora procedesse a um auspicatio natildeo conferia nem ratificava o auspicium18 (mas aqui a oposiccedilatildeo com as referidas teses eacute evidente) As dificuldades com que Versnel se defronta na sua anaacutelise poderatildeo estar re-lacionadas com a sua convicccedilatildeo de que os magistrados quando convocam os comitia curiata jaacute estatildeo na posse do auspicium Nesta convicccedilatildeo estaacute impliacutecita a admissatildeo de que quem reuacutene a assembleia eacute o proacuteprio magistrado que acaba de ser eleito nos comitia centuriata Ora eacute este ponto de partida que Magdelain precisamente contesta defendendo que quem convoca a assembleia e faz a ro-gatio da lex curiata eacute o magistrado que o precede que dispotildee ainda para tal dos poderes que lhe haviam sido conferidos no iniacutecio do seu mandato

4 Imperium domi e imperium militiae

Magdelain considera a questatildeo da autoria da rogatio da lex curiata laquola pierre drsquoachoppement pour toute theacuteorie de la loi curiateraquo e que laquode la reacuteponse qursquoon lui apporte deacutepend la structure de lrsquoensembleraquo Mommsen ndash que esteve na base dos estudos modernos sobre a referida lex e entendia que era o proacuteprio magistrado superior a apresentar a rogatio da sua proacutepria lei ndash teria no parecer do acadeacutemico sido determinante na evoluccedilatildeo das teorias que ilogicamente colocam a entrada em funccedilotildees antes do voto da lex curiata Eacute fundamental ter presente neste contexto que Ciacutecero considera que a lex curiata eacute votada por causa dos auspiacutecios (auspiciorum causa) o que pressupotildee que o magistrado ainda esta-ria sem auspiacutecios e natildeo reuniria assim as condiccedilotildees para convocar a assembleia19

18 Versnel 1970 319-39 Destacar-se-atildeo entre as numerosas opiniotildees que Versnel confronta os contributos de Mommsen Ernst Meyer de Francisci Heuss Rubino Latte von Luumlbtow Voci Haumlgerstroumlm Altheim Combegraves Staveley Catalano Nocera Wagenvoort Magdelain e Cancelli O autor contudo natildeo refere Magdelain 1968 cujo contributo natildeo pode deixar de ser considerado bastante significativo

19 Ver nota 16 supra e Magdelain 1968 26-27 Dever-se-aacute no entanto observar que o entendimento de Ciacutecero eacute vaacutelido para a sua proacutepria eacutepoca o que neste caso o potildee ao abrigo de eventuais acusaccedilotildees de anacronismo Acusaccedilotildees a que natildeo escapa contudo quando se trata da sua conceccedilatildeo da atribuiccedilatildeo do imperium aos reis (Cic Rep 225 231 233 235 e 238) em

285

Filipe Carmo

Assim para Magdelain o magistrado ordinaacuterio ao ser eleito por uma assembleia das centuacuterias que apenas exprime a sua preferecircncia pela sua pessoa relativamente a outros candidatos natildeo dispotildee ainda dos poderes que lhe satildeo indispensaacuteveis agrave convocaccedilatildeo das cuacuterias Eacute por essa razatildeo que tal convocaccedilatildeo deve ser feita pelo magistrado precedente que fazendo aprovar a lex curiata garante a investidura civil do seu sucessor A investidura por Juacutepiter solicitada pelo proacuteprio interessado seria posterior ocorrendo atraveacutes da tomada dos aus-piacutecios da entrada em funccedilotildees20

Este eacute um esquema arcaico que se teraacute alterado pelo menos em termos de perceccedilatildeo pela opiniatildeo puacuteblica no decurso do periacuteodo republicano Aos olhos do povo o que na Repuacuteblica Tardia conta o que de facto constitui a investidura do magistrado eacute a eleiccedilatildeo e os auspiacutecios que a autorizam enquanto a aprovaccedilatildeo da lex curiata e a tomada dos auspiacutecios de entrada em funccedilotildees embora sempre presentes satildeo entendidas como meras formalidades Para Magdelain essa evo-luccedilatildeo consubstancia um verdadeiro abuso que teraacute conduzido ao contrassenso juriacutedico-constitucional de transformar o que natildeo passava de uma aprovaccedilatildeo por Juacutepiter da convocaccedilatildeo da assembleia eleitoral (o que deveria ser feito para qualquer convocaccedilatildeo do povo) numa investidura do magistrado que viesse a ser eleito A eleiccedilatildeo bastar-se-ia assim a ela proacutepria e teria passado a conferir ao eleito os seus poderes21

Tambeacutem os auspiacutecios de partida ndash que satildeo os auspiacutecios que o general toma quando deixa a cidade para exercer o comando militar e que incluem a pro-nunciaccedilatildeo puacuteblica e solene de votos e o uso natildeo soacute pelo general mas tambeacutem pelos seus lictores dos seus trajes de guerra ndash requerem a votaccedilatildeo preacutevia da lex curiata Enquanto os auspiacutecios de entrada em funccedilotildees dotam o magistrado com o seu imperium domi ndash o poder civil ndash os auspiacutecios de partida conferem-lhe o im-perium militiae o seu comando militar Eacute esta conceccedilatildeo de dois tipos distintos

que a alegada existecircncia de dois passos nesse processo ndash um primeiro voto na assembleia das cuacuterias que dota o rei dos seus poderes e um segundo voto na mesma assembleia que aprova a lex curiata e confirma tais poderes ndash natildeo passaria de uma transposiccedilatildeo para a Monarquia da opiniatildeo vulgar sobre os mecanismos constitucionais do seu tempo Natildeo existindo assembleia das centuacuterias ateacute Seacutervio Tuacutelio Ciacutecero substituiacutea-a na primeira votaccedilatildeo pela proacutepria assembleia das cuacuterias (Magdelain 1968 30-31 e nota 14 supra)

20 Magdelain 1968 28-29 O que eacute verdade para as magistraturas ordinaacuterias natildeo o eacute contudo para uma magistratura extraordinaacuteria como a ditadura em que a ordem dos processos eacute invertida Era o ditador que apresentava a sua proacutepria lex curiata o que segundo Magdelain estaria de acordo com a natureza da instituiccedilatildeo Nomeado apoacutes decisatildeo do senado por um dos cocircnsules na cerimoacutenia auspicial da dictio ndash que representava a sua investidura por Juacutepiter e natildeo pelo cocircnsul que o nomeava ndash o ditador procedia de seguida agrave dictio do seu magister equitum e agrave convocaccedilatildeo das cuacuterias porque a investidura por Juacutepiter lhe havia jaacute conferido o imperium e o auspicium necessaacuterios a tais atos O voto da lex curiata que se seguia equivalia a uma investidura civil consistindo ao mesmo tempo numa homenagem que prestava ao povo que ia dominar monarquicamente por um periacuteodo que podia ir ateacute seis meses

21 Magdelain 1968 36-40

286

O Imperium da origem ao Principado

de imperium que Magdelain partilha com numerosos outros acadeacutemicos que nos afasta da conceccedilatildeo unitaacuteria acima referida de Heuss e outras que confinam o acircmbito do conceito ao comando militar22 A importacircncia da aquisiccedilatildeo do im-perium militiae e do seu pressuposto que satildeo os auspiacutecios de partida estaacute bem patente em 217 aC durante a Segunda Guerra Puacutenica e quatro deacutecadas mais tarde quando os cocircnsules ndash respetivamente Flamiacutenio e Claacuteudio Pulcro ndash se viram desautorizados o primeiro pelo senado e o segundo pelos seus proacuteprios soldados por se terem dispensado das cerimoacutenias de partida ndash a investidura no comando militar por Juacutepiter ndash assumindo que a investidura pelo povo atraveacutes da eleiccedilatildeo e do voto da lex curiata seria suficiente Verifica-se assim que nestes dois casos os princiacutepios constitucionais arcaicos mesmo que defendidos por mero oportunismo poliacutetico ndash como teraacute sido o caso da oposiccedilatildeo do senado a Flamiacutenio ndash ainda estariam em vigor mas que poderaacute ter sido neste periacuteodo que se iniciou o movimento que no final da Repuacuteblica conduziu ao ceticismo sobre o valor das cerimoacutenias que como a dos auspiacutecios de partida eram tidas como meras formalidades23

A eficaacutecia o acircmbito temporal dos auspiacutecios de entrada em funccedilotildees ndash e logo o imperium domi do magistrado ndash soacute se esgota no final do periacuteodo de um ano que eacute o do mandato do cocircnsul24 No caso dos auspiacutecios de partida tal eficaacutecia soacute cessa no final da campanha quando o general regressa a Roma e atravessa o pomerium a linha que separa a cidade ndash zona desmilitarizada ndash do territoacuterio exterior em que o magistrado dispotildee do seu imperium pleno natildeo sujeito a pro-vocatio25

22 De referir neste ponto a observaccedilatildeo em Richardson 1991 5 relativa agrave utilizaccedilatildeo de magistrados que em princiacutepio faziam uso apenas do imperium domi (neste caso os pretores cuja magistratura teria sido concebida em 366 aC apenas com objetivos judiciais e natildeo militares) para missotildees no exterior que requeriam o imperium militiae inicialmente no contexto da Primeira Guerra Puacutenica e mais tarde em 227 aC para comandos na Siciacutelia e na Sardenha Richardson natildeo soacute constata que o importante eacute natildeo que o magistrado tenha sido eleito para um cargo especiacutefico mas que detenha aquele particular poder que eacute o imperium (situaccedilatildeo que parece contradizer a conceccedilatildeo de Magdelain segunda a qual a jurisdictio natildeo se confundiria com o imperium) como expressa a sua surpresa por outro lado por as fontes antigas natildeo comentarem essa mudanccedila de direccedilatildeo da pretura

23 Magdelain 1968 40-4224 Na realidade tambeacutem outros magistrados ordinaacuterios casos do pretor e do censor dispotildeem

de imperium domi e de imperium militiae e naturalmente dos seus pressupostos que satildeo os auspiacutecios de entrada em funccedilotildees e os auspiacutecios de partida O imperium militiae eacute necessaacuterio ao censor quando conduz a cerimoacutenia do lustrum ndash relativa a um periacuteodo de cinco anos ndash que requer a convocaccedilatildeo da assembleia das centuacuterias Para tal dispondo dos auspicia maxima procede a uma auspicatio de natureza semelhante agrave que eacute conduzida pelo general ao adquirir o seu poder militar obtendo assim a necessaacuteria investidura jupiteriana que lhe permite em seguida convocar a assembleia (Magdelain 1968 46-51 ver tambeacutem Versnel 1970 338-39)

25 Conforme referido supra nota 4 a provocatio eacute um direito de apelo ao populus contra as decisotildees do magistrado supremo As insiacutegnias mais visiacuteveis do imperium do cocircnsul satildeo constituiacutedas pelos doze lictores que o precedem e que transportam os feixes (desprovidos

287

Filipe Carmo

5 Privatus cum imperium promagistrados e imperium militiae

De acordo com o direito arcaico a tomada dos auspiacutecios de partida feita no Capitoacutelio portanto na zona no interior do pomerium eacute necessaacuteria agrave aquisiccedilatildeo do imperium militiae As exigecircncias das guerras no exterior a multiplicaccedilatildeo destas guerras sobretudo a partir da Segunda Guerra Puacutenica vatildeo alterar tal estado de coisas

Em primeiro lugar Roma vecirc-se constrangida a confiar comandos militares a simples particulares26 em que o caso mais em evidecircncia seraacute porventura o do jovem Cipiatildeo a quem o populus atribui em 210 aC o imperium militiae na Hispacircnia Tal atribuiccedilatildeo estaacute dissociada do poder civil (os acadeacutemicos designam por privati cum imperium os generais nestas condiccedilotildees) jaacute que Cipiatildeo natildeo havia sido eleito magistrado e natildeo pressupotildee a aprovaccedilatildeo de uma lex curiata Trata-se de um comando extraordinaacuterio criado por uma lei especial votada pelo populus e que torna supeacuterflua a intervenccedilatildeo das cuacuterias A capacidade de tomada dos aus-piacutecios de partida no Capitoacutelio inseparaacutevel da detenccedilatildeo do poder civil estaacute assim excluiacuteda mas tais comandantes extraordinaacuterios recebem algo de equivalente o que Magdelain designa laquoauspiacutecios de guerraraquo embora natildeo seja especificado como nem onde O que se poderaacute depreender contudo de outro caso notaacutevel o da atribuiccedilatildeo a Octaacutevio ndash desta vez natildeo atraveacutes do populus mas por decisatildeo do senado ndash do imperium propretoriano eacute que a cerimoacutenia auspicial podia ser transportada para outros locais que natildeo Roma jaacute que as leges arae Augusti Narbonensis datadas do final do reinado de Augusto referem especificamente que a investidura jupiteriana de Octaacutevio teve lugar em 7 de Janeiro de 43 aC em Espoleto na Itaacutelia Central

Em segundo lugar o recurso ao prolongamento das funccedilotildees de magistrado para missotildees de guerra torna-se cada vez mais corrente o que vem mesmo a implicar que a partir de Sula cerca de 80 aC os cocircnsules soacute saiam de Roma ex-cecionalmente As campanhas guerreiras ou as simples funccedilotildees de governaccedilatildeo das proviacutencias passam a ser sobretudo da responsabilidade de prococircnsules ou de propretores que para isso teratildeo que dispor do imperium militiae Para tal duas hipoacuteteses se podiam verificar num primeiro caso o magistrado encontra-se

ou natildeo dos machados respetivamente no interior da cidade quando exercem o imperium domi e para aleacutem do pomerium quando exercem o imperium militiae) As outras insiacutegnias (independentemente da sua utilizaccedilatildeo efetiva nos tempos republicanos) do imperium satildeo a toga pretexta a cadeira curul a coroa de ouro e o cetro com a aacuteguia Dever-se-aacute contudo observar que no caso particular do triunfo o magistrado conserva o imperium mantendo-se no exterior da cidade e dispotildee dele ainda no proacuteprio dia da cerimoacutenia transpondo o pomerium e penetrando na cidade onde decorreraacute a sua consagraccedilatildeo como general vitorioso (Magdelain 1968 44)

26 Em 211 aC face agrave ameaccedila cartaginesa o senado jaacute havia decretado que todos os que tinham sido no passado ditadores cocircnsules ou censores poderiam ser investidos no imperium ateacute que o inimigo fosse afastado das muralhas da cidade (Liv 26109)

288

O Imperium da origem ao Principado

ainda em campanha quando cessa o seu mandato o que significa a perda da sua competecircncia urbana por um lado mas por outro a prorrogaccedilatildeo do seu impe-rium militiae e a manutenccedilatildeo dos seus auspiacutecios de guerra num segundo caso o general soacute parte em campanha apoacutes o seu mandato ter expirado e a questatildeo da aquisiccedilatildeo dos auspiacutecios de guerra coloca-se de modo idecircntico ao acima referido para o privatus cum imperium

Esta evoluccedilatildeo da ordem constitucional eacute entendida de modo diverso pelos contemporacircneos do periacuteodo final da Repuacuteblica Ciacutecero purista conservador critica o novo estado de coisas dizendo que os auspiacutecios necessaacuterios satildeo tomados sim mas mal e por isso satildeo nulos Ceacutesar menos exigente considera que o local de tomada dos auspiacutecios de guerra eacute indiferente O que parece contudo inegaacutevel ndash transformaccedilatildeo profunda que afeta as relaccedilotildees entre o sagrado e o profano ndash eacute que a verdadeira fonte do imperium havia jaacute desde haacute deacutecadas deixado de ser a investidura por Juacutepiter para passar a ser a investidura popular27

6 Imperium domi e ritos da urbe

A dualidade do imperium ndash domi e militiae ndash jaacute pressuposta pela distinccedilatildeo entre auspiacutecios de entrada e auspiacutecios de partida acaba por ter correspondecircncia para Magdelain na contraposiccedilatildeo do territoacuterio urbano ao territoacuterio extraurba-no Eacute a inauguratio que sucede ao avistamento milagroso dos doze abutres por Roacutemulo28 que define aquele territoacuterio urbano dando-lhe um estatuto privilegia-do Um augurium29 dum tipo particular desce sobre o solo urbano protege-o contra as influecircncias nefastas do exterior e daacute-lhe um estatuto que eacute uacutenico A urbe eacute por outro lado submetida a interditos que lhe satildeo proacuteprios que tendem a preservar a sua pureza religiosa e a pocirc-la ao abrigo de contaminaccedilotildees causadas pelas sepulturas e pela atividade guerreira que dela satildeo excluiacutedas No espiacuterito dos romanos o exeacutercito estaacute associado agrave morte daiacute que os dois interditos tecircm a mesma natureza A vocaccedilatildeo do exeacutercito eacute a de se ocupar com as forccedilas nefastas do exterior e se excecionalmente penetra no territoacuterio urbano por ocasiatildeo do triunfo ele deve previamente purificar-se passando sob a porta triumphalis o que tem sido interpretado como um laquorito de passagemraquo que impede as contami-naccedilotildees O interdito guerreiro atinge inclusivamente dado o seu caraacutecter militar a assembleia das centuacuterias ndash que deve ser reunida no Campo de Marte situado na zona exterior do pomerium ndash e o proacuteprio deus da guerra ndash Marte ndash cujo culto eacute extraurbano tem o seu altar mais antigo fora da urbe Os interditos funeraacuterio

27 Magdelain 1968 51-5728 Liv 171-3 refere o avistamento dos doze abutres e o estabelecimento de muralhas

delimitadoras da urbe as quais pressupotildeem a existecircncia do pomerium que eacute referida em Liv 1444-5

29 Etimologicamente augurium significa laquoaumentoraquo laquoacrescentoraquo e corresponde agrave transferecircncia de uma becircnccedilatildeo uma outorga divina de uma forccedila sobrenatural

289

Filipe Carmo

e guerreiro tecircm a funccedilatildeo de assegurar a continuidade dos ritos primordiais que expulsaram os espiacuteritos nefastos e procederam agrave fundaccedilatildeo de Roma Assim proibindo o seu regresso mantecircm intacto o referido augurium sobrenatural garantindo a permanecircncia da urbe como uma zona de paz

Para Magdelain a dualidade do imperium eacute o reflexo da dualidade territo-rial assim como satildeo inseparaacuteveis a teoria dos ritos de fundaccedilatildeo e a da investidura do poder Natildeo teria pois havido lugar a uma dissociaccedilatildeo do poder civil do poder militar pretensamente ocorrida no decurso da Repuacuteblica Essa dissociaccedilatildeo seria originaacuteria teria decorrido do direito augural que havia cindido a cidade em dois territoacuterios distintos e atribuiacutedo dois poderes tambeacutem diferentes ao titular de uma soberania com duas faces

Por outro lado os auspiacutecios primordiais tomados por Roacutemulo ao fundar Roma teriam tido o duplo efeito de lhe conferir o imperium domi e de inaugurar a urbe Assim uma tal interpretaccedilatildeo da lenda da fundaccedilatildeo concebida pela tra-diccedilatildeo a partir do modelo dos auspiacutecios de entrada em funccedilotildees dos magistrados superiores equivale a ver naqueles a renovaccedilatildeo em princiacutepio anual da inaugu-raccedilatildeo da urbe portanto da fundaccedilatildeo da cidade30

A repeticcedilatildeo do avistamento milagroso dos doze abutres que a lenda criada pelos ideoacutelogos Augustanos atribui a Octaacutevio pretende transformar este num novo Roacutemulo que vem fundar Roma uma segunda vez Isto ocorre apoacutes um periacuteodo que sucede agrave guerra social de 91-89 aC em que em particular a cida-dania eacute alargada aos aliados italianos de Roma recolocando a questatildeo do espaccedilo em que o imperium domi o poder civil deveria vigorar e em que o nuacutemero de detentores do imperium militiae sobretudo os promagistrados aumenta expo-nencialmente O pomerium manteacutem-se em termos de direito sagrado como o limite da urbe e isso natildeo eacute indiferente para os ritos associados ao poder em particular no que respeita ao local onde os auspiacutecios devem ser tomados Mas a realidade do exerciacutecio do poder civil impotildee-se e alarga o seu acircmbito a toda a Itaacutelia sem que seja possiacutevel delimitar adequadamente as etapas de tal processo31 Por outro lado o exerciacutecio do imperium militiae das magistraturas extraordi-naacuterias de plenos poderes tambeacutem se altera atraveacutes de uma simplificaccedilatildeo em particular das formalidades que lhe estatildeo associadas32

7 A reaccedilatildeo agrave atomizaccedilatildeo do poder o imperium Romanum

Um ponto culminante neste processo evolutivo do imperium teraacute sido o

30 Magdelain 1968 57-7131 O caso dos cocircnsules de 49 aC eacute exemplo embora extremo desta dificuldade Integrados

no exeacutercito de Pompeio em Tessaloacutenica ndash solo portanto natildeo italiano ndash esses cocircnsules renunciam a presidir agraves eleiccedilotildees consulares sem lex curiata e portanto agrave apresentaccedilatildeo dessa mesma lei Ver DC 4143 e Magdelain 1968 28

32 Magdelain 1968 72-73

290

O Imperium da origem ao Principado

ano 23 aC quando eacute estabelecida a superioridade do poder de Augusto Eacute nessa ocasiatildeo que lhe eacute atribuiacutedo a tiacutetulo vitaliacutecio o cargo de prococircnsul significando tambeacutem essa atribuiccedilatildeo que Augusto natildeo teraacute que renunciar ao cargo quan-do entra na cidade ou renovaacute-lo quando dela saia (ou seja quando transpotildee o pomerium num ou noutro sentido) Passa aleacutem disso a gozar de um imperium superior ao do governador em qualquer proviacutencia33 Neste enquadramento natildeo surpreende que a historiografia tenha vindo a produzir interpretaccedilotildees que con-duzem a ver na evoluccedilatildeo dos primeiros tempos do Principado uma apropriaccedilatildeo por Octaacutevio de atributos jupiterianos nomeadamente atraveacutes da adjunccedilatildeo agrave sua pessoa do prenome de Imperator e do sobrenome de Augustus e da aquisiccedilatildeo de um monopoacutelio tendencial dos auspicia militiae Dado que as vitoacuterias satildeo obtidas pelos seus legati sob os seus auspiacutecios ou sob as suas ordens elas satildeo suas e soacute ele deveraacute receber as honras delas derivadas nomeadamente a cerimoacutenia do triunfo34

Para JS Richardson a consequecircncia das honras atribuiacutedas a Augusto em 23 aC teraacute sido a formalizaccedilatildeo de algo que jaacute anteriormente havia tido manifes-taccedilotildees concretas designadamente com Juacutelio Ceacutesar (natildeo poderaacute deixar de se dar relevo ao facto de que os passos no sentido da concentraccedilatildeo do poder tenham surgido como uma reaccedilatildeo agrave sua atomizaccedilatildeo o referido aumento exponencial do nuacutemero de detentores do imperium militiae ocorrido apoacutes Sula) Embora em termos estritamente legais continuasse a haver outros detentores de imperium para aleacutem do princeps na praacutetica ele havia concentrado o poder nas suas matildeos O imperium havia assim sido efetivamente unificado num modo como nunca havia sucedido desde a eacutepoca dos reis natildeo sendo pois surpreendente que simul-taneamente uma noccedilatildeo mais moderna de impeacuterio a de imperium Romanum tenha surgido e que tenha sido pela utilizaccedilatildeo do imperium atraveacutes de todo o mundo conhecido que a monarquia havia regressado a Roma35

A expressatildeo imperium Romanum traduziria assim o controlo romano do mundo e natildeo o imperium entendido este mais como uma laquosubstacircnciaraquo (eacute a pa-lavra utilizada por Richardson) concedida pelos deuses atraveacutes da qual nos tem-pos da Repuacuteblica os membros da elite senatorial conduziam a guerra a favor do Estado e mais tarde no Principado os generais o faziam em princiacutepio em nome

33 DC 5332 A autoridade de Augusto foi ainda reforccedilada pela atribuiccedilatildeo vitaliacutecia do poder tribuniacutecio sem que usasse o tiacutetulo de tribuno

34 Combegraves 1966 155-56 e seguintes Ver tambeacutem Fears 1981 43-66 nomeadamente no que respeita agrave alegada substituiccedilatildeo da representaccedilatildeo de Juacutepiter como fonte das vitoacuterias romanas pela figura de Augusto

35 Richardson 1991 8-9 Galinsky neste enquadramento chama a atenccedilatildeo para o paralelo entre os desenvolvimentos a niacutevel da poliacutetica interna e o imperium Romanum laquohellipjust as the [developments in domestic policy] were directed toward the institutionalization of Augustusrsquo power so was the overriding aim of foreign policy the institutionalization of the imperium of Rome The two coalesced in the imperator Augustushellipraquo (Galinsky 1996 369)

291

Filipe Carmo

do imperador De algum modo aliaacutes imperium Romanum sempre teria existido no sentido de que expressava um poder coletivo o do populus Romanum o que aproximaria o sentido do conceito do de res publica e integraria tanto o poder militar como o poder civil36

Imperium como o poder exercido individualmente imperium como o po-der exercido por uma coletividade natildeo esgotam contudo os sentidos em que a palavra eacute usada Uma utilizaccedilatildeo do termo que se afirma no final da Repuacuteblica eacute a que o assimila a estrutura entidade poliacutetica sentido intimamente relacionado com o espaccedilo em que o poder eacute exercido por tal entidade (introduzindo assim uma aceccedilatildeo territorial)37 Conveacutem contudo manter presente que a utilizaccedilatildeo do termo pode pressupor em simultacircneo os sentidos de poder de entidade (o Esta-do) e de extensatildeo territorial Assim quando utilizamos a expressatildeo imperium Romanum ndash e natildeo haacute razotildees para crer que nos uacuteltimos tempos da Repuacuteblica Romana e nos primoacuterdios do Impeacuterio natildeo sucedesse o mesmo ndash podemos estar a referir-nos tanto ao Estado Romano como ao territoacuterio em que a sua autoridade se exerce ou ainda ao conceito abstrato que tal autoridade traduz e que eacute o poder que exerce sobre os povos que habitam o referido territoacuterio e eventualmente sobre outros povos que se encontram fora dos limites territoriais pressupostos

Eacute a existecircncia de tal conceito abstrato que permite aliaacutes compreender a evoluccedilatildeo que conduz aos outros sentidos Jaacute Poliacutebio em meados do seacuteculo II aC descrevia os romanos como senhores de quase todo o mundo habitado38 Na sua perspetiva o impeacuterio romano incluiacutea natildeo soacute os territoacuterios definidos como pro-viacutencias39 mas tambeacutem grandes reinos heleniacutesticos como o Egito e a Siacuteria e outros pequenos reinos e cidades tidas como livres Visatildeo ainda mais universalista seria a transmitida pelas proacuteprias moedas romanas que jaacute nos anos 70 do seacuteculo I aC representavam Roma com o seu peacute sobre o globo ou o do primeiro texto latino que na deacutecada anterior afirmava o imperium orbis terrae do povo roma-no40 Eacute esta capacidade de interferecircncia em territoacuterios que natildeo estatildeo sujeitos agrave

36 Richardson 1991 5 Jaacute no seacuteculo V aC o tribuno Canuleio colocava em termos poleacutemicos a questatildeo sobre quem dispunha do mais elevado imperium os seus oponentes patriacutecios ou o povo romano (Liv 451) Naturalmente que nesta perspetiva eram invocados tanto o poder militar como o civil Segundo Richardson 1991 6 o primeiro uso conhecido da expressatildeo imperium Romanum teria ocorrido jaacute apoacutes a morte de Ciacutecero com Saluacutestio (Sall Cat 101)

37 Richardson 1991 6 cita um fragmento de Aacutecio tragedioacutegrafo do seacuteculo II aC em que se refere o laquoArgivum imperiumraquo significando laquoreino de Argosraquo e a associaccedilatildeo por Ciacutecero de imperium a urbs civitas e res publica em contextos que sugerem que se trata quase de um sinoacutenimo dessas palavras

38 Plb 11 e 1339 Lintott 1981 53-54 O conceito primaacuterio de provincia era o de nomeaccedilatildeo funccedilatildeo a

desempenhar missatildeo a cumprir tendo sido a associaccedilatildeo dessa missatildeo a um territoacuterio preciso que progressivamente alterou ou ampliou o sentido da palavra estendendo-o ao territoacuterio diretamente administrado por Roma

40 Rhetorica ad Herennium 4913

292

O Imperium da origem ao Principado

sua administraccedilatildeo direta esse poder de se fazer obedecer ndash se necessaacuterio pela forccedila das armas ndash pelos povos pelos reis e por outros poderosos que conduz Roma progressivamente agrave criaccedilatildeo de relaccedilotildees ditas de amicitia com outros estados ndash frequentemente meros protetorados ndash agrave criaccedilatildeo de estados-tampatildeo agrave intromissatildeo nos assuntos internos de tais estados e naturalmente quando era essa a sua conveniecircncia a poliacuteticas de mera anexaccedilatildeo Com o avanccedilar dos tempos esta diversidade de relaccedilotildees com as partes constituintes do seu impeacuterio tenderaacute contudo a reduzir-se e uma maior uniformidade emergiraacute em que as proviacutencias no seu sentido de territoacuterios diretamente administrados abrangeratildeo a parcela fundamental dos territoacuterios sob controlo e o imperium Romanum na aceccedilatildeo territorial o sentido predominante41

Imperium natildeo deixa contudo de constituir um termo de difiacutecil definiccedilatildeo de modo a expressar todas as subtilezas de significado que transmite Se a institu-cionalizaccedilatildeo do imperium Romanum sob formas proacuteximas dos conceitos mo-dernos de impeacuterio e imperialismo se afirma nos uacuteltimos tempos da Repuacuteblica jaacute o poder exercido por Juacutelio Ceacutesar e sobretudo por Augusto introduz uma nova realidade que mais uma vez eacute difiacutecil de encontrar no nosso mundo atual Para Augusto que procura por todos os meios afirmar o seu poder pessoal o recurso aos siacutembolos de poder foi progressivamente adquirindo uma importacircncia fun-damental Se o seu pai adotivo Juacutelio Ceacutesar jaacute havia recorrido agrave construccedilatildeo do templo de Venus Genetrix situando-o no centro do Forum Julii para atestar a sua ascendecircncia divina Augusto natildeo deixou de lhe seguir o exemplo transfe-rindo algumas funccedilotildees religiosas antes localizadas no espaccedilo capitolino para o seu Forum engrandecendo-o com estaacutetuas e inscriccedilotildees honoriacuteficas Por outro lado o fervor que colocou na metamorfose urbana da cidade de Roma em par-ticular com as construccedilotildees edificadas no complexo norte do Campo de Marte contribuiu de modo significativo para afirmar a sua ambiccedilatildeo agrave imortalidade ndash a exemplo aliaacutes do que numerosos generais haviam procurado fazer no passado com os seus triunfos (cerimoacutenia agora monopolizada pelo princeps) e constru-ccedilatildeo de templos e altares ndash e explicar a veneraccedilatildeo de que foi alvo apoacutes a sua morte Veneraccedilatildeo ocorrida antes ainda da construccedilatildeo do templum novum divi Augusti que com dedicatoacuteria de Gaio Caliacutegula foi inaugurado em 37 dC42

41 Lintott 1981 53-6742 Rehak 2006 3-8 141-46

293

Filipe Carmo

Bibliografia

Carmo F 2010 O significado da implantaccedilatildeo da Repuacuteblica Romana Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Histoacuteria Antiga Lisboa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Coli U 1951 ldquoRegnumrdquo In Studia et Documenta Historiae et Iuris Vol 17 1-168 Roma Apollinaris

Combegraves R 1996 Imperator Recherches sur lrsquoemploi et la signification du titre drsquoImperator dans la Rome reacutepublicaine Paris Presses Universitaires de France

De Martino F 1972-1975 Storia della costituzione romana Vol 1 Naacutepoles Jovene

Fears J R 1981 ldquoThe Cult of Jupiter and Roman Imperial Ideologyrdquo In ANRW 2 (172)3-141

Galinsky K 1996 Augustan Culture Princeton Princeton University PressHumbert M 2007 Institutions politiques et sociales de lrsquoAntiquiteacute 9ordf ed Paris

DallozLintott A 1981 ldquoWhat was the lsquoImperium Romanumrsquordquo Greece amp Rome 2ordf seacuterie

28 (1)53-67Magdelain A 1968 Recherches sur lrsquolaquoImperiumraquo la loi curiate et les auspices

drsquoinvestiture Paris Presses Universitaires de FranceNicholls J J 1967 ldquoThe Content of the Lex Curiatardquo The American Journal of

Philology 88 (3)257-78Rehak P 2006 Imperium and Cosmos Augustus and the Northern Campus

Martius Madison The University of Wisconsin PressRichardson J S 1991 ldquoImperium Romanum Empire and the Language of

Powerrdquo The Journal of Roman Studies 811-9Smith C J 2006 The Roman Clan The ldquogensrdquo From Ancient Ideology to Modern

Anthropology Cambridge Cambridge University PressVersnel H S 1970 Triumphus an Inquiry into the Origin Development and

Meaning of the Roman Triumph Leiden Brill

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

295

Amiacutelcar Guerra

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircnia contrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente1

(Building the empire in Hispania contrasts amongst the narratives on the Roman conquest of the West)

Amiacutelcar Guerra(aguerracampusulpt ORCID 0000-0003-3478-0036)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras CH-ULisboa e UNIARQ

Resumo - A imagem que a historiografia antiga apresenta do processo de construccedilatildeo do imperialismo romano e dos seus intervenientes depende inevitavelmente de uma perspetiva enformada pela cultura grega e latina e pelos seus paradigmas Deste modo o quadro que se transmite dos povos hispacircnicos deve ser sempre lido nessa chave apresentando-se em oposiccedilatildeo agravequeles numa dicotomia que com frequecircncia se associa agrave oposiccedilatildeo entre civilizaccedilatildeo e barbaacuterie Constata-se de qualquer modo que a visatildeo desse mundo natildeo eacute necessariamente plana Dispomos de um nuacutemero consideraacutevel de exemplos que ilustram a complexidade desse panorama Neste sentido apresentam--se alguns exemplos em que de alguma forma se enuncia uma imagem reversa por um lado a arenga de Aniacutebal aos seus soldados antes da batalha do Ticino em que o general apresenta a sua perspetiva sobre o comportamento dos romanos por outro referem-se alguns episoacutedios em que se potildee em evidecircncia o heroiacutesmo de mulheres hispacircnicas a comeccedilar pelo que ocorre entre os Braacutecaros no contexto da campanha galaica de Deacutecimo Juacutenio Bruto

Palavras-chave Imperialismo romano Hispacircnia Deacutecimo Juacutenio Bruto Aniacutebal

Abstract ndash The ancient historiography offers an image of the Iberian conquest pro-cess and its actors according to a perspective shaped by Greek and Latin culture and its models Thus the portrait of the Hispanic peoples transmitted by the ancient sources must always be interpreted on this key i e as a dichotomy between civilization and barbarism However the view of this other world is not necessarily plain We have a considerable number of examples illustrating the complexity of the circumstances emerging of classical sources With this proposal we will analyse some examples in which a reverse of the ordinary perspective is offered Hannibalrsquos harangue to his soldiers before the battle of Ticinus and some episodes that highlight the heroism of Hispanic women

Keywords Roman imperialism Hispania Decimus Junius Brutus Hannibal

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_16

296

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

1 Introduccedilatildeo

Quando se aborda a questatildeo das fontes relativa agrave histoacuteria da Hispacircnia romana percebe-se de imediato a amplitude e importacircncia dos textos que se reportam a essa fase marcada essencialmente pelas movimentaccedilotildees poliacutetico--militares associadas agrave conquista do territoacuterio Trata-se eacute certo de um periacuteodo bastante longo que abarca cerca de dois seacuteculos se considerarmos o lapso de tempo que vai das primeiras referecircncias agrave 2ordf guerra puacutenica ateacute agrave conclusatildeo de todo o processo com as guerras contra Cacircntabros e Aacutestures Sem ignorar aspe-tos relevantes para compreender a histoacuteria geografia e etnologia da Hispacircnia sobressai a informaccedilatildeo sobre as muacuteltiplas accedilotildees militares desse periacuteodo cen-tradas natildeo apenas no lado romano mas descrevendo igualmente as teacutecnicas e estrateacutegias de combate dos povos hispacircnicos bem como todo o contexto poliacutetico e laquodiplomaacuteticoraquo que as enquadra

Natildeo surpreende neste repositoacuterio que a narrativa sobre os conflitos se al-inhe por uma perspetiva romana ou mais propriamente por uma forma de ver imbuiacuteda de uma cultura greco-latina que domina o mundo mediterracircneo Se os textos sublinham por vezes a admiraccedilatildeo pelo desenvolvimento de umas regiotildees ribeirinhas do Mediterracircneo assinalam por outro lado alguma estranheza em relaccedilatildeo a um universo que natildeo se enquadra nessa esfera E neste caso se encon-tram as regiotildees setentrionais e ocidentais da Hispacircnia

Este contributo visa explorar precisamente esse contraste cultural e forma como alguns autores claacutessicos o exprimem apresentando-o de forma mais ou menos expliacutecita como sinais da superioridade civilizacional do imperialismo romano Dada a impossibilidade de analisar genericamente um tema tatildeo com-plexo no acircmbito de um contributo necessariamente bastante reduzido selecion-aremos alguns quadros especiacuteficos que de alguma forma proporcionam uma visatildeo diferenciada da realidade hispacircnica no periacuteodo da conquista

Trataremos de forma necessariamente breve da anaacutelise de textos de auto-res latinos como Tito Liacutevio Floro e Oroacutesio mas tambeacutem de liacutengua grega como Apiano Poliacutebio Plutarco procurando analisar alguns aspetos que se prendem com a forma de olhar para os diversos agentes deste processo expansionista romano cuja natureza eacute sempre apreciada numa perspetiva externa A escolha destes autores e de alguns dos seus textos pretende ilustrar de qualquer modo a diversidade de pontos de vista sobre os intervenientes e a complexidade que pode apresentar a representaccedilatildeo destas realidades locais2

2 As relaccedilotildees entre o imperialismo romano e o seu confronto com as entidades locais na perspetiva de diferentes autores claacutessicos constituem um toacutepico largamente analisado Para um acircmbito mais geral pode ver-se ultimamente Revell 2009 para o caso especiacutefico da Peniacutensula Ibeacuterica dispomos de uma abundante literatura Garciacutea Moreno 1987 1989 2005 Goacutemez Espe-losiacuten 1993 2009 Garciacutea Quintela 1999 Salinas 1999 2002 165-80 Pelegriacuten 2003 Gracia 2009 Hernaacutendez Prieto 2011 Aguilera 2012

297

Amiacutelcar Guerra

A superioridade da cultura greco-romana constitui naturalmente um dos toacutepicos que marcam a historiografia antiga emergindo com clareza a dicotomia entre esse universo e o que natildeo se enquadra nele A forma de encarar essa opo-siccedilatildeo eacute tratada pelo proacuteprio Estrabatildeo em especial nas reflexotildees que encerram o livro I da sua Geografia Eacute significativo que ele aiacute exprima a sua oposiccedilatildeo a uma perspetiva distinta com tradiccedilatildeo no pensamento grego3 Refere explicitamente a sua oposiccedilatildeo a Eratoacutestenes o qual natildeo concordava com uma visatildeo histoacuterica em que se opunha grego a baacuterbaro4 sublinhando o geoacutegrafo alexandrino que haacute plena justificaccedilatildeo nessa diferenccedila uma vez que temos por um lado sociedades que se regem pela lei pela educaccedilatildeo e pela razatildeo (τὸ νόμιμον καὶ τὸ παιδείας καὶ λόγων) por outro comunidades que representam todo o contraacuterio

Esta oposiccedilatildeo que pode ser mais evidente em Estrabatildeo eacute precisamente con-traacuteria agrave praacutetica de Alexandre Magno como se diz no passo referido e matizada como se veraacute em outros autores dando-se aqui especial destaque a Apiano

De qualquer modo mesmo que pontualmente possa sublinhar-se a digni-dade dos povos peninsulares nunca parece questionaacutevel a supremacia romana Esta natildeo resulta unicamente da sua elevada capacidade militar mas generi-camente do seu modo de vida da sua cultura refletida em muitos aspetos da organizaccedilatildeo social e poliacutetica e emergindo tanto nas estrateacutegias de guerra na sua conceccedilatildeo do bellum iustum como nos domiacutenios da diplomacia da sua relaccedilatildeo com os povos hispacircnicos Mas acima de tudo essa superioridade eacute de natureza eacutetica isto eacute pauta o seu comportamento por valores distintos soacutelidos e estaacuteveis Agrave semelhanccedila do que se pedia a qualquer cidadatildeo na sua vida privada e puacuteblica tambeacutem se pedia aos governantes e aos generais o respeito pelos princiacutepios que definiam o modelo do cidadatildeo

Essa realidade cultural insere-se na tradiccedilatildeo da histoacuteria e etnografia gregas de periacuteodo tardo-republicano e alto-imperial e por essa razatildeo os textos datildeo conta com frequecircncia de casos concretos que demonstram que a cultura da urbe se sobrepunha agrave dos povos dominados Um desses exemplos evocado tantas vezes pela historiografia moderna reside no episoacutedio da conquista de Lancia uma notaacutevel cidade dos Aacutestures e um dos uacuteltimos redutos deste povo As nar-rativas paralelas de Floro e Oroacutesio datildeo conta de um episoacutedio ilustrativo que se enquadra bem na tradiccedilatildeo romana de promover as virtudes dos seus generais e sua superioridade moral

3 Este texto e as suas implicaccedilotildees foi analisado tendo em conta a realidade hispacircnica em Plaacutecido (1989 252-53)

4 Eacute muito ampla a investigaccedilatildeo que explora esta oposiccedilatildeo como perspetiva de anaacutelise do mundo antigo entre eles Dauge 1981 Thollard 1987 Hall 1989 e Woolf 2011 em relaccedilatildeo agrave Hispacircnia em particular v Bermejo Barrera 1986 Duplaacute et al 1988 Pelegriacuten 2003 Gonzaacutelez Ballesteros 2009 e Aguilera Duraacuten 2012

298

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

laquoA valorosa cidade de Lacircncia acolheu o remanescente do exeacutercito destroccedilado onde se combateu a tal ponto com as dificuldades do terreno que quando se reclamava o incecircndio da cidade jaacute tomada a muito custo o general conse-guiu compreensatildeo para o facto de esta ser mais alto testemunho da victoacuteria de Roma mantendo-se assim que incendiadaraquo5

A narrativa de Oroacutesio eacute semelhante raquohellip e quando os soldados se pre-paravam para atacarem pelo fogo a cidade sitiada o comandante Cariacutesio por um lado pediu aos seus que pusessem termo ao incecircndio e por outro exigiu dos baacuterbaros a declaraccedilatildeo de rendiccedilatildeo - eacute que procurava com empenho deixar a cidade inteira e preservada como testemunho da sua victoacuteria6raquo

Como se tem sublinhado no contexto das narrativas que refletem bem os efeitos de uma eficiente accedilatildeo propagandiacutestica de Augusto7 estes aspetos particu-lares constituem elementos sugestivos e perfeitamente adequados aos objetivos do princeps

2 O olhar reverso sobre o imperialismo romano a arenga de Aniacutebal

A literatura claacutessica natildeo deixa todavia de apresentar de certa forma o contraponto dessa superioridade romana Quer seja por efeito retoacuterico quer na sequecircncia de uma visatildeo mais realista deste universo dos povos em conflito com Roma natildeo faltam elementos que datildeo conta de uma outra perspetiva de encarar o domiacutenio romano

Um dos mais sugestivos passos a este respeito colhe-se no ceacutelebre discur-so que Aniacutebal pronuncia aos seus soldados depois da passagem dos Alpes na iminecircncia de enfrentarem e derrotarem o inimigo na batalha do Ticino Como tem sido referido este ceacutelebre texto elaborado por Tito Liacutevio de acordo com os mais consagrados modelos retoacutericos8 coloca na boca do general cartaginecircs o que deveriam ser alguns dos argumentos que se poderiam invocar contra o comportamento laquoimperialistaraquo da Urbe

laquoPovo cruel e soberbo tudo faz seu e segundo o seu arbiacutetrio pensa que eacute justo impor-nos com quem havemos de estar em guerra com quem em paz

5 Reliquias fusi exercitus ualidissima ciuitas Lancia excepit ubi cum locis adeo certatum est ut cum in captam urbem faces poscerentur aegre dux impetrauerit ueniam (58) ut uictoriae Romanae stans potius esset quem incensa monumentum (Flor 23357-58)

6 hellip cumque milites circumdatam urbem incendio adoriri pararent dux Carisius et a suis cessationem impetrauit incendii et a barbaris uoluntatem deditionis exegit studiose enim nitebatur integram atque incolumem ciuitatem uictoriae suae testem relinquere (Oros 62110)

7 Sobre este toacutepico v Salinas 19988 Uma recente anaacutelise sob esta perspetiva retoacuterica pode encontrar-se em Manchoacuten Goacutemez

2013

299

Amiacutelcar Guerra

circunscreve-nos e encerra-nos em limites de montes e vales que natildeo podemos ultrapassar e que nem sequer respeita as fronteiras que estabeleceraquo9

E invoca de seguida as afrontas mais recentes da fronteira do Ebro e da questatildeo saguntina recordando ao mesmo tempo o roubo da Sardenha e da Siciacutelia

Ainda que se trate como se disse de uma peccedila retoacuterica o patavino natildeo deixa de pocircr em relevo dois aspetos que marcam o comportamento de Roma e que se encontram bem documentados nos relatos de guerra referentes agrave Hispacircnia a imposiccedilatildeo de exigecircncias agraves comunidades locais por vezes aparentemente injus-tificadas ou natildeo suficientemente expliacutecitas nomeadamente de ordem territorial e o incumprimento dos tratados que a proacutepria Roma subscreve

Na literatura referente agraves guerras na Hispacircnia encontra-se com frequecircncia a expressatildeo concreta dessa poliacutetica de fixaccedilatildeo das populaccedilotildees da determinaccedilatildeo de um territoacuterio e das respetivas fronteiras ou da imposiccedilatildeo de restriccedilotildees no domiacute-nio territorial Uma das mais relevantes consequecircncias desta poliacutetica manifesta--se no croacutenico problema da laquofalta de terrasraquo e que se encontra insistentemente referida no caso dos Lusitanos mas tambeacutem em outras entidades Um exemplo ilustrativo pode encontrar-se num famoso passo de Apiano (Hisp 59) no qual se transcreve a explicaccedilatildeo de Galba para o permanente conflito com este povo laquohellip a esterilidade do solo disse e a pobreza vos forccedilam a fazer estas coisas mas eu vos darei terras feacuterteis por serdes aliados sem recursos e vos estabelecerei em campos abundanteshellipraquo

Embora esta questatildeo seja frequentemente sublinhada nem sempre foi devi-damente avaliada pela historiografia moderna que apresenta geralmente uma interpretaccedilatildeo demasiado dependente da visatildeo que enforma os textos claacutessicos

Na realidade como se sublinha bem neste passo natildeo se trata precisamente de um problema de uma carecircncia de terras mas de uma questatildeo relativa agrave quali-dade das mesmas e por isso se acentua a oposiccedilatildeo entre a laquoesterilidade do soloraquo que caracteriza o territoacuterio ocupado pelos lusitanos e as laquoterras feacuterteisraquo que lhes satildeo prometidas10

Naturalmente a razatildeo pela qual os Lusitanos se debatem com essa difiacutecil situaccedilatildeo reside no facto de o poder romano ter desenvolvido no Sul da Hispacircnia em particular numa boa parte do territoacuterio da atual Andaluzia uma poliacutetica de acesso aos solos feacuterteis que privilegiou os povos aliados

9 Crudelissima ac superbissima gens sua omnia suique arbitrii facit cum quibus bellum cum quibus pacem habeamus se modum imponere aequum censet Circumscribit includitque nos terminis montium fluminumque quos non excedamus neque eos quos statuit terminos observat (Liv 23445)

10 Para a anaacutelise desta questatildeo e deste passo em particular v Sayas Abengochea 1989 esp 711-14

300

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

Entre eles Apiano refere os Blasto-feniacutecios e Coacutenios e certamente neles tambeacutem se integram os Turdetanos entre os quais podemos encontrar como arqueacutetipo Astolpas representante de uma proacutespera elite colaboracionista Deste modo essa regiatildeo proverbialmente rica no domiacutenio agriacutecola torna-se progressivamente inacessiacutevel aos que natildeo aceitam a influecircncia romana O contraste entre a natureza do territoacuterio controlado por romanos e lusitanos transparece igualmente num dos toacutepicos que a literatura associa a estes uacuteltimos o facto de estes serem populaccedilotildees que habitam essencialmente as zonas montanhosas Naturalmente esta circunstacircncia natildeo pode resultar de uma opccedilatildeo expressamente feita por essa entidade mas decorre do proacuteprio processo de conquista e da pressatildeo militar que os romanos exercem sobre eles empurrando-os para essa situaccedilatildeo

Voltando ao texto do discurso de Aniacutebal parece claro que na ideia do patavino o mundo lusitano se apresenta como uma realidade pobre e agreste circunstacircncia que anda associada ao caraacutecter belicoso deste povo Por essa razatildeo a promessa do general puacutenico de uma campanha proveitosa em tudo diferente das difiacuteceis accedilotildees anteriores in vastis Lusitaniae Celtiberiaeque montibus11 pode servir precisamente para sublinhar a dicotomia entre a pobreza destes e a riqueza dos povos da Cisalpina e da Itaacutelia

Pode colher-se nos textos claacutessicos uma ideia a da existecircncia de uma espeacutecie de determinismo que faz com as populaccedilotildees das regiotildees mais inoacutespitas natildeo sejam apenas mais pobres mas tambeacutem por essa razatildeo constroem um outro modelo de vida no qual a praacutetica da pilhagem constitui uma resposta agraves suas carecircncias Em consequecircncia disso desenvolveram capacidades especiais estando por isso mais preparadas para a guerra uma vez que o seu modelo de sobrevivecircncia passa por aquilo que as fontes designam de forma pejorativa como latrocinium o laquobandoleirismoraquo

Esta forma de caracterizar o mundo lusitano teve uma ampla difusatildeo na literatura claacutessica continuada por um conjunto muito diversificado de consideraccedilotildees na historiografia moderna especialmente nas uacuteltimas deacutecadas12

A alusatildeo a estes dois povos ibeacutericos deve corresponder nestas circunstacircncias a uma elaboraccedilatildeo histoacuterica marcada pelo anacronismo Tito Liacutevio recupera os seus conhecimentos da realidade histoacuterica subsequente (especialmente da segunda metade do seacutec II a C mas tambeacutem no seacutec I a C) em que os confrontos com Lusitanos e Celtiberos se registam amplamente nas fontes deixando a impressatildeo de que estes povos colocaram em seacuterias dificuldades os exeacutercitos de Roma Deste modo tambeacutem os puacutenicos teriam

11 Liv 2143812 Sobre o tema v Garciacutea y Bellido 1945 Clavel-Leacutevecircque 1978 Sayas Abengochea 1989

Vallejo Girveacutes 1994 Saacutenchez-Corriendo 1997 Goacutemez Fraile 1999 Saacutenchez Moreno 2006 Riess 2011 Vives Ferrer 2015

301

Amiacutelcar Guerra

enfrentado tais dificuldades que a empresa que se seguia seria certamente mais faacutecil e proveitosa

A inclusatildeo da referecircncia a essas entidades resulta mais do processo de construccedilatildeo retoacuterica e dos elementos nela incluiacutedos do que de circunstacircncias histoacutericas concretas reportaacuteveis a um periacuteodo precedente em que se regista-riam conflitos especiacuteficos entre puacutenicos celtiberos e lusitanos Esta observaccedilatildeo pretende pois chamar a atenccedilatildeo para o contexto do que se apresenta como a primeira referecircncia aos Lusitanos e que marcaria a forma como esta entidade entra na Histoacuteria Haacute que ponderar sempre as informaccedilotildees relativas a periacuteodos precedentes e em particular quando constituem elementos tiacutepicos de uma nar-rativa histoacuterica como os discursos naturalmente sempre pontuados por visotildees que correspondem mais agrave perspetiva do tempo que agraves condiccedilotildees vividas alguns seacuteculos antes Neste caso uma discrepacircncia de dois seacuteculos pode fazer bastante diferenccedila e esta pode passar despercebida a quem transmite a informaccedilatildeo A construccedilatildeo discursiva de Liacutevio poderaacute ser tributaacuteria de relatos correspondentes aos conflitos de periacuteodo cesariano que de alguma forma evocam a expressatildeo usada por Tito Liacutevio para definir a accedilatildeo do exeacutercito como uma pouco proveitosa perseguiccedilatildeo de rebanhos nas vastas montanhas da Lusitacircnia e da Celtibeacuteria (in vastis Lusitaniae Celtiberiaeque montibus pecora consectando) Esta referecircncia natildeo deixa de recordar algumas circunstacircncias particulares da incursatildeo de Ceacutesar na Lusitacircnia mais concretamente no monte Hermiacutenio conhecidas pelo texto Diacuteon Caacutessio13 onde se explica como os habitantes dessa regiatildeo procuraram per-turbar a accedilatildeo dos exeacutercitos romanos enviando agrave frente os seus rebanhos

3 Deacutecimo Juacutenio Bruto entre os Braacutecaros olhares sobre o he-roiacutesmo feminino na Hispacircnia

A construccedilatildeo de uma imagem do mundo ocidental parece resultar igual-mente com bastante clareza do conhecido episoacutedio da incursatildeo de Deacutecimo Juacutenio Bruto no mundo galaico a que se dedica aqui uma especial atenccedilatildeo Este eacute-nos apresentado de forma mais sugestiva por Apiano o qual inclui na sua nar-rativa alguns aspetos que contribuem para consolidar a ideia de que este autor transmite uma imagem complexa e por assim dizer mais equilibrada de que outros autores como Tito Liacutevio na qual se cruzam aparentemente perspetivas contrastantes a respeito dos povos locais

Haacute alguns anos analisando precisamente a imagem que este autor de liacuten-gua grega nos transmite na sua obra especialmente na dedicada agraves guerras na Hispacircnia Goacutemez Espelosiacuten14 chamava a atenccedilatildeo para esses contrastes de um lado pesaria a sua admiraccedilatildeo por Roma e pelo impeacuterio que construiu pelo seu

13 DC 3752514 Especialmente em Goacutemez Espelosiacuten 2009

302

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

contributo para a construccedilatildeo de um mundo mais unitaacuterio e integrador mais pa-ciacutefico e desenvolvido correspondendo bem agrave ideologia que o modelo augustano tinha elaborado e do qual participam igualmente outros autores na sua situaccedilatildeo como Estrabatildeo do outro a simpatia manifestada por alguns aspetos do caraacutecter ou atuaccedilatildeo dos opositores de Roma

Apesar de este autor grego se incluir entre os que admiram as reali-zaccedilotildees dos romanos ref lete bem a complexidade da sua situaccedilatildeo cultural revelando perspetivas sobre os acontecimentos que podem parecer contradi-toacuterias Ainda que a dicotomia entre civilizado e baacuterbaro estruture a sua visatildeo deste mundo hispacircnico com natural preferecircncia pelo que genericamente caracteriza o primeiro natildeo deixa de valorizar alguns aspetos concretos de um mundo que em certa medida constitui a sua antiacutetese E esta sua posiccedilatildeo radica estruturalmente na sua dupla identidade a de romano e de alexan-drino15

Depois de descrever largamente as circunstacircncias e intenccedilotildees com que se realizava esta accedilatildeo o texto de Apiano refere-se por duas vezes aos confrontos e agraves suas circunstacircncias repetindo essencialmente as mesmas ideias No primeiro (Apian Hisp 71) escreve laquoTendo certamente isto em consideraccedilatildeo (Deacutecimo Juacutenio Bruto) devastou tudo o que estava pelo caminho (viu) mulheres comba-tendo com os homens perecendo ao seu lado sem soltarem um gemido mesmo no momento do golperaquo16 O segundo passo reproduz termos e expressotildees deste referindo os seus aspetos essenciais a combatividade desse povo o papel das mulheres na guerra e forma espantosa como enfrentam o combate e reagem ao golpe fatal17 No entanto a esta informaccedilatildeo junta uma outra circunstacircncia que parece impressionaacute-lo particularmente laquoDe todas as mulheres capturadas umas infligiram-se a morte outras mataram os filhos com as proacuteprias matildeos preferindo de longe a morte ao cativeiro (App Hisp 72)raquo

Conjugam-se portanto nestas breves narrativas vaacuterios aspetos que dife-renciam culturalmente o mundo greco-latino destas comunidades galaicas18 Em primeiro lugar surpreende o papel das mulheres nos contextos de guerra impossiacutevel de imaginar para um grego Os exeacutercitos eram por sua natureza constituiacutedos exclusivamente por homens e o papel da mulher no contexto social

15 Sobre a importacircncia desta condiccedilatildeo na construccedilatildeo da sua histoacuteria v Bucher 2000 passim16 ὁ μὲν δὴ ταῦτ ἐνθυμούμενος ἐδῄου τὰ ἐν ποσὶν ἅπαντα συμμαχομένων τοῖς ἀνδράσι τῶν

γυναικῶν καὶ συναναιρουμένων καὶ οὔ τινα φωνὴν οὐδ᾽ ἐν ταῖς σφαγαῖς ἀφιεισῶν17 App Hisp 72 laquo(os Braacutecaros) eram um povo [muito belicoso] a par das mulheres armadas

tambeacutem eles combatiam e morriam com bravura natildeo cedendo nenhum deles natildeo voltando as costas e natildeo soltando um grito Das mulheres capturadas umas mataram-se a elas proacuteprias outras provocaram a dos seus filhos com as suas proacuteprias matildeos prezando mais a morte que o cativeiroraquo

18 Esta passagem de Apiano foi analisada sob diversas perspetivas nomeadamente em Mar-tiacutenez Lopes 1986 391 Goacutemez Espelosiacuten 1993 111 Alonso Troncoso 1996 61

303

Amiacutelcar Guerra

natildeo passava nunca pela participaccedilatildeo em atividades como a guerra Por esta ra-zatildeo a circunstacircncia de laquocombaterem ao lado dos homensraquo (συμμαχομένων τοῖς ἀνδράσι) coloca-as em paralelo com a condiccedilatildeo masculina e com a sua natureza o que seria necessariamente considerada uma situaccedilatildeo estranha agraves tradiccedilotildees do mundo laquocivilizadoraquo

Em segundo lugar sobressai a bravura com que elas enfrentavam a morte e especialmente o facto de natildeo laquosoltarem um gemido mesmo no momento do golperaquo Para aleacutem do facto de o combate ser por natureza acompanhado de incentivos e alarido espera-se que o momento em que o soldado eacute atingido seja marcado ao menos por uma manifestaccedilatildeo de dor Deste modo sendo insoacutelito para Apiano que estas mulheres enfrentem de um modo tatildeo silencioso essa situaccedilatildeo natildeo deixaraacute de ser valorizado pelo menos em determinadas leituras como uma marca de sentido positivo19

O contraste entre comportamento feminino em situaccedilotildees de conflito em alguns povos baacuterbaros e a realidade grega ou romana regista-se com alguma frequecircncia e encontra-se bem documentada em outras narrativas do processo de conquista da Hispacircnia sendo possiacutevel compreender diferentes facetas desse heroiacutesmo feminino Analisam-se de seguida algumas das ocorrecircncias mais sugestivas registadas em Iliturgi Sagunto Astapa20 e Salmantica

No que diz respeito agrave participaccedilatildeo feminina no combate o mais antigo episoacutedio eacute transmitido por Tito Liacutevio e reporta-se ao ataque romano a Iliturgi21 no ano 206 a C no qual se daacute conta que as mulheres e crianccedilas ajudavam os homens na guerra providenciando armamento ou transportando pedras para a reconstruccedilatildeo das muralhas (Liv 281913)22

Quanto ao temor de enfrentar a servidatildeo um exemplo paralelo regista--o para aleacutem de Liacutevio o proacuteprio Apiano ao descrever a tomada da cidade de Astapa que os romanos atacam por se manter fiel aos cartagineses laquoE compro-meteram com um juramento os cinquenta melhores a que logo que a cidade fosse tomada eliminariam as mulheres e crianccedilas lanccedilariam fogo (agrave pira) e de

19 Pode encarar-se a possibilidade de esta elevada belicosidade ou do extremismo das suas atitudes ser precisamente uma marca da sua cultura baacuterbara - v a este respeito algumas obser-vaccedilotildees em Marco 1993 e Aguilera 2012 545-46 Natildeo parece no entanto que seja esta vertente interpretativa seja a mais adequada neste caso

20 Uma anaacutelise comparativa destes trecircs primeiros casos de heroiacutesmo traacutegico pode encontrar--se em Pelletier 1987

21 Disputada longamente a sua localizaccedilatildeo foi estabelecida em meados do seacutec XX situando--se nas proximidades de Mengiacutebar (Jaeacuten) a cidade romana (Blanco et Lachica 1960) Para os mais recentes projetos de investigaccedilatildeo no siacutetio do Cerro de Maquiz e sua envolvecircncia v Lechuga et al 2015 tendo-se anunciado descobertas de vestiacutegios materiais (glandes pontas de catapulta) que corresponderiam ao cerco de Cipiatildeo

22 Sobre estes acontecimentos considerando fundamentalmente o papel das mulheres v Martiacutenez Loacutepez 1991 esp 249-50 Ruiz Montero et Jimeacutenez 2008 112

304

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

seguida matar-se-iam a si proacutepriosraquo (App Hisp 33)23 Este autor sublinha no final a atitude que tal comportamento suscitou no general romano Maacutercio o qual admirando τὴν ἀρετὴν τῶν Ἀσταπαίων poupou as suas casas

Em Liacutevio24 explica-se que essa situaccedilatildeo dramaacutetica acarretando inevita-velmente a perda da liberdade poderia acabar de dois modos ou com a morte honrosa (morte honesta) ou com a vergonhosa servidatildeo (infami seruitute) e naturalmente soacute a primeira atitude era digna25 De qualquer modo como jaacute sublinhou Agneacutes Pelletier26 a perspetiva de Liacutevio em relaccedilatildeo a esta ocor-recircncia encerra aspetos distintos e a valorizaccedilatildeo eventualmente positiva deste comportamento por outros autores dilui-se na constataccedilatildeo de que ela resulta mais da sua maacute consciecircncia da conscientia scelerum27 que se consubstanciava natildeo tanto no facto de terem sempre estado ao lado puacutenico mas antes por se entregaram ao bandoleirismo (latrocinio) realizando incursotildees em territoacuterio dos aliados de Roma (excursiones in finitimum agrum sociorum populi Roma-ni Liv 28223) Deste modo na perspetiva liviana a atitude dos habitantes de Astapa nada tinha de particularmente digno de apreccedilo mas resultava de sentimentos menos nobres determinados pelas circunstacircncias histoacutericas em que o cerco ocorria

A confrontaccedilatildeo das duas narrativas permite constatar que o texto de Api-ano reflete de forma mais evidente a duplicidade de perspetiva que a literatura claacutessica assume perante as comunidades que se confrontam com o mundo ro-mano onde esporadicamente se suscita uma admiraccedilatildeo por alguns traccedilos do seu caraacutecter E Apiano encontra-se naturalmente menos comprometido com a defesa da superioridade moral do imperialismo romano no confronto com os povos que vai submetendo

Tambeacutem neste caso de Astapa se tem discutido a eventual dependecircncia des-ta narrativa de alguns topoi da literatura claacutessica nomeadamente os que relatam os cercos de Sagunto pelos cartagineses (pertencente ao mesmo autor Liv 2114) e o de Abido por Filipe V (transmitida em Pol 1630-34)28 Inevitavelmente estas narrativas tecircm sempre algo de comum e alguns desses aspetos particulares no caso a escolha de 50 homens que perante juramento se comprometem a empreender uma seacuterie de accedilotildees decisivas29 podem constituir uma componente

23 Corresponde a Liv 2822 Sobre este episoacutedio v Eckstein 1995 48-51 Martiacutenez Loacutepez 1991 249-50 Goacutemez Espelosiacuten 2009 235-37

24 Liv 2822925 O passo pertinente diz hellip ut memores libertatis quae illo die aut morte honesta aut

seruitute infami finienda esset26 Pelletier 1989 113 no mesmo sentido Goacutemez Espelosiacuten 2009 23627 Liv 2822528 Especialmente em Walsh 1970 194-95 Walbank 1971 6029 Pol 1631 Liv 28227 App Hisp 33

305

Amiacutelcar Guerra

recuperada de outras descriccedilotildees de episoacutedios similares30Sobre a situaccedilatildeo que estes acontecimentos encerram se pronunciou tambeacutem

Garciacutea Riaza31 sustentando que apesar de algumas afinidades o caso saguntino descrito reuacutene um conjunto de especificidades que conferem um dramatismo peculiar a estas diferentes narrativas

Do mesmo modo as referecircncias da historiografia claacutessica ao cerco de Sal-mantica que acaba saqueada por Aniacutebal constituem um exemplo da intervenccedilatildeo feminina em contextos beacutelicos mas neste caso tambeacutem com peculiaridades que lhe conferem uma grande verosimilhanccedila Mais do que Plutarco32 eacute especialmente no relato de Polieno33 que se sublinha o papel combativo das mulheres as quais depois de conseguirem esconder as espadas dos inimigos entregam uma parte aos seus homens e combatem tambeacutem ao lado deles Sublinha-se neste caso a circunstacircncia de natildeo ser imaginaacutevel para os puacutenicos (e de igual forma para gregos e romanos) por razotildees culturais o envolvimento delas neste tipo de accedilotildees

De uma maneira geral o heroiacutesmo feminino eacute especialmente apreciado em narrativas que envolvem povos baacuterbaros ocidentais encontrando-se bem documentado na literatura claacutessica mesmo fora da Hispacircnia Neste sentido podem comparar-se estas particularidades com as que evidenciam mulheres germacircnicas em especial nos relatos de Taacutecito e Estrabatildeo Dessa confrontaccedilatildeo resulta claro que a coragem feminina revelada em territoacuterio dos Braacutecaros vai aleacutem da das suas congeacuteneres germacircnicas natildeo acompanham apenas os maridos na guerra mas pegam efetivamente em armas e o temor do cativeiro por parte das mulheres nobres natildeo eacute apenas consciente34 mas chega ao ponto extremo de infligirem a morte aos filhos e si proacuteprias35

Esta facilidade com que estas mulheres se dispotildeem a enfrentar a morte recorda o texto com que mesmo Apiano descreve os uacuteltimos momentos da resistecircncia de Numacircncia (App Hisp 96-97) laquoMas eles deixaram passar o dia acordando que muitos deles ainda se agarravam agrave liberdade e desejavam tirar-se a sua proacutepria vida (97) Tamanho era o amor pela liberdade e pela bravura nesta cidade baacuterbara e pequenaraquo36

30 Em relaccedilatildeo a estas consideraccedilotildees se levantaram algumas objeccedilotildees especialmente em Ecks-tein 1995 48-51 onde se sustenta que o texto de Liacutevio depende mais da descriccedilatildeo que Poliacutebio faz do cerco de Astapa

31 Garciacutea Riaza 1998-1999 208-932 Plut Moral 248E-249B33 Polyaen 74834 Tac Ger 835 App Hisp 72 Para uma circunstanciada anaacutelise da imagem da mulher germacircnica nos dois

autores citados v especialmente Gallego Franco 1999 62-63 onde se analisa genericamente o papel feminino na guerra e as suas atitudes perante o cativeiro pondo-se em paralelo precisa-mente com o que ocorre na Hispacircnia setentrional

36 Para uma anaacutelise deste episoacutedio enquanto exemplo de apego agrave liberdade da parte dos povos hispacircnicos v Goacutemez Espelosiacuten (2009 237-38) onde se considera igualmente a questatildeo

306

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

Deparamo-nos sempre com a dificuldade em estabelecer ateacute que ponto es-tas narrativas natildeo se inserem numa tradiccedilatildeo literaacuteria que veicula determinadas imagens que verificamos repetirem-se em outros contextos ndash como eacute o caso das consideraccedilotildees a respeito das mulheres germacircnicas segundo Taacutecito e Estrabatildeo37

Esse heroiacutesmo assume-se como realidade que se transmite por regra como caracteriacutestico de um coletivo tendo como atores uma comunidade mais ou menos extensa com frequecircncia todo o conjunto dos habitantes de uma cidade afetada por um conflito com Roma Deste modo soacute raramente essa realidade assume um caraacutecter individual Embora tanto uma circunstacircncia como outra sejam no contexto literaacuterio pertinentes para a caracterizaccedilatildeo dos povos hispacircnicos a primeira contribui de forma mais substancial para afirmar o caraacutecter das comunidades locais e definir a sua alteridade

No contexto em que a anaacutelise da historiografia moderna tem sublinhado precisamente o quadro mental em que as narrativas de conquista se inserem estes exemplos mostram a diversidade das perspetivas e a complexidade que envolve uma anaacutelise deste conjunto de informaccedilatildeo literaacuteria Nunca se pode perder de vista que a valorizaccedilatildeo das qualidades militares dos opositores de Roma constitui em si uma forma de acentuar o valor da sua empresa imperialista Em certa medida tambeacutem a exaltaccedilatildeo de certos aspetos da cultura destes povos natildeo questiona de modo algum a superioridade (militar e moral) romana nem a legitimidade do seu programa expansionista Por isso mesmo a extensatildeo da difusatildeo de uma cultura de que gregos e romanos se orgulham constitui tambeacutem uma vantagem para os povos submetidos que por esta via satildeo promovidos a uma outra condiccedilatildeo mais elevada

Trata-se no fundo de uma situaccedilatildeo que acaba por ter paralelos nos desiacutegnios do programa expansionista portuguecircs que ao alargar a feacute e o impeacuterio encara o contacto com uma boa parte desses povos com um contributo decisivo para a sua salvaccedilatildeo

da eventual dependecircncia de Apiano em relaccedilatildeo agraves suas fontes37 Gallego Franco (1999 62) analisa a informaccedilatildeo das fontes claacutessicas que aludem agraves mu-

lheres germacircnicas que acompanham os homens em campanha lutam com eles defende com especial forccedila a sua liberdade

307

Amiacutelcar Guerra

Bibliografia

Aguilera Duraacuten T 2012 ldquoUna visioacuten historiograacutefica alternativa la deconstruccioacuten del estereotipo del baacuterbaro prerromanordquo Antesteria 1543-55

Alonso Troncoso V 1996 ldquoPrimeras etapas en la conquista romana de Gallaeciardquo Militaria 853-66

Alvar Ezquerra J 1997 ldquoHeacuteroes ajenos Aniacutebal y Viriatordquo In Heacuteroes y antiheacuteroes en la Antiguumledad claacutesica eds J Alvar e J Mordf Blaacutezquez 137-53 Madrid Caacutetedra

Blanco Frejeiro A e G Lachica Casinello 1960 ldquoDe situ Iliturgisrdquo Archivo Espantildeol de Arqueologia 33 (101-102)193-96

Bermejo Barrera J C 1986 ldquoEl erudito y la barbarierdquo In Mitologiacutea y Mitos de la Hispania Prerromana Vol 2 13-43 Madrid Akal

Bucher G S 2000 ldquoThe Origins Program and Composition of Appian s Roman Historyrdquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 130411-58

Clavel-Leacutevecircque M 1978 ldquoBrigandage et piraterie repreacutesentations ideacuteologiques et pratiques impeacuterialistes au dernier siegravecle de la Reacutepubliquerdquo Dialogues drsquohistoire ancienne 417-31

Cruz-Andreotti G 2002 ldquoIberia e iberos en las fuentes histoacuterico-geograacuteficas griegas una propuesta de anaacutelisisrdquo Mainake 24153-80

Dauge Y A 1981 Le Barbare Recherches sur la conception romaine de la barbarie et de la civilisation Bruxelles Latomus

Duplaacute A M Otxoa e C Ortiz de Urbina Montoya 1988 ldquoCivilizacioacuten y barbarie en la Historiografiacutea republicana el caso de Hispania y los pueblos del norterdquo In Actas del Congreso de Historia de Euskal Herria I II Congreso Mundial Vasco 165-72 San Sebastiaacuten Txertoa

Eckstein A M 1995 Moral Vision in the Histories of Polybius Berkeley University of California Press

Gallego Franco H 1999 ldquoLa imagen de la lsquomujer baacuterbararsquo a propoacutesito de Estraboacuten Taacutecito y Germaniardquo Faventia 21 (1)55-63

Garciacutea Moreno L A 2005 ldquoPolibio y la creacioacuten del estereotipo de lo Hispano en la etnografiacutea y la historiografiacutea heleniacutesticasrdquo In Polibio y la Peniacutensula Ibeacuterica ed J Santos e E Torregaray 339-58 Bilbao Universidad del Paiacutes Vasco

mdashmdashmdash 1989 ldquoLa Hispania anterior a nuestra era verdad ficcioacuten y prejuicio en la Historiografiacutea antigua y modernardquo In Actas del VII Congreso Espantildeol de Estudios Claacutesicos Vol 3 17-43 Madrid Sociedad Espantildeola de Estudios Claacutesicos Editorial de la Universidad Complutense

308

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

mdashmdashmdash 1987 ldquoPresupuestos ideoloacutegicos de la actuacioacuten de Roma durante el proceso de la conquista de Hispaniardquo Gerioacuten 5211-44

Garciacutea Riaza E 1998-1999 ldquoDerecho de guerra romano en Hispania (218-205 a C)rdquo Memorias de Historia Antigua 19-20199-224

Garciacutea y Bellido A 1945 ldquoBandas y guerrillas en las luchas con Romardquo Hispania 21547-604

Goacutemez Espelosiacuten F J 2009 ldquoContradicciones y conflictos de identidad en Apianordquo Gerioacuten 27231-50

mdashmdashmdash 1996 ldquoEstrategias narrativas en la Historia de Apiano Algunos ejemplosrdquo Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa Classe di Lettere e Filosofia seacuterie 4 1 (1)103-17

mdashmdashmdash 1993 ldquoLa imagen del baacuterbaro en Apiano La adaptabilidad de un modelo retoacutericordquo Habis 24105-24

Goacutemez Fraile J Mordf 1999 ldquoMercenariado y bandolerismo en Celtiberia Dos cuestiones desenfocadasrdquo In IV Simposio sobre los Celtiacuteberos Economiacutea Homenaje a JL Argente Oliver (Daroca Septiembre 1997) ed F Burillo 503-9 Zaragoza Institucioacuten Fernando el Catoacutelico

Gonzaacutelez Ballesteros I 2009 ldquoEl estereotipo del baacuterbaro y la imagen de la civilizacioacuten en el occidente romano en la Geografiacutea de Estraboacutenrdquo Espacio Tiempo y Forma 22 seacuterie 2 22249-60

Gracia F 2009 Furor barbari Celtas y germanos contra Roma (ss IV aC-I dC) Barcelona Versatil

Hall E 1989 Inventing the barbarian Greek self-definition through Tragedy Oxford Clarendon Press

Hoz Bravo J de 2000 ldquoLa etnografiacutea de los pueblos de Iberia en Diodoro V 33-34 y el problema de sus fuentesrdquo In Epieikeia Studia graeca in memoriam Jesus Lens Tuero ed M Alganza 221-38 Granada Athos-Pergamos

Jones T e A Ereira 2008 Roma y los baacuterbaros Una historia alternativa Barcelona Critica

Manchoacuten Goacutemez R 2013 ldquoLa arenga de Aniacutebal en la batalla del Tesino (Liv XXI 43-44) como ejemplo del munus oratoris de Tito Liviordquo Florentia Iliberritana 2487-109

Martiacutenez Loacutepez C 1991 ldquoLas mujeres en la conquista y romanizacioacuten de la Hispania Meridionalrdquo Florentia Iliberritana 1245-54

mdashmdashmdash 1986 ldquoLas mujeres de la Peniacutensula Ibeacuterica durante la conquista cartaginesa y romanardquo In La Mujer en el mundo antiguo Actas de las V Jornadas de Investigacioacuten Interdisciplinaria Seminario de Estudios de la Mujer ed E Garrido Gonzaacutelez 387-96 Madrid Universidad Autoacutenoma de Madrid

Lechuga Chica M Aacute J P Belloacuten Ruiacutez e C Rueda Galaacuten 2015 ldquoNuevas

309

Amiacutelcar Guerra

propuestas de actuacioacuten para el estudio del oppidum de Iliturgi desde la arqueologiacutea del territoriordquo Revista Atlaacutentica-Mediterraacutenea 17211-21

Marco Simoacuten F 1993 ldquoFeritas Celtica imagen y realidad del baacuterbaro claacutesicordquo In Modelos ideales y praacutecticas de vida en la Antiguumledad claacutesica ed Eacute Falqueacute e F Gascoacute 141-66 Sevilla Universidad de Sevilla Universidad Internacional Meneacutendez Pelayo

Mitchell L 2007 Panhellenism and the barbarian in Archaic and Classical Greece Swansea The Classical Press of Wales

Pelegriacuten J 2003 Barbarie y frontera Roma y el Valle Medio del Ebro durante los siglos IIII aC Zaragoza Universidad de Zaragoza

Pelletier A 1987 ldquoSagonte Iliturgi Astapa trois destins tragiques vus de Romerdquo Meacutelanges de la Casa de Velaacutezquez 23 (1)107-24

Plaacutecido Suaacuterez D 1987-1988 ldquoEstraboacuten III el territorio hispano la geografiacutea griega y el imperialismo romanordquo Habis 18-19243-56

Revell L 2009 Roman imperialism and local identities Cambridge Cambridge University Press

Riess W 2011 ldquoThe roman bandit (latro) as criminal and outsiderrdquo In Social relations in the Roman World ed M Peachin 693-714 Oxford Oxford University Press

Ruiz Montero C e A M Jimeacutenez 2008 ldquoMulierum virtutes de Plutarco aspectos de estructura y composicioacuten de la obrardquo Myrtia 23101-20

Salinas de Friacuteas M 1999 ldquolaquoDe Polibio a Estraboacuten Los celtas hispanos en la historiografiacutea claacutesicardquo In Homenaje al profesor Montenegro Estudios de Historia Antigua ed A Alonso S Crespo T Garabito e Mordf E Solovera 191-203 Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial Universidad de Valladolid

mdashmdashmdash 1998 ldquoLa guerra de los caacutentabros y astures la etnografiacutea de Espantildea y la propaganda de Augustordquo In ldquoRomanizacioacutenrdquo y ldquoReconquistardquo en la Peniacutensula Ibeacuterica nuevas perspectivas eds Mordf J Hidalgo D Peacuterez e M J R Gervaacutes MJR 155-70 Salamanca Universidad de Salamanca

Saacutenchez-Moreno E 2011 ldquoDe la resistencia a la negociacioacuten acerca de las actitudes y capacidades de las comunidades hispanas frente al imperialismo romanordquo In De fronteras a provincias Interaccioacuten e integracioacuten en Occidente (ss III-I a C) ed E Garciacutea Riaza 97103 Palma de Mallorca Universitat de les Illes Balears

mdashmdashmdash 2006 ldquoEx pastore latro ex latrone duxhellip Medioambiente guerra y poder en el occidente de Iberiardquo In War and territory in the Roman World ed T Ntildeaco del Hoyo e I Arrayaacutes Morales 55-79 Oxford Archeopress

Saacutenchez Moreno E e T Aguilera Duraacuten 2013 ldquoBaacuterbaros y vencidos los otros en la conquista romana de Hispania Notas para una deconstruccioacuten

310

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

historiograacuteficardquo In Debita Verba Estudios en homenaje al profesor Julio Mangas Manjarreacutes ed R M Cid Loacutepez e E Garciacutea Fernaacutendez 225-44 Oviedo Servicio de Publicaciones de la Universidad de Oviedo

Saacutenchez-Corriendo Jaeacuten J 1997 ldquoiquestBandidos lusitanos o pastores trashumantes Apuntes para el estudio de la trashumancia en Hispaniardquo Hispania Antiqua 2169-92

Sayas Abengochea J J 1989 ldquoEl bandolerismo lusitano y la falta de tierrasrdquo Revista de la Facultad de Geografiacutea e Historia 4701-14

Thollard P 1987 Barbarie et civilisation chez Strabon Eacutetude critique des Livres III et IV de la Geographie Paris Les Belles Lettres

Vallejo Girveacutes M 1994 ldquoEl recurso de Roma al bandidaje hispanordquo Espacio Tiempo y Forma 7165-73

Vives Ferrer G 2015 ldquoEl fenoacutemeno del bandolerismo como sublevacioacuten contra Roma el caso de Hispania en la eacutepoca republicanardquo Antesteria 4187-97

Walbank F W 1971 ldquoLivyrsquos Fourth and Fifth Decadesrdquo In Livy ed T A Dorey 47-72 London Toronto Routledge Kegan Paul

Walsh P G 1970 Livy his historical aims and methods Cambridge Cambridge University Press

Woolf G 2011 Tales of the Barbarians Ethnography and Empire in the Roman West Oxford Wiley-Blackwell

311

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio1 (A look over imperial power in Suetonius)

Joseacute Luiacutes Lopes BrandatildeoUniversidade de Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

(iosephusflucpt ORCID 0000-0002-3383-2474)

Resumo - Ao escrever as Vidas dos Ceacutesares Suetoacutenio torna patente a sua interpretaccedilatildeo sobre o poder imperial e a forma como este deve ser exercido Trata-se verdadeira-mente de um novo e melhor Estado fundado por Augusto mas que assenta numa sucessatildeo mal definida e imprevisiacutevel na qual o destino desempenha o seu papel Mas tal poder sendo ilimitado e potencialmente incontrolaacutevel estaacute dependente do caraacutecter de quem o possui que pode oscilar entre um comportamento tiracircnico e individualista e uma atitude paternal e por consequecircncia universalista que abarca todas as aacutereas de intervenccedilatildeo governativa todas as ordens e todos os povos

Palavras-chave biografia Suetoacutenio poder imperadores Impeacuterio Romano

Abstract ndash In writing the Lives of the Caesars Suetonius makes clear his interpretation on imperial power and the way in which it must be exercised For him the empire founded by Augustus is truly a new and better state but based on an ill-defined and unpredicta-ble succession in which fate plays its part Such power being unlimited and potentially uncontrollable is dependent on the character of the possessor which can range from a tyrannical and individualistic behaviour to a paternal and therefore universalist attitude encompassing all areas of government intervention all Orders and all people

Keywords biography Suetonius power emperors Roman Empire

Suetoacutenio natildeo questiona o poder imperial trata-se de uma realidade incon-testaacutevel e para ele desejaacutevel No entanto tal poder concretiza-se em imperadores vivos e estaacute dependente deles com as suas virtudes e viacutecios A opccedilatildeo pela bio-grafia para transmitir a histoacuteria poliacutetica equivale precisamente a reconhecer definitivamente que a poliacutetica da Roma imperial jaacute natildeo era determinada pelo ciclo anual da eleiccedilatildeo dos magistrados mas pelo ciclo de vida de cada priacutencipe A oposiccedilatildeo tradicional da historiografia entre a virtude do passado e a decadecircn-cia do presente2 eacute substituiacuteda pelo confronto entre bons e maus imperadores ou entre o que cada qual tem em si de positivo e de negativo3

1 Trabalho desenvolvido no acircmbito do projeto UIDELT001962013 financiado pela FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia

2 Veja-se Giua 1990 538 Muito do material aqui usado eacute reformulado a partir de Brandatildeo 2009b

3 Consequentemente accedilotildees que para o historiador antigo informam a trama narrativa aparecem dispersas por rubricas de virtudes e viacutecios Veja-se Wallace Hadrill 1984 143

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_17

312

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

1 Uma nova ordem (status)

Para Suetoacutenio o poder imperial corresponde a um novo regime poliacutetico explicitamente distinto da Repuacuteblica mas que se comeccedila a desenhar com Juacutelio Ceacutesar e por isso inicia com ele o conjunto das Vidas Os primeiros capiacutetulos perdidos da Vida do ditador talvez nos esclarecessem sobre o plano do bioacutegrafo tal como Taacutecito no iniacutecio dos Annales (1) nos explica a razatildeo porque comeccedila pelos uacuteltimos momentos da vida de Augusto Ao comeccedilar a redaccedilatildeo das Vidas por Juacutelio Ceacutesar e natildeo por Augusto4 Suetoacutenio coloca a toacutenica na natureza mo-naacuterquica da transformaccedilatildeo que trata assim desde o iniacutecio5 O bioacutegrafo sublinha a continuidade nos objetivos apesar da distinccedilatildeo nos meios para os concretizar

Embora o proacuteprio Augusto afirme nas Res Gestae (34) que transferiu a res publica do seu poder para o arbitrium do senado e do povo romano Suetoacutenio realista diz que o imperador pensou restabelecer a Repuacuteblica mas que pondera-dos os perigos a que ele e o Estado ficariam expostos optou por mantecirc-lo em seu poder E de seguida o bioacutegrafo transmite a palavra a Augusto atraveacutes de um eacutedito onde este se apresenta como o autor de uma nova ordem6

laquolsquoAssim me seja permitido consolidar o Estado satildeo e salvo nos seus funda-mentos e daiacute recolher o fruto que almejo de ser proclamado autor do melhor regime e de levar comigo ao morrer a esperanccedila de que permaneceratildeo no seu lugar os alicerces do estado que eu tiver lanccediladorsquo Ele mesmo se encarregou a si proacuteprio do voto esforccedilando-se de todos os modos para que ningueacutem ficasse insatisfeito com o novo regimeraquo

Assim introduz Suetoacutenio nas Vidas dos Ceacutesares a ideia do principado ndash um nouus status Neste contexto natildeo emprega o termo princeps oriundo da tradiccedilatildeo republicana7 Para caracterizar a preeminecircncia de Augusto usa o termo auctor de modo a salientar que se trata de uma ordem nova baseada na auctoritas neste caso congruente com o que Augusto afirma no referido passo das Res Gestae de que estaacute acima de todos em autoridade e natildeo em poder Suetoacutenio tambeacutem

4 Plutarco escreveu Vidas de oito imperadores de Augusto a Viteacutelio de que soacute restam as de Galba e Otatildeo Taacutecito comeccedila pela ascensatildeo de Tibeacuterio porque acha que para o governo de Augusto existiam jaacute autores com engenho (Ann 11)

5 Suetoacutenio ao comeccedilar por Ceacutesar vem consagrar um cacircnone de imperadores estabelecido na eacutepoca de Trajano Cf Tac Ann 133 Plin Ep 535 App Praef 6 Veja-se La Penna 1987 294

6 Aug 282 lsquoIta mihi saluam ac sospitem rem p sistere in sua sede liceat atque eius rei fructum percipere quem peto ut optimi status auctor dicar et moriens ut feram mecum spem mansura in uestigio suo fundamenta rei p quae iecerorsquo Fecitque ipse se compotem uoti nisus omni modo ne quem noui status paeniteret

7 E em Cal 221 Suetoacutenio fala de uma species principatus demonstrando ter consciecircncia de que o nome de princeps e por consequecircncia principatus eacute uma forma haacutebil de iludir os legalistas Se bem que neste passo tambeacutem parece ser uma forma de caracterizar negativamente a fase considerada mais positiva do principado de Caliacutegula Veja-se Gascou 1984 783-85

313

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

natildeo expotildee a habilidade poliacutetica do fundador do principado mas a qualidade dos efeitos do seu projeto O intento depois abandonado de restaurar a Repuacuteblica inspira a Suetoacutenio um comentaacuterio que embora se mostre ambiacuteguo parece su-gerir aprovaccedilatildeo laquoeacute duvidoso se foi melhor o resultado ou a intenccedilatildeo8raquo isto eacute foi tatildeo correta a atitude de ponderar como foi afortunado o facto de natildeo levar avante o retorno ao Estado republicano9 Natildeo sugere que a ceacutelebre sessatildeo do senado de 27 aC fosse um golpe de teatro mas que se tratou de uma escolha racional o abandono ponderado de uma poliacutetica conservadora em proveito de uma adequa-ccedilatildeo realista aos tempos de que resultou um optimus status A expressatildeo parece evocar Trajano optimus princeps sobretudo se nos lembrarmos que as Vidas dos Ceacutesares terminam com o elogio do beatior e laetior status que viria depois de Domiciano graccedilas agraves virtudes dos principes seguintes10

2 Poder apoiado numa sucessatildeo imprevisiacutevel

Porque se trata de algo novo os problemas da sucessatildeo levantam-se de imediato com a morte de Augusto A suspeita de hipocrisia domina a narrativa da aclamaccedilatildeo de Tibeacuterio Provavelmente a sua hesitaccedilatildeo era sincera a sucessatildeo no principado era uma realidade sem precedentes A situaccedilatildeo do sucessor de Augusto era incoacutemoda pois tratava-se do herdeiro possiacutevel como se torna cla-ro pela transcriccedilatildeo de um excerto do testamento de Augusto11 Mas Suetoacutenio interpreta a hesitaccedilatildeo como uma farsa se aceitarmos a liccedilatildeo impudentissimus mimus12 (laquoAo principado embora natildeo hesitasse em ocupaacute-lo imediatamente e em exercecirclo ndash tomou ateacute para si uma guarniccedilatildeo de soldados o que lhe conferia poder e uma forma de soberania ndash recusou-o longo tempo com uma farsa assaz descaradahellipraquo) Para o bioacutegrafo o uso de guarda-costas mostra que Tibeacuterio deseja o poder13 mas recusa-o hipocritamente14 para depois o aceitar com

8 Aug 281 De reddenda re p bis cogitauit primum post oppressum statim Antonium memor obiectum sibi ab eo saepius quasi per ipsum staret ne redderetur ac rursus taedio diuturnae ualitudinis cum etiam magistratibus ac senatu domum accitis rationarium imperii tradidit sed reputans et se priuatum non sine periculo fore et illam plurium arbitrio temere committi in reti-nenda perseuerauit dubium euentu meliore an uoluntate

9 Segundo a interpretaccedilatildeo de Rolfe [1913-1914] 1979 1164 nb (acolhida por Gascou 1984 719) foram igualmente bons a intenccedilatildeo de Augusto de renunciar agrave Repuacuteblica e os efeitos do novo regime

10 Dom 23211 Tib 2312 Tib 24 Principatum quamuis neque occupare confestim neque agere dubitasset et statione

militum hoc est ui et specie dominationis assumpta diu tamen recusauit impudentissimo mimo Mimus eacute uma conjetura de Gronouius por comparaccedilatildeo com Cal 452 Otho 32 os manuscritos apresentam animo

13 A presenccedila de guarda-costas era associada a tirania desde o tempo dos Pisiacutestratos Veja-se Lindsay 1995 109 Eacute seguida aqui uma tradiccedilatildeo hostil a Tibeacuterio veja-se Gascou 1984 264-65

14 Tibeacuterio talvez estivesse a ser sincero tinha jaacute 54 anos e natildeo podia ter pretensotildees de emular

314

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

suspeita condescendecircncia15 (laquoFinalmente como que forccedilado e queixando-se da infeliz e pesada servidatildeo que lhe era imposta aceitou o impeacuterio desde que natildeo deixasse de poder acalentar a esperanccedila de um dia o abandonar Satildeo estas as palavras do proacuteprio lsquoateacute eu chegar agrave idade em que vos possa parecer justo dar algum repouso agrave minha velhicersquoraquo)16

Uma sucessatildeo indefinida gera a tentaccedilatildeo do crime e a primeira viacutetima da luta pela sucessatildeo imperial seria Agripa Poacutestumo cujo assassinato teraacute precedido a divulgaccedilatildeo da morte de Augusto17 Mas Suetoacutenio em alguns casos descortina crime onde este natildeo parece existir Assim diferentemente do relato da morte de Tibeacuterio na Vida do proacuteprio18 a suposta responsabilidade de Caliacutegula na supres-satildeo in extremis do antecessor aparece agravada na Vida do uacuteltimo19 de forma a transformar a sucessatildeo numa espeacutecie de usurpaccedilatildeo criminosa Da mesma forma se na Vida de Claacuteudio a morte do imperador eacute atribuiacuteda agrave accedilatildeo de Agripina20 na Vida de Nero insinua-se a responsabilidade deste na morte do pai adotivo para se concluir que se natildeo foi o auctor pelo menos foi cuacutemplice (conscius)21 Tambeacutem a ascensatildeo de Domiciano ao governo do impeacuterio eacute marcada pela hostilidade em relaccedilatildeo a Tito E se na Vida deste a morte eacute apenas atribuiacuteda agrave doenccedila na Vida de Domiciano22 sugere-se que eacute apressada por accedilatildeo (ou omissatildeo) do sucessor que abandona o irmatildeo na agonia da doenccedila23

Suetoacutenio natildeo defende explicitamente a adoccedilatildeo enquanto escolha do melhor como faz Taacutecito a propoacutesito da escolha de Pisatildeo por parte de Galba24 mas entre

Augusto Mas tambeacutem era difiacutecil contrariar a disposiccedilotildees testamentaacuterias deste Provavelmente Tibeacuterio precisava de tempo para definir o seu poder Veja-se Seager 1972 56-57 Syme 1974 485-86 Levick 1999 76

15 Tib 24 Tandem quasi coactus et querens miseram et onerosam iniungi sibi seruitutem recepit imperium nec tam aliter quam ut depositurum se quandoque spem faceret Ipsius uerba sunt lsquodum ueniam ad id tempus quo uobis aequum possit uideri dare uos aliquam senectuti meae requiemrsquo

16 Para Timonen 1993 133-48 Suetoacutenio em comparaccedilatildeo com Taacutecito (Ann 491) exagera a hesitaccedilatildeo na mira de vituperar o principado de Tibeacuterio desde o iniacutecio

17 Tib 2218 Tib 73219 Cal 122 Cf Tib 732 O facto de autores como Fiacutelon de Alexandria e Flaacutevio Josefo

natildeo atribuiacuterem a Caliacutegula responsabilidade na morte de Tibeacuterio deve ser tomado a favor da inocecircncia Taacutecito (Ann 6504-5) atribui a Maacutecron a iniciativa de apressar a morte do velho imperador e Diacuteon Caacutessio (58283) sustenta que a ordem partiu de Caliacutegula mas nenhum fala da participaccedilatildeo directa no ato de sufocar o imperador

20 Cl 4421 Nero 3322 Dom 2323 Esta ideia eacute secundada por Diacuteon Caacutessio (66262) segundo o qual Domiciano para apres-

sar o fim colocou Tito num cofre com gelo sob o pretexto de que necessitava de refrigeraccedilatildeo Segundo Aureacutelio Victor (Caes 105) Tito foi envenenado pelo irmatildeo Veja-se Martin 1991 196 Gascou 1984 385-86

24 Hist 115-16

315

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

os sucessores de Augusto todas as aclamaccedilotildees parecem ser problemaacuteticas agrave ex-ceccedilatildeo de Tito que manteacutem o poder que jaacute partilhava com o pai Poreacutem longe de contestar a aclamaccedilatildeo o bioacutegrafo aceita os factos como satildeo porque determinados por forccedilas transcendentes o que nos remete para outro aspeto determinante do poder imperial

21 Poder dependente do fatum ou do acasoTibeacuterio que recorria aos conselhos do astroacutelogo Trasilo estava convencido

de que tudo era governado pelo destino25 Na verdade o preacircmbulo do referido testamento de Augusto vem revelar que foi a atrox fortuna que ao arrebatar os filhos de Juacutelia Gaio e Luacutecio provocou a escolha de Tibeacuterio como herdeiro E a voz corrente referida a seguir de que a escolha se deve agrave necessitas transforma o advento de Tibeacuterio num acontecimento fatiacutedico que o proacuteprio Augusto natildeo evitou (ou ateacute acentuou) e que prenuncia males piores26 Tito advertiraacute uns conspiradores de que eacute ao fatum que cabe a tarefa de conceder o principado27 Com a construccedilatildeo da ponte de Barcas em Baias Caliacutegula aleacutem de alardear o seu poder sobre os elementos e sobre os povos parece querer simbolizar a sua vitoacuteria sobre o destino uma das explicaccedilotildees para o evento foi o facto de o astroacutelogo Trasilo ter dito a Tibeacuterio que laquoGaio seria tanto imperador como atravessaria o golfo de Baias a cavaloraquo28 Este fatalismo estaacute tambeacutem presente na generalizaccedilatildeo abusiva que encerra a Vida de Caliacutegula todos os Ceacutesares cujo praenomen fosse Gaio morreram assassinados29

De facto o religioso Suetoacutenio como o apresenta Pliacutenio parece sobrevalorizar esta conceccedilatildeo determinista da histoacuteria e multiplica as referecircncias a pressaacutegios30 A sucessatildeo dos imperadores surge enquadrada por um plano transcendente Augusto Galba ou Vespasiano segundo os pressaacutegios apresentados31 estatildeo haacute muito tempo destinados ao governo do orbe A hora do parto de Augusto segundo um pitagoacuterico especialista em astrologia promete um dominus terrarum32 Eles proacuteprios se apresentam como conscientes desta trama transcendente Augusto e Tibeacuterio sabem que Galba seraacute um sucessor33 Vespasiano prevecirc que satildeo os filhos a suceder-lhe34 e que Domiciano deve temer o ferro35

25 Tib 6926 Contudo Augusto soacute estava a justificar legalmente a adoccedilatildeo de Tibeacuterio veja-se Wiede-

mann 1989 1927 Tit 9128 Veja-se Wardle 1994 7029 Cal 60 Veja-se Wardle 1994 372 Hurley 1993 21730 Sobre este assunto veja-se Brandatildeo 2013 285-9531 Aug 931 ss Gal 92 Ves 45 Veja-se Gascou 1984 7758532 Aug 94533 Gal 4134 Ves 2535 Dom 141

316

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

Por outro lado Suetoacutenio constata que Claacuteudio alcanccedila o poder por um acaso extraordinaacuterio (mirabilis casus)36 O bioacutegrafo compraz-se a descrever amiuacutede situaccedilotildees que por pouco natildeo alteraram o curso dos acontecimentos Daiacute a importacircncia atribuiacuteda agrave arte divinatoacuteria manifesta na valorizaccedilatildeo de determinadas coincidecircncias37

3 Natildeo se trata de dominatio ou regnum

A propaganda destinada a afastar a ideia de que era um tirano estaacute impliacutecita na atuaccedilatildeo de Augusto Fora esse o principal erro de Ceacutesar cuja ambiccedilatildeo de reinar eacute continuamente sugerida ao longo da Vida Logo no princiacutepio Suetoacutenio transcreve um excerto do elogio fuacutenebre da tia de Ceacutesar onde o proacuteprio exalta a origem real e divina da famiacutelia38 Eacute significativa da sua ambiccedilatildeo a frase que Ceacutesar repete ao tomar conhecimento das resoluccedilotildees tomadas no senado em seu desfavor39 (laquomais dificilmente o expulsariam do primeiro para o segundo lugar entre os cidadatildeos do que do segundo para o uacuteltimoraquo)

O pretexto que leva agrave travessia do Rubicatildeo eacute a violecircncia do senado contra os tribunos da plebe que com o veto intercediam por Ceacutesar mas as verdadeiras causas seriam outras40 o medo de reduzido a cidadatildeo privado ser castigado por irregula-ridades cometidas no exerciacutecio do primeiro consulado41 e sobretudo a ambiccedilatildeo da tirania (dominatio)42 Ele proacuteprio citava amiuacutede um verso de Euriacutepides segundo a qual a ambiccedilatildeo reinar justifica a violaccedilatildeo da justiccedila e do respeito pelos deuses43

Mais agrave frente satildeo apresentados facta dictaque que fazem com que se consi-dere que abusou da tirania (dominatio) e que por conseguinte a morte eacute justa44

36 Cl 10 Cf DC 6013-4 e I AI 19212-25 Veja-se Martin 1991 229-3037 Cl 21 Nero 404 Nero 571 Gal 61 Tit1 38 Jul 61 Est ergo in genere et sanctitas regum qui plurimum inter homines pollent et caeri-

monia deorum quorum ipsi in potestate sunt reges Veja-se Canfora 2000 17-1839 Jul 291 difficilius se principem ciuitatis a primo ordine in secundum quam ex secundo in

nouissimum detrudi Plutarco (Caes 113-4) coloca a frase noutro contexto (no caminho para a Hispacircnia enquanto propretor) mas o significado eacute semelhante Veja-se Canfora 2000 145-46

40 Jul 302 Et praetextum quidem illi ciuilium armorum hoc fuit causas autem alias fuisse opinantur

41 Jul 303-4 Alii timuisse dicunt ne eorum quae primo consulatu aduersus auspicia legesque et intercessiones gessisset rationem reddere cogeretur Quod probabilius facit Asinius Pollio Pharsalica acie caesos profligatosque aduersarios prospicientem haec eum ad uerbum dixisse referens lsquohoc uoluerunt tantis rebus gestis Gaius Caesar condemnatus essem nisi ab exercitu auxilium petissemrsquo

42 Jul 305 Quidam putant captum imperii consuetudine pensitastisque suis et inimicorum uiribus usum occasione rapiendae dominationis quam aetate prima concupisset

43 Jul 305 Trata-se de uma parte do discurso de Eteacuteocles (E Ph 524) que Ciacutecero traduz por Nam si uiolandum est ius ltregnandigt gratia uiolandum est aliis rebus pietatem colas Veja-se Canfora 2000 153 Romilly 1969 183-84 e 186-87

44 Jul 761 Praegrauant tamen cetera facta dictaque eius ut et abusus dominatione et iure caesus existimetur

317

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

honras exageradas privileacutegios que superam o humanum fastigium e uma atuaccedilatildeo poliacutetica onde impera a arbitrariedade (licentia) e o desrespeito pelo patrius mos45 Tais honras satildeo agravadas por uma seacuterie de ditos ceacutelebres (dicta) que manifestam excesso (inpotentia) contra a res publica e arrogantia face aos pressaacutegios46 Aleacutem disso Ceacutesar natildeo se livra da infamia de que desejaria o tiacutetulo de rex apesar de afirmar que laquoera Ceacutesar e natildeo reiraquo e de durante as Lupercais afastar ndash gesto teatral suspeito ndash a coroa que Antoacutenio repetidamente lhe colocava sobre a cabeccedila e de a consagrar a Juacutepiter Oacuteptimo Maacuteximo47

Torna-se pois claro que princeps ou imperator se distanciam dominus ou tyrannus48 Poreacutem a diferenccedila entre princeps e dominus natildeo eacute de caraacutecter constitucional mas sobretudo de natureza moral49 O ecircxito de Augusto fica a dever-se agrave demarcaccedilatildeo em relaccedilatildeo a Ceacutesar manifesta em atitudes teatrais que o bioacutegrafo natildeo desmascara a recusa de templos e estaacutetuas de ouro a rejeiccedilatildeo apa-ratosa da ditadura acompanhada de atitudes de suacuteplica50 manifestaccedilatildeo de horror ao apelido de dominus ostensivamente conotado com laquomaldiccedilatildeo e desonraraquo51 e o respeito pelo senado52 satildeo apresentados como provas (documenta) da ciui-litas53 Tal virtude traduz a consciecircncia de cidadatildeo a rejeiccedilatildeo da monarquia de tipo oriental e da tirania (dominatio) e defesa da libertas54 entendida durante o principado sobretudo como liberdade de expressatildeo Ao contraacuterio de Ceacutesar que pelo abusus dominatione e pela inpotentia mereceu a morte Augusto eacute objecto da estima geral55 tornando-se assim um modelo para os sucessores

Tibeacuterio de formaccedilatildeo republicana revela ciuilitas a princiacutepio ao recusar maximi honores que incluiacuteam culto divino56 rejeita o praenomen de imperator o

45 Jul 763 Eadem licentia spreto patrio more magistratus in pluris annos ordinauit eoque arrogantiae progressus est ()

46 Jul 77 Nec minoris inpotentiae uoces propalam edebat ()47 Jul 792 Neque ex eo infamiam affectati etiam regii nominis discutere ualuit quamquam

et plebei regem salutanti lsquoCaesarem se non regem essersquo responderit et Lupercalibus pro rostris a consule Antonio admotum saepius capiti suo diadema reppulerit atque in Capitolium Ioui Optimo Maximo miserit

48 Veja-se Bradley 1991 3715-716 Nota Gascou 1984 721-22 que neste ponto Suetoacutenio estaacute de acordo com Pliacutenio (Pan 453) Scis ut sunt diuersa natura dominatio et principatus ita non aliis esse principem gratiorem quam qui maxime dominum grauentur Cf Cic Rep 150

49 Como sublinha Gascou 1984 721-2250 Aug 5251 Aug 531 Domini appellationem ut maledictum et obprobrium semper exhorruit Suetoacutenio

natildeo denuncia a habilidosa simulaccedilatildeo de horror52 Aug 53353 Aug 511 Clementiae ciuilitatisque eius multa et magna documenta sunt A ciuilitas a par

da clementia vem em Suetoacutenio associada agrave moderatio como demonstra Gascou 1984 722-2354 Cf Aug 54 Nec ideo libertas aut contumacia fraudi cuiquam fuit55 Aug 571 Pro quibus meritis quanto opere dilectus sit facile est aestimare56 Tib 261 Verum liberatus metu ciuilem admodum inter initia ac paulo minus quam priua-

tum egit Ex plurimis maximisque honoribus praeter paucos et modicos non recepit Na Vida de Tibeacuterio natildeo parece haver diferenccedila como mostra Gascou 1984 723 entre ciuilitas e moderatio

318

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

cognomen de pater patriae a coroa ciacutevica limita o uso do nome de Augusto que herdou agraves cartas dirigidas aos reis57 e sobretudo recusa o apelido de dominus58 e defende repetidamente a liberdade de expressatildeo e de pensamento59 chegan-do mesmo a restabelecer o que o bioacutegrafo designa por uma species libertatis60 Tambeacutem Claacuteudio revela ciuilitas ao recusar o praenomen de imperator e honras excessivas61 e ao mostrar respeito pelo senado e magistrados62 Quanto a Vespa-siano mostra-se ciuilis et clemens do iniacutecio ao fim do principado63 Tais diferenccedilas satildeo pois decorrentes do caraacutecter individual e dificilmente podem ser prevenidas

4 Poder ilimitado e eacutetico

Como natildeo haacute formas constitucionais de controlar o poder do imperador as restriccedilotildees satildeo apenas de ordem eacutetica dependem do caraacutecter pessoal objecto privilegiado de anaacutelise da biografia Palavras atribuiacutedas a Caliacutegula e a Nero revelam o deslumbramento que pode causar este poder ilimitado O primeiro a uma repreensatildeo da avoacute Antoacutenia responde64 laquoHaacutes-de lembrar-te que tudo me eacute permitido contra todosraquo Nero como que fascinado com a impunidade com que comete parricidia et caedes65 laquodisse que nenhum dos priacutencipes fazia ideia do que lhe era permitidoraquo

O autocontrolo e equiliacutebrio satildeo difiacuteceis de manter quando se possui tal poder (in imperio) comenta o bioacutegrafo66 Haacute o risco de enveredar pela inpotentia

visto que depois (Tib 322) afirma Parem moderationem minoribus quoque et personis et rebus exhibuit e em outro passo Tib 571 () etiam inter initia cum adhuc fauorem hominum mode-rationis simulatione captaret

57 Tib 26258 Tib 2759 Tib 28 Sed et aduersus conuicia malosque rumores et famosa de se ac suis carmina firmus

ac patiens subinde iactabat lsquoin ciuitate libera linguam mentemque liberas esse deberersquo60 Tib 30 Quin etiam speciem libertatis quandam induxit conseruatis senatui ac magistratibus

et maiestate pristina et potestate Tambeacutem Taacutecito (Ann 1773) fala de simulacra libertatis61 Cl 121 At in semet augendo parcus atque ciuilis praenomen Imperatoris abstinuit nimios

honores recusauit62 Cl 122 Atitudes que lhe valeram amor e fauor Cl 123 Quare in breui spatio tantum

amoris fauorisque collegit63 De acircmbito semacircntico proacuteximo eacute a comitas a afabilidade ilustrada atraveacutes do sentido de

humor de Vespasiano Ves 22 Et super cenam autem et semper alias comissimus multa ioco transigebat

64 Cal 291 lsquomementorsquo ait lsquoomnia mihi et ltingt omnis licerersquo E ao primo Gemelo suspei-tando de que ele tomava um contraveneno lsquoAntidotumrsquo inquit lsquoaduersus Caesaremrsquo Ameaccedila as irmatildes relegadas de que natildeo dispunha soacute de ilhas mas tambeacutem de espadas repete um verso traacutegico tiacutepico de um caraacutecter tiracircnico (Cal 301) lsquooderint dum metuantrsquo expressatildeo retirada do Atreu de Aacutecio Cf Tib 592 oderint dum probent

65 Ves 12 Nero 33 ss Nero 373 Elatus inflatusque tantis uelut successibus negauit lsquoquemquam principum scisse quid sibi liceretrsquo

66 Esta constataccedilatildeo encarece o caraacutecter de Tito ndash Tit 1 () tantum illi ad promerendam om-nium uoluntatem uel ingenii uel artis uel fortunae superfuit et quod difficillimum est in imperio

319

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

ou arrogantia ou superbia67 A intenccedilatildeo de substituir a species principatus pelo regnum68 e o desejo de autodivinizaccedilatildeo69 iniciam a narrativa da parte que diz respeito agrave descriccedilatildeo de Caliacutegula enquanto monstrum Quanto a Domiciano a propensatildeo para a dominatio manifesta-se desde a juventude70 e quando impera-dor aceita com agrado que o apelidem de dominus71 e com a mesma arrogantia autoproclama-se dominus et deus72 recebe honras que como Ceacutesar e Caliacutegula ultrapassam os limites humanos73 ao ponto de como eles se tornar odiado e ser castigado com a morte violenta que impende sobre os tiranos74 Sintomaacutetica eacute por isso a relaccedilatildeo dos imperadores com o senado que de algum modo eacute siacutembolo do regime republicano Nero chega a pensar em eliminar este oacutergatildeo75 e Caliacutegula natildeo mostra para com ele reuerentia ou lenitas76

Por outro lado o bom princeps sabe moderar a sua coacutelera contra os inimigos e respeita a propriedade No exerciacutecio do poder a moderatio opotildee-se agrave arrogacircn-cia da atuaccedilatildeo tiracircnica e agrave crueldade77 Implica a praacutetica da clementia cujo viacutecio oposto eacute a saeuitia ou crudelitas Esta eacute uma virtude que Ceacutesar evidencia o que o afasta da imagem de um tirano completo A par da moderatio Suetoacutenio no final da Vida de Domiciano78 coloca a abstinentia como virtude fundamental para o desempenho do bom priacutencipe Esta virtude implica o respeito pela propriedade alheia impede que o imperador use o seu poder para conseguir lucros indevidos A ausecircncia desta virtude eacute notada no exerciacutecio do imperium e das magistraturas de Ceacutesar79 A abstinentia opotildee-se agrave auaritia agrave cupiditas agrave rapacitas que definem a atuaccedilatildeo dos maus imperadores no que diz respeito aos bens dos cidadatildeos mor-tos ou vivos das cidades das proviacutencias dos templos Como auaritia designa

67 O traccedilo tiacutepico do comportamento tiracircnico Veja-se a propoacutesito de Pliacutenio-o-Velho Oli-veira 1992 26-27

68 Cal 221 Nec multum afuit quin statim diadema sumeret speciemque principatus in regni formam conuerteret

69 Cal 222 Verum admonitus et principum et regum se excessisse fastigium diuinam ex eo maiestatem asserere sibi coepit

70 Dom 13 ceterum omnem uim dominationis tam licenter exercuit ut iam tum qualis futu-rus esset ostenderet Dom 123 Ab iuuenta minime ciuilis animi confidens etiam et cum uerbis tum rebus immodicus

71 Dom 13172 Dom 13273 Dom 132-374 Dom 141 Per haec terribilis cunctis et inuisus tandem oppressus est75 Nero 37376 Cal 262 Nihilo reuerentior leniorue erga senatum () Cal 491 Edixit et lsquoreuerti se sed

iis qui optarent equestri ordini et populo nam se neque ciuem neque principem senatui amplius forersquo Cf Cal 262 A superbia e a uiolentia qualificam em geral a sua relaccedilatildeo com as diferentes classes (Cal 264 302) Na altura da morte projetava facinora maiora como a eliminaccedilatildeo dos membros mais eminentes das classes senatorial e equestre (Cal 8)

77 Veja-se Gascou 1984 724-2578 Dom 23279 Jul 541 Abstinentiam neque in imperiis neque in magistratibus praestitit

320

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

Suetoacutenio a avidez de riquezas de Nero80 mas tambeacutem a mesquinhez de Galba81 viacutecio que inclusivamente contribuiraacute para a sua queda A cupiditas pecuniae eacute apresentada como o uacutenico viacutecio de Vespasiano82 de cuja fama se natildeo consegue livrar83 e como segundo viacutecio de Domiciano suplantado apenas pela crueldade (saeuitia)84

A divisatildeo operada na biografia de Caliacutegula entre atos do princeps e atos do monstrum ou na de Nero entre factos louvaacuteveis e neutros por um lado e probra ac scelera por outro demonstram que Suetoacutenio opera uma consideraccedilatildeo moral de toda a atuaccedilatildeo destes priacutencipes O mesmo se depreende do facto de a morte dos maus imperadores tender a ser apresentada como um castigo da tirania85

5 Poder paternalista

Na sociedade romana imperial que apresenta uma piracircmide de laccedilos de clientela o princeps natildeo deve ser um dominus mas um patronus para os cida-datildeos para as cidades de Itaacutelia para as proviacutencias para os reis aliados86 Aleacutem da abstinentia exige-se de um priacutencipe a liberalitas do primeiro dos patroni Uma conceccedilatildeo laquopaternalistaraquo do imperador estaacute expliacutecita em particular na forma como Tito acode agraves viacutetimas das calamidades laquonatildeo apenas com o zelo de um priacutencipe mas tambeacutem com amor iacutempar de um pairaquo87 Augusto exibe a liberalitas com todas as ordens88 Vespasiano depois de minimizada a maacute fama da cupiditas pecuniae eacute definido como assaz generoso para com todos (in omne hominum genus liberalissimus)89 A liberalitas figura explicitamente entre as virtudes osten-tadas por Nero e Domiciano nos iniacutecios destes principados90 quando pareciam prometedores

Os priacutencipes manifestam em geral consciecircncia da importacircncia do everge-tismo como sustentaacuteculo do poder imperial As enumeraccedilotildees apresentadas por Suetoacutenio sugerem a importacircncia social e poliacutetica que o bioacutegrafo atribui a estes

80 Nero 26181 Gal 12182 Ves 161 Sola est in qua merito culpetur pecuniae cupiditas Ves 163 Quidam natura

cupidissimum tradunt83 Ves 191 Et tamen ne sic quidem pristina cupiditatis infamia caruit84 Ves 11 () constet licet Domitianum cupiditatis ac saeuitiae merito poenas luisse Dom

101 () et tamen aliquanto celerius ad saeuitiam desciuit quam ad cupiditatem (desenvolvimen-to em Dom121-2)

85 Como afirma Gascou 1984 787-98 Veja-se Brandatildeo 2008 115-37 e 2009b 357-8086 Veja-se Grimal 1993 1787 Tit 83 In iis tot aduersis ac talibus non modo principis sollicitudinem sed et parentis affec-

tum unicum praestitit nunc consolando per edicta nunc opitulando quatenus suppeteret facultas Veja-se Gascou 1984 743

88 Aug 411 Liberalitatem omnibus ordinibus per occasiones frequenter exhibuit89 Ves 1790 Nero 101 Dom 91

321

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

aspetos distribuiccedilotildees agraves diferentes classes celebraccedilatildeo de jogos91 ofertas durante os jogos92 embelezamento da Urbe obras fora da urbe e nas proviacutencias O ever-getismo traduz uma consciecircncia eacutetico-social do poder imperial eacute uma forma de promover a concoacuterdia ao minorar os efeitos decorrentes das desigualdades e eacute um meio eficaz de propaganda do regime Tibeacuterio caracterizado como avaro (pecuniae parcus ac tenax) torna-se modelo da ausecircncia de liberalitas93 A avareza de Galba eacute ridiculizada pela opiniatildeo puacuteblica atraveacutes de diversas anedotas94 Este imperador acabou por ofender todas as classes especialmente os soldados preto-rianos a quem nega o donativo habitual na altura da sua aclamaccedilatildeo95

Faz parte do conceito laquopaternalistaraquo do imperador uma funccedilatildeo moraliza-dora96 pautada pelo esforccedilo de retorno aos costumes antigos sobretudo depois de periacuteodos de guerras civis97 Augusto mais uma vez eacute modelo apregoa o retorno ao mos maiorum98 A ele se atribui uma seacuterie de medidas adotadas ou reformuladas que versam sobre a moralizaccedilatildeo da vida puacuteblica e privada promulga leis sumptuaacuterias leis de adulteriis et de pudicitia de ambitu de mari-tandis ordinibus99 reprime a usurpaccedilatildeo da cidadania100 promove o restauro do uso da toga101 restabelece a disciplina nos espetaacuteculos102 As medidas contra o

91 Veja-se Della Corte 1967 100-10292 Veja-se Pocintildea et Ubintildea 1985 577-60293 Tib 46-4894 Gal 1295 Gal 16196 Veja-se Gascou 1984 743 ss97 Cf Aug 321 Pleraque pessimi exempli in perniciem publicam aut ex consuetudine licen-

tiaque bellorum ciuilium durauerant aut per pacem etiam extiterant Tib 33 () atque etiam si qua in publicis moribus desidia aut mala consuetudine labarent corrigenda suscepit Cl 22 Quaedam circa caerimonias ciuilemque et militarem morem item circa omnium ordinum statum domi forisque aut correxit aut exoleta reuocauit aut noua instituit Ves 92 Amplissimos ordines et exhaustos caede uaria et contaminatos ueteri neglegentia purgauit 11 Libido atque luxuria coercente nullo inualuerat

98 Veja-se Hellegouarcrsquoh 1987 8499 Aug 341100 Segundo Gascou 1984 744 Augusto procura evitar a contaminaccedilatildeo do sangue romano

e a usurpaccedilatildeo do direito de cidade numa perspetiva moral promovendo o preacutemio do meacuterito pessoal (iustae causae) contra o favorecimento a clientes (Aug 403) Veja-se Tompson 1981 35-46 Claacuteudio aleacutem de proibir aos estrangeiros a utilizaccedilatildeo indevida de nomes romanos pune com a decapitaccedilatildeo os que usurpam a cidadania romana (Cl 253)

101 Aug 405102 Aug 44-45 Promoveu a distribuiccedilatildeo hieraacuterquica dos lugares dos espectadores e repressatildeo

da libertinagem (licentia) dos atores Tibeacuterio expulsou os atores e seus sectaacuterios de Roma apesar dos rogos do povo (Tib 372) Tambeacutem Domiciano na parte positiva do principado promove uma seacuterie de medidas de teor semelhante com vista agrave correctio morum os alvos satildeo a licentia theatralis os scripta famosa o gesticulandi saltandique studium bem como as probrosae feminae os adulteria a praacutetica homossexual passiva visada pela lex Scantinia os incesta das virgens vestais (Dom 83) Veja-se Baumann 1982 121-22

322

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

excesso de luxo satildeo louvadas em Ceacutesar103 Augusto104 Tibeacuterio105 Vespasiano106 e mesmo em Nero na fase positiva do seu principado107 Caliacutegula eacute louvado (na parte positiva) pelo facto de pretender afogar os spintriae organizadores de monstrosae libidines108

Um dos deveres dos imperadores eacute salvaguardar a dignidade das classes mais elevadas Tibeacuterio reprimiu senadores que recorriam a expediente indignos do seu estatuto109 matronas aduacutelteras110 e jovens das classes senatorial e equestre que se expunham voluntariamente a um processo infamante para natildeo serem impedidos de tomar parte nos jogos teatrais e da arena Suetoacutenio que reflete uma conceccedilatildeo tradicional e hieraacuterquica da sociedade apresenta negativamente os imperadores que tentam subverter esta ordem estabelecida111 Eacute que a dife-renciaccedilatildeo social assenta numa base moral Sendo a libertas comum a todos os cidadatildeos livres a dignitas distingue as classes segundo uma precisatildeo incluiacuteda na Vida de Vespasiano112 E o fundamento da dignitas encontra-se natildeo soacute nos feitos dos antepassados mas tambeacutem nas accedilotildees louvaacuteveis do cidadatildeo113

6 Poder universalista da Urbe ao orbe

Suetoacutenio que escrevia no tempo dos primeiros laquoAntoninosraquo oriundos da Hispacircnia deveria sentir ao seu redor o caraacutecter universal do poder imperial Aleacutem disso Adriano gostava de viagens Trata-se de um poder que afeta o orbe e este mostra-se reconhecido perante os bons priacutencipes Tal eacute o caso do reconhe-cimento puacuteblico da obra de Augusto apresentado em gradaccedilatildeo manifestaccedilotildees de laquoalguns pais de famiacuteliaraquo laquoalgumas cidades de Itaacuteliaraquo laquoa maior parte das proviacutenciasraquo e por fim laquoreis amigos e aliadosraquo114 honras acaso encarecidas pela

103 Jul 43104 Aug 341105 Tib 341106 Ves 11 restabelecimento de leis sobre libido atque luxuria107 Nero 162 Mas em contrapartida eacute-lhe censurado como ato de rapina o despojamento

das roupas e dos bens de uma matrona vestida com a puacuterpura proibida (Nero 323)108 Cal 161109 Tib 352110 Tib 351 Cf Tac Ann 250 Condenou ao desterro as matronas que para contornar a lei

se declaravam prostitutas (Tib 352) - crime de Vistiacutelia segundo Tac Ann 2852-3111 Della Corte 1967 165-90 aponta como criteacuterio suetoniano de avaliaccedilatildeo dos priacutencipes

a atitude para com a classe a que Suetoacutenio pertencia os cavaleiros Esta teoria eacute refutada por Gascou 1976 735-40

112 Vespasiano destitui senadores e cavaleiros por serem indignissimi e deixa claro que a distinccedilatildeo entre as duas ordens se faz com base na dignitas e natildeo tanto na libertas acrescentando que se um cavaleiro natildeo deve ofender um senador tem no entanto o direito de responder a uma ofensa (Ves 92)

113 Veja-se Lewis 1991 3655 114 Aug 59-60

323

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

generalizaccedilatildeo115 Eacute jaacute em contexto proacuteximo da narrativa da morte na viagem para Caacutepreas que se insere um episoacutedio que significa o reconhecimento do mundo ao poder de Augusto116

laquoQuando atravessava um dia a baiacutea de Puteacuteolos os passageiros e os tripulan-tes de um navio de Alexandria que acabara justamente de aportar vestidos de branco e coroados com grinaldas natildeo soacute lhe ofereceram incenso como tambeacutem o cumularam de bons auguacuterios e de extraordinaacuterios louvores lsquoPor ele viviam por ele navegavam da liberdade e da felicidade por ele fruiacuteamrsquoraquo

Trata-se de uma cerimoacutenia lituacutergica como sugere o aparato (roupas flores incenso) e o ritmo da invocaccedilatildeo a celebraccedilatildeo da paz universal e da seguranccedila nos mares e um reconhecimento ritual da obra de Augusto117 No caso de Ceacutesar salienta-se que ao luto se associaram tambeacutem numerosos estrangeiros entre os quais se destacaram pelos testemunhos de pesar os Judeus118

Se o poder assenta nas instituiccedilotildees da Urbe tambeacutem emana cada vez mais do orbe Haacute a consciecircncia de que as forccedilas provinciais podiam retirar ou conferir o impeacuterio O fim de Nero fica a dever-se a uma destituiccedilatildeo levada a cabo pelo orbe119 laquoApoacutes ter suportado tal priacutencipe pouco menos que catorze anos o orbe da terra destituiu-o finalmenteraquo O princiacutepio do fim foi a revolta dos Gauleses sob o comando de Viacutendex dizia-se por graccedila que o imperador com o seu canto tinha despertado os Galli jogando com a ambiguidade do nome que designava quer o povo da Gaacutelia quer a ave120 Taacutecito121 dissera que a crise de 68-69 veio revelar algo novo que o imperador podia ser aclamado em qualquer outro siacutetio que natildeo Roma como acontece com Galba Viteacutelio e Vespasiano Galba apresenta-se teatralmente como um libertador Simbolicamente vai proceder a uma libertaccedilatildeo (manumissio) universal122

115 Como o exagero de afirmar que cada rei fundou uma cidade com o nome de Cesareia Veja-se Gascou 1984 232-38 240-41

116 Aug 982 Forte Puteolanum sinum praeteruehenti uectores nautaeque de naui Alexandri-na quae tantum quod appulerat candidati coronatique et tura libantes fausta omina et eximias laudes congesserant lsquoper illum se uiuere per illum nauigare libertate atque fortunis per illum fruirsquo

117 Veja-se Rocca-Serra 1974 671-80 Benario 1975 84118 Jul 845 Ceacutesar concedera-lhes vaacuterios privileacutegios por o terem ajudado na guerra de Ale-

xandria veja-se Canfora 2000 233-38119 Nero 401 talem principem paulo minus quattuordecim annos perpessus terrarum orbis

tandem destituit Cf Cal 56 Ita bacchantem atque grassantem non defuit plerisque animus adoriri

120 Nero 452121 Hist 14122 Gal 101 Igitur cum quasi manumissioni uacaturus conscendisset tribunal propositis ante

se damnatorum occisorumque a Nerone quam plurimis imaginibus et astante nobili puero quem exulantem e proxima Baliari insula ob id ipsum acciuerat deplorauit temporum statum consa-lutatusque imperator legatum se senatus ac populi R professus est Veja-se Venini 1974 996-97

324

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

laquoEntatildeo como se fosse tratar de uma manumissatildeo subiu ao tribunal Diante dele foi colocado o maior nuacutemero possiacutevel de retratos de condenados e executados de Nero e ao seu lado de peacute estava um jovem nobre que expressamente para este acto mandara vir da mais proacutexima das ilhas Baleares onde estava exilado Deplorou a situaccedilatildeo dos tempos e depois de ser saudado como imperador declarou-se legado do senado e do povo romanoraquo

No que respeita a Vespasiano eacute o prefeito do Egito Tibeacuterio Alexandre que leva as suas legiotildees a prestarem juramento nas calendas de Julho dia que passou a ser a data oficial do principatus dies Seguiu-se-lhe o exeacutercito da Judeia123 E enquanto envia as tropas para Itaacutelia dirige-se ele proacuteprio para Alexandria para consultar Seraacutepis sobre o grau de certeza do seu poder (de firmitate imperii) Aiacute eacute por assim dizer confirmado com uma coroaccedilatildeo segundo um ritual que envolve costumes egiacutepcios124 Galba e Vespasiano apresentam ascensotildees ao poder semelhantes partindo de dois pontos opostos do impeacuterio Favorece a ambos uma profecia antiga de que da proviacutencia que governa sairaacute um chefe tal profecia eacute confirmada por oraacuteculos locais125 e pelo achado de uma antiguidade significativa126 Na altura em que o bioacutegrafo escreve a proacutepria origem dos imperadores espelha o alargamento geograacutefico na atribuiccedilatildeo do poder supremo um salto do Palatino para a regiatildeo Sabina com os Flaacutevios e para Hispacircnia com Trajano e Adriano O poder oriundo da Hispacircnia que se natildeo consolidou em Galba (que na verdade representava a velha aristocracia) vai efetivar-se nos Antoninos

O poder consolidado na urbe projeta-se depois sobre o orbe Uma forma eficaz de propaganda eacute o espetaacuteculo A consciecircncia da universalidade torna-se manifesta em Ceacutesar e em Augusto quando oferecem representaccedilotildees teatrais em todas as liacutenguas127 Destaca-se sobretudo entre os espetaacuteculos oferecidos por Caliacutegula uma novidade128 uma ponte formada com barcas entre Baias e Puteacuteolos por onde o imperador atravessou em dias sucessivos com um largo seacutequito de amigos e convidados129 Uma das interpretaccedilotildees aduzidas pelo bioacutegrafo patenteia

123 Cf Tac Hist 279 A versatildeo de Josefo (BI 4601) segundo a qual Vespasiano foi aclamado na Judeia eacute rejeitada pelos autores modernos como tendenciosa Veja-se Cesa 2000 64

124 O liberto Basiacutelides oferece-lhe segundo o costume local verbena coroas e bolos (Ves 71) Segundo Derchain 1953 261-79 os elementos apresentados (verbena coroas e bolos) fazem parte do ritual de coroaccedilatildeo dos monarcas egiacutepcios Veja-se tambeacutem Derchain et Hubaux 1953 38-52

125 Cf Gal 92 Ves 45 56126 Gal 104 Ves 73127 Jul 391 Aug 431128 Cal 191 Nouum praeterea atque inauditum genus spectaculi excogitauit129 Cal 192 Veja-se Martin 1991 309 Wardle 1994 194-96 Para Antonelli 2001 120-25 eacute

uma forma de demonstrar o poder ilimitado do priacutencipe em confronto com o poder dos oacutergatildeos constitucionais da Repuacuteblica

325

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

o desejo de emulaccedilatildeo da ponte que Xerxes lanccedilou sobre o Helesponto130 De facto no desfile o priacutencipe ostentava o pequeno Dario um refeacutem parto filho de Artaacutebano III Segundo outra explicaccedilatildeo seria para aterrorizar os Bretotildees e Germanos contra os quais se preparava uma expediccedilatildeo

De modo semelhante no que se refere a Nero o bioacutegrafo coloca explici-tamente entre os espetaacuteculos a receccedilatildeo ao rei da Armeacutenia Tiridates e a sua coroaccedilatildeo em Roma131 corolaacuterio de um sucesso poliacutetico e diplomaacutetico realizado sob os auspiacutecios do imperador mas que o bioacutegrafo omite132 E a verdade eacute que passados vinte anos da sua morte um falso Nero ainda teve grande acolhimento sobretudo entre os Partos (e o bioacutegrafo sugere que o episoacutedio se enquadra nas suas lembranccedilas133) o que revela a admiraccedilatildeo que o Oriente consagrava agravequele imperador

Outra das formas de propaganda de qualquer regime autoritaacuterio eacute a poliacutetica de grandes construccedilotildees na urbe e nas proviacutencias A Urbe era a imagem visiacutevel de Roma divinizada Os bons imperadores satildeo restauradores tanto quanto possiacutevel soacutebrios e preocupados com o bem puacuteblico No caso de Augusto e Vespasiano essa tarefa insere-se no programa de restauraccedilatildeo da Urbe depois das guerras civis134 Tambeacutem satildeo aprovadas inicialmente as construccedilotildees grandiosas de Do-miciano135 se bem que na parte negativa da vida se diga que foram ruinosos os gastos com construccedilotildees e espetaacuteculos136 Quanto a Caliacutegula parece sugerir-se uma tendecircncia megaloacutemana137

Simboacutelica poderaacute ser a construccedilatildeo da famosa Domus Aurea de Nero com uma estaacutetua colossal no vestiacutebulo poacuterticos imensos um lago central campos cultivados e bosques com requintadas salas de jantar em que sobressaiacutea a cena-tio rotunda cujo teto simulava a aboacutebada celeste138 conjunto que para Grimal corresponderia a uma espeacutecie de microcosmos do mundo mediterracircneo ao re-dor do lago central139 Torna-se significativa a construccedilatildeo do Anfiteatro Flaacutevio no

130 Cal 193 Cf Hdt 483 ss131 Nero 131 Non immerito inter spectacula ab eo edita et Tiridatis in urbem introitum ret-

tulerim132 A vitoacuteria diplomaacutetica que resultou na resoluccedilatildeo da complicada questatildeo armeacutenio-parta e

na pacificaccedilatildeo das fronteiras do impeacuterio Veja-se Cizek 1982 145-46 Griffin 1984 232-33 Fini 1993 73-78 Shotter 1997 31-33

133 Com a expressatildeo adulescente me Nero 572 Sobre este falso Nero veja-se Gallivan 1973 364-65 Bradley 1978 294-95

134 Aug 283 Ves 91135 Dom 5 Veja-se Gascou 1984 668 Jones 1996 49-50136 Dom 121137 Cal 21138 Nero 312 Cf Tac Ann 1542-43 A descriccedilatildeo inclui topoi retoacutericos contra a sumptuosi-

dade Veja-se Morford 1968 158-79 Blaison 1998 617-24139 Lugar onde mais tarde se elevaria o anfiteatro Flaacutevio Cf Mart Spect 25-6 Veja-se

Grimal 1955 16-17 Brandatildeo 2009a 223-30

326

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

centro da urbe integrado no programa de reconstruccedilatildeo em embelezamento da cidade140 e em cuja inauguraccedilatildeo141 se apresenta uma multidatildeo multieacutetnica como atesta o poeta Marcial que assistiu142

No centro estava a Urbe romana de onde todo o poder emanava e para onde todos os povos confluiacuteam Alterar este estatuto da Urbe ainda parece loucura de tiranos Sintomaacutetico das aspiraccedilotildees autocraacuteticas de Ceacutesar e de Caliacutegula seraacute a suspeita de que tencionam transferir a residecircncia para Alexandria143 Muitos destes rumores derivam simplesmente da busca de conformidade com a descriccedilatildeo dos tiranos retoacutericos que apresentavam uma seacuterie de traccedilos fixados

Em suma para Suetoacutenio o poder imperial eacute uma nova realidade que substituiu com vantagem a anarquia do final da Repuacuteblica mas que natildeo equivalia a um reinado um poder que se assenta numa sucessatildeo indefinida e que depende em muito quer de uma espeacutecie de determinismo coacutesmico representado pelo fatum ou fortuna quer do caraacutecter de quem o deteacutem o que justifica tambeacutem a opccedilatildeo pela biografia como meio privilegiado para analisar sistematicamente o ethos dos principes Enquanto dependente do caraacutecter do governante o poder tende a ser encarado de forma paternalista pela atuaccedilatildeo sobre os suacutebditos Sem perder de vista a tradicional ligaccedilatildeo agrave cidade o poder tem o seu fundamento na Urbe com a sua vocaccedilatildeo universalista mas estaacute cada vez mais dependente tambeacutem da aceitaccedilatildeo e por vezes imposiccedilatildeo do orbe Se as cidades das proviacutencias imitam a Urbe esta acaba por ser representaccedilatildeo cosmopolita do mundo de que eacute centro O papel das proviacutencias revela-se cada vez mais importante mas por enquanto a possibilidade de outra capital imperial eacute considerada uma loucura tiracircnica

140 Ves 91141 Tit 73142 Spect 3143 Jul 793 Cal 492 Boato levantado certamente a partir da projetada viagem de Caliacutegula

a Alexandria referida por Flaacutevio Josefo (AI 1981) Segundo Fiacutelon (Leg 162) Caliacutegula mantinha boas relaccedilotildees com os habitantes de Alexandria e considerava aquela cidade como a uacutenica ade-quada para consagrar a sua divinizaccedilatildeo (Leg 338) Veja-se Guastella 1992 261 Nero perante a revolta da Gaacutelia chega a sonhar com um reino no Oriente (Nero 402) ou que lhe confiem ao menos a prefeitura do Egito (Nero 472)

327

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Bibliografia

Antonelli G 2001 Caligola Imperatore folle o principe inadeguato al ruolo assegnatogli dalla sorte Roma Newton amp Compton

Baumann R 1982 ldquoThe reacutesumeacute of legislation in Suetoniusrdquo Zeitschrift der Savigny-Stiftung fuumlr Rechtsgeschichte Romanistische Abteilung 9981-127

Benario H W 1975 ldquoAugustus priacutencepsrdquo Aufstieg und Niedergang der roumlmischen Welt ANRW 2 (2)75-85

Blaison M 1998 ldquoSueacutetone et lrsquo ekphrasis de la Domus Aureardquo Latomus 57617-24Bradley K R 1991 ldquoThe imperial ideal in Suetoniusrsquo Caesaresrdquo In ANRW 2

(335)3701-732mdashmdashmdash 1978 Suetoacutenio Suetoniusrsquo Life of Nero An Historical Commentary

Bruxelles LatomusBrandatildeo J L 2013 ldquoO destino e a histoacuteria nas Vidas dos Ceacutesares de Suetoacuteniordquo In

Vir bonus peritissimus aeque Estudos de homenagem a Arnaldo do Espiacuterito Santo ed M Cristina Pimentel e Paulo Farmhouse 285-98 Lisboa Centro de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

mdashmdashmdash 2009a ldquoA ekphrasis suetoniana da Domus aureardquo In Liacutenguas e Literaturas Vol 1 de Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas Greacutecia e Roma ed Francisco Oliveira Claacuteudia Teixeira e Paula Barata Dias Coimbra Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos 223-30

mdashmdashmdash 2009b Maacutescaras dos Ceacutesares Teatro e moralindade nas Vidas suetonianas Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia

mdashmdashmdash 2008 ldquoTirano ao tibre Estereoacutetipos de tirania nas Vidas dos Ceacutesares de Suetoacuteniordquo Humanitas 60115-37

Butler H E e M Cary (1993) 1927 Suetoacutenio Suetonius Diuus Iulius introduction bibliography and notes by G B Townend New-York Oxford Oxford University Press

Canfora L 2000 Giulio Cesare Il dittatore democratico 5ordf ed Roma Bari Laterza

Carter J M ed 2012 Suetonius Divus Augustus Bristol Bristol Classical PressCesa M trans 2000 Svetonio Vita di Vespasiano Bologna CappelliCizek E 1982 Neacuteron Paris FayardDella Corte F 1967 Svetonio eques Romanus Firenze La Nuova ItaliaDerchain Ph e J Hubaux 1953 ldquoVespasien au Seacuterapeacuteumrdquo Latomus 1238-52

328

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

Fini M 1993 Nerone Duemila anni di calunnie Milano MondadoriGallivan P A 1973 ldquoThe false Neros A re-examinationrdquo Historia 22364-65Gascou J 1984 Sueacutetone historien Paris de Boccardmdashmdashmdash 1976 ldquoSueacutetone et lrsquoordre eacutequestrerdquo Revue Des Eacutetudes Latines 54257-77Giua M A 1990 ldquoAspetti della biografia latina del primo imperordquo Rivista

Storica Italiana 12 535-59Griffin M T 1984 Nero The End of a Dynasty London RoutledgeGrimal P 1993 O Impeacuterio Romano Lisboa Ediccedilotildees 70mdashmdashmdash 1955 ldquoSur deux mots de Neacuteronrdquo AFLT Pallas 315-20Guastella G 1999 Gaio Svetonio Tranquillo Lrsquoimperatore Claudio Venezia

Marsiliomdashmdashmdash ed et trans 1992 Gaio Svetonio Tranquillo La vita di Caligola Roma La

Nuova Italia ScientificaHellegouarcrsquoh J 1987 ldquoSueacutetone et le principat drsquoapregraves la Vie drsquoAugusterdquo In

Filologia e forme letterarie Studi offerti a F della Corte 79-94 Urbino Quattro Venti

Hurley D W 1993 An Historical and Historiographical Commentary on Suetoniusrsquo Life of C Caligula Atlanta Scholars Press

Jones B W ed 1996 Suetonius Domitian Edited with Introduction Commentary and Bibliography London Bristo Classical Press

Jones B e R Milns 2002 Suetonius the Flavian emperors a historical commentary London Bristol Classical Press

La Penna A 1987 ldquoCesare secondo Plutarcordquo In Plutarco Vite Parallele Allessandro Cesare ed D Magnino 207-306 Milano Biblioteca Univerzale Rizzoli

Levick B 1999 Tiberius the Politician London New York RoutledgeLewis R G 1991 ldquoSuetoniusrsquo Caesares and their literary antecedentsrdquo Aufstieg

und Niedergang der romischen Welt 2 (335)3623674Lindsay Hugh ed 1995 Suetonius Tiberius London Bristol Classical PressLouis N ed 2010 Commentaire historique et traduction du Divus Augustus de

Sueacutetone Bruxelles Eacuteditions LatomusMartin R 1991 Les douze Ceacutesars du mythe agrave la reacutealiteacute Paris Les Belles LettresMorford M P 1968 ldquoThe distortion of the Domus Aurea traditionrdquo Eranos

66158-79Mottershead J ed 1986 Suetonius Claudius Bristol Bristol Classical PressMurison Charles ed 1992 Suetonius Galba Otho Vitellius London Bristol

Classical Press

329

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Oliveira F 1992 Les ideacutees politiques et morales de Pline lrsquoAncien Coimbra Instituto Nacional de Investigaccedilatildeo Cientiacutefica Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Pocintildea A e J F Ubintildea J F 1985 ldquoEl evergetismo imperial en Suetoniordquo Latomus 44577-602

Power T e R Gibson 2014 Suetonius the Biographer Studies in Roman Lives Oxford Oxford University Press

Rocca-Serra G 1974 ldquoUne formule cultuelle chez Sueacutetone (Divus Augustus 982)rdquo In Meacutelanges de philosophie de litteacuterature et drsquohistoire ancienne offerts agrave P Boyanceacute 671-80 Rome Palais Farnegravese

Rolfe J C (1913-1914) 1979 Suetoacutenio Suetonius Reimpressatildeo 2 vols Cambridge (MA) London Harvard University Press Heinemann

Romilly J 1969 ldquoIl pensiero di Euripide sulla tiranniardquo Dioniso 43 175-87Seager R 1972 Tiberius London Eyre MethuenSyme R 1974 ldquoHistory or biography The case of Tiberius Caesarrdquo Historia

23481-96Timonen A 1993 ldquoEmperors ars recusandi in biographical narrativerdquo Arctos

27133-48Tompson L A 1981 ldquoThe concept of purity of blood in Suetoniusrsquo life of

Augustusrdquo Museum Africum 735-46Venini Paola ed 1977 C Svetonio TranquilloVite di Galba Ottone Vitellio con

commentario Torino Paraviamdashmdashmdash 1974 ldquoSulle Vite suetoniane di Galba Otone e Vitelliordquo Rendiconti

dellrsquoIstituto Lombardo 108991-1014Wallace-Hadrill A 1984 Suetonius The Scholar and his Caesars New Haven

CT Yale University PressWardle D trans 2014 Suetonius Life of Augustus Translated with Introduction

and Historical Commentary Oxford Oxford University Pressmdashmdashmdash 1994 Suetoniusrsquo Life of Caligula A Commentary Bruxelles LatomusWarmington B H ed 1999 Suetonius Nero Text with Introduction and Notes

London Bristol Classical PressWiedemann T 1989 The JulioClaudian emperors ad 14-70 Bristol Bristol

Classical Press

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

331

Rodrigo Furtado

Peregrinationes ad loca sancta o estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

(Peregrinationes ad loca sancta the strange route of Melania-the-Elder in a globalised Mediterranean)

Rodrigo Furtado(rodrigofurtadocampusulpt ORCID 0000-0002-6720-5030)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de Estudos Claacutessicos

Resumo - Este texto resulta das incongruecircncias omissotildees lapsos e reconstruccedilotildees das fontes sobre Melacircnia-a-Antiga Procurarei aduzir elementos que esclarecem (i) que Melacircnia partiu para o Oriente ca 374 mais de dez anos depois de ter ficado viuacuteva (ii) no contexto das perseguiccedilotildees de Valentiniano I (iii) e que primeiro rumou ao Egito antes de se estabelecer na Palestina Procurarei ainda (iv) situar o regresso de Melacircnia a Roma no contexto do conflito generalizado entre os mosteiros de Jerusaleacutem e os monges do Egito por um lado e Jeroacutenimo o seu mosteiro de Beleacutem e Teoacutefilo de Alexandria por outro

Palavras-chave Peregrinaccedilatildeo Antiguidade tardia Melacircnia-a-Antiga Cristianismo ndash seacutecs IV-V

Abstract ndash This text is an analysis of the incongruities omissions lapses and re-constructions of the sources about Melany-the-Ancient I will defend (i) that Melania left Rome for the East ca 374 more than ten years after she became a widow (ii) in the context of the persecutions of Valentinian I (iii) and that she went first to Egypt before settling in Palestine I will also (iv) analyse Melaniarsquos return to Rome in the context of the general conflict between the monasteries of Jerusalem and the monks of Egypt on the one hand and Jerome his monastery in Bethlehem and Theophilus of Alexandria on the other

Keywords Pilgrimage Late Antiquity Melania-the-Elder Christianity ndash IVth-Vth century

Por volta do ano 370 dC o Mediterracircneo era um mar romano haacute cerca de quatrocentos e trinta anos desde pelo menos a eliminaccedilatildeo pompeiana dos piratas e as subsequentes conquistas do Magno em terras orientais e sobretudo com o domiacutenio romano da estrateacutegica ilha de Chipre pelo republicano Catatildeo de Uacutetica Naturalmente a cosmoacutepolis agrave escala do Mediterracircneo Oriental era bem anterior no ano 370 durava haacute pelo menos setecentos anos desde que Alexandre derrubara o dominoacute persa Quatrocentos e trinta ou setecentos anos eacute grosso modo o tempo que nos separa a noacutes em Portugal do iniacutecio do periacuteodo filipino ou mais ainda do rei D Dinis Era muito tempo Por isso creio que tal como para noacutes seria difiacutecil para os homens da segunda metade do seacuteculo IV

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_18

332

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

dC conceber a possibilidade de um mundo diferente daquele em que viviam E no entanto ele estava a mudar e de forma acelerada as reformas de Diocleciano e de Constantino transformaram irremediavelmente o Impeacuterio e natildeo apenas em termos religiosos como estamos habituados a considerar

Neste mundo globalizado haacute um fenoacutemeno que natildeo sendo obviamente ge-neralizado ganha agora uma dimensatildeo nova o das peregrinaccedilotildees1 Em latim haacute pelo menos duas palavras que designam o fenoacutemeno ndash peregrinatio claro e iter Ambos os lemas tecircm tambeacutem outros significados e natildeo deixa de ser curioso que Egeacuteria por exemplo prefira referir-se ao seu iter e nunca agrave sua peregrinatio De qualquer modo e de forma simples e clara lsquoperegrinaccedilatildeorsquo surge como todo o tipo de viagem com objetivos religiososespirituais2 Neste sentido a peregrinaccedilatildeo implica normalmente uma deslocaccedilatildeo longa e difiacutecil (e frequentemente a proacutepria viagem num mundo em que ainda natildeo havia lsquocaminhosrsquo de peregrinaccedilatildeo era considerada mais densa em termos espirituais do que o destino em si3) a um determinado local tido como sagrado eou uma visita a um determinado lsquoholy manrsquo4 Claro que visitar um santuaacuterio ou um dos santos homens que pululavam sobretudo no Oriente do Impeacuterio natildeo era um fenoacutemeno apenas cristatildeo Delfos Diacutedima Oliacutempia ou os santuaacuterios de Ascleacutepio em Epidauro ou em Peacutergamo neste uacuteltimo caso com um notaacutevel equipamento de hotel amp spa5 eram destinos frequentes e deixo tambeacutem de lado o caso dos pregadores itinerantes como Pro-clo biografado por Marino de Naacutepoles ou os vaacuterios lsquofiloacutesofosrsquo e lsquosofistasrsquo cujas vidas interessaram a Eunaacutepio

Pelo menos nos primeiros tempos o Cristianismo conhecera vaacuterios destes pregadores itinerantes a comeccedilar pelo proacuteprio Jesus de Nazareacute ou por Paulo de Tarso Apesar de tudo seraacute difiacutecil encontrar casos evidentes de lsquoperegrinaccedilatildeorsquo entre cristatildeos pelo menos ateacute ao seacuteculo IV natildeo creio que os dois exemplos que por vezes satildeo dados o de Alexandre de Jerusaleacutem (que teraacute fugido no seacuteculo III da perseguiccedilatildeo na Capadoacutecia6) e o de Militatildeo de Sardes (que teraacute rumado agrave Palestina para procurar coacutepias fidedignas das Escrituras7) encaixem bem no conceito de peregrino

Nem mesmo com Helena a matildee do imperador Constantino as motivaccedilotildees religiosas foram razatildeo primeira para a viagem agrave Palestina em 3268 mesmo se

1 Cf Wilkinson 1977 V Turner et E Turner 1978 Hunt 1982 Maraval 1985 Bitton-Askelony 1999 Webb 1999 Marcos 2004 Dietz 2005

2 Sigo a definiccedilatildeo de Dietz 2005 303 Dietz 2005 30 laquoreaching a particular destination was often less important than the jour-

ney itselfraquo4 O tiacutetulo claacutessico eacute o de Brown 1971 Atualizaccedilotildees em Cameron 1999 Dahlman 2007

Rubenson 20085 Referecircncia de Dietz 2005 326 Cf Eus hist eccl 927 Cf Eus hist eccl 4268 Drijvers 1992 Pohlsander 1996

333

Rodrigo Furtado

Euseacutebio de Cesareia garante que a Augusta queria rezar nos locais outrora fre-quentados por Cristo eacute tambeacutem ele que nos diz que Helena tinha sido enviada para inspecionar as proviacutencias orientais com as suas comunidades e povos9 Ou-tras mulheres (quase sempre mulheres de facto) se lhe seguiram embora muitas vezes meros nomes Martana parece ter liderado uma comunidade feminina na Siacuteria10 ou talvez melhor a extravagante Pemeacutenia parece ter patrocinado a Igreja da Ascensatildeo em Jerusaleacutem11 Por fim ainda no seacuteculo IV mencione-se Egeacuteria12

Nenhuma destas mulheres no entanto me ocuparaacute aqui Este meu texto surge do cruzamento de duas leituras por um lado a tese de Maribel Dietz Wandering monks virgins and pilgrims Ascetic travel in the Mediterranean world que procura mostrar a diversidade de motivaccedilotildees que teraacute estado por traacutes do fenoacutemeno das peregrinaccedilotildees ateacute agrave eacutepoca de Carlos Magno por outro o con-junto de leituras sobre Melacircnia-a-Antiga atraveacutes das epiacutestolas de Jeroacutenimo e de Paulino de Nola e sobretudo da Historia Lausiaca de Palaacutedio Quando comecei a estudar Melacircnia e resolvi consultar o livro de Dietz percebi que muito prova-velmente haveria mais a dizer do que aquilo que a autora norte-americana deixa entender sobre esta personagem de resto com pequenas imprecisotildees13 A leitura posterior de um artigo de Franca Ela Consolino e da Melaniana de Nicole Moine permitiu perceber que a vida de Melacircnia continha algumas inconsistecircncias em que importava ainda atentar14 Muito recentemente em 2016 o livro de C M Chin e C T Schroeder acaba por retomar e desenvolver algumas das questotildees que em 2013 eu proacuteprio tinha tratado no contexto do congresso que deu origem a este estudo15 Tambeacutem posterior o excelente artigo de K W Wilkinson eacute o que mais se aproxima do tema que aqui proponho estudar16 Apesar de tudo julgo que sobretudo quanto agrave data da partida da Roma e aos motivos dessa partida este meu contributo acrescenta elementos a este uacuteltimo texto

Melacircnia-a-Antiga pertencia agrave gens Antonia Descendia de Antoacutenio Marce-lino praeses Lugdunensis na eacutepoca da tetrarquia prococircnsul da Aacutefrica e oficial do imperador Constante17 Antoacutenio tinha pertencido ao coleacutegio de prefeitos do pretoacuterio foi prococircnsul da Itaacutelia Iliacuteria e Aacutefrica entre 340-342 e cocircnsul em 341 Melacircnia casou com um membro da ainda mais prestigiada gens Valeria18

9 Vita Const 34210 Egeacuteria 23311 Pall hist laus 3514-15 Butler Joatildeo Rufo Vita Petri Iberi 3013-18 cf Devos 1969 Devos

197312 Veja-se Mariano et Nascimento 1998 com bibliografia13 Cf Dietz 2005 122-2314 Moine 1980 Consolino 2006 especialmente as pp 75-8415 Chin et Schroeder 201616 Wilkinson 201217 plre 1 548-549 laquoMarcellinus 16raquo18 Paul Nol ep 298

334

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

provavelmente com o prefeito da Cidade em 361 Valeacuterio Maacuteximo19 Ora este Valeacuterio Maacuteximo (se tiver sido mesmo ele o marido de Melacircnia) natildeo era um qual-quer Gala a primeira mulher de Juacutelio Constacircncio meio-irmatildeo de Constantino I era sua tia materna20 A imperatriz Justina mulher do imperador Valentiniano I e depois regente do impuacutebere Valentiniano II deve ter sido tambeacutem sua prima21 O pai de Valeacuterio Maacuteximo tinha sido vigaacuterio do Oriente em 325 prefeito do pretoacuterio do Oriente entre 327-8 da Gaacutelia com Constacircncio Ceacutesar em 332-3 e no Danuacutebio em 337 com Dalmaacutecio Ceacutesar22

Natildeo se sabe desde quando Melacircnia era cristatilde Apoacutes vaacuterias gestaccedilotildees algu-mas delas frustradas23 Melacircnia perdeu o marido e dois dos seus filhos no curto prazo de um ano E eacute aqui que comeccedilam os nossos problemas

No ano 384 Satildeo Jeroacutenimo na carta que escreveraacute agrave sua amiga Paula quando da morte da filha desta Blesila recorda Melacircnia como exemplo de virtudes ela que enfrentara com coragem a perda de dois filhos e do marido Traduzo

Natildeo derramou qualquer laacutegrima permaneceu imperturbaacutevel e arrojando-se aos peacutes de Cristo sorriu como se o tivesse a ele proacuteprio nos braccedilos laquoServir-te-ei agora mais devotadamente Senhor porque me livraste de tatildeo grande pesoraquo [ie do marido e dos filhos] [hellip] Com o mesmo pensamento com que despreza os que tinham morrido assim o prova depois em relaccedilatildeo ao seu uacutenico filho quando deixando-lhe tudo quanto tinha e tendo comeccedilado jaacute o Inverno na-vegou para Jerusaleacutem (Hier ep 395)

Palaacutedio conta uma histoacuteria semelhante

Ficando viuacuteva aos 22 anos foi digna do amor divino e sem dizer nada a nin-gueacutem (pois tecirc-la-iam impedido naqueles tempos em que Valente governava o impeacuterio) designou um tutor para o filho tomou consigo todos os seus bens moacuteveis e pocirc-los num barco com alguns servos e escravas depois zarpou a toda a pressa para Alexandria (Pall hist laus 461)

O texto de Paulino de Nola eacute bastante mais longo mas confirma grosso modo as informaccedilotildees anteriores Portanto e conjugando os textos destes trecircs autores Melacircnia abandonou o filho Valeacuterio Publiacutecola ainda natildeo com catorze anos24 e atravessou o Mediterracircneo em pleno Inverno Contudo esta partida natildeo

19 Amm 211224 cf plre 1 583 laquoMaximus 17raquo20 plre 1 382 laquoGalla 1raquo21 Chausson 2007 97-18722 Plre 1 590-591 ldquoMaximus 49rdquo23 Paul Nol ep 29824 Paul Nol ep 298 Hier chron a 374 Helm Pall hist laus 461 Butler cf Moine 1980

41-43

335

Rodrigo Furtado

estaacute isenta de problemas refiro aqui apenas dois ndash quando partiu afinal Melacircnia E aparentemente mais evidente porque partiu Melacircnia

Comeccedilo pela primeira pergunta de acordo com os trecircs textos que referi de Jeroacutenimo Palaacutedio e Paulino de Nola natildeo teraacute decorrido muito tempo entre a morte dos seus entes queridos e a partida para o Oriente todos querem fazer crer que a decisatildeo de Melacircnia de abandonar tudo e cruzar o Mediterracircneo foi quase imediatahellip e no entanto atentemos em trecircs pormenores Palaacutedio diz que Melacircnia deixou Itaacutelia no principado de Valente isto eacute entre 364 e 378 Este intervalo circunscreve o acontecimento mas eacute ainda demasiado largo Um pouco mais agrave frente na sua Historia Lausiaca o mesmo Palaacutedio assegura que quando do regresso de Melacircnia a Itaacutelia no ano 400 jaacute haacute 37 anos que a matrona levava uma existecircncia dedicada agrave caridade e agrave ascese25 fazendo as contas 400-37 chegamos ao ano 363 O mesmo Palaacutedio26 afirma que em 400 Melacircnia teria sessenta anos teria pois nascido por volta do ano 340 Sendo assim continuando a acreditar em Palaacutedio Melacircnia teria ficado viuacuteva em 362 com os vinte e dois anos que ele proacuteprio refere Todos estes dados satildeo compatiacute-veis com os textos se o marido de Melacircnia tiver morrido em 362 ela pode ter abraccedilado uma vida de caridade e ascese jaacute viuacuteva em 363 e pode ter partido para o Oriente no ano seguinte jaacute depois de 28 de Marccedilo de 364 quando Valente assumiu o principado para todos os efeitos tudo teria ocorrido num tempo curto Contudo Palaacutedio acrescenta uma outra informaccedilatildeo que vem perturbar este edifiacutecio cronoloacutegico Ele tambeacutem diz que a matrona permaneceu em Je-rusaleacutem durante vinte e sete anos ora 400-27=373 o que significa cerca de dez anos depois do periacuteodo que estaacutevamos a considerar De resto o mesmo Palaacutedio diz ainda que Melacircnia estaria no Egito quando da perseguiccedilatildeo movida por Valente contra os monges do Egito fieacuteis a Niceia ora esta perseguiccedilatildeo ocorreu apenas apoacutes a morte do centenaacuterio Atanaacutesio de Alexandria em 2 de Maio de 37327

Recapitulemos Palaacutedio diz que Melacircnia tinha sessenta anos quando re-gressou a Itaacutelia que tinha 22 anos quando ficou viuacuteva que logo apoacutes a morte do marido decide deixar o filho em Roma e parte para Alexandria durante o principado de Valente e que no ano 400 se entregava agrave vida asceacutetica haacute jaacute trinta e sete anos Contudo diz tambeacutem que a sua presenccedila em Jerusaleacutem durou soacute 27 anos e que algures depois de 2 de Maio de 373 estaria no Egito e natildeo na Pales-tina Ou Palaacutedio se enganou nas contas (eacute possiacutevel) ou algum copista se enganou a copiar as datas (o que eacute ainda mais provaacutevel) Descarto desde jaacute a hipoacutetese de Melacircnia ter ficado no Egito 10 anos entre 364-373 entre deixar a Itaacutelia e rumar

25 Pall hist laus 54 Butler26 Pall hist laus 543 Butler27 Pall hist laus 463 Butler

336

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

a Jerusaleacutem ela natildeo eacute compatiacutevel com o texto do proacuteprio Palaacutedio Segundo este mesmo autor Melacircnia teria ficado no Egito apenas ἥμισυ ἔτους (meio ano)

Jeroacutenimo e Paulino de Nola ajudam a esclarecer o imbroacuteglio Paulino que era familiar de Melacircnia e em cuja casa de Nola ela foi acolhida quando chegou a Itaacutelia no ano 400 diz que a matrona teria permanecido em Jerusaleacutem durante cinco lustros isto eacute vinte e cinco anos28 fazendo as contas ficamos com a data de 375 ano que cai dentro ainda do principado de Valente mas eacute ainda irrecon-ciliaacutevel com o tal curto periacuteodo de tempo decorrido entre a viuvez de Melacircnia e o abandono de Roma Jaacute esta a informaccedilatildeo sobre os vinte e cinco anos eacute com-patiacutevel grosso modo com os vinte e sete de estadia em Jerusaleacutem referidos por Palaacutedio algures entre 373 e 375 Melacircnia chegou a Jerusaleacutem Jeroacutenimo eacute o mais expliacutecito dos trecircs autores na primeira ediccedilatildeo do seu Chronicon diz que a partida de Melacircnia de Roma teraacute ocorrido no deacutecimo ano do principado de Valente jaacute em 37429 Paulino e Jeroacutenimo estatildeo pois mais ano menos ano de acordo com a informaccedilatildeo de Palaacutedio que daacute Melacircnia em Jerusaleacutem durante vinte e sete anos mas de modo algum com a ideia de que tendo ficado viuacuteva em 362 Melacircnia teria partido de imediato para o Oriente Creio que eacute esta ideia que deve ser aban-donada Tendo ficado viuacuteva provavelmente em 362 Melacircnia abandonou Roma de facto mas apenas cerca de onze-doze anos depois em 373-374 eacute evidente que Jeroacutenimo Paulino e Palaacutedio querem dar a impressatildeo de que tudo aconteceu de forma muito raacutepida na lsquovocaccedilatildeorsquo cristatilde de Melacircnia natildeo deve ter sido assim durante mais de dez anos Melacircnia deve ter vivido a sua lsquovida obscurarsquo em Roma com o filho e outros familiares que de resto se teratildeo oposto com ferocidade ao seu novo modo de vida segundo o que nos conta Paulino de Nola

Por que razatildeo partiu entatildeo Melacircnia para o Oriente deixando o proacuteprio filho Paulino de Nola diz que laquoabandonando o mundo e o seacuteculo escolheu como dom espiritual a cidade de Jerusaleacutem onde peregrinaria para fora do seu corpo exilada em relaccedilatildeo aos seus co-cidadatildeos tornando-se cidadatilde entre os santosraquo30 Cabe reconhecer o caraacutecter pioneiro de Melacircnia no ato de se retirar de um mundo de honras para se dedicar atraveacutes da ascese agrave vida espiritual E con-tudo haacute pormenores que colocam problemas a esta interpretaccedilatildeo antes de mais a referecircncia de Palaacutedio ao facto de Melacircnia ter partido sem dizer nada a ningueacutem Depois a ideia de poder vir a ser impedida de partir especialmente na eacutepoca em que Valente governava o impeacuterio Mas o que tem Valente a ver com isso Ele era imperador na metade oriental do Impeacuterio Valentiniano I era-o no Ocidente Roma inclusive De qualquer modo por que razatildeo haveria o imperador qualquer que ele fosse de ameaccedilar eventualmente a saiacuteda de Melacircnia

28 Ep 29629 Hier chron a 374 Helm30 Ep 2910

337

Rodrigo Furtado

A famiacutelia de Melacircnia opocircs-se ferozmente agrave sua vida asceacutetica31 Estaria Me-lacircnia a fugir da famiacutelia tentando evitar que a impedissem de partir Eacute possiacutevel mas isso natildeo explica a referecircncia ao imperador

Um olhar pela Roma do ano 373 pode sugerir uma outra razatildeo relacionada com um imperador (embora mais Valentiniano I do que Valente) De acordo com o historiador Amiano Marcelino que nunca fala de Melacircnia os anos entre 369-375 em Roma foram caracterizados pela imposiccedilatildeo da autoridade imperial na Urbe muitas vezes contra o Senado Deve ter sido um processo importante e a elite senatorial entendeu-o como um ataque a si proacutepria32 Eacute neste mesmo con-texto que talvez no iniacutecio de 374 tambeacutem Dacircmaso o bispo de Roma eacute acusado de ser responsaacutevel pelo massacre de seis anos antes na Basiacutelica Juacutelia em pleno forum romanum e tambeacutem pelo assalto na mesma altura agrave basiacutelica de Latratildeo que causara a morte de cento e setenta pessoas33 Natildeo conheccedilo relaccedilotildees directa entre Melacircnia e Dacircmaso mas um dos eacuteditos de Valentiniano I de 30 de Julho de 370 proibia de facto que os cleacuterigos procurassem convencer as matronas romanas a deixar-lhes os seus bens34

Ora precisamente essa era uma acusaccedilatildeo lanccedilada pelas famiacutelias de mu-lheres que como Melacircnia pretendiam abandonar tudo e dedicar-se a uma vida de caridade e ascese estariam a ser aliciadas pelo bispo de Roma ou pelos seus amigos E sabemos como a famiacutelia de Melacircnia se opocircs aos seus desiacutegnios de doar tudo aos pobres e agrave Igreja35 Seria Melacircnia proacutexima do bispo de Roma Natildeo sei

Mas a relaccedilatildeo difiacutecil de estabelecer entre Melacircnia e Dacircmaso natildeo eacute a uacutenica que talvez como hipoacutetese a relacione com o contexto dos processos judiciaacuterios de 369-375 em Roma Um dos senadores condenados foi um tal Avieno jaacute depois de 372 mais ou menos pela altura em que Melacircnia abandonou furtivamente Roma Natildeo se conhece a sua aacutervore genealoacutegica contudo Macroacutebio36 e Sidoacutenio Apolinaacuterio37 a propoacutesito de outros nobres com o mesmo nomen dizem que eles eram parentes dos tardios Valeacuterios Messala Corvino Ora um dos membros desta famiacutelia era precisamente o marido de Melacircnia e natildeo pode ser por acaso que o filho de ambos se veio a chamar Valeacuterio Publiacutecola precisamente o nome do primeiro cocircnsul da Repuacuteblica de quem o Valeacuterio Messala amigo de Rutiacutelio Namaciano reclamava descender38 Haacute pois boas hipoacuteteses de que Avieno seja primo do marido de Melacircnia Natildeo eacute muito

31 Paul Nol ep 291032 Embora a precisar de melhor investigaccedilatildeo vejam-se Alfoumlldy 1952 Hamblenne 1980

Matthews 1989 Vincenti 199133 Pietri 1976 409 Para o contexto do conflito veja-se a siacutentese de Pietri 1976 407-2334 Pietri 1976 41935 Paul Nol ep 291036 Macr Sat 162637 Ep 19438 De reditu suo 1 267-276

338

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

Contudo eacute tentador notar que tudo acontece na mesma altura em que Melacircnia parte agraves escondidas para o Oriente39 Que tivesse aproveitado alguma fragilidade da sua famiacutelia ou que ela proacutepria se sentisse insegura em Roma satildeo boas razotildees para uma fuga em pleno Inverno

Haacute ainda um terceiro problema a propoacutesito desta partida de Melacircnia para o Oriente Paulino de Nola e Jeroacutenimo dizem explicitamente que ao sair de Roma Melacircnia foi para Jerusaleacutem No entanto Palaacutedio faacute-la rumar antes ao Egito como jaacute referi Aqui Palaacutedio diz que ela visitou os monges ascetas da Niacutetria de onde se destacam Pambatildeo os lsquoIrmatildeos Мακροίrsquo Arsiacutesio Serapiatildeo o Grande Pafnuacutecio de Escetes e Isidoro de Alexandria40 Ora quando saiu (ou fugiu) de Roma Melacircnia ou foi para um lado ou para o outro natildeo foi para os dois lados ao mesmo tempo

Haacute pelo menos trecircs fatores que levam a que neste caso confiemos mais na versatildeo de Palaacutedio em primeiro lugar fontes independentes asseguram que Melacircnia manteve com os monges da Niacutetria relaccedilotildees privilegiadas ao longo de toda a sua vida ndash o proacuteprio Palaacutedio era um destes monges do deserto que se convertera ao ascetismo segundo ele proacuteprio conta depois de se ter encontrado com Melacircnia41 Os lsquoAltos Irmatildeosrsquo Isidoro Evaacutegrio e Palaacutedio representam os mais influentes padres do deserto no Egito de finais do seacuteculo IV e iniacutecios do seacuteculo V No Outono de 394 sete monges dos mosteiros de Melacircnia e de Rufino de Aqui-leia estaratildeo no Egito com o asceta Joatildeo de Licoacutepolis Melacircnia era proacutexima pois destes monges do Egito e faz sentido que aiacute se possa ter encontrado com eles42

Aleacutem disso de acordo com Palaacutedio quando Valente persegue estes monges do Egito depois da morte de Atanaacutesio e estes fogem para a Palestina Melacircnia foi com eles para Diocesareia43 a formal verbal usada eacute συνελθοῦσα (o particiacutepio feminino aoristo de συνέρχομαι) melhor ἐν οἷς καὶ αὐτὴ συνελθοῦσα Ao que parece pois segundo Palaacutedio Melacircnia estava no Egito quando Valente lanccedilou mais uma das suas perseguiccedilotildees contra os monges ascetas partidaacuterios de Niceia Soacute depois disso se teria estabelecido em Jerusaleacutem

Uacuteltimo factor Dietz mostrou que uma das caracteriacutesticas das peregrinaccedilotildees no seacuteculo IV pelo menos tatildeo importante quanto a visita a locais santos teraacute sido a visita aos homens santos a contemporacircnea de Melacircnia Egeacuteria que tambeacutem passou pelo Egito antes de se encaminhar para a Palestina eacute disso exemplo pela mesma altura tambeacutem Jeroacutenimo Paula e Eustoacutequio iratildeo primeiro ao Egito antes de se estabelecerem em Beleacutem esta mesma Paula continuaraacute as suas visitas

39 Pietri 1976 41940 Pall hist laus 52-3 9 102-4 462 Butler hist laus 10D Ameacutelineau41 Pall hist laus 44 Butler42 Hist monach prol 2 119 164 2610 Festugiegravere43 463 Butler

339

Rodrigo Furtado

aos homens santos desta feita no Chipre e de novo no Egito44 Sendo assim que Melacircnia tenha comeccedilado por passar meio ano no Egito como refere Palaacutedio natildeo eacute algo excecional mas uma caracteriacutestica do proacuteprio ato de peregrinar na Antiguidade Tardia

Ora neste mundo globalizado que eacute o Mediterracircneo romano lsquosanta Me-lacircniarsquo deixou Roma para se dirigir para Oriente Natildeo se tratou de uma decisatildeo tomada logo apoacutes a morte do marido como os seus laquobioacutegrafosraquo querem fazer crer ndash apenas 11-12 anos depois de enviuvar ela saiu de Roma Provavelmente esperou que o filho se pudesse candidatar a praetor urbanus e iniciar pois o percurso das honras A saiacuteda de Roma foi no entanto furtiva sem dizer nada a ningueacutem durante o Inverno O ambiente de perseguiccedilatildeo que se vivia na Urbe contra alguns dos membros do senado ateacute contra possivelmente um familiar do marido pode ter apressado a partida de Melacircnia Natildeo rumou agrave Palestina como Jeroacutenimo e Paulino dizem ndash por certo foi primeiro ao Egito visitar os santos Padres do deserto como refere um deles Palaacutedio Parecendo que natildeo este dado pode levar a reconsiderar a sua viagem ndash e se Melacircnia natildeo tivesse intenccedilatildeo desde o iniacutecio de se vir a estabelecer na Palestina mas procurasse de facto fazer uma autecircntica peregrinaccedilatildeo como uma viagem longa mas de ida e volta agrave seme-lhanccedila de Egeacuteria De resto se Palaacutedio tiver razatildeo teraacute sido um acontecimento absolutamente fortuito a perseguiccedilatildeo de Valente aos monges da Niacutetria a obrigar Melacircnia a estabelecer-se na Palestina45 onde a matrona milionaacuteria acabaraacute por fundar um mosteiro em Jerusaleacutem em pleno Monte das Oliveiras que chegaraacute a acolher cinquenta virgens

Como jaacute vimos Melacircnia soacute voltaraacute a Itaacutelia cruzando de volta o Mediterracirc-neo romano no ano 400 Eacute Palaacutedio o uacutenico que explica por que razatildeo o teraacute feito

Depois de muitos anos quando ouviu falar da neta que ela tinha casado e de-sejava renunciar ao seacuteculo talvez para que ela natildeo fosse arrastada para alguma maacute doutrina heresia ou maacute vida embarcou num navio aos sessenta anos e a partir de Cesareia chegou a Roma vinte dias depois46

A que se refere Palaacutedio Sem o fazer explicitamente julgo que ele se refere agrave famosa controveacutersia origenista que opocircs Jeroacutenimo a Rufino de Aquileia e aos padres do deserto egiacutepcios e na qual Melacircnia se veraacute envolvida jaacute nos anos 90 do seacuteculo IV47

Esta era uma poleacutemica em torno da doutrina cristatilde e do pensamento de Oriacutegenes de Alexandria o maior teoacutelogo cristatildeo do seacuteculo III a discoacuterdia entre

44 Dietz 2005 121 123 126-28 133 13745 Pall hist laus 463-4 Butler Paul Nol ep 291146 Pall hist laus 54 Butler47 Clark 1992 Furtado 2013

340

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

Jeroacutenimo e Rufino este uacuteltimo o principal amigo de Melacircnia no Oriente radi-cava em torno de assuntos como a preacute-existecircncia ou natildeo das almas humanas em relaccedilatildeo ao corpo a inferiorizaccedilatildeo do corpo e de toda a criaccedilatildeo material ou a ausecircncia de ressurreiccedilatildeo da carne Ora regressado a 397 em Roma Rufino de Aquileia traduzira a Apologia Origenis da autoria de Panfiacutelio e o Peri Archōn de Oriacutegenes Foi o suficiente para que os amigos romanos de Jeroacutenimo procurassem a condenaccedilatildeo do amigo de Melacircnia por difundir doutrinas origenistas Estas traduccedilotildees perderam-se mas natildeo produziram em Roma a condenaccedilatildeo imediata de Rufino talvez porque o papa Siriacuteaco natildeo devia manter boas relaccedilotildees com Jeroacutenimo desde que sucedera a Dacircmaso em 384 Assim eram as relaccedilotildees entre os santos naqueles tempos

Siriacuteaco morreu por sua vez em 399 e foi sucedido por Anastaacutecio O novo bispo de Roma parece dar mais ouvidos aos anti-origenistas e procura concitar o apoio do bispo de Milatildeo contra os que defendiam estas doutrinas No ano 400 Rufino estava pois em perigo assim como as doutrinas origenistas defendidas sobretudo pelos Padres do deserto egiacutepcios os tambeacutem amigos de Melacircnia

Em todo este conflito Melacircnia estaraacute do lado de Rufino o que lhe valeraacute a inimizade posterior de Jeroacutenimo que falaraacute dela como aquela lsquocujo nome que designa escuridatildeo eacute bem testemunha das trevas da sua perfiacutediarsquo48 A etimologia do nome de Melacircnia (cf μελανία=nigredo) apontava de facto para a escuridatildeo O desentendimento vai a tal ponto que Jeroacutenimo apaga Melacircnia da nova ediccedilatildeo do seu Chronicon Eacute neste contexto que a matrona regressa a Itaacutelia eacute provaacutevel que a lsquomaacute doutrina a heresia e a maacute vidarsquo que ameaccedilariam a neta tambeacutem chamada Melacircnia possam ser entendidas pois no contexto deste combate doutrinal entre Rufino e os partidaacuterios de Jeroacutenimo em Itaacutelia

E contudohellip sem rejeitar essa possibilidade pergunto-me se Melacircnia teraacute abandonado Jerusaleacutem de tatildeo livre vontade para proteger os seus contra as perigosas doutrinas de Jeroacutenimo

De facto natildeo foi apenas em Itaacutelia que recrudesceu em 399-400 a luta contra os partidaacuterios das doutrinas de Oriacutegenes por iniciativa de Anastaacutecio de Roma Tambeacutem a Oriente precisamente nestes anos o poderoso bispo Teoacutefilo de Alexandria desencadeava uma dura perseguiccedilatildeo contra os monges do Egito (que tinham entretanto regressado agraves suas celas talvez apoacutes a morte de Valente) Foram pouco teoloacutegicos os motivos que levaram agrave perseguiccedilatildeo de Teoacutefilo ele que antes defendera e protegera os monges do deserto efetivamente os historia-dores Soacutecrates e Sozoacutemeno falam da descoberta de irregularidades financeiras e de corrupccedilatildeo na igreja de Alexandria49 e na recusa do monge Isidoro (o amigo de Melacircnia) em entregar o dinheiro das esmolas destinadas aos pobres para o

48 Hier ep 133349 Socr hist eccl 67 Soz hist eccl 812

341

Rodrigo Furtado

programa de construccedilatildeo de igrejas defendido pelo bispo50 Certo eacute que Teoacutefilo usando o pretexto do pensamento origenista que muitos destes monges parti-lhavam excomungou-os e queimou-lhes as celas muitos deles fugiram primeiro para Jerusaleacutem (talvez para o Monte das Oliveiras onde Melacircnia os pode ter acolhido) e depois para Escitoacutepolis na Decaacutepolis51 Contudo natildeo ficam aiacutehellip natildeo pode ser por mero acaso que nenhum dos monges egiacutepcios que conhecemos tenha permanecido na Palestina depois de 400 encontramo-los logo a seguir em Constantinopla52 Mas por que razatildeo natildeo ficaram os monges na Palestina Creio saber porquecirc Sozoacutemeno diz que Teoacutefilo procurou o favor da corte de Constantinopla para a sua causa contra os monges do deserto obrigando-os a rumarem ao Boacutesforo para se defenderem das acusaccedilotildees Aleacutem disso chegou ateacute noacutes uma carta de Teoacutefilo de Alexandria aos bispos da Palestina e do Chipre (= Hier ep 92) Aqui ele justifica a sua perseguiccedilatildeo contra os monges de Niacutetria e exorta os restantes bispos a imitaacute-lo (= Hier ep 92) Ou seja Teoacutefilo exorta a que a perseguiccedilatildeo seja prosseguida fora do Egito Se os monges se refugiam em Constantinopla junto de Joatildeo Crisoacutestomo eacute verosiacutemil que tambeacutem natildeo se sentissem seguros na demasiado proacutexima Palestina onde se encontrava Melacircnia Ora eacute precisamente nesta mesma altura quando Teoacutefilo movia mundos e fundos contra os origenistas que Melacircnia parte para Roma como referi eacute mais do que provaacutevel que Teoacutefilo tenha estendido a sua perseguiccedilatildeo ateacute Jerusaleacutem tornando pelo menos instaacutevel a presenccedila dos monges egiacutepcios e da sua amiga na regiatildeo ndash que tenham todos saiacutedo da Palestina no mesmo ano eacute sinal suficiente para aventar a possibilidade

Resulta este texto no fundo das incongruecircncias omissotildees lapsos e recon-

struccedilotildees das fontes sobre Melacircnia ndash apesar de normalmente se dizer que uma fonte eacute tanto mais fidedigna quanto mais proacutexima estiver dos acontecimentos que narra O caso de Melacircnia eacute ainda mais excecional porque os trecircs autores que sobre ela mais falam satildeo todos seus contemporacircneos e melhor ainda todos eles conheceram Melacircnia conversaram com ela foram proacuteximos dela Paulino era seu familiar Palaacutedio converteu-se ao ascetismo graccedilas aos seus ensinamentos e Jeroacutenimo depois de a admirar tornou-se um dos seus inimigos E contudo talvez porque foram tudo isso deixam-nos uma imagem de Melacircnia multiforme como santa e como herege Nesse sentido o ato de peregrinar no Mediterracircneo Romano-Cristatildeo se inclui o sentido mais comum da visita a lugares santos enquadra-se na verdade numa semacircntica polieacutedrica ndash Melacircnia mostra-o Nem saiu de Roma imediatamente apoacutes a viuvez imbuiacuteda por uma qualquer acircnsia

50 Socr hist eccl 69 Soz hist eccl 811-1551 Clark 1992 44-4852 Cf Leroux 1972 335-41 e Durand 1976 191-206

342

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

asceta nem talvez quando o fez tenha sido a atraccedilatildeo pelos Lugares Santos o seu primeiro motivo Depois de permanecer no Egito ruma agrave Palestina natildeo por von-tade proacutepria mas provavelmente expulsa com os monges da Niacutetria Um quarto de seacuteculo mais tarde se volta a cruzar o Mediterracircneo jaacute anciatilde admito que o tenha feito mais em fuga do que pelo desejo (que natildeo nego tambeacutem ter existido) de rever ou de proteger os seus familiares e amigos Peregrinar peregrinou contudo nem sempre as razotildees espirituais devem ter funcionado como uacutenica motivaccedilatildeo

343

Rodrigo Furtado

Bibliografia

Alfoumlldy A 1952 A Conflict of Ideas in the Late Roman Empire The Clash between the Senate and Valentinian I trad Harold Mattingly Oxford New York Oxford University Press

Bitton-Ashkelony B 1999 ldquoThe Attitudes of Church Fathers toward pilgrimage to Jerusalem in the fourth and fifth centuriesrdquo In Jerusalem Its sanctity and centrality to Judaism Christianity and Islam ed L L Levine 188-201 New York Continuum

Brown P 1971 ldquoThe Rise and Function of the Holy Man in Late Antiquityrdquo Journal of Roman Studies 6180-101

Cameron Av 1999 ldquoOn Defining the Holy Manraquo in J Howard-Johnston ndash P A Haywardrdquo In The Cult of Saints in Late Antiquity and the Early Middle Ages Essays on the Contribution of Peter Brown ed J Howard-Johnston e Paul Antony Hayward 27-43 Oxford Oxford University Press

Chausson F 2007 Stemmata aurea Constantin Justine Theacuteodose revendications geacuteneacutealogiques et ideacuteologie impeacuteriale au Ive siegravecle ap J-C Roma laquoLrsquoErma raquo di Bretschneider

Chin C M e C T Schroeder eds 2016 Melania Early Christianity through the life of one family California University of California Press

Clark E A 1992 The Origenist controversy The cultural construction of an early Christian debate Princeton New Jersey

Consolino F E 2006 ldquoTradizionalismo e trasgressione nellrsquoeacutelite senatoria romana ritratti di signore fra la fine del iv e lrsquoinizio del v secolordquo In Le trasformazioni delle eacutelites in etagrave tardoantica Atti del convegno internazionale Perugia 15-16 marzo 2004 ed R L Testa 65-139 Roma laquoLrsquoErma raquo di Bretschneider

Dahlman B 2007 ldquoThe Theme of Secret Holinessrdquo In Saint Daniel of Sketis a Group of hagiographic texts edited with introduction translation and commentary 70-89 Uppsala University of Uppsala

Devos P 1973 ldquoSaint Jerocircme contre Poemeniardquo Analecta Bollandiana 91117-20

mdashmdashmdash 1969 ldquolsquoLa servante de Dieurdquo Poemenia drsquoapregraves Pallade la tradition copte et Jean Rufusrdquo Analecta Bollandiana 87189-208

Dietz M 2005 Wandering monks virgins and pilgrims Ascetic travel in the Mediterranean world 300-800 University Park PA The Pennsylvania State University

344

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

Drijvers J W 1992 Helena Augusta the mother of Constantine the Great and the legend of her finding of the True Cross Leiden Brill

Durand M-G 1976 ldquoEvagre le Pontique et le lsquoDialogue sur la vie de saint Jean Chrysostomersquordquo Bulletin de Litteacuterature Eacuteccleacutesiastique 3191-206

Furtado R 2013 ldquoQuando os santos se zangam Melacircnia-a-Antiga cuius nomen nigredinis testatur perfidiae tenebras (Hier ep 1333)rdquo In Mulheres Feminino Plural coord Cristina Santos Pinheiro Anne Martina Emonts Maria da Gloacuteria Franco e Maria Joatildeo Beja 125-41 Funchal Nova Delphi

Hamblenne P 1980 ldquoUne lsquoconjurationrsquo sous Valentinienrdquo Byzantion 50198ndash225

Hunt E D 1982 Holy Land Pilgrimage in the Later Roman Empire ad 312ndash460 Oxford Oxford University Press

Leroux J-M 1972 ldquoJean Chrysostome et la querelle origeacutenisterdquo In Epektasis meacutelanges patristiques offerts au cardinal Jean Danieacutelou ed J Fontaine e Ch Kannengiesser 335-41 Paris Beauchesne

Maraval P 1985 Lieux saints et pegravelerinages drsquoOrient Histoire et geacuteographie des origines agrave la conquecircte Arabe Paris Les Editions du Cerf

Marcos M 2004 ldquoEl origen de la peregrinacioacuten religiosa en el mundo cristiano Jerusaleacuten y Romardquo In Monasterios y peregrinaciones en la Espantildea Medieval ed J A Garciacutea de Cortaacutezar 11-31 Palencia Fundacioacuten Santa Mariacutea La Real Centro de Estudios del Romanico

Mariano A B e A A Nascimento 1998 Egeacuteria Viagem do Ocidente agrave Terra Santa Lisboa Colibri

Matthews J 1989 The Roman Empire of Ammianus London DuckworthMoine N 1980 ldquoMelanianardquo Recherches Augustiniennes 153-79Pietri C 1976 Roma Christiana Recherches sur lrsquoeacuteglise de Rome son organisation

sa politique son ideacuteologie de Militade agrave Sixte III (311-440) Roma Eacutecole Franccedilaise de Rome

Pohlsander H A 1996 Helena Empress and Saint Chicago Ares PublishersRubenson S 2008 ldquoAsceticism and Monasticism I Easternrdquo Constantine to c 600

In Vol 2 de The Cambridge History of Christianity ed Augustine Casiday e Frederick W Norris 637-68 Cambridge Cambridge University Press

Turner V e E Turner 1978 Image and pilgrimage in Christian culture anthropological perspectives New York Columbia University Press

Vincenti U 1991 ldquolsquoPraescriptio forirsquo e senatori nel tardo impero romano drsquoOccidenterdquo Index 19433-40

345

Rodrigo Furtado

Webb D 1999 Pilgrims and pilgrimage in the Medieval West London I B Tauris

Wilkinson J 1977 Jerusalem pilgrims before the crusades Warminster Aris amp Phillips

Wilkinson K W 2012 ldquoThe Elder Melaniarsquos Missing Decaderdquo Journal of Late Antiquity 5166-84

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

347

Iacutendice Teoniacutemico

Iacutendice Teoniacutemico

Alalu 120-21 120 n 71 123 n 78 126Aacutemon (tambeacutem Amon) 44 59-60

59n11 60nn14-15 62-65 62 n 28 65n37 67-68 Ver tambeacutem Zeus Aacutemon

An (tambeacutem Anu Anum) 96 120-22 120-21n71 123n78 125-26

Anaitis 242n32Anu Ver An Anum Ver An Aacutertemis 242n32 250Ascleacutepio 332Aššur (deus) 158-59 161n29 163

168n64Aštabi (tambeacutem Deus Guerra Aštabi)

121Astarteacute 146Atena 242n32 263Balsquolu 123Baal 146Becircl Ver MardukChu 41Cristo Ver JesusDagan 97Daganzipa 121Deus (matriz judaico-cristatilde) 33-34

118n58 159n19 334 Javeacute (tambeacutem Yahweh) 159n19 182-91 191n54 193-94 193nn59-60

Deusa Trono 116Destino (agente personificado) 18 311

315 326 (deusas Destino hititas) 124 124n91 134

Deusas Matildee 124 124n91 134Divindades Irširra 121Divindades Primevas 124Ea 123-27 124n88 134Enlil 78-80 78nn24-25 84 90 93 96Geb 41Grande Rio 132Ḫannaḫanna 116 116n47 124 130

132-34Hathor 44Ḫebat 113-14 121Ḫedammu 119-25 127 129Hera 242 262 269Hoacuterus 43 66Ḫupašiya 107 117 119 125Ḫurri 121Illuyanka 122-23 125 129-30 132-35Impaluri 121Inanna 92 93n25 Ver tambeacutem IštarInara 107 117-19Iacutesis 269Ištar 91 113-14 121 127 161n29 164

Ver tambeacutem Inanna

348

Iacutendice Teoniacutemico

Jesus (tambeacutem Cristo Jesus Cristo Je-sus de Nazareacute) 29 32 34 332-34

Juacutepiter 281-82 282n13 285-86 285n20 288 290n34 (Oacuteptimo Maacuteximo) 317

Kazal 121Kanzura 121Khonsu 62 65 66n49 72Kubaba 112 114Kumarbi 119-27 121n74 122n75

123n78 124n91 129 132 134Lamma 112-13 113n28 122 125-26

129 133Lua (deus Lua hitita) 116 121 Ver

tambeacutem Khonsu Nanna SicircnLugal-Marad 216Maet 59Marduk 16 23 79n19 80-81 83-85

84n37 93 93n25 100 160 203-6 209-218 (Becircl) 212

Mar (deus Mar hitita) 121-22 125-32 127n107 135 205

Marte 288 292Melkart 144n39 146Montu 59 59n11 60n14Mukišanu 121Nabucirc 212Namḫeacute 121Nanna 214 Ver tambeacutem SicircnNekhebet 44-45Ningal 201n3Ninlil 216Ninurta 23Nusku 201n3Osiacuteris 43 269Patilde 116Prata 121-23 121n74 122n75 125 129Ptah 44Reacute 44 64Sadarnunna 201n3

Šamaš 76n5 82-85 84n37 91 159 160n24

Seraacutepis 324Sicircn (tambeacutem Sursquoen) 90n3 201 202 Sol (deus solar) 43 (deus Sol hitita)

115 116n47 117 121 123 125-29 (deusa sol hitita) 115-16 116n44 (deusa Sol de Arinna) 116n44 133 133n32 Ver tambeacutem Šamaš

Tempestade (deus Tempestade hitita) 11520 116n44-45 118n57 122-21 125 118-35 (deus Tempestade de Kuliwišna) 115 (deus Tempestade de Nerik) 114

Teacutetis 261Uadjit 44-45Yahweh Ver Deus (matriz judaico-

-cristatilde)Zababa 216Zeus 264 269Zeus Aacutemon 262

349

Iacutendice Antroponiacutemico

Iacutendice Antroponiacutemico

Abdi-Milkuti 158Abias 261Abraatildeo 24-25 24n9Abravanel 32 34Acab 190-91Aacutecio 291n37 318n64Adad-Guppi 201-2 201n3 213 261Adad-Nirari 216Adea Euriacutedice (matildee de Filipe) 259

259n7 260n12 262-64Adjib 45Adriano 322 324Agaacutetocles 268Agave 264Agripa Poacutestumo (neto de Augusto)

314Agripina Maior (esposa de Germacircnico

matildee de Agripina Menor e Caliacutegu-la) 263n26

Agripina Menor (filha de Tibeacuterio es-posa de Claacuteudio matildee de Nero) 262n21 263n29 314

Ahatmilku 260Alexandre de Jerusaleacutem 332Alexandre Magno 32 257-63 262n20

265 297 331Amaacutesis 240Amenemhat I 62

Amen-hotep I 59Amen-hotep (Sumo Sacerdote) 59n11

60nn14-15 60-62 64 67Amen-hotep II 47 66Ameacutestris (esposa de Xerxes) 239 244

248n80 251-53Ameacutestris (filha de Artaxerxes II)

239n9 241 242n30Amiano Marcelino 377Anastaacutecio (papa) 340Aniacutebal 18 295 298 300 305Anitta 109Antiacutegona (filha de Berenice) 267Antiacuteoco II 264-66Antiacuteoco III 265Antiacutepatro 258-59Antoacutenia Menor 318Antoacutenio Marcelino 333Antoacutenio Vieira P 32 34Apiano 263 296-97 299-305Apil-Sicircn 77Apries 240Aqqi 92 95Aqueacutemenes 246n66Aquiles 261Arioc 24Arnuwanda I 111 113

350

Iacutendice Antroponiacutemico

Aacutersames 239n14Arsiacutenoe II 257 267-69 269n60Arsiacutesio 338Artaacutebano III 325Artaiacutente 251-252Artaxerxes I 238n3 241Artaxerxes II 237-44 246-50Artemiacutesia 272Artistone (filha de Ciro e Cassandane)

239 239n14Aspaacutesia 272Aspaacutesia (concubina de Artaxerxes II)

250 250n96Assaradatildeo 156 160 160n24 196n63

195 261Assurbaniacutepal 155-65 166n54 168

174 176 201-2n3Assurbaniacutepal II 157Astiacuteages 203 226 232Astolpas 300Ataacutelia 272Atanaacutesio de Alexandria 335 338Atossa (filha de Artaxerxes II) 240-41Atossa (filha de Ciro irmatilde de Cam-

bises esposa de Dario I matildee de Xerxes) 237-39 241-42 244-46 249 261

Augusto (tambeacutem Gaio Octaacutevio) 18 260 270-71 278 287-90 290nn33-34 292 298 311-25 321n100

Avieno (senador primo de Melacircnia) 337

Balsquoal de Tiro 194n63Balsquoalicircs de Amon 182Bakenkhonsu 60n15Bar-Rakib 194Basiacutelides (liberto) 324n124Becircl-šarra-uṣur (tambeacutem Baltasar)

203-5 211Berenice 17 257 265-68

Betsabeacute 260Blesila 334Burnaburiaš II 112Cadorlaomer 24Caliacutegula 292 312n7 314-15 314n19

318-20 322 324-26 326n143Cam 23 Cambises 17 218 223n11 229-30 232-33

238-41 241n25 244 246 250-51Canuleio 291n36Cassandane 238 240n18 241n25 251Cassandro 258 259-60Catatildeo de Uacutetica 331Celtiberos 300-301Ceacutesar Ver Juacutelio CeacutesarCiacutecero 282n14 283-84 284-85n19

288 291nn36-37 316n43Cipiatildeo 281n13 287 303n21Circe 264 272Ciro (Ciro o Jovem filho de Dario II

e Parisaacutetide) 238 238n3 247-51 248n82 250n96

Ciro II (Ciro o Grande) 16-17 203-4 204n7 209-10 215-18 217n52 225-26 232-33 238-40 241n25 246 261

Ciacuteton 251Claacuteudio (Imperador Claacuteudio Tibeacuterio

Claacuteudio Nero) 316 318 321n100 Claacuteudio Pulcro 286Clearco 248Cleoacutepatra (Cleoacutepatra VII Filopator)

17 43n16 257 270-73Cleoacutepatra (esposa de Filipe) 258Cleoacutepatra (filha de Filipe) 258Clitemnestra 272Constacircncio II (Constacircncio Ceacutesar) 334Constante 333Constantino I 332 334 341Corneacutelia 273Cranaspes 231

351

Iacutendice Antroponiacutemico

Creso 230Chemaiacuteas (tambeacutem Šemalsquoyāhucirc) 191-92Dalila 272Dalmaacutecio Ceacutesar 334Dacircmaso I (papa) 337 340Daacutenae 265-66Dario I (Dario o Grande) 17 221-

27 229-33 237 238n3 239 239nn13-14 242 244-46 245n58 250-51 261

Dario II 238 238n3 239n9 241 244 246

Dario III 238n3 249Dario (filho de Artaacutebano III) 325David 24 118 118n58 260Deacutecimo Juacutenio Bruto 18 295 301-2Deidamia 259Deacutejoces 17 221 226-30Demarato 232-33 246Democedes de Crotona 245 250Den 44-45 Diocleciano 331Dioniacutesio de Halicarnasso 280 282n14Domiciano 313-15 314n23 319-20

321n102 325Dunānu 163Egeacuteria 332-33 338-39Egibi 205-6Enḫeduanna 90 90n3Enkidu 94Epicuro 265Eratoacutestenes 297Esmeacuterdis 229 239 244 250Estatira (esposa de Artaxerxes II)

239n9 240 242-43 247-48Estrabatildeo 241n25 297 302 305-6Eteacuteocles 316n43Eunaacutepio 332Euriacutedice (matildee de Filipe) Ver Aacutedea Eu-

riacutedice

Euriacutedice (matildee de Ptolemeu I Soacuteter) 267

Euriacutepides 264 268n49 316Euseacutebio de Cesareia 333Eustoacutequio 338Evaacutegrio 338Farnaspes 238Fedima 238 250Fedra 268 272Filipe da Macedoacutenia 258 263-64Filipe Arrideu 259 262Filipe V 304Fiacutelon de Alexandria 314n19 326n143Filoacutetera 267Flamiacutenio 286Flaacutevio Josefo 204 270 272 314n19

324n123 326n143Floro 296-97Fuacutelvia 263n26Gaio (neto de Augusto) 315Gala (mulher de Juacutelio Constacircncio) 334Galba 299 312n4 314-15 320-21 323-24Gaumata 223 225Gemelo (Gemelo Tibeacuterio primo de

Caliacutegula neto de Tibeacuterio) 318n64Gilgameš (tambeacutem Gilgamesh) 94Goacutebrias (tambeacutem Ugbaru) 204 204n7

239n14 246Godolias (tambeacutem Gedalyāhucirc b

rsquoĂḥicircqām) 182 193n60 195Golias 24Haguite 260Hammu-rabi (tambeacutem Hammurabi)

15 75-88 110Hananias (tambeacutem Ḥănanyāh b

lsquoAzzucircr) 187-89 187n40Ḫantili II 110Hatchepsut 43n16 66 66n48 111Hattušili I 110-11Hattušili III 113-15 113n30 260

352

Iacutendice Antroponiacutemico

Helena (Helena de Troacuteia) 245n56Helena (matildee de Constantino I) 332-

33Henoc 31Herihor 57 62-68 63n33Hidarnes 239n9Hipoacutelito 268Hiram I 141-43Histaspes 246n66Humbareš de Nahšimarti 195Ḫuzziya II Ver Zidanta IIIbacircl-picirc-El II 77Intafernes 230-31Isidoro de Alexandria 338 340Ismael 182Ithobaal I 141Jeremias 16 27 179-200Jeroacutenimo 333-36 338-41Jezabel 272Joacaz II (tambeacutem Šallum) 180-81Joatildeo Crisoacutestomo 347Joatildeo de Licoacutepolis 338Joaquim 180-81 185Joaquin 180 187-89 189n47Josefo Ver Flaacutevio JosefoJosias 180-81Juacutelia (filha de Augusto) 315Juacutelio Ceacutesar 17 270 277 288 290 292

301 312 316-17 319 322-24 326 334

Juacutelio Constacircncio 334Justina (esposa de Valentiano I) 334Kameacutes 48Khaemuaset 59 59n11Khamon 59Konyāhucirc b rsquoElnātān 193n58Labashi-Marduk 201n3Laoacutedice I da Siacuteria 17 257 264-67Libu 57n2Lisiacutemaco 268

Lot 24Luacutecio (neto de Augusto) 315Lucreacutecia 273Lugalzagesi 93 96-97 100Maaca 261Macroacutebio 337Maacutecron (prefeito do pretoacuterio) 314n19Magas 267Maneton 38Maništušu 91Marcial 326Marco Antoacutenio 270Marduk-apla-iddina 160Marino de Naacutepoles 332Martana 333Masabates 247Masaharta 63n31 66n49Masistes 246n66 249 251-53Mechuech 57n2 58Medeia 264 272Megabizo 223Melacircnia-a-Antiga 18 331-345Menkheperreacute 63n29 n31 66Merenptah 57n2Merneit (tambeacutem Meritneit) 43n16Meacuteroe (irmatilde de Cambises) 241n25Militatildeo de Sardes 332Mitradates 239n9Mitrobates 231Muršili I 110-11Muršili II 112-13 113n23 118Muwa 111Naboacutenido (tambeacutem Naboacutenides) 91

201-220 261Nabucirc-ahhecirc-iddina 205Nabu-balatsu-iqbi 202Nabucodonosor II 27 181 185n32

187n39 189 193-94 201-2 201n3 205 210

Naquirsquoa-Zakuto 261

353

Iacutendice Antroponiacutemico

Narām-Sicircn 91 98 101Necao II 181 193n59Nedjemet 65 73Nefertiti 260Neitikeret (tambeacutem Nitocris) 43Neoptoacutelemo (rei da Moloacutessia) 258Neriglissar 201n3 202 205Nero 318-20 322-25 226n143Nesiamon 60Nesitas 109Neuacutesta 261Nimerod 23-24 Niquemepa 260Niteacutetis 240Noeacute 23Nur-Daggal 98Nur-Sin 205Oco 249Octaacutevia 271Octaacutevio Ver AugustoOliacutempia (matildee de Alexandre) 17

257-64 262n20 266 271 Ocircnfale 272Opiano 119Oretes 230-32Oriacutegenes 339-40Oroacutesio 296-98Ostanes 238n3Otanes 222-24 223n11 238-39 250Otatildeo 312n4Oxartes 238n3Paddatiššu 110Pafnuacutecio de Escetes 338Palaacutedio 333-36 338-39 341Palaiacutetas 109Pambatildeo 338Panammuwa II 194Panehesi 61 65 67Panfiacutelio 340

Parisaacutetide 237 238n3 239n9 241 243-44 245n58 246-48

Paacutermis 239Parrattarna 111Paser 59 59n11Pauer-reacute 59 59n11Paula 334 338Paulino de Nola 333-37 338-39 341 Paulo de Tarso 332Pemeacutenia 333Peneacutelope 268 272-73Periandro 230n50Persas 28 203 205 216 223 225-26

229 231-32 237-39 241Piankh 64-66Pinedjem I 66-67 66n49Pirro 267Pisiacutestrato 313n13Pitḫana 106Piyaššili (tambeacutem Šarri-Kušuḫ) 112Pliacutenio-o-Jovem 315 317n48Pliacutenio-o-Velho 144n39 319n67Plutarco 17 237-43 238nn2-3 242n30

248n32 245n58 246-49 248n82-83 260 262-63 266-67 270 272 296 305 312n4

Poliacutebio 291 296 304n30Poliperconte 259Pompeio 270 289n31Proclo 332Psameacutetico II 187Psusennes I 66Ptolemeu Cerauno 268Ptolemeu I Soacuteter 267-68Ptolemeu II Filadelfo 265 268 269n56Ptolemeu III 265-66Ptolemeu XII Auletes 270Ptolemeu XIII 270Ptolemeu XIV 270Puduḫepa (tambeacutem Puduhepa) 113-15

354

Iacutendice Antroponiacutemico

113n30 133 133n30 260Ramseacutes II 63n33 66n48Ramseacutes III 57 57n2 59Ramseacutes IV 66n48Ramseacutes VII 58Ramseacutes IX 58-60Ramseacutes X 58-60Ramseacutes XI 57-67 66n48 72Ricircm-Sicircn 76n6 83 84n37 85n41Roacutemulo 282-83nn13-14 288-89Roxana (esposa de Alexandre) 258-59Roxana (irmatilde de Cambises) 241 244Rufino de Aquileia 338-40Rutiacutelio Namaciano 337Safo 272Salmanasar V 99Salomatildeo 118n58 142-43Saluacutestio 291Šallum Ver Joacaz IIŠamaš-haṣir 76n5Samsicirc-Addu 76 91Samuramat 261Sarduaris 158Sargatildeo de Akkad 15 89-105Sargatildeo II (rei da Assiacuteria) 144 159 167

217n52Šarri-Kušuḫ Ver PiyaššiliSebekkareacute Sebekneferu 43n16Sedecias 180-82 185-91 193n57 194Seleuco 265-68Šemalsquoyāhucirc Ver ChemaiacuteasSemerkhet 45Senaquerib 159-60 166n54 167Serapiatildeo o Grande 338Seti I 62 63n33Sidoacutenio Apolinar 337Ṣillicirc-Sicircn 78n15 83 85Sicircn-iddinam 76n5Siriacuteaco (papa) 340

Siwa-palar-huhpak 77 81Smendes I 64 66-68Socles 223Soacutecrates 340Soacutefron 265-66Sozoacutemeno 340-41Suetoacutenio 18 311-29Sula 17 277 287 290Taacutecito 282 305-6 312 312n4 314

314n16 314n19 323Tammaritu 161n29 Taḥpanḥēs 183Tarquiacutenio o Soberbo 282Tarquiacutenio Prisco 280Tauseret 43Teoacutecrito 267 269Teoacutefilo de Alexandria 331 340-41Teritucme 239n9Tessalonica (enteada de Roxana) 259Teumman 155-56 160-69 175Tibeacuterio 312n4 313-15 313nn13-14

314n16 314n19 315n26 317 321-22 321n102 324

Tibeacuterio Alexandre (prefeito do Egipto) 324

Tidal 24Tiglat-Falasar I 157Tiglat-Falasar III (tambeacutem Tiglatpila-

ser III) 144 167 168n64Tii 260Tiribazo 239Tiridates (rei da Armeacutenia) 325Tissafernes 239n9Tito 314-15 314n23 318n66 320Tito Liacutevio 282 296 298 300-301 303Toacutemiris 272Trajano 312n5 313 324Trasilo (astroacutelogo) 315Tukulti Ninurta 23Turi 48

355

Iacutendice Antroponiacutemico

Tutmeacutes I 66 66n48 111Tutmeacutes III 46 46n28 66 66n48Tutmeacutes IV 47 111Ugbaru Ver GoacutebriasUenamon 68Urtaku 160 160n24Ur-Zababa 92-93Valente 334-39Valentiniano I 18 331 334 336-37Valentiniano II 334Valeacuterio Maacuteximo 334Valeacuterio Messala 334 337Valeacuterio Publiacutecola 337Vespasiano 315 318 318n63 320 322

322n111 323-25Viacutendex (revoltoso da Gaacutelia) 323Vistiacutelia (mulher condenada por Tibeacute-

rio) 322n110Viteacutelio 323n4Xenofonte 204 204n7 238n3Xerxes I 238n3 239 242 244 246-47

248n80 249 251-53 261 325Xerxes II 238n3Zidanta II (tambeacutem Ḫuzziya II) 111Zimricirc-Licircm 76n5 78-79 78n12 79n17

80n22 81n26 82 83n34

356

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

Aba 112Abdera 145Abido 304Abul 145Aacuteccio 271Achziv 141 143Aacutefrica 23Aacutefrica Proconsular 333Aacutefrica Subsaariana 65Akkad (cidade de Akkad) 90 90n5

100-101Akkad (paiacutes de Akkad) 214 216Akkad (impeacuterio Acaacutedico) 15 29 89-102Aksaray 98n47Alcaacutecer do Sal 145Alepo 111-12Alexandria 28 267-68 323-24

323n118 326n143 334-35Almaraz 145Alto Egito (tambeacutem Chemau) 44-45

48 61 64 66-67Alta Mesopotacircmia (tambeacutem Norte da

Mesopotacircmia) 76 91n9 100 112 203 Ver tambeacutem Assiacuteria

Alta Nuacutebia Ver KušAmathus 143Amon (estado de) 182 184-85Amorritas 76 78n12 80 95

Amurru (paiacutes de) 78n12 111Anatoacutelia 15 97-98 98n47 107-12

108n3 113n28 119 133 142 213n22

Andaluzia 146n46Anzan 203Araacutebia 201-5 215n36 Araḫtu 112Aranzaḫ 121Arbela 163 163n39Armeacutenia 325Arzawa 108 110Ashdod 93n26 Ashur 85Aacutesia 46n29 237Aacutesia Menor 237 239n9 261 265Aacutesia Ocidental 48 194Assiacuteria (regiatildeo) 91 168 204n7 213n23

231n56 Ver tambeacutem Alta Mesopo-tacircmia

Assiacuteria (impeacuterio Assiacuterio) 101 155-65 168 183-84 202 161

Assiacuterios 27 158 159n19 162 166-68 168n64 232

Aššur (cidade de) 99-100 169Aššuwa 111Astapa 303-4 304n30 Aacutestures 295 297

357

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

Atlacircntico 140 146 148Auza 143n30Azupirānu 92Babiloacutenia (cidade de) 76 80-81 82n32

86n46 93n25 100-101 110 113n28 158 168 192 203-4 210-12 213n25 214 216-18 231n56 248 258 265

Babiloacutenia (impeacuterio Babiloacutenico) 15-16 21 23 27 75-86 91 112 180-192 194 201-218

Babiloacutenios 195 203 210 212-15Bagdad 100Baias 315 324Baixa Mesopotacircmia (tambeacutem Sul da

Mesopotacircmia) 85n41 95n33 96-97 100 168n64

Baixo Egito (tambeacutem Tamehu) 44-45 64 66

Baleares 326Behistun 231n56Biblos 68 142Bicirct-Abdadani 159Bicirct-Adini 157Biacutetia (tambeacutem Bithia) 144Bicirct-Yakīn 160Blasto-feniacutecios 300Borsippa 203 214 216 265Botrys 142Braacutecaros 18 295 301 302n17 305Bretotildees 325Caacutedis (tambeacutem Gadir) 144 144n39Caldeus 160 167 168n64Campo de Marte 288 292Cacircntabros 296Capadoacutecia 332Capitoacutelio 270 287Caacutepreas 323Caralis 144Carambolo 145Caacuteria 247Carmona 145

Cartago 143-44 148Cassitas 23 110Castro Marim 145Celtibeacuteria 301Cerro Alarcoacuten 145Cerro de Maquiz 303n21Cerro del Prado 145Cerro del Villar 145Cerro Macareno 145Cesareia 323n115 339Ceuta 144Chemau Ver Alto EgitoChinear 23-24Chipre 141 143 149 167n61 331 339

341Chorreras 145Cirene 267Ciacutetia 245Coacutenios 300Constantinopla 241Crotona 245 250Cunaxa 247n76Dadanu 203Decaacutepolis 341Deir el-Medina 59Delfos 332Delta (regiatildeo do) 48 58 58n2 67-68Delta do rio Habur 78Diacutedima 332Diocesareia 338Djanet Ver TacircnisDoacuterios 58Dra Abu el-Naga 61ldquoDuas Terrasrdquo (tambeacutem ldquoDois Paiacutesesrdquo)

45 46n27 49 66 Cf EgitoDur-Karashu 202n3Dūr-Šarrukicircn 100 Cf KhorsabadEbabbar (templo de Šamaš em Sippar)

91Ebla 29 97 157

358

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

Ebro 299Ecbaacutetana 228 250Edom 185 203Eacutefeso 265Egeu 58 237Egiacutepcios 39 39n4 46n29 47 48n39

49 240Egito 23 25-26 28 39 42 44-46 47n35

48-49 56-60 62 67-69 92n15 156 165 180-84 187-88 187n40 192n56 193-94 193nn57-59 202 215n36 231n56 240 241n25 244 245n58 246 251 257-58 260 265-70 291 324 326n143 331 335-36 338-42 Ver tambeacutem Alto Egipto Baixo Egipto ldquoDois Paiacutesesrdquo ldquoDuas Terrasrdquo

Ehulhul 201-2n3 202-4 213Ekhulkhul 201n3Ekur (templo de Enlil em Nippur) 90Elam 15 24 75 77-79 77nn9-10

78n15 79nnn17-18 81-83 81n29 98 98n51 156 160-65 160n23 231n56

Elassar 24Elefantina 46n28 60 187El-Hiba 67Emašmaš (templo de Ištar em Niacutenive)

91Epidauro 332Epiro 17 257-58 260-61Esagila (templo de Marduk em Ba-

biloacutenia) 93 100 212 212n15 213n25 214

Escitoacutepolis 341Eski Harracircn 201-2n3 Ver tambeacutem

HarranEšnunna 76-78 77n8 78n12 78n15

81n29 83 83n34 85 85n43Espartanos 232 238Espoleto 287Etruacuteria 280 Etruscos 58 280

Eufrates (tambeacutem Nāhār) 46 78n16 80n22 92 95-97 110-11 183

Europa 237 235 273Extremo Ocidente 143Faium 67Feniacutecios 139ldquoFloresta dos Cedrosrdquo 97Filisteus 26 58Foceia 250n96Friacutegia 231Gadir Ver Caacutedis Gaacutelia 323 326n143 334Gaacutelia Cisalpina 300Gambulu 163Gauleses 268 323Germanos 325Goim 24-25Golfo Peacutersico 96-97Gozo 145Greacutecia 28 58 226n21 237-38 238n3

242 244-46 245n56 249 258 259n7 261 264 269n56

Gregos 32 109 223-27 232-33 238 246 269 272

Gutium 204 204n7Hadrumetum 144Haacutelis 109Ḫamat 181Hardai 61Harran (tambeacutem Harracircn) 201-2n3

202-4 203n5 213 213nn20-23 Cf Eski Harracircn

Ḫaššuwa 110Ḫatti 109-110 110n12 111-13 111n22

113n28 119 131 131n127 134 187 (ldquoTerra do Ḫattirdquo) 117

Ḫattuša 109-110 112-14 133-34Ḫazzi 126Hebreus 16 23 25-29 31 34 118Heacutelade 251 261Helesponto 325

359

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

Herooacutepolis 269Hibra 203Hilleh 202Hippo 144Hispacircnia 18 281n13 287 295-296

299 301 303 305 305n35 316n39 322 324

Hispacircnicos 18 295-297 305n36 306Hititas 29 75 107 108n3 109 121

133-34Huelva 143-44 147n53Hurritas 30 107 109-111 113 123 133Hursagkalama 216Iadihu 203Iatribu 203Iliacuteria 268 233Iliturgi 303Impeacuterio Romano Ver RomaIacutendia 58 258Indo-Europeus 108n3 109Ioacutenia 231 250Isin 76 76nn6-7Israel 25-26 30n23 182-184 261Išuwa 111Itaacutelia 58 114 289-300 320 322 324

333 335-36 339-40Itaacutelia Central 287Jazira 78Jerusaleacutem 28 31 181-89 190n48 191-

92 192n56 195 331-36 338-41Judaacute 16 26-27 179-84 186-90 190n47

192-95 192n56 193n59Judeia 31 324 324n123Judeus 27-28 31 323Kalḫu (tambeacutem Nimrud) 100 157 174Kaneš 109 109n9Karkemiš 112-14Karnak 59n11 60 64-66 68 72-73Katḫaituwa 112n26Khorsabad 100 Cf Dūr-Šarrukicircn

Kiš 92-93 96-97 100 216Kition 143Kizzuwatna 110-11 113Kommos 141Kuch Ver KušKummiya 124Kurdacirc 79n18Kuš (tambeacutem Alta Nuacutebia Kuch)

46n28 48 61 65 187 188n41Kutha 216La Fonteta 145Lagaš 96-97Lampedusa 145Lacircncia 297-98Larsa 15 75-76 75n3 76nn5-7 78

78n12 83-86 84n39 85n45 86n48 96 203 214

Lawazantiya 110 113Leptis Magna 144Levante 47n33 48n37 96Liacutebano 46 97 Cf ldquoFloresta dos Ce-

drosrdquo RetenuLicht 48Liacutedia 215 231 231n53 247Lisboa 145Lixus 144 144n39Lullubu 94n32Lusitacircnia 301Lusitanos 299-301Luvitas 109Macedoacutenia 257-61 263 266 268

269n56 271Macedoacutenios 259 261 268-69Magan 97Maacutelaga 144-45Malgiucircm 76 76n7Malta 145Mankisum 77ldquoMar Inferiorrdquo Ver Golfo PeacutersicoMar Mediterracircneo Ver Mediterracircneo

360

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

ldquoMar Superiorrdquo Ver MediterracircneoMarad 216Maraššantiya 109Mari 78-79 78n12 85 97Meacutedia 17 27 159 204n7 221 225-26

227n29 228Meacutedio Eufrates 78n12Medinet Habu 59-60Mediterracircneo 15 18 46 56 58 69

143 147 149 205 296 325 331 334-35 339 341-42 (Mediterracircneo Central) 139 144 148 (Mediter-racircneo Ocidental) 139-40 144 148 (Mediterracircneo Oriental) 96 331

Medos 159 167 201-2n3 203 203n5 204n7 213n23 215 225-27 232

Meggido 143Meluḫḫa 97Mecircnfis 48Mesopotacircmia 15-16 23-24 26-27 29

33 76n5 77 77n10 79n17 80-81 85 90 92 94 94n30 97 99-100 156 159 210 121n17 213n22 214 Ver tambeacutem Alta Mesopotacircmia Assiacuteria Baixa Mesopotacircmia Sumeacuteria

Miṣpah 182Mitanni 47 108 110-12 123 133Moab 185Mogador 144Moloacutessia 258ldquoMontanhas da Pratardquo (tambeacutem cordil-

heira de Tauro) 97Monte das Oliveiras 339 341Montu 59 59n11 60Morro de Mezquetilla 145Motya 144Mukiš 112Nāhār Ver EufratesNamri 159Napata (Guebel Barkal) 46n28Neobabiloacutenios 182

Nilo (tambeacutem Šihocircr) 46n28 48 67 182-83 240 268 Ver tambeacutem Primeira Catarata Quarta Cata-rata

Nimrud Ver KalḫuNiacutenive 91 121n74 158 160-61

160n23 163 166 174-77Nippur 90 96 203 214Niacutetria 338-39 341-42Niya 112Nola 333-37 339Nōp 183Nora 144ldquoNove Arcosrdquo 46Nuacutebia 45-48 46n28 48n39 61 65 67

Ver tambeacutem Kuš UauatNuhašše 112Numacircncia 305Ocidente 18 101 139-41 143 144n39

149 336 Ver tambeacutem Extremo Ocidente

Oliacutempia 332Opis 203Oriente 18 22 24n10 28 100 140

258 160 269 325 326n143n 331-32 334-36 338-40 Ver tam-beacutem Proacuteximo Oriente

Padakku 203Palaacutecio Sudoeste (Niacutenive) 160-61

160n23 166 174-77Paleopaphos Skales 141ldquoPaiacutes de Sumer e Akkadrdquo 78 79n19

85 85n41 216-17Palermo 144Palestina 18 46n29 47nn34-35 58

179 181-82 202 215n36 331-32 335 338-39 341-42 Cf Siro-Pales-tina Retenu

Pantelaacuteria 145Parsuaš 159Paacutertia 231n56Peacutergamo 332

361

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

Peacutersia 16-17 231 237 242 244-45 245n58 249-50 253

Pidna 259Pi-Ramseacutes 48 58 68Pognon 201Portugal 34 38 145 331Povos do Mar 57-58Primeira Catarata 46 Cf NiloProacuteximo Oriente 15 47 58 78 80 89

96 100-102 108 140-44 148 156 159 165 170 205 261 265 272 Ver tambeacutem Oriente

Puacutenicos 300-301 305Purušḫḫanda 98Puteacuteolos 323-24Qadeš 111Qarkemiš 181 193n59Qatna 112Quarta Catarata 46 46n28 Cf NiloRetenu 46 Ver tambeacutem Siacutero-Palesti-

na PalestinaRetenu Superior 46n29Roma (cidade de) 270 282n14 286

289 292 321n102 323 325 331 333 335-41

Roma (impeacuterio romano) 13 17 21 28-29 39 39n2 271 277 279 290-92 297302 304 306 311 341

Romanos 18 21 32 271 288 291 295 300 302-3 305-6

Sagunto 303-4Salmantica 303 305Samlsquoal 194Samaria 26Semitas 95n33Samotraacutecia 264 268Sangibuti 159Santa Olaia 145Santareacutem 145Sardenha 144 147 286n22 299Sardes 230 251 332

Setuacutebal 332Sevilha 145Sexi 145Siciacutelia 144 286n22 299Siacutedon 158 167n61 185Šihocircr Ver NiloSindjar 86Sippar 91 100n63 201-2n3 216Siacuteria 17 46n29 47n34 78 97 108

110-13 133 142 156 187 203n5 247n71 257 264-66 291 333 Cf Siro-Palestina Retenu

Siacuteria do Norte 97 108 110-11 Cf ldquoFlo-resta dos Cedrosrdquo ldquoMontanhas da Pratardquo Tauro

Siacuterio-palestina (tambeacutem Siacuteria-Pales-tina Corredor siro-palestinense) 45 46n29 47 182 187 Ver tambeacutem Retenu Palestina Siacuteria

Sogdiana 258Solunto 144Šubartum 85Šubat-Enlil 91n10Sulcis 144Sumeacuteria (tambeacutem Sumer) 23 96-97

100Sumeacuterios 95n33Susa 244 246 251 272n71Tamehu Ver Baixo EgitoTacircnis (tambeacutem Djanet) 64 66-68Tauro (cordilheira) Ver ldquoMontanhas

da PratardquoTavira 145Tebas (Greacutecia)Tebas (Egipto) 48 59 59n11 61 63-64

63n31 66-68Teima 201-5 202n3 211 211n10 214-

15 215n36Tessaloacutenica 289n31Tharros 144Ticino 18 295 298

362

Iacutendice Antroponiacutemico

Tigre (rio) 76n7 78n16 96-97Til Tuba 156 160-61 163 165 168 175Tilmun 97Tiro 140 142 144 149 185Toscanos 145Traacutecia 268Turdetanos 300Tuttul 97Uauat (tambeacutem Baixa Nuacutebia) 46n28

48 67 Ugarit 111 141 260Ulaya (rio) 161 163 165Umma 96Upi 77Ur 90n3 92n22 95-96 203 214Urarṭu 158-59Uruk 76 76nn6 93-94 96-97 203 214Uacutetica 144 144n39 331Vale das Rainhas 60Vale dos Reis 66Yamhad 78 79n18Yamutbal 86Yarmuti 96Zalmaqum 79n18

363

Iacutendice de Fontes Antigas

Iacutendice de Fontes Antigas

1 Texto BiacuteblicoAgeu

223 189n47Amoacutes

1-2 30n23Apocalipse

1718 27n19Daniel

239 31n2571 31n25713-14 31n26719-25 31n258-11 31n25

Deuteronoacutemio239 31n2571 31n25713-14 32n19719-25 31n258-11 31n25205-8 191-92n51

Primeiro Livro das Croacutenicas110 23n3

Segundo Livro das Croacutenicas11 118n581121-22 261n1332 27n173613 194

Ezequiel1115 180n31-11 27n20138-10 1871712-19 1941715 19325-31 30n23

Geacutenesis108 23n3108-12 23n4141 24n71414 24n141414-16 24n9144-9 24n8

Isaiacuteas14-24 30n233446-47 30n2336-37 27n17301-7 18440 27n216521-23 191-92n51

Jeremias21-44 183-8422 183213 183214-19 183215 183

364

Iacutendice de Fontes Antigas

216 184218 182 184 193232 184233-37 184236 193236-37 184237 184531 187n36810 187n361318 (TM) 1891411-16 187n36206 187n362210-30 1802224 189n472224 (LXX) 1892228-30 (LXX) 189 189n47239-32 18624 18025-38 30n23267 187n37268 187n372611 187n372616 187n3727 (LXX) 185-7271 (TM) 185272-3 185-86275-6 185277 186278 185279 185 187n37279-10 185279-18 (TM) 1862711 185-862712 1862714-15 1862716 1862716-20 1862716-22 (TM) 1862717 186

2718 1862719 1862719-20 1862719-22 1862721 1862722 18627-28 185 18727-29 16 179 184-87 193-94 28 185 187-90281 185 187n37 188281 (TM) 185282-3 188285 (TM) 188286 (TM) 188286-9 188287 188-89288 1882810 1882810 (TM) 1882811 1882812 (TM) 1882812-16 1882813-14 1882815 (TM) 1882815-17 1882816 188 1922817 1882817 (TM) 1882824 189 189n472824-27 189n472828 189n472828 (LXX) 189n472828 (TM) 189n472828-30 1892830 189n4729 190-92 190n4829 (TM) 182n11291 187n37291-3 190

365

Iacutendice de Fontes Antigas

292 190295-6 190295-7 190-91n51 194296 192297 190298 187n37298-9 1912910-14 1912914 1912914-21 191n532915 190-912916-20 1902921 1912921-23 190-912921-31 1912924-32 1922925-28 1922931 1922931-32 1922932 19234 27n20375 182n9376-8 193377-9 182n93711 182n93711-16 192n5637-39 27n2037-38 18438 180384-5 192n56393 182n10396-9 (TM) 182n113914 195401-3 195407 182n11409-10 195411-3 182n124114-44 1934210-12 192-93 193n60 195

43 183n13461-26 19346-51 30n2352 6-7 182n105210-26 182n115217 1865220 1865230 (TM) 182n14

Joel4 30n23

Judite11 27n18

Lucas21-6 29n2231-3 29n22

Lamentaccedilotildees56 183n18

Miqueias55 24n6

Naum2-3 30n23

Oseias711-13 18421-2 184

Segundo Livro de Reis624-41 26n1617 26nn16-171813-37 27n172329-34 181248-16 261n142410-18 181n82413 (TM) 186n332513 1862525 182n122526 182n13253 182n10257-22 182n11

Primeiro Livro de Samuel81-18 34n33

366

Iacutendice de Fontes Antigas

171-58 24n12Sofonias

1-2 30n23Zacarias

Zac 132-6 187

2 Textos ApoacutecrifosLivro de Henoc

91-93 31n24

3 Fontes HititasAnais de Ḫattušili I

CTH 4 obvi24-26 110n14Eacutedito Constitucional de Telipinu

CTH 19 i28 110n17Tratado de Tudḫaliya I com Paddatiššu

do KizzuwatnaCTH 26 (KUB 34117-20) 110n19

Anais Completos de Muršili IICTH 61 Ano 2 112n26

Muršili II Sobre o Caso TawannannaCTH 70 (KUB 144ii3-12) 113n28

Apologia de ḪattušiliCTH 81 sect9 113n29

Mito de IlluyankaCTH 321 107 114 117-20 117n52

122-23 125 129-30 132-35CTH 321 A obvi28 107n2CTH 321 A obvi11-14 118n56CTH 321 B obvi17rsquo-18rsquo 118n58CTH 321 (2ordf versatildeo) sect21 130n121CTH 321 Diii2 130n121

Telipinu e a Filha do Deus MarCTH 322 128 131-32 135CTH 322 sectsect5-6 Aii6-25 132n130

Desaparecimento do Deus Sol CTH 323 107 117 117n51 123

128nn113-15 128-35CTH 323 sectsect1-2 Ai1-10 128n117CTH 323 sect7 Bi32-41 130nn121-2

Desaparecimento de TelipinuCTH 324 114-15 131-32 134n34CTH 324 A obvi5-9 134n35CTH 324 A obvI29-32 116n46CTH 324 E obvii15rsquo-16rsquo 116n46CTH 324 sect2 Ai4-6 131n125

Desaparecimento do Deus TempestadeCTH 325 115 117CTH 325 sect5 Ai16-21 115n37CTH 325 sect9 Ai34-36 117n49

O Deus Tempestade da Rainha Harapšili

CTH 327 115CTH 327 sect3 Aiii1-4 115n40

O Deus do Escriba PirwaCTH 328 115 115n36CTH 328 (KUB 3332ii5rsquo) 115n39CTH 328 obvi15rsquo 115n41

O Deus Tempestade de KuliwišnaCTH 329 115CTH 329 ii5 115n38 115n41

Anzili e ZukkiCTH 333 115n39

Fragmentos de Mitos de Divindades Ausentes

CTH 335 116n44Mitos da Deusa Inara

CTH 336 sectsect1-2 ii1-10 116n47CTH 336 sect3 Bii4-9 116n46CTH 336 sectsect4-6 Arev2-13 116n47

Canto do Deus LAMMACTH 343 119n64 123 126CTH 343 sectsect6-8 Aiii1-38 123n81CTH 343 sect1-2 Ai2-20 126n105

Canto de KumarbiCTH 344 119-20 119n63 122-27 131CTH 344 A obvi12-14 120n71CTH 344 A obvi18-22 120n71CTH 344 A obvi18-26 123n78

367

Iacutendice de Fontes Antigas

CTH 344 sect2 125n98CTH 344 sect2 Ai5-11 126n100CTH 344 sect3 Ai12-17 126n101CTH 344 sect13 Aii39-54 125n93CTH 344 sectsect18-19 Aii2-29 126n109CTH 344 sect20 Aiii30-39 124n88

Canto de UllikummiCTH 345 120 120n66 122-27CTH 345 sect6 Aii1-8 122n77CTH 345 sectsect6-9 Aii1-37 127n94

126n102CTH 345 sect8 Aii14-19 127n108CTH 345 sect8 Cii7-21 127n108CTH 345 sectsect11-12 Aiii10-18 126n91CTH 345 sectsect25-31 Aiv41-Bi13

125n95 126n102CTH 345 sectsect30-32 Bi1-28 127n111CTH 345 sect32 Bi14-28 126n103CTH 345 sectsect35-37 Bii5-30 125n96 CTH 345 sectsect40-42 123n80CTH 345 sectsect48-49 Aii10-19 126n89CTH 345 sect49 123n80CTH 345 sect49 Aii17 127n99CTH 345 sect49 Aii17-26 124n85CTH 345 sect52 Aii17-12 126n104CTH 345 sectsect56-60 Aiii1-39 124n86CTH 345 sectsect60-63 Aiii30-55

127n92CTH 345 sect65 Aiv9-12 126n87

Canto de ḪedammuCTH 348 120 120n66 122-23 127CTH 348 sect11 127n107CTH 348 sectsect51-52 127n110CTH 348 sectsect61-62 123n83 CTH 348 sect71 124n84 127n106CTH 348 sect93 122n76CTH 348 sectsect111-152 125n97

Canto de PrataCTH 364 120-22 120n65CTH 364 sectsect32-33 121n74

CTH 364 sectsect51-52 122n75Oraccedilatildeo de Puduḫepa agrave Deusa Sol de

ArinnaCTH 384 113n32

O Conjuro da AtaduraCTH 390 132CTH 390 133n131

Ritual para a Construccedilatildeo de um Novo Palaacutecio

CTH 414 115 115n43CTH A obvi34-38 116n44

Sacrifiacutecio e Oraccedilatildeo ao Deus Tempesta-de de Nerik

CTH 671 sect9 rev11-17 131n126A Lua Caiacuteda do Ceacuteu

CTH 727 116CTH 727 C obvii10-14 116n45CTH 727 C reviii10rsquo-11 116n45

Canto da LibertaccedilatildeoCTH 789 120 120n68 127CTH 789 sectsect42-46 ii4rsquo-21rsquo 127n112

Keilschrifturkunden aus Boghazkoumli KUB 144ii3-12 113n28KUB 2738 92n16 KUB 313 92n16KUB 3332ii5rsquo 115n39KUB 34117-20 110n19

4 Fontes da MesopotacircmiaAltbabylonische Briefe

AbB 1310 ls9-12 86n48Anais de Assurbaniacutepal 161

Bvii61 161n30Ancient Near Eastern Texts Relating to

the Old Testament ANET 306 212n14 216n45ANET 313 211n9ANET 315 209n2 212n11-12 217n45ANET 319 213n19ANET 560-62 213n21

368

Iacutendice de Fontes Antigas

ANET 562 211n10ANET 563 214n32

Ancient Records of Assyria and Babylonia ARAB 1764 168n64ARAB 219 167n60ARAB 2514 158n9ARAB 21041 163n39ARAB 21043 163n39ARAB 21045 163n39ARAB 21071 163n39ARAB 21072 161n28

The Annals of SennacheribOIP 223 H2i 4-5 159n19OIP 248 A16 160n20

Archives Royales de Mari ARM 76n5ARM 551 79n17ARM 552 79n17ARM 262370 ls15rsquo-17rsquo 81n20ARM 262379 84n37ARM 262385 ls8rsquo-15rsquo 83n35ARM 262 386 ls6rsquo-10rsquo 85n40ARM 281 81n29ARM 287 79n17ARM 288 79n17ARM 289 79n17

Carta ao deus Aššur 159 159n14 Cilindro de Ciro 204n7 209 212

217n52Coacutedigo de Hammu-rabi 80 83-84

Proacutelogo 13-8 80n23 84n38Proacutelogo 111-13 80n23 84n38Proacutelogo 116-19 81n21Proacutelogo 127 84n38Proacutelogo 145-49 84n38Proacutelogo 464-66 82n30Proacutelogo 55-12 85n44Proacutelogo 514-23 85n44Epiacutelogo 24 R28-34 83n36

Epiacutelogo 25 R95-98 82n31Croacutenica Babiloacutenica

BM 21946 obv2-13 181n6BM 21946 obv5-7 181n7BM 21946 obv12-13 181n8BM 21946 obv21-24 187n39

Croacutenica do Esagila 91 100 100n64l58 91n25Croacutenica de Naboacutenido 203n6 212

215n41 216 Ver ANET 306 Croacutenica dos Reis Antigos 100 100n65

101 101n68Documentaccedilatildeo de Mari

A1931 ls8-11 81n27A4626 ls8rsquo-10rsquo 82n33

Enūma Eliš 24n10 210-11Epopeia de Gilgameš 94

Tab 15-11 94n29Tab 212-13 94nn29-30

Estela de Harran de Naboacutenido 202 213Electronic Text Corpus of Sumerian Lit-

erature ETCSL 174 210n4

Geografia de Sargatildeo 98-99 99n53l 52 94n32ls 57-59 94n30l 58 95n34

Histoacuteria sumeacuteria do diluacutevio Ver ETC-SL 174

Inschriften von Nabonidus Koumlnig von Babylon

Nbn 184 206Nbn 688 206

Lenda de Sargatildeo 90n7 92 92n19ls 8rsquo-9rsquo (frag TRS 73) 93n24l 11 92n20l 14 (frag 3N T 296) 93n23

Litteacuteratures anciennes du Proche-Orient LAPO 3IIA1a-b 90n4LAPO 3IIA1c-d 90n3

369

Iacutendice de Fontes Antigas

LAPO 394 (IH2b) 96nn39-40LAPO 397 (IIA1a1-28) 97n42LAPO 397 (IIA1a 1-34) 98n51LAPO 397 (IIA1a29-63) 97n43LAPO 399 (IIA1b) 97n44LAPO 399 (IIA1b17-35) 97n45 99n57LAPO 16300 83n34LAPO 17733 80n22

Lista dos Reis Sumeacuterios 33n31 90n8Luta Entre Balsquolu e Yammu 123

KTU 11 123n82KTU 11-2 123n82KTU 12 123n82

Meacutemoires de la Deacuteleacutegation en Perse MDP 988 98n52

Narrativa em verso de Naboacutenido 211 213n20 Ver tambeacutem ANET 313

O Casamento de Martu 95O Rei da Batalha 92n15 98

l 18 98n48Oacutestracos de Laqiš

314-18 193 193n58Records from Erech at the time of Na-

bonidus YOS 6103 206

The Royal Inscriptions of Mesopotamia RIMA 1 A0392 i14-22 91n11

91n13RIMA 2 A01011 i22 159n16RIMA 2 A01011 i89-93 157n6RIMA 2 A01011 i116-18 157n7

Sargatildeo o Heroacutei Conquistador 102n70The Royal Inscriptions of Sennacherib

King of Assyria RINAP 31 no15 ls iv23 167n61

State Archives of Assyria SAA 25 iv6-18 194n63SAA 26 195n65SAA 474 160n24SAA 98 163n36

SAA 118 168n65Tratado de Assaradatildeo com Balsquoal de

Tiro Ver SAA 25 iv6-18Tratado de Narām-Sicircn com Awan

(Elam) Ver MDP 988Ur Excavations Texts

UET 123 90n3UET 1271 90n3

7 Fontes EgiacutepciasMateriais papiroloacutegicos

Papiro Abbott 59 61PBerlim 10487 (LRL21) 65n43pBM EA10383 sect25 61n18 Papiro Mayer A 61Papiro de Turim 1887 60Viagem de Uenamon 64 68

6 Fontes Greco-latinasAmiano Marcelino

211224 334n19Apiano

Hisp 33 303 304n29Hisp 59 299Hisp 71 302Hisp 72 302 302n17 305n35Hisp 96-97 305Praef 6 312n5Syr 65 265n38 267n43

AristoacutetelesPol 1311b 258

Ateneu13560f 259n7 264n3013576d 250n9613593 266n3914659f-660a 262n205202d 267n48

Aulo Geacutelio134 258n5 262n20 263n24

370

Iacutendice de Fontes Antigas

Aureacutelio ViacutectorCaes 105 314n23

CiacuteceroLeg agr 227 283n16Leg agr 230 283n16Leg agr 231 283n16Rep 150 317n48Rep 225 284n19Rep 231 284n19Rep 233 284n19Rep 235 284n19Rep 238 284n19

Cteacutesias de CnidoFGrHist 688 F15 239n8 241n26FGrHist 688 F15a 238n3FGrHist 688 F15a51 245n58FGrHist 688 F13(14) 241n25FGrHist 688 F16 239n9 247n71FGrHist 688 F29b 248n83

Corneacutelio NeposEum 186 262nn19-20

Cuacutertio Rufo7136-40 262n20 262n23

DiacutenonFGrHist 690 F15b 248n83FGrHist 690 F26 242n37

Diacuteon Caacutessio37525 301m134143 289n315332 390n3358283 314n196013-4 316n3666262 314n23

Dioniacutesio de Halicarnasso357-62 208n7

Diodoro Siacuteculo1755 238n317776 249n941911 261n18 262nn19-20 262n22

264n301949-51 260n101951 262n22 263n26 263nn27-2849-50 262nm19-20

Egeacuteria233 333n10

ElianoVH 1127 245n60VH 121 250n96

EacutesquiloPers 150-154 242n38Pers 230-244 246n61Pers 607-609 242n39Pers 694-706 244n48Pers 832-838 244n49

Estrabatildeo1715 241n25

EuriacutepidesPh 524 316n43

Euseacutebio de CesareiaHist Eccl 426 332n7Hist Ecll 92 332n6Vita Const 324 333n9

Fiacutelon de AlexandriaLeg 162 326n143Leg 338 326n143

Flaacutevio JosefoAI 1589 270n64AI 1981 326n143AI 19212-225 316n36BI 4601 324n123

Floro23357-58 298n5

HecateuFHG 1339 266n39

Heraclides de CumasFGrHist 689 F1 242n37FGrHist 689 F127 243n43FGrHist 689 F2 250n103

371

Iacutendice de Fontes Antigas

Persikaacute 242n30 245n58Heroacutedoto

191 252n1151952 232n651962 227n281963 226n22 228n41196-101 2261972 227n311973 227n321981 226n25 227n331984 228n351991 228n391992 228n37 228n4011001 227n26 229n4211002 229n4311262 231n5411266 232n641133 252n1201135 249n9011371 230n531138 242n3111881 232n62211 238 242n342162 252n123311-312 245n58311-313 240n16312 249n88314 249n89315 240n17321 240n18322 238n5 240n19331-3 251n1103303 244n53 3311 241n25 244n51 244n513312 241n233314 241n243316 241n25332 244n523324 246n64

3355 230nn47-483361 230n493384 226n213611 244n533683 238n6 250n1003683-5 251n1083685 251n109368-69 250n1013693-6 252n1233696 250n104373 252n1233752 244n53380-82 16 2213803 222n5 223n10 224n163805 224n173811 222n73822 225n183823 223n123823-4 222n63824 223n133825 224n173842 239n12 250n1053882 239n15 241n253882-3 251n1083893 232n6331181 230n52 250n106 252n1233118-119 23031271 231n5531272 231n5931273 231nn57-58 231n60 232n613127-128 230n5131292 245n583129-137 245n5531304 251n10731304-5 251n10831331 239n731542 252n12331592 249n92483 325n130

372

Iacutendice de Fontes Antigas

4201 252n123592α1 223n972-3 246n6573 243n6778 245n59761 239n87642 246n667692 239n14 241n257722 239n14782 246n66797 246n6671021 233n6771034 233n6671044 233nn67-687114 252n1199762 249n9191081 249n9391081-2 259n11291082 251n1149108-113 251n11191093 252nn115-1791101 252n11891103 252n122 253n12491111 248n8 252n121 253n12591112 253n12691113 253n1279112 252n12391131-2 253n128

HesiacuteodoOp 35-39 227n30

HipeacuteridesEux 31-36 262n19

Historia MonachorumProl 2 338n42119 338n42164 338n422610 338n42

Rhetorica ad Herennium 4913 291n40

HomeroIl 14224-353 269n57Od 199-11 227n30

JeroacutenimoChron A 374 Helm 334n24Ep 395 334Ep 92 341Ep 1333 240n48Expl Dan 96 265n38

JustinoEpit 1917 250n102Epit 1727-9 268n53Epit 1469-11 260n11Epit 242-3 268n53

MacroacutebioSat 1626 337n36

MarcialSpect 25-6 325

OpianoH 315-25 119n59

Oroacutesio62110 298n6

Palaacutedio da GalaacuteciaHLaus 52-3 Butler 338n40HLaus 9 Butler 338n40HLaus 102-4 Butler 338n40HLaus 10D Ameacutelineau 338n40HLaus 3514-15 333n11HLaus 44 Butler 338n41HLaus 461 334 334n24HLaus 462 Butler 338n40HLaus 463 Butler 335n27HLaus 463-4 Butler 335n27HLaus 54 Butler 335n25 339n46HLaus 543 Butler 335n26

Paulino de NolaEp 296 336n28Ep 298 333n18 334nn23-24Ep 2910 336n30 337n31 337n35

373

Iacutendice de Fontes Antigas

Ep 2911 339n45 Pausacircnias

877 262n22Platatildeo

Alc 123b-c 247n71Leg 694-698 243n47Plt 293d8 337n30

Pliacutenio-o-MoccediloEp 535 312n6Pan 453 45n48

Pliacutenio-o-VelhoHN 753 265n38

PlutarcoAlex 2 258n2 264n31Alex 2-3 264n33Alex 278 258n5Alex 36 272n71Alex 37 272n71Alex 39 262n31Alex 70 272n71Ant 904 272n72Artax 12 238n3 241n26Artax 21 241n20 247n68Artax 22 241n22 247n69Artax 25 239n9Artax 31 241n32Artax 41 247n70 247n72Artax 43-4 247n73 Artax 51-3 247n73Artax 53 243n40 243n42Artax 6 248n82Artax 64-5 247n74Artax 65 246n63 247n75Artax 145 247n78Artax 152 242n35Artax 161 247n79Artax 171-6 248n80Artax 172 246n62Artax 172-3 243n44

Artax 176 247n75Artax 181-4 248n81Artax 19 248n82Artax 191 243n45Artax 192 243n45 248n83Artax 193-4 248n83Artax 201 238n4Artax 231-2 248n84Artax 232-4 241n27Artax 233 241n29 242n30 246n62Artax 234 241n28 242n30Artax 234-5 242n32Artax 235 242n33Artax 261-2 249n85Artax 262 249n86Artax 265 250n97Artax 269 250n69Artax 271 249n95Artax 272 249n94 250n98Artax 273 242n32Artax 274 239nn10-11 250n99Artax 301 249n87Caes 113-4 316n39Dem 25 268n50Eum 1 272n71Mor 141c 263cMor 173f (Ps) 243Mor 248e-249b 305n32Mor 401b 258n2Mor 489a 266n42Per 249 272n72Per 2411-12 250

Poliacutebio11 291n3813 291n381630-34 3041631 304n29

PolienoStrat 748 305n33

374

Iacutendice de Fontes Antigas

Strat 850 265n35 265n38Strat 857 268n52

PorfiacuterioFHG 3707 265n35

Res Gestae Divi Augusti34 312

Rutiacutelio NamacianoDe reditu suo 1267-276 337n38

SaluacutestioCat 101 291n36

Sidoacutenio ApolinaacuterioEp 194 337n37

Soacutecrates de ConstantinoplaHist Eccl 67 340n49Hist Eccl 69 341n50

SozoacutemenoHist Eccl 811-15 341n50Hist Ecll 812 340n49

SuetoacutenioAug 281 313n8Aug 282 312n6Aug 283 325n134Aug 321 321n97Aug 341 321n99 322n104Aug 403 321n100Aug 405 321n101Aug 411 320n88Aug 431 324n127Aug 44-45 321n102Aug 511 317n53Aug 52 317n50Aug 531 317n51Aug 533 317n52Aug 54 317n54Aug 571 317n55Aug 931 315n31Aug 982 323n116Cal 8 319n76Cal 122 314n19

Cal 161 322n108Cal 191 324n128 Cal 192 324n129Cal 21 325n137Cal 221 312n7 319n68Cal 222 319n69Cal 262 319n76Cal 264 319n76Cal 291 318n64Cal 301 318n64Cal 302 319n76Cal 452 313n12Cal 491 319n76Cal 492 326n143Cal 60 315n29Cl 21 316n37Cl 121 318n61Cl 122 314n19Cl 123 318n62Cl 22 321n97Cl 253 321n100Cl 44 314n20Dom 13 319n70Dom 23 314n22Dom 5 325n135Dom 83 321n102Dom 91 320n90Dom 101 320n84Dom 121 325n136Dom 121-2 320n84Dom 123 319n70Dom 131 319n71Dom 132 319n72Dom 132-3 319n73Dom 141 315 319n74Dom 232 313n10 319n78Gal 61 316n37Gal 92 315n31 324n125Gal 101 323n122

375

Iacutendice de Fontes Antigas

Gal 104 324n126Gal 12 321n94Gal 121 320n81Gal 161 321n95 322n108Jul 61 316n38Jul 291 316n39Jul 302 316n40Jul 303-4 316n41Jul 305 316nn42-43Jul 391 324n127Jul 541 319n79Jul 761 316n44Jul 763 317n45Jul 77 317n46Jul 792 317n47Jul 793 326n143Jul 845 323n118Nero 101 320n90Nero 131 325n131Nero 162 322n107Nero 261 320n80Nero 323 322n107Nero 33 314n21 318n65Nero 373 318n65 319n75Nero 401 323n119Nero 402 326n143Nero 404 316n37Nero 452 323n120Nero 472 326n143Nero 571 316n37Nero 572 325n133Otho 32 313n12Tib 22 314n17Tib 23 313n11Tib 24 313n12 314n15Tib 261 317n56Tib 262 318n57Tib 27 318n58Tib 28 318n59

Tib 30 318n60Tib 322 318-19n56Tib 33 321n97Tib 341 322n105Tib 351 322n110Tib 352 322nn109-10Tib 372 321n102Tib 46-48 321n93Tib 571 318-19n56Tib 592 318n64Tib 69 315n25Tib 732 314nn18-19Tit 1 316n37 318n66Tit 77 326Tit 83 320n87Tit 91 315n27Ves 11 320n84Ves 45 315n31 324n125Ves 56 324n125Ves 71 324n124Ves 73 324n126Ves 91 325n134 326n140Ves 92 321n97 322n112Ves 11 322n106Ves 12 318n65Ves 161 320n82Ves 163 320n82Ves 17 320n89Ves 191 320n90Ves 22 318n63

Taacutecito Ann 11 312n4Ann 1773 318n60Ann 250 322n110Ann 2852-3 322n110Ann 491 314n16Ann 6504-5 314n19Ann 133 312n5Ann 145 268n51

376

Iacutendice de Fontes Antigas

Ann 1542-43 325n138Ger 8 305n34Hist 14 323n121Hist 279 324n123Hist 115-16 314n24

Teoacutecrito125 267n4614 269n5617 269n58

Tito Liacutevio171-3 288n281444-5 288n28451 291n362114 30421438 300n1123445 299n926109 287n26281913 3032822 303n2328223 30428225 304n2728227 304n2928229 304n24

XenofonteAn 11 238n3An 149 247n71An 1102 250n92An 114 247n69Cyr 461-11 204n7Cyr 8812 249n47

377

Volumes publicados na Coleccedilatildeo Humanitas Supplementum

1 Francisco de Oliveira Claacuteudia Teixeira e Paula Barata Dias Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas Vol 1 ndash Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e Roma (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2009)

2 Francisco de Oliveira Claacuteudia Teixeira e Paula Barata Dias Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas Vol 2 ndash Liacutenguas e Literaturas Idade Meacutedia Renascimento Recepccedilatildeo (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2009)

3 Francisco de Oliveira Jorge de Oliveira e Manuel Patriacutecio Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas Vol 3 ndash Histoacuteria Arqueologia e Arte (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2010)

4 Maria Helena da Rocha Pereira Joseacute Ribeiro Ferreira e Francisco de Oliveira (Coords) Horaacutecio e a sua perenidade (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2009)

5 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo Maacutescaras dos Ceacutesares Teatro e moralidade nas Vidas suetonianas (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2009)

6 Joseacute Ribeiro Ferreira Delfim Leatildeo Manuel Troumlster and Paula Barata Dias (eds) Symposion and Philanthropia in Plutarch (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2009)

7 Gabriele Cornelli (Org) Representaccedilotildees da Cidade Antiga Categorias histoacutericas e discursos filosoacuteficos (Coimbra Classica DigitaliaCECHGrupo Archai 2010)

8 Maria Cristina de Sousa Pimentel e Nuno Simotildees Rodrigues (Coords) Sociedade poder e cultura no tempo de Oviacutedio (Coimbra Classica DigitaliaCECHCECCH 2010)

9 Franccediloise Frazier et Delfim F Leatildeo (eds) Tychegrave et pronoia La marche du monde selon Plutarque (Coimbra Classica DigitaliaCECH Eacutecole Doctorale 395 ArScAn-THEMAM 2010)

10 Juan Carlos Iglesias-Zoido El legado de Tuciacutedides en la cultura occidental (Coimbra Classica DigitaliaCECH ARENGA 2011)

11 Gabriele Cornelli O pitagorismo como categoria historiograacutefica (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2011)

12 Frederico Lourenccedilo The Lyric Metres of Euripidean Drama (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2011)

13 Joseacute Augusto Ramos Maria Cristina de Sousa Pimentel Maria do Ceacuteu Fialho Nuno Simotildees Rodrigues (coords) Paulo de Tarso Grego e Romano Judeu e Cristatildeo (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

14 Carmen Soares amp Paula Barata Dias (coords) Contributos para a histoacuteria da alimentaccedilatildeo na antiguidade (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

378

15 Carlos A Martins de Jesus Claudio Castro Filho amp Joseacute Ribeiro Ferreira (coords) Hipoacutelito e Fedra - nos caminhos de um mito (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

16 Joseacute Ribeiro Ferreira Delfim F Leatildeo amp Carlos A Martins de Jesus (eds) Nomos Kosmos amp Dike in Plutarch (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

17 Joseacute Augusto Ramos amp Nuno Simotildees Rodrigues (coords) Mnemosyne kai Sophia (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

18 Ana Maria Guedes Ferreira O homem de Estado ateniense em Plutarco o caso dos Alcmeoacutenidas (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

19 Aurora Loacutepez Andreacutes Pocintildea amp Maria de Faacutetima Silva De ayer a hoy influencias claacutesicas en la literatura (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

20 Cristina Pimentel Joseacute Luiacutes Brandatildeo amp Paolo Fedeli (coords) O poeta e a cidade no mundo romano (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

21 Francisco de Oliveira Joseacute Luiacutes Brandatildeo Vasco Gil Mantas amp Rosa Sanz Serrano (coords) A queda de Roma e o alvorecer da Europa (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

22 Luiacutesa de Nazareacute Ferreira Mobilidade poeacutetica na Greacutecia antiga uma leitura da obra de Simoacutenides (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica DigitaliaCECH 2013)

23 Faacutebio Cerqueira Ana Teresa Gonccedilalves Edalaura Medeiros amp JoseacuteLuiacutes Brandatildeo Saberes e poderes no mundo antigo Vol I ndash Dos saberes (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia2013) 282 p

24 Faacutebio Cerqueira Ana Teresa Gonccedilalves Edalaura Medeiros amp Delfim Leatildeo Saberes e poderes no mundo antigo Vol II ndash Dos poderes (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia 2013) 336 p

25 Joaquim J S Pinheiro Tempo e espaccedilo da paideia nas Vidas de Plutarco (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia 2013) 458 p

26 Delfim Leatildeo Gabriele Cornelli amp Miriam C Peixoto (coords) Dos Homens e suas Ideias Estudos sobre as Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia 2013)

27 Italo Pantani Margarida Miranda amp Henrique Manso (coords) Aires Barbosa na Cosmoacutepolis Renascentista (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2013)

28 Francisco de Oliveira Maria de Faacutetima Silva Tereza Virgiacutenia Ribeiro Barbosa (coords) Violecircncia e transgressatildeo uma trajetoacuteria da Humanidade (Coimbra e Satildeo Paulo IUC e Annablume 2014)

29 Priscilla Gontijo Leite Eacutetica e retoacuterica forense asebeia e hybris na caracterizaccedilatildeo dos adversaacuterios em Demoacutestenes (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2014)

30 Andreacute Carneiro Lugares tempos e pessoas Povoamento rural romano no Alto Alentejo - Volume I (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra

379

Classica Digitalia 2014)31 Andreacute Carneiro Lugares tempos e pessoas Povoamento rural romano no Alto

Alentejo - Volume II (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia 2014)

32 Pilar Goacutemez Cardoacute Delfim F Leatildeo Maria Aparecida de Oliveira Silva (coords) Plutarco entre mundos visotildees de Esparta Atenas e Roma (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2014)

33 Carlos Alcalde Martiacuten Luiacutesa de Nazareacute Ferreira (coords) O saacutebio e a imagem Estudos sobre Plutarco e a arte (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2014)

34 Ana Iriarte Luiacutesa de Nazareacute Ferreira (coords) Idades e geacutenero na literatura e na arte da Greacutecia antiga (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2015)

35 Ana Maria Ceacutesar Pompeu Francisco Edi de Oliveira Sousa (orgs) Greacutecia e Roma no Universo de Augusto (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2015)

36 Carmen Soares Francesc Casadesuacutes Bordoy amp Maria do Ceacuteu Fialho (coords) Redes Culturais nos Primoacuterdios da Europa - 2400 Anos da Fundaccedilatildeo da Academia de Platatildeo (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

37 Claudio Castro Filho ldquoEu mesma matei meu filhordquo poeacuteticas do traacutegico em Euriacutepides Goethe e Garciacutea Lorca (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

38 Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho amp Thomas Figueira (coords) PoacutelisCosmoacutepolis Identidades Globais amp Locais (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

39 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Maria do Ceacuteu Graacutecio Zambujo Fialho amp Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo (coords) O Livro do Tempo Escritas e reescritasTeatro Greco-Latino e sua recepccedilatildeo I (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

40 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Maria do Ceacuteu Graacutecio Zambujo Fialho amp Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo (coords) O Livro do Tempo Escritas e reescritasTeatro Greco-Latino e sua recepccedilatildeo II (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

41 Gabriele Cornelli Maria do Ceacuteu Fialho amp Delfim Leatildeo (coords) Cosmoacutepolis mobilidades culturais agraves origens do pensamento antigo (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

42 Nair de Nazareacute Castro Soares Claacuteudia Teixeira (coords) Legado claacutessico no Renascimento e sua receccedilatildeo contributos para a renovaccedilatildeo do espaccedilo cultural europeu (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

380

43 Franccediloise Frazier amp Olivier Guerrier (coords) Plutarque Eacuteditions Traductions Paratextes (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2017)

44 Claacuteudia Teixeira amp Andreacute Carneiro (coords) Arqueologia da transiccedilatildeo entre o mundo romano e a Idade Meacutedia (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2017)

45 Aldo Rubeacuten Pricco amp Stella Maris Moro (coords) Pervivencia del mundo claacutesico en la literatura tradicioacuten y relecturas (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra eAnnablume 2017)

46 Claacuteudia Cravo amp Susana Marques (coords) O Ensino das Liacutenguas Claacutessicas reflexotildees e experiecircncias didaacuteticas (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2017)

47 Breno Battistin Sebastiani Fracasso e verdade na recepccedilatildeo de Poliacutebio e Tuciacutedides (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2017)

48 Christian Werner Memoacuterias da Guerra de Troia a performance do passado eacutepico na Odisseia de Homero (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018)

49 Paola Bellomi Claudio Castro Filho Elisa Sartor (eds) Desplazamientos de la tradicioacuten claacutesica en las culturas hispaacutenicas (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra eAnnablume 2018)

50 VM Ramoacuten Palerm G Sopentildea Genzor AC Vicente Saacutenchez (eds) Irreligiosidad y Literatura en la Atenas Claacutesica (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018)

51 Luiz Ceacutesar de Saacute Juacutenior Escrever para natildeo morrer retoacuterica da imortalidade no epistolaacuterio de Damiatildeo de Goacuteis (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018)

52 Joseacute Luiacutes Brandatildeo amp Paula Barata Dias (coords) O Melhor eacute a Aacutegua da Antiguidade Claacutessica aos Nossos Dias (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018)

53 Tereza Virgiacutenia Ribeiro Barbosa Matheus Trevizam Juacutelia Batista Castilho de Avellar Tempestades claacutessicas dos Antigos agrave Era dos Descobrimentos (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018)

54 Lorena Jimeacutenez Justicia y Alberto J Quiroga Puertas (eds) Ianus innovacioacuten docente y reelaboraciones del legado claacutesico (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018)

55 Carmen Soares Joseacute Luiacutes Brandatildeo amp Pedro C Carvalho (coords) Histoacuteria Antiga Relaccedilotildees Interdisciplinares Fontes Artes Filosofia Poliacutetica Religiatildeo e Receccedilatildeo (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2018)

381

56 Carmen Soares Joseacute Luiacutes Brandatildeo amp Pedro C Carvalho (coords) Histoacuteria Antiga Relaccedilotildees Interdisciplinares Paisagens Urbanas Rurais amp Sociais (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2018)

57 Isabella Tardin Cardoso Marcos Martinho (eds) Ciacutecero obra e recepccedilatildeo (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018) 239 p [ainda natildeo lanccedilado]

58 Delfim Leatildeo Joseacute Augusto Ramos Nuno Simotildees Rodrigues (coords) Arqueologias de Impeacuterio (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2018)

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

Estas laquoArqueologias de Impeacuterioraquo consistem em 17 estudos que abrangem as vaacuterias aacutereas de

investigaccedilatildeo da Antiguidade A partir das fontes biacuteblicas propotildee‑se uma estruturaccedilatildeo de

categorias e uma organizaccedilatildeo de semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento

da ideia de laquoimpeacuterioraquo Para o caso egiacutepcio foca‑se a problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria

egiacutepcia e a terminologia utilizada para a definir Para o universo dos impeacuterios antigos da

Mesopotacircmia trata‑se a emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise

da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammurabi em

dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio

feniacuteciosiro‑palestinense recorre‑se a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico‑religiosas

elementos para o estudo das realidades poliacuteticas e apresenta‑se uma reflexatildeo sobre

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas

estatildeo representadas por estudos sobre contextos de violecircncia acerca de Jeremias e do

Impeacuterio Neobabiloacutenico sobre Naboacutenido e ainda sobre os diferentes comportamentos

dos reis da regiatildeo relativamente ao culto de Marduk Podemos tambeacutem ler textos sobre a

teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta relativamente aos Persas e acerca das rainhas

na Peacutersia Antiga De igual modo sobre o periacuteodo heleniacutestico reflete‑se sobre o papel e a

importacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera

do poder Nos uacuteltimos quatro estudos propotildee‑se uma genealogia conceptual para a ideia

de imperium no mundo romano atraveacutes da sua historiografia sugerindo‑se ainda uma ideia

de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio

58

Arqu

eolo

gias

de

Impeacute

rio

Coimbra

Del

fim

leatilde

o J

oseacute

Au

gu

sto

RA

mo

s N

uN

o s

imotilde

es R

oD

Rig

ues

(co

oRD

s)Delfim Leatildeo Joseacute Augusto RamosNuno Simotildees Rodrigues (coords)

Arqueologias de Impeacuterio

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

OBRA PUBLICADA COM A COORDENACcedilAtildeO CIENTIacuteFICA

HVMANITAS SVPPLEMENTVM bull ESTUDOS MONOGRAacuteFICOSISSN 2182-8814

Apresentaccedilatildeo esta seacuterie destina-se a publicar estudos de fundo sobre um leque variado de

temas e perspetivas de abordagem (literatura cultura histoacuteria antiga arqueologia histoacuteria

da arte filosofia liacutengua e linguiacutestica) mantendo embora como denominador comum os

Estudos Claacutessicos e sua projeccedilatildeo na Idade Meacutedia Renascimento e receccedilatildeo na atualidade

Breve nota curricular sobre os autores do volume

Delfim F Leatildeo eacute Professor Catedraacutetico do Instituto de Estudos Claacutessicos e investigador do Centro

de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra As suas principais aacutereas de

interesse cientiacutefico satildeo a histoacuteria antiga o direito e a teorizaccedilatildeo poliacutetica dos Gregos a pragmaacutetica

teatral e a escrita romanesca antiga Tem-se dedicado igualmente agrave aacuterea das Humanidades

Digitais

Joseacute Augusto Martins Ramos eacute Professor Emeacuterito da FLUL licenciado em Teologia (Instituto

Catoacutelico de Toulouse 1969) Ciecircncias Biacuteblicas e Orientais (Instituto Biacuteblico de Roma 1972)

doutorado em Histoacuteria Antiga (Universidade de Lisboa 1989) Aacutereas de trabalho Hebraico

Acaacutedico Ugariacutetico Histoacuteria da Antiguidade Preacute-Claacutessica e Histoacuteria das Culturas da Antiguidade

Preacute-Claacutessica Histoacuteria Comparada das Religiotildees Preacute-Claacutessicas Literaturas Preacute-Claacutessicas Histoacuteria

do Cristianismo Antigo tradutor e coordenador cientiacutefico desde 1972 ateacute ao presente em

vaacuterios projetos e modelos diferentes de traduccedilatildeo da Biacuteblia em colaboraccedilatildeo com a Sociedade

Biacuteblica a Difusora Biacuteblica e a Conferecircncia Episcopal Portuguesa Aleacutem do trabalho de traduccedilatildeo e

coordenaccedilatildeo as suas numerosas publicaccedilotildees inscrevem-se na variedade de temaacuteticas referidas

Nuno Simotildees Rodrigues eacute Doutor em Letras especialidade de Histoacuteria da Antiguidade Claacutessica

Professor da Universidade de Lisboa e investigador dos Centros de Histoacuteria e de Estudos Claacutessicos

da ULisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UCoimbra Tem-se dedicado ao estudo da

cultura grega (mitologia e religiatildeo) da sociedade e poliacutetica romanas do fim da Repuacuteblica e iniacutecio

do Principado e da receccedilatildeo de temas claacutessicos no cinema Publicou laquoIudaei in Vrbe Os Judeus em

Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacuteviosraquo (2007) e laquoMitos e Lendas da Roma Antigaraquo

(2ordf ed 2010)

Estas laquoArqueologias de Impeacuterioraquo consistem em 17 estudos que abrangem as vaacuterias aacutereas de

investigaccedilatildeo da Antiguidade A partir das fontes biacuteblicas propotildee-se uma estruturaccedilatildeo de

categorias e uma organizaccedilatildeo de semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento

da ideia de laquoimpeacuterioraquo Para o caso egiacutepcio foca-se a problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria

egiacutepcia e a terminologia utilizada para a definir Para o universo dos impeacuterios antigos da

Mesopotacircmia trata-se a emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise

da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammurabi em

dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio

feniacuteciosiro-palestinense recorre-se a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico-religiosas

elementos para o estudo das realidades poliacuteticas e apresenta-se uma reflexatildeo sobre

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas

estatildeo representadas por estudos sobre contextos de violecircncia acerca de Jeremias e do

Impeacuterio Neobabiloacutenico sobre Naboacutenido e ainda sobre os diferentes comportamentos

dos reis da regiatildeo relativamente ao culto de Marduk Podemos tambeacutem ler textos sobre a

teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta relativamente aos Persas e acerca das rainhas

na Peacutersia Antiga De igual modo sobre o periacuteodo heleniacutestico reflete-se sobre o papel e a

importacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera

do poder Nos uacuteltimos quatro estudos propotildee-se uma genealogia conceptual para a ideia

de imperium no mundo romano atraveacutes da sua historiografia sugerindo-se ainda uma ideia

de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio

  • Arqueologias de Impeacuterio
    • Sumaacuterio
    • ApresentaccedilatildeoDe Imperio ndash De Imperiis
    • Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteriaseguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio(Mythologies Theologies and Taxonomies of History through the biblical idea of empire)
    • Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo(Empires in the History of Ancient Egypt on conceptual validity of laquoImpeacuterioraquo)
    • Comeccedilar de novoa laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio(Starting anew the laquorepetition of birthraquo and Egyptrsquos political transformation on the brink of the 1st Millenium)
    • Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina(Hammu-rabi and the beginning of his hegemonic ascent political order and divine legitimation)
    • lsquoRei das Quatro RegiotildeesrsquoSargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia(lsquoKing of the Four Quarters Sargon of Akkad and the imperial model in Mesopotamia)
    • A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita(The hurritisation of mythological concepts of power in the Hittite Empire)
    • Imperialismo no mundo colonial feniacutecio(Imperialism in the Phoenician colonial world)
    • Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio(Decapitation and exhibition of the enemy as discourse and exercise of power in the neo-Assyrian empire)
    • Beber do Nilo ou do Eufrates O papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute (To drink from the Nile or the Euphrates On the role of (the book of )Jeremiah in legitimising the Neo-Babilonic imperium over Judah)
    • Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico(Nabonidus and the end of the Neobabilonian Empire)
    • A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciro duas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk(The fall of Babylon in 539 BC Nabonidus and Cyrus two different approaches to the cult of god Marduk)
    • Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica(Persian Kings in Herodotusrsquo Histories Law and Freedom roots of the monarchic ideology)
    • Ser rainha na Peacutersia antiga(To be a queen in Ancient Persia)
    • Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas(Peri Basilissas Regarding the political importance of five Hellenistic queens)
    • O Imperium da origem ao Principado1(Imperium from origin to Principate)
    • A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircnia contrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente(Building the empire in Hispania contrasts amongst the narratives on the Roman conquest of the West)
    • Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio(A look over imperial power in Suetonius)
    • Peregrinationes ad loca sancta o estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado(Peregrinationes ad loca sancta the strange route of Melania-the-Elder in a globalised Mediterranean)
    • Iacutendice Teoniacutemico
    • Iacutendice Antroponiacutemico
    • Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico
    • Iacutendice de Fontes Antigas
Page 2: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar

58

Arqu

eolo

gias

de

Impeacute

rio

Coimbra

Del

fim

leatilde

o J

oseacute

Au

gu

sto

RA

mo

s N

uN

o s

imotilde

es R

oD

Rig

ues

(co

oRD

s)

Delfim Leatildeo Joseacute Augusto RamosNuno Simotildees Rodrigues (coords)

Arqueologias de Impeacuterio

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

OBRA PUBLICADA COM A COORDENACcedilAtildeO CIENTIacuteFICA

HVMANITAS SVPPLEMENTVM bull ESTUDOS MONOGRAacuteFICOSISSN 2182-8814

Apresentaccedilatildeo esta seacuterie destina-se a publicar estudos de fundo sobre um leque variado de

temas e perspetivas de abordagem (literatura cultura histoacuteria antiga arqueologia histoacuteria

da arte filosofia liacutengua e linguiacutestica) mantendo embora como denominador comum os

Estudos Claacutessicos e sua projeccedilatildeo na Idade Meacutedia Renascimento e receccedilatildeo na atualidade

Breve nota curricular sobre os autores do volume

Delfim F Leatildeo eacute Professor Catedraacutetico do Instituto de Estudos Claacutessicos e investigador do Centro

de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra As suas principais aacutereas de

interesse cientiacutefico satildeo a histoacuteria antiga o direito e a teorizaccedilatildeo poliacutetica dos Gregos a pragmaacutetica

teatral e a escrita romanesca antiga Tem-se dedicado igualmente agrave aacuterea das Humanidades

Digitais

Joseacute Augusto Martins Ramos eacute Professor Emeacuterito da FLUL licenciado em Teologia (Instituto

Catoacutelico de Toulouse 1969) Ciecircncias Biacuteblicas e Orientais (Instituto Biacuteblico de Roma 1972)

doutorado em Histoacuteria Antiga (Universidade de Lisboa 1989) Aacutereas de trabalho Hebraico

Acaacutedico Ugariacutetico Histoacuteria da Antiguidade Preacute-Claacutessica e Histoacuteria das Culturas da Antiguidade

Preacute-Claacutessica Histoacuteria Comparada das Religiotildees Preacute-Claacutessicas Literaturas Preacute-Claacutessicas Histoacuteria

do Cristianismo Antigo tradutor e coordenador cientiacutefico desde 1972 ateacute ao presente em

vaacuterios projetos e modelos diferentes de traduccedilatildeo da Biacuteblia em colaboraccedilatildeo com a Sociedade

Biacuteblica a Difusora Biacuteblica e a Conferecircncia Episcopal Portuguesa Aleacutem do trabalho de traduccedilatildeo e

coordenaccedilatildeo as suas numerosas publicaccedilotildees inscrevem-se na variedade de temaacuteticas referidas

Nuno Simotildees Rodrigues eacute Doutor em Letras especialidade de Histoacuteria da Antiguidade Claacutessica

Professor da Universidade de Lisboa e investigador dos Centros de Histoacuteria e de Estudos Claacutessicos

da ULisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UCoimbra Tem-se dedicado ao estudo da

cultura grega (mitologia e religiatildeo) da sociedade e poliacutetica romanas do fim da Repuacuteblica e iniacutecio

do Principado e da receccedilatildeo de temas claacutessicos no cinema Publicou laquoIudaei in Vrbe Os Judeus em

Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacuteviosraquo (2007) e laquoMitos e Lendas da Roma Antigaraquo

(2ordf ed 2010)

Estas laquoArqueologias de Impeacuterioraquo consistem em 17 estudos que abrangem as vaacuterias aacutereas de

investigaccedilatildeo da Antiguidade A partir das fontes biacuteblicas propotildee-se uma estruturaccedilatildeo de

categorias e uma organizaccedilatildeo de semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento

da ideia de laquoimpeacuterioraquo Para o caso egiacutepcio foca-se a problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria

egiacutepcia e a terminologia utilizada para a definir Para o universo dos impeacuterios antigos da

Mesopotacircmia trata-se a emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise

da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammurabi em

dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio

feniacuteciosiro-palestinense recorre-se a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico-religiosas

elementos para o estudo das realidades poliacuteticas e apresenta-se uma reflexatildeo sobre

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas

estatildeo representadas por estudos sobre contextos de violecircncia acerca de Jeremias e do

Impeacuterio Neobabiloacutenico sobre Naboacutenido e ainda sobre os diferentes comportamentos

dos reis da regiatildeo relativamente ao culto de Marduk Podemos tambeacutem ler textos sobre a

teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta relativamente aos Persas e acerca das rainhas

na Peacutersia Antiga De igual modo sobre o periacuteodo heleniacutestico reflete-se sobre o papel e a

importacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera

do poder Nos uacuteltimos quatro estudos propotildee-se uma genealogia conceptual para a ideia

de imperium no mundo romano atraveacutes da sua historiografia sugerindo-se ainda uma ideia

de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio

HVMANITAS SVPPLEMENTVM bull ESTUDOS MONOGRAacuteFICOSISSN 2182-8814

Apresentaccedilatildeo esta seacuterie destina-se a publicar estudos de fundo sobre um leque variado de

temas e perspetivas de abordagem (literatura cultura histoacuteria antiga arqueologia histoacuteria

da arte filosofia liacutengua e linguiacutestica) mantendo embora como denominador comum os

Estudos Claacutessicos e sua projeccedilatildeo na Idade Meacutedia Renascimento e receccedilatildeo na atualidade

Breve nota curricular sobre os autores do volume

Delfim F Leatildeo eacute Professor Catedraacutetico do Instituto de Estudos Claacutessicos e investigador do Centro

de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra As suas principais aacutereas de

interesse cientiacutefico satildeo a histoacuteria antiga o direito e a teorizaccedilatildeo poliacutetica dos Gregos a pragmaacutetica

teatral e a escrita romanesca antiga Tem-se dedicado igualmente agrave aacuterea das Humanidades

Digitais

Joseacute Augusto Martins Ramos eacute Professor Emeacuterito da FLUL licenciado em Teologia (Instituto

Catoacutelico de Toulouse 1969) Ciecircncias Biacuteblicas e Orientais (Instituto Biacuteblico de Roma 1972)

doutorado em Histoacuteria Antiga (Universidade de Lisboa 1989) Aacutereas de trabalho Hebraico

Acaacutedico Ugariacutetico Histoacuteria da Antiguidade Preacute-Claacutessica e Histoacuteria das Culturas da Antiguidade

Preacute-Claacutessica Histoacuteria Comparada das Religiotildees Preacute-Claacutessicas Literaturas Preacute-Claacutessicas Histoacuteria

do Cristianismo Antigo tradutor e coordenador cientiacutefico desde 1972 ateacute ao presente em

vaacuterios projetos e modelos diferentes de traduccedilatildeo da Biacuteblia em colaboraccedilatildeo com a Sociedade

Biacuteblica a Difusora Biacuteblica e a Conferecircncia Episcopal Portuguesa Aleacutem do trabalho de traduccedilatildeo e

coordenaccedilatildeo as suas numerosas publicaccedilotildees inscrevem-se na variedade de temaacuteticas referidas

Nuno Simotildees Rodrigues eacute Doutor em Letras especialidade de Histoacuteria da Antiguidade Claacutessica

Professor da Universidade de Lisboa e investigador dos Centros de Histoacuteria e de Estudos Claacutessicos

da ULisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UCoimbra Tem-se dedicado ao estudo da

cultura grega (mitologia e religiatildeo) da sociedade e poliacutetica romanas do fim da Repuacuteblica e iniacutecio

do Principado e da receccedilatildeo de temas claacutessicos no cinema Publicou laquoIudaei in Vrbe Os Judeus em

Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacuteviosraquo (2007) e laquoMitos e Lendas da Roma Antigaraquo

(2ordf ed 2010)

Seacuterie Humanitas SupplementumEstudos Monograacuteficos

Estruturas EditoriaisSeacuterie Humanitas Supplementum

Estudos Monograacuteficos

ISSN 2182‑8814

Diretor PrincipalMain Editor

Delfim LeatildeoUniversidade de Coimbra

Assistentes Editoriais Editoral Assistants

Daniela DantasUniversidade de LisboaJoatildeo Pedro Gomes

Universidade de CoimbraMartim Aires HortaUniversidade de Lisboa

Comissatildeo Cientiacutefica Editorial Board

Carlos FabiatildeoUniversidade de Lisboa

Claacuteudia TeixeiraUniversidade de Eacutevora

Francisco CarameloUniversidade Nova de Lisboa

Inmaculada Vivas SaacuteinzUniversidad Nacional de Educacioacuten a Distancia Madrid

Juan Luis Montero FenolloacutesUniversidad de La Coruntildea

Juan Pablo VitaCCHS‑CSIC Espantildea

Judith MossmanUniversity of Coventry

Luciacutea Diacuteaz‑IglesiasILC‑CCHS‑CSIC Espantildea

Paolo FedeliUniversitagrave degli Studi di Bari laquoAldo Mororaquo

Roberto NicolaiUniversitagrave di Roma laquoLa Sapienzaraquo

Sabino Perea YeacutebenesUniversidad Nacional de Educacioacuten a Distancia Madrid

William J DominikUniversity of Otago

Todos os volumes desta seacuterie satildeo submetidos a arbitragem cientiacutefica independente

Delfim Leatildeo Joseacute Augusto RamosNuno Simotildees Rodrigues (coords)Universidade de Coimbra Centro de Histoacuteria da Universidade de Lisboa

Arqueologias de Impeacuterio

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

Conceccedilatildeo Graacutefica GraphicsRodolfo Lopes Nelson Ferreira

Infografia InfographicsNelson Ferreira

Impressatildeo e Acabamento Printed byKDP

ISSN2182‑8814

ISBN978‑989‑26‑1625‑4

ISBN Digital978‑989‑26‑1626‑1

DOIhttpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1

Tiacutetulo Title Arqueologias de ImpeacuterioArchaeologies of empire

Coords EdsDelfim Leatildeo Joseacute Augusto Ramos Nuno Simotildees Rodrigues

Editores PublishersImprensa da Universidade de CoimbraCoimbra University Presswwwucptimprensa_ucContacto Contact imprensaucptVendas online Online Saleshttplivrariadaimprensaucpt

Elaboraccedilatildeo de Iacutendices Index listing

Daniela DantasMartim Aires Horta

Coordenaccedilatildeo Editorial Editorial CoordinationImprensa da Universidade de Coimbra

copy Setembro 2018

Trabalho publicado ao abrigo da Licenccedila This work is licensed underCreative Commons CC‑BY (httpcreativecommonsorglicensesby30ptlegalcode)

POCI2010

Imprensa da Universidade de CoimbraClassica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis httpclassicadigitaliaucptCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra

Seacuterie Humanitas SupplementumEstudos Monograacuteficos

Projeto UIDELT001962013 ‑ Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra eProjeto UIDHIS043112013 ndash Centro de Histoacuteria da Universidade de Lisboa

Arqueologias de ImpeacuterioArchaeologies of empire

Coordenadores editorsDelfim Leatildeo Joseacute Augusto Ramos Nuno Simotildees Rodrigues (coords)

Filiaccedilatildeo AffiliationUniversidade de Coimbra Centro de Histoacuteria da Universidade de Lisboa Universidade de Lisboa

ResumoEste contributo portuguecircs para a discussatildeo da ideia de laquoImpeacuterioraquo consiste num conjunto de 17 estudos que abrangem tambeacutem as vaacuterias aacutereas de investigaccedilatildeo da Antiguidade A partir das fontes biacuteblicas propotildee‑se uma estruturaccedilatildeo de categorias e uma organizaccedilatildeo de semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento da ideia de laquoimpeacuterioraquo Aborda‑se o caso egiacutepcio focando‑se a problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria egiacutepcia e a terminologia utilizada para a definir bem como a desintegraccedilatildeo poliacutetica que ocorreu no Egito no final do Impeacuterio Novo Para o universo dos impeacuterios antigos da Mesopotacircmia foca‑se a emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammurabi em dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia a guerra contra o Elam e o ataque ao reino de Larsa e reflete‑se sobre o facto de habitualmente ser atribuiacutedo agrave dinastia de Akkad o estatuto de ldquoPrimeiro Impeacuteriordquo Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio feniacuteciosiro palestinense recorre‑se a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico‑religiosas elementos para o estudo das realidades poliacuteticas e apresenta‑se uma reflexatildeo sobre Imperialismo no mundo colonial feniacutecio As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas estatildeo representadas neste livro por estudos sobre contextos de violecircncia militar ou venatoacuteria sobre Jeremias e a defesa de uma submissatildeo divinamente fundamentada de Judaacute ao chamado Impeacuterio Neobabiloacutenico sobre a figura de Naboacutenido o uacuteltimo rei deste periacuteodo e ainda sobre os diferentes comportamentos de Naboacutenido e de Ciro relativamente ao culto de Marduk Sobre a Peacutersia lemos textos sobre a teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta em 380‑82 e acerca das rainhas na Peacutersia Antiga De igual modo sobre o periacuteodo heleniacutestico reflecte‑se sobre o papel e a importacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera do poder Nos uacuteltimos quatro estudos deste conjunto de ensaios propotildee‑se uma genealogia conceptual para a ideia de imperium no mundo romano trata‑se a representaccedilatildeo que na historiografia antiga se faz do processo de construccedilatildeo do imperialismo romano e dos seus intervenientes analisa‑se as Vidas dos Ceacutesares obra em que Suetoacutenio revela a sua interpretaccedilatildeo do poder imperial e a forma como ele deve ser exercido e sugere‑se uma ideia de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio

Palabras‑claveImpeacuterio Egiacutepcio Impeacuterio Assiacuterio Impeacuterio Babiloacutenico Impeacuterio Feniacutecio Impeacuterios Anatoacutelicos Impeacuterio Heleniacutestico Impeacuterio Romano

Abstract This Portuguese contribution to the debate on the concept of ldquoEmpirerdquo brings together 17 essays covering various areas and periods across Antiquity Biblical sources allow us to structure various categories and organize their related meanings as valuable paths to inform our understating of the idea of ldquoEmpirerdquo Egypt first serves as the opportunity to inquire the usefulness of ldquoEmpirerdquo as a concept within the larger discussion of periodization in History as well as the scope and limitations of its definitions as the observed political dissolution in the Late New Kingdom shows Regarding Ancient ldquoMesopotamian Empiresrdquo the first ldquoEmpirerdquo is usually attributed to the political formulas brought forth by the dynasty of Akkad which emerged before the hegemony of Babylon The underlying ideology to Hammurabirsquos social and military policies through two crucial moments in Babylonian History provides the ground to analyze the emergence of its first hegemony the war with Elam and the expedition to the Kingdom of Larsa Approaches to the Anatolian and the PhoenicianSyrian‑Palestinian territories follow a methodology focused on myth and religious narratives and the traces of political realities

found there as well as a reflection on the validity of ldquoimperialismrdquo when applied to the Phoenician colonial world Later Mesopotamian imperial formulas are analyzed within the context of violence military and ritual on Jeremias and the rationale for a heavenly justified submission of Judah to the so‑called ldquoNeo‑Babylonian Empirerdquo on Nabonidus the last king of this dynasty and on the diverging behavior of both Nabonidus and Cyrus to the cult of Marduk Herodotus a privileged source for the classical perception of eastern formulas displays the Persian Empire as the background for different Greek political proposals at play (famously in 380‑82) and informs us of the queenship and the queens of Ancient Persia Moreover the role and status of women in Hellenistic societies is further examined most notably in its relations to power The last four essays propose a conceptual genealogy for the idea of imperium through the Roman World from the representation Ancient Historiography creates of the processes structuring Roman ldquoimperialismrdquo and their agents the interpretation Suetonius proposes of imperial power and how it ought to be used to the validity of a certain notion of ldquoglobalizationrdquo applied to the Late Roman expanse

KeywordsEgyptian Empire Assyrian Empire Babylonian Empire Phoenician Empire Anatolian Empires Hellenistic Empires Ro‑man Empire

Coordenadores

Delfim F Leatildeo eacute Professor Catedraacutetico do Instituto de Estudos Claacutessicos e investiga-dor do Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra As suas principais aacutereas de interesse cientiacutefico satildeo a histoacuteria antiga o direito e a teori-zaccedilatildeo poliacutetica dos Gregos a pragmaacutetica teatral e a escrita romanesca antiga Tem-se dedicado igualmente agrave aacuterea das Humanidades DigitaisOrcid ID 0000-0002-8107-9165 (leoflucpt)

Joseacute Augusto Martins Ramos eacute Professor Emeacuterito da FLUL licenciado em Teologia (Instituto Catoacutelico de Toulouse 1969) Ciecircncias Biacuteblicas e Orientais (Instituto Biacuteblico de Roma 1972) doutorado em Histoacuteria Antiga (Universidade de Lisboa 1989) Aacutereas de trabalho Hebraico Acaacutedico Ugariacutetico Histoacuteria da Antiguidade Preacute-Claacutessica e Histoacuteria das Culturas da Antiguidade Preacute-Claacutessica Histoacuteria Comparada das Reli-giotildees Preacute-Claacutessicas Literaturas Preacute-Claacutessicas Histoacuteria do Cristianismo Antigo tradutor e coordenador cientiacutefico desde 1972 ateacute ao presente em vaacuterios projetos e modelos diferentes de traduccedilatildeo da Biacuteblia em colaboraccedilatildeo com a Sociedade Biacuteblica a Difusora Biacuteblica e a Conferecircncia Episcopal Portuguesa Aleacutem do trabalho de tra-duccedilatildeo e coordenaccedilatildeo as suas numerosas publicaccedilotildees inscrevem-se na variedade de temaacuteticas referidasOrcid ID 0000-0002-3247-2163 (joseramosletrasulisboapt)

Nuno Simotildees Rodrigues eacute Doutor em Letras especialidade de Histoacuteria da Antiguidade Claacutessica Professor da Universidade de Lisboa e investigador dos Centros de Histoacuteria e de Estudos Claacutessicos da ULisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UCoimbra Tem-se dedicado ao estudo da cultura grega (mitologia e religiatildeo) da sociedade e poliacutetica romanas do fim da Repuacuteblica e iniacutecio do Principado e da receccedilatildeo de temas claacutessicos no cinema Publicou Iudaei in Vrbe Os Judeus em Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacutevios (2007) e Mitos e Lendas da Roma Antiga (2ordf ed 2010)Orcid ID 0000-0001-6109-4096 (nonniusflulpt)

Editors

Delfim F Leatildeo is Full Professor at the Institute of Classical Studies and researcher at the Centre for Classical and Humanistic Studies at the University of Coimbra His main areas of scientific interest are ancient history law and political theory of the Greeks theatrical pragmatics and the ancient novel He also has a deep interest in Digital Humanities

Joseacute Augusto Martins Ramos is an Emeritus Professor at the School of Arts and Humanities graduated in Theology (Catholic Institute of Toulouse 1969) Oriental and Biblical Sciences (Biblical Institute at Rome 1972) and has a PhD in Ancient History (University of Lisbon 1989) His main areas of research on which he has published extensively are Hebrew Akkadian Ugaritic History and Culture of Ancient Near-

Eastern Societies Ancient Near-Eastern Literature Comparative History of Religions Ancient Christianity Since 1972 has translated and coordinated various projects on the Bible and its Portuguese translations in collaboration with the Portuguese Biblical Society Difusora Biacuteblica and the Portuguese Episcopalian Conference

Nuno Simotildees Rodrigues is Professor at the University of Lisbon and researcher at the Centres for History and Classical Studies at ULisbon and for Classical and Humanistic Studies at University of Coimbra He has a PhD in Ancient History (Classical History) and his main scientific areas of research are Greek culture (Mythology and Religion) Roman society and politics (from the end of the Republic to the beginnings of the Principate) and also to the reception of Classical themes in cinema He has published ldquoIudaei in Vrberdquo Os Judeus em Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacutevios (2007) and Mitos e Lendas da Roma Antiga (2nd ed 2010)

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De imperiis 13Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno S Rodrigues

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteriaseguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio 21

(Mythologies Theologies and Taxonomies of History through the biblical idea of empire)Joseacute A Ramos

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egipto em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo 37

(Empires in the History of Ancient Egypt on conceptual validity of laquoImpeacuterioraquo)Joseacute das Candeias Sales

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio 57

(Starting anew the laquorepetition of birthraquo and Egyptrsquos political transformation on the brink of the 1st Millenium)

Rogeacuterio Sousa

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemoniaa ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina 75

(Hammu-rabi and the beginning of his hegemonic ascent political order and divine legitimation)Maria de Faacutetima Rosa

laquoRei das Quatro RegiotildeesraquoSargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia 89

(lsquoKing of the four landsrsquo Sargon of Akkad and the imperial model in Mesopotamia)Marcel L Paiva do Monte

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita 107(The hurritisation of mythological concepts of power in the Hittite Empire)Joatildeo Paulo Galhano

Imperialismo no Mundo Colonial Feniacutecio 139(Imperialism in the Phoenician colonial World)Elisa de Sousa

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigocomo discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio 155

(Decapitation and exhibition of the enemy as discourse and exercise of power in the neo-Assyrian empire)

Marcel Paiva do Monte

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do Livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute 179

(To drink from the Nile or the Euphrates On the role of (the book of) of Jeremiah in legitimising the Neo-Babilonic imperium over Judah)

Joatildeo Pedro Vieira

Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico 201(Nabonidus and the end of the Neobabilonian Empire)Antoacutenio Ramos dos Santos

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk 209

(The fall of Babylon in 539 BC Nabonidus and Cyrus two different approaches to the cult of god Marduk)

Maria de Faacutetima Rosa

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedotolei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica 221

(Persian Kings in Herodotusrsquo Histories Law and Freedom roots of the monarchic ideology)Carmen L Soares

Ser rainha na Peacutersia antiga 237(To be a Queen in Ancient Persia)Maria de Faacutetima Silva

Peri BasilissasEm torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas 257

(Peri Basilissas Regarding the political importance of five Hellenistic queens)Nuno Simotildees Rodrigues

O Imperium da origem ao Principado 277(Imperium from origin to Principate)Filipe Carmo

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente 295

(Building the empire in Hispania contrasts amongst the narratives on the Roman conquest of the West)

Amiacutelcar Guerra

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio 311(A look over imperial power in Suetonius)Joseacute Luiacutes Brandatildeo

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado 331

(Peregrinationes ad loca sancta the strange route of Melania-the-Elder in a globalised Mediterranean)

Rodrigo Furtado

Iacutendice Teoniacutemico 347

Iacutendice Antroponiacutemico 349

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico 356

Iacutendice de Fontes Antigas 363

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

13

Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno Simotildees Rodrigues

Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis

O livro que agora se publica resulta de um seminaacuterio interdisciplinar de Histoacuteria Antiga organizado pelos Centros de Histoacuteria da Universidade de Lisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra1 O referido seminaacuterio decorreu na Universidade de Lisboa em trecircs momentos distribuiacutedos pelos seguintes subtemas ldquoFoacutermulas originaacuterias de Impeacuteriordquo ldquoImpeacuterios da era axialrdquo e ldquoImpeacuterios da globalizaccedilatildeordquo

O principal objetivo deste encontro que reuniu especialistas em Estudos da Antiguidade provenientes de seis Universidades portuguesas (Lisboa Coimbra Nova de Lisboa Porto Aberta e Eacutevora) foi refletir sobre o conceito de ldquoImpeacuteriordquo e a sua aplicaccedilatildeo aos momentos-chave da Histoacuteria Antiga do Egito ao Mundo Romano Se para este uacuteltimo caso a aplicaccedilatildeo de uma ideia que eacute na sua origem latinaromana natildeo coloca grandes problemas teoacutericos ou epistemoloacutegicos o mesmo natildeo se poderaacute dizer sobre todas as realidades poliacutetico-institucionais que antecedem o universo romano Com efeito como bem nota Filipe Carmo no texto que aqui se publica imperium eacute um conceito romano com uma evoluccedilatildeo proacutepria e uma aplicaccedilatildeo histoacuterica e historiograficamente especiacutefica pelo que apesar do pragmatismo e da sua utilidade enquanto ferramenta conceptual os historiadores como os arqueoacutelogos e os filoacutelogos devem estar conscientes dos perigos de anacronismo e das limitaccedilotildees epistemoloacutegicas que ele implica2 Isso natildeo obsta poreacutem que a matriz do que reconheceremos como modelo imperial romano remonte agrave Eacutepoca Preacute-Claacutessica como bem mostrou Francis Joannegraves3 Importa tambeacutem por isso refletir sobre a pertinecircncia e eficaacutecia do seu uso quando nos referimos a outras eacutepocas da Histoacuteria muito especialmente as que se definiram antes de Roma se ter assumido como uma macroestrutura poliacutetica que veio a trilhar de modo definitivo o caminho que a Humanidade tem vindo a percorrer desde entatildeo

Aleacutem disso importa ter tambeacutem presente como nota Christophe Badel4 que a noccedilatildeo de ldquoImpeacuteriordquo conhece nos dias de hoje interesse renovado por todos os que se interessam por geopoliacutetica e por cientistas e filoacutesofos poliacuteticos quando se debruccedilam sobre as formas contemporacircneas do nosso ldquouniverso globalizadordquo A

1 Esta investigaccedilatildeo foi realizada no acircmbito dos projetos UIDELT001962013 do Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra e UIDHIS043112013 do Centro de Histoacuteria da Universidade de Lisboa financiados pela FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia

2 Sobre esta problemaacutetica vide tambeacutem Jones 1951 Burchard 1957 Lintott 1981 Richard-son 1991 Martin 1995 Hurlet 2011 Hoeumlt-Van Cauwenberghe 2011 Cresci amp Gazzano 2018

3 Joannegraves 20114 Badel 2011 9

14

Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis

perceccedilatildeo de que aquela eacute uma noccedilatildeo complexa manifesta-se no texto de Badel logo no iniacutecio quando o autor faz questatildeo de explicitar que ldquolrsquousage veut que lrsquoon distingue les deux sens du mot empire par le choix de la minuscule ou de la majuscule en deacutebut de mot LrsquoEmpire designe le regime politique monarchique et lrsquoempire la domination territoriale Nous utiliserons donc la minuscule sauf dans le cas drsquoun empire particulier puisqursquoalors il srsquoagit drsquoun nom propre Nous parlerons donc lsquodes empiresrsquo mais de lsquolrsquoEmpire romainrsquo5

Parece-nos que o alerta de C Badel enuncia jaacute as problemaacuteticas subjacentes ao tratamento desta questatildeo Eacute com ela no horizonte que vaacuterios especialistas se dedicaram jaacute ao tema analisando-a eg no contexto da histoacuteria mesopotacircmica e persa6 grega e heleniacutestica em geral7 e romana (vide referecircncias na nota 2 desta introduccedilatildeo8)

A esses estudos tambeacutem natildeo eacute estranho o conceito de ldquoimperialismordquo enquanto ideia radicada na historiografia do seacuteculo XIX sobretudo e influenciada pelas realidades poliacuteticas de entatildeo nomeadamente o ldquoImpeacuterio Britacircnicordquo Com efeito cedo nos apercebemos de que muito do que a historiografia da Antiguidade ainda hoje utiliza enquanto ferramenta conceptual para o tratamento das questotildees da poliacutetica e do domiacutenio e administraccedilatildeo de territoacuterios a essa realidade muito deve Tambeacutem neste campo deve o historiador estar alerta9

Este contributo portuguecircs para a discussatildeo da temaacutetica consiste num conjunto de 17 estudos que abrangem tambeacutem as vaacuterias aacutereas de estudo da Antiguidade A tiacutetulo de introduccedilatildeo Joseacute Augusto Ramos apresenta um texto intitulado ldquoMitologias teologias e taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuteriordquo com que pretende a partir das fontes biacuteblicas estruturar categorias e organizar semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento da ideia em debate

Para o caso egiacutepcio Joseacute das Candeias Sales escreve sobre ldquoOs Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de lsquoImpeacuteriorsquordquo texto que se foca na problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria egiacutepcia e na terminologia utilizada para a definir Com efeito as foacutermulas ldquoImpeacuterio Antigordquo ldquoImpeacuterio Meacutediordquo e ldquoImpeacuterio Novordquo satildeo por norma as usadas pelos egiptoacutelogos portugueses sendo que o autor se interroga e nos faz interrogar sobre a pertinecircncia da aplicaccedilatildeo do conceito de ldquoimpeacuteriordquo a estas eacutepocas da histoacuteria egiacutepcia Rogeacuterio Sousa reflete acerca de ldquoComeccedilar de novo a lsquorepeticcedilatildeo do nascimentorsquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacuteniordquo sendo o seu ponto de partida a desintegraccedilatildeo poliacutetica que ocorreu no Egito no final do Impeacuterio Novo Segundo o

5 Badel 2011 96 Joannegraves 20117 Gregor 1953 Ste Croix 1954 Mosseacute 2011 Peacutebarthe 2011 Martinez Segraveve 20118 Veja-se ainda Garnsey et Whittaker [1978] 20079 Veja-se Barroll 1980 e Le Roux 2011

15

Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno Simotildees Rodrigues

autor esse periacuteodo partilha muitos aspetos com a crise que afetou as civilizaccedilotildees da bacia do Mediterracircneo na transiccedilatildeo da Idade do Bronze para a Idade do Ferro Muito mais bem documentada no espaccedilo egiacutepcio do que noutros contextos poreacutem esta transiccedilatildeo natildeo irrompeu de forma violenta nem foi acompanhada de uma crise cultural profunda como aparentemente se poderia supor Ainda assim o chamado Terceiro Periacuteodo Intermediaacuterio apresenta uma organizaccedilatildeo poliacutetica completamente distinta que parece ter sido posta em praacutetica ao longo do que se convencionou chamar de ldquoRepeticcedilatildeo do Nascimentordquo

Para o universo dos impeacuterios antigos da Mesopotacircmia contamos com a proposta de Maria de Faacutetima Rosa ldquoHammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divinardquo A autora foca-se na emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammu-rabi em dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia a guerra contra o Elam e o ataque ao reino de Larsa O contributo de Marcel Paiva do Monte tem por tiacutetulo ldquolsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmiardquo Com este estudo M Monte reflete sobre o facto de habitualmente ser atribuiacutedo agrave dinastia de Akkad (ca 2334-2154 aC) o estatuto de ldquoPrimeiro Impeacuteriordquo De facto apesar de o domiacutenio alargado que exerceu sobre o Proacuteximo Oriente revelar uma continuidade com realidades anteriores a vigecircncia de Akkad originou uma nova tradiccedilatildeo que estruturou e marcou definitivamente a cultura poliacutetica mesopotacircmica Akkad tornou-se o paradigma de um horizonte de poder universal e o seu primeiro rei Sargatildeo um modelo de realeza que viria a ser objeto de emulaccedilatildeo por parte de muitas das entidades poliacuteticas que surgiram posteriormente na Mesopotacircmia

Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio feniacuteciosiro-palestinense contamos com os contributos de Joatildeo Paulo Galhano e de Elisa de Sousa Galhano escreve sobre ldquoA hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hititardquo Este estudo recorre a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico-religiosas elementos para o estudo das realidades poliacuteticas Assim analisam-se sobretudo os processos de hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos hititas verificando-se apoacutes anaacutelise da hurritizaccedilatildeo eacutetnica do territoacuterio da Anatoacutelia que nos mitos de divindades ausentes subsistem conceccedilotildees de interdependecircncia e correlaccedilatildeo dos entes divinos a par de uma tendecircncia natildeo hieraacuterquica de organizaccedilatildeo do panteatildeo anatoacutelico antigo As narrativas hurritas trouxeram assim ao panteatildeo anatoacutelico estruturas que evidenciam ideias de realeza divina de valorizaccedilatildeo do horizonte familiar e de diferenciaccedilatildeo das instacircncias de poder Os mitos hurritas trouxeram ainda dimensotildees temporais alargadas e uma encenaccedilatildeo literaacuteria da soberania Sousa apresenta uma reflexatildeo sobre ldquoImperialismo no mundo colonial feniacuteciordquo estudo que se centra na problemaacutetica da colonizaccedilatildeo feniacutecia no Mediterracircneo Central Ocidental e nas costas atlacircnticas Com efeito este processo teve um impacte profundo natildeo soacute em termos socioeconoacutemicos mas tambeacutem culturais

16

Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis

nos territoacuterios ultramarinos da Feniacutecia A evidecircncia disso estaacute no facto de a heranccedila oriental se vir a sobrepor em muacuteltiplas ocasiotildees ao substrato autoacutectone precedente como mostra a evidecircncia da cultura material por exemplo Neste sentido estamos perante relaccedilotildees de domiacutenio que poderatildeo ser interpretadas segundo a autora e na linha de estudos desenvolvidos por Garelli ou Liverani no acircmbito de uma ideia de ldquoimperialismo culturalrdquo

As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas estatildeo representadas neste livro por quatro estudos Marcel Monte oferece-nos um texto sobre a ldquoDecapita-ccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoas-siacuteriordquo Com efeito em contextos de violecircncia militar ou venatoacuteria a decapitaccedilatildeo parece ter sido na Mesopotacircmia um ato de inusitada atrocidade mas com um propoacutesito simbologia e semioacutetica Assim atos como a apropriaccedilatildeo da cabeccedila de um inimigo ou caput hostis seriam essencialmente mecanismos de propaganda a componente visiacutevel de uma sineacutedoque poderosa que manifestava a derrota do adversaacuterio e a ruiacutena de tudo o que isso representava para o vencedor Em siacutentese expressotildees de poder de uma estrutura que se queria hegemoacutenica A investigaccedilatildeo de Joatildeo Pedro Vieira leva por tiacutetulo ldquoBeber do Nilo ou do Eufrates O papel (do Livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacuterdquo e estabelece a relaccedilatildeo entre o periacuteodo neobabiloacutenico e o espaccedilo dos Hebreus Com base em Jr 27-29 este estudo argumenta que Jeremias defendia uma submissatildeo divinamente fundamentada de Judaacute ao chamado Impeacuterio Neobabiloacutenico Suge-re-se ainda que a intervenccedilatildeo sociopoliacutetica daquele profeta poderaacute ter sido reco-nhecida pelas elites poliacuteticas neobabiloacutenicas como instrumento de legitimaccedilatildeo e imposiccedilatildeo do seu poder e domiacutenio sobre Judaacute O terceiro estudo deste grupo eacute da autoria de Antoacutenio Ramos dos Santos e tem por tema ldquoNaboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenicordquo Neste texto lemos sobre a figura de Naboacutenido o uacuteltimo rei daquele periacuteodo bem como sobre a questatildeo do poder reacutegio nesse mesmo contexto Por fim ainda no acircmbito da Babiloacutenia fazendo jaacute a transiccedilatildeo para o universo persa Maria de Faacutetima Rosa daacute-nos a ler ldquoA queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciro duas atitudes divergentes face ao culto do deus Mardukrdquo texto com que a autora analisa algumas fontes cuneiformes que servem para explorar os diferentes comportamentos de Naboacutenido e de Ciro relativamente ao culto de Marduk

Sobre a Peacutersia propriamente dita contamos com os trabalhos de Carmen Soares e de Maria de Faacutetima Silva Especialista em Heroacutedoto C Soares publica ldquoMonarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquicardquo Neste estudo a autora apoia-se na teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta em 380-82 e passa em revista passos fundamentais das Histoacuterias para a caracterizaccedilatildeo dos governos monocraacuteticos dos soberanos persas O que se busca clarificar eacute a forma como a relaccedilatildeo desses governantes com a lei e a liberdadeservidatildeo em que se encontram os que governam nos leva a concluir sobre a inexistecircncia de uma figura modelar de monarca Heroacutedoto

17

Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno Simotildees Rodrigues

oferece sim dos monarcas tanto ldquoretratos mistosrdquo (daqueles que se governam ora com justiccedila ora de modo despoacutetico como Ciro e Dario e antes deles Deacutejoces da Meacutedia) como um ldquoretrato purordquo (do tirano insolente Cambises) Igualmente perita nos textos do pater historiae M F Silva disserta acerca de ldquoSer rainha na Peacutersia Antigardquo Para isso poreacutem a autora recorre natildeo apenas agraves informaccedilotildees fornecidas por Heroacutedoto mas tambeacutem a outros textos gregos coevos ou posteriores como os de Eacutesquilo e Plutarco Com efeito estes satildeo os autores que em diferentes eacutepocas melhor retratam a vida na corte persa e a in-fluecircncia feminina que circundava os seus monarcas Mas eacute de salientar tambeacutem que apesar do muito que se sugere historicamente verdadeiro natildeo seraacute pouco o que ali lemos que teraacute sido composto sob as cores da fantasia e da ideologia do contexto poliacutetico-cultural dos autores desses textos

O periacuteodo heleniacutestico estaacute representado pelo estudo de Nuno Simotildees Rodrigues ldquoPeri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticasrdquo Com este trabalho o autor pretende refletir sobre o papel e a im-portacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera do poder a partir do estudo de cinco casos Oliacutempia do Epiro Laoacutedice I da Siacuteria Berenice I do Egito Arsiacutenoe II do Egito e Cleoacutepatra VII do Egito

Eacute ao periacuteodo romano que se dedicam os uacuteltimos quatro estudos deste conjunto de ensaios O primeiro deles eacute da autoria de Filipe Carmo e consiste num ensaio em que o autor tenta estabelecer uma genealogia conceptual para a ideia de imperium no mundo romano Assim em ldquoO Imperium da origem ao principadordquo F Carmo comeccedila por assinalar o facto de originalmente e para al-guns autores o conceito se relacionar com o ldquopoder soberano de comandordquo um poder absoluto de vida e de morte ndash e por isso tambeacutem de implicaccedilotildees religiosas que se manifestavam na esfera dos auspicia ndash ao qual os ldquosuacutebditosrdquo deviam obedecer sem restriccedilotildees O estudo da evoluccedilatildeo do conceito ndash que para outros historiadores poderaacute ter tido origem no estabelecimento de uma hegemonia do Estado Romano sobre outros estados ou no comando militar de uma alianccedila ou ainda numa afirmaccedilatildeo de caraacutecter pessoal uma potecircncia carismaacutetica condu-cente ao ecircxito assumida pelo chefe ndash leva-nos a verificar a sua compatibilidade com a ideia de cidadania e naturalmente a natildeo entender a referida obediecircncia de um modo absoluto A aquisiccedilatildeo do imperium pelos magistrados superiores da cidade estaria por outro lado estreitamente associada a uma sucessatildeo de atos de natureza civil e religiosa cujo natildeo cumprimento adequado poria em causa a legitimidade do exerciacutecio de tal poder Para Carmo teraacute sido precisamente uma crise dessa legitimidade iniciada pela atomizaccedilatildeo do poder e derivada das con-quistas romanas e das guerras civis que conduziu numa fase posterior ndash atraveacutes das ditaduras de Sula e de Ceacutesar dos triunviratos e da criaccedilatildeo do principado ndash a uma reaccedilatildeo que levou agrave concentraccedilatildeo progressiva do imperium e agrave institucio-nalizaccedilatildeo do imperium Romanum sob formas que jaacute satildeo proacuteximas dos conceitos modernos de ldquoimpeacuteriordquo e ldquoimperialismordquo Amiacutelcar Guerra analisa a problemaacutetica

18

Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis

de ldquoA construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircnia contrastes das narrativas da conquis-ta romana do Ocidenterdquo Com este estudo A Guerra trabalha a representaccedilatildeo que na historiografia antiga se faz do processo de construccedilatildeo do imperialismo romano e dos seus intervenientes Essa representaccedilatildeo parece depender de uma perspetiva enformada pela cultura greco-latina naturalmente bem como pelos seus paradigmas Deste modo o quadro que se transmite dos povos hispacircnicos deve ser sempre lido a partir dessa chave apresentando-se em oposiccedilatildeo agravequeles numa dicotomia que com frequecircncia se associa agrave oposiccedilatildeo entre civilizaccedilatildeo e barbaacuterie De qualquer modo verifica-se que a visatildeo desse mundo natildeo eacute necessa-riamente linear sendo que dispomos de um nuacutemero consideraacutevel de exemplos que ilustram a complexidade do panorama Neste sentido apresentam-se alguns exemplos em que de alguma forma se enuncia uma imagem reversa por um lado a arenga de Aniacutebal aos seus soldados antes da batalha do Ticino em que o general apresenta a sua perspetiva sobre o comportamento dos Romanos por outro referem-se alguns episoacutedios em que se potildee em evidecircncia o heroiacutesmo de mulheres hispacircnicas a comeccedilar pelo que ocorre entre os Braacutecaros no contexto da campanha galaica de Deacutecimo Juacutenio Bruto A Joseacute Luiacutes Brandatildeo cabe escrever acerca de ldquoUm olhar sobre o poder imperial em Suetoacuteniordquo Especialista nesse historiador latino Brandatildeo apresenta uma minuciosa anaacutelise das Vidas dos Ceacutesares obra em que Suetoacutenio revela a sua interpretaccedilatildeo do poder imperial e a forma como ele deve ser exercido Em Suetoacutenio esse eacute um poder que deve conduzir a um novo e melhor Estado como aquele fundado por Augusto mas que no entanto assenta numa sucessatildeo mal definida e imprevisiacutevel em que o destino desempenha um papel fulcral Com efeito esse poder sendo ilimitado e potencialmente incontrolaacutevel depende do caraacutecter de quem o possui podendo oscilar entre um comportamento tiracircnico e individualista e uma atitude pater-nal e por consequecircncia universalista que abarca todas as aacutereas de intervenccedilatildeo governativa todas as ordens e todos os povos Por fim Rodrigo Furtado propotildee uma ideia de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio em ldquoPeregrinationes ad loca sancta o estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizadordquo Com este estudo como nota o autor e perante incongruecircncias omissotildees lapsos e reconstruccedilotildees das fontes sobre Melacircnia-a-Antiga procura-se aduzir elementos que permitem concluir que Melacircnia partiu para o Oriente ca 374 no contexto das perseguiccedilotildees de Valentiniano I tendo primeiro rumado ao Egito e depois estabelecido na Palestina Deste modo R Furtado procura dar uma leitura da vida de Melacircnia num mundo que era jaacute ao seu modo globalizado e causa ao mesmo tempo que consequecircncia de uma administraccedilatildeo territorial de tipo ldquoimperialrdquo

Esperamos assim ir ao encontro das expectativas dos nossos leitores Devemos uma palavra de reconhecimento puacuteblico pelo meticuloso trabalho de ediccedilatildeo deste livro feito pelo Martim Aires Horta e pela Daniela Dantas investigadores juniores da aacuterea de Histoacuteria Antiga do CH-ULisboa De igual

19

Delfim F Leatildeo Joseacute A Ramos Nuno Simotildees Rodrigues

modo haacute que fazer um agradecimento ao Nelson Henrique investigador do CECH-UC que fez a paginaccedilatildeo da obra e agrave Imprensa da Universidade de Coimbra que a acolheu na sua seacuterie ldquoHumanitas ndash Supplementumrdquo Uma palavra de reconhecimento ainda ao nosso colega Hermenegildo Fernandes que enquanto Diretor do CH-ULisboa apoiou esta ideia e possibilitou que ela tivesse corpo Para terminar resta-nos evocar a nossa saudosa Professora Doutora Maria Helena da Rocha Pereira eminente classicista portuguesa e Mestra de todos noacutes que patrocinou este projeto desde o seu iniacutecio e para o qual contribuiu com uma proposta subordinada ao tiacutetulo vergiliano ldquoImperium sine finehelliprdquo Natildeo quiseram as Moirai contudo que nos deixasse escrito o texto que tanto nos prometia Fica o registo da nossa memoacuteria e da sua generosidade

Delfim F LeatildeoJoseacute A Ramos

Nuno Simotildees Rodrigues

20

Apresentaccedilatildeo De Imperio ndash De Imperiis

Bibliografia

Badel C 2011 ldquoLes modegraveles impeacuteriaux dans lrsquoAntiquiteacuterdquo DHA 59-25Barroll M A 1980 ldquoToward a General Theory of Imperialismrdquo Journal of

Anthropological Research 36 (2)174-95Burchard J E 1957 ldquoSine Finerdquo Daedalus 86 (3)174-89Cresci L R amp Gazzano F 2018 laquoDe Imperiisraquo Lidea di impero universale e la

successione degli imperi nellantichitagrave Roma laquoLrsquoErmaraquo di BretschneiderGarnsey P e C R Whittaker eds (1978) 2007 Imperialism in the Ancient World

Cambridge Cambridge University PressGregor D B 1953 ldquoAthenian Imperialismrdquo GampR 22 (64)27-32Hoeumlt-Van Cauwenberghe C 2011 ldquoEmpire romain et heacutellenisme bilan

historiographiquerdquo DHA 5141-78Hurlet F 2011 ldquoRe(penser) lrsquoEmpire romain Le deacutefi de la comparaison

historiquerdquo DHA 5107-140Joannegraves F 2011 ldquoAssyriens Babyloniens Perses acheacutemeacutenides la matrice

impeacuterialerdquo DHA 527-47Jones A H M 1951 ldquoThe Imperium of Augustusrdquo JRS 41 (1-2)112-19Le Roux P 2011 ldquoLes empires antiques et lrsquoeacutecriture de lrsquohistoirerdquo DHA 5 179-

89Lintott A 1981 ldquoWhat was the lsquoImperium Romanumrsquordquo GampR 28 (1)53-67Martin J 1995 ldquoThe Roman Empire Domination and Integrationrdquo JITE 151

(4)714-24Martinez-Seacuteve L 2011 ldquoLe renouveau des eacutetudes seacuteleucidesrdquo DHA 589-106Mosseacute C 2011 ldquoPeacutericlegraves et lrsquoimpeacuterialisme atheacutenien de Thucydide agrave

lrsquohistoriographie contemporainerdquo DHA 549-55Peacutebarthe C 2011 ldquoLrsquoempire atheacutenien est-il toujours un empire comme les

autresrdquo DHA 557-88Richardson J S 1991 ldquoImperium Romanum Empire and the Language of

Powerrdquo JRS 811-19Ste Croix G E M de 1954 ldquoThe Character of the Athenian Empirerdquo Historia

3 (1)141

21

Joseacute Augusto Ramos

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio1

(Mythologies Theologies and Taxonomies of History through the biblical idea of empire)

Joseacute Augusto Ramos(joseramosletrasulisboapt ORCID 0000-0002-3247-2163)

Universidade de Lisboa Centro de Histoacuteria

Resumo - Apesar de o discurso poliacutetico das culturas orientais natildeo ter elaborado es-pecificamente o conceito de impeacuterio a historiografia assume que se podem exprimir com ele os dinamismos de vaacuterias das suas eacutepocas Na Biacuteblia o conceito de impeacuterio informa a sua concepccedilatildeo do tempo representando a realidade das muacuteltiplas subser-viecircncias histoacutericas bem como as suas configuraccedilotildees miacuteticas e teoloacutegicasPalavras-chave Egipto Assiacuteria Babiloacutenia Selecircucidas Romanos Quinto Impeacuterio

Abstract ndash Although the political speech of the Eastern cultures did not specifically elaborate the concept of empire historiography assumes that the dynamism of several of its epochs can be expressed with it In the Bible the concept of Empire informs its conception of time representing the reality of the multiple historical dominations as well as its mythic and theological configurations

Keywords Egypt Assyria Babylon Seleucids Romans Fifth Empire

Os textos recolhidos nesta ediccedilatildeo reportam-se a um horizonte de Histoacuteria Antiga em que o principal elemento ordenador da longa duraccedilatildeo histoacuterica eacute a ideia de impeacuterio As abordagens apresentadas tratam a questatildeo em diversas eacutepocas e em muacuteltiplas situaccedilotildees diversificadas Entretanto eacute realmente no vocabulaacuterio poliacutetico enraizado na eacutepoca do Impeacuterio Romano que esta designaccedilatildeo verdadeiramente se origina apesar de a ideia de impeacuterio ser significativa e muito frequentemente utilizada na historiografia para representar um ordenamento poliacutetico e formular siacutenteses histoacutericas a respeito de eacutepocas muito remotas E se eacute de Roma que lhe vem o nome de impeacuterio daiacute viraacute tambeacutem boa parte da definiccedilatildeo mais expliacutecita do conceito

Neste contexto romano com efeito as linhas de forccedila da semacircntica de impeacuterio definem-se a partir de um contexto militar onde uma figura de suces-so aparece rotulada de imperator e vai sendo sucessivamente projectada para uma funccedilatildeo poliacutetica de poder e soberania encontrando-se agrave cabeccedila de todo um

1 Este trabalho eacute financiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircn-cia e a Tecnologia no acircmbito do projecto UIDHIS043112013

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_1

22

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

universo geograacutefico e populacional que o imenso exeacutercito romano podia realmen-te representar Um tal sucesso e representatividade na vertente militar acrescido de um poder alargado intenso e dominador satildeo conotaccedilotildees caracteriacutesticas que se acentuam na ideia de impeacuterio no momento em que este conceito passa a ser transferido para outra entidade histoacuterica especiacutefica Mesmo natildeo constituindo nomenclatura poliacutetica expliacutecita dos mundos orientais preacute-claacutessicos o conceito e imagem dos impeacuterios tem-se mostrado muito naturalmente adequado para representar entidades poliacuteticas de especial impacte sobretudo tratando-se de uma forccedila poliacutetica externa que domina ou simplesmente condiciona e enquadra a histoacuteria de povos e naccedilotildees agrave sua volta Neste sentido o mundo oriental natildeo usou esta designaccedilatildeo mas de imediato sugeriu claramente que esta imagem e conteuacutedo se lhe podiam aplicar de forma adequada

Natildeo pode caber aqui a pretensatildeo de esquadrinhar toda a arqueologia orien-tal dos matizes que confluem para o conceito de impeacuterio definindo assim o conteuacutedo que precede e veio a informar a posterior designaccedilatildeo Eacute no entanto inegaacutevel que a cultura e a historiografia poliacutetica do Oriente desde havia muito tempo desenvolviam modalidades categoriais precursoras da ideia de impeacuterio Em convergecircncia com as anaacutelises e prestaccedilotildees que foram recolhidas neste volu-me temaacutetico apenas pretendemos valorizar o testemunho biacuteblico sobre a capa-cidade de sistematizaccedilatildeo da histoacuteria bem como das suas fases e realidades para as quais esta ideia aparece requisitada Este eacute provavelmente um dos aspectos em que a Biacuteblia oferece um horizonte mais pertinente sobre o seu mundo que abarca a totalidade do mundo preacute-claacutessico

Nos textos originais da Biacuteblia fala-se de reis e de reinos em termos concretos ou de realeza em abstracto mas nas traduccedilotildees e comentaacuterios em discurso mais historiograacutefico recorre-se frequentemente agrave designaccedilatildeo mais ampla de impeacuterio Para justificar esta equivalecircncia conceptual convergem os dados que caracterizariam o termo na semacircntica romana em que assentou o nome Isto eacute sublinha-se o poderio militar e uma soberania poliacutetica que tende para uma hegemonia com traccedilos de comportamento excessivo e de algum modo indevido e absoluto A utilizaccedilatildeo deste conceito implica por um lado uma avaliaccedilatildeo do processo histoacuterico visto pelos seus niacuteveis de sucesso e pelas suas dimensotildees de injusticcedila O discurso biacuteblico que se reporta a esta imagem toma-a como portadora de injusticcedila e de opressatildeo A voz eacute a dos oprimidos2 Todavia apesar desta negatividade frequentemente dramaacutetica os momentos nevraacutelgicos de hegemonia representados por potecircncias dominantes servem de maneira inteiramente loacutegica para sobre a linha dos impeacuterios assentar a mais eficaz periodizaccedilatildeo de toda a duraccedilatildeo histoacuterica como marcos no seu longo percurso

2 A injusta desumanidade deste poder absoluto estaacute na base do confronto entre o poder imperial romano e os primeiros cristatildeos Cf Jones 1992 5806-9

23

Joseacute Augusto Ramos

Neste espaccedilo funcionalmente delimitado apenas se podem sintetizar al-guns toacutepicos da imensa riqueza de matizes que este conceito chave eacute chamado a exercer na leitura ordenamento e representaccedilatildeo da histoacuteria humana que se espelha no horizonte da Biacuteblia

Impeacuterios de horizonte miacutetico

As mais marcantes figuras da Histoacuteria tendem naturalmente para garantir assento na galeria de formas miacuteticas da literatura essencial Dentro da Biacuteblia esta literatura miacutetica essencial da Histoacuteria na mais pertinente acepccedilatildeo que faz dela um universal humano encontra-se distendida ao longo dos primeiros 11 capiacutetulos do Geacutenesis E eacute precisamente ali que nos deparamos com a figura de Nimerod laquoo primeiro homem poderoso sobre a terraraquo3

Com este nome de Nimerod a concentrar em si diversas toponiacutemias e onomaacutesticas parece ter sido sintetizada e personificada a memoacuteria de virtua-lidades imperiais que o longo passado da Mesopotacircmia foi acumulando desig-nadamente as da Sumeacuteria e Babiloacutenia conjuntamente designadas com o nome de Chinear e ainda a Assiacuteria As conotaccedilotildees de forccedila e habilidade militar a significativa difusatildeo e ressonacircncia do seu poder bem como o caraacutecter inaugural e institucionalmente constituinte da sua imagem satildeo desde muito cedo caracte-riacutesticas chamadas a integrar o conceito de impeacuterio A origem desta personagem Nimerod comporta desde logo referecircncias africanas pois eacute apresentado como filho de Cam o segundo filho do miacutetico patriarca Noeacute de quem descenderiam as populaccedilotildees primitivas da regiatildeo nordeste do continente africano onde na antiguidade pontificou o Egipto faraoacutenico A sua memoacuteria poreacutem transcende o mundo egiacutepcio propriamente dito Mesmo que este desvio exagerado para os lados da Aacutefrica possa ser fruto de uma confusatildeo entre os cuchitas gentes de Aacutefrica e os cassitas gentes da Mesopotacircmia esta amplificaccedilatildeo geograacutefica com a consequente extensatildeo semacircntica enquadra-se bem como verdade proacutepria da miacutetica figura imperial de Nimerod4

O nome e a imagem de Nimerod parecem ter possibilidades de se ar-ticular nas profundidades da semacircntica histoacuterica com grandes figuras de poder real como Tukulti Ninurta do impeacuterio meacutedio assiacuterio e bem assim com representantes da mitologia do poder como sejam os proacuteprios deuses meso-potacircmicos Ninurta e Marduk A confluecircncia natural entre niacuteveis humanos e divinos do poder segundo a concepccedilatildeo oriental antiga eacute uma das caracteriacutes-ticas do conceito de impeacuterio Por essa razatildeo muitas memoacuterias da cultura me-sopotacircmica conservadas pelos hebreus podem confluir para dar conotaccedilotildees agrave

3 Cf Gn 108 1Cr 1104 Cf Gn 108-12 Speiser 1964 69-73

24

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

imagem de Nimerod5 No livro do profeta Miqueias6 contemporacircneo da fase ascendente do impeacuterio neo-assiacuterio Nimerod eacute associado precisamente com o impeacuterio assiacuterio

No interior de uma saga familiar e regional que dizia respeito ao clatilde patriarcal de Abraatildeo e Lot o mesmo bloco mesopotacircmico de um poder de intensa ressonacircncia e ampla repercussatildeo aparece representado pela foacutermula poliacutetica de uma pentaacutepole onde pontificam nomes de reis aos quais o tempo jaacute impusera formas de erosatildeo Por isso alguns daqueles nomes escapam agrave tentativa de identificaccedilatildeo com figuras histoacutericas conhecidas Era precisamente o que acontecia com o nome do proacuteprio Nimerod7 O impeacuterio unificado que aqui parece andar impliacutecito sob a forma de uma coligaccedilatildeo de reis eacute o de Amerafel rei de Chinear Arioc rei de Elassar Cadorlaomer rei de Elam Tidal rei de Goim A sequecircncia da narrativa8 acaba por colocar Cadorlaomer na posiccedilatildeo de lideranccedila e apresenta-o como a personificaccedilatildeo daquele grande poder que ameaccedilava o bem-estar da famiacutelia patriarcal de Abraatildeo Deste quadro resulta uma imagem ameaccediladora e ao mesmo tempo fraacutegil ateacute quase ao ridiacuteculo9 Estas satildeo caracteriacutesticas paradoxais que denotam biblicamente o conceito de impeacuterio

Tambeacutem neste caso como na anterior ocorrecircncia de Nimerod o concentra-do de referecircncias geograacuteficas e de nomes parece convergir bem com o aglomera-do miacutetico perceptiacutevel na referecircncia que se projeta para um tempo paradigmaacutetico das origens Eacute assim que acontece no iniacutecio das grandes narrativas miacuteticas da Mesopotacircmia10 A ideia de poder estaacute naquela narrativa marcada pela signifi-cativa aglomeraccedilatildeo de reis de grandes potecircncias enquanto Abraatildeo os enfrentava com as poucas centenas dos seus homens11

Face agrave grandeza do impeacuterio aparece a pequenez das forccedilas que lhe ofere-cem resistecircncia Neste desfasamento e evidente desequiliacutebrio de forccedilas consiste a grandeza do milagre Eacute a mesma foacutermula simboacutelica de desproporccedilatildeo que se verifica na confrontaccedilatildeo entre David e Golias12 O jogo desequilibrado entre o impeacuterio e as suas viacutetimas eacute sempre um campo de maravilha Esta capacidade de alimentar a expectativa de um milagre eacute a forccedila de resistecircncia dos condenados

5 Cf Machinist 1992 41116-1186 Mq 557 Gn 1418 Gn 144-99 Abraatildeo com os seus trezentos e dezoito servos a desbaratar a grande coligaccedilatildeo de reis com

seus exeacutercitos (Gn 1414-16) comporta uma situaccedilatildeo loacutegica que pode ter atractivos de maravi-lhoso mas eacute sem duacutevida humoriacutestica no seu desequiliacutebrio

10 A formula narrativa do ldquoquandordquo segundo as modalidades narrativas conhecidas no an-tigo Oriente traduz uma especiacutefica profundidade miacutetica e remete para o tempo primordial tal como acontece no iniacutecio das grandes narrativas de Atrahhasis e de Enuma elish

11 Gn 141412 1Sm 171-58

25

Joseacute Augusto Ramos

Eacute o que daacute resistecircncia ao pensamento apocaliacuteptico que assenta a sua resistecircncia numa atitude de tipo quietista e confiante13

Estas referecircncias poderiam mesmo ser um concentrado onde se acumulam as imagens dos inimigos de fora identificados simplesmente como inimigos de Abraatildeo e seus vizinhos podendo mesmo natildeo serem vizinhos entre si Com efeito o uacuteltimo nome daquele grupo de reis coligados o rei de Goim nome que quer dizer laquopovosraquo poderia mesmo estar ali jaacute como simples referecircncia geneacuterica aos outros povos tomados como diferentes e eventualmente como inimigos de Israel14 Estes inimigos podiam secirc-lo realmente ou virtualmente e podiam ateacute ser inimigos apenas paradigmaticamente O conceito biacuteblico de impeacuterio eacute o de um poder exterior condicionador e soberano Nem precisa forccedilosamente de ser uma foacutermula institucional especiacutefica e formal Por isso a Biacuteblia considera como impeacuterios certas realidades poliacuteticas que na realidade nos pode parecer que natildeo justificariam semelhante roacutetulo Uma boa parte das referecircncias biacuteblicas a forccedilas externas de hegemonia e domiacutenio situadas ao longo da histoacuteria dos hebreus podem caber neste modelo de designaccedilatildeo abrangente

Impeacuterios de horizonte histoacuterico

A histoacuteria biacuteblica natildeo proporcionou quase nunca ao povo dos hebreus a possibilidade de viverem como numa ilha em condiccedilotildees de autossuficiecircncia e de isolamento poliacutetico e cultural A longa duraccedilatildeo que nela aparece espelhada quer na sua realizaccedilatildeo concreta quer nos seus percursos de memoacuteria encontra-se explicitamente articulada em referecircncias maiores que lhe servem de enquadra-mento Eacute aqui que nos deparamos com as referecircncias aos impeacuterios numa funccedilatildeo natural que consiste em ir proporcionando definiccedilotildees e enquadramentos por meio dos quais o tempo histoacuterico se vai configurando O tempo dos hebreus e a sua narrativa histoacuterica satildeo recortados pelas transformaccedilotildees sucessivas de enquadramento em que uma potecircncia estrangeira se situa como referecircncia seja porque se afirma com hegemonia indirecta seja porque se constitui segundo a foacutermula de um domiacutenio directo Eacute o figurino dos impeacuterios predominantes que podem na realidade ser qualitativamente diferentes em versotildees boas ou maacutes mas que produzem sempre efeitos de condicionamento histoacuterico anaacutelogos sobre a vida dos povos e sobre a sua identidade

Nesta perspectiva a potecircncia poliacutetica e civilizacional que desde mais cedo e em eacutepoca histoacuterica serve de referecircncia incontornaacutevel para a histoacuteria dos hebreus eacute o Egipto cuja presenccedila continuada se recorta no horizonte da

13 Por muito que ande associada a imagens de combate a apocaliacuteptica eacute uma maneira de se confrontar com as injusticcedilas da Histoacuteria de maneira quietista isto eacute fazendo delas um manifesto sonante como declaraccedilatildeo de princiacutepios mas sem se organizar para a guerra

14 Cf Speiser 1964 105-9 Astour 1992 21057

26

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

eacutepoca preacute-monaacuterquica e se projecta por sobre todo o tempo dos patriarcas Com periacuteodos de maior ou menor domiacutenio este eacute um impeacuterio que suscita medo e manteacutem uma ameaccedila constante de opressatildeo Por outro lado e no entanto o Egipto tambeacutem oferece expectativas garantidas de esperanccedila e de vida A sua imagem enquanto referecircncia hegemoacutenica eacute por conseguinte de ressonacircncia ambivalente como o satildeo em geral e por sua natureza todos os impeacuterios As fases e coloridos com que se apresenta a histoacuteria sociopoliacutetica do Egipto nas suas sucessivas repercussotildees internacionais todas elas se repercutem de imediato e de forma muito concreta em vicissitudes praacuteticas de todo o geacutenero para a histoacute-ria da Biacuteblia Apesar dos altos e baixos mais ou menos notoacuterios e significativos que vatildeo conhecendo os 3000 anos de histoacuteria oferecem maleabilidade suficiente para que o Egipto possa marcar a sua presenccedila de forma continuada Mesmo quando natildeo lhe cabe o papel principal manteacutem-se por perto como forccedila impe-rial de segunda referecircncia e de recurso Eacute com efeito sob a eacutegide do Egipto que a histoacuteria biacuteblica se inicia O impacte desta imagem imperial do Egipto paira por cima da literatura essencial dos hebreus concentrada no Pentateuco

Desde o seacuteculo X ateacute agrave segunda metade do seacuteculo VII a C os hebreus viveram sob a hegemonia internacional e sucessivamente sob o domiacutenio do impeacuterio assiacuterio Na sua vizinhanccedila outras entidades poliacuteticas concretas podem natildeo chegar a merecer a designaccedilatildeo de impeacuterio apesar de mostrarem conteuacutedos e comportamentos sociais e poliacuteticos de grande relevacircncia Poderiacuteamos considerar aqui o impacte poliacutetico dos filisteus e dos feniacutecios Com efeito estes apresentavam ressonacircncias agressivas de alteridade cultural e poliacutetica e assumiam motivaccedilotildees especiacuteficas de concorrecircncia mas natildeo eram potecircncias de marcaccedilatildeo hegemoacutenica duraacutevel nem de amplitude significativa A sua sombra apreende-se com algum impacte por sobre os livros de Juiacutezes Samuel e Reis mas a sua conotaccedilatildeo eacute mais de vizinhos incoacutemodos que de impeacuterios dominantes

A partir da segunda metade do seacuteculo VIII a Assiacuteria servindo-se de uma foacutermula de afirmaccedilatildeo poliacutetica da Mesopotacircmia em eacutepoca mais recente afirma-se poderosamente no palco internacional onde as duas monarquias do Israel daquela altura tinham de se movimentar Alguns aspectos desta dimensatildeo imperial assiacuteria tornaram-se bastante visiacuteveis no reino do Norte a Samaria mais que no reino do Sul o de Judaacute A conquista militar e o recurso a uma metodologia radical de erradicaccedilatildeo da personalidade poliacutetica nacional satildeo o modelo mais sofisticado da sua estrateacutegia de domiacutenio como potecircncia imperial15 Eacute habitual que a historiografia considere o aparecimento subsequente dos samaritanos como uma transformaccedilatildeo de uma poliacutetica imperial que gerou um facto sociocultural e poliacutetico perene e persistente ateacute aos dias de hoje16 No

15 Cf 2Rs 1716 2Rs 17 624-41

27

Joseacute Augusto Ramos

horizonte do livro dos Reis das Croacutenicas e de Isaiacuteas eacute marcante o efeito da hegemonia e do domiacutenio exercidos pelos assiacuterios mesmo sobre o reino do Sul o de Judaacute que apesar de asseacutedios e cercos natildeo chegaram a conquistar17 Sobre os reinos dos hebreus a sua hegemonia foi curta mas foi profunda em consequecircncias de molde a transformar-se em memoacuteria paradigmaacutetica de impeacuterio opressor que ficou longamente registada na cultura biacuteblica18

A potecircncia imperial que se seguiu foi o impeacuterio neobabiloacutenico Historica-mente a Babiloacutenia tinha jaacute conhecido fases de modelo imperial anteriores no horizonte da Mesopotacircmia Para o horizonte poliacutetico dos hebreus no entanto esta uacuteltima Babiloacutenia a de Nabucodonosor eacute aquela que verdadeiramente in-teressa pois marca profundamente a experiecircncia do reino de Judaacute e cola-se agrave memoacuteria histoacuterica subsequente dos judeus A sua poliacutetica condiciona definitiva-mente o futuro cultural deste povo contribuindo decisivamente para a proacutepria configuraccedilatildeo das suas memoacuterias e da sua identidade com que se define As vaacuterias imagens da Babiloacutenia de fases anteriores podem ser culturalmente matriciais mas natildeo satildeo politicamente hegemoacutenicas para os hebreus Natildeo tinham por isso justificado para eles o tiacutetulo de impeacuterios Esta uacuteltima fase poreacutem apesar de ter sido bastante raacutepida foi absolutamente radical e mereceu por isso a designaccedilatildeo de potecircncia imperial na sua acepccedilatildeo mais intensa Por isso algumas das per-sonagens desta eacutepoca aparecem projectadas para o horizonte das linguagens e coordenadas mais marcantes do discurso biacuteblico sobre os imperialismos A sua fisionomia de cidade-impeacuterio oferece a foacutermula e designaccedilatildeo metafoacuterica para a cidade-impeacuterio que aparenta dominar o mundo tal como se recorta no horizon-te do Apocalipse19 Eacute nos livros de Jeremias e Ezequiel que podemos encontrar em registo de cariz contemporacircneo e dramaacutetico as vaacuterias tonalidades com que se pinta o impeacuterio neobabiloacutenico20 A segunda parte do livro de Isaiacuteas espelha o que o impeacuterio neobabiloacutenico deixou de sofrimento mas sugere jaacute muito daquilo que ele estaacute a permitir como esperanccedila21

Sem deixar de ter uma especiacutefica proeminecircncia simboacutelica que conser-vou durante seacuteculos na cultura biacuteblica o impeacuterio babiloacutenico foi rapidamente substituiacutedo pela presenccedila do impeacuterio persa que assumiu toda a sua expansatildeo poliacutetica e territorial Uma sua primeira fase transitoacuteria eacute culturalmente carac-terizada como medo-persa tendo a fase de domiacutenio da Meacutedia sido rapidamente ultrapassada Este impeacuterio persa ou aquemeacutenida durou por mais de dois seacuteculos e representou uma modalidade mais burocraacutetica administrativa e civilizacional

17 2Rs 1813-37 2Cr 32 Is 36-3718 O livro de Judite um romance histoacuterico provavelmente escrito no seacuteculo II a C trata

o proacuteprio rei neobabiloacutenico Nabucodonosor como se fosse um imperador da Assiacuteria (Jd 11)19 Ap 171820 Jr 34 37-39 Ez 1-1121 Is 40ss

28

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

do que militar Em mateacuteria de relacionamento poliacutetico e cultural a sua menta-lidade era mais aberta e colaborante que a dos dois impeacuterios mesopotacircmicos anteriores

Para as gentes do Oriente o tempo dos Persas manteacutem um modelo impe-rial pouco marcado do ponto de vista militar e natildeo muito exigente do ponto de vista econoacutemico Se excluirmos as relaccedilotildees com o Egipto e com a Greacutecia este modo de relacionamento do impeacuterio persa foi particularmente tranquilo comparativamente a outras aacutereas poliacuteticas e culturais Por isso se justifica o roacutetulo de uma eacutepoca de paz dos Aquemeacutenidas No panorama do Oriente este caso eacute um bom contributo para um conceito positivo dos impeacuterios Este impeacuterio persa serve de pano de fundo para os livros de Ageu Zacarias Esdras Neemias e enquadra uma fase de grande produtividade literaacuteria para a memoacuteria biacuteblica Durante os seacuteculos que durou para os hebreus o impeacuterio persa constituiu o en-quadramento para uma longa experiecircncia da comunidade hebraica como uma realidade sobretudo identificada com um modelo cultural centrada na funccedilatildeo do sumo sacerdote de Jerusaleacutem

Na eacutepoca heleniacutestica e pela consciecircncia histoacuterica que se apercebe na lite-ratura biacuteblica a forma de impeacuterio que se pode descortinar em primeiro lugar eacute a do helenismo alexandrino Esta eacutepoca eacute de boa convivecircncia entre a cultura grega e a tradicional cultura biacuteblica a relaccedilatildeo eacute algo semelhante em termos de ecumenismo cultural ao que acontecera no tempo dos persas apesar de a mentalidade judaica nem sempre lhe retribuir com atitudes de igual simpatia Foi a era de helenismo otimista para os judeus

Depois dos primeiros cerca de cem anos mais sossegados e por isso com menos histoacuteria seguiu-se uma outra fase de helenismo que decorreu sob o domiacutenio poliacutetico dos selecircucidas de Antioquia Natildeo era muito vistoso mas foi particularmente incisivo no que diz respeito aos judeus Muito do que na Biacuteblia e no judeo-cristianismo foi ganhando forma ficou a dever-se ao periacuteodo de um seacuteculo e meio que medeia entre o tempo do helenismo dos selecircucidas e a en-trada em cena do uacuteltimo impeacuterio que afecta realmente a historiografia biacuteblica isto eacute o Impeacuterio Romano No acircmbito helenista temos grande convergecircncia do patrimoacutenio cultural biacuteblico com o mundo cultural de raiz grega expressa na traduccedilatildeo da Biacuteblia para o grego em Alexandria e em livros biacuteblicos como o de Daniel da Sabedoria os dois livros dos Macabeus e muitos outros O confronto com os impeacuterios gregos e romanos induz uma grande produtividade literaacuteria entre os hebreus onde se insere praticamente todo o Novo Testamento

Lucas autor dos textos de cariz mais claramente historiograacutefico para as origens do cristianismo assume o horizonte do impeacuterio romano com natura-lidade e algum entusiasmo como enquadramento histoacuterico para apresentar o

29

Joseacute Augusto Ramos

nascimento de Jesus22 Esta referecircncia de tonalidade aparentemente feliz parece destinada a evoluir com alguma satisfaccedilatildeo em direccedilatildeo ao ponto em que o cris-tianismo passaria a assumir os destinos antropoloacutegicos de todo o mundo repre-sentado pelo Impeacuterio Romano Esta feliz convergecircncia estava de algum modo preparada na assunccedilatildeo de importantes modalidades heleniacutesticas de cultura que fizeram do modelo de cristianismo que chegou ateacute noacutes um cristianismo de recep-ccedilatildeo grega Por isso o cristianismo parece assumir com naturalidade e consciecircncia o horizonte ecumeacutenico do impeacuterio romano como representando o acircmbito do humano universal Eacute esta a sensibilidade dos anos setenta do seacuteculo primeiro da nossa era que se espraia pela literatura lucana desde o Evangelho ateacute aos Atos dos Apoacutestolos Esta imagem unificada do mundo no horizonte de Roma poderia mais uma vez representar a versatildeo positiva da ideia de impeacuterio e um vislumbre de uma consciecircncia de globalizaccedilatildeo humanitaacuteria

Pelo contraacuterio eacute evidente que o livro do Apocalipse apenas vinte ou trinta anos depois das perspectivas positivas de Lucas sobre o impeacuterio romano estaacute jaacute bastante longe de pintar com as mesmas cores de agrado os sentimentos de desagrado que o impeacuterio romano provocava junto de muitos cristatildeos

Impeacuterios eventualmente omissos

Algumas fases da histoacuteria da Biacuteblia poderatildeo ter eventualmente ficado menos claras na memoacuteria que as vaacuterias geraccedilotildees retiveram e na historiografia que se foi fazendo Jaacute referimos que a memoacuteria histoacuterica da Biacuteblia eacute demasiado recente e natildeo teve amplidatildeo suficiente para poder conservar incidecircncias directas de impeacuterios de origem mesopotacircmica muito antiga A Mesopotacircmia e as regiotildees que lhe satildeo afins funcionam para o mundo biacuteblico muito mais como matriz do que como percurso compartilhado Os proacuteprios sumeacuterios tiveram momentos histoacutericos de teor imperial O impeacuterio acaacutedico tem significativas razotildees para justificar o papel pioneiro que lhe eacute reconhecido para a foacutermula dos impeacuterios E ateacute a cidade siacuteria de Ebla logo a seguir ao tempo de predomiacutenio acaacutedico se poderia gabar de um certo ascendente regional de caracteriacutesticas algo imperiais ainda no decurso do terceiro mileacutenio antes de Cristo

A mesma coisa se pode dizer da era histoacuterica de predomiacutenio regional que coube aos hititas que aconteceu numa eacutepoca em que estaria ainda muito em-brionaacuterio o processo de definiccedilatildeo eacutetnica e poliacutetica que conduziu agrave formaccedilatildeo do grupo dos hebreus Com efeito estes hebreus conservaram memoacuterias dispersas dos hititas que eles designam com o nome de heteus As referecircncias a este povo satildeo jaacute memoacuterias radicadas no interior da histoacuteria das tribos hebraicas E se os hititas ou heteus marcam presenccedila na memoacuteria dos hebreus eles natildeo chegaram

22 Lc 21-6 31-3

30

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

no entanto a tempo de se apresentar com a definiccedilatildeo clara de um impeacuterio com-pleto que impotildee regras poliacuteticas e define e limita condiccedilotildees de vida

A mesma coisa se deve dizer de nuacutecleos de hegemonia internacional que afectaram de forma significativa algumas regiotildees geograficamente vizinhas da Biacuteblia mas que ali natildeo chegaram a implantar marcas notoacuterias de poder imperial Eacute o caso dos hurritas que mais uma vez aparecem em referecircncias intersticiais desfocadas com o nome de horritas O seu nome perde-se entre a imensidatildeo de povos referenciados no passado biacuteblico-cananaico Eacute evidentemente raacutepida a histoacuteria daquilo que natildeo foi mas a hipoacutetese de existirem eacutepocas de impeacuterios que o exerciacutecio da memoacuteria histoacuterica deixou omissos eacute um elemento igualmente importante

A questatildeo do condicionamento da histoacuteria biacuteblica pela acccedilatildeo de entidades poliacuteticas externas acaba por coincidir com as relaccedilotildees poliacuteticas que se verificam em relaccedilatildeo a qualquer entidade estrangeira que num dado momento ou de for-ma permanente tenha interferecircncia no teor de vida da sociedade hebraica Pode entrar nesta perspectiva de algum modo o caso de todos os povos que ao longo da Biacuteblia foram sendo objecto de um pronunciamento ou de juiacutezo histoacuterico ex-presso sob a forma de oraacuteculos profeacuteticos23 Nestes oraacuteculos de condenaccedilatildeo poliacute-tica estaacute marcado aquilo que eacute diferente e que eacute inimigo Por isso esses oraacuteculos se apresentam sob a forma de uma ameaccedila um juiacutezo negativo e condenatoacuterio sobre as actividades poliacuteticas desses povos Estes exemplos podem ser considerados como uma imagem desmultiplicada de todas as conotaccedilotildees negativas com que se caracteriza a ideia de impeacuterio Com isto se apresentam personificados todos os casos do outro que enquanto poder eacute visto como um inimigo

Os impeacuterios de horizonte apocaliacuteptico

O olhar caracteriacutestico que a apocaliacuteptica desenvolveu a respeito da Histoacuteria levou a que nesse ambiente o conceito de impeacuterio se tivesse cristalizado na sua forma mais representativa em toda a amplitude do horizonte biacuteblico e mesmo para toda a duraccedilatildeo do mundo Na sua forma cumulativa e evolutiva a apo-caliacuteptica desenvolveu uma visatildeo articulada e integral da Histoacuteria que poderia dar particular significado ao papel desempenhado pelas potecircncias poliacuteticas em torno a elas se organiza e decorre a vida das sociedades ao longo do tempo Vaacuterios textos de sabor apocaliacuteptico na eacutepoca de ouro desta produccedilatildeo literaacuteria que foi a partir do seacuteculo II a C cultivaram assim uma visatildeo integral da Histoacuteria e deleitaram-se em a expor de forma pormenorizada de modo a dar

23 Eacute muito frequente nos profetas o aparecimento de oraacuteculos de julgamento relativamente ao comportamento poliacutetico das naccedilotildees e cidades estrangeiras para com o povo de Israel Veja-se por exemplo Is 14-24 3446-47 Jr 25-38 46-51 Ez 25-31 Jl 4 Am 1-2 Na 2-3 Sf 1-2 Cf Ramos 2013 34-35

31

Joseacute Augusto Ramos

evidecircncia persuasiva agrave sua argumentaccedilatildeo Um caso vistoso deste recurso eacute o do Apocalipse das Semanas integrado na literatura do ciclo de Henoc24 A partir do tempo daquele patriarca antediluviano a histoacuteria do mundo futuro apresenta-se dividida em dez semanas A semana que representa o tempo do autor e da escrita desta narrativa que deve ter acontecido por volta de 160 aC eacute contada como sendo a oitava e esta eacute classificada como sendo a do grande sofrimento O traacutegico da Histoacuteria estaacute no presente Seguir-se-aacute a semana do desfecho e da destruiccedilatildeo vindo toda a marcha da Histoacuteria a culminar na semana eterna de um novo ceacuteu e uma nova terra isto eacute a reposiccedilatildeo da ordem ideal desejada para as sociedades e para o mundo

Tornou-se entretanto claacutessica na tradiccedilatildeo apocaliacuteptica uma formulaccedilatildeo destes impeacuterios que se revela essencial para o modo como decorrem os vaacuterios periacuteodos da Histoacuteria O livro de Daniel25 fez desta sequecircncia o esquema integral do tempo e instituiu-o de tal modo que este passou a servir de foacutermula perene para o pensamento apocaliacuteptico Mais do que uma sensibilidade miacutetica demasia-do ampla da Histoacuteria esta literatura concentrava-se numa visatildeo historiograacutefica e historiomeacutetrica de maior proximidade que incidia directamente sobre o contexto poliacutetico e afectava a vida dos hebreus26 Na eacutepoca em que isto estava a acontecer estes hebreus podem claramente ser jaacute designados com o nome de judeus Os impeacuterios desta histoacuteria apocaliacuteptica ficaram sintetizados numa sequecircncia inten-sa sob a forma de cinco impeacuterios Com eles se pretendia apresentar um esquema capaz de sintetizar todas as aventuras da histoacuteria humana antes da sua chegada agrave meta ideal que seria a de uma ordem universal garantida Eacute o desejo assumido como meta incontornaacutevel

O Impeacuterio Babiloacutenico em virtude dos acontecimentos paradigmaacuteticos da destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do exiacutelio em 587586 foi e ficaraacute a ser a referecircncia modelar O Impeacuterio Meacutedio eacute contabilizado como o segundo apesar de a sua incidecircncia directa sobre a histoacuteria da Judeia ser bastante mais modesta O terceiro eacute o Impeacuterio Persa O quarto eacute o impeacuterio que ocupa o tempo presente da escrita situado por volta de meados do seacuteculo II a C O quinto impeacuterio cor-responde ao tempo sobre o qual se projecta a antevisatildeo miacutetica do futuro Pode-mos dizer que o primeiro dos cinco impeacuterios representa a definiccedilatildeo histoacuterica de impeacuterio enquanto potecircncia maligna o segundo e o terceiro satildeo referecircncias de continuidade para exprimir a longa e paciente realidade que eacute a experiecircncia histoacuterica o quarto eacute aquele de que se faz uma narrativa pormenorizada e dra-maacutetica uma vez que ali eacute que se situam os graves problemas humanos cultu-rais e poliacuteticos dignos de condenaccedilatildeo que constituem a experiecircncia poliacutetica e

24 Integrado entre os cc 91 e 93 do Livro de Henoc Cf Collins 2010 101-5 Diez Macho 1984 15ss

25 Cf Dn 239ss 71 719-25 8-1126 Collins 2010 151-63

32

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

cultural da insatisfaccedilatildeo Desta maneira o impeacuterio do presente fica sobrecarre-gado com toda a injusticcedila e dramatismo que os seus oprimidos experimentam O quinto representa a radical mudanccedila de horizonte e de tonalidade literaacuteria eacute o impeacuterio do futuro pois comporta toda a utopia e todos os ideais Eacute a utopia paradisiacuteaca em coordenadas e modalidades completamente opostas agraves da Histoacuteria Este horizonte de utopia vai-se mantendo afastado por exigecircncias do proacuteprio estatuto da utopia apesar de a intensidade das expectativas continuar a sugerir sempre grande aproximaccedilatildeo e requerer muita urgecircncia Eacute de facto o sentimento de urgecircncia que caracteriza este estado de espiacuterito A vontade de proceder a uma intensa revisatildeo da Histoacuteria eacute em si mesma um processo de aceleraccedilatildeo e de impaciecircncia

Poreacutem como a utopia vai tardando em tornar-se realidade a soluccedilatildeo para os prolongamentos diferenciados consiste em ir procedendo a novas e sucessi-vas identificaccedilotildees para o quarto impeacuterio que domina cada eacutepoca presente dos sucessivos sujeitos da consciecircncia histoacuterica Eacute assim que assistimos ao longo de seacuteculos de Histoacuteria a sucessivas identificaccedilotildees do quarto impeacuterio27 Este tem sido o espaccedilo onde sucessivos autores em seacuteculos diferentes se tecircm esforccedilado por fazer uma releitura e apresentar uma reconstruccedilatildeo do processo histoacuterico ao longo dos seacuteculos Na primeira visatildeo de Daniel este quarto e terriacutevel impeacuterio era o dos Gregos de Alexandre Magno corporizados principalmente pela dinastia dos Selecircucidas Pouco depois jaacute em plena eacutepoca do Novo Testamento o quarto impeacuterio passou a ser identificado com o impeacuterio dos romanos Com o passar longo dos seacuteculos o proacuteprio cristianismo e ateacute o islamismo acabaram por ser considerados de algum modo herdeiros poliacuteticos do impeacuterio romano passaram desta maneira a ser igualmente considerados como sucedacircneos do quarto impeacute-rio No final da Idade Meacutedia pensadores judaicos como Abravanel mantinham--se ainda estritamente fieacuteis ao uso desta coordenada28

Mais uma vez identificada como quarto impeacuterio eacute ainda a fase em que se encontra a histoacuteria do mundo que no seacuteculo XVII o Padre Antoacutenio Vieira con-siderava ser a do seu tempo Por muito que o laquofilho de homemraquo que segundo Daniel29 recebe o poder correspondente ao quinto impeacuterio seja identificado com Cristo na hermenecircutica teoloacutegica do cristianismo as discussotildees de Vieira vatildeo inteiramente no sentido de perceber em que moldes se faraacute a transiccedilatildeo do estado de ainda quarto impeacuterio para o finalmente quinto impeacuterio30 Por essas alturas andava ele a sonhar com a ideia da transiccedilatildeo definitiva do quarto para o quinto impeacuterio e natildeo se cansava de elaborar foacutermulas precisas e modelos concretos para

27 Cf Asurmendi 2000 507-10 Ramos 2013 35-37 28 Cf Netanyahu 2012 261-6629 Dn 713-1430 Eacute agrave tarefa de definir as subtilezas desta transiccedilatildeo que Vieira consagra os longos tratados

que satildeo a Histoacuteria do Futuro e a Clavis Prophetarum

33

Joseacute Augusto Ramos

planear e preanunciar o quinto impeacuterio onde ele com a mesma intensidade e urgecircncia de sempre colocava o mundo novo do futuro

Os plurais e o singular

Em suma a categoria histoacuterica dos impeacuterios transformou-se numa foacutermula privilegiada para processar a mitologia do tempo Por meio deste conceito se concentram a alteridade e a tensatildeo com que se identifica a pluralidade das na-ccedilotildees Nesta linguagem em que se espelham os conflitos da convivecircncia histoacuterica encontra-se expressa uma versatildeo da alteridade que intensifica as dimensotildees da agressividade Eacute a pluralidade com as suas ressonacircncias negativas Os outros na medida em que constituem uma ameaccedila satildeo realmente assim multitudinaacuterios e confusos degenerados inimigos e opressivos Natildeo obstante isso existe tambeacutem a pluralidade com uma ressonacircncia positiva podendo mesmo ser levada ateacute ao ponto de utopia Eacute o conviacutevio plural e ateacute mesmo universal das naccedilotildees retratado com as conotaccedilotildees de conviacutevio que satildeo caracteriacutesticas da utopia

Deus faz parte de ambos os horizontes de utopia em que se exprime e se estrutura a Histoacuteria do mundo com horizontes de negativo e de positivo Ele eacute a utopia requerida pela necessidade de exigir a justiccedila e de restabelecer a ordem seguramente mais do que as mecacircnicas elaboradas para explicar a origem do mundo Deus estaacute no processamento e no desenvolvimento da Histoacuteria e do mundo mais que na procedecircncia ou origem do universo Os mitos de origem que sublinham a intervenccedilatildeo divina constituem na verdade verdadeiros tratados sobre a essecircncia das coisas e sobre o seu desenvolvimento histoacuterico

Por isso resulta biblicamente natural detectar-se alguma dialeacutectica entre a teologia e os impeacuterios como foacutermulas equivalentes aos vaacuterios estados de or-ganizaccedilatildeo da Histoacuteria Com efeito os impeacuterios satildeo coisas proacuteprias da Histoacuteria de Deus eacute o Reino Em mateacuteria de semacircntica fundamental Deus e a Histoacuteria assentam sobre os mesmos princiacutepios e partilham uma boa parte dos respecti-vos significados Eacute por isso que na Biacuteblia bem como nas culturas preacute-claacutessicas se fala sempre univocamente em reino tanto para a realeza divina utoacutepica como para as realezas histoacutericas A teologia poliacutetica da Mesopotacircmia articulava de forma tranquila e otimista a dimensatildeo divina e a realidade humana da reale-za31 Os dois campos semacircnticos que tambeacutem ali se podem claramente detectar encerram de qualquer modo uma dose de dialeacutectica que o proacuteprio conceito de realeza oriental e muito particularmente o da realeza biacuteblica partilhavam32

O choque ocorre entre o excesso das praacuteticas e do simbolismo imperial por parte das realezas humanas com incidecircncias restritivas nos direitos e na digni-dade dos suacutebditos humanos e o caraacutecter utoacutepico e inalienaacutevel em que assenta

31 Cf A famosa lista dos reis sumeacuterios em Kranmer 1977 361-6332 Cf Ramos 2005 14-18

34

Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteria seguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio

a antropologia individual e social no acircmbito do Reino de Deus Eacute o caraacutecter absoluto da praacutetica poliacutetica como um excesso (hybris) de absolutismo em con-fronto com conotaccedilotildees incontornaacuteveis absoluto e dignidade que satildeo apanaacutegio e direito inalienaacutevel dos humanos Numa fronteira deste teor os conflitos satildeo frequentes e radicais Tanto mais que chega a ter-se a impressatildeo de existir uma incompatibilidade total e incontornaacutevel entre estas duas margens Precocemente na Biacuteblia esta sensibilidade chegou a levantar duacutevidas de se seria correto assu-mir a realeza como forma de governo apesar de ser uma foacutermula consagrada pela experiecircncia histoacuterica dos povos orientais As ressonacircncias absolutas que o conceito de monarquia concita pareciam contradizer a ideia de que tais valores absolutos soacute estariam representados de forma coerente pela realeza de Deus33 No final do seacuteculo XV o judeu lisboeta Isaac Abravanel tambeacutem considerava mais certa uma lideranccedila profeacutetico-carismaacutetica para um hipoteacutetico governo do povo dos hebreus de preferecircncia agrave monarquia34

Entretanto continuou a verificar-se claramente uma preferecircncia biacuteblico-cristatilde pela nomenclatura de rei e de reino aplicando a Deus e a Cristo o tiacutetulo de rei mais do que o de imperador Mesmo assim houve eacutepocas em que a soberania real de Cristo se acomodou igualmente bem ao conceito de impeacuterio tanto em linguagem grega (autokraacutetor pantokraacutetor) como latina O hino do estado-cidade do Vaticano continua a repetir o refratildeo Christus vincit Christus regnat Christus imperat No horizonte hermenecircutico do cristianismo e de acordo com a visatildeo hermenecircutica do Padre Antoacutenio Vieira o quinto impeacuterio identificava-se inteira-mente com o plano cristoloacutegico decorrendo uma natural cumplicidade para com o destino de Portugal e para com a funccedilatildeo do seu rei

33 Cf 1Sm 81-1834 Cf Ramos 2007 382-83

35

Joseacute Augusto Ramos

Bibliografia

Astour M A 1992 ldquoGoiimrdquo In The Anchor Bible Dictionary Vol 2 ed D N Friedman 1057 New York Doubleday

Asurmendi J M 2000 ldquoDaniel y la apocaliacutetpicardquo In Historia narrativa apocaliacuteptica ed A Gonzaacutelez Lamadrid 507-10 Estella Editorial Verbo Divino

Collins John J 2010 A imaginaccedilatildeo apocaliacuteptica Satildeo Paulo Paulus EditoraDiez Macho A Apocrifos del Antiguo Testamento Tomo 4 Madrid Ediciones

CristiandadFriedman D N ed 1992 The Anchor Bible Dictionary New York DoubledayJones D L 1992 ldquoRoman imperial cultrdquo In The Anchor Bible Dictionary Vol 5

ed D N Friedman 806-9 New York DoubledayKramer S N 1977 Os Sumeacuterios Lisboa Livraria BertrandMachinist P 1992 ldquoNimerodrdquo In Anchor Bible Dictionary Vol 4 ed D N

Friedman 1116-118 New York DoubledayNetanyahu B 2012 Dom Isaac Abravanel estadista e filoacutesofo Coimbra Ediccedilotildees

TenacitasRamos J A 2013 ldquoOraacuteculos biacuteblicos de fim projectados por sobre o fim de

Romardquo In A queda de Roma e o alvorecer da Europa ed Francisco de Oliveira Joseacute Luiacutes Brandatildeo Vasco Gil Mantas e Rosa Sanz Serrano 34-35 Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra

mdashmdashmdash 2007 ldquoDefinir o Messias segundo Abravanelrdquo In Rumos e escrita da Histoacuteria coord Maria de Faacutetima Reis 382-83 Lisboa Ediccedilotildees Colibri

mdashmdashmdash 2005 ldquoRei e Messias imagens contrapostas imagens sobrepostasrdquo In Turres Veteras VII Histoacuteria das figuras do poder 14-18 Torres Vedras Cacircmara Municipal de Torres Vedras

Speiser E A 1964 Genesis Garden City NY Anchor Bible

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

37

Joseacute das Candeias Sales

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo1

(Empires in the History of Ancient Egypt on conceptual validity of laquoImpeacuterioraquo)

Joseacute das Candeias Sales(JoseSalesuabpt ORCID 0000-0003-1087-1478)

Universidade Aberta Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de Histoacuteria

Resumo - No seio da Egiptologia cientiacutefica portuguesa convencionou-se uma divi-satildeo da histoacuteria da civilizaccedilatildeo faraoacutenica em trecircs periacuteodos principais designados por laquoImpeacuterioraquo isto eacute trecircs eacutepocas de grande estabilidade poliacutetica e apogeu civilizacional o Impeacuterio Antigo o Impeacuterio Meacutedio e o Impeacuterio Novo Seraacute todavia adequada a aplicaccedilatildeo do conceito de laquoimpeacuterioraquo para estas eacutepocas da histoacuteria egiacutepcia No contexto lusoacutefono este conceito eacute o que melhor exprime representa e discrimina o sentido do que se pretende qualificar Eacute este o termo que se adequa com maior clareza e propriedade ao que pretendemos significar Eacute essencialmente em torno da procura de resposta a estas questotildees que se desenvolve o presente texto A nossa reflexatildeo organiza-se em torno das caracteriacutesticas essenciais e definidoras da classificaccedilatildeo e do conceito de laquoimpeacuterioraquo e da laquovalidaderaquo da sua aplicaccedilatildeo ao caso da antiga histoacuteria egiacutepcia

Palavras-chave Divisatildeo cronoloacutegica impeacuterio reino territoacuterio Estado administraccedilatildeo

Abstract ndash In the scope of the Portuguese scientific Egyptology it has been conventionally accepted the division of the history of the pharaonic civilization in three main periods designated as laquoEmpiresraquo ie three eras of great political stability and civilizational apex the Impeacuterio Antigo the Impeacuterio Meacutedio and the Impeacuterio Novo We could nevertheless ask ourselves if the application of the concept laquoEmpireraquo is adequate for these periods of the Egyptian history Is this the concept that within the lusophone context best expresses and discriminates the sense of what we intend to qualify Is this the term that conveys the most clarity and accuracy to the idea we pretend to express The present essay revolves essentially around the search for an answer to these questions Our reflection is organized around the essential characteristics of the concept of laquoEmpireraquo and the laquovalidityraquo of its use in the case of the ancient Egyptian history

Keywords Chronological division empire kingdom territory State administration

Tendo principalmente como referente a atuaccedilatildeo da instituiccedilatildeo real conven-cionou-se no seio da Egiptologia cientiacutefica portuguesa uma divisatildeo instrumental

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_2

38

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

da histoacuteria da civilizaccedilatildeo faraoacutenica com um ou outro ajuste de pormenor em trecircs periacuteodos principais designados por laquoImpeacuteriosraquo isto eacute trecircs eacutepocas de gran-de estabilidade poliacutetica esplendor cultural e apogeu civilizacional (o Impeacuterio Antigo o Impeacuterio Meacutedio e o Impeacuterio Novo) correspondentes aos momentos prestigiosos ideais da histoacuteria intercalados por trecircs outros periacuteodos obscuros de decadecircncia e esfacelamento das instituiccedilotildees poliacuteticas sociais econoacutemicas e culturais os laquoPeriacuteodos Intermediaacuteriosraquo (o Primeiro o Segundo e o Terceiro) como que excluiacutedos do plano ideal da sucessatildeo histoacuterica Precedendo o Impeacuterio Antigo reconhece-se um laquoPeriacuteodo Arcaicoraquo tambeacutem chamado laquoEacutepoca Tinitaraquo Ao Terceiro Periacuteodo Intermediaacuterio segue-se a laquoEacutepoca Baixaraquo e por fim a laquoEacutepoca Greco-Romanaraquo completando assim um quadro cronoloacutegico de mais de 3000 anos (c 3100 aC a 395 dC)

Tendo em mente estas laquoalternacircnciasraquo ou laquoflutuaccedilotildeesraquo do poder poliacutetico egiacutepcio antigo independentemente das fontes disponiacuteveis para o nosso conhe-cimento do passado egiacutepcio e da operacionalidade da organizaccedilatildeo dinaacutestica transmitida por Maneton e usada pelos egiptoacutelogos modernos seraacute todavia adequada a aplicaccedilatildeo empiacuterica do conceito de laquoimpeacuterioraquo agraves eacutepocas consideradas gloriosas e memoraacuteveis da histoacuteria egiacutepcia No contexto lusoacutefono este conceito eacute realmente o que melhor exprime representa e discrimina o sentido do que se pretende qualificar Eacute este o termo que se adequa com maior clareza e proprie-dade ao que pretendemos significar Eacute essencialmente em torno da procura de respostas a estas questotildees que nos propomos desenvolver o presente texto Nou-tras palavras a nossa reflexatildeo organiza-se em torno dos caracteres essenciais definidores da classificaccedilatildeo e do conceito de laquoimpeacuterioraquo e da laquovalidaderaquo da sua aplicaccedilatildeo ao caso das divisotildees cronoloacutegicas egiacutepcias

1 O conceito de laquoimpeacuterioraquo - componentes analiacuteticas

Antes de se avanccedilar com qualquer tentativa de definiccedilatildeo conceptual eacute ne-cessaacuterio tomar consciecircncia de duas dificuldades consideraacuteveis inerentes a essa tentativa e que a podem frustrar a primeira que nem sempre o uso da designa-ccedilatildeo laquoimpeacuterioraquo recobre e define com o mesmo sentido e significado determina-das configuraccedilotildees poliacutetico-culturais do passado o que significa que eacute no fundo impossiacutevel estabelecer um conceito universalmente vaacutelido aplicado a todos os casos histoacutericos de todas as eacutepocas e lugares haacute sempre portanto um desfasa-mento entre a teorizaccedilatildeo e a anaacutelise particular A segunda derivada da primeira que haacute uma importante ambiguidade e flutuaccedilatildeo terminoloacutegica quando se usa o termo laquoimpeacuterioraquo que natildeo raro desenvolve ideias preconcebidas e cerceia a proacutepria anaacutelise e reflexatildeo comparativa ou especiacutefica No contexto lusoacutefono por exemplo este aspeto eacute significativo porque historicamente o pequeno laquoreinoraquo de Portugal esteve na base de um extenso e duradouro laquoimpeacuterio portuguecircsraquo com toda a deformaccedilatildeo conceptual e interpretativa que tal situaccedilatildeo pode provocar na

39

Joseacute das Candeias Sales

anaacutelise e perceccedilatildeo do fenoacutemeno quando aplicado a outras cronologias e geogra-fias Natildeo sendo o conceito neutro como natildeo satildeo outros (exs laquocidade-estadoraquo laquomonarquiaraquo laquoditaduraraquo laquotiraniaraquo laquodemocracia pluralistaraquo etc) os distintos elementos que para ele concorrem e que nele se conjugam de forma mais ou menos singular dificultam a sua utilidade e ateacute a sua definiccedilatildeo

Muitas vezes o uso do termo e conceito resulta de laquoassociaccedilotildees histoacutericasraquo estabelecidas por analogia ou por oposiccedilatildeo expliacutecita ou impliacutecita seja com o modelo claacutessico e estruturante de Roma (laquoEstado governado por um impera-dorraquo) seja com outros laquoimpeacuteriosraquo de outras localizaccedilotildees espaciais e temporais2 A aparente unicidade do vocaacutebulo pode pois e frequentemente faacute-lo dissimular a diversidade de sistemas poliacuteticos que recobre

Isto eacute particularmente relevante no que se refere agrave aplicaccedilatildeo ao Egito antigo pois os eruditos prussianos do seacuteculo XIX que o fizeram refletindo sobre os fundamentos do poder poliacutetico e da histoacuteria exprimiam de uma maneira mais ou menos assumida a nostalgia do I Reich Altes Reich Mittleres Reich e Neues Reich3 Na segunda metade do seacuteculo XIX a criacutetica aos trabalhos alematildees no-meadamente de autores franceses manteve e fixou poreacutem a terminologia com os termos Ancien Empire Moyenne Empire e Nouvel Empire usados e reproduzi-dos por exemplo pela historiografia portuguesa Saliente-se contudo que nunca os antigos Egiacutepcios ndash que organizaram e teorizaram sobre o seu proacuteprio lugar no universo ndash usaram um termo que significasse laquoImpeacuterioraquo ou laquoimperialismoraquo em-bora esse aspeto derive em parte do facto de eles muitas vezes natildeo necessitarem de denominar certas abstraccedilotildees de territorialidade4

Assim conscientes de que embora natildeo seja possiacutevel estabelecer um conceito de laquoimpeacuterioraquo clara e universalmente vaacutelido para abranger todos os exemplos histoacutericos conhecidos eacute possiacutevel poreacutem determinar os caracteres operatoacuterios do conceito mdash a sua laquodireccedilatildeo geralraquo digamos assim mdash que nos podem guiar tambeacutem na avaliaccedilatildeo da sua adequabilidade aos casos do Egito antigo

O campo conceptual de laquoimpeacuterioraquo afirma-se em parte por oposiccedilatildeo ao de laquoreinoraquo e eacute por isso mais ou menos consensual desde o seacuteculo XVIII que a

2 A estrutura desenvolvida pelo Impeacuterio Romano instituiu-se como um laquomodelo cognitivoraquo servindo de referecircncia para a anaacutelise de muitas das construccedilotildees ideoloacutegicas imperiais atraveacutes da Histoacuteria

3 Cf Duverger 1980 6 Vernus 2011 164 Cf Kemp 1978 7 Vernus 2011 20-38 Galaacuten 1995 4 Talvez o termo mais proacuteximo da ideia

de laquoimperialismoraquo seja swsx tASw isto eacute laquoampliar as fronteirasraquo um dos imperativos da funccedilatildeo faraoacutenica no sentido em que expressa o conceito de autoridade ou de influecircncia do faraoacute sobre os povos vizinhos (Cf Ibid 4 101-3 Vernus 2011 26) De igual modo a expressatildeo in Dw laquoadquirir fronteiras tomar as fronteiras dos inimigosraquo tanto no sentido geo-poliacutetico como econoacutemico pode tambeacutem apresentar o mesmo recorte conceptual (Cf Galaacuten 1995 102 103 128-32) No entanto a ausecircncia de termo concreto especiacutefico particular para denominar laquoimpeacuterioraquo ou laquoimperialismoraquo significa que os antigos Egiacutepcios natildeo sentiam necessidade de se referir a estes fenoacutemenos ou processos de forma independente abstrata ou individualizada (Cf Kemp 1978 7)

40

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

definiccedilatildeo se pode efetuar como laquoum Estado vasto governado por um soacute titular e composto por vaacuterios povosraquo5 Esta definiccedilatildeo encerra em si mesma trecircs compo-nentes que em termos analiacuteticos podemos dividir em

1 O impeacuterio eacute politicamente associado agrave monarquia trata-se de um sistema poliacutetico onde o poder supremo eacute assumido por um soacute titular (rei e imperador) designado hereditariamente e apresentando um caraacutecter sagrado ou sacralizado

Natildeo obstante esta laquounidaderaquo teoacuterica de base eacute possiacutevel constatar na Anti-guidade vaacuterias modalidades histoacutericas em que o titular pode ser encarado como i) deus incarnado ii) simples mandataacuterio da(s) divindade(s) ou iii) servidor da(s) divindade(s)

Tomando exclusivamente em linha de conta esta decomposiccedilatildeo compo-nente da definiccedilatildeo eacute difiacutecil distinguir laquoreinoraquo e laquoimpeacuterioraquo ou distinguem-se mal um do outro uma vez que quer o rei quer o imperador podem assumir e desempenhar e muitas vezes o fizeram cocircnscios da sua importacircncia a funccedilatildeo sacerdotal

2 O impeacuterio tem como criteacuterio fundamental a extensatildeo territorial Quer dizer natildeo podendo a distinccedilatildeo entre laquoimpeacuterioraquo e laquoreinoraquo ser efetuado a partir das relaccedilotildees existentes entre o soberano e a(s) divindade(s) eacute a natureza do es-paccedilo sobre o qual se exerce a soberania que possibilita o estabelecimento de uma fronteira de delimitaccedilatildeo conceptual

No entanto o criteacuterio eacute vago eacute impossiacutevel ser-se completamente exato e preciso no que agrave territorialidade diz respeito um laquoimpeacuterioraquo eacute um grande reino e um laquoreinoraquo eacute um impeacuterio mais exiacuteguo mas qual eacute o limite exato para efetuar a distinccedilatildeo A partir de que superfiacutecie um territoacuterio deve ser considerado su-ficientemente extenso para tornar pertinente o uso do termo laquoimpeacuterioraquo Dito de outra forma embora seja um criteacuterio fundamental o criteacuterio da vastidatildeo espaacutecio-territorial do poder natildeo eacute suficiente para definir laquoimpeacuterioraquo

3 O impeacuterio implica a existecircncia de uma pluralidade de povos tendo pre-sente que a unidade populacional e linguiacutestica caracteriza em regra o laquoreinoraquo Este elemento deriva e relaciona-se com a vastidatildeo territorial dos impeacuterios aci-ma enunciado A distacircncia fiacutesica real do espaccedilo territorial pressupotildee a inevitaacutevel diversidade cultural a necessaacuteria deslocaccedilatildeo de homens e mercadorias (atraveacutes de estradas canais navegaacuteveis vias de comunicaccedilatildeo abundantes e diversificadas pistas no deserto e na montanha etc) a criativa difusatildeo de ideias e a obrigatoacuteria superaccedilatildeo dos obstaacuteculos fiacutesico-naturais (rios montanhas desertos cataratas oceanoshellip) que por sua vez exigem uma racional organizaccedilatildeo do espaccedilo com uma delimitaccedilatildeo de fronteiras e uma demarcaccedilatildeo de limites mais ou menos

5 Duverger 1980 8 Esta definiccedilatildeo esboccedila-se em oposiccedilatildeo agrave de laquoreinoraquo em norma concebido como um espaccedilo territorial menos extenso e assente numa unidade da naccedilatildeo sobre a qual se forma (Cf Ibid 8)

41

Joseacute das Candeias Sales

fixos agraves matildeos de um Estado centralizado e autoritaacuterio a uma escala macro laquomundialraquo em contraste com a que subjaz agrave loacutegica mais micro mais regional mais local de um laquoreinoraquo

Por natureza os impeacuterios satildeo plurinacionais reunindo vaacuterias etnias comu-nidades e culturas com diferentes graus de integraccedilatildeo ou coexistecircncia podendo a sua laquounidaderaquo assumir vaacuterias modalidades a) sobreposiccedilatildeo do poder imperial a outras autoridades anteriores (locais reais imperiaishellip) com completa ru-tura com os quadros locais e sua substituiccedilatildeo pelos representantes-delegados do poder central (vice-reis governadores saacutetrapas legados prefeitos etc) b) uniatildeo pessoal de vaacuterias diversidades na figura do mesmo soberano que pelos seus siacutembolos e accedilatildeo laquounificaraquo os haacutebitos e costumes crenccedilas e cultos tradiccedilotildees e particularidades

Teoricamente a manutenccedilatildeo de um impeacuterio com todas as suas contradiccedilotildees e conflitos internos exige que a unidade alcanccedilada natildeo importa o meacutetodo usa-do confira algumas vantagens ou privileacutegios aos povos-comunidades-culturas nele englobados Este eacute talvez o desiderato mais difiacutecil de alcanccedilar e de manter o desequiliacutebrio do sistema ocorre quando as comunidades-culturas natildeo tecircm consciecircncia dos seus ganhos (materiais e ou simboacutelicos) com a pertenccedila e per-manecircncia no todo imperial e por isso preferem atraveacutes de revoltas rebeliotildees ou revoluccedilotildees de feiccedilatildeo beacutelica frequentemente sangrenta furtar-se ao controlo central na procura de satisfazer as suas pulsotildees de autonomia e autodetermi-naccedilatildeo Hegemonia imperial e espiacuterito nacionalista satildeo incompatiacuteveis

Daiacute que a organizaccedilatildeo imperial obrigue quase sempre a uma pressatildeo e coerccedilatildeo administrativo-burocraacutetica e militar forte6 hierarquizada e bem oleada para garantir a perceccedilatildeo regular dos tributos e impostos o controlo das eventuais tendecircncias separatistas ou de desordem puacuteblica a funccedilatildeo ordenada dos domiacutenios juriacutedico e judiciaacuterio numa palavra o regular funcionando das instituiccedilotildees e do sistema imperial Como escreve G Woolf

laquoEmpires are political systems based on the actual or threatened use of force to extract surpluses from their subjectshellip Preindustrial empires could not support large governmental institutions and so secured their power by promoting a community of interest among eacutelites within the empire and a sense of imperial membership based on participation in ruler worship and adherence to imperial cultural and symbolic systems Economically however empires were first and foremost tributary structures and much of the limited energy at their disposal was devoted to ensuring adequate supplies of cash labour and agricultural produce from the areas under their controlraquo7

6 Necessaacuterios para estabelecer os impeacuterios os exeacutercitos satildeo-no tambeacutem para os conservar (Cf Ibid 20)

7 Woolf 1992 28

42

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

Dito de outra forma na linguagem de Maurice Duverger

laquoLe concept drsquoempire implique agrave la fois une stabiliteacute qui deacutepasse le cadre drsquoune occupation et le remplacement des liens personnels par un systegraveme de bureaucratie non heacutereacuteditaire nommeacutee et reacutevoqueacutee par le souverainraquo8

2 O caso histoacuterico do antigo Egito a sacralidade do faraoacute ndash tiacutetulos e epiacutetetos

Quando procuramos aplicar este esquema tripartido ao caso histoacuterico do antigo Egito deparamo-nos com algumas interessantes constataccedilotildees Desde logo a inequiacutevoca conclusatildeo que a tipologia de poder nos coloca perante uma personagem humana que centraliza em si todas as vertentes do poder O per aa literalmente laquoA Grande Casaraquo ou seja originariamente a designaccedilatildeo do palaacute-cio real (estrutura fiacutesica) daquele que o habitava (entidade fiacutesica concreta) e do Estado que dirige (entidade abstrata) eacute desde o iniacutecio da histoacuteria civilizacional egiacutepcia o exemplo claacutessico de um deus incarnado como rei

Esta ideia de um deus tangiacutevel correspondia agrave necessidade de uma imagem muito concreta real fiacutesica que estabelecesse e assumisse o papel de inter-mediaacuterio e interlocutor entre os deuses e os homens O faraoacute eacute com efeito simultaneamente um deus e um rei humano estando as dimensotildees divina e humana inextricavelmente misturadas na sua personalidade Como cabeccedila do Estado competia-lhe zelar pela ordem e justiccedila Como laquosenhor do cumprimento dos ritosraquo era o garante e promotor da liturgia da piedade e da religiosidade Tudo na esfera poliacutetica social e econoacutemica tinha na realeza (nesit) no Faraoacute (nesut) o seu guardiatildeo privilegiado

Na feliz expressatildeo de Erik Hornung o faraoacute era laquoum homem desempe-nhando o papel de um deusraquo9 ou como diz Pascal Vernus laquolaquola diviniteacute peut se reacuteveacuteler agrave travers luiraquo10 Dito de outra forma o rei era um ser humano sendo que o que era divino e lhe transmitia a sacralidade era o ofiacutecio da realeza A realeza eacute que era divina sendo o faraoacute uma imagem do divino capaz de se tornar pela sua correta atuaccedilatildeo na sua manifestaccedilatildeo A manutenccedilatildeo das rela-ccedilotildees harmoniosas entre a esfera da sociedade humana e a dos poderes sobre-naturais e divinos a tarefa de provisatildeo dos principais meios de subsistecircncia e seu normal funcionamento eram conferidas ao faraoacute dependiam dele como homem e como deidade incarnada11 O faraoacute era o elemento imprescindiacutevel da identidade egiacutepcia laquole roi repreacutesente le meacutedium ideacuteologique gracircce auquel la

8 Duverger 1980 139 Hornung 1992 35710 Vernus 1986 3011 Cf Sales 2001 365

43

Joseacute das Candeias Sales

civilisation eacutegyptienne a maintenu contre tous les aleacuteas son identiteacute pendant plus de trois milleacutenairesraquo12

O direito e a legitimidade do monarca estavam teoricamente fundados na sua natureza divina transmitida pelo sangue Segundo a doutrina egiacutepcia a monarquia fora criada e exercida inicialmente no comeccedilo dos tempos pelos deuses que reinavam na terra sendo depois confiada aos homens13 A heredita-riedade da instituiccedilatildeo real fundava-se no mito da escolha pelo deus solar cada sucessor do faraoacute reinante era laquoescolhidoraquo pelo demiurgo que nele perscrutara e vira laquodesde o ovoraquo as suas qualidades Em regra esta laquoescolharaquo obedecia ao princiacutepio da primogenitura masculina14

As listas reais comeccedilavam com os deuses Reacute Chu Geb e Osiacuteris que nos Primeiros Tempos haviam reinado na terra antes de se retirarem para os ceacuteus continuando com Hoacuterus o herdeiro do trono de Osiacuteris o uacuteltimo dos grandes deuses a governar na terra e de quem todos os faraoacutes histoacutericos descendiam15 A transmissatildeo da funccedilatildeo real pertenceria ao filho do faraoacute reinante e da sua esposa oficial embora por vaacuterios exemplos histoacutericos conhecidos sem a forccedila de uma lei incontestaacutevel ou incontestada16 A legitimaccedilatildeo do poder real tinha na proclamada divindade e filiaccedilatildeo divina do faraoacute uma sanccedilatildeo suplementar A origem divina do poder explica o princiacutepio do governo de um soacute a monarquia e a modalidade de transmissatildeo a feiccedilatildeo hereditaacuteria da mesma suportada pelo proacuteprio exemplo das divindades17

O faraoacute era por isso encarado como o laquoHoacuterus viventeraquo reincarnaccedilatildeo desse primeiro rei miacutetico confundindo-se em si as duas dimensotildees humana e divina O faraoacute era Hoacuterus e vice-versa No iniacutecio da eacutepoca histoacuterica a identificaccedilatildeo era jaacute total A divindade do rei era afirmada em funccedilatildeo da sua descendecircncia de Hoacuterus O tiacutetulo de Hor (laquoHoacuterusraquo) que disso guarda memoacuteria eacute mesmo o seu

12 Vernus 1986 32 Como diz Leclant laquoLa personnaliteacute de Pharaon est consubstantielle agrave lrsquoexistence de lrsquoEacutegypteraquo (Leclant 1980 50)

13 Cf Vernus 1986 2914 Cf Ibid 32-3315 Cf Ryholt 2004 138-916 Agrave falta de herdeiro masculino da esposa real ou seja de conflito na primogenitura

masculina a funccedilatildeo real foi passada a irmatildeos uterinos do faraoacute ou mesmo a princesas quais depositaacuterias do poder a transmitir aos seus esposos Neste uacuteltimo caso satildeo arrolaacuteveis e apenas para citar os casos mais conhecidos I) Merneit (ou Meritneit) no Periacuteodo Tinita c 2950 aC II) Neitikeret (em grego Nitocris) no final da VI dinastia (c 2184-2181 aC) III) Sebekkareacute Sebekneferu no final da XII Dinastia (1785-1782 aC) IV) Hatchepsut na XVIII Dinastia (1498-1483 aC) V) Tauseret na XIX dinastia (c 1192-c 1190 aC) e VI) Cleoacutepatra VII Filopator a uacuteltima descendente da dinastia laacutegida (51-30 aC) - Rice 2002 114 136 140 196-97 210 211 Clayton 1995 22-23 67 89 158-59 Desroches-Noblecourt 1986 201 Vernus Yoyotte 1988 94 153 154 Tyldesley 2006 33-34 63 74-75 78 84 86 98 163-66 212-15 245-47 Grimal 1998 62-63 107 249 331-33 Ratieacute 1979 26 64 214 e 314 Valbelle 1992 80 81 1998 216

17 Cf Hornung 1992 353-54

44

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

tiacutetulo mais antigo (desde as primeiras dinastias da Eacutepoca Tinita ndash reinado de Den) e foi usado ateacute agrave Eacutepoca Romana18

Aleacutem do tiacutetulo Hor muitos outros tiacutetulos e epiacutetetos usados pelo faraonato egiacutepcio pretendiam enfatizar a profunda sacralidade intriacutenseca ou adquirida do titular do poder casos de Sa Reacute laquofilho de Reacuteraquo (que antecedia a cartela com o nome do faraoacute) meri Amon ou merimen laquoamado de Amonraquo merireacute ou merenreacute laquoamado de Reacuteraquo meriptah laquoamado de Ptahraquo merihathor laquoamado de Hathorraquo ou um englobante e altissonante meri-netjeru laquoamado dos deusesraquo Comum eacute igualmente como referimos a partir do Impeacuterio Meacutedio a atribuiccedilatildeo da realeza agrave laquoescolharaquo (setep en) de determinada divindade setepenreacute laquoo escolhido de Reacuteraquo setepenimen laquoo escolhido de Amonraquo setepenptah laquoo escolhido de Ptahraquo etc Todos estes epiacutetetos parecem referir-se a aspetos do rei como manifestaccedilotildees das divindades e pretendem pois acentuar a sua carga sagrada e fazer dele de iure e de facto o representante dos deuses na terra19

A anaacutelise deste vetor da definiccedilatildeo de impeacuterio no contexto egiacutepcio natildeo eacute em nossa opiniatildeo suficiente para determinarmos qual a designaccedilatildeo mais correta (laquoreinoraquo ou laquoimpeacuterioraquo) para aplicar aos periacuteodos historicamente conhecidos como eacutepocas de centralizaccedilatildeo do poder Passemos entatildeo agrave consideraccedilatildeo do segundo componente semacircntico-conceptual da definiccedilatildeo a extensatildeo territo-rial

3 O caso histoacuterico do antigo Egito a unificaccedilatildeo territorial

Desde a I Dinastia a titulatura real enfatizava jaacute a componente territorial em dois dos nomes o nome de Nebti (Nbty laquoo das Duas Senhorasraquo) numa refe-recircncia directa a uma altura em que o Egito estava dividido em Baixo Egito (Ta--mehu) e Alto Egito (Chemau) cada um geograficamente bem delimitado e sob a proteccedilatildeo simboacutelica de uma deusa ou laquosenhoraraquo a deusa-cobra do Baixo Egito Uadjit e Nekhebet a deusa-abutre do Alto Egito20 e o praenomen prenome (nome de coroaccedilatildeo que surgia dentro de uma cartela antecedido pela expressatildeo laquoRei do Alto e do Baixo Egitoraquo (nesut bit) que agrave letra se pode traduzir como laquoO do junco e da abelharaquo ou seja a planta heraacuteldica do Sul e o animal-siacutembolo do Norte O primeiro destes nomes fazia parte das titulaturas reais desde finais do

18 Cf Sales 2001 365 2007b 105 196 Leprohon 2013 8 12-1319 Cf Leprohon 2013 720 Cf Ibid 13-14 Sobre o conceito de fronteira e de demarcaccedilatildeo do territoacuterio egiacutepcio no

Impeacuterio Antigo veja-se Espinel 1998 9-30 para o Impeacuterio Novo veja-se Galaacuten 1995 114-35 Veja-se tambeacutem a conceccedilatildeo egiacutepcia de espaccedilo terrestre (fronteiras unilaterais fronteiras desti-nadas agrave extensatildeo e fronteiras co-extensivas ao mundo terrestre) apresentada por Pascal Vernus (Cf Vernus 2001 25-29) Sobre as laquoestelas-fronteiriccedilasraquo internas e externas veja-se Vogel 2011 320-41

45

Joseacute das Candeias Sales

periacuteodo preacute-dinaacutestico21 O tiacutetulo laquoO do junco e da abelharaquo foi introduzido na I dinastia pelos faraoacutes Den e Adjib22

Mas natildeo era apenas pelos muacuteltiplos nomes da sua titulatura que o faraoacute se distinguia dos demais humanos Tambeacutem as coroas (hedjet decheret pschent kheprech atef hemhemet) os ceptros (hekat uas nekhakha uadj djed ames sekhem) as maccedilas hedj e menu o machado akhu) as vestes (chendjit) e outras insiacutegnias (nemes barba posticcedila cauda taurina serpente-uraeus selos) que usava isolavam-no como um homem engendrado pelo(s) deus(es)23

As coroas (khau) demonstravam tambeacutem a unificaccedilatildeo territorial realizada na figura do faraoacute A coroa branca chamada em egiacutepcio hedjet era uma oblonga e longa mitra usada na eacutepoca preacute-dinaacutestica pelo rei do Sul e fazia tambeacutem parte dos emblemas usados pela deusa Nekhebet a deusa protectora do Alto Egito A coroa vermelha chamada em egiacutepcio decheret ou net era em contrapartida ostentada pelo soberano do Baixo Egito e pela deusa Uadjit divindade tutelar do Baixo Egito24

Quando o faraoacute usava isoladamente a decheret ou a hedjet proclamava a sua soberania sobre a respetiva aacuterea geograacutefica que essa coroa identificava Aquando da unificaccedilatildeo do territoacuterio sob um soacute rei por volta de 3000 aC a uniatildeo dos Dois Paiacuteses foi simbolizada pela uniatildeo destas duas coroas formando a designada pschent (do grego ψχηt) apropriadamente chamada em egiacutepcio pa-sekhemeti laquoa poderosaraquo ou laquoas duas poderosasraquo25 O poder maacutegico que lhe estava associado como entidade divina transmitia aos seus portadores uma aureacuteola de sobrenaturalidade instituindo-os ao mesmo tempo em intermediaacute-rios privilegiados entre os deuses e os homens26 Naturalmente foi uma coroa utilizadiacutessima pelos faraoacutes egiacutepcios de todas as eacutepocas como nos atestam os vaacuterios registos iconograacuteficos numa clara proclamaccedilatildeo da sua universalidade no territoacuterio egiacutepcio Coerentemente o faraoacute era o laquosenhor das Duas Terrasraquo (neb taui)

Mesmo quando os reis do Egito alcanccedilaram uma dominaccedilatildeo poliacutetica sobre territoacuterios fora da esfera territorial tradicional nacional (caso da Nuacutebia ou dos territoacuterios no corredor siro-palestinense) nunca o faraoacute egiacutepcio adotou outras insiacutegnias de poder diferentes das tradicionais Nunca se apropriou de emble-mas de poder dessas aacutereas em seu proveito proacuteprio Por definiccedilatildeo e costume o faraoacute comportava-se como um laquoreiraquo e natildeo como um laquoimperadorraquo embora a

21 Neste caso desde a segunda parte da I Dinastia (reinados de Adjib e Semerkhet) ndash Cf Goebs 2007 283 Leprohon 2013 8

22 Cf Sales 2001 365 Jimeacutenez Fernandes Jimeacutenez Serrano 2008 38-39 Leprohon 2013 1723 Cf Graham 2001 166 Hornun 1992 341-4224 Cf Goebs 2001 323 2013 Collier 1996 26 Hornung 1992 34125 Cf Goebs 2001 323 Hornung 1992 34126 Cf Goebs 2001 2013

46

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

panegiacuterica ideologia o proclamasse como vitorioso (kA nxt nsw nxt nb nxt ity nxt Hqt nxt) laquosenhor de tudo o que o sol cobreraquo considerando que o seu domiacutenio se estendia laquoateacute agrave extremidade do ceacuteuraquo laquoateacute aos pilares do ceacuteuraquo e laquoaos domiacutenios da obscuridaderaquo27 Frequentemente somos noacutes devido a estes hiperboacutelicos qualificativos repletos de pretensatildeo maacutegica e totalizante que quali-ficamos de laquoimperadoresraquo faraoacutes que a tradiccedilatildeo egiacutepcia e a proacutepria Antiguidade contemporacircnea sempre consideraram numa loacutegica simplesmente real como laquoreisraquo (nesu) poderosos autoritaacuterios eacute certo mas apenas laquoreisraquo Somos noacutes que pelo discurso e pela repeticcedilatildeo impensada das foacutermulas de denominaccedilatildeo histoacuterica tornamos a ideia imperial consubstancial agrave de faraoacute

Adotando uma visatildeo muito restritiva do alcance conceptual da titulatura faraoacutenica e das coroas laquonacionaisraquo usadas laquoA Casa Granderaquo exercia a sua au-toridade sobre um territoacuterio limitado delimitado grosso modo o Alto e Baixo Egito a laquoterra amadaraquo (Ta-meri) situado entre o mar Mediterracircneo a norte e a primeira catarata a sul e confinado agrave estreita faixa entre os desertos liacutebico e araacutebico e aos oaacutesis contiacuteguos Neste sentido eacute suficiente a designaccedilatildeo laquoreinoraquo para definir a forma de dominaccedilatildeo poliacutetica dos faraoacutes Nada exige a designaccedilatildeo de laquoimpeacuterioraquo ou uma teoria ou doutrina de imperialismo

4 O caso histoacuterico do antigo Egito a extensatildeo territorial e a pluralidade de povos

Se considerarmos as aacutereas de dominaccedilatildeo egiacutepcia por exemplo durante a segunda parte da XVIII dinastia (sobretudo depois da actividade sistemaacutetica de Tutmeacutes III) eacute inquestionaacutevel que a dominaccedilatildeo egiacutepcia assente num complexo dispositivo militar se estendia a territoacuterios para laacute do espaccedilo tradicional do Egito caso da Nuacutebia28 e do Retenu (Rtnw)29 Da quarta catarata a sul ao Eufrates

27 Cf Leclant 1980 56 Galaacuten 1995 52-69 Mesmo quando um dos imperativos cardeais da funccedilatildeo faraoacutenica ou frase ritual eacute como vimos laquoampliar as fronteirasraquo (swsx tAS) mesmo quando teoricamente a jurisdiccedilatildeo do faraoacute abarca a totalidade do mundo terreno (laquoo que rodeia o discoraquo Snnt itn) e ele eacute um laquosenhor soberano do que rodeia o discoraquo (nbHqA n Snnt itn) e quando laquosob os seus peacutesraquo e laquoas suas sandaacuteliasraquo estatildeo os laquoNove Arcosraquo pesedjet 9 (designaccedilatildeo tradicional para os povos estrangeiros vencidos e submissos) o faraoacute eacute sempre pela antiga fraseologia um dominador das laquoDuas Terrasraquo (Cf Vernus 2011 2627 Kemp 1978 10-12)

28 Os territoacuterios situados a sul de Elefantina geralmente divididos em Uauat (Baixa Nuacutebia) e Kuch (Alta Nuacutebia) Na eacutepoca de Tutmeacutes III a dominaccedilatildeo egiacutepcia chegou ateacute agrave zona da 4ordf catara-ta do Nilo perto de Napata (Guebel Barkal) Veja-se Frandsen 1979 170-73 Kemp 1978 22-33

29 Nome dado pelos Egiacutepcios agrave regiatildeo norte do corredor siro-palestinense habitualmente designada por Aacutesia correspondente aos atuais territoacuterios do Liacutebano e parte da Siacuteria Agrave zona da Palestina meridional chamavam Retenu Superior (Retenu heret) Tutmeacutes III levou a cabo a submissatildeo da Siro-Palestina em dezassete campanhas militares (wDyt) Como escreve Bill Manley laquoPharaon srsquoy reacutevegravele le policier drsquoun Orient plus que chaotique ougrave il lui faut sans cesse srsquoimposerraquo (Manley 1998 70) Veja-se tambeacutem Morris 2005 37 39 116-26

47

Joseacute das Candeias Sales

havia um imenso espaccedilo para organizar e governar recolhendo tributos es-tabelecendo e mantendo guarniccedilotildees gerindo as riquezas em produccedilatildeo e em circulaccedilatildeo30 No entanto para se ser completamente rigoroso a Nuacutebia nunca se tornou uma parte integrante do reino egiacutepcio nem o faraoacute egiacutepcio alguma vez assumiu a lideranccedila directa sobre essas populaccedilotildees linguisticamente diferentes e a zona do Proacuteximo Oriente culturalmente muito forte socialmente muito sofisticada e militarmente dotada de bem treinados exeacutercitos foi dividida em protetorados deixando poder e autonomia aos habitantes que juraram fideli-dade aos Egiacutepcios e cujos jovens priacutencipes foram trazidos para a corte egiacutepcia como refeacutens para serem acostumados aculturados aos modos de ser e estar dos Egiacutepcios e educados nas suas formas administrativas e assim se tornarem vassalos leais31

A partir de Amenhotep II e Tutmeacutes IV o domiacutenio da Siro-Palestina foi assegurado essencialmente atraveacutes de paradas militares com um ou outro massacre associado destinadas a intimidar as populaccedilotildees locais e assim desin-centivar eventuais processos de sediccedilatildeo mais do que atraveacutes de accedilotildees firmes de cariz militar voltadas para o alargamento territorial32 A esta poliacutetica de gestatildeo dos territoacuterios (baseada na salvaguarda da estabilidade regional e no controlo das rotas comerciais) juntaram-se os casamentos poliacuteticos com princesas de Mitanni ou de Hatti33 O veiacuteculo de comunicaccedilatildeo da diplomacia (embaixadores mensageiros tradutores e inteacuterpretes) nunca foi a liacutengua dos laquodominadoresraquo o egiacutepcio mas sim o acaacutedico a liacutengua franca escrita com signos cuneiformes em tabuinhas de argila34

Na Siro-Palestina a autonomia a especificidade e a salvaguarda dos po-deres locais tornou impossiacutevel uma relaccedilatildeo de vassalagem perfeita e completa A intervenccedilatildeo egiacutepcia nos assuntos asiaacuteticos foi sempre limitada35 Daiacute que a

30 Cf Bryant 2000 235-4031 Cf Frandsen 1979 169-70 174-76 Kemp 1978 19 5632 Cf Morris 2005 127 e ss33 No periacuteodo rameacutessida este laquosistema mistoraquo ou laquosistema dual de administraccedilatildeoraquo pros-

seguiu com base na presenccedila de contingentes militares egiacutepcios no Levante e no governo de vassalos egipcianizados responsaacuteveis sobretudo pela coleta dos impostos e vigilacircncia dos terri-toacuterios Eacute no fundo o designado modelo da laquoElite Emulationraquo oposto ao tradicional modelo do laquoDirect Ruleraquo (Cf Higginbotham 2000 71-73 129-32 136-40 Morris 2005 9)

34 De facto apesar de o domiacutenio e influecircncia que em meados do seacuteculo XV aC a coroa egiacutepcia exercia sobre a Palestina e sobre parte de Siacuteria a liacutengua egiacutepcia natildeo conseguiu implantar--se ou impor como liacutengua administrativa nem sequer entre o faraoacute e os seus vassalos naqueles territoacuterios (Cf Galaacuten 2011 303)

35 Cf Vernus 2011 18 A xenofobia egiacutepcia que se baseava na ideia de que o centro do mun-do terrestre era o Egito (Egiptocentrismo) e se referia muitas vezes aos estrangeiros Asiaacuteticos como laquomiseraacuteveis Asiaacuteticosraquo nunca permitiu alcanccedilar grandes niacuteveis de interaccedilatildeo cultural na Palestina No fundo o domiacutenio dessas regiotildees estava sobretudo ao serviccedilo do papel teoloacutegico e ideoloacutegico fundamental da realeza egiacutepcia a reduccedilatildeo do caos agrave ordem do incriado ao criado do perifeacuterico ao central (Cf Kemp 1978 8 Vernus 2011 21-22)

48

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

laquoimpeacuterioraquo seja realmente preferiacutevel a noccedilatildeo de laquocontrolo hegemoacutenicoraquo ou laquohegemoniaraquo36 Haacute quem use a designaccedilatildeo laquoimpeacuterio informalraquo37

No caso da Nuacutebia havia o sistema do vice-rei representante-delegado de confianccedila do poder central alto-funcionaacuterio assistido por uma administraccedilatildeo de escribas especiacuteficos designado pelo tiacutetulo sa-nesu en Kuch laquofilho real de Kuchraquo (instituiacutedo no final da XVII Dinastia pelo faraoacute Kameacutes38 e em vigor ateacute agrave extinccedilatildeo da XVIII Dinastia e abandono da Nuacutebia) que natildeo apresentava poreacutem qualquer ligaccedilatildeo bioloacutegica agrave famiacutelia real egiacutepcia O territoacuterio foi sempre uma proviacutencia anexada dirigida e explorada intensivamente como tal39 A Baixa Nuacutebia Uauat foi a zona com uma sujeiccedilatildeo mais estreita mais vinculativa quase anexaccedilatildeo que justifica segundo alguns autores a designaccedilatildeo laquoimpeacuterio formalraquo usada para a caracterizar40

No Impeacuterio Novo apesar de os textos e ilustraccedilotildees formais egiacutepcias enfa-tizarem de forma permanente e repetida uma filosofia de conquistas vitoacuterias e dominaccedilatildeo absolutas o espaccedilo territorial sob dominaccedilatildeo egiacutepcia natildeo foi portanto homogeacuteneo nem no tipo de administraccedilatildeo nem no niacutevel de presenccedila Houve significativas diferenccedilas entre a administraccedilatildeo da coroa egiacutepcia a sul e a norte a Aacutesia ocidental foi um territoacuterio de campanhas vassalagem e tributos e a Nuacutebia continuaccedilatildeo sul do vale do Nilo foi uma criaccedilatildeo administrativa41

No caso interno da administraccedilatildeo do territoacuterio egiacutepcio o paiacutes foi governado atraveacutes do sistema do vizirato centrado na figura iacutempar do vizir (tjati) o mais alto dignitaacuterio do paiacutes responsaacutevel maacuteximo pela maacutequina burocraacutetico-admi-nistrativa (destinado agrave estimativa da colheita e perceccedilatildeo dos correspondentes impostos agrave organizaccedilatildeo dos trabalhos coletivos agrave gestatildeo dos diversos recursos) designado pelo faraoacute laquoo segundo depois do rei na sala de entrada do Palaacutecioraquo42 Na XVIII Dinastia chegou a haver no Egito dois vizires um para o delta (laquovizir do Norteraquo) que residia em Mecircnfis Licht ou Pi-Ramseacutes e outro para o Alto Egito (laquovizir do Sulraquo) com sede em Tebas

Existirem dois vizires natildeo pode entatildeo ser entendido como uma marca ou sintoma de laquoimpeacuterioraquo ou de laquoimperialismoraquo Em nossa opiniatildeo natildeo porque a existecircncia do duplo vizirato natildeo tem a ver com a vastidatildeo territorial propriamente

36 Cf Leclant 1980 65 nota 1137 Cf Vernus 2011 18 Veja-se a laquorevisatildeo da bibliografiaraquo sobre o domiacutenio egiacutepcio no Levan-

te em Higginbotham 2000 2-6 onde entre outras satildeo mencionadas as contribuiccedilotildees de Helck Narsquoaman Edel Redford Weinstein Bartel e Frandsen

38 O primeiro laquofilho-real de Kuchraquo foi Turi39 Da Nuacutebia provinham produtos agriacutecolas madeiras gado e animais selvagens escravos

ouro marfim incenso e produtos exoacuteticos (peles de animais e penas de avestruz por exemplo) ndash Cf Kemp 1978 33 Tambeacutem em relaccedilatildeo aos Nuacutebios os Egiacutepcios natildeo mostravam respeito pela sua tecnologia religiatildeo ou costumes (CF Frandsen 1979 179)

40 Cf Vernus 2011 1841 Cf Galaacuten 2002 27 Kemp 1978 20 43-4442 Cf Sales 2001 871-72

49

Joseacute das Candeias Sales

dita (o espaccedilo interno egiacutepcio natildeo era maior do que fora em eacutepocas anteriores) ou com a existecircncia de uma pluralidade de povos e culturas (a populaccedilatildeo era natildeo obstante o ingresso de um ou outro contingente de estrangeiros basicamen-te a mesma) mas sim com a meticulosa e racional organizaccedilatildeo administrativa egiacutepcia talvez mais zelosa e empenhada em evitar alguns dos desmandos e atropelos do passado Somos noacutes que usamos o moderno conceito de laquoimperia-lismoraquo e o aplicamos agrave poliacutetica administrativa do Egito antigo e agraves suas laquoesferas de influecircnciaraquo43

Consideraccedilotildees finais

Utilizando a pluralidade de povos a diversidade cultural e a efetiva vasti-datildeo territorial como criteacuterios para a existecircncia de um laquoimpeacuterioraquo torna-se difiacutecil sustentar a ideia de um periacuteodo assim denominado na milenar histoacuteria do Egito antigo Mesmo a uacutenica eacutepoca que poderia ainda assim justificar melhor a de-signaccedilatildeo (o Impeacuterio Novo) natildeo se conforma integralmente agrave definiccedilatildeo operativa e institucional de laquoimpeacuterioraquo44

Quando observamos as inuacutemeras representaccedilotildees artiacutesticas da realeza e constatamos por um lado os tamanhos desproporcionados entre o faraoacute e os seus suacutebditos ou estrangeiros inimigos45 e por outro a sua equiparaccedilatildeo com as dimensotildees em que satildeo figurados os (outros) deuses concluiacutemos que elas indiciam jaacute ou comprovam a consideraccedilatildeo do faraoacute como indiviacuteduo superior como deus universal por direito proacuteprio Tambeacutem aqui sacralidade e divindade se misturam

Natildeo vemos neste periacuteodo nada que se aproxime de uma uniatildeo pessoal de vaacuterias diversidades na figura do mesmo soberano que pelos seus siacutembolos e accedilatildeo unifique ou pretenda unificar os distintos haacutebitos e costumes crenccedilas e cultos tradiccedilotildees e particularidades Independentemente da personalidade do detentor do poder a instituiccedilatildeo monaacuterquica egiacutepcia reenviava mais para modelos arquetiacutepicos e estereotipados do passado interno egiacutepcio do que para (novas) dominaccedilotildees geograacutefico-culturais-linguiacutesticas resultantes das (novas) hegemonias conseguidas no devir histoacuterico

Talvez por isso os antigos Egiacutepcios nunca usaram um termo que signifi-casse laquoImpeacuterioraquo ou laquoimperialismoraquo Talvez por isso a realeza (nesit) tenha sido sempre concebida como a demonstraccedilatildeo de laquoqualidades reaisraquo natildeo laquoimperiaisraquo Talvez por isso o faraoacute fosse sempre um neb taui (laquoSenhor das Duas Terrasraquo) mesmo quando pela vitoacuteria militar conquista outras terras massacrando real ou simbolicamente as suas populaccedilotildees (Nuacutebios Liacutebios ou Asiaacuteticos) ou pela forccedila

43 Cf Kemp 1978 744 Cf Vernus 2011 1745 Apesar de este cacircnone tambeacutem ser aplicado aos altos funcionaacuterios na sua relaccedilatildeo com os

seus dependentes ou servos interessa-nos aqui observaacute-lo apenas na oacuteptica do faraonato

50

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

da coerccedilatildeo econoacutemico-financeira as tutela Talvez por isso a designaccedilatildeo mais conveniente e correta para expressar as fortes dominaccedilotildees impostas pelo poder faraoacutenico nesses periacuteodos historicamente considerados de relevo seja laquocontrolo hegemoacutenicoraquo ou laquohegemoniaraquo Talvez por isso as formas usadas pela historio-grafia anglo-saxoacutenica (Old Kingdom Middle Kingdom New Kingdom) italiana (Antico Regno Medio Regno Nuovo Regno) e em certas tendecircncias recentes da investigaccedilatildeo em liacutengua espanhola (Reino Antiguo Reino Medio Reino Nuevo) sejam mais correctas deslocando todo o campo conceptual para o lado de laquorei-noraquo em vez de para o de laquoimpeacuterioraquo

51

Joseacute das Candeias Sales

Bibliografia

Andreu Guillemette 1996 ldquoLe vizirrdquo In AAVV LrsquoEacutegypte ancienne Paris Eacuteditions du Seuil 63-65

Arauacutejo Luiacutes Manuel 2001 ldquoDa teoria agrave praacutetica o exerciacutecio do poder real no Egito faraoacutenicordquo Clio 533-57

Arauacutejo Luiacutes Manuel e Nuno Simotildees Rodrigues 2006 As comunicaccedilotildees na Antiguidade Lisboa Fundaccedilatildeo Portuguesa das Comunicaccedilotildees

Baines John e Jaromir Malek 1984 Atlas of Ancient Egypt Oxford Phaidon Press Ltd

Bryan Betsy M 2000 ldquoThe Eighteenth Dynasty before the Amarna Period c1550-1352 BCrdquo In The Oxford History of Ancient Egypt ed I Shaw 235-40 New York Oxford University Press

Bonhecircme Marie Ange e Annie Forgeau 1998 Pharaon Les Secrets du pouvoir Paris Armand Colin

Carreira Joseacute Nunes 2001 ldquoLegitimaccedilatildeo do poder no Egito Faraoacutenicordquo Clio 519-33

Clayton Peter 1995 Chronique des pharaons Lrsquohistoire regravegne par regravegne des souverains et des dynasties de lrsquoEacutegypte ancienne Paris Casterman

Collier Sandra 1996 The crowns of the Pharaoh their development and significance in ancient Egyptian kingship Los Angeles University of California

Daumas Franccedilois 1998 ldquoHistoire peacuteriode pharaoniquerdquo In Dictionnaire de lrsquoEacutegypte ancienne 179-99 Paris Encyclopaedia Universalis Albin Michel

Derchain Philippe 1962 ldquoLe role du roi drsquoEgypte dans le maintien de lrsquoordre cosmiquerdquo In Le Pouvoir et le Sacreacute 61-73 Bruxelles Universiteacute Libre de Bruxelles

Desroches-Noblecourt Christiane 1986 La femme au temps des pharaons Paris Stock Laurence Pernoud

mdashmdashmdash 1996 Ramsegraves II la veacuteritable histoire Paris Eacuteditions PygmalionDiego Espinel Andreacutes 1998 ldquoFronteras y demarcaciones del territorio Egipcio

en el Reino Antiguo Egyptian frontiers and landmarks during the Old Kingdomrdquo In Stvdia Historica Historia Antigua 169-30 Salamanca Ediciones Universidad de Salamanca

Donadoni Sergio dir 1994 O Homem Egiacutepcio Lisboa Editorial PresenccedilaDrioton Eacutetienne e Jacques Vandier 1975 LrsquoEgypte ndash des origines agrave la conquecircte

drsquoAlexandre 5ordf ed Paris Presses Universitaires de FranceDuverger Maurice 1980 ldquoLe concept drsquoempirerdquo In AAVV Le concept drsquoempire

52

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

5-23 Paris Presses Universitaires de FranceFavard-Meeks Christine e Dimitri Meeks 1986 ldquoLrsquoheacuteritiegravere du Deltardquo In

Alexandrie IIIe siegravecle av J-C Tous les savoirs du monde ou le recircve drsquouniversaliteacute des Ptoleacutemeacutees 28-33 Paris Eacuteditions Autrement

Frandsen Paul John 1979 ldquoEgyptian Imperialismrdquo In Power and Propaganda A Symposium on Ancient Empires (Mesopotamia 7) ed M T Larsen 167-90 Copenhagen Akademisk Forlag

Gaacutelan Joseacute Manuel 2011 ldquoInteacuterpretes y traducciones en el Egipto Imperialrdquo Semata Ciencias Sociais e Humanidades 23295-313

mdashmdashmdash 2002 El Imperio Egipcio Inscripciones ca 1550-1300 a C Barcelona Edicions de la Universitat de Barcelona Editorial Trolla

mdashmdashmdash 1995 Victory and Border Terminology related to Egyptian Imerialism in the XVIIIth Dynasty Hildesheimer Gersteben Verlag

Gardiner Alan 1961 Egypt of pharaohs An Introduction Oxford Clarendon Press

Goebs Katja 2013 ldquoCrowns Egyptrdquo In The Encyclopedia of Ancient History ed R S Bagnall K Brodersen C B Champion A Erskine S R Huebner 1847-49 London Blackwell Publishing

mdashmdashmdash 2007 ldquoKinshiprdquo In The Egyptian World ed Toby Wilkinson 275-95 London New York Routledge

mdashmdashmdash 2001 ldquoCrownsrdquo In The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt Vol 1 ed D B Redford 321-26 Oxford Oxford University Press

mdashmdashmdash 1998 ldquoSome Cosmic aspects of the royal crownsrdquo In Proceedings of the Seventh International Congress of Egyptologists Cambridge 3-9 September 1995 ed C J Eyre Leuven 447-60 Leuven Peeters

Graham Geoffrey 2001 ldquoInsigniasrdquo In The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt Vol 2 ed D B Redford 163-67 Oxford Oxford University Press

Grimal Nicolas 2000 ldquoLes oasis di deacutesert libyque lrsquoeau la terre et la sablerdquo Comptes rendus des Seacuteances de lrsquoanneacutee ndash Acadeacutemie des Inscriptions et Belles-Lettres 144 (2)909-40

mdashmdashmdash 1988 Histoire de LrsquoEacutegypte ancienne Paris FayardHigginbotham Carolyn R 2000 Egyptianization and elite emulation in

Ramesside Palestine governance and accomodation on the imperial periphery Leiden Boston Koumlln Brill

Henry Roger 2003 Synchronized Chronology Rethinking Middle East Antiquity A Simple Correction to Egyptian Chronology Resolves The Major Problems In Biblical And Greek Archaeology New York Algora

Hobson Christine 1987 Exploring the world of pharaohs A complete guide to ancient Egypt London Thames amp Hudson

53

Joseacute das Candeias Sales

Hornung Erik 1992 ldquoLe pharaonrdquo In Lrsquohomme eacutegyptien dir Sergio Donadoni 337-73 Paris Eacuteditions du Seuil

Hornung Erik Rolf Krauss e David A Warbuton eds 2006 Ancient Egyptian Chronology Leiden Boston Brill

Husson Geneviegraveve e Dominique Valbelle 1992 Lrsquoeacutetat et les institutions en Eacutegypte Des premiers pharaons ax empereurs romains Paris Arman Colin

Jimeacutenez Fernandez Juan e Alejandro Jimeacutenez Serrano eds 2008 Historia de Egito ndash Manetoacuten Madrid Akal

Kemp Barry J 1989 Ancient Egypt anatomy of a civilization London Routledgemdashmdashmdash 1978 ldquoImperialism and Empire in New Kingdom Egyptrdquo In Imperialism

in the Ancient World The Cambridge University Research Seminar eds P D A Garnsey e C R Whittaker 7-57 Cambridge Cambridge University Press

Lalouette Claire 1991 Au royaume drsquoEacutegypte Les temps des rois-dieux Paris Fayard

mdashmdashmdash 1986 Thegravebes ou la naissance drsquoun empire Paris Fayardmdashmdashmdash 1985 Lrsquoempire des Ramsegraves Paris FayardLeclant Jean 1980 ldquoLes ldquoempiresrdquo et lrsquoimpeacuterialisme de lrsquoEacutegypte pharaoniquerdquo

In AAVV Le Concept drsquoempire 49-68 Paris Presses Universitaires de France

Leprohon Ronald 2013 The Great Name Ancient Egyptian royal titulary Atlanta Society of Biblical Literature

Loprieno Antonio 1998 ldquoLe pharaon reconstruit La figure du roi dans la litteacuterature eacutegyptienne au Ier milleacutenaire avant J-Crdquo Bulletin de la Socieacuteteacute Franccedilaise drsquoEgyptologie 1424-24

Malek Jaromir 1997 ldquoLa division de lrsquohistoire drsquoEacutegypte et lrsquoEacutegyptologie modernerdquo Bulletin de la Socieacuteteacute Franccedilaise drsquoEgyptologie 1386-17

Manley Bill 1998 Atlas historique de lrsquoEgypte ancienne De Thegravebes agrave Alexandrie la tumultueuse eacutepopeacutee des pharaons Paris Eacuteditions Autrement

Morris Ellen Fowles 2005 The architecture of imperialism Military bases and the evolution of foreign policy in Egyptrsquos New Kingdom Leiden Brill

OrsquoConnor David e David P Silvermann 1995 Ancient Egyptian Kingship Leiden Brill

Posener Georges 1960 De la diviniteacute du pharaon Cahiers de la Socieacuteteacute Asiatique 15 Paris Acadeacutemie des Inscriptions et Belles-Lettres

Posener Georges Serge Sauneron e Jean Yoyotte dir 1970 Dictionnaire de la civilisation eacutegyptienne Paris Fernand Hazan

Quirke Stephen 1990 Who were the Pharaohs A history of their names with a

54

Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo

list of cartouches London The British Museum PublicationsRachet Guy 1987 LrsquoEacutegypte ancienne Paris Eacuteditions du FeacutelinRaiteacute Suzanne 1979 La reine Hatchepsout Sources et problegravemes Leiden BrillRice Michael 2002 Whorsquos who in Ancient Egypt London New York RoutledgeRyholt Kim 2004 ldquoThe Turin King-Listrdquo Aumlgypten und Levante 14135-55Sales Joseacute das Candeias 2008 Poder e Iconografia no antigo Egipto Lisboa

Livros Horizontemdashmdashmdash 2007a Estudos de Egiptologia Temaacuteticas e Problemaacuteticas Lisboa Livros

Horizontemdashmdashmdash 2007b ldquoAs foacutermulas protocolares egiacutepcias ou formas e possibilidades do

discurso de legitimaccedilatildeo no antigo Egiptordquo Cadmo 16101-24mdashmdashmdash 2005 Ideologia e propaganda real no Egipto ptolomaico (305-30 a C)

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkianmdashmdashmdash 2001a ldquoFaraoacuterdquo In Dicionaacuterio do Antigo Egipto dir L M de Arauacutejo 364-

68 Lisboa Caminhomdashmdashmdash 2001b ldquoVizirrdquo In Dicionaacuterio do Antigo Egipto dir L M de Arauacutejo 871-

73 Lisboa Caminhomdashmdashmdash 1997 A ideologia real egiacutepcia e acaacutedica Representaccedilotildees do poder poliacutetico

preacute-claacutessico Lisboa Editorial EstampaShaw Ian 2000 ldquoIntroduction Chronologies and cultural change in Egyptrdquo

In The Oxford history of Ancient Egypt 1-16 London Oxford University Press

Shaw Ian e Paul Nicholson 1995 British Museum dictionary of Ancient Egypt London British Museum Press

Tyldesley Joyce 2006 Chronicle of the queens of Egypt From early dynastic times to the death of Cleopatra London Thames amp Hudson

Valbelle Dominique 1998 Histoire de lrsquoEacutetat pharaonique Paris Presses Universitaires de France

mdashmdashmdash 1992 Lrsquoeacutetat et les institutions en Egypte Des premiers pharaons aux empereurs romains Paris Armand Colin

mdashmdashmdash 1990 Les neuf arcs LrsquoEacutegyptien et les eacutetrangers de la Preacutehistoire agrave la conquecircte drsquoAlexandre Paris Armand Colin

Vandersleyen Claude 1992 LrsquoEgypte et la Valleacutee du Nil tome 2 ndash De la fin de lrsquoAncien Empire agrave la fin du Nouvel Empire Paris Presses Universitaires de France

Vercoutter Jean 1998 ldquoPharaonrdquo In Dictionnaire de lrsquoEacutegypte ancienne 296-300 Paris Enciclopaeligdia Universalis Albin Michel

mdashmdashmdash 1992 LrsquoEgypte et la Valleacutee du Nil tome 1 ndash Des origines agrave la fin de lrsquoAncien

55

Joseacute das Candeias Sales

Empire Paris Presses Universitaires de FranceVernus Pascal 2011 ldquoLos barbechos del demiurgo y la soberaniacutea del faraoacuten

El concepto de ldquoimperiordquo y las latencias de la creacioacutenrdquo In El Estado en el Mediterraacuteneo antiguo Egito Grecia Roma comps M Campagno J Gallego e C G Garcia Mac Gaw 13-43 Buenos Aires Mintildeo y Daacutevila

mdashmdashmdash 1986 ldquoLe concept de monarchie dans lrsquoEgypte anciennerdquo In Les monarchies dir E L Ladurie 29-42 Paris Presses Universitaires de France

Vernus Pascal e Jean Yoyotte 1988 Les Pharaons Paris MA EacuteditionsVogel Carola 2011 ldquoThis Far and Not a Step Further The Ideological Concept

of Ancient Egyptian Boundary Stelaerdquo In Egypt Canaan and Israel History Imperialism Ideology and Literature Proceedings of a Conference at the University of Haifa 3ndash7 May 2009 320-41 Leiden Boston Brill

Weinstein James M 1981 ldquoThe Egyptian Empire in Palestine A Reassessmentrdquo Bulletin of the American Schools of Oriental Research 2411-28

Wilkinson Toby 1999 Early Dynastic Egypt London RoutledgeWoolf Greg 1992 ldquoImperialisme empire and the integration of the Roman

economyrdquo World Archaeology 23 (3)283-93

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

57

Rogeacuterio Sousa

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica

do Egito na viragem para o I Mileacutenio1 (Starting anew the laquorepetition of birthraquo and Egyptrsquos political transformation

on the brink of the 1st Millenium)

Rogeacuterio Sousa(solarbenugmailcom ORCID 0000-0002-8253-1707)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de HistoacuteriaCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos Universidade de Coimbra

Resumo - A desintegraccedilatildeo poliacutetica que ocorreu no Egito no final do Impeacuterio Novo partilha muitos aspetos em comum com a crise que afetou as civilizaccedilotildees da bacia do Mediterracircneo na transiccedilatildeo da Idade do Bronze para a Idade do Ferro Muito mais bem documentada no Egito do que noutros contextos esta transiccedilatildeo natildeo irrompeu de forma violenta ou acom-panhada por uma crise cultural profunda Ainda assim o Terceiro Periacuteodo Intermediaacuterio apresenta uma organizaccedilatildeo poliacutetica completamente distinta que parece ter sido posta em praacutetica ao longo da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo atraveacutes da accedilatildeo combinada de Herihor - e dos seus sucessores no reino do Sul ndash e de Ramseacutes XI no reino do Norte

Palavras-chave Repeticcedilatildeo do Nascimento Herihor Ramseacutes XI

Abstract ndash The political disintegration occurred in Egypt at the end of the New Kingdom has much in common with the crisis that affected the civilizations of the Mediterranean basin in the transition from the Bronze Age to the Iron Age Much better documented in Egypt than elsewhere this transition did not irrupt violently with a sense of cultural crisis Nevertheless the Third Intermediate Period presents a completely distinct political organization of Egypt that seems to have been put in place during the laquoRepetition of birthsraquo through a combined action of Herihor and his successors in the South and Ramses XI in the North

Keywords Repetition of birth Herihor Ramses XI

O fim da XX dinastia (c 1100 aC) e do Impeacuterio Novo foi grandemente deter-minado pelas ondas de choque provocadas pelas grandes migraccedilotildees causadas pela queda do mundo miceacutenico e do impeacuterio hitita Embora o Egito tenha sido atingido apenas marginalmente por estes fenoacutemenos a verdade eacute que a batalha de Ramseacutes III contra os Povos do Mar representa um choque de civilizaccedilotildees que apesar da vitoacuteria obtida natildeo se traduziu de forma alguma no afastamento do inimigo2 Agraves

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013 e do projecto UIDELT001962013

2 Os liacutebios constituem uma presenccedila influente no Egito Embora as incursotildees dos Mechuech e dos Libu tivessem sido repelidas por Merenptah e Ramseacutes III muitos imigrantes

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_3

58

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

populaccedilotildees liacutebias autoacutectones juntaram-se mercenaacuterios oriundos dos chamados laquoPovos do Marraquo que se instalaram cada vez com mais expressatildeo no Delta3 desen-volvendo uma aristocracia militar que havia de marcar indelevelmente a geografia poliacutetica e militar do Egito4 Adicionalmente muitos imigrantes continuaram a instalar-se no Delta com um cunho fortemente militarizado No final do Impeacuterio Novo o exeacutercito era jaacute quase inteiramente constituiacutedo por mercenaacuterios liacutebios5

O domiacutenio dos Mechuech no Egito eacute assim equivalente agrave irrupccedilatildeo dos Etruscos na Itaacutelia ou dos Doacuterios na Greacutecia ou dos Filisteus na Palestina Em todos estes casos os processos de penetraccedilatildeo das novas populaccedilotildees foram acom-panhados pela incapacidade crescente do poder central em garantir a conectivi-dade poliacutetica desencadeando uma regionalizaccedilatildeo crescente com as populaccedilotildees locais entregues a si mesmas6

O final do Impeacuterio Novo eacute portanto antes de mais a expressatildeo de um fenoacute-meno global que afetou todo o Proacuteximo Oriente e Mediterracircneo desde a Iacutendia ao Egeu Internamente este fenoacutemeno traduziu-se na desintegraccedilatildeo do aparelho burocraacutetico real a qual se acelerou na proporccedilatildeo directa do empobrecimento das populaccedilotildees Sabe-se que uma seacuterie de maacutes colheitas ocorreram durante o reinado de Ramseacutes VII e prosseguiram com os seus sucessores levando a um aumento do preccedilo do trigo e a periacuteodos de fome7 O empobrecimento foi geral e a ineficaacutecia da administraccedilatildeo central agravou-o ainda mais gerando-se como refere Jan Assman uma crise de penetraccedilatildeo e de distribuiccedilatildeo Toda a infraestrutura crucial para o fun-cionamento de uma economia redistributiva estava agrave beira do colapso os bens natildeo chegavam aos armazeacutens reais e o abastecimento proporcionado por estes armazeacutens era insuficiente daiacute resultando fome instabilidade social e empobrecimento geral

Os reinados de Ramseacutes IX Ramseacutes X e Ramseacutes XI representam o momento mais grave desta tendecircncia Como os seus antecessores da XIX e da XX dinastia o faraoacute governava a partir da sua capital Pi-Ramseacutes situada no Delta oriental longe portanto dos principais centros locais do Egito e aparentemente sem capacidade real de intervenccedilatildeo neste processo

Sintomaticamente nem as obras reais de grande importacircncia simboacutelica e poliacutetica como a construccedilatildeo dos tuacutemulos reais foram poupadas No reinado de

continuaram a instalar-se no Delta com um cunho fortemente militarizado (Wainwright 1962 89-99) No final do Impeacuterio Novo o exeacutercito era jaacute quase inteiramente constituiacutedo por mercenaacuterios liacutebios (Taylor 2000 335)

3 Assmann 2002 2814 Este fenoacutemeno eacute visiacutevel atraveacutes da onomaacutestica as famiacutelias mais influentes tanto no norte

como no sul apresentam indiviacuteduos com nomes aparentemente de origem liacutebia A presenccedila liacutebia poderaacute ser mais expressiva sobretudo se admitirmos que sob nomes egiacutepcios se ocultem tambeacutem indiviacuteduos de origem liacutebia (Taylor 2000 335)

5 Taylor 2000 3356 Assmann 2002 2817 Trigger et al 1983 228

59

Rogeacuterio Sousa

Ramseacutes IX o fornecimento deficiente de geacuteneros aos trabalhadores dos tuacutemulos reais iria mesmo motivar uma greve consubstanciada num vigoroso movimento reivindicativo em Deir el-Medina que levou os operaacuterios a dirigirem-se ao sumo sacerdote de Aacutemon apresentando-lhe as suas queixas8 Segundo a do-cumentaccedilatildeo eles acabaram por ser pagos com o trigo retirado do celeiro dos templos de Montu quando tal pagamento competia agraves autoridades laquocivisraquo sob as ordens diretas do vizir de entatildeo Khamon Nos reinados de Ramseacutes X (KV 18) e de Ramseacutes XI (KV 4) a situaccedilatildeo foi aparentemente ainda pior jaacute que nenhum dos tuacutemulos foi terminado

Durante este periacuteodo a regiatildeo de Tebas foi assolada por grupos armados provenientes do deserto ocidental originando um periacuteodo criacutetico de violecircncia e fome que mais tarde seria evocado como o laquoano das hienasraquo Estes grupos tinham provavelmente origem liacutebia mas eacute provaacutevel que vivessem no Egito haacute vaacuterias geraccedilotildees e que em algum momento tivessem estado ao serviccedilo do proacute-prio faraoacute Sabe-se que Ramseacutes III na continuaccedilatildeo de idecircnticas atitudes tomadas pelos seus antecessores tinha instalado vaacuterias coloacutenias de liacutebios e de siacuterios no paiacutes alguns deles servindo como mercenaacuterios no exeacutercito9

A situaccedilatildeo de crise geral no entanto tinha tornado perigosos estes grupos que aproveitando a debilidade crescente do sistema pilhavam as populaccedilotildees mais vulneraacuteveis As incursotildees depredatoacuterias no territoacuterio tebano motivaram mesmo o abandono de Deir el-Medina cujos aldeotildees se refugiaram no com-plexo funeraacuterio de Ramseacutes III de Medinet Habu entretanto transformada em cidadela fortificada

A anarquia crescente foi agravada pela corrupccedilatildeo dos funcionaacuterios gerando um processo que se reforccedilava mutuamente Quanto maior era a ineficaacutecia do apa-relho burocraacutetico real maior era a corrupccedilatildeo o que gerava ainda mais ineficaacutecia Este processo eacute exemplarmente demonstrado pelo saque organizado aos tuacutemulos da necroacutepole Este processo eacute documentado no Papiro Abbott o qual conserva uma seacuterie de relatoacuterios relativos a roubos que tiveram lugar no ano 16 de Ramseacutes IX O escacircndalo estalou aparentemente devido agrave rivalidade entre o governador de Tebas Paser e o governador da necroacutepole Pauer-reacute Em face das denuacutencias o vizir Khaemuaset ordenou uma comissatildeo para investigar as alegaccedilotildees10 Dos dez tuacutemulos investigados apenas o de Amen-hotep I se apresentava entatildeo intacto Todos os restantes haviam sido espoliados em todo ou em parte11

8 Em Arauacutejo 1999 153 nota 269 Arauacutejo 1999 11510 A respeito dos roubos efetuados na necroacutepole ver Goelet 1996 107-2711 Clayton 1994 171 Foi em Deir el-Medina que foi encontrada a documentaccedilatildeo referente

aos roubos aos tuacutemulos reais Os culpados foram julgados no templo de Maet situado junto ao templo de Montu em Karnak O vizir Khaemuaset o governador de Tebas Paser o sumo sacer-dote de Aacutemon Amen-hotep e o governador da necroacutepole Pauer participaram no julgamento dos culpados que foram severamente punidos

60

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

Apesar da investigaccedilatildeo judicial em curso o saque continuou ao longo dos anos seguintes prolongando-se ateacute ao reinado de Ramseacutes XI durante o qual se registaram roubos no Vale das Rainhas em Medinet Habu e no Ramesseum12 Em tempos de escassez as riquezas ocultas na necroacutepole constituiacuteam portanto um foco criacutetico de instabilidade para a regiatildeo tebana

Perante o recuo da administraccedilatildeo central foi nos templos que se manteve em funcionamento uma administraccedilatildeo local que aliviada da supervisatildeo fa-raoacutenica oferecia o terreno ideal para a actividade de funcionaacuterios corruptos Satildeo conhecidos excessos cometidos por sacerdotes em Elefantina relatados no Papiro de Turim 188713 Esta tendecircncia atingiu certamente proporccedilotildees bem mais significativas em torno dos grandes templos do Egito onde a riqueza era ainda muito significativa O templo de Aacutemon detinha dois terccedilos da terra araacutevel do Egito noventa por cento da frota fluvial oitenta por cento das oficinas O seu controlo da economia do paiacutes era absoluto e tornou-se inevitaacutevel que o sumo sacerdote de Aacutemon adquirisse um peso poliacutetico sem precedentes

Numa cerimoacutenia ocorrida no ano 10 de Ramseacutes IX no templo de Aacutemon em Karnak o sumo pontiacutefice Amen-hotep foi cumulado de favores alguns dos quais consistiam na transferecircncia dos tributos destinados ao proacuteprio faraoacute para o tesouro do templo de Aacutemon Esta cerimoacutenia foi gravada no muro situado entre o seacutetimo e o oitavo pilone em Karnak Nela pode ver-se Amen-hotep diante do faraoacute Ramseacutes IX e facto inusitado ambos satildeo representados com o mesmo tamanho algo que noutros tempos teria sido inaceitaacutevel e anoacutemalo tendo em conta todas as convenccedilotildees milenares da ideologia real egiacutepcia14

Esta demonstraccedilatildeo de poder foi apenas o preluacutedio de um longo pontificado Amen-hotep sucedera ao seu irmatildeo mais velho Nesiamon15 Sintomaticamente agrave medida que o aparelho burocraacutetico real se degradava a cultura de meacuterito que antes ditava o acesso aos cargos de topo da hierarquia era agora substituiacuteda pelo caraacutecter hereditaacuterio dos mesmos Guindado no cargo pela legitimidade conferida pela sua linhagem familiar Amen-hotep manteve-o durante o reinado de Ramseacutes X acumulando-o com o cargo de intendente dos trabalhos no domiacutenio de Aacutemon grande intendente do palaacutecio real e tal como o seu pai chefe dos sacerdotes de todos os deuses

12 Ver Dodson 2012 1013 Arauacutejo 1999 118 14 Uma outra representaccedilatildeo ilustra Amen-hotep oferecendo um elemento floral do culto de

Montu ao faraoacute o qual aparece na imagem com o mesmo tamanho que o sumo sacerdote de Aacutemon Arauacutejo 1999 154 nota 34 Ver tambeacutem Černyacute 1965 629

15 Arauacutejo 1999 113 Ver tambeacutem Bierbrier 1975 3-13 A famiacutelia de Amen-hotep estava unida com outra famiacutelia importante que descendia de Bakenkhonsu (sumo sacerdote de Aacutemon no tempo de Ramseacutes III)

61

Rogeacuterio Sousa

1 O golpe militar de Panehesi

Esta tendecircncia foi brutalmente interrompida pelo golpe militar liderado por Panehesi o Vice-rei de Kuch Uma carta endereccedilada pelo faraoacute Ramseacutes XI a Pahenesi datada do Ano 17 atesta as boas relaccedilotildees entre ambos e seguramente antecede o eclodir daquele evento16 Provavelmente incentivado pelo proacuteprio faraoacute17 Panehesi o homem forte do momento ataca posiccedilotildees rebeldes ao norte de Tebas dominando Hardai a capital da XVII sepat do Alto Egito Na sequecircncia desta intervenccedilatildeo Panehesi fez o impensaacutevel e depocircs o sumo sacerdote Amen-hotep laquosem que nele houvesse faltaraquo18 Embora eventualmente sancionado pelo proacuteprio faraoacute o golpe desencadeou uma oposiccedilatildeo e indignaccedilatildeo tal que Amen-hotep foi reconduzido novamente nas suas funccedilotildees

Apesar de documentado em vaacuterias fontes incluindo o proacuteprio texto autobiograacutefico de Amen-hotep este acontecimento marcante para a evoluccedilatildeo poliacutetica registada ao longo da XXI dinastia e todo o Terceiro Periacuteodo Intermediaacuterio possui uma dataccedilatildeo muito incerta mas eacute provaacutevel que tenha ocorrido antes do Ano 19 de Ramseacutes XI portanto antes da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo19

O certo eacute que ambos os protagonistas deste episoacutedio viram a sua importacircn-cia poliacutetica esfumar-se daiacute em diante Na sequecircncia deste incidente o poderoso Panehesi eacute repelido para laacute das fronteiras meridionais da Nuacutebia e perde desde entatildeo toda a sua influecircncia em Tebas20 passando doravante a ser qualificado com o pejorativo determinativo de laquoinimigoraquo21 Amen-hotep por outro lado viu daiacute em diante secundarizado o seu estatuto Desconhece-se o destino final de Amen--hotep mas as escavaccedilotildees arqueoloacutegicas no seu tuacutemulo que se erguia imponente em Dra Abu el-Naga natildeo revelaram qualquer vestiacutegio de ter sido usado22

2 A laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo

No Ano 19 de Ramseacutes XI os documentos tebanos passam a ser datados de acordo com uma nova era a Uhem-mesut a laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo23 Eacute o caso do Papiro Mayer A que faz referecircncia ao laquoAno 1 da Repeticcedilatildeo do Nasci-mentoraquo ou do Papiro Abbott que alude ao laquoAno 1 primeiro mecircs de Akhet dia 2

16 Dodson 2012 1517 Arauacutejo 1999 115 Tambeacutem em Kitchen 1986 24718 PBM EA10383 sect25 Em Dodson 2012 1519 Dodson 2012 1420 Černyacute 1965 633 Ver Taylor 2000 33121 Dodson 2012 1622 Cooney 2011 10 23 A expressatildeo whm-mswt (uhem-mesut) laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo derivava segundo

Gardiner de uma foacutermula metafoacuterica alusiva ao renascimento ciacuteclico da lua Em Gardiner 1961 127 Tambeacutem em Arauacutejo 1999 124

62

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

correspondendo ao Ano 19 (de Ramseacutes XI)raquo24Era a terceira vez na histoacuteria egiacutepcia que ocorria uma laquoRepeticcedilatildeo do Nasci-

mentoraquo A primeira ocorreu com Amenemhat I (1991 aC) e a segunda com Seti I (1295 aC) A expressatildeo havia sido usada para proclamar esses reinados como o iniacutecio de uma nova era No Egito o interesse em assegurar a continuidade era em geral mais forte do que o desejo de mudanccedila Iniciar um periacuteodo de gover-naccedilatildeo proclamando-o como um renascimento correspondia a um desejo firme de afirmar uma rutura com o passado recente Amenemhat I havia usado esta expressatildeo para se distanciar do Primeiro Periacuteodo Intermediaacuterio e Seti I para se distanciar do periacuteodo amarniano e de algum modo buscavam o regresso a uma certa laquoortodoxiaraquo No entanto ao contraacuterio das anteriores a nova proclamaccedilatildeo de um renascimento natildeo evocava o regresso a um sistema de governaccedilatildeo previa-mente existente Pelo contraacuterio anunciava uma nova era que verdadeiramente se distinguia de tudo quanto havia existido previamente25 Esta era de renasci-mento natildeo corresponde a um periacuteodo de florescimento cultural mas representa uma das mais importantes viragens da histoacuteria egiacutepcia

3 Herihor e a formulaccedilatildeo da teocracia de Aacutemon

A historiografia deste periacuteodo eacute bastante problemaacutetica A reconstruccedilatildeo atualmente mais consensual faz coincidir o Ano 1 da laquoRepeticcedilatildeo do Nasci-mentoraquo com o iniacutecio do pontificado de Herihor pelo que se deduz que a nova contagem do tempo eacute implementada apoacutes o afastamento se natildeo definitivo pelo menos efetivo de Amen-hotep daquele cargo

A nomeaccedilatildeo de Herihor como sumo sacerdote de Aacutemon afigura-se por-tanto em clara rutura com o estatuto anteriormente detido por Amen-hotep o qual devia a legitimidade do seu cargo agrave sua linhagem familiar A nomeaccedilatildeo de Herihor como sumo sacerdote de Aacutemon contradiz esta tendecircncia jaacute que natildeo soacute natildeo apresenta qualquer genealogia como natildeo seguira sequer uma carreira sacerdotal preacutevia os seus tiacutetulos mencionam unicamente o cargo de superinten-dente dos carros de guerra e o de hauti (comandante do exeacutercito do Egito)26 Eacute portanto na qualidade de chefe militar que Herihor assume o pontificado tebano

A nomeaccedilatildeo de Herihor como sumo sacerdote de Aacutemon coroava portanto uma carreira militar mais do que sacerdotal27 Deste modo eacute legiacutetimo questio-nar ateacute que ponto Herihor representaria efetivamente os interesses do templo de Aacutemon28 A nomeaccedilatildeo de Herihor representou portanto uma rutura profunda

24 Arauacutejo 1999 116 Para outras fontes para a laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo ver tambeacutem Černyacute 1927 194-98

25 Assmann 2002 28926 Arauacutejo 1999 12127 Clayton 1994 17128 Tradicionalmente Herihor eacute visto como o arauto do clero de Aacutemon Veja-se Arauacutejo 1999

63

Rogeacuterio Sousa

nesta ordem e originou seguramente uma reaccedilatildeo no seio do clero tebano A nova contagem do tempo que decorria da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo de certa forma sancionava e legitimava o caraacutecter excecional da eleiccedilatildeo de Herihor e muito pro-vavelmente foi implementada para consolidar a rutura com o passado recente

A partir de Herihor os sumo sacerdotes de Aacutemon seriam doravante gene-rais chefes militares cuja origem egiacutepcia eacute na maior parte dos casos altamente questionaacutevel Contrariando os privileacutegios das linhagens locais e alicerccedilando o seu poder na forccedila militar a nova linhagem de sumo pontiacutefices introduzia uma rutura profunda na organizaccedilatildeo do clero amoniano rutura essa que parece ter servido os interesses do faraoacute29

A formulaccedilatildeo de uma nova era e de um monarca em Tebas fazia inaugurar uma nova relaccedilatildeo poliacutetica com Ramseacutes XI Estas relaccedilotildees que antes eram domeacutes-ticas assumiam agora o caraacutecter de relaccedilotildees entre estados30 E no entanto natildeo resultou desta cisatildeo o aumento de hostilidade entre Tebas e o Norte Muito pelo contraacuterio Uma espeacutecie de concordata caracterizou as suas relaccedilotildees poliacuteticas A laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo utilizava os instrumentos da diplomacia internacio-nal tatildeo eficazmente elaborados ao longo do periacuteodo ramseacutessida para assegurar o domiacutenio da tensatildeo interna a qual continuou a originar incidentes ao longo de toda a XXI dinastia31

A nomeaccedilatildeo de Herihor teve portanto um significado poliacutetico indissociaacutevel da declaraccedilatildeo da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo como uma nova era Herihor empe-nhou-se desde logo na estabilizaccedilatildeo da necroacutepole tebana essencial para controlar a regiatildeo Natildeo eacute certamente por acaso que a maior parte da documentaccedilatildeo referente agrave laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo se relacione com julgamentos relacionados com os roubos efetuados na necroacutepole32 e com as retumulaccedilotildees reais as quais aparentemente se iniciaram sob o seu comando Registos do seu reinado satildeo frequentes entre os restauros feitos agraves muacutemias e aos atauacutedes reais descobertos no tuacutemulo TT 32033

116 Tambeacutem Černyacute 1965 63429 Sinais da resistecircncia a estas medidas iriam continuar a fazer-se sentir no clero tebano pelo

menos ateacute o pontificado de Menkheperreacute altura em que os uacuteltimos focos de resistecircncia parecem ter sido definitivamente eliminados

30 Assmann 2002 28931 A morte aparentemente prematura de Masaharta parece ter sido acompanhada por

distuacuterbios na regiatildeo tebana os quais teratildeo culminado nos acontecimentos narrados na Estela do Banimento que assinala o regresso de Menkheperreacute a Tebas com o intuito expliacutecito de repor a ordem laquofoi ao sul em valor e vitoacuteria para pacificar a terra e suprimir o seu inimigoraquo (Arauacutejo 1999 141) Em seguida na sequecircncia de uma decisatildeo oracular Menkheperreacute anuncia o regresso de exilados (Goff 1979 66)

32 A este respeito ver Peet 193033 As inscriccedilotildees feitas nas faixas mortuaacuterias das muacutemias reais sobretudo nas de Ramseacutes II e

de Seti I satildeo fontes de informaccedilatildeo decisivas para a cronologia da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo O restauro destas muacutemias teria sido ordenado por Herihor provavelmente na sequecircncia da profanaccedilatildeo dos seus tuacutemulos

64

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

Ateacute ao Ano 5 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo nem Herihor em Tebas nem Smendes em Tacircnis detecircm ainda qualquer prerrogativa real como se depreende do relato patente na Viagem de Uenamon Datam ainda desta fase as campa-nhas de decoraccedilatildeo do templo de Khonsu o deus lunar filho de Aacutemon erguido no recinto do templo de Aacutemon-Reacute em Karnak Na sala hipoacutestila do templo de Khonsu Herihor enverga trajes sacerdotais mas eacute representado agrave mesma escala do faraoacute Ramseacutes XI executando os mesmos gestos lituacutergicos em princiacutepio reservados unicamente ao faraoacute Note-se que nem mesmo o sumo sacerdote Amen-hotep havia sido apresentado desta forma34

Contudo no Ano 6 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo (Ano 24 de Ramseacutes XI) verifica-se a assunccedilatildeo da realeza por parte de Herihor e a consequente eleiccedilatildeo de Piankh como sumo sacerdote de Aacutemon no Ano 7 Com a sua aclamaccedilatildeo real uma nova contagem do tempo eacute adicionada desta feita baseada nos anos de reinado de Herihor Esta viragem eacute documentada na decoraccedilatildeo do paacutetio colu-nado do templo de Khonsu em Karnak onde Herihor figura jaacute ataviado como um faraoacute e dotado de uma titularia real35 E no entanto o seu nome de coroaccedilatildeo - nome de rei do Alto e do Baixo Egito - natildeo era outro senatildeo o do seu cargo o de sumo sacerdote de Aacutemon A adoccedilatildeo deste tiacutetulo como nome de rei do Alto e do Baixo Egito o mais importante e significativo da titulatura real e aquele que melhor condensava a quintessecircncia do programa de reinado do faraoacute indica que Herihor integrava o cargo de sumo sacerdote de Aacutemon na sua definiccedilatildeo como laquofaraoacuteraquo o que parece refletir o desejo de reunir num uacutenico indiviacuteduo a autori-dade civil militar e religiosa Mas natildeo eacute tudo Ao adotar as prerrogativas reais Herihor iniciou como era habitual uma nova contagem do tempo atraveacutes dos seus proacuteprios anos de reinado36

A introduccedilatildeo de uma nova contagem do tempo (que se adiciona agrave contagem da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo e do reinado de Ramseacutes XI) estaacute entre as mais significativas medidas adotadas por Herihor assinalando a autonomia poliacutetica do territoacuterio de Tebas em relaccedilatildeo agrave governaccedilatildeo de Ra-mseacutes XI A adoccedilatildeo da titulatura real de Herihor surge portanto como uma consequecircncia decorrente da formulaccedilatildeo de um novo ciclo poliacutetico O tiacutetulo de sumo sacerdote inscrito na cartela real tem um papel chave na definiccedilatildeo deste novo laquoestadoraquo tebano seria na qualidade de pontiacutefice que Herihor iria adotar as prerrogativas reais submetendo a sua estrateacutegia poliacutetica aos dita-mes superiores do culto de Aacutemon Em suma a proclamaccedilatildeo do estatuto real de Herihor traduz a implementaccedilatildeo em pleno de um novo sistema poliacutetico em Tebas a teocracia de Aacutemon

34 Dodson 2012 2235 Clayton 1994 17136 James et Morkot 2010 255

65

Rogeacuterio Sousa

Ao associar o cargo de sumo pontiacutefice com o exerciacutecio do poder real este novo sistema poliacutetico tinha uma loacutegica concentracionaacuteria Tradicionalmente o sistema egiacutepcio assentava na separaccedilatildeo estrita entre a monarquia e o exerciacutecio de responsabilidades administrativas Era um facto sem precedentes que um rei fosse sumo sacerdote e chefe militar37 O novo sistema poliacutetico a teocracia de Aacutemon assentava portanto na concentraccedilatildeo de todos os poderes num uacutenico indiviacuteduo que era acima de tudo um chefe militar

4 Piankh e o fim da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo

Ao que tudo indica Herihor teve uma extensa prole No paacutetio colunado do templo de Khonsu em Karnak um extenso cortejo liderado por Nedjemet a sua mulher apresenta 19 filhos e 19 filhas38 Apesar disso no Ano 7 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo (Ano 24 de Ramseacutes XI) um ano apoacutes a assunccedilatildeo da realeza por Herihor seria Piankh a ser eleito sumo sacerdote de Aacutemon

Eacute sintomaacutetico que a sucessatildeo do sumo pontiacutefice natildeo se tenha traduzido na implementaccedilatildeo de uma nova contagem do tempo como era a regra no sistema de sucessatildeo faraoacutenico o que demonstra bem a demarcaccedilatildeo de poderes entre He-rihor e Piankh39 Durante o seu pontificado Piankh autointitula-se o laquogeneral do faraoacuteraquo expressatildeo que se pode aplicar tanto a Herihor como a Ramseacutes XI40 e que de resto se justificava em pleno jaacute que ao longo do seu curto pontificado Piankh parece ter desempenhado sobretudo o papel de chefe militar empenhando-se em campanhas militares dirigidas na Nuacutebia reclamando o cargo de vice-rei de Kuch As suas campanhas militares mantiveram-no no encalccedilo de Panehesi mas o con-trolo dos preciosos recursos de Kuch ndash as minas de ouro e as rotas caravaneiras com a Aacutefrica subsaariana ndash estava perdido41

Adicionalmente Piankh empenhou-se em assegurar a eliminaccedilatildeo dos opo-sitores ao regime Numa carta dirigida a Nedjemet Piankh natildeo hesita em referir despreocupadamente o seu envolvimento no assassinato de dois poliacutecias42 ciente da sua autonomia em relaccedilatildeo ao poder real laquoQuanto ao faraoacute (vida sauacutede e pros-peridade) como poderia ele aqui chegar E a quem eacute o faraoacute ainda superiorraquo43

37 O rei natildeo se limitava a delegar estas funccedilotildees num oficial eleito nas cuacutepulas da hierar-quia estas responsabilidades estavam bem delimitadas Nem estes cargos eram atribuiacutedos aos membros da famiacutelia real A exceccedilatildeo era o cargo de general supremo cargo que soacute se tornou prevalente no periacuteodo ramseacutessida e era exercido pelo priacutencipe herdeiro Os vizires (um para o Sul e outro para o Norte) e o sumo sacerdote de Aacutemon eram recrutados de outras famiacutelias Em Assmann 2002 290

38 Dodson 2012 34-2539 James et Morkot 2010 25540 Goff 1979 5441 Taylor 2000 33142 Dodson 2012 3243 PBerlim 10487 (LRL21)

66

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

Em todo o caso apesar da atitude insolente as relaccedilotildees de Piankh com Ramseacutes XI mantiveram-se com aparente normalidade Uma inscriccedilatildeo datada do Ano 7 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo redigida no pavilhatildeo de Amen-hotep II em Karnak faz referecircncia ao laquorei do Alto e do Baixo Egito Menmaetreacute-setepena-monraquo Ramseacutes XI mencionando um oraacuteculo solicitado por Piankh44

Piankh e Ramseacutes XI parecem ter morrido sensivelmente na mesma altura45 Piankh faleceu no Ano 10 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo (Ano 28 de Ramseacutes XI Ano 5 de Herihor) e Ramseacutes XI no Ano 11 da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo Refletindo os ventos de mudanccedila impostos por Herihor na ne-croacutepole tebana Ramseacutes XI natildeo parece ter sido sepultado no tuacutemulo que havia sido preparado para si no Vale dos Reis (KV 4) As pesquisas desenvolvidas em 1979-1980 por John Romer ao serviccedilo do Museu de Brooklyn apontam para a possibilidade do tuacutemulo ter permanecido inacabado e que o faraoacute natildeo tenha sido de facto aiacute sepultado A verdade eacute que a muacutemia de Ramseacutes XI natildeo foi encontrada em nenhum dos esconderijos tebanos usados para inumar as muacutemias reais do Impeacuterio Novo46

Doravante Pinedjem I filho de Piankh iria assumir o pontificado tebano e a contagem do tempo prosseguiu com o reinado de Herihor o qual poderaacute ainda ter-se prolongado por mais 15 anos47 Durante o pontificado de Pinedjem I eacute notoacuterio que o tuacutemulo de Ramseacutes XI foi usado como oficina para reciclar material funeraacuterio proveniente dos tuacutemulos KV 20 (Hatchepsut) KV 34 (Tutmeacutes III) e presumivelmente KV 38 (Tutmeacutes I)48 refletindo a mudanccedila dramaacutetica da poliacutetica oficial tebana relativamente ao culto dos antepassados reais

No Norte Smendes ascendeu ao trono inaugurando a XXI dinastia Tambeacutem o sumo pontiacutefice tebano Pinedejm I acabaria por assumir aberta-mente prerrogativas reais (no Ano 16 de Herihor)49 e seratildeo na praacutetica os seus descendentes que iratildeo reger os destinos das Duas Terras Psusennes I em Tacircnis e Menkheperreacute em Tebas

44 Goff 1979 52 Inscriccedilatildeo e traduccedilatildeo em Nims 1948 157-6245 Clayton 1994 17646 Clayton 1994 171 Ver tambeacutem Reeves 199047 James et Morkot 2010 25548 A cacircmara funeraacuteria do tuacutemulo de Ramseacutes XI apresentava um poccedilo no lugar onde o

sarcoacutefago havia de ser depositado No fundo do poccedilo foram encontradas peccedilas fragmentadas provenientes de equipamentos funeraacuterios de diversos faraoacutes fragmentos de loiccedila de faianccedila azul com o nome de Hoacuterus de Tutmeacutes I e de Ramseacutes II fragmentos de gesso dourado alguns espoliados do atauacutede de Tutmeacutes III estilhaccedilos de estatuetas funeraacuterias reais provenientes do KV 34 dois deles com o nome de coroaccedilatildeo de Tutmeacutes III fragmentos de um atauacutede feminino real possivelmente pertencente a Hatchepsut e trecircs estatuetas funeraacuterias de Ramseacutes IV (Wilkinson 1996 173)

49 Pinedjem I apresenta o tiacutetulo de rei no Templo de Khonsu bem como na inscriccedilatildeo do Ano 8 do seu reinado e na inscriccedilatildeo do Ano 16 (de Herihor) sendo entatildeo Masaharta sumo pontiacutefice (Goff 1979 56)

67

Rogeacuterio Sousa

Com Smendes I (1069-1043) em Tacircnis e Pinedjem I (1070-1032) em Tebas as referecircncias agrave laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo terminam Chegara ao fim a Uhem--mesut que durara apenas doze anos (1080-1069) 50 ao longo dos quais uma transiccedilatildeo eficaz para uma nova configuraccedilatildeo poliacutetica foi plenamente assegurada Natildeo se conhece ainda qualquer vestiacutegio acerca do local de enterramento do faraoacute Herihor nem tatildeo-pouco de Ramseacutes XI os grandes obreiros desta transformaccedilatildeo poliacutetica mas eacute muito possiacutevel que ambos tenham sido sepultados no mesmo tuacutemulo coletivo ainda por localizar

5 A Ramificaccedilatildeo do poder

Embora em segundo plano na trama historiograacutefica da laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo o papel desempenhado por Ramseacutes XI parece ter sido decisivo numa reforma que iria transformar o exerciacutecio do poder ao longo de todo o Ter-ceiro Periacuteodo Intermediaacuterio Embora silencioso eacute o seu vulto que se adivinha decisivo nos bastidores da cena poliacutetica para a afirmaccedilatildeo dos chefes militares liacutebios no contexto tebano e para a subsequente redefiniccedilatildeo do poder poliacutetico no Egito Em boa verdade o clero amoniano foi decepado da sua cuacutepula - os sumo sacerdotes de Aacutemon ndash e foi subordinado ao domiacutenio de chefes militares que embora egipcianizados natildeo conseguiam ou natildeo queriam disfarccedilar a sua origem liacutebia

A alianccedila entre o faraoacute e os chefes militares de origem liacutebia coloca grandemente em causa a imagem frequentemente divulgada de Ramseacutes XI como um monarca fraco Os dados satildeo longe de serem conclusivos mas eacute uma forte possibilidade a ter em conta o envolvimento direto do faraoacute nos acontecimentos que levaram agrave deposiccedilatildeo de Amen-hotep e agrave subsequente expulsatildeo de Panehesi para a Nuacutebia Num soacute golpe os dois homens fortes do momento foram afastados Estes factos desencadearam uma forte tensatildeo em Tebas e levariam agrave implementaccedilatildeo da laquoRepeticcedilatildeo dos Nascimentoraquo que mais natildeo foi do que um haacutebil e eficaz sistema para implantar na mais elevada hier-arquia tebana a casta militar laquoliacutebiaraquo que manifestou sempre uma fidelidade inquestionaacutevel ao faraoacute

No iniacutecio da XXI dinastia o Egito era constituiacutedo por dois estados que aplicavam entre si os princiacutepios do relacionamento diplomaacutetico fomentando estreitos laccedilos familiares Os sumo sacerdotes de Aacutemon detinham autoridade sobre todo o Alto Egito desde Uauat (regiatildeo norte da Nuacutebia) ateacute El-Hiba (a sul do Faium) 51 A jurisdiccedilatildeo praacutetica dos faraoacutes que reinavam em Tacircnis (Djanet em egiacutepcio) abrangia o Delta e a regiatildeo do Faium A fronteira formal entre os dois estados foi delimitada em El-Hiba a sul do braccedilo do Nilo que desagua no Faium

50 Arauacutejo 1999 13051 Taylor 2000 331

68

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

Sinal que esta fronteira natildeo era apenas simboacutelica eacute a construccedilatildeo de fortalezas nesta aacuterea52

Tacircnis a nova capital do Delta era a sede espiritual da nova linhagem real inteiramente construiacuteda com materiais reutilizados da antiga capital ramseacutessida Pi-Ramseacutes A sacralidade do seu estatuto foi robustecida com a sua eleiccedilatildeo como necroacutepole real Tebas no sul era a sede inquestionaacutevel da nova teocracia de Aacutemon o qual era o verdadeiro rei do Egito Neste siste-ma poliacutetico as decisotildees eram formalizadas atraveacutes de consulta oracular por ocasiatildeo do Festival da Divina Audiecircncia sediada em Karnak53 A Viagem de Uenamon documenta cruamente ateacute que ponto o novo sistema implementado em Tebas com ecircxito se desfasara da realidade poliacutetica internacional Quando o poderoso deus tebano encomendou uma nova barca sagrada Herihor confiou a Uenamon a importante missatildeo de adquirir madeira de cedro em Biblos mas aparentemente natildeo achou relevante incluir na bagagem do fiel emissaacuterio a prata necessaacuteria ao pagamento da preciosa madeira Diante do Priacutencipe de Biblos Uenamon natildeo pocircde senatildeo avanccedilar como retribuiccedilatildeo a simples mas generosa promessa de muitos e felizes anos de vida concedidos pelo poderoso Aacutemon ao Senhor de Biblos Este no entanto viu-se na obrigaccedilatildeo de lembrar a Uenamon como os seus antepassados haviam negociado trocando a madeira pela prata A situaccedilatildeo acabou por ser desbloqueada por Smendes que assegurou o paga-mento exigido pela madeira54 A situaccedilatildeo ilustra soberbamente o desfasamento atingido pelo sistema poliacutetico tebano o qual se baseava num isolamento cultu-ral e civilizacional sem precedentes

Apesar de entidades poliacuteticas distintas os dois reinos eram no entanto lideradas manifestamente pela mesma famiacutelia55

Com a bipolarizaccedilatildeo do Egito em dois reinos a XXI dinastia eacute em grande medida um preluacutedio para a organizaccedilatildeo poliacutetica do chamado laquoperiacuteodo liacutebioraquo (XXII-XIV dinastias) o qual na praacutetica eacute iniciado com Herihor O monopoacute-lio do poder que sempre havia caracterizado o Egito deu lugar a um sistema de alianccedilas no qual os vaacuterios pequenos estados se protegiam uns dos outros por forccedilas militares proacuteprias56 O monopoacutelio dos impostos foi substituiacutedo por tributos A laquofeudalizaccedilatildeoraquo da burocracia egiacutepcia foi uma consequecircncia da ascen-satildeo dos liacutebios agraves posiccedilotildees de topo da sociedade egiacutepcia57 O Egito natildeo escapou portanto aos efeitos que afetaram a queda dos impeacuterios do Bronze58

52 Taylor 2000 33353 Taylor 2000 33254 Assmann 2002 29455 Goff 1979 7056 Taylor 2000 338-4657 Assmann 2002 29658 Assmann 2002 296

69

Rogeacuterio Sousa

Este processo contudo natildeo foi visto como uma sujeiccedilatildeo a um poder estrangeiro algo que soacute seraacute verdadeiramente sentido sob a dominaccedilatildeo assiacuteria e persa Nem tatildeo pouco a desintegraccedilatildeo poliacutetica foi sentida como um tempo de caos como ateacute aiacute sempre acontecera e a fragmentaccedilatildeo do paiacutes natildeo originou qualquer elaboraccedilatildeo sobre a inversatildeo da ordem coacutesmica

A laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo fundou uma nova estrutura poliacutetica muito diferente da que havia caracterizado os impeacuterios do Bronze Eacute neste curto periacuteodo temporal e aparentemente sem as convulsotildees sociais e militares que caracterizaram esta transiccedilatildeo noutros quadrantes que se reorganizou o exerciacutecio do poder e se reformou o quadro teoloacutegico que o legitimava garantindo assim a reactualizaccedilatildeo do complexo sistema faraoacutenico no contexto das civilizaccedilotildees da Idade do Ferro

A laquoRepeticcedilatildeo do Nascimentoraquo consistiu portanto num periacuteodo de transiccedilatildeo em que com uma surpreendente agilidade e rapidez se procedeu agrave reforma das milenares estruturas poliacuteticas do Egito e se criaram as fundaccedilotildees que haveriam de garantir a manutenccedilatildeo do Egito no mapa poliacutetico e civilizacional do Mediterracircneo por mais de um mileacutenio

70

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

Bibliografia

Assmann J 2002 The Mind of Egypt History and meaning in the time of the Pharaohs Cambridge MA London Harvard University Press

Arauacutejo L 1999 O clero do deus Aacutemon no Antigo Egipto Lisboa Ediccedilotildees CosmosBarguet P 1962 Le Temple d Aacutemon-Recirc agrave Karnak Essai dacuteExeacutegegravese Le Caire

Institut Franccedilais drsquoArchaeologie OrientaleBickerstaffe D 2009 Refugees for Eternity The Royal Mummies of Thebes Vol

4 London Canopus PressBierbrier M 1975 The late New Kingdom in Egypt (c 1300-664 BC) A genealogical

and chronological investigation Warminster Aris amp PhilipsČernyacute J 1965 ldquoEgypt from the dead of Ramesses III to the end of the 21st

Dynastyrdquo In The Cambridge Ancient History II (The Middle East and the Aegean Region c 1300-1000 BC) ed I E S Edwards C J Gadd N G L Hammond e E Sollberger 606-57 Cambridge Cambridge University Press

mdashmdashmdash 1946 ldquoStudies in the chronology of the twenty-first dynastyrdquo The Journal of Egyptian Archaeology 3224-30

mdashmdashmdash 1927 ldquoA note on the acuteRepetition of births rdquo The Journal of Egyptian Archaeology 15194-98

Cooney K 2011 ldquoChanging burial practices at the end of the New Kingdom Defensive adaptations in tomb commissions coffin commissions coffin decoration and mummificationrdquo Journal of the American Research Center in Egypt 473-44

Clayton P 1994 Chronicle of the Pharaohs The reign-by-reign record of the rulers and Dynasties of Ancient Egypt London Thames amp Hudson

Dodson A 2012 Afterglow of Empire Egypt from the fall of the New Kingdom to the Saite Renaissance Cairo New York The American University Press

Elias J 1993 ldquoCoffin inscription in Egypt after the New Kingdom A Study of Text Production and Use in Elite Mortuary Preparationrdquo Dissertaccedilatildeo de Doutoramento apresentada ao Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago

Epigraphic Survey 1979-1981 Scenes and Inscriptions in the court and the first Hypostyle hall The Temple of Khonsu 2 vols Chicago Oriental Institute Publications

Gardiner A 1961 Egypt of the Pharaohs An Introduction London Oxford New York Oxford University Press

Goedicke H 1975 The Report of Wenamun Baltimore John Hopkins Near Eastern Studies

71

Rogeacuterio Sousa

Goelet O 1996 ldquoA new ldquorobberyrdquo papyrus Rochester Mag 513461rdquo The Journal of Egyptian Archaeology 82107-27

Goff B 1979 Symbols of Ancient Egypt in the Late Period Twenty-first Dynasty The Hague Paris New York Mouton Publishers

James P e R Morkot 2010 ldquoHerihor s kingship and the High Priest of Amun Piankhrdquo Journal of Egyptian History 3 (2)231-60

Kitchen K 1986 The Third Intermediate Period in Egypt Warminster Aris amp Phillips

mdashmdashmdash 1982-1983 ldquoFurther thoughts on Egyptian chronology in the Third Intermediate Periodrdquo Revue drsquoEgyptologie 3459-69

mdashmdashmdash 1965 ldquoOn the chronology and history of the New Kingdomrdquo Chronique drsquoEgypte 40310-22

Lefebvre G 1929 Histoire des Grands Precirctres dacute Aacutemon de Karnak jusqursquo a la XXI dynastie Paris Paul Geuthner

Nims C 1948 ldquoAn Oracle dated in the acuteRepetition of Births rdquo Journal of Near Eastern Studies 7157-62

Niwinski A 1979 ldquoProblems in the Cronology and genealogy of the XXI dynasty New proposals for their interpretationrdquo The Journal of the American Research Center in Egypt 1649-68

Peet E 1930 The Great Tomb Robberies of the Twentieth Egyptian Dynasty being a critical study with translations and commentaries of the papyri in which these are recorded Oxford Clarendon Press

mdashmdashmdash 1928 ldquoThe chronological problems of the Twentieth Dynastyrdquo The Journal of Egyptian Archaeology 1452-72

Polz D 2001 ldquoThebesrdquo In Oxford Encyclopaedia of Ancient Egypt Vol 3 ed D Redford 384-87 Cairo The American University in Cairo Press

Reeves N 1990 The Valley of the Kings The decline of a royal necropolis London New York Kegan Paul International

Taylor J 2000 ldquoThe Third Intermediate Periodrdquo In The Oxford History of Ancient Egpyt ed I Shaw 330-68 Oxford Oxford University Press

mdashmdashmdash 1998 ldquoNodjmet Payankh and Herihor The end of the New Kingdom reconsideredrdquo In Proceedings of the Seventh International Congress of Egyptologists ed C Eyre 1144-55 Leuvein Peeters

Trigger B B Kemp D OacuteConnor e A Lloyd 1983 Ancient Egypt A social history Cambridge Cambridge University Press

Wainwright G A 1962 ldquoThe Meshweshrdquo The Journal of Egyptian Archaeology 4889-99

72

Comeccedilar de novo a laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio

Fig 1 ndash Herihor na qualidade de sumo pontiacutefice oficia diante de Mut (esquerda) e Ramseacutes XI diante de Khonsu (direita) Sala hipostila do Templo de Khonsu em Karnak

Fig 2 ndash Entronizaccedilatildeo do faraoacute Herihor Paacutetio do Templo de Khonsu em Karnak

73

Rogeacuterio Sousa

Fig 3 ndash Cortejo liderado por Nedjemet (em cima agrave direita) dos filhos e filhas de Herihor Paacutetio do Templo de Khonsu em Karnak

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

75

Maria de Faacutetima Rosa

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina1

(Hammu-rabi and the beginning of his hegemonic ascent political order and divine legitimation)

Maria de Faacutetima Rosa(frosafcshunlpt ORCID 0000-0003-2302-7751)

Universidade Nova de Lisboa CHAM Universidade dos Accedilores

Resumo - Este estudo pretende analisar a ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammu-rabi em dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Estes dois episoacutedios a guerra contra o Elam e o ataque ao reino de Larsa constituem o ponto de viragem do reinado de Hammu-rabi e marcam o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia

Palavras-chave Babiloacutenia Hammu-rabi Larsa Elam Hegemonia

Abstract ndash This brief study intends to analyze the ideology underlying the social and military policies carried out by Hammu-rabi at two crucial moments in the history of Babylon These two episodes the war against Elam and the attack against the kingdom of Larsa constitute a turning point in the reign of Hammu-rabi and highlight the beginning of his hegemonic ascent

Keywords Babilonia Hammu-rabi Larsa Elam Hegemony

Este breve estudo pretende analisar a ideologia subjacente agraves poliacuteticas so-ciais e militares levadas a cabo por Hammu-rabi em dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Estes dois episoacutedios a guerra contra o Elam e o ataque ao reino de Larsa constituem o ponto de viragem do reinado de Hammu-rabi e marcam o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia

Alguns autores consideram que no seu apogeu o territoacuterio governado por Hammu-rabi constituiacutea um verdadeiro laquoimpeacuterioraquo2 O periacuteodo inaugurado pelo monarca em cerca de 1763 aC3 seria marcado pela preponderacircncia da Babiloacute-nia e viria a terminar apenas em 1595 aC com a tomada da cidade pelos hititas

1 Abreviaturas usadas AbB ndash Altbabylonische Briefe ARM ndash Archives Royales de Mari CH ndash laquoCoacutedigoraquo de Hammu-rabi LAPO ndash Litteacuteratures anciennes du Proche-Orient RA ndash Revue drsquoAssyriologie et drsquoArcheacuteologie Orientale RIME ndash The Royal Inscriptions of Mesopotamia Early Periods

2 Veja-se Charpin 2003 105-6 O autor considera que segundo os criteacuterios que geralmente definem um impeacuterio isto eacute a diversidade etnolinguiacutestica a extensatildeo territorial e o exerciacutecio de um poder forte e centralizado eacute possiacutevel designar a Babiloacutenia do final do reinado de Hammu-rabi como impeacuterio

3 Data da anexaccedilatildeo de Larsa

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_4

76

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

1 Os primeiros anos de reinado

Hammu-rabi pertencia a uma das vaacuterias dinastias amorritas que se haviam instalado na bacia mesopotacircmica Quando o soberano subiu ao poder em 1792 aC a Babiloacutenia tinha pouco mais de um seacuteculo e cobria uma extensatildeo territo-rial pouco significativa comparativamente agraves grandes potecircncias da altura4

As fontes de que dispomos para estudar o iniacutecio do reinado de Hammu-rabi satildeo muito escassas5 A julgar pela designaccedilatildeo atribuiacuteda aos primeiros anos do seu governo Hammu-rabi teria feito algumas incursotildees em territoacuterios vizinhos De entre estas accedilotildees militares destacam-se a tomada de Isin e Uruk (no 7ordm ano do reinado) e a conquista do Malgiucircm (no 10ordm ano do reinado) Contudo o facto de vermos estes territoacuterios retomarem a sua anterior suserania6 ou reconquistarem a sua independecircncia7 indica-nos que constituiacuteram accedilotildees pontuais sem grandes efeitos praacuteticos e pouco vocacionadas para uma verdadeira ambiccedilatildeo expansionista

A conjuntura poliacutetica de entatildeo marcada ateacute 1775 aC pelo domiacutenio de Samsicirc-Addu soberano do reino da Alta Mesopotacircmia e a posiccedilatildeo geograacutefica da Babiloacutenia localizada entre as potecircncias de Larsa e de Ešnunna teratildeo constituiacutedo entraves a uma possiacutevel expansatildeo Hammu-rabi teraacute por conseguinte con-centrado os seus esforccedilos no desenvolvimento interno promovendo a coesatildeo criando infraestruturas e sobretudo consolidando a sua relaccedilatildeo com o mundo divino Na designaccedilatildeo atribuiacuteda aos anos do seu reinado satildeo vaacuterias as referecircn-cias agrave construccedilatildeo de templos e agraves doaccedilotildees de tronos e de estaacutetuas aos deuses

2 Os anos das grandes convulsotildees

A morte de Samsicirc-Addu em 1775 aC inicia um periacuteodo de relativo equiliacute-brio entre as vaacuterias potecircncias do mundo siro-mesopotacircmico Apoacutes alguns anos

4 Cf Ibid 445 De entre estas destacam-se algumas inscriccedilotildees reais e documentos de arquivos privados

Para aleacutem destes textos a designaccedilatildeo dos anos do reinado de Hammu-rabi eacute um elemento importante que nos permite conhecer os principais acontecimentos poliacuteticos militares ou reli-giosos A partir de 1775 aC as fontes que testemunham com maior rigor as poliacuteticas diplomaacute-ticas de Hammu-rabi provecircm do palaacutecio real de Zimricirc-Licircm Os Arquivos Reais de Mari (ARM) abrangem o periacuteodo em que se desenrolam as principais guerras na bacia da Mesopotacircmia e terminam no ano de 1762 aC precisamente quando a cidade eacute tomada por Hammu-rabi No que respeita agrave administraccedilatildeo interna destaca-se a correspondecircncia trocada entre Hammu-rabi e os seus altos funcionaacuterios Šamaš-haṣir e Sicircn-iddinam Esta documentaccedilatildeo retrata o periacuteodo consequente agrave anexaccedilatildeo do reino de Larsa e as medidas tomadas para proceder agrave sua integraccedilatildeo no territoacuterio babiloacutenico

6 As cidades de Isin e de Uruk estavam no iniacutecio na posse de Larsa O soberano Ricircm-Sicircn teria reconquistado as possessotildees pouco tempo apoacutes a tomada de Hammu-rabi

7 O Malgiucircm dominava um sector importante do rio Tigre e controlava o fornecimento de aacutegua a Larsa Tal como se passou relativamente agraves possessotildees de Isin e de Uruk tambeacutem o reino do Malgiucircm se teria libertado pouco tempo depois do jugo de Hammu-rabi

77

Maria de Faacutetima Rosa

a situaccedilatildeo comeccedila a tornar-se cada vez mais propiacutecia a possiacuteveis ambiccedilotildees ex-pansionistas No entanto caso Hammu-rabi alimentasse algumas esperanccedilas de expansatildeo territorial as mesmas ver-se-iam comprometidas apoacutes a entrada em cena de um poder poliacutetico que ateacute entatildeo se mantivera agrave margem dos problemas da Mesopotacircmia o Elam De facto quando em 1765 aC8 o sukkal9 do Elam10 decide atacar o reino de Ešnunna Hammu-rabi coloca-se a seu lado envian-do os seus contingentes para ajudar na conquista da cidade O que o soberano certamente natildeo esperava era que apoacutes a vitoacuteria o sukkal se instalasse no trono dessa cidade Ora a razatildeo principal pela qual Hammu-rabi o auxiliara devera--se ao facto de pretender retomar as antigas cidades de Mankisum e Upi Estas possessotildees teriam pertencido agrave Babiloacutenia no reinado do seu avocirc Apil-Sicircn antes de caiacuterem nas matildeos do rei de Ešnunna

A presenccedila do sukkal em territoacuterio mesopotacircmico impunha algumas restriccedilotildees agrave accedilatildeo poliacutetica de Hammu-rabi Eacute que Ṣiwa-palar-huhpak era natildeo soacute rei do Elam como tambeacutem suserano de vaacuterios reinos siro-mesopotacircmicos entre os quais a Babiloacutenia As tensotildees entre ambos tecircm iniacutecio quando o sukkal fazendo valer a sua autoridade endereccedila a Hammu-rabi uma carta exigindo a libertaccedilatildeo das cidades recentemente reconquistadas O tom autoritaacuterio com que Ṣiwa-palar-huhpak se lhe dirige denota o esfriar das relaccedilotildees entre ambos laquoAs cidades que deteacutens natildeo satildeo minhas Liberta-as e submete-te ao meu jugo Senatildeo pilharei o teu paiacutesraquo11

A recusa de Hammu-rabi precipita a guerra que rapidamente se espalha por todo o mundo siro-mesopotacircmico Eacute precisamente este conflito que atinge uma dimensatildeo laquomundialraquo que vai catapultar Hammu-rabi para um lugar de primeiro plano na cena poliacutetica internacional e marcar o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia

Esta ascensatildeo eacute bastante ceacutelere Podemos dizer que no espaccedilo de escassos quatro anos o rei da Babiloacutenia se consegue afirmar como o soberano mais po-deroso da Mesopotacircmia Um aspeto que nos possibilita compreender o impacto das suas conquistas durante este periacuteodo eacute precisamente a titulatura que ele vai adotando Ora aquando da derrota do Elam no 30ordm ano do seu reinado

8 A data da queda de Ešnunna natildeo eacute consensual Em Charpin e Ziegler 2003 248 Domi-nique Charpin considera que a derrota do reino de Ibacircl-picirc-El II data de 1765 aC Todavia a intensidade do intercacircmbio de presentes entre o sukkal e alguns monarcas siacuterios nos dois anos precedentes poderaacute ser testemunho de que a mesma teraacute ocorrido numa data anterior De facto este intercacircmbio poderaacute ter sucedido a tomada da cidade e o reforccedilo das relaccedilotildees entre os aliados

9 sukkal ou sukkalmah eacute o tiacutetulo do governador do Elam10 O reino do Elam localizava-se na parte ocidental do atual Iratildeo nos montes Zagros locali-

zados a este da Mesopotacircmia O forte poder do Elam representava uma ameaccedila constante para a Mesopotacircmia

11 A3618 l 21rsquo-24rsquo (texto editado em Charpin 1999 122 n 37)

78

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

Hammu-rabi era simplesmente conhecido como o laquorei da Babiloacuteniaraquo A este tiacutetulo ele vai adicionando sucessivamente

- O tiacutetulo de laquorei do paiacutes de Sumer e Akkadraquo apoacutes a anexaccedilatildeo do reino de Larsa que tem lugar no 31ordf ano do reinado

- O tiacutetulo de laquorei de todo o paiacutes amorritaraquo apoacutes a derrota do reino de Mari12 que tem lugar no 32ordf ano do seu reinado

- O tiacutetulo de laquorei dos quatro cantos do mundoraquo (isto eacute do laquouniversoraquo) que o soberano adota a dada altura do seu reinado e que eacute aquele que melhor expressa as suas pretensotildees hegemoacutenicas e laquouniversaisraquo13

Resta-nos referir que entre a anexaccedilatildeo do reino de Larsa e a destruiccedilatildeo de Mari14 Hammu-rabi se apodera da cidade de Ešnunna15 anulando assim os dois poderes que teriam no iniacutecio constituiacutedo entraves agrave sua expansatildeo Larsa e Ešnunna

21 A derrota do ElamO ataque do sukkal do Elam natildeo se teria limitado agrave Babiloacutenia Outros esta-

dos foram afetados pela ofensiva elamita nomeadamente os pequenos reinos da regiatildeo da Jazira16 Estes paiacuteses estavam unidos por laccedilos de alianccedila aos poderosos reinos siro-mesopotacircmicos O soberano de Mari por exemplo teria desde cedo imposto uma poderosa rede de aliados (de vassalos) na regiatildeo do delta do rio Habur Como suserano competia-lhe prestar apoio militar aos seus vassalos O proacuteprio rei de Mari Zimricirc-Licircm seria por sua vez um laquoservoraquo do rei do Yamhad um importante centro de poder a oeste da Siacuteria Ora esta complexa teia de rela-ccedilotildees diplomaacuteticas obrigava a que em caso de guerra todos aqueles que tinham contraiacutedo uma alianccedila enviassem os seus contingentes militares para prestar auxiacutelio aos seus aliados Assim aquando do iniacutecio do conflito tanto Hammu--rabi como os monarcas da regiatildeo da Jazira recorreram agraves suas vaacuterias alianccedilas na esperanccedila de obterem apoio militar Compreendemos entatildeo o porquecirc desta guerra se ter espalhado tatildeo depressa por todo o Proacuteximo Oriente

12 O reino de Mari que controlava todo o sector do meacutedio Eufrates caracterizava-se pelo seu forte dimorfismo social Um dos aspetos que marca o reinado de Zimricirc-Licircm eacute a luta constante pela coesatildeo social e pela pacificaccedilatildeo interna As grandes tribos amorritas de entatildeo os bensima-litas e os benjaminitas teriam exercido um papel determinante no desenvolvimento interno e na poliacutetica externa do reino Apoacutes a queda de Larsa e de Ešnunna Mari passou a constituir o uacuteltimo grande reino amorrita que faltava a Hammu-rabi conquistar para se poder declarar rei do paiacutes de Amurru

13 Veja-se RIME 343 l 1-5 e 348 l 414 A conquista ocorre em 1762 aC no 31ordm ano do reinado de Hammu-rabi15 Ešnunna reconquista a sua independecircncia apoacutes a derrota do Elam pelas forccedilas aliadas

de Hammu-rabi A populaccedilatildeo do reino elege entatildeo como rei um general chamado Ṣillicirc-Sicircn As relaccedilotildees entre o novo soberano de Ešnunna e Hammu-rabi satildeo de iniacutecio amigaacuteveis No entanto divergecircncias poliacuteticas teratildeo levado a um distanciamento

16 Regiatildeo localizada no Norte entre os rios Eufrates e Tigre

79

Maria de Faacutetima Rosa

O Elam viria a ser derrotado cerca de um ano apoacutes os primeiros confrontos O facto de a batalha mais importante se ter desenrolado em territoacuterio babiloacuteni-co mais precisamente na cidade de Hicircricirctum contribuiu para que Hammu-rabi saiacutesse desta guerra laquopan-amorritaraquo como o grande vencedor Em grande parte podemos dizer que os esforccedilos de uniatildeo das tropas e de apelo agrave accedilatildeo partiram do proacuteprio Hammu-rabi Eacute ele quem incita o seu homoacutelogo Zimricirc-Licircm a escrever--lhe constantemente de modo a possibilitar uma accedilatildeo conjunta que pudesse travar a incursatildeo do Elam17 Eacute ele tambeacutem quem exerce pressatildeo junto dos seus aliados18 para que os seus contingentes militares se reuacutenam e ponham fim agrave guerra Natildeo obstante como lugar-tenente da sua divindade e devoto do mundo divino Hammu-rabi eacute o primeiro a reconhecer que a tatildeo almejada vitoacuteria soacute fora possiacutevel laquocom o poder supremo dos grandes deusesraquo19

De facto neste episoacutedio transparece uma ideologia de guerra muito clara segundo a qual o soberano agia segundo a ordem divina ou seja defendendo o interesse dos deuses Natildeo soacute a vitoacuteria lhes eacute atribuiacuteda como tambeacutem a proacutepria razatildeo pela qual Hammu-rabi se envolvera na guerra Uma vez que se tratara de um ataque o rei babiloacutenico vira-se obrigado a defender o seu territoacuterio Todavia ele soacute o fizera apoacutes Enlil descortinar os desiacutegnios do elamita Com efeito eacute do seguinte modo que se expotildee o motivo da guerra a um grupo de mensageiros elamitas

laquoO vosso senhor (sukkal do Elam) transgrediu o limite do juramento dos seus deuses e tenciona pecar e agir com inimizade Que ele venha e que Enlil veja o laquosimraquo e o laquonatildeoraquo do seu coraccedilatildeo (= as suas intenccedilotildees)raquo20

O que sobressai nesta exposiccedilatildeo eacute precisamente o facto do sukkal do Elam ter sido primeiramente sujeito a um laquoexameraquo por parte de Enlil O deus tecirc-lo-ia posto agrave prova apoacutes a transgressatildeo da vontade divina isto eacute do seu juramento Hammu-rabi era ainda um ator passivo nesta contenda O mesmo soacute teria agido

17 Eacute no Norte (na regiatildeo de influecircncia do rei de Mari) que a ameaccedila do Elam tem mais impacto Zimricirc-Licircm encontrava-se em viagem pelo Oeste quando tiveram iniacutecio os conflitos na Mesopotacircmia Os documentos ARM VI 51 e 52 e ARM XXVIII 7 8 e 9 testemunham esta ausecircncia de Zimricirc-Licircm e atestam a frequecircncia com que Hammu-rabi fazia chegar informaccedilotildees ao seu homoacutelogo porventura sublinhado a urgecircncia do seu regresso

18 Na praacutetica quem reuacutene a maior parte das tropas eacute Zimricirc-Licircm Contudo eacute Hammu-rabi quem o pressiona para a convocaccedilatildeo dos exeacutercitos e quem no fim recebe os louros Agrave Babiloacutenia teriam chegado vaacuterios contingentes mariotas As tropas fornecidas pelo Yamhad e pelo Zalma-qum (tambeacutem por intermeacutedio do monarca mariota) ter-se-iam deslocado para Kurdacirc com a intenccedilatildeo de travarem a ameaccedila do Elam no Norte

19 Veja-se a designaccedilatildeo atribuiacuteda ao 30ordm ano do seu reinado laquoano em que Hammu-rabi o rei o poderoso o amado de Marduk afastou o exeacutercito do Elam com o poder dos grandes deuses (hellip) e consolidou as fundaccedilotildees de Sumer e Akkadraquo

20 ARM XXVI2 370 l 15rsquo-17rsquo

80

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

apoacutes a decisatildeo de Enlil e a aprovaccedilatildeo dos deuses que lhe teriam entatildeo conferido o seu laquopoder supremoraquo Como o documento afirma o sukkal destabilizara a ordem poliacutetica e social da Babiloacutenia e por extensatildeo a proacutepria ordem divina Isto porque o juramento constituiacutea o ato mais importante aquando da conclusatildeo de uma alianccedila Era este passo que selava a uniatildeo entre os dois contraentes ao inscrever a ordem dos respetivos reinos na proacutepria ordem celeste

Questionamo-nos acerca desta referecircncia a Enlil Tratando-se de um deus supremo do panteatildeo sumeacuterio-acaacutedico podemos especular se o apelo a esta divin-dade especiacutefica natildeo estaraacute relacionado com o facto de ele estar muito associado ao exerciacutecio do poder Segundo alguns autores a guerra teraacute despertado senti-mentos de uma espeacutecie de laquonacionalismoraquo mesopotacircmico21 Como referimos o conflito ter-se-ia estendido por todo o mundo siro-mesopotacircmico ou seja pelo mundo amorrita Podemos dizer que pela primeira vez na Mesopotacircmia en-contramos indiacutecios concretos de uma noccedilatildeo do laquooutroraquo do estrangeiro22 E este foi certamente um dos aspetos que contribuiu para o prestiacutegio de Hammu-rabi apoacutes a vitoacuteria De facto natildeo eacute apenas a Babiloacutenia que sai vencedora da guerra mas todo o mundo amorrita Hammu-rabi emerge assim como o benfeitor dos amorritas como aquele que triunfara sobre a ameaccedila da instauraccedilatildeo do caos no Proacuteximo Oriente

A importacircncia do deus Enlil pode ser testemunhada no proacutelogo do famo-so laquocoacutedigoraquo de Hammu-rabi A inscriccedilatildeo aiacute gravada inicia com a seguinte afir-maccedilatildeo laquoQuando An e Enlil atribuiacuteram a Marduk o poder de Enlil (ellilūtum) sobre toda a populaccedilatildeoraquo23 Ora para que o deus tutelar da Babiloacutenia Marduk pudesse governar a populaccedilatildeo do paiacutes ter-lhe-ia sido outorgado pelos grandes deuses o ellilūtum Este poder divino no fundo o poder supremo o poder de exercer a realeza24 eacute bastante sintomaacutetico do lugar primordial que Enlil ocupava no panteatildeo mesopotacircmico Como deus supremo Enlil seria capaz de corresponder ao sentimento de identidade ao poder e agrave uniatildeo que Hammu--rabi esperava porventura obter dos deuses e dos mesopotacircmios neste periacuteodo inicial das hostilidades

Por outro lado tendo Enlil em seu poder as tabuinhas do destino25 pode-mos tambeacutem considerar que esta referecircncia estaria associada agrave sua capacidade

21 Sobre este aspeto veja-se o estudo Charpin et Durand 199122 Uma carta dos Arquivos Reais de Mari testemunha esta noccedilatildeo Um chefe noacutemada dirige-se

a Zimricirc-Licircm afirmando que se porventura os elamitas chegassem agraves margens do Eufrates facil-mente se distinguiriam dos amoritas tal como as formigas brancas se distinguiam das negras (A3080 texto editado em Durand 1990 104-6) Ver tambeacutem LAPO 17 733

23 CH Proacutelogo I l 3-8 e 11-1324 Segundo Sanmartiacuten et Loacutepez 1993 278 a ellilūtum era a laquodignidade o poder e a posiccedilatildeo

de Enlilraquo sinoacutenimo de laquodivindade supremaraquo25 Na mitologia mesopotacircmica Enlil era o detentor das tabuinhas do destino onde estavam

inscritos os destinos (šīmtum) de todos

81

Maria de Faacutetima Rosa

de antever certos acontecimentos futuros de conhecer as intenccedilotildees e os destinos de todos Eacute pois a Enlil que se apela para que veja o laquosimraquo e o laquonatildeoraquo isto eacute os sentimentos verdadeiros ou falsos do sukkal

A intervenccedilatildeo dos deuses natildeo se limitava ao simples ato de legitimar a guerra Sem o apoio da divindade muito dificilmente o rei se sagraria vencedor Nesta ideologia o deus natildeo eacute um mero espectador do conflito Pelo contraacuterio ele participa nele ativamente e eacute precisamente a sua presenccedila que dita a derrota do inimigo Assim quando Hammu-rabi consegue afastar os exeacutercitos elamitas da Mesopotacircmia e libertar a Babiloacutenia da sua pesada ameaccedila eacute no mundo divino que se encontra a explicaccedilatildeo para o sucedido Como se recorda num documento mais tardio

laquohellip ele (o elamita) planeou devorar o paiacutes da Babiloacutenia Se o deus do meu senhor26 natildeo tivesse aparecido ele teria agido durante longo tempo como se a semente do paiacutes da Babiloacutenia natildeo tivesse sido criadaraquo27

O interlocutor pretende sublinhar a mudanccedila observada na atitude do rei de Elam apoacutes a guerra Esta mudanccedila devera-se agrave apariccedilatildeo do deus que impedira o elamita de conquistar a Babiloacutenia Eacute a intervenccedilatildeo da divindade que altera as intenccedilotildees do sukkal fazendo com que este aceite a semente (a vida) do paiacutes de Hammu-rabi

A rejeiccedilatildeo da existecircncia do paiacutes da Babiloacutenia e a tentativa da sua anula-ccedilatildeo acusaccedilotildees de que Ṣiwa-palar-huhpak era alvo satildeo muito significativas do atentado que o mesmo cometia contra Hammu-rabi e contra a esfera celeste Isto porque paralelamente agrave outorga do ellilūtum a Marduk os deuses laquopronun-ciaram o nome sublime da Babiloacutenia e atribuiacuteram-lhe preponderacircncia sobre os quatro cantos do mundoraquo28

Na Mesopotacircmia laquopronunciar o nomeraquo equivalia a fixar o destino signi-ficava atribuir uma funccedilatildeo a algueacutem ou definir a natureza de uma determinada coisa A bem-aventuranccedila da Babiloacutenia teria entatildeo sido decretada pelos deuses O destino de Marduk a quem havia sido dado o poder unia-se assim ao destino da Babiloacutenia cidade que os deuses haviam eleito Negar a existecircncia do paiacutes da Babiloacutenia significava portanto negar a palavra pronunciada pelos deuses A puniccedilatildeo do sukkal ultrapassava assim o domiacutenio da justiccedila terrena vendo-se a esfera celeste envolvida na aplicaccedilatildeo do castigo29 Em suma a hegemonia que

26 O laquomeu senhorraquo referido no texto natildeo eacute Hammu-rabi mas sim um dos seus aliados que teraacute participado na guerra ndash Zimricirc-Licircm Todavia o que aqui importa sublinhar eacute a importacircncia da participaccedilatildeo dos deuses nos destinos humanos

27 A1931 l 8-11 (texto editado em Charpin 1999 126 n 53)28 CH Proacutelogo I l 16-1929 No documento ARM XXVIII 1 a desavenccedila entre as tropas elamitas e ešnunnitas suas

aliadas que teria em grande parte ditado a ruiacutena do Elam eacute descrita como partindo de uma

82

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

Hammu-rabi viria a alcanccedilar para a Babiloacutenia natildeo era senatildeo o cumprimento da vontade divina prevista e inscrita na ordem coacutesmica

O favoritismo que os deuses haviam concedido agrave Babiloacutenia explicava-se tam-beacutem pelo facto do seu soberano ser laquoo piedoso o devoto suplicante dos grandes deusesraquo30 Trata-se de uma relaccedilatildeo de complementaridade Porque Hammu-rabi era reverente e temente aos deuses porque ele cumpria os rituais as divindades outorgavam-lhe poderes engrandeciam a sua realeza e elevavam-no perante os demais Eacute o proacuteprio Hammu-rabi quem o indica laquoEu sou Hammu-rabi rei da justiccedila a quem Šamaš deu a verdade (kīnātum)raquo31

O deus Šamaš divindade solar mesopotacircmica estava muito associado aos conceitos de verdade de justiccedila e de equidade Era uma divindade na qual se projetavam as noccedilotildees de ordem e os ideais que possibilitavam a manutenccedilatildeo da harmonia coacutesmica O principal fundamento da ordem era precisamente o exer-ciacutecio da justiccedila Como tal Šamaš estava tambeacutem muito associado agrave adivinhaccedilatildeo e aos oraacuteculos que ditavam as normas a cumprir para alcanccedilar esse equiliacutebrio Por isso natildeo eacute de estranhar que Šamaš fosse um dos deuses mencionados aquando dos juramentos que se realizavam com o intuito de selar os acordos diplomaacuteticos

A ordem internacional assentava no cumprimento de acordos e tratados diplomaacuteticos Durante a guerra contra o Elam Hammu-rabi precisava de ga-rantir que as vaacuterias potecircncias do mundo siro-mesopotacircmico estavam do seu lado e que tinham um objectivo comum a derrota dos elamitas O soberano teria entatildeo procedido a uma seacuterie de negociaccedilotildees diplomaacuteticas com vista agrave conclusatildeo de alianccedilas poliacuteticas Ao seu homoacutelogo mariota Hammu-rabi pro-metera laquoPor ele (Zimricirc-Licircm) eu erguerei a minha matildeo para Šamaš Far-me-aacutes jurar32 diante de Šamašraquo33 A importacircncia deste juramento explica-se como dissemos pelo facto do futuro transgressor se tornar responsaacutevel perante as divindades Como vimos teria sido devido agrave transgressatildeo de um juramento idecircntico que o Elam sofrera o desaire imposto por Hammu-rabi No fundo estes acordos constituiacuteam um meio de impor a ordem e de legitimar o poder de accedilatildeo do rei em caso de traiccedilatildeo

Em suma para que se conservasse a ordem poliacutetica e a ordem coacutesmica Hammu-rabi teria de vencer a guerra contra o Elam Era esta a vontade dos grandes deuses E eacute aqui que tem iniacutecio o seu caminho ateacute agrave hegemonia Na verdade as ambiccedilotildees hegemoacutenicas do monarca babiloacutenico fazem-se sentir

accedilatildeo divina laquoos nossos deuses instalaram a hostilidade entre o Elam e Ešnunna Todos tiveram medo deles mas (agora) o deus ocupa-se delesraquo (l 5rsquo-6rsquo)

30 CH Proacutelogo IV l 64-6631 CH Epiacutelogo XXV R l 95-9832 O juramento eacute realizado na Babiloacutenia na presenccedila dos embaixadores mariotas33 A4626 l8rsquo-10rsquo (texto editado em Charpin 1990b 111)

83

Maria de Faacutetima Rosa

logo apoacutes o final do conflito quando o mesmo expressa a vontade de se instalar no trono de Ešnunna34 vagado apoacutes a retirada dos elamitas No entanto as suas expectativas sairiam goradas uma vez que a populaccedilatildeo do reino escolheria para a sua chefia um general saiacutedo do seio do exeacutercito de seu nome Ṣillicirc-Sicircn

22 A conquista de LarsaDepois do contratempo em Ešnunna Hammu-rabi decide voltar-se para

o sul para o reino de Larsa O ataque ao seu homoacutelogo ocorre no rescaldo da guerra contra o Elam Para Hammu-rabi a urgecircncia desta ofensiva explicava-se devido agrave necessidade de garantir a paz da Babiloacutenia e de impedir que a ordem do reino se diluiacutesse Eacute que segundo o mesmo Ricircm-Sicircn fizera vaacuterias incursotildees no seu paiacutes perturbando a sua estabilidade interna A justificaccedilatildeo da guerra eacute apresentada pelo proacuteprio Hammu-rabi do seguinte modo laquoldquoO homem de Lar-sa desrespeitou o meu paiacutes fazendo pilhagens () Depois de os grandes deuses terem afastado a garra do elamita deste paiacutes eu olhei pelo bem-estar do homem de Larsa (concedendo-lhe) numerosos favores mas ele natildeo me recompensou esses favores Agora eu queixei-me a Šamaš e a Marduk e eles responderam--me continuamente ldquosimrdquo Eu natildeo iniciei este ataque sem (o consentimento d)a divindaderdquoraquo35

Na realidade o ataque a Larsa devera-se natildeo tanto a este motivo mas sim ao facto de Ricircm-Sicircn ter adotado uma postura algo imparcial durante a guerra contra o Elam Hammu-rabi esperava na altura contar com o auxiacutelio militar de Larsa Contudo os exeacutercitos aliados prometidos por Ricircm-Sicircn nunca teriam chegado a territoacuterio babiloacutenico Esta atitude poderaacute ser explicada pelo facto de Ricircm-Sicircn estar unido ao sukkal do Elam atraveacutes de laccedilos dinaacutesticos

De qualquer forma Hammu-rabi natildeo agira sem antes consultar os deuses O ataque surge justificado pelas pilhagens operadas por Ricircm-Sicircn em territoacuterio babiloacutenico A guerra era necessaacuteria para garantir a ordem poliacutetica e a estabilida-de No epiacutelogo do laquocoacutedigoraquo de Hammu-rabi encontramos uma afirmaccedilatildeo que expressa muito bem a ideologia subjacente a estas accedilotildees militares Hammu-rabi afirma laquodevido ao poder que Marduk me concedeu eu aniquilei os inimigos em cima e em baixo acabei com as batalhas e providenciei o bem-estar do paiacutesraquo36 Como vemos o propoacutesito da guerra era aniquilar os inimigos era acabar com os possiacuteveis perturbadores da paz A guerra natildeo era senatildeo um meio de permitir ao rei garantir a ordem interna

34 Veja-se o documento A257 (= LAPO 16 300) l 8-10 Zimricirc-Licircm expressa o seu apoio relativamente agraves pretensotildees de Hammu-rabi laquoSe a populaccedilatildeo de Ešnunna te der o seu consen-timento exerce tu proacuteprio a realeza no paiacutes de Ešnunnaraquo

35 ARM XXVI2 385 l 8rsquo-15rsquo36 CH epiacutelogo XXIV R l 28-34

84

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

Contudo a guerra era tambeacutem uma accedilatildeo que carecia da aprovaccedilatildeo divi-na37 Assim sendo a ofensiva contra Larsa soacute teria ganho forccedila apoacutes Šamaš e Marduk responderem constantemente laquosimraquo agraves perguntas (agraves vaacuterias consultas oraculares) de Hammu-rabi laquoSimraquo o soberano tinha a aprovaccedilatildeo dos deuses laquoSimraquo a guerra era necessaacuteria e justificada Šamaš e Marduk satildeo referidos no documento como os deuses tutelares dos dois paiacuteses em confronto o reino de Larsa e a Babiloacutenia

Para compreendermos melhor o papel que cabia ao soberano na guerra recuperamos novamente a parte inicial do proacutelogo do laquocoacutedigoraquo de Hammu-rabi

laquoQuando An e Enlil atribuiacuteram a Marduk o poder de Enlil sobre toda a populaccedilatildeo () (quando) pronunciaram o nome sublime da Babiloacutenia e lhe atribuiacuteram preponderacircncia sobre os quatro cantos do mundo () Entatildeo () An e Enlil pronunciaram o meu nome para assegurar o bem-estar da populaccedilatildeoraquo38

Assim sendo natildeo soacute o destino de Marduk estava intimamente associado ao destino da Babiloacutenia como ambos eram indissociaacuteveis do proacuteprio destino de Hammu-rabi Se os deuses haviam decretado a supremacia da Babiloacutenia a Hammu-rabi seu soberano estava destinada a hegemonia perante os demais a realeza dos laquoquatro cantos do mundoraquo

Concluindo para ordenar o mundo os grandes deuses An e Enlil teriam nomeado um chefe supremo Marduk A esta medida juntara-se a elevaccedilatildeo da sua morada na terra a Babiloacutenia e a designaccedilatildeo de um lugar-tenente ndash algueacutem que pudesse honrar Marduk e simultaneamente desempenhar o seu papel no mundo terreno A pessoa escolhida para assumir essa funccedilatildeo fora Hammu-rabi A ele competia-lhe zelar pelo bem-estar da populaccedilatildeo defender o territoacuterio de Marduk e assegurar a paz Era seu dever tomar as disposiccedilotildees necessaacuterias de modo a responder convenientemente ao laquosimraquo dado pela divindade

A guerra contra Larsa teraacute durado mais de seis meses39 Apoacutes um prolongado cerco agrave capital a notiacutecia da vitoacuteria chegava finalmente ao soberano laquoHoje o deus

37 A intervenccedilatildeo da divindade na guerra tinha tambeacutem como fim aplacar eventuais receios do soberano A inquietaccedilatildeo do monarca no momento que precede o conflito eacute per-cetiacutevel no texto ARM XXVI2 379 laquoHammu-rabi estaacute receoso porque o inimigo pelo qual Šamaš perguntou eacute numerosoraquo Sublinhamos que Ricircm-Sicircn eacute posto agrave prova precisamente por Šamaš o deus da justiccedila (ou seja o deus pergunta por ele) Ora porque Šamaš decide fazer Ricircm-Sicircn pagar pelas suas desonestidades e pela sua conduta traiccediloeira Hammu-rabi na qualidade de laquofavoritoraquo dos deuses como aquele em quem recaiacutea a tarefa de agradar a Šamaš e a Marduk eacute impelido para o combate Em uacuteltima anaacutelise eacute a vontade divina que o rei cumpre

38 CH proacutelogo I l 3-8 11-13 27 e 45-4939 Como indica Mieroop 1993 63 eacute possiacutevel que o reino se encontrasse enfraquecido laquoIt

is more likely that to the contrary the second half of Rim-Sinrsquos reign was one of weakness allowing Babylon to organize military incursions deep into Larsarsquos territoryraquo

85

Maria de Faacutetima Rosa

do meu senhor marchou agrave frente das tropas do meu senhor A lanccedila do malfeitor e do inimigo foi quebrada A cidade de Larsa foi tomadaraquo40 Hammu-rabi torna-se entatildeo senhor de toda a zona meridional da Mesopotacircmia procedendo agrave integra-ccedilatildeo do antigo reino de Larsa no territoacuterio babiloacutenico Foi este o momento em que se diluiu o equiliacutebrio poliacutetico existente ateacute entatildeo no mundo siro-mesopotacircmico Ao conquistar o Sul e ao declarar-se senhor do paiacutes de Sumer e Akkad41 Hammu--rabi transformou-se no monarca mais poderoso da Mesopotacircmia

A reputaccedilatildeo alcanccedilada por Hammu-rabi eacute percetiacutevel nas diversas movi-mentaccedilotildees que ocorreram apoacutes a vitoacuteria Confrontados com o poder redobrado da Babiloacutenia alguns monarcas decidiram prescindir de antigas alianccedilas para se juntarem a Hammu-rabi42 Outros como Ṣillicirc-Sicircn aproveitaram a oportunidade para concluir acordos de paz pendentes43 Comeccedilou assim a desenhar-se um novo quadro poliacutetico-diplomaacutetico e a estabelecer-se uma conjuntura poliacutetica favoraacutevel agrave ascensatildeo do soberano da Babiloacutenia

3 A consolidaccedilatildeo do reino

Ao mesmo tempo que prossegue o seu percurso poliacutetico e militar conqui-stando Ešnunna destruindo Mari e jaacute no final do reinado tomando Ashur e a zona do Šubartum Hammu-rabi procede agrave gestatildeo e consolidaccedilatildeo do seu ter-ritoacuterio Um aspeto importante neste esforccedilo de consolidaccedilatildeo eacute a integraccedilatildeo do territoacuterio do antigo reino de Larsa na Babiloacutenia

O estabelecimento da ordem poliacutetica no territoacuterio recentemente con-quistado ter-se-ia operado em duas vertentes diferentes Porque Šamaš havia concedido a laquoverdaderaquo a Hammu-rabi competia-lhe exercer a justiccedila sobre a populaccedilatildeo O proacuteprio o afirma

laquo(eu sou) o sol da Babiloacutenia aquele que faz aparecer a luz sobre o paiacutes de Sumer e Akkad o rei que impotildee obediecircncia aos quatro cantos do mundo () Quando Marduk me encarregou de impor a ordem e de ensinar a reti-datildeo ao paiacutes eu coloquei a verdade (kittum) e a justiccedila (mīšarum) na boca do paiacutesraquo44

40 ARM XXVI2 386 l 6rsquo-10rsquo41 O tiacutetulo de laquorei do paiacutes de Sumer e Akkadraquo era de facto utilizado pelo senhor de toda a

regiatildeo sul da Mesopotacircmia Ricircm-Sicircn utilizara-o durante largos anos ateacute agrave sua queda agraves matildeos de Hammu-rabi (veja-se RIME 4 273 e ss)

42 Eacute o caso de Atamrum rei do Andarig Hammu-rabi ter-se-aacute conseguido impor lenta-mente regiatildeo norte afastando dessa zona os seus concorrentes mais diretos Veja-se Charpin et Ziegler 2003 233-34

43 As negociaccedilotildees para a conclusatildeo da paz entre a Babiloacutenia e Ešnunna teriam sido adiadas aquando da guerra contra Larsa Cf Ibid 227-28 e 232

44 CH proacutelogo V l 5-12 e 14-23

86

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

Estes dois termos kittum e mīšarum traduzem genericamente a ideia de laquojusticcedilaraquo Contudo as palavras provecircm de raiacutezes que tecircm sentidos diferentes e como tal exprimem ideias algo distintas

mīšarum proveacutem de uma raiz que tem o sentido de laquo(re)ordenarraquo45 Ora o que Hammu-rabi pretende quando chega ao trono de Larsa eacute precisamente comeccedilar do zero repor a ordem poliacutetica e social Para isso o soberano decreta um eacutedito (eacutedito-mīšarum) cuja finalidade eacute a remissatildeo das diacutevidas econoacutemicas e a libertaccedilatildeo daqueles que haviam caiacutedo na escravidatildeo Num domiacutenio mais ideoloacutegico o eacutedito pretendia estabelecer um novo comeccedilo restaurar e reforccedilar a ordem sociopoliacutetica O propoacutesito da medida era que Hammu-rabi se apresentas-se perante os habitantes de Larsa como um rei justo e benevolente46

Todavia ao contraacuterio do que esta ideia possa levar a crer a imposiccedilatildeo de Hammu-rabi em Larsa natildeo passa por anular as infraestruturas existentes De facto num plano mais ligado ao conceito de kittum de algo que eacute laquopermanenteraquo que eacute laquoestaacutevelraquo47 Hammu-rabi assegura uma certa continuidade poliacutetica Quando chega a Larsa o monarca afirma-se como se de um natural sucessor de Ricircm-Sicircn se tratasse Ao seguir as normas vigentes e possibilitar a manutenccedilatildeo das institui-ccedilotildees existentes Hammu-rabi aproxima-se dos seus cidadatildeos Podemos testemu-nhar este esforccedilo de continuidade num documento enviado por Hammu-rabi ao governador de Larsa laquoInvestiga o caso deles Determina a sentenccedila que lhes deve ser aplicada de acordo com as leis que estatildeo em vigor no Yamutbal48raquo

Os dois conceitos natildeo se anulam pelo contraacuterio eles satildeo complementares E satildeo ideias como estas que Hammu-rabi potildee em praacutetica de modo a anexar Larsa pacificamente e a evitar a eclosatildeo de revoltas A Babiloacutenia passa entatildeo a constituir um territoacuterio contiacutenuo e unificado Esta obra centralizadora explica em grande medida o sucesso de Hammu-rabi que no final do seu governo se torna senhor de um vasto domiacutenio territorial A sua hegemonia estendia-se entatildeo desde o Golfo Peacutersico ateacute agrave zona do Sindjar A supremacia alcanccedilada por Hammu-rabi possibilitar-lhe-ia adotar o tiacutetulo de laquorei dos quatro cantos do mundoraquo

45 Tem um sentido dinacircmico ao contraacuterio de kittum Veja-se Botteacutero 1987 330-3146 Era uma medida comum no mundo amorita O proacuteprio Hammu-rabi teria proclamado

um mīšarum depois de ser entronizado na Babiloacutenia47 De acordo com a laquoleiraquo48 Nome pelo qual era conhecido o antigo reino de Larsa AbB 13 10 l 9-12

87

Maria de Faacutetima Rosa

Bibliografia

Bonechi M 1993 ldquoConscription agrave Larsa apregraves la Conquecircte Babyloniennerdquo MARI 7129-64

Botteacutero J 1987 Meacutesopotamie Lrsquoeacutecriture la raison et les dieux Paris Eacuteditions Gallimard

Bouzon E 1986 As Cartas de Hammurabi Petroacutepolis Vozesmdashmdashmdash 1980 O coacutedigo de Hammurabi Petroacutepolis VozesCharpin D 2003 Hammu-rabi de Babylone Paris Presses Universitaires de

Francemdashmdashmdash 2000 ldquoLettres et procegraves paleacuteo-babyloniensrdquo In Rendre la justice en

Meacutesopotamie Archives judiciaires du Proche-Orient ancien (IIIe-Ier milleacutenaires avant J-C) ed F Joannegraves 69-111 Saint-Denis Presses Universitaires de Vincennes

mdashmdashmdash 1999 ldquoHammu-rabi de Babylone et Mari nouvelles sources nouvelles perspectivesrdquo In Babylon Focus mesopotamischer Geschichte Wiege fruumlher Gelehrsamkeit Mythos in der Moderne Colloquien der Deutschen Orient-Gesellschaft 2 ed J Renger 111-30 Saarland Saarbruumlcker Druckerei und Verlag

mdashmdashmdash 1990a ldquoLes eacutedits de ldquorestaurationrdquo des rois babyloniens et leur applicationrdquo In Du pouvoir dans lrsquoantiquiteacute mots et reacutealiteacute ed Cl Nicolet 13-24 Genegraveve Librairie Droz

mdashmdashmdash 1990b ldquoUne alliance contre lrsquoElam et le rituel du lipit napištimrdquo In Contribution agrave lrsquohistoire de lrsquoIran Meacutelanges offerts agrave Jean Perrot ed F Vallat 109-18 Paris Eacuteditions Recherche sur les Civilisations

mdashmdashmdash 1987 ldquoLes deacutecrets royaux agrave lrsquoeacutepoque paleacuteo-babylonienne agrave propos drsquoun ouvrage reacutecentrdquo AfO 3436-44

Charpin D e J-M Durand 1991 ldquoLa suzeraineteacute de lrsquoempereur (sukkalmah) drsquoElam sur la Mesopotamie et le lsquonationalismersquo amorriterdquo In Meacutesopotamie et Elam Actes de la XXXVIegraveme Rencontre Assyriologique Internationale (Gand 10-14 Julho 1989) ed L De Meyer e H Gasche 59-66 Ghent University of Ghent

Charpin D F Joannegraves S Lackenbacher e B Lafont 1998 Archives Eacutepistolaires de Mari 12 (Archives Royales de Mari XXVI) Paris Eacuteditions Recherche sur les Civilisations

Charpin D e N Ziegler eds 2003 Mari et le Proche-Orient agrave lrsquoeacutepoque amorrite ndash Essai drsquohistoire politique FM V (Meacutemoires de NABU 6) Paris Socieacuteteacute pour lrsquoeacutetude du Proche-Orient ancien

Durand J-M 1997-2000 Documents Eacutepistolaires du Palais de Mari vol 1-3 LAPO 16-18 Paris Les Eacuteditions du Cerf

88

Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina

mdashmdashmdash 1990 ldquoFourmis blanches et fourmis noiresrdquo In Contribuition agrave lrsquohistoire de lrsquoIran Meacutelanges offerts agrave Jean Perrot ed F Vallat 101-8 Paris Eacuteditions Recherche sur les Civilisations

Finet A 1973 Le Code de Hammurabi LAPO 6 Paris Les Eacuteditions du CerfFrayne D 1990 Old Babylonian Period (2003-1595 BC) RIME 4 Toronto

University of Toronto PressLacambre D 1997 ldquoLa Bataille de Hiricirctumrdquo MARI 8431-54Peterson J 2016 ldquoThe Literary Corpus of the Old Babylonian Larsa Dynasties

New Texts New Readings and Commentaryrdquo In Studia Mesopotamica 3 ed M Dietrich K A Metzler e H Neumann Muumlnster Ugarit-Verlag

Sanmartiacuten J e J Loacutepez 1993 Mitologiacutea y Religioacuten del Oriente Antiguo Vol I Egipto-Mesopotamia Sabadell Editorial Ausa

Sasson J M 1995 ldquoKing Hammurabi of Babylonrdquo In Civilizations of the Ancient Near East ed J M Sasson 901-15 New York Scribners

Mieroop Van de 2005 King Hammurabi of Babylon A Biography Oxford Blackwell Publishing

mdashmdashmdash 1993 ldquoThe reign of Rim-Sinrdquo RA 8747-69Soldt W H van ed 1994 Letters in the British Museum Part 2 Transliterated

and Translated Altbabylonische Briefe in Umschrift und Uumlbersetzung Vol 13 Leiden Brill

89

Marcel L Paiva do Monte

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia1 (lsquoKing of the Four Quarters Sargon of Akkad and the imperial model in

Mesopotamia)

Marcel L Paiva do Monte(marcelpetroskigmailcom ORCID 0000-0002-2811-3459)

CHAM - Centro de Humanidades NOVA FCSHUAc

Resumo - Eacute habitual ser atribuiacutedo agrave dinastia de Akkad (ca 2334-2154 aC) o estatuto de laquoprimeiro dos impeacuteriosraquo De facto apesar de o domiacutenio alargado que exerceu sobre o Proacuteximo Oriente revelar uma continuidade com realidades anteriores a sua vigecircn-cia deu origem a uma nova tradiccedilatildeo que estruturou a cultura poliacutetica mesopotacircmica Akkad tornou-se o paradigma de um horizonte de poder universal e o seu primeiro rei Sargatildeo (ca 2334-2279 aC) um modelo de realeza emulado muitas das entidades poliacuteticas que surgiram posteriormente na Mesopotacircmia Eacute a esta dimensatildeo cultural da figura de Sargatildeo de Akkad considerada num tempo longo que este trabalho daraacute relevo Por esse motivo seraacute colocado em segundo plano o contexto histoacuterico em que decorreu o seu reinado devido agrave relevacircncia do papel de Akkad nas tradiccedilotildees intercul-turais e milenares acerca do seu impeacuterio

Palavras-chave Sargatildeo de Akkad Impeacuterio Proacuteximo Oriente Antigo Cultura poliacutetica

Abstract ndash It is common to attribute to the Dynasty of Akkad (ca 2334-2154 BCE) the status of laquofirst empireraquo In fact although its widespread rule across the Ancient Near East reveals a continuity with earlier realities it gave origin to a new tradition that structured Mesopotamian political culture and tradition in centuries to come Akkad not only became a paradigm for universal rule but its first king and founder Sargon (ca 2334-2279 BCE) was turned into a model of kingship frequently emulated in many political entities that emerged afterwards in Mesopotamia This work will focus thus on the long-term cultural dimension of the figure of Sargon of Akkad For that reason and because of the millennial and intercultural traditions about the laquoempireraquo of Akkad the proper historical context of Sargonrsquos reign will only serve as a secondary background

Keywords Sargon of Akkad Empire Ancient Near East Political Culture

1 Abreviaturas usadas CAH I2 ndash The Cambridge Ancient History Vol 1 Parte 2 RIMA 1 ndash The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods Vol 1 KUB ndash Keilschrifturkunden aus Boghazkoumli LAPO 3 ndash Inscriptions royales Sumeacuteriennes et akkadiennes (Litteacuteratures Anciennes du Proche-Orient 3) MDP XI ndash Meacutemoires de la Deacuteleacutegation en Perse XI Textes Eacutelamites-Anzanites UET I ndash Ur Excavations Texts I Royal Inscriptions

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_5

90

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

1 As fontes

Poucos monumentos produzidos no tempo de Sargatildeo sobreviveram ateacute aos nossos dias Uma uacutenica estela fragmentada conteacutem a sua representaccedilatildeo com o nome inscrito diante da sua figura barbada2 Quanto a fontes escritas primaacuterias pouco mais que algumas inscriccedilotildees em objetos votivos dedicados por Enḫeduanna sua filha podem ser enumeradas3 Poreacutem existem vaacuterias coacutepias de inscriccedilotildees reais efetuadas em periacuteodos posteriores que se consideram ter sido produzidas no seu tempo Eacute o caso de alguns documentos babiloacutenicos do II mileacutenio aC (periacuteodo paleo-babiloacutenico) depositados no templo de Enlil em Nippur o Ekur4 O facto de a capital por ele fundada a cidade de Akkad (ou Agade) natildeo ter sido ainda encontrada pela Arqueologia impede-nos tambeacutem de aceder a arquivos e monumentos que poderiam aiacute existir5

Aleacutem destas coacutepias de inscriccedilotildees originais a grande maioria dos textos relacionados com o primeiro rei de Akkad forma o corpus de uma tradiccedilatildeo literaacuteria que reflete com fiabilidade discutiacutevel o contexto histoacuterico da formaccedilatildeo do seu laquoimpeacuterioraquo Essas referecircncias textuais satildeo antes de mais uma construccedilatildeo literaacuteria e ideoloacutegica desenvolvida em torno de Sargatildeo ao longo da Antiguidade que o transformaram numa personagem cujas origens e accedilatildeo adquirem contor-nos quase miacuteticos

Por esse motivo a maior parte destes textos pode ser considerada como sendo mais relevante para o estudo das intenccedilotildees dos seus autores e das conce-ccedilotildees vigentes acerca do poder de Akkad ao longo da Antiguidade no tempo em que foram produzidos do que para o estudo do tempo a que se reportam6 A sua utilidade eacute por isso maior para o estudo das maneiras como tais conceccedilotildees das eacutepocas em que esses textos foram redigidos influenciaram o desenvolvimento de uma cultura poliacutetica tradicional na Mesopotacircmia

A tradiccedilatildeo acerca do primeiro rei de Akkad foi transmitida atraveacutes de vaacuterios geacuteneros textuais desde a epopeia ateacute ao geacutenero chamado pseudo-autobiograacutefi-co7 Por outro lado podem ser tambeacutem referidas listas de reis8 e compilaccedilotildees

2 Louvre Deacutepartement des Antiquiteacutes Orientales Sb1 Consultar Amiet 1976 9-17 e Nigro 1998 85-102

3 Enḫeduanna foi nomeada por Sargatildeo como sacerdotisa do templo de NannaSursquoen em Ur UET 1 23 271 LAPO 3 IIA1c-d Amiet 1976 15 fig 10

4 Exemplos em LAPO 3 IIA1a-b 5 O que eacute notado por Mario Liverani (Liverani 1993a 6) Sobre as possiacuteveis localizaccedilotildees da

cidade de Akkad ver Wall-Romana 19906 Cf Liverani 1993b 41-67 Van de Mieroop 1999 3287 Westenholz 1997 33-49 textos 1 e 2 Westenholz integra todavia este geacutenero no plano

mais geral da laquoliteratura-narucircraquo (Westenholz 1983 327 nota 7)8 A Lista de Reis Sumeacuteria Jacobsen 1934 Rowton 1960 156-62 Michalowski 1983 237-

48

91

Marcel L Paiva do Monte

de signos divinatoacuterios que em particular mostram como o modelo de poder corporizado por Sargatildeo foi considerado como um repositoacuterio de precedentes uacuteteis para orientar as accedilotildees dos soberanos mesopotacircmicos9

Um exemplo da influecircncia que a memoacuteria acerca de Sargatildeo de Akkad exerceu enquanto fonte ancestral de legitimaccedilatildeo do poder pode ser observado numa inscriccedilatildeo de Samsicirc-Addu I (ca 1814-1775 aC) soberano da regiatildeo que seria mais tarde a Assiacuteria10 Este rei afirma ter restaurado uma parte do templo Emašmaš de Niacutenive dedicado a Ištar e que havia sido fundado por Maništušu rei de Akkad e um dos sucessores de Sargatildeo Samsicirc-Addu reclama o meacuterito de ter restaurado o templo que se encontrava delapidado

laquo e que laquonenhum dos reis que me precederam reconstruiu desde a queda de Akkad ateacute agrave minha soberaniaraquo11

Em outro extremo temporal a continuidade da feiccedilatildeo veneraacutevel do funda-dor de Akkad como elemento de uma cultura tradicional pode ser demonstrada por um documento bastante tardio que narra a histoacuteria de Naboacutenides uacuteltimo monarca da Babiloacutenia antes da conquista aquemeacutenida em 539 aC Este texto conta como Naboacutenides encontrou no Ebabbar o templo de Šamaš na cidade de Sippar vaacuterias inscriccedilotildees de Narām-Sicircn e uma estaacutetua danificada onde estaria representado o proacuteprio Sargatildeo de Akkad12 Naboacutenides ordenou que a imagem fosse reparada e que lhe fossem prestadas as devidas homenagens

laquoEle viu nesse recinto sagrado uma estaacutetua de Sargatildeo pai de Narām-Sicircn me-tade da sua cabeccedila desaparecera e estava tatildeo deteriorada que a sua face estava irreconheciacutevel Dada a reverecircncia [de Naboacutenides] pelos deuses e o seu respeito pela realeza convocou artesatildeos restaurou a cabeccedila dessa estaacutetua e recolocou--lhe uma face Ele natildeo alterou a sua localizaccedilatildeo mas colocou-a no Ebabbar e consagrou-lhe oblaccedilotildeesraquo13

Vaacuterias satildeo as versotildees neoassiacuterias e neobabiloacutenicas de epopeias e croacutenicas que nos informam acerca das tradiccedilotildees relacionadas com Sargatildeo Este cor-pus textual que eacute secundaacuterio mas vasto e diversificado14 inclui redaccedilotildees em

9 Cf exemplos e bibliografia em Goetze 1947 253-65 (sobre Sargatildeo 254-57) Ver tambeacutem acerca dos signos divinatoacuterios em contexto de hepatoscopia Liverani 1988 256-62

10 Conhecido como reino da laquoAlta Mesopotacircmiaraquo com capital em Šubat-Enlil11 RIMA 1 A0392 i 14-2212 J-J Glassner (Glassner 2004 312) indica que este documento deveraacute ter sido redigido jaacute

no periacuteodo selecircucida ou mesmo na eacutepoca dos Partos (seacutecs IV-III aC)13 RIMA 1 A0392 i 14-2214 Para uma listagem do corpus de fontes documentais primaacuterias e secundaacuterias acerca de

Sargatildeo consultar Westenholz 1997 3-5

92

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

Sumeacuterio Acaacutedico15 Hitita e Hurrita16 demonstrando assim que a grande ampli-tude da transmissatildeo das histoacuterias e tradiccedilotildees acerca de Sargatildeo natildeo se limitou agrave Mesopotacircmia e que persistiu muito aleacutem do periacuteodo paleo-babiloacutenico

Seguindo uma opiniatildeo corrente pode afirmar-se que a transmissatildeo das histoacuterias acerca de Sargatildeo e por conseguinte do modelo de realeza que este configurava se efetuara natildeo somente por via textual entre as elites cultas e po-derosas de templos e palaacutecios17 mas tambeacutem atraveacutes da oralidade integrando o que pode ser considerado como o folclore popular mesopotacircmico18

2 As origens e a ascensatildeo

As origens do fundador de Akkad satildeo envoltas em misteacuterio A versatildeo neoas-siacuteria do texto pseudo-autobiograacutefico conhecido como a Lenda de Sargatildeo diz-nos que este teraacute nascido numa localidade chamada Azupirānu situada algures nas margens do Eufrates19 Natildeo conheceu o pai20 mas afirma que o irmatildeo do seu pai vivia laquonas montanhasraquo Quanto agrave sua matildee ao que consta era uma sacer-dotisa (entum) que por alguma razatildeo obscura teraacute lanccedilado o filho agrave corrente do rio dentro de um cesto impermeabilizado com betume Vogando nas aacuteguas do Eufrates o bebeacute foi recolhido por um laquojardineiroraquo ou laquocarregador de aacuteguaraquo chamado Aqqi Este teraacute adotado a crianccedila e ter-lhe-aacute ensinado o seu ofiacutecio Deste modo quando o menino cresceu seguiu a profissatildeo do pai adotivo21

A partir deste ponto eacute a versatildeo mais antiga desta histoacuteria em liacutengua su-meacuteria22 que oferece outras informaccedilotildees Atraveacutes dela ficamos a saber que sobre Sargatildeo teraacute recaiacutedo o olhar favoraacutevel da deusa Inanna o que lhe teraacute permitido alcanccedilar um alto posto oficial como laquocopeiroraquo (MUgraveŠKAUL) na corte do rei de Kiš Ur-Zababa

Entretanto revela-nos a histoacuteria que Sargatildeo teraacute tido um sonho com ca-raacutecter profeacutetico segundo o qual a deusa Inanna causava a morte a Ur-Zababa

15 No grande corpus textual de Amarna no Egito estaacute incluiacuteda uma versatildeo em liacutengua acaacutedica da epopeia O Rei da Batalha o šar tamḫarim (Westenholz 1997 102-33 texto 9B)

16 Sobre os textos hititas sobre os reis de Akkad podemos referir os trabalhos de H Guumlterbock (Guumlterbock 1934 1938 e 1969) Referecircncias em textos hurritas relacionados com Sargatildeo KUB XXVII 38 KUB XXXI 3 apud Westenholz 1997 11-13 Speiser 1952 101

17 Oppenheim 1964 capiacutetulo 318 Drews 1974 387-9319 Utilizamos a ediccedilatildeo de Joan G Westenholz (Westenholz 1997 38-49 texto 2) a que

a autora chama de Sargon Birth Legend Esta versatildeo compotildee-se de vaacuterios documentos neoassiacuterios e um manuscrito neobabiloacutenico (ver paacuteginas 38-39)

20 A versatildeo em liacutengua sumeacuteria desta histoacuteria fornece uma variante o seu pai chamar-se-ia Larsquoibum (Cooper e Heimpel 1983 76 l 11rsquo)

21 Westenholz 1997 38-41 ls 1-1122 Redigida entre o periacuteodo de Ur III e o periacuteodo paleo-babiloacutenico Ver Cooper e Heimpel

1983 67-82

93

Marcel L Paiva do Monte

afogando-o num laquorio de sangueraquo23 O significado do sonho era oacutebvio o favor divino estaria prestes a ser retirado ao rei de Kiš e o dom da realeza concedido ao proacuteprio Sargatildeo laquoAn e Enlil com as suas ordens divinas ordenaram com autoridade que a sua realeza [de Ur-Zababa] fosse alienada que a prosperidade do seu palaacutecio fosse retiradaraquo24

Como bom servidor do seu soberano Sargatildeo ter-se-aacute apressado a relatar o sonho que o afligira a Ur-Zababa Consciente do significado desta revelaccedilatildeo oniacuterica e da ameaccedila que ela representava para o seu reinado Ur-Zababa utiliza vaacuterios subterfuacutegios para afastar o seu copeiro Um deles consistia em fazer com que este cometesse um sacrileacutegio no exerciacutecio das suas funccedilotildees Segundo a Croacute-nica do Esagila redigida jaacute no periacuteodo neoassiacuterio Ur-Zababa teraacute ordenado a Sargatildeo que fizesse uma modificaccedilatildeo irregular nas oferendas cuacutelticas ao templo do deus Marduk o Esagila Este desobedecendo ao seu soberano e recusando--se a cometer o sacrileacutegio foi visto com bons olhos por Marduk que por esse motivo lhe dera a laquosoberania sobre as Quatro Regiotildees [do mundo]raquo (LUGAL-ut kibrat arbarsquoi iddin-šu)25

Retomando a versatildeo em Sumeacuterio da Lenda de Sargatildeo o rei de Kiš aleacutem deste subterfuacutegio tecirc-lo-aacute enviado com uma mensagem ateacute Lugalzagesi o rei de Uruk A histoacuteria deixa impliacutecito que a missiva dirigida ao soberano estrangeiro seria provocatoacuteria Ur-Zababa esperaria que o mensageiro (Sargatildeo) fosse morto pelo teor da mensagem

Poreacutem tendo fracassado esta tentativa de Ur-Zababa contra Sargatildeo este apercebendo-se da ameaccedila e da traiccedilatildeo do seu proacuteprio soberano desencadeia uma revolta da qual sai vitorioso Por conseguinte retira o poder ao rei de Kiš e apropria--se do trono cumprindo a revelaccedilatildeo que a deusa lhe havia dado em sonhos

Eacute a partir desse momento que como parece ser oacutebvio adota o nome pelo qual ficou conhecido Sargatildeo eacute a grafia em liacutengua portuguesa do nome Šarru-kicircnu (ou Šarru-kēn) que significa em Acaacutedico laquorei verdadeiroraquo ou melhor laquorei legiacutetimoraquo26 A ecircnfase sobre este atributo real contido no nome atesta a necessi-dade de afirmaccedilatildeo da legitimidade de um poder obtido pela forccedila e de modo irregular27

23 Cooper e Heimpel 1983 77 l 14 (fragmento 3N T 296)24 Cooper e Heimpel 1983 76 ls 8rsquo-9rsquo (frag TRS 73)25 Glassner 2004 266-67 l 58 texto 38 O tema central desta versatildeo tardia eacute a piedade

mostrada pelos soberanos em relaccedilatildeo ao templo de Marduk na Babiloacutenia Eacute oacutebvio que esta versatildeo refunde certos detalhes substituindo por exemplo Inanna por Marduk de modo a dotaacute-la de um significado mais proacuteximo do seu tempo

26 O nome laquoSargatildeoraquo entra na liacutengua portuguesa tal como na generalidade das liacutenguas modernas por influecircncia do Antigo Testamento Poreacutem o texto biacuteblico natildeo se refere ao fundador de Akkad mas sim a Sargatildeo II rei assiacuterio do I mileacutenio aC (722-705 aC) a propoacutesito da conquista de Ashdod (ver Is 20)

27 Como referido em CAH 12 419 o nome de laquoRei Legiacutetimoraquo natildeo teria certamente sido dado a Sargatildeo aquando do seu nascimento

94

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

3 A legitimaccedilatildeo do poder

A usurpaccedilatildeo do poder por parte de Sargatildeo acentua a imagem de laquoarri-vistaraquo que a tradiccedilatildeo lhe associou Neste quadro o seu percurso ateacute agrave realeza poderia apenas ser justificada pelo seu meacuterito pessoal e ainda mais impor-tante pela escolha divina A este propoacutesito eacute interessante analisar as suas origens agrave luz de uma conceccedilatildeo que conheceu grande continuidade na tradiccedilatildeo literaacuteria e cultural mesopotacircmica a condiccedilatildeo do ser laquocivilizadoraquo como sendo oposta a um estado laquobaacuterbaroraquo aplicado a comunidades natildeo identificadas com o sedentarismo com a agricultura e a vida urbana Este elemento foi essencial na construccedilatildeo de uma identidade laquocivilizadaraquo nas sociedades mesopotacircmicas ao longo da sua histoacuteria28 Eacute possiacutevel que esteja tambeacutem presente na Lenda de Sargatildeo concorrendo justificar o seu poder e explicar a sua ascensatildeo Um exemplo eacute o caso da Epopeia de Gilgameš na qual Enkidu29 representa um homem que natildeo pertencia ao mundo civilizado Criado pelos deuses como a antiacutetese de Gilgameš o soberano de Uruk Enkidu nascera laquonas montanhasraquo e natildeo conhecia o patildeo nem a cerveja produtos que simbolizavam a vida seden-taacuteria e agriacutecola Assim Enkidu um homem selvagem comia antes como as feras suas semelhantes

laquoCertamente eacute Enkidu nascido nas montanhas () patildeo colocaram diante dele cerveja colocaram diante dele Enkidu natildeo comeu o patildeo mas olhou des-confiado Como comer patildeo Enkidu natildeo sabia como beber cerveja nunca lhe havia sido mostradoraquo30

A Enkidu eacute assim atribuiacuteda uma natureza proacutexima dos animais e natildeo com-pletamente humana ndash leia-se laquohumanoraquo como laquocivilizadoraquo31 Ao modus vivendi das comunidades noacutemadas que desde cedo se estabeleceram na Mesopotacircmia era associado por estas expressotildees literaacuterias produzidas em contexto urbano e letrado este desconhecimento da agricultura Se a pastoriacutecia era a actividade de subsistecircncia privilegiada pelos noacutemadas estes excluiacuteam tambeacutem de um modo geral uma plena vivecircncia da realidade urbana32

28 Sobre este assunto consultar Pongratz-Leisten 2001 195-3129 Esta caracterizaccedilatildeo de Enkidu ocorre sobretudo ao longo das tabuinhas I e II

Consultaacutemos a ediccedilatildeo de A George (George 1999 especialmente 5-11 Tab 1 e 12-13 Tab 2)30 George 1999 12-13 Tab 2 A certas populaccedilotildees habitando em contextos marginais

relativamente ao mundo urbano da Mesopotacircmia eram tambeacutem associadas estas caracteriacutesticas laquobaacuterbarasraquo No texto conhecido como A Geografia de Sargatildeo os homens de Karzina satildeo apresentados como laquocomedores de carne () cujas barrigas natildeo conhecem o patildeo cozido nem a cervejaraquo (Horowitz 1998 75 ls 57-59)

31 Pongratz-Leisten 2001 202-332 Segundo A Geografia de Sargatildeo os Lullubu laquonatildeo conhecem a construccedilatildeoraquo (Horowitz

1998 73 linha 52)

95

Marcel L Paiva do Monte

Habitar em cidades era um criteacuterio que se refletia nos textos literaacuterios que colocava os noacutemadas numa posiccedilatildeo marginal face agrave civilizaccedilatildeo Embora a historiografia tenha desde haacute deacutecadas matizado uma oposiccedilatildeo radical entre no-madismo e sedentarismo33 certo eacute que nas cidades se situavam duas referecircncias fundamentais para a definiccedilatildeo do ser civilizado o templo e a realeza Assim um texto do periacuteodo da III dinastia de Ur conhecido como O Casamento de Martu traduz claramente o estereoacutetipo associado aos noacutemadas Martu ou Amorritas O noacutemada laquoque vive em montanhas natildeo conhece as moradas dos deusesraquo eacute nele descrito como algueacutem que laquohabita em tendas fustigadas pelo vento e pela chu-varaquo algueacutem que laquodurante a sua vida natildeo tem uma casaraquo e que por conseguinte laquoquando morrer natildeo seraacute enterradoraquo34

A vida laquoem tendasraquo segundo estas expressotildees culturais provenientes de meios urbanos impedia que o culto aos deuses decorresse de um modo apropriado pelo facto de ela impedir a existecircncia de templos que lhes servissem de morada e que se constituiacutessem como referecircncias espaciais e identitaacuterias da comunidade Impediria tambeacutem o culto domeacutestico aos antepassados pois era entendido como impossiacutevel a quem vivesse em habitaccedilotildees moacuteveis a tradicional inumaccedilatildeo dos mortos debaixo dos pisos das habitaccedilotildees35 Entender-se-ia tambeacutem que a vida fora das cidades implicaria a inexistecircncia da instituiccedilatildeo real e da sua expressatildeo fiacutesica mais visiacutevel o palaacutecio sem o qual natildeo se conceberia existir a ordem a intermediaccedilatildeo exercida pelo rei entre os planos terreno e divino ou mesmo a aplicaccedilatildeo da justiccedila36

A Lenda de Sargatildeo nas suas diferentes versotildees poderaacute conter tambeacutem um elemento de legitimaccedilatildeo do primeiro rei de Akkad se a perspetivarmos agrave luz destes paracircmetros da cultura mesopotacircmica De facto segundo estas histoacuterias Sargatildeo natildeo conhecera o pai nem a matildee e por essa razatildeo natildeo possuiria antepas-sados a quem pudesse prestar o culto domeacutestico ou sancionar a sua pertenccedila a uma terra ou uma casa Por outro lado era tambeacutem uma espeacutecie de laquonoacutemadaraquo pois o berccedilo onde fora depositado pela matildee que o abandonou vogava sem rumo definido ao sabor do Eufrates

Todavia ao ser recolhido por Aqqi um jardineiro e ao aprender o seu ofiacutecio Sargatildeo pocircde ser introduzido numa das artes mais importantes da civilizaccedilatildeo a

33 Rowton 1973 201-15 Do mesmo modo a ideia de uma pretensa dicotomia intransponiacutevel entre Sumeacuterios e Semitas ndash como a que opotildee noacutemadas e sedentaacuterios ndash de uma natureza laquoracialraquo dos seus conflitos ou mesmo a teoria de uma laquoinvasatildeoraquo semita sobre a Baixa Mesopotacircmia em violenta rutura com a realidade sumeacuteria satildeo vetores de um paradigma haacute muito abandonado Consultar Jacobsen 1939 485-95

34 Foi consultada a traduccedilatildeo de Klein 1997 113-116 Cf o texto chamado A Geografia de Sargatildeo dos habitantes de Karzina o texto afirma que estes laquonatildeo conhecem o enterramentoraquo isto eacute o culto aos mortos (Horowitz 1998 75 l 58)

35 A inumaccedilatildeo dos familiares mortos por baixo dos pisos domeacutesticos pelo menos entre o periacuteodo Dinaacutestico Antigo e o periacuteodo paleo-babiloacutenico associava-se ao kispum ou seja aos rituais e libaccedilotildees aos espiacuteritos das familiares Consultar Postgate 1992 98-101

36 Pongratz-Leisten 2001 204

96

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

agricultura A recolha da crianccedila agrave deriva no rio a sua adoccedilatildeo e posterior acesso a um cargo oficial na corte do rei de Kiš podem ser consideradas como etapas na sua integraccedilatildeo plena na sociedade civilizada Talvez seja pertinente considerar que A Lenda de Sargatildeo ao incluir estes estereoacutetipos servia igualmente para explicar o sucesso do fundador de Akkad um homem que apesar de nascido entre laquobaacuterbarosraquo e de possuir uma origem que o colocava agrave margem de uma legitimidade dinaacutestica convencional teria sido capaz de estabelecer um impeacuterio sobre parte significativa do Proacuteximo Oriente

4 As conquistas

Apoacutes a sua tomada do poder em Kiš Sargatildeo inicia assim a sua senda de conquistas37 A primeira fase da sua expansatildeo seria marcada pelo confronto com Lugalzagesi (ca 2340-2316) Este reinando a partir da cidade de Uruk exer-ceu uma hegemonia efeacutemera sobre o paiacutes de Sumer O reinado de Lugalzagesi representa um importante precedente para o impeacuterio de Akkad38 Iniciando a sua ascensatildeo como ensi de Umma conquistara Lagaš Ur Larsa e Nippur ob-tendo finalmente a realeza sobre a cidade de Uruk Dominando toda a Baixa Mesopotacircmia Lugalzagesi proclamou-se laquoRei do Paiacutesraquo (LUGAL KALAMMA) Poreacutem assume tambeacutem um horizonte de poder concedido pelo deus Enlil que ultrapassava os estreitos limites da Sumeacuteria

laquoQuando Enlil o rei de todos os paiacuteses [KURKUR] concedeu a Lugalzagesi a realeza no paiacutes e a justificou aos olhos do paiacutes quando colocou todos os paiacuteses ao seu serviccedilo e quando do Levante ao Poente os submeteu agrave sua leiraquo39

Lugalzagesi antes da sua derrota agraves matildeos de Sargatildeo declarava assim exercer o poder laquodesde o Mar Inferior pelo Tigre e o Eufrates ao Mar Superiorraquo40 A ascensatildeo da dinastia de Akkad teraacute adotado como sua esta amplitude poliacutetica revelada no discurso de poder de Lugalzagesi concre-tizando-a e alargando-a Deste modo se justifica a posiccedilatildeo de M Liverani quando afirma que o impeacuterio de Akkad em vez de ser considerado como um laquoponto de partida de um processoraquo deve antes ser entendido como um culminar ou ponto de chegada41 As proacuteprias inscriccedilotildees reais de Sargatildeo che-gadas ateacute noacutes atraveacutes das suas coacutepias paleo-babiloacutenicas atestam a sua vitoacuteria sobre Lugalzagesi

laquoSargatildeo o rei de Akkad [] rei de Kiš ungido de Anum o rei do Paiacutes vigaacuterio

37 Ver mapa em anexo elaborado segundo os dados de M Liverani (Liverani 1988 233)38 Consultar CAH 12 420-2139 LAPO 3 94 (IH2b)40 Ibid41 Liverani 1993a 4

97

Marcel L Paiva do Monte

de Enlil venceu a cidade de Uruk e destruiu a sua muralha Desafiou Uruk numa batalha e aprisionou Lugalzagesi o rei de Uruk no decurso da batalha levou-o numa coleira ateacute agrave Porta de Enlilraquo42

Vencendo aquele que exercia hegemonia sobre a Sumeacuteria Sargatildeo herda tam-beacutem o poder que aquele exercera sobre a Baixa Mesopotacircmia Como o seu ante-cessor assume o tiacutetulo de laquorei de Kišraquo vangloriando-se de ter vencido um total de laquotrinta e quatro batalhasraquo Estabelecendo o seu controlo sobre as cidades sumeacuterias consta que efetuou um gesto simboacutelico com grande significado apoacutes a conquista de Lagaš que viria a ser repetido por diversos soberanos assiacuterios do I mileacutenio aC o primeiro rei de Akkad laquolavou as suas armas no marraquo43 afirmando desse modo a sua capacidade de alcanccedilar um dos limites do mundo conhecido o Golfo Peacutersico e de usufruir do comeacutercio que por essa via entrava na Mesopotacircmia

Com efeito o domiacutenio do traacutefego de produtos atraveacutes da Mesopotacircmia era uma das consequecircncias das conquistas de Sargatildeo Este declara que apoacutes a sua vitoacuteria na Baixa Mesopotacircmia os barcos de Meluḫḫa Magan e Tilmun subindo o Eufrates jaacute poderiam acostar no laquocais de Akkadraquo44 Esta declaraccedilatildeo transformar-se-ia num topos recorrente do discurso poliacutetico e ideoloacutegico em seacuteculos posteriores a capacidade do soberano em fazer canalizar para o centro do seu poder os produtos originaacuterios de regiotildees perifeacutericas natildeo apenas bens de luxo mas tambeacutem mateacuterias-primas escassas na Mesopotacircmia como eram os casos da pedra ou da madeira No entanto o controlo do fluxo de mercadorias natildeo se teria limitado ao Golfo Peacutersico ou laquoMar Inferiorraquo o acesso a vias de co-municaccedilatildeo dirigidas para Norte ao longo do curso dos rios Tigre e Eufrates constituiacuteram tambeacutem um alvo da dinacircmica expansionista de Sargatildeo De facto este afirma que com a anuecircncia do deus Dagan se apropriara do laquopaiacutes superiorraquo e das cidades siacuterias de Tuttul Mari Yarmuti e Ebla importantes entrepostos no fluxo comercial que atingia a Norte a laquoFloresta dos Cedrosraquo e as laquoMontanhas da Prataraquo designaccedilotildees que equivaliam agraves cadeias montanhosas da Siacuteria do Norte e do Liacutebano assim como agrave cadeia do Tauro no Sul da Anatoacutelia

laquoSargatildeo o rei prosternou-se em Tuttul orando diante de Dagan Dagan deu--lhe o paiacutes superior Mari Yarmuti e Ebla ateacute agrave Floresta dos Cedros e agraves Mon-tanhas da Prataraquo45

Apesar desta afirmaccedilatildeo de um alcance de poder que chegava ateacute agrave Anatoacute-lia devemos talvez ver aqui mais o reflexo de uma capacidade de obtenccedilatildeo de

42 LAPO 397 (IIA1a 1-28)43 LAPO 397 (IIA1a 29-63)44 LAPO 399 (IIA1b)45 LAPO 399 (IIA1b 17-35)

98

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

produtos por via comercial Contudo uma epopeia de que subsistem diversas versotildees46 vulgarmente conhecida como O Rei da Batalha atribui a Sargatildeo de Akkad uma expediccedilatildeo militar ateacute ao reino de Purušḫḫanda47 Segundo esta epo-peia da qual seguimos a versatildeo de Amarna (II mileacutenio aC) mercadores teriam pedido auxiacutelio a Sargatildeo contra Nur-Daggal o rei dessa cidade que os assediava com violecircncia e traiccedilotildees

laquoJuraacutemos lealdade pelo nome de Sargatildeo rei do Universo e por isso partimos [para Purušḫḫanda] agora enfrentamos violecircncia e natildeo somos heroacuteisraquo48

Sargatildeo ansioso pelo combate e atraiacutedo pelas riquezas dessa regiatildeo ndash onde existiria uma laquogrande montanharaquo feita de laacutepis-lazuacuteli e ouro ndash enceta a demo-rada e difiacutecil marcha ateacute Purušḫḫanda acompanhado pelos seus guerreiros Vencendo Nur-Daggal reza a histoacuteria que o rei de Akkad permanece na regiatildeo por trecircs anos49

O proacuteprio Sargatildeo natildeo refere nas suas inscriccedilotildees que resumem as suas conquistas qualquer campanha a esta regiatildeo da Anatoacutelia Por esse motivo as opiniotildees dividem-se quanto agrave historicidade desta epopeia Mario Liverani por exemplo recusa historicidade a estas informaccedilotildees atribuindo-lhe o valor de um modelo poliacutetico e ideoloacutegico a ser seguido Esta perspetiva confere maior relevacircncia ao tempo em que o texto foi redigido e agraves intenccedilotildees dos seus autores do que agrave tentativa de encontrar o que se costuma designar como historical kernel ie um nuacutecleo de informaccedilotildees contidas numa histoacuteria lenda epopeia ou mito que possa considerar-se ser baseado em acontecimentos histoacutericos concretos50

Por fim Sargatildeo afirma ter submetido agrave sua autoridade o Elam51 onde reina-va a dinastia de Awan Deve ser notado poreacutem que a influecircncia da dinastia de Akkad sobre essa regiatildeo pode ser atestada historicamente atraveacutes de um tratado segundo o qual um rei de Awan se submetia politicamente a Narām-Sicircn (ca 2291-2255 aC) um dos mais importantes sucessores de Sargatildeo52

Eacute bastante difiacutecil contudo aferir a real amplitude das conquistas e expe-diccedilotildees efetuadas por Sargatildeo A existecircncia de um texto chamado A Geografia

46 As diferentes versotildees ou recensotildees enumeradas por Westenholz 1997 10247 Este situar-se-ia possivelmente perto da atual cidade de Aksaray (Turquia) numa regiatildeo

jaacute proacutexima da Anatoacutelia Central Ver bibliografia em Liverani 1993b 52 nota 2848 Traduzido a partir de Westenholz 1997 114 l 1849 Westenholz 1997 131 ls 27-2850 Liverani 1993b 52-56 Para algumas referecircncias bibliograacuteficas a favor e contra esta

posiccedilatildeo consultar paacuteginas 52-53 nota 2951 LAPO 397 (IIA1a 1-34) Acerca da expediccedilatildeo de Sargatildeo ao Elam consultar Liverani

1988 234-3652 Publicado pela primeira vez em MDP XI lxxxviii Ver tambeacutem Briend et al 1992 8-10

99

Marcel L Paiva do Monte

do Impeacuterio de Sargatildeo53 que enumera as regiotildees controladas pelo fundador de Akkad acentua a controveacutersia em vez de esclarecer as duacutevidas Este texto apenas conhecido por duas tabuinhas54 enumera as regiotildees controladas por Sargatildeo e procura atraveacutes da discriminaccedilatildeo de distacircncias medir a amplitude do impeacuterio Natildeo desejando entrar na discussatildeo das suas fontes ou redaccedilatildeo primaacute-ria55 podemos apenas dizer que se trata de um texto de composiccedilatildeo complexa que conteacutem elementos que remetem para realidades pertencentes ao III II e I mileacutenios aC como por exemplo os topoacutenimos que enumera56 Todavia eacute consensual considerar-se este texto como a expressatildeo de um ideal de laquoimpeacuterio universalraquo corporizado pela figura de Sargatildeo de Akkad

A centralidade de Akkad e a sua capacidade de dominar militarmente uma vasta amplitude geograacutefica reflete-se nas inscriccedilotildees reais de Sargatildeo atraveacutes das quais este afirma manter em permanecircncia uma forccedila beacutelica que o limitado hori-zonte das cidades-estado sumeacuterias parecia nunca ter sido capaz de sustentar o rei de Akkad afirma manter laquo5400 homens comendo a sua refeiccedilatildeo diante dele todos os diasraquo57 Eacute por essa dinacircmica guerreira e por um poder de natureza caris-maacutetica que Sargatildeo unifica pela primeira vez toda a Mesopotacircmia58 fornecendo aos futuros soberanos dessa regiatildeo uma base ideoloacutegica que ajudaria a justificar a reivindicaccedilatildeo de um horizonte de poder laquouniversalraquo

6 Sargatildeo amp Sargatildeo

Um dos exemplos que ilustram a continuidade da influecircncia que a figura do fundador de Akkad exerceu sobre as conceccedilotildees da realeza na Mesopotacircmia eacute a adoccedilatildeo do seu nome por alguns reis posteriores59 Dois reis assiacuterios escolheram como seus nomes reacutegios o nome de Sargatildeo O mais importante foi Sargatildeo II monarca cujo papel foi marcante na expansatildeo assiacuteria da segunda metade do I mileacutenio aC Este como o seu homoacutenimo de Akkad usurpou o trono assiacuterio por volta de 722 aC apoacutes a morte de Salmanasar V cujo reinado durou pouco menos de cinco anos (726-722 aC) O facto de Sargatildeo II ter chegado ao trono de modo irregular antes de lhe ser exigido que consolidasse internamente o seu poder pela forccedila permite entender o motivo pelo qual este adotara o nome do fundador de Akkad consolidar um poder receacutem-adquirido e afirmar uma

53 Transliteraccedilatildeo traduccedilatildeo e estudo em Horowitz 1998 67-9554 Um manuscrito do periacuteodo neoassiacuterio encontrado em Aššur (Ass 13955rb) e um

manuscrito neobabiloacutenico hoje no Museu Britacircnico (BM 64382) Van de Mieroop 1999 33055 Ver bibliografia e resumo das posiccedilotildees em Van de Mieroop 1999 330-3156 Van de Mieroop 1999 33157 LAPO 399 (IIA1b 17-35)58 Liverani 1988 252-56 acentua o carisma guerreiro dos reis de Akkad como uma das

principais inovaccedilotildees da cultura poliacutetica trazidas por Sargatildeo agrave Mesopotacircmia59 Frahm 2005 46-50 nordm 2

100

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

legitimidade atraveacutes do nome inequiacutevoco de Šarru-kicircn ou laquorei legiacutetimoraquo como vimos acima60

Sargatildeo II como o fundador de Akkad resolveu construir uma nova capi-tal a que chamou Dūr-Šarrukicircn a laquoFortaleza de Sargatildeoraquo localizada na atual Khorsabad61 A fundaccedilatildeo de uma nova capital construiacuteda ex nihilo procurava instituir uma rutura com uma realidade poliacutetica anterior que proporcionasse um afastamento de contextos de poder tradicional que continham de forma latente ou aberta focos de oposiccedilatildeo62 Sargatildeo II poderaacute ter decidido a construccedilatildeo dessa nova cidade como meio de se afastar de uma atmosfera potencialmente conspirativa por parte de elites tradicionais que residiriam em boa parte em antigas capitais como Aššur ou Kalḫu onde teriam grande influecircncia

Natildeo sendo um expediente poliacutetico invulgar no Proacuteximo Oriente Antigo podemos afirmar com certeza que esta seria a mesma estrateacutegia que Sargatildeo pretendera seguir quando fundara a cidade de Akkad Esta seria o siacutembolo mais visiacutevel de rompimento com a tradicional realidade poliacutetica da Sumeacuteria que se caracterizava antes da experiecircncia de Lugalzagesi na fragmentaccedilatildeo em cidades-estado Esta cidade que pretendia certamente ser considerada como o laquocentroraquo do mundo que correspondesse agraves conquistas de Sargatildeo ainda natildeo foi revelada pelo esforccedilo arqueoloacutegico No entanto presume-se que estivesse situada numa zona de transiccedilatildeo entre a Alta e a Baixa Mesopotacircmia perto de Bagdad63

A Croacutenica do Esagila64 a que jaacute nos referimos e a chamada Croacutenica dos Reis Antigos65 relatam a fundaccedilatildeo de uma nova cidade por Sargatildeo diante de Akkad sua capital Estes textos refletem a atribuiccedilatildeo de um significado ao passado de um modo que era comum natildeo apenas na literatura babiloacutenica mas na proacutepria historiografia produzida no Oriente Antigo em geral o favor divino e o compor-tamento dos reis para com os deuses eram fatores determinantes na definiccedilatildeo do destino dos homens No caso concreto destas duas croacutenicas os seus autores pretendiam interpretar o percurso histoacuterico de vaacuterias dinastias mesopotacircmicas segundo o comportamento dos soberanos face ao Esagila o templo de Mar-duk na cidade da Babiloacutenia Este era o criteacuterio essencial para explicar a queda

60 Acerca da importacircncia do nome como veiacuteculo da essecircncia das coisas na cultura mesopotacircmica e em especial relativamente aos nomes dos reis cf Van de Mieroop 1999 329-30 (sobre a homoniacutemia de Sargatildeo de Akkad e Sargatildeo II da Assiacuteria)

61 Consultar as actas do coloacutequio dirigido por A Caubet (1995)62 Joffe 1998 549-80 O autor analisa entre outros o caso particular de Ducircr-Sharrukicircn

(Ibid 562)63 Consultar mapa em anexo Poderia estar mais propriamente entre Sippar e Kiš (Joffe

1998 556) Ver ainda Wall-Romana 199064 Glassner 2004 263-68 (texto 38)65 Glassner 2004 268-71 (texto 39)

101

Marcel L Paiva do Monte

e ascensatildeo de reis e dinastias66 incluindo Sargatildeo e outros dos seus sucessores como Narām-Sicircn

A Croacutenica dos Reis Antigos segue o fio das tradiccedilotildees literaacuterias acerca de Sar-gatildeo de Akkad ao relatar como o favor de Marduk recaiacutera sobre ele permitindo que este governasse laquoos paiacuteses como um soacuteraquo67 Todavia apoacutes aludir agraves suas con-quistas e agrave amplitude do seu domiacutenio o texto revela que o rei decide construir uma nova cidade reacuteplica da cidade de Babiloacutenia diante da sua capital Akkad

laquoEle [Sargatildeo] levou terra do ldquofosso de argilardquo de Babiloacutenia e construiu perto de Akkad uma reacuteplica [da cidade] de Babiloacutenia Por causa desta (falta) por ele cometida o grande senhor Marduk enfurecido diminuiu o seu povo atraveacutes da fome Desde Oriente ateacute ao Ocidente houve uma revolta contra ele e ele foi afligido com ldquoinsoacuteniardquoraquo68

Segundo estas croacutenicas este ato seria iacutempio e sacriacutelego pois Sargatildeo fun-dando desse modo uma cidade estaria a competir com a grandeza de Babiloacutenia e mais do que isso a substituir-se aos proacuteprios deuses ao encetar esse ato en-tendido como laquodemiuacutergicoraquo Como afirma M Van de Mieroop laquoThe building of a new city by a mortal man was considered to be an act of hybris to the Mesopotamians only gods were allowed to found citiesraquo69

Este tom negativo foi interpretado por este autor como uma criacutetica indireta natildeo ao fundador de Akkad mas ao proacuteprio Sargatildeo II da Assiacuteria Esta basear-se--ia no acontecimento inusitado que foi a morte de Sargatildeo II em combate em 705 aC e a natildeo recuperaccedilatildeo do seu cadaacutever Tal facto teria privado o rei dos ritos fuacutenebres e constituiacutea um sinal aos olhos de muitos dos seus contemporacircneos de uma puniccedilatildeo divina devido a uma falta que este houvesse cometido Falta o laquopecadoraquo que pode estar relacionado com a sua usurpaccedilatildeo do poder e a sua tentativa de imunizaccedilatildeo relativamente a oposiccedilotildees internas ao construir uma nova cidade de raiz e ao estabelecer nela a capital do impeacuterio assiacuterio Por ou-tro lado natildeo seraacute por acaso que esta memoacuteria construiacuteda acerca de Sargatildeo de Akkad retome forccedila no momento em que a Assiacuteria empreende um movimento de expansatildeo que a iria tornar paulatinamente o precedente para os impeacuterios do I mileacutenio aC como o neobabiloacutenico e o persa aquemeacutenida

Estes dois textos satildeo exemplos pungentes da complexidade das tradiccedilotildees literaacuterias no Proacuteximo Oriente Antigo Expressam uma utilizaccedilatildeo inteligente de uma tradiccedilatildeo cultural e poliacutetica antiga no sentido de estabelecer um criteacuterio

66 Estes textos refletem o anacronismo destes elementos ao associaacute-los agrave personagem de Sargatildeo de Akkad Este facto denuncia o propoacutesito interpretativo desta composiccedilatildeo literaacuteria agrave luz do tempo em que foi produzida

67 Ver supra nota 2468 Glassner 2004 271 texto 3969 Van de Mieroop 1999 338

102

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

valorativo para as accedilotildees dos soberanos de que Sargatildeo de Akkad constituiria elemento fundamental Esse criteacuterio estabelecia como valor positivo a emulaccedilatildeo das conquistas de Sargatildeo Uma passagem de um texto eacutepico com ele relaciona-do inscrito num texto do periacuteodo paleo-babiloacutenico revela de modo expliacutecito a natureza modelar do fundador de Akkad No final do texto este exorta qualquer soberano que lhe queira seguir os seus passos a imitaacute-lo laquoSargatildeo instrui as suas tropas lsquoOh o rei que me quiser igualar ndash onde eu fui que ele tambeacutem vaacutersquoraquo70

Consideraccedilotildees finais

A figura de Sargatildeo de Akkad ultrapassou em muito a sua dimensatildeo histoacuteri-ca concreta Ao longo de muitos seacuteculos a memoacuteria que sobre ele foi construiacuteda transformou-o numa personagem modelar e numa referecircncia poliacutetica e cultural incontornaacutevel Parte integrante e essencial dessa memoacuteria era a tradiccedilatildeo que lhe atribuiacutea a conquista das laquoQuatro Regiotildeesraquo isto eacute do mundo Esta expressatildeo apesar de nunca ter feito parte da sua titulatura durante o seu reinado traduz um horizonte universalista de poder reclamado por diversas entidades poliacuteticas surgidas no Proacuteximo Oriente Antigo Ainda que a amplitude das suas conquis-tas possa ter sido exagerada e alargada pela tradiccedilatildeo literaacuteria que construiu agrave sua volta uma verdadeira res gesta foi Sargatildeo de Akkad assim como a dinastia que fundou o responsaacutevel se natildeo pela concretizaccedilatildeo desse ideal de poder pelo menos agrave cristalizaccedilatildeo da sua ideia

70 Sargatildeo o Heroacutei Conquistador Westenholz 1997 76-77 texto 6 ls 120-123

103

Marcel L Paiva do Monte

Bibliografia

Amiet Pierre 1976 Lrsquoart drsquoAgadeacute au Museacutee du Louvre Paris Eacuteditions des Museacutees Nationaux

Brandenstein C G ed 1934 Kultische Texte in hethithischer und churrischer Sprache (Keilschrifturkunden aus Boghazkoumli 27) Berlin Akademie-Verlag

Edwards I E S C J Gadd e N G L Hammond eds (1971) 2006 The Cambridge Ancient History Early History of the Middle East Vol 1 Parte 2 Reimpressatildeo Cambridge The Cambridge University Press

Caubet A ed 1995 Khorsabad le palais de Sargon II roi drsquoAssyrie Actes du colloque organiseacute au Museacutee du Louvre par le Service Culturel le 21 et 22 janvier 1994 Paris La Documentation Franccedilaise

Cooper J e W Heimpel 1983 ldquoThe Sumerian Sargon Legendrdquo Journal of the American Oriental Society 10367-82

Drews R 1974 ldquoSargon Cyrus and Mesopotamian Folk Historyrdquo Journal of Near Eastern Studies 3387-93

Frahm E 2005 ldquoObservations on the Name and Age of Sargon II and Some Patterns on Assyrian Royal Onomasticsrdquo NABU 246-50

Gadd C J e Leon Legrain eds 1928 Ur Excavations Texts Royal Inscriptions Vol 1 London British Museum Museum of the University of Pennsylvania

George A 1999 The Epic of Gilgamesh A New Translation London Penguin Books

Glassner J-J 2004 Mesopotamian Chronicles Atlanta Society of Biblical Literature

Goetz A 1947 ldquoHistorical Allusions in Old Babylonian Omen Textsrdquo Journal of Cuneiform Studies 1253-65

Grayson A K ed 1987 The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods vol 1 Assyrian Rulers of the Third and Second Millennia BC (to 1115 BC) Toronto University of Toronto Press

Guumlterbock H 1969 ldquoEin neues Bruchstuumlck der Sargon-Erzaumlhlungsbquo Koumlnig der Schlachtrdquo Muskellunge der Deutsch Orient-Gesellschaft zoos Berlin 10114-26

mdashmdashmdash 1934 ldquoDie historische Tradition und ihre literarische Gestaltung bei Babyloniern und Hethitern bis 1200 (Erster Teil Babylonien)rdquo Zeitschrift fuumlr Assyriologie und verwandte Gebiete 421-91

mdashmdashmdash 1938 ldquoDie historische Tradition und ihre literarische Gestaltung bei Babyloniern und Hethitern bis 1200 (Zweiter Teil Hethiter)rdquo Zeitschrift fuumlr Assyriologie und verwandte Gebiete 4445-145

104

lsquoRei das Quatro Regiotildeesrsquo Sargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia

Horowitz W 1998 Mesopotamian Cosmic Geography Winona Lake Eisenbrauns

Jacobsen Thorkild 1934 The Sumerian King List (Assyriological Studies 11) Chicago Oriental Institute of the University of Chicago

Joffe A 1998 ldquoDisembedded capitals in Western Asian Perspectiverdquo Comparative Studies in Society and History 40549-80

Klein J 1997 ldquoThe God Martu in Sumerian Literaturerdquo In Sumerian Gods and their Representations ed L Finkel e M Geller 99-116 Groumlningen Styx

Liverani Mario 1988 Antico Oriente Storia Societagrave Economia Roma Laterzamdashmdashmdash 1993a ldquoAkkad an Introductionrdquo In Akkad The First World Empire

Structure Ideology Traditions ed M Liverani 1-10 Padova Sargon srlmdashmdashmdash 1993b ldquoModel and Actualization The Kings of Akkad in the Historical

Traditionrdquo In Akkad The First World Empire Structure Ideology Traditions ed M Liverani 41-67 Padova Sargon srl

Michalowski Piotr 1983 ldquoHistory as Charter Some Observations on the Sumerian King Listrdquo Journal of the American Oriental Society 103237-48

Nigro Lorenzo 1998 ldquoTwo steles of Sargon iconology and visual propaganda at the beginning of royal Akkadian reliefrdquo Iraq 6085-102

Oppenheim A L 1964 Ancient Mesopotamia Portrait of a Dead Civilization Chicago The University of Chicago Press

Pongratz-Leisten Beate 2001 ldquoThe Other and the Enemy in the Mesopotamian Conception of the Worldrdquo In Melammu Symposia II Mythology and Mythologies Methodological Approaches to Intercultural Influences ed R Whiting 195-231 Helsinki The Neo-Assyrian Text Corpus Project

Postgate John Nicholas 1992 Early Mesopotamia Society and Economy at the Dawn of History London New York Routledge

Puech Emile Jacques Briand e Reneacute Labrun 1992 Traiteacutes et Serments dans le Proche-Orient Ancien (Supplement aux Cahiers Eacutevangile 81) Paris Les Editions du Cerf

Rowton M B 1960 ldquoThe Date of the Sumerian King Listrdquo Journal of Near Eastern Studies 19156-62

mdashmdashmdash 1973 ldquoUrban Authonomy in a Nomadic Environmentrdquo Journal of Near Eastern Studies 32201-15

Scheil V 1911 Meacutemoires de la Deacuteleacutegation en Perse XI Textes Eacutelamites-Anzanites Paris Ernest Leroux

Sollberger E e J-R Kupper eds 1971 Inscriptions royales sumeacuteriennes et akkadiennes (Litteacuteratures Anciennes du Proche-Orient 3) Paris Centre National de la Recherche Scientifique Les Eacuteditions du Cerf

105

Marcel L Paiva do Monte

Speiser E 1952 ldquoSome Factors in the Collapse of Akkadrdquo Journal of the American Oriental Society 7297-101

Sturm J e Otten H eds 1939 Historische und religioumlse Texte (Keilschrifturkunden aus Boghazkoumli 27) Berlin Akademie-Verlag

Van de Mieroop Marc 1999 ldquoLiterature and Political Discourse in Ancient Mesopotamia Sargon II of Assyria and Sargon of Agaderdquo In Munuscula Mesopotamica Festschrift fuumlr Johannes Renger (AOAT 267) ed B Boumlck E Cancik-Kirschbaum e T Richter 327-39 Muumlnster Ugarit-Verlag

Wall-Romana Christophe 1990 ldquoAn Areal Location of Agaderdquo Journal of Near Eastern Studies 49205-45

Westenholz Joan G 1983 ldquoHeroes of Akkadrdquo Journal of the American Oriental Society 103327-36

mdashmdashmdash 1997 Legends of the Kings of Akkade The Texts Winona Lake Eisenbrauns

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

107

Joatildeo Paulo Galhano

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita1

(The hurritisation of mythological concepts of power in the Hittite Empire)

Joatildeo Paulo Galhano(jptsgalhanogmailcom ORCID 0000-0003-4934-2696)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de Histoacuteria

laquoAssim disse Ḫupašiya a InaralsquoSe me deito contigo irei e cumprirei o desejo do teu coraccedilatildeorsquo

E ele deitou-se com elaraquo2

Resumo - No presente estudo pesquisaacutemos os processos de hurritizaccedilatildeo dos conteuacute-dos mitoloacutegicos hititas Apoacutes anaacutelise da hurritizaccedilatildeo eacutetnica do territoacuterio da Anatoacutelia verificaacutemos que nos mitos de divindades ausentes subsistem conceccedilotildees de interde-pendecircncia e correlaccedilatildeo dos entes divinos a par de uma tendecircncia natildeo hieraacuterquica de organizaccedilatildeo do panteatildeo anatoacutelico antigo Jaacute o Mito de Illuyanka apresenta uma modalidade mitoloacutegica diferente assente na luta entre um deus e uma forccedila maacute As narrativas hurritas trouxeram ao panteatildeo anatoacutelico estruturas que evidenciam ideias de realeza divina de valorizaccedilatildeo do horizonte familiar e de diferenciaccedilatildeo das instacircn-cias de poder Os mitos hurritas trouxeram ainda dimensotildees temporais alargadas e uma encenaccedilatildeo literaacuteria do poder O mito O Desaparecimento do Deus Sol parece cru-zar elementos conceptuais que se podem encontrar nos mitos de divindades ausentes mas tambeacutem outros que satildeo tiacutepicos da mitologia de origem hurrita

Palavras-chave Hititas Hurritas mitos influecircncia

Abstract ndash In this research article we looked for the hurrianization processes of the hittite mythological contents After the analysis of the ethnic hurrianization of the Anatolian territory we confirmed that in the myths of disappearing gods there is an idea of interdependence and correlation of divine agents as well as a non-hierarchical tendency in the arrangement of the ancient Anatolian pantheon The Illuyanka Tales show a different mythological mode based in the fight between a god and an evil power The Hurrian myths have brought to the Anatolian pantheon some narrative structures that include the idea of divine kingship of emphasis on the familial order and of differentiation of the power levels Besides the Hurrian myths have included a wide temporal dimension and the literary play-acting of power The myth of The Disappearance of the Sun God seems to join elements found in the myths of disappea-ring gods and other ingredients typical of the Hurrian mythology

Keywords Hittites Hurrians myths influence

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013

2 CTH 321 Mito de Illuyanka A obv i 24 e ss

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_6

108

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

A histoacuteria hitita3 tem tido uma periodizaccedilatildeo similar agrave de outros reinos do Proacuteximo Oriente Antigo (em sentido lato) designadamente o egiacutepcio dando lugar agrave divisatildeo em Reino Antigo Reino Meacutedio e Reino Novo4 Alguns preferem simplificar o esquema e reduzir a histoacuteria hitita a duas fases principais o Reino Antigo e o Reino Novo propondo a cisatildeo no iniacutecio do reinado de Tudḫaliya I ou seja no final do seacutec XV ou iniacutecio do seacutec XIV aC5 Esta periodizaccedilatildeo se reflete uma viragem na orientaccedilatildeo poliacutetica hitita que a partir de Tudḫaliya I estaacute sob o desiacutegnio da conquista de terras longiacutenquas na Siacuteria e no oeste da Anatoacutelia natildeo daacute relevo ao momento de realizaccedilatildeo imperial conseguido com Šuppiluliuma I cuja maior concretizaccedilatildeo aconteceu no domiacutenio da diplomacia e da estrateacutegia militar laquointernacionalraquo resultando na anexaccedilatildeo do reino hurrita do Mitanni e de vastas zonas no norte da Siacuteria

A cultura religiosa e literaacuteria hitita do periacuteodo imperial ficou marcada por um elevado grau de fusatildeo da matriz autoacutectone hatiana com os aportes miacutetico--religiosos hurritas siriacuteos e mesopotacircmicos situaccedilatildeo que derivou dos contactos continuados das populaccedilotildees autoacutectones com os povos vizinhos do leste e sudeste da Anatoacutelia Este processo culminaria na integraccedilatildeo do Mitanni e do norte da Siacuteria nos domiacutenios hititas para aleacutem dos territoacuterios disputados a sudoeste com o reino de Arzawa Por essa via a histoacuteria cultural hitita ficou superlativamente marcada pela integraccedilatildeo de elementos hurritas a ponto de no periacuteodo imperial a cultura mitoloacutegica hurrita ser tatildeo hitita quanto a matriz hatiana originaacuteria da Anatoacutelia

Interessa entatildeo perceber o que significou a hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos hititas no que trata das conceccedilotildees de poder com o propoacutesito de compreender o que mudou com a assimilaccedilatildeo e adiccedilatildeo de estruturas narrativas mitoloacutegicas hurritas agrave matriz hatiana tenham sido ou natildeo acompanhadas de processos de sincretismo religioso Para tal importa comeccedilar por convocar os elementos histoacuterico-geograacuteficos que teratildeo possibilitado aquela hurritizaccedilatildeo

3 Por Hititas designa-se o que na literatura de expressatildeo inglesa surge denominado laquoHittitesraquo e na aacuterea alematilde laquoHethiterraquo Por Hatianos os povos anatoacutelios indiacutegenas que viveram na Anatoacutelia antes da chegada dos Indo-Europeus Sobre a problemaacutetica do nome dos povos da Anatoacutelia cf Galhano 2012 4-6

4 Horst Klengel (1998) distingue trecircs periacuteodos na histoacuteria hitita das aumlltere Reich (ateacute Telipinu) das ldquomittlererdquo Reich (de Taḫurwaili ateacute Tudḫaliya II) e das neue Reich (Groszligreichszeit) (de Šuppiluliuma I ateacute Šuppiluliuma II) Tambeacutem Harry Hoffner (2009 xi) distingue trecircs periacuteodos na histoacuteria hitita Old Kingdom (de c 1600 a c 1400 ie ateacute Muwattalli I) Early New Kingdom (ldquoMiddle Kingdomrdquo) (de Tudḫaliya I (II) ateacute Tudḫaliya II (III)) e New Kingdom (de Šuppiluliuma I ateacute Šuppiluliuma II)

5 Trevor Bryce (2005 6) segue esta periodizaccedilatildeo Segundo Gary Beckman laquo[] there was no coherent Middle Kingdom period of Hittite history nor an abrupt transition to the Empire Rather a single royal family ndash or perhaps clan ndash ruled Ḫatti from start to finishraquo (Beckman 2007 110) As datas indicadas no presente texto satildeo todas aC razatildeo para se dispensar esta elucidaccedilatildeo em referecircncias posteriores

109

Joatildeo Paulo Galhano

pelo menos ateacute Tudḫaliya IV quando o impeacuterio hitita estaacute ainda plenamente vigoroso

1 Poliacutetica e etnicidade

O local da futura Ḫattuša aparece com vestiacutegios de ocupaccedilatildeo humana pelo menos desde meados do III mileacutenio a par de outros pequenos reinos da Anatoacutelia central junto do rio posteriormente conhecido pelos Hititas por Maraššantiya o Haacutelis dos Gregos Ainda antes da viragem para o segundo mileacutenio teratildeo chegado agrave Anatoacutelia grupos populacionais Luvitas Palaiacutetas e Nesitas todos de matriz linguiacutestica indo-europeia6 Esta primeira incorporaccedilatildeo de elementos indo-europeus numa provaacutevel matriz autoacutectone hatiana teraacute produzido uma primeira amaacutelgama cultural mais por adiccedilatildeo do que por efetiva fusatildeo cultural dadas as persistecircncias linguiacutesticas natildeo indo-europeias no Ḫatti dos seacuteculos posteriores No periacuteodo do estabelecimento de feitorias assiacuterias na zona leste da Anatoacutelia7 nos primeiros seacuteculos do II mileacutenio nota-se uma forte compo-nente eacutetnica indo-europeia em Kaneš8 uma das mais importantes feitorias de comerciantes assiacuterios poreacutem nesse mesmo periacuteodo poderatildeo ter logo surgido elementos hurritas na Anatoacutelia central9

A incorporaccedilatildeo de populaccedilotildees hurritas na aacuterea anatoacutelica embora resul-tando inicialmente muito possivelmente das viagens de sacerdotes e adivinhos hurritas10 teve como causa importante a deportaccedilatildeo de tropas derrotadas nos confrontos militares posteriores tornando a guerra num importante processo de hurritizaccedilatildeo daquela aacuterea A primeira unificaccedilatildeo poliacutetica do Ḫatti protago-nizada por Pitḫana e Anitta em torno de Kaneš bem como o fim da maior parte das feitorias assiacuterias poderatildeo ter sido causadas precisamente pela intervenccedilatildeo

6 Klengel 1998 20 Bryce 2005 10-147 Designa-se laquofeitorias assiacuteriasraquo o que surge habitualmente denominado laquocoloacutenias assiacuteriasraquo

seguindo uma justa sugestatildeo de Maria de Lurdes Palma no decurso da primeira sessatildeo do coloacutequio Arqueologias de Impeacuterio em 26 de novembro de 2010 Em alematildeo eacute usada a designaccedilatildeo Handelsniederlassungen (Klengel 1998 21 ss)

8 Klengel 1998 24 laquoErste Hinweise auf die Anwesenheit von Bewohnern mit einer indoeuropaumlischen Sprache stammen vor allem aus Kaniš das mit dem in hethitischen Texten bezeugten Neša gleichgesetzt werden darfraquo Natildeo nos referimos aqui ao aporte hurrita nem agrave tese controversa de a liacutengua hurrita poder pertencer agrave famiacutelia indo-europeia Ilse Wegner por exemplo designa a liacutengua hurrita e a liacutengua do Urartu esta aparentada com a primeira de laquoldquoisoliertenrdquo Sprachenraquo (cf Wegner 2007 35)

9 Collins 2007 31-32 Bryce 2005 15 Mogens Trolle Larsen data o aparecimento da cidade--estado de Kaneš c 2250 (Larsen 2015 xi) de acordo com Gojko Barjamovic laquowhen and how Assyrian trade in Anatolia began is lost in time Direct textual evidence goes back to the early years of the reign of king Ikunum (1934-1921 BC) but a network of Assyrian trading colonies in Anatolia may have been established generations earlierraquo (Barjamovic 2011 1)

10 Bryce 2005 18

110

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

de elementos populacionais hurritas do sudoeste11 cedo se estabelecendo a tensatildeo hurro-hitita em territoacuterio anatoacutelico12 Ḫattušili I cuja orientaccedilatildeo poliacutetica levaria a expansatildeo hitita para o norte da Siacuteria13 estaria tambeacutem condenado ao confronto com os Hurritas do Mitanni designadamente em torno de Uršu En-quanto os esforccedilos militares hititas estavam concentrados na zona de Arzawa os Hurritas atacaram a Anatoacutelia deixando incoacutelume apenas a cidade de Ḫattuša14 Em resposta Ḫattušili I avanccedilou militarmente para leste e chegou mesmo a atravessar o Eufrates seguindo-se o saque de despojos de guerra para Ḫattuša sem ser conseguido um domiacutenio permanente sobre essas regiotildees A guerra surge tambeacutem neste caso como elemento propiciador do contacto eacutetnico entre Hur-ritas e anatoacutelicos15

Nesta primeira fase da histoacuteria hitita antes de Tudḫaliya I o conviacutevio com culturas natildeo anatoacutelicas natildeo se limitaria ao Mitanni e ao norte da Siacuteria dado que Muršili I legiacutetimo sucessor de Ḫattušili I poria fim agrave dinastia de Ham-murabi com a breve conquista de Babiloacutenia em 153116 Este avanccedilo militar pode bem ter tido a ajuda dos futuros governantes babiloacutenicos no acircmbito de uma estrateacutegia de alianccedila laquointernacionalraquo de Muršili I com os Cassitas motivada pela ameaccedila hurrita17 Durante a governaccedilatildeo de Telipinu (c 1510-1490) recomeccedilam as expediccedilotildees contra as proximidades do receacutem-criado reino do Kizzuwatna em Ḫaššuwa Zizzilipa e Lawazantiya18 Esta incursatildeo militar natildeo daria lugar agrave invasatildeo do Kizzuwatna pretendendo-se evitar novas hostilidades do Mitanni Em todo o caso as movimentaccedilotildees populacionais de semi-noacutemadas entre o Kiz-zuwatna e o Ḫatti continuaram apoacutes a morte de Telipinu o que pode deduzir-se a partir do tratado estabelecido entre um dos monarcas hititas posteriores a Telipinu (talvez Ḫantili II) e Paddatiššu rei do Kizzuwatna19 A integraccedilatildeo de elementos eacutetnicos hurritas na Anatoacutelia pode assim ter ocorrido tambeacutem na ausecircncia de guerra

11 Bryce 2005 6112 Cf Beckman 2007 109-10 laquoThe origins of the Old Kingdom and the process of its

consolidation remain obscure to us but it may now be recognized that Luwian and Hurrian influence was already present to a significant degree in the early Hittite state We must therefore abandon any remnants of the view that a pristine Indo-European culture was gradually ldquoOrientalizedrdquo in early Anatolia At least during the period covered by the available texts Ḫatti was always a multicultural civilizationraquo

13 Klengel 1998 4414 CTH 4 Anais de Ḫattušili I obv i 24-26 (Carreira 1999 48) CTH refere-se agrave numeraccedilatildeo

dos textos anatoacutelicos seguida em Laroche 197115 Carreira 2009 1416 Eder-Renger 2007 6717 CTH 19 Edicto Constitucional de Telipinu i 28 e ss (Carreira 1999 55) Bryce 2005 99

cf Klengel 1998 64 e ss18 Klengel 1998 79 Bryce 2005 10419 CTH 26 (KUB 341 17-20) trad em Liverani 2001 66-67 tambeacutem em Beckman-Hoffner

1999 11 e ss

111

Joatildeo Paulo Galhano

A conquista hitita de Alepo iniciada por Ḫattušili I e concluiacuteda por Muršili I provocou a desagregaccedilatildeo das estruturas de poder no norte da Siacuteria facto que teraacute potenciado a infiltraccedilatildeo de Hurritas nesse espaccedilo territorial travada apenas com o avanccedilo de Tutmeacutes I ateacute ao Eufrates A interrupccedilatildeo desta poliacutetica de expansatildeo egiacutepcia durante o reinado de Hatchepsut permitiria uma grande expansatildeo mitanniana para oeste permitindo que Alepo se tornasse um reino vassalo do Mitanni de Parrattarna20 Os avanccedilos militares egiacutepcios na aacuterea do Mitanni criaram condiccedilotildees para que Zidanta II (ou Ḫuzziya II) estabelecessem um pacto hitito-egiacutepcio dado que aqueles avanccedilos militares se mostravam uacuteteis para conter a ameaccedila hurrita no norte da Siacuteria e apenas vagamente perigosos para pocircr em crise o territoacuterio anatoacutelio

Com Tudḫaliya I inicia-se um novo periacuteodo na histoacuteria poliacutetica do Ḫatti essencialmente marcado pelo conflito aberto com os reinos vizinhos da Anatoacutelia do Bronze Recente assim se preparando o periacuteodo imperial hitita de Šuppiluliuma I meio seacuteculo mais tarde Nesta fase observa-se jaacute uma grande presenccedila hurrita nos assuntos poliacuteticos hititas nomeadamente aquando da que-rela sucessoacuteria e da rebeliatildeo de Muwa bastante apoiada militarmente pelos Hur-ritas do Mitanni21 A hurritizaccedilatildeo da Anatoacutelia tinha jaacute atingido um tal estado de maturidade que tornava os grupos dominantes da sociedade hitita permeaacuteveis agrave influecircncia hurrita No reinado de Tudḫaliya I o esforccedilo de guerra a oeste contra a Confederaccedilatildeo de Aššuwa enfraqueceu as fronteiras hititas a norte e a leste po-tenciando a inimizade do reino de Išuwa um territoacuterio laquotampatildeoraquo entre o Ḫatti e o Mitanni As campanhas militares de Tudḫaliya I naquele reino bem como no norte da Siacuteria facilmente teratildeo permitido a integraccedilatildeo de novos sujeitos hurritas na Anatoacutelia Aliaacutes a hurritizaccedilatildeo da Anatoacutelia ocorrida apoacutes Tudḫaliya I ocorre tambeacutem no espaccedilo linguiacutestico e religioso22

Jaacute com Arnuwanda I no trono hitita o novo rei do Mitanni tentou domi-nar novamente o norte da Siacuteria Poreacutem a situaccedilatildeo geopoliacutetica incluiacutea agora o interesse egiacutepcio de Tutmeacutes IV nessa regiatildeo Estabelecer-se-ia entatildeo um acordo mitano-egiacutepcio resultando na divisatildeo da Siacuteria em duas zonas de influecircncia a norte de Qadeš do Amurru e de Ugarit a intervenccedilatildeo seria hurrita ficando os territoacuterios a sul sob alccedilada egiacutepcia Tal acabaria por reforccedilar a presenccedila poliacutetica e consequentemente eacutetnica hurrita no norte da Siacuteria A habilidade poliacutetica e

20 Bryce 2005 116-1721 Bryce 2005 12122 Watkins 2001 51 laquoHittite religion and the pantheon underwent a profound Hurritization

from the Middle Hittite period onwards and the language played a major role in ritual and cult with numerous loanwords of varying degrees of assimilationraquo Klengel 1998 113 laquoDurch die enge Verbindung mit Kizzuwatna wurde zweifellos auch der Einfluszlig hurritischer Kultur auf Ḫatti verstaumlrkt der sich vielleicht auch im hurritischen Namen der Gemahlin des Tutḫalija Nikkalmati [] in den Namen spaumlterer Koumlniginnen sowie auch Zweitnamen der Groszligkoumlnige zeigtraquo

112

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

diplomaacutetica de Šuppiluliuma I (c 135550-1320) daria expressatildeo concreta ao imperialismo hitita cuja maior expansatildeo passaria pela inclusatildeo de territoacuterios mitannianos no Ḫatti Aliaacutes Šuppiluliuma I alimentou dissensotildees internas no Mitanni e aliou-se agrave Babiloacutenia cassita por meio do seu casamento com uma filha de Burnaburiaš II com o objetivo uacuteltimo de derrotar aquele reino As con-quistas de Šuppiluliuma I na primeira campanha siacuteria incliuriam Alepo Mukiš Niya Araḫtu Qatna e Nuhašše (a norte de Aba apenas ficaria por conquistar Karkemiš)23 Seguindo a poliacutetica de Tudḫaliya I Šuppiluliuma I deportou as famiacutelias reais dos conquistados para Ḫattuša inscrevendo a cultura dos venci-dos no centro poliacutetico do Ḫatti vencidos esses que vinham de aacutereas fortemente hurritizadas inclusive do proacuteprio Mitanni

Soacute na segunda campanha siacuteria tambeacutem conhecida como Segunda Guerra Siacuteria ou Guerra Hurrita Šuppiluliuma I conseguiria submeter de vez o Mitanni e conquistar definitivamente Karkemiš A profundidade da hurritizaccedilatildeo neste momento histoacuterico do Ḫatti pode ser exemplarmente observada no facto de Piyaššili filho de Šuppiluliuma I indicado como vice-rei em Karkemiš ter adotado o nome hurrita Šarri-Kušuḫ ou ainda no facto de Šuppiluliuma I ter deixado os templos de Kubaba e da divindade LAMMA intactos apoacutes a conquista de Karkemiš se a primeira deusa originaacuteria da Alta Mesopotacircmia era cultuada na Anatoacutelia desde o Reino Antigo a segunda era uma divindade tipicamente hurrita24 com ocorrecircncia na mitologia do Ciclo de Kumarbi ambas convivendo agora tanto em Karkemiš como em Ḫattuša A fusatildeo eacutetnica hurro-hitita estava jaacute convertida em cultura siro-anatoacutelica de variada composiccedilatildeo

As vice-realezas criadas por Šuppiluliuma I em Alepo e Karkemiš ambas governadas por filhos de Šuppiluliuma I Telipinu na primeira e Šarri-Kušuḫ na segunda incluiacuteam tambeacutem a direccedilatildeo religiosa tarefa igualmente desempenhada por Telipinu nos mais importantes centros religiosos da Siacuteria25 A instituiccedilatildeo da vice-realeza surge assim como instrumento de permanecircncia da cultura hitita fora da Anatoacutelia e como porta de entrada da cultura hurrita no poder hitita Ou seja a proacutepria vice-realeza hitita teraacute hurritizado a Anatoacutelia

O reinado de Muršili II (c 1318-1290) para aleacutem dos esforccedilos militares a oeste associados agrave continuidade da poliacutetica deportacional seguida desde Tudḫaliya I26 ficou marcado pelo caso de Tawannanna a uacuteltima esposa de Šuppiluliuma I que permanecia como tawannanna em exerciacutecio ainda no reinado daquele soberano

23 Bryce 2005 16124 Hoffner 1998 111 Note-se poreacutem que a divindade dLAMMA era hurrita mas de origem

mesopotacircmica25 Bryce 2005 18826 Cf por exemplo relativamente agrave populaccedilatildeo de Katḫaituwa CTH 61 Anais Completos de

Mursili II Ano 2 (Carreira 1999 75)

113

Joatildeo Paulo Galhano

sendo simultaneamente sacerdotisa-šiwanzanni27 A acusaccedilatildeo de Tawannanna de introduzir divindades simultaneamente babiloacutenicas e hurritas em Ḫattuša no caso a divindade LAMMA cujo templo de Karkemiš fora poupado por Šuppiluliuma I aquando da Guerra Hurrita mostra bem como a hurritizaccedilatildeo do espaccedilo hitita chegara jaacute ao acircmago do poder poliacutetico28 Aliaacutes a confirmaccedilatildeo da elevada hurritizaccedilatildeo do Ḫatti no tempo de Muršili II vem logo a seguir com o seu casamento com Tanu-ḫepa uma princesa de provaacutevel origem hurrita cujo nome se relaciona com a paredra do deus hurrita Tešub Ḫebat

Tambeacutem o futuro Ḫattušili III ainda enquanto dirigente militar na Siacuteria se uniria agrave hurrita Puduḫepa na cidade kizzuwatniana de Lawazantiya sob a eacutegide da deusa mesopotacircmica Ištar29 um verdadeiro siacutembolo do conuacutebio eacutetnico e cultural do Ḫatti imperial30 Puduḫepa cujo nome tambeacutem parece remeter para a deusa hurrita Ḫebat ordenou a recoleccedilatildeo e organizaccedilatildeo de textos religiosos do impeacuterio tendo propiciado uma profunda revisatildeo dos rituais e das cerimoacutenias hititas ou agora melhor designadas hurro-hititas O programa religioso de Puduḫepa teraacute mesmo incluiacutedo a recitaccedilatildeo do Ciclo de Kumarbi perante fun-cionaacuterios do palaacutecio e dos templos de Ḫattuša31 A assimilaccedilatildeo de divindades hurritas no panteatildeo hitita dava lugar a diversos processos de sincretismo sendo exemplo a identificaccedilatildeo da hurrita Ḫebat com a hatiana Deusa Sol de Arinna32

O impeacuterio hitita teria o seu uacuteltimo momento de gloacuteria com Tudḫaliya IV nomeado rei pelo seu pai ainda em vida A predominacircncia hurro-hitita na

27 Friedrich 1991 195 sv indica a traduccedilatildeo laquoGottesmuterraquo assim como Bryce 2005 447 n 71 propotildee a traduccedilatildeo laquomother of the godraquo Tawannanna seria assim sacerdotisa da deusa matildee hitita

28 Cf CTH 70 (KUB 144 ii 3ndash12) Muršili II Sobre o Caso Tawannanna laquoOacute deuses natildeo vedes como ela [Tawannanna] transformou a casa do meu pai na lsquocasa de pedrarsquo [ie num mausoleacuteu] do Deus Tutelar [LAMMA] e a lsquocasa de pedrarsquo do deus Algumas coisas ela trouxe da Terra de Šanḫara [ie de Babiloacutenia] Outras no Ḫatti [hellip] trouxe para a populaccedila Ela natildeo deixou nadahellip A casa do meu pai ela destruiuraquo (apud Bryce 2005 208) Eacute notaacutevel que Muršili II se refira agrave divindade LAMMA como uma divindade da laquoTerra de Šanḫararaquo (Babiloacutenia) a repulsa de Muršili II dirige-se agrave divindade por ser babiloacutenica e natildeo hurrita Tal opccedilatildeo revela o quatildeo a cultura hurrita estava jaacute arraigada na Anatoacutelia a ponto de a natureza tambeacutem hurrita de LAMMA ter de ser ignorada por Muršili para que o efeito poliacutetico desejado fosse obtido o afastamento de Tawannana

29 Cf CTH 81 Apologia de Ḫattušili sect 9 (Carreira 1999 138-39)30 Ḫattušili III e Puduḫepa surgem representados no monumento de Fraktin sendo

Puduḫepa aiacute designada por laquofilha do paiacutes de Kizzuwatna amada pelos deusesraquo (cf Yigit 2016 61-62) laquoThe Fraktin monument [] which has figures and hieroglyph inscriptions on the rock wall is 1 km from the Zamantı River southeast of the Develi dates back to the period where the Hittite Kingdom was at its strongest period and was under the greatest Hurrian influence The monument describes king Hattusili III who lived in the 13th century BC and his wife Puduhepe was the most important factor in the spread of Hurrian culture over the Hittite landsraquo (Yigit 2016 61-62)

31 Bryce 2002 22832 Cf CTH 384 Oraccedilatildeo de Puduḫepa agrave Deusa Sol de Arinna (Pritchard 1969 393)

114

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

cultura anatoacutelica com integraccedilatildeo de alguns elementos mesopotacircmicos se pode ser exemplificada pelo facto de o antepenuacuteltimo rei hitita ser simultaneamente sacerdote de Ištar e do Deus Tempestade de Nerik tem o seu maacuteximo expoente em Yazılıkaya o santuaacuterio ao ar livre que existindo desde o iniacutecio do Reino Antigo atinge o seu maior desenvolvimento neste periacuteodo O panteatildeo hurrita surge aiacute como o panteatildeo hitita por excelecircncia com a tripla representaccedilatildeo de Tudḫaliya IV junto ao seu deus patrono Šarruma o laquodeus da montanharaquo filho de Tešub e Ḫebat as duas divindades hurritas supremas O cortejo de divindades hurritas representado em Yazilikaya concretiza plenamente o programa religio-so iniciado por Puduḫepa e Ḫattušili III

Apoacutes o colapso do impeacuterio hitita e do abandono progressivo de Ḫattuša no final do seacutec XIII33 para aleacutem das persistecircncias poliacutetico-hititas em meio cultural hurrita como se verificou por exemplo em Karkemiš a heranccedila cultural a que agrave falta de melhor termo se pode chamar hurro-hitita persistiu nalguns reinos neo-hititas Em Tabal zona de forte influecircncia eacutetnica luvita tambeacutem foi cul-tuada a deusa Kubaba cujo principal centro de culto se localizou em Karkemiš natildeo obstante a sua origem alti-mesopotacircmica e o seu culto anatoacutelico no periacuteodo inicial do reino hitita

2 Da desordem agrave concoacuterdia

Boa parte da mitologia hitita mais antiga estaacute embutida em rituais destinados a superar momentos de crise atraveacutes da repeticcedilatildeo ritual de um acontecimento primordial entatildeo invocado um mugawar ou entatildeo enquadra-se em festivais religiosos do Estado hitita de que eacute exemplo o Mito de Illuyanka O mito do Desaparecimento de Telipinu34 pode ser considerado paradigma dos mitos de divindades ausentes Iniciando-se com o desaparecimento da divindade por razotildees indeterminadas segue-se com a descriccedilatildeo da interrupccedilatildeo do curso normal da natureza provocada pela ausecircncia do deus A repeticcedilatildeo ritualizada associada ao mugawar traz de novo o deus e com ele o restabelecimento da ordem natural das coisas A ausecircncia de Telipinu provoca sofrimento natildeo apenas no plano humano mas tambeacutem na esfera divina35 O sofrimento metaforicamente

33 laquoArchaeological evidence indicates widespread devastation by fire in the capital ndash on the royal acropolis in the temples of both Upper and Lower Cities and along stretches of the fortifications This has conjured up the scenario of a royal capital succumbing all at one time to violent destruction in an all-consuming conflagration However Dr Seeher the current director of excavations at Hattusa has come to a rather less dramatic conclusion His scenario is one of gradual abandonment of the capital firstly by its royal family and leading members of the palace bureaucracy who took with them all their valuable and portable possessions including the kingdomrsquos most important official records They must have done so once it became clear that the capital was doomedraquo Bryce 2005 345

34 CTH 324 Desaparecimento de Telipinu35 CTH 324 Desaparecimento de Telipinu A obv i 5-9 (Garciacutea Trabazo 2002 111) laquoA

115

Joatildeo Paulo Galhano

provocado pelo fumo atinge igualmente homens e deuses que ficam tatildeo sufocados nos seus altares como homens e animais o ficam nos seus habitates36

Haacute assim uma interdependecircncia no plano divino expressa no mito do Desaparecimento de Telipinu ainda que Telipinu natildeo seja colocado em niacutevel hierarquicamente superior aos outros deuses A ausecircncia da divindade revela a sua importacircncia para a manutenccedilatildeo do equiliacutebrio coacutesmico sobressaindo assim uma ideia de harmonia perdida quando uma das divindades se ausenta Essa mesma correlaccedilatildeo ocorre no mito do Desaparecimento do Deus Tempestade37 quando sucede um desaparecimento similar ou ateacute nos mitos do Deus Tempestade de Kuliwišna38 do Deus do Escriba Pirwa39 e do Deus Tempestade da Rainha Ḫarapšili40 A conceccedilatildeo de concoacuterdia entre deuses nos mitos de divindades ausentes que se expande para o plano humano tende assim a caracterizar o poder do ponto de vista mitoloacutegico como uma harmonia quase natildeo hieraacuterquica assente na necessidade que os deuses tecircm uns dos outros todos satildeo imprescindiacuteveis para que haja equiliacutebrio e abundacircncia no plano divino O proacuteprio facto de todos os deuses participarem no banquete organizado pelo Deus Sol41 denota a ausecircncia de rivalidade divina Tal situaccedilatildeo pode estar relacionada com a pouca especulaccedilatildeo teoloacutegica ou mesmo com a ausecircncia de uma teologia em sentido estrito nos periacuteodos anteriores a Ḫattušili III e a Puduḫepa42

A tendecircncia natildeo hieraacuterquica dos mitos de divindades ausentes assume por vezes registos de complementaridade funcional reconhecendo-se uma dependecircncia da conjunccedilatildeo das divindades para obter benefiacutecios Tal sucede no passo do mito As Fiandeiras Infernais associado ao Ritual Para a Construccedilatildeo de um Novo Palaacutecio43 onde se relaciona o par divino formado pela Deusa Sol e pelo Deus Tempestade ambos fenoacutemenos celestes divinizados

neblina tomou as janelas o fumo [tomou] a casa os lenhos consumiram-se na lareira os deuses sufocaram-se [nos altares] tambeacutem as ovelhas no curral [e] as vacas sufocaram-se no estaacutebulo a ovelha abandonou o seu cordeiro e a vaca abandonou o seu viteloraquo

36 Situaccedilatildeo semelhante ocorre por exemplo no mito do Deus do Escriba Pirwa (CTH 328) (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 106)

37 CTH 325 Desaparecimento do deus Tempestade sect5 A i 16-21 (Hoffner 1998 21)38 CTH 329 O Deus Tempestade de Kuliwišna ii 5 ss (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 108)39 CTH 328 O Deus do Escriba Pirwa KUB 3332 ii 5rsquo e ss (Pecchioli Daddi-Polvani 1990

107) Situaccedilatildeo semelhante se observa no mito Anzili e Zukki (CTH 333) com a diferenccedila que a desordem coacutesmica natildeo eacute provocada pelo desaparecimento de um deus mas causada pela irritaccedilatildeo de Anzili e de Zukki cf Bernabeacute 1987 72 ss

40 CTH 327 O Desaparecimento do Deus Tempestade da Rainha Ḫarapšili sect3 A iii 1-4 (Hoffner 1998 25) laquo[O Deus Tempestade da Rainha Ḫarapšili()] sentou-se numa cadeira-šarpas de madeira [hellip] A neblina libertou [a janela] [O fumo] libertou [a casa] O altar estava de novo em harmonia [Acima dele] os deuses estavam em harmoniaraquo cf sect8 D 10-17

41 Cf CTH 329 O Deus Tempestade de Kuliwišna ii 5 ss (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 108) e CTH 328 O Deus do Escriba Pirwa obv i 15rsquo e ss (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 106)

42 Bryce 2002 14543 CTH 414 Ritual para a Construccedilatildeo de um Novo Palaacutecio

116

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

laquolsquo[hellip] e invoquei a (deusa) Trono minha amiga lsquoNatildeo (eras) tu minha amiga do rei Proporciona-me essas aacutervores e (eu) as cortareirsquordquo E a Deusa Trono responde ao rei ldquoCorta-os corta(-os) A Deusa Sol e o Deus Tempestade proporcionaram-tosrdquoraquo44

Por vezes aquela conceccedilatildeo natildeo hieraacuterquica do poder divino daacute lugar a uma certa pusilanimidade divina como se pode observar no passo do mito A Lua Caiacuteda do Ceacuteu em que o Deus Tempestade sente medo e anguacutestia pelo desaparecimento do Deus Lua45 Observa-se aqui a ausecircncia de uma conceccedilatildeo de poder competitivo e belicoso antes se promovendo uma certa humanizaccedilatildeo das divindades pois o Deus Tempestade surge aqui afastado de um ideal de coragem e valentia beacutelica desembocando mesmo na pusilanimidade do medo

Nas relaccedilotildees de poder dos mitos de divindades ausentes tambeacutem haacute lugar para a superioridade de algumas entidades sempre sem recurso agrave categoria de realeza para estratificar o divino Pode ter-se Ḫannaḫanna como exemplo dessa discriminaccedilatildeo dado ser esta deusa que no mito do desaparecimento de Telipinu ordena ao Deus Tempestade que procure o deus ausente46 Concebe-se assim uma certa diferenciaccedilatildeo poliacutetica na laquosociedaderaquo divina porventura de-calcando a importacircncia poliacutetica da tawananna hitita Poreacutem a discriminaccedilatildeo positiva desta deusa parece assentar na sua natureza de sage conselheira47 A discriminaccedilatildeo de Ḫannaḫanna no meio divino evidencia tambeacutem a projeccedilatildeo das relaccedilotildees familiares de autoridade dos antepassados no campo do mito

44 CTH 414 Ritual para a Construccedilatildeo de um Novo Palaacutecio A obv i 34-38 (Garciacutea Trabazo 2002 489) Nova referecircncia ao par divino formado pela Deusa Sol e pelo Deus Tempestade ocorre no mesmo mito em A obv ii 47-49 (Garciacutea Trabazo 2002 499) tambeacutem noutros mitos de divindades que desaparecem surgem referecircncias a outros pares divinos como por exemplo o par Deus Tempestade ndash Deusa Sol de Arinna nos fragmentos CTH 335

45 CTH 727 A Lua Caiacuteda do Ceacuteu C obv ii 10-14 (Garciacutea Trabazo 2002 261) A mesma ideia em A obv ii 16-21 Nova referecircncia ao medo e agrave anguacutestia do Deus Tempestade surge na parte ritual do mito A Lua Caiacuteda do Ceacuteu (CTH 727 C rev iii 10rsquo-11rsquo) ainda que aqui com a possibilidade destas emoccedilotildees se referirem ao efeito das accedilotildees do Deus Tempestade no plano humano num comum momento de projeccedilatildeo das preocupaccedilotildees humanas no divino Cf Garciacutea Trabazo 2002 265

46 CTH 324 Desaparecimento de Telipinu A obv i 29-32 (Garciacutea Trabazo 2002 115) cf ainda CTH 324 Desaparecimento de Telipinu E obv ii 15rsquo-16rsquo (Garciacutea Trabazo 2002 117) e CTH 336 Mitos da Deusa Inara sect3 B ii 4-9 (Hoffner 1998 30)

47 Eg CTH 336 Mitos da deusa Inara sectsect1-2 ii 1-10 (Hoffner 1998 31) A diferenciaccedilatildeo positiva de Ḫannaḫanna enquanto conselheira saacutebia tambeacutem pode ser observada na parte final de CTH 336 (Mitos da Deusa Inara sectsect4-6 A rev 2-13 Hoffner 1998 32) laquoQuando estiveres perante o Deus Sol natildeo faccedilas de novo [hellip] tudo Tu iraacutes e encontraraacutes [hellip] Tu diraacutes [hellip] Quando o Deus Sol disser lsquoTu faz alguma coisarsquo ele diz lsquoTu [hellip]rsquo Mas se ele nada disser deixa-o estar em silecircncio()rdquo O Deus Guerra respondeu ldquoMas se eu natildeo for a lado nenhum que devo levarrdquo Ḫannaḫanna respondeu-lhe ldquoAno a ano continua a ir para campanhas militaresrdquo As trecircs crianccedilas da Serva Feminina [perguntaram] a Ḫannaḫanna ldquoEspera que devo levarrdquo [Ḫannaḫanna respondeu] ldquoIde [hellip] Natildeo vaacutes [hellip]rdquoraquo

117

Joatildeo Paulo Galhano

Aliaacutes o seu nome significa literalmente laquomatildee da matildeeraquo ou seja laquoavoacuteraquo48 tendo a sua autoridade paralelo na figura do avocirc do Deus Tempestade referido no mito do Desaparecimento do Deus Tempestade49 Contudo a toacutenica dos mitos de divindades ausentes estaacute na relativa igualdade e capacidade de convivecircncia entre deuses

O caraacutecter natildeo hieraacuterquico e coletivo do poder nos mitos de divindades ausentes parece divergir da conceccedilatildeo de superioridade do Deus Tempestade no interior do panteatildeo anatoacutelico pois cedo foi considerado garante da ordem coacutesmica e supremo protetor da laquoTerra do Ḫattiraquo com o rei a desempenhar a funccedilatildeo de seu deputado na terra50 Poreacutem tal posiccedilatildeo manifestada cultualmente natildeo teve correspondecircncia mitoloacutegica com a possiacutevel exceccedilatildeo do mito do Desaparecimento do Deus Sol como mais agrave frente se discutiraacute Releva ainda que as relaccedilotildees entre deuses de acordo com os mitos de divindades ausentes excluam de todo a categoria de rei divino Mesmo em situaccedilatildeo de policefalia divina na sua essecircncia as conceccedilotildees de poder dos mitos de divindades ausentes natildeo incluem o exclusivismo do mando

3 O deus e a serpente

A harmonia essencial dos mitos de divindades ausentes excluindo o mito do Desaparecimento do Deus Sol51 natildeo tem paralelo noutros mitos anatoacutelicos antigos No Mito de Illuyanka52 a harmonia divina daacute lugar agrave modalidade de luta entre um deus e uma forccedila maacute Em ambas as versotildees do Mito de Illuyanka o Deus Tempestade derrotado pela serpente num primeiro combate procura uma segunda oportunidade para reaver a sua superioridade beacutelica perante o terriacutevel ofiacutedio Na primeira versatildeo Inara procura a ajuda do humano Ḫupašiya e na se-gunda versatildeo o Deus Tempestade recorre a uma humana agrave laquofilha de um pobreraquo para engendrar um filho que o ajudaraacute a reaver os olhos e o coraccedilatildeo que perdeu no primeiro combate Em ambas as versotildees se pode presenciar uma modalidade de luta de recuperaccedilatildeo do poder em ambas se instrumentalizando um humano como estrateacutegia de recuperaccedilatildeo do poder No entanto esta instrumentalizaccedilatildeo varia da primeira para a segunda versatildeo do mito na primeira eacute uma deusa que usa um humano Ḫupašiya na segunda um deus socorre-se de uma mulher a laquofilha de um pobreraquo No primeiro caso o divino feminino instrumentaliza o humano masculino no segundo caso o divino masculino instrumentaliza o feminino humano

48 Cf Friedrich 1991 50 sv ḫanna-49 Cf CTH 325 Desaparecimento do Deus Tempestade sect9 A i 34-36 (Hoffner 1998 21)50 Bryce 2002 143 cf Gurney 1954 14051 CTH 32352 CTH 321

118

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

A ausecircncia de tensatildeo no exerciacutecio do poder revelada nos mitos de divin-dades ausentes transforma-se assim numa conceccedilatildeo de poder repetidamente ameaccedilado e recuperado conceccedilatildeo que decorreraacute da ligaccedilatildeo deste mito ao Purulli um dos mais importantes festivais anuais do calendaacuterio hitita Tatildeo im-portante que Muršili abandonou uma campanha militar para o celebrar tendo como propoacutesito revigorar as terras depois do duro inverno e assim assegurar a persistecircncia da chuva necessaacuteria agraves culturas Desta forma o combate ritual entre o Deus Tempestade e Illuyanka cujo nome parece significar laquoserpenteraquo53 sim-boliza o triunfo da vida sobre a morte da fertilidade sobre a seca ie a vitoacuteria do bem sobre o mal

Da perspetiva de conceccedilatildeo de poder a derrota inicial do Deus Tempestade natildeo implica ainda um problema de obtenccedilatildeo de realeza divina dada a diferente categoria dos opositores por um lado um deus por outro uma forccedila hostil O motivo inicial da luta poderaacute antes ser interpretado como uma luta pelo controlo das aacuteguas necessaacuterias agrave agricultura em que o Deus Tempestade domina as aacuteguas pluviais e a serpente as aacuteguas subterracircneas ateacute porque o ritual associado ao mito se desenvolveria junto a uma fonte sendo assim uma projeccedilatildeo na conceccedilatildeo do divino da luta humana pela aacutegua a fundamental preocupaccedilatildeo do festival Pu-rulli54 Em essecircncia o Mito de Illuyanka constitui uma estoacuteria de recuperaccedilatildeo do poder com preponderacircncia da divindade em detrimento da forccedila maacute Natildeo deixa de ser significativo que o nome do opositor do deus Illuyanka seja um lexema de significaccedilatildeo geral indicando apenas o seu ofidiomorfismo ao passo que o nome hitito-luvita do Deus Tempestade Tarḫunza signifique laquoo poderosoraquo55 Contudo a posiccedilatildeo do Deus Tempestade perante os seus pares varia de acordo com o seu sucesso perante Illuyanka Apoacutes a derrota inicial na primeira versatildeo do mito o Deus Tempestade parece ser abandonado pelos restantes deuses e assim conta apenas com a fidelidade de sua filha Inara56 Poreacutem apoacutes vencer a serpente restabelece-se a sua autoridade e a sua reputaccedilatildeo de deus capaz e poderoso57 numa situaccedilatildeo semelhante ao reconhecimento do poder de David pelo Deus dos Hebreus apoacutes haver consolidado a sua soberania poliacutetica58

O opositor do Deus Tempestade tambeacutem natildeo aparece caracterizado como especialmente dotado de poder Na primeira versatildeo do mito Illuyanka

53 Garciacutea Trabazo 2002 85 n 2754 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 40-41 Macqueen 1959 17555 O nome Tarḫunt- ou Tarḫu(na) deriva da raiacutez tarḫ- que significa laquopoderraquo Garciacutea Trabazo

2002 37 No Mito de Illuyanka ocorrem os sumerogramas dU e dIM(-)56 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 41 Cf CTH 321 Mito de Illuyanka A obv i 11-14 (Garciacutea

Trabazo 2002 86-87)57 CTH 321 Mito de Illuyanka B obv i 17rsquo-18rsquo (Garciacutea Trabazo 2002 89) laquoChegou o Deus

Tempestade e matou a serpente E os deuses estavam com eleraquo58 2Cr 11 laquoSalomatildeo filho de David consolidou-se no seu reino O Senhor seu Deus estava

com ele e engrandeceu-o no poderraquo

119

Joatildeo Paulo Galhano

eacute imobilizada pela accedilatildeo do humano Ḫupašiya natildeo por algueacutem especialmente poderoso e em consequecircncia da sua gulodice Tal como noutras aacutereas mi-toloacutegicas a serpente eacute vista como um glutatildeo desfavorecido pela estupidez agrave semelhanccedila do que conta Opiano na Halieutica59 acerca de como Patilde de Coacuterico enganou Tiacutefon oferecendo-lhe um banquete de peixe assim conseguindo que o monstro saiacutesse do seu covil para depois ser atacado por Zeus60 A estupidez dos opositores ao poder contudo tem registo tambeacutem nas narrativas mitoloacutegicas hurritas designadamente no que diz respeito a Ullikummi e a Ḫedammu como teremos oportunidade de verificar

Natildeo deixa de ser notaacutevel que a luta entre o Deus Tempestade e Illuyanka esteja estruturada em torno de dois princiacutepios um celeste representado pelo Deus Tempestade e um ctoacutenico representado pela serpente oposiccedilatildeo esta que apareceraacute tambeacutem nas narrativas mitoloacutegicas hurritas ainda que travestida de dinastias reinantes em competiccedilatildeo Ainda que o Mito de Illuyanka centre a sua atenccedilatildeo sobre o Deus Tempestade natildeo pode negligenciar-se o papel de Inara que segundo pesquisas recentes natildeo teria um papel subordinado na mitologia associada ao Purulli61 Esta posiccedilatildeo reforccedila a ideia de que o poder nos mitos anatoacutelicos antigos eacute tendencialmente horizontalizado ainda que perturbado por forccedilas maacutes Ainda assim natildeo possui aquela estrutura verticalizada das narrativas hurritas importadas para o Ḫatti

4 Realeza verticalizaccedilatildeo e ciclo complexo

Diversos textos em liacutengua hurrita foram incorporados na cultura hitita designadamente fragmentos de pressaacutegios textos histoacutericos e histoacuterico-mitoloacutegicos diversos rituais listas de divindades e outros textos62 Concomitantemente com a hurritizaccedilatildeo eacutetnica e poliacutetica da Anatoacutelia diversas narrativas mitoloacutegicas hurritas foram integradas na matriz hitita provocando fenoacutemenos de adiccedilatildeo assimilaccedilatildeo e sincretismo miacutetico e religioso O mais importante aporte tem hoje o nome de Ciclo de Kumarbi Composto por cinco laquocantosraquo mais um ndash O Canto de Kumarbi63 O Canto do Deus LAMMA64 O

59 Opp H 315-2560 Bernabeacute 1987 32 A Bernabeacute aponta ainda a semelhanccedila de Illuyanka com Tiacutefon em

Apolodoro (163) que prova os laquofrutos efeacutemerosraquo e por isso fica debilitado61 Hoffner 1998 1062 Dentre os textos hurritas mencionados avultam os rituais designadamente da seacuterie itkalzi

e itkaḫḫe bem com o importante Ritual de Allaituraḫi (CTH 780) este uacuteltimo existente tambeacutem em versatildeo hitita (cf Wegner 2007 30 e ss) cf CTH 774-791

63 CTH 34464 CTH 343

120

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

Canto de Prata65 O Canto de Ḫedammu66 e o Canto de Ullikummi67 a que se adicionou recentemente O Canto da Libertaccedilatildeo68 ndash tem por tema principal a ascensatildeo de Tešub agrave realeza divina seguida da sua resistecircncia aos ataques que sofre por parte de vaacuterios opositores uma boa parte conduzida por Kumarbi O tiacutetulo dado a todo o ciclo reflete o facto de a maior parte das narrativas que o integram constituirem a estoacuteria do ressentimento de Kumarbi perante a perda da realeza ganha por Tešub logo no Canto de Kumarbi O ressentimento cujo importantiacutessimo papel histoacuterico foi jaacute evidenciado por Marc Ferro69 assume o papel de motor em todo O Ciclo de Kumarbi

A introduccedilatildeo do tema da competiccedilatildeo pelo lugar de rei entre os deuses surge como um dos mais importantes contributos hurritas para a mitologia anatoacutelica o que pode bem ter sido mais-valia para os reis hititas visto pro-mover a proacutepria instituiccedilatildeo da realeza humana atraveacutes da congeacutenere divina70 No Canto de Kumarbi estabelece-se uma sucessatildeo real divina iniciada por Alalu seguida por Anu e Kumarbi e finalizada com Tešub Diferentemente de toda a mitologia hitita antiga as narrativas mitoloacutegicas hurritas introduzem a ideia de geraccedilotildees de deuses que governam uns apoacutes os outros com a particu-laridade das geraccedilotildees mais novas de deuses lutarem com as mais velhas pela obtenccedilatildeo do assento real

A sucessatildeo real do Canto de Kumarbi narra como o poder andou de matildeo em matildeo ateacute ser finalmente estabelecido por Tešub dando iniacutecio a uma nova era divina com a particularidade de a instabilidade do poder antes de Tešub o conseguir derivar da tensatildeo entre duas linhagens de soberanos com Alalu e Kumarbi a representar uma famiacutelia e Anu e Tešub a representar outra Assim a hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos hititas passou tambeacutem pela importa-ccedilatildeo do tema da rivalidade familiar entre divindades diferentemente do que se passa por exemplo no Mito de Illuyanka em que a oposiccedilatildeo natildeo eacute entre famiacutelias divinas mas sim entre um princiacutepio de bem o Deus Tempestade e outro de mal Illuyanka

As duas famiacutelias divinas em competiccedilatildeo representam as duas esferas baacutesi-cas da mitologia hurrita o mundo inferior e o domiacutenio celeste Se o proacuteprio nome Anu significa laquoceacuteuraquo quando Alalu eacute afastado do trono foge para a laquoTerra Escuraraquo E Anu quando tenta escapar a Kumarbi dirige-se para o ceacuteu71 Esta

65 CTH 36466 CTH 34867 CTH 34568 Recente nuacutemero CTH 789 A ediccedilatildeo standard do texto eacute de Neu 1996 Ateacute 1971 apenas o

Canto de Kumarbi o Canto do Deus LAMMA e o Canto de Ullikummi eram considerados partes integrantes do Ciclo de Kumarbi (Hoffner 1998 40)

69 Ferro 200970 Bryce 2002 22871 CTH 344 Canto de Kumarbi A obv i 12-14 18-22 (Garciacutea Trabazo 2002 163-65)

121

Joatildeo Paulo Galhano

rivalidade entre aquelas duas esferas o ceacuteu e o mundo inferior ganha relevacircncia na sua continuidade no conjunto de figuras miacuteticas que alinham por um lado ou por outro ao longo de todo o Ciclo de Kumarbi Alalu Mukišanu (vizir de Kumarbi) o Grande Deus Mar Impaluri (vizir do Deus Mar) Šertapšuruḫi (filha do Deus Mar) Ḫedammu Daganzipa (Terra) Prata Ullikummi as Di-vindades Irširra e provavelmente Upelluri alinham pelo lado de Kumarbi ao passo que Anu TašmišuŠuwaliyatta Ḫebat Takiti (serva de Ḫebat) ŠawoškaIštar os touros divinos Šerrišu e Ḫurri o Deus Sol o Deus Lua o Deus Guerra Aštabi o rio Aranzaḫ (irmatildeo de Tešub) o deus montanha Kanzura KAZAL e NAMḪEacute estatildeo do lado de Tešub72 Este conflito de base familiar ou dinaacutestica pode evidenciar o sentido inicial de um anterior mito antes de chegar agrave forma hurrita literariamente elaborada que chegou aos Hititas dado que este pode bem ser vestiacutegio de um anterior mito ritualizado cuja estrutura central passaria pela oposiccedilatildeo entre as forccedilas do mundo inferior e as do mundo superior com o triunfo destas uacuteltimas73

A importacircncia das ideias de linhagem e de famiacutelia no Ciclo de Kumarbi pode ser observada por exemplo no Canto de Prata quando Prata se sente enver-gonhado por ser reputado oacuterfatildeo74 Nesse episoacutedio sublinha-se a importacircncia da paternidade e da linhagem familiar para a afirmaccedilatildeo laquosocialraquo do deus no mundo divino refletindo essa mesma relevacircncia no plano humano atraveacutes do habitual fenoacutemeno de projeccedilatildeo mitoloacutegica de inquietaccedilotildees terrenas Aliaacutes neste passo o poder paternal parece sobrepor-se ao poder real pois a matildee de Prata sublinha o temor reverencial que o filho deve ter perante o seu pai mas natildeo perante Tešub o rei em exerciacutecio Concomitantemente no Ciclo de Kumarbi a preponderacircncia das relaccedilotildees familiares com especial ecircnfase no papel do pai observa-se ainda

laquoDurante nove anos contados Alalu foi rei no ceacuteu no nono ano Anu batalhou contra Alalu vencendo-o a ele a Alalu E este fugiu diante dele e para baixo da Terra Escura [hellip] Durante nove anos contados foi Anu rei no ceacuteu no nono ano Anu batalhou contra Kumarbi Kumarbi semente de Alalu batalhou contra Anu Anu jaacute natildeo resiste aos olhos de Kumarbi e de Kumarbi lhe escapou das matildeos e ele Anu voou e foi para o ceacuteuraquo

72 Hoffner 1998 4173 Bryce 2002 22574 CTH 364 Canto de Prata sectsect 32-33 (Hoffner 1998 49) laquoPrata [bateu] a um rapaz oacuterfatildeo

[com] um pau O rapaz oacuterfatildeo respondeu mal a Prata ldquoOacute Prata porque [nos estaacutes a bater] Porque nos bates Tu eacutes um oacuterfatildeo como noacutesrdquo [Agora quando Prata ouviu estas palavras] ele comeccedilou a chorar Chorando Prata foi para sua casa Prata comeccedilou por repetir as palavras a sua matildee ldquoOs rapazes a quem eu bati em frente do portatildeo desafiaram-me Eu bati a um rapaz com um pau e ele respondeu-me mal Ouve oacute minha matildee as palavras que o rapaz oacuterfatildeo me disse lsquoPorque [nos] estaacutes a bater [Porque nos] bates [Tu eacutes um oacuterfatildeo como noacutes]rsquo [hellip] [resposta da matildee de Prata] ldquo[O teu pai() eacute Kumarbi] o pai da cidade de Urkiš [Elehellip] e ele vive em Urkiš [hellip] as causas legais de todas as terras ele [satisfatoriamente] resolve() O teu irmatildeo eacute Tešub Ele eacute rei no ceacuteu E ele eacute rei na terra A tua irmatilde eacute Šawoška e ela eacute rainha em Niacutenive Tu [natildeo] deves recear nenhum [outro deus] soacute um deus [deves recear Ele (ie Kumarbi) agita] as terras inimigas e os animais selvagensraquo

122

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

no facto de no Canto de Prata Tešub medir as suas proacuteprias capacidades com as do pai de Prata apoacutes este conseguir temporariamente a realeza75 Kumarbi o pai de Prata continua a ser a medida e o termo de comparaccedilatildeo para a decisatildeo de Tešub em combater ou natildeo

Tambeacutem no Canto de Ḫedammu se pressente a importacircncia do instituto da paternidade no estabelecimento das relaccedilotildees de poder entre as divindades especialmente quando Kumarbi o rei deposto num periacuteodo em que tudo indica que Tešub estaacute no poder pretende realizar uma alianccedila poliacutetica com o Deus Mar continuando a intitular-se laquopai dos deusesraquo pretendendo manter o seu ascen-dente atraveacutes desta titulatura76 Aliaacutes Kumarbi volta a recorrer a esta titulatura no Canto de Ullikummi77 A oposiccedilatildeo de famiacutelias divinas no Ciclo de Kumarbi cada uma delas com uma alocaccedilatildeo proacutepria pode tambeacutem ser encarada como paralela ao ocorrido no Mito de Illuyanka em que o Deus Tempestade repre-senta a esfera celeste e Illuyanka o mundo inferior

O facto de no Canto de Kumarbi o poder ser sempre transmitido pela via belicosa ateacute chegar a Tešub pode tambeacutem representar mitologicamente a belicosidade do poder poliacutetico no domiacutenio hurrita ou por outro lado fazer en-tender a narrativa mitoloacutegica como meio de representaccedilatildeo do extraordinaacuterio em relaccedilatildeo agrave ordem poliacutetica humana fazendo do mito transformado em narrativa uma representaccedilatildeo do traumaacutetico com a memoacuteria coletiva a guardar o mais doloroso ou perigoso para a comunidade agrave semelhanccedila do mais fundo registo dos insucessos na memoacuteria individual um reflexo do instinto de preservaccedilatildeo Tambeacutem neste aspeto as narrativas mitoloacutegicas hurro-hititas se distinguem dos mitos anatoacutelicos antigos dada a toacutenica na superaccedilatildeo da desordem (nos mitos associados a rituais do tipo mugawar) ou na vitoacuteria do bem sobre o mal (no Mito de Illuyanka) centrando os mitos hititas antigos na soluccedilatildeo para o distuacuterbio mais do que no registo do traumaacutetico

O Canto de Kumarbi assemelha-se ao Mito de Illuyanka no facto de ambos comeccedilarem por favorecer o princiacutepio ctoacutenico e acabarem por outorgar a vitoacuteria ao princiacutepio celeste A narrativa mitoloacutegica hurrita dado que apresenta Anu como um cobarde que foge do combate por si iniciado dirigindo-se para o ceacuteu na sequecircncia do que Kumarbi o traz de novo ao combate parece favorecer inicialmente a linhagem de Kumarbi mas posteriormente outorga o triunfo agrave

75 CTH 364 Canto de Prata sectsect 51-52 (Hoffner 1998 50) laquo[Tašmišu comeccedilou] por dizer a Tešub ldquoNatildeo [eacute possiacutevel()]que tu trovejes Tu [natildeo] sabes [comohellip] Na()hellip [Prata()] tornou-se rei e [agora] ele [conduz()] todas as divindades com um aguilhatildeo() de madeira de pistachordquo Tešub [comeccedilou por] responder ao seu vizir ldquoVaacute vamos e comamos [hellip] O nosso pai [Kumarbi()] natildeo derrotou [Prata() Seraacute que noacutes] agora [vamos derrotar] Pratardquoraquo

76 CTH 348 Canto de Ḫedammu sect 93 (Hoffner 1998 53)77 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 6 A ii 1-8 (Hoffner 1998 57)

123

Joatildeo Paulo Galhano

linhagem celeste ie a Tešub78 De igual modo no Mito de Illuyanka a serpente vence o primeiro combate com o Deus Tempestade mas este acaba por obter a vitoacuteria final O poder obtido pelo deus celeste Tešub no final da sucessatildeo real no Canto de Kumarbi surge sempre ameaccedilado por descendentes de Kumarbi Ullikummi resulta da uniatildeo sexual de Kumarbi com um rochedo Ḫedammu muito possivelmente eacute filho de Kumarbi e Šertapšuruḫi Prata descende de Kumarbi e de uma humana mortal e mesmo LAMMA pode talvez ser filho de Kumarbi79 Assim a complexidade das narrativas mitoloacutegicas hurritas natildeo parece ter paralelo nos mitos anatoacutelicos antigos com a possiacutevel exceccedilatildeo do mito do Desaparecimento do Deus Sol

Natildeo obstante a derrota inicial do deus celeste colocando em risco a sua vitoacuteria final pode constituir um paralelo entre o Mito de Illuyanka e parte do Ciclo de Kumarbi Assim como o Deus Tempestade eacute derrotado inicialmente tambeacutem Tešub no Canto de Ullikummi80 eacute derrotado por Ullikummi no pri-meiro combate entre eles

A hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos hititas concretizou-se tambeacutem na adoccedilatildeo de mais complexas estruturas de poder agora repartido por vaacuterias instacircncias natildeo obstante a introduccedilatildeo tambeacutem hurrita da categoria de realeza divina No Canto do Deus LAMMA o poder real surge vinculado a um poder moderador concretizado em Ea o deus mesopotacircmico da sabedoria adotado pelos Hurritas do Mitanni81 Perante a arrogacircncia de LAMMA durante o seu breve reinado no ceacuteu Ea que antes o havia designado rei depotildee-no do trono divino num ato caracterizador de Ea como poder moderador da realeza um tanto agrave semelhanccedila do ugaritiano Ilu nos textos do Ciclo de Balsquolu mormente no mito da Luta Entre Balsquolu e Yammu82 Tambeacutem no Canto de Ḫedammu Ea intervecircm na refrega entre Kumarbi e Tešub advertindo-os e fazendo questatildeo de dizer que tambeacutem a ele chamam laquoreiraquo83 Poreacutem a moderaccedilatildeo exercida por

78 CTH 344 Canto de Kumarbi A obv i 18-26 (Garciacutea Trabazo 2002 165-67) laquoDurante nove anos contados foi Anu rei no ceacuteu no nono ano Anu batalhou contra Kumarbi Kumarbi semente de Alalu batalhou contra Anu Anu jaacute natildeo resiste aos olhos de Kumarbi e de Kumarbi lhe escapou das matildeos e ele Anu voou e foi para o ceacuteu Por detraacutes aproximou-se dele Kumarbi e agarrou Anu pelos peacutes e puxou-o para baixo desde o ceacuteu Mordeu os seus muacutesculos a sua virilidade uniu-se como o bronze com as entranhas de Kumarbiraquo

79 Cf Hoffner 1998 4180 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 40-42 e 49 (Hoffner 1998 61-63) A tabuinha que

conteria a derrota inicial de Tešub face a Ullikummi estaacute bastante fragmentada e natildeo permite uma completa leitura deste episoacutedio contudo o facto de no sect49 Tešub se preparar para novo combate com Ullikummi demonstra que o primeiro enfrentamento natildeo foi favoraacutevel ao deus celeste

81 CTH 343 Canto do Deus LAMMA sectsect 6-8 A iii 1-38 (Hoffner 1998 47-48)82 KTU 11 12 KTU refere-se agrave numeraccedilatildeo dos textos ugaritianos seguida em Dietrich-Loretz-

-Sanmartiacuten 1995 Trad de KTU 11-12 em Olmo Lete 1981 157-7783 CTH 348 Canto de Ḫedammu sectsect 61-62 (Hoffner 1998 52)

124

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

Ea natildeo estaacute livre de protesto especialmente da parte de Kumarbi que decide criar Ḫedammu com o propoacutesito de derrubar o rei divino em exerciacutecio julgando assim escapar agrave anterior reprimenda de Ea dirigida a obter a conciliaccedilatildeo entre Tešub e Kumarbi84

O papel de moderador na luta pelo poder no Canto de Ḫedammu evoluiraacute para a tomada de partido por Tešub no Canto de Ullikummi Tašmišu aconselha Tešub derrotado no primeiro combate contra Ullikummi a procurar a ajuda de Ea85 que entatildeo descobre o segredo do poder de Ullikummi o apoio do seu peacute no ombro direito de Upelluri Ea e as Divindades Primevas usam entatildeo a faca de cobre primeva antes usada na separaccedilatildeo o ceacuteu da terra para arrancar Ulli-kummi do seu apoio em Upelluri86 facilitando assim o laquocaminho para o poderraquo de Tešub Poreacutem a accedilatildeo de Ea em prol de Tešub natildeo segue sem arrependimento visto que apoacutes o enfraquecimento de Ullikummi Ea entristece-se ao ver as mortes provocadas pela luta entre Tešub e o monstruoso filho de Kumarbi87

A estruturaccedilatildeo do poder nos mitos hurritas incluiu natildeo soacute a conceccedilatildeo de poderes moderadores caso de Ea mas tambeacutem de instacircncias de poderes con-selheiros como o de Šerrišu no Canto de Kumarbi que aconselha Tešub a natildeo amaldiccediloar os deuses e especialmente Ea88 A mesma instacircncia de poder con-selheiro pode ser encontrada na figura do vizir seja do rei em exerciacutecio seja de Kumarbi Quando Ullikummi se aproxima dos portotildees de Kummiya a cidade de Tešub Tašmišu irmatildeo e vizir do rei aconselha-o a pedir ajuda a Ea89 De certo modo esta ativa instacircncia conselheira dos mitos hurritas eacute paralela agrave funccedilatildeo de Ḫannaḫanna nalguns mitos de divindades ausentes90 O conselho que o poder em exerciacutecio obteacutem deriva tambeacutem em poder sancionatoacuterio quando se trata de Kumarbi Depois de este se unir a uma rocha Ullikummi acaba por nascer com a ajuda das Deusas Destino e das Deusas Matildee91 estas que para Kumarbi lhe

84 CTH 348 Canto de Ḫedammu sect 71 (Hoffner 1998 52-53)85 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 49 A ii 17-26 (Hoffner 1998 56)86 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 56-60 A iii 1-39 (Hoffner 1998 63-64)87 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 65 A iv 9-12 (Hoffner 1998 64)88 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 20 A iii 30-39 (Hoffner 1998 45) laquoO touro Šerrišu

respondeu a Tešub ldquoMeu senhor porque os estaacutes a amaldiccediloar [hellip oshellip] deuses Meu senhor porque os [estaacutes a amaldiccediloar] Porque estaacutes a amaldiccediloar tambeacutem Ea Ea ouvir-te-aacute [hellip] comhellip Natildeo eacute assim [hellip] eacute grande O mal eacute grande como a terra Poderoso() para ti [eacutehellip] [hellip] viraacute Tu natildeo seraacutes capaz de levantar [o teu()] pescoccedilo()rdquoraquo

89 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 48-49 A ii 10-19 (Hoffner 1998 62-63)90 Eg CTH 336 Mitos da Deusa Inara d) sectsect 1-2 2-12 (Hoffner 1998 31)91 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 11-12 A iii 10-18 (Hoffner 1998 57-58 para uma

traduccedilatildeo diferente Garciacutea Trabazo 2002 193-95) laquo[Ashellip] mulheres fizeram-na dar agrave luz As Deusas Destino e as Deusas Matildee [ergueram a crianccedila] e colocaram[-na] nos joelhos de Kumarbi Kumarbi comeccedilou [a divertir-se com] a crianccedila e comeccedilou por o limpar() e ele deu [agrave crianccedila()] um nome adequado Kumarbi comeccedilou por dizer para si mesmo ldquoQue nome [hei-de dar] agrave crianccedila que as Deusas Destino e as Deusas Matildee me deram Ele saiacuteu do corpo como um eixo Portanto que Ullikummi seja o seu nomeraquo (trad minha)

125

Joatildeo Paulo Galhano

deram o filho mais que a rocha donde saiu Ullikummi O ato competitoacuterio de Kumarbi tem assim sancionamento ou legitimaccedilatildeo divina

A mitologia hurrita concebe o poder tambeacutem como alianccedila de vaacuterias instacircncias Para aleacutem das intervenccedilotildees de Ea ora em prol de Tešub ao enfraquecer Ullikummi92 ora ajudando Kumarbi a libertar-se do seacutemen de Anu93 tambeacutem o banquete preparado pelo Deus Mar para Kumarbi no Canto de Ullikummi94 exemplifica o modo como o tema da alianccedila poliacutetica preside a boa parte do conflito entre Kumarbi e Tešub Jaacute o Deus Sol alinha pela facccedilatildeo de Tešub sendo o primeiro a ver Ullikummi dirige-se ao rei celeste para lhe dar conta do perigo que se aproxima apoacutes o que Tešub oferece um banquete ao Deus Sol95 fazendo do simpoacutesio o momento ideal de realizaccedilatildeo das alianccedilas poliacuteticas

A guerra promovida por Kumarbi em resultado do seu ressentimento pela perda de poder implica tambeacutem uma mediaccedilatildeo na luta pelo poder pois na maior parte do Ciclo de Kumarbi satildeo criados monstros ou deuses para fazer frente a Tešub Prata LAMMA Ḫedammu e Ullikummi lutam em vez de Kumarbi Pode ver-se esta situaccedilatildeo como paralela ao Mito de Illuyanka onde tambeacutem se indicia uma certa mediaccedilatildeo na luta pelo poder pois na primeira versatildeo deste mito o Deus Tempestade eacute ajudado por Ḫupašiya Aliaacutes a estupi-dez da serpente que se deixa enganar pela sua gulodice surge tambeacutem como paralela agrave estupidez de Ullikummi caracterizado pela cegueira e surdez uma mais-valia do ponto de vista de Kumarbi dado que nessa situaccedilatildeo fiacutesica natildeo ficaria vulneraacutevel agraves seduccedilotildees de Šawoška96 as mesmas a que Ḫedammu natildeo consegue resistir97

A conceptualizaccedilatildeo do poder nas narrativas mitoloacutegicas hurro-hititas passou ainda pela introduccedilatildeo de uma dimensatildeo temporal alargada visiacutevel natildeo soacute no facto de o poder ser sucessivamente transmitido durante quatro geraccedilotildees de deuses em intervalos de nove anos98 mas tambeacutem na valorizaccedilatildeo da sageza dos antepassados como ocorre no Canto de Ullikummi quando Tašmišu e Tešub procuram Ea com o propoacutesito de conhecer as laquopalavras antigasraquo aquelas dos antepassados divinos e que agora se convertem em instrumentos divinatoacuterios necessaacuterios para conhecer o ponto fraco de Ullikummi99

A integraccedilatildeo da mitologia hurrita tambeacutem trouxe para solo anatoacutelico uma nova dimensatildeo de encenaccedilatildeo literaacuteria do poder Logo na abertura do Canto de Kumarbi o sentido reverencial do poder surge quase graficamente reproduzido

92 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 60-63 A iii 30-55 (Hoffner 1998 64)93 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 13 A ii 39-54 (Hoffner 1998 43)94 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 6-9 A ii 1-37 (Hoffner 1998 57)95 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 25-31 A iv 41 ndash B i 13 (Hoffner 1998 59-60)96 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 35-37 B ii 5-30 (Hoffner 1998 60-61)97 CTH 348 Canto de Ḫedammu sectsect 111 ndash 152 (Hoffner 1998 53-54)98 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 2 e ss (Hoffner 1998 42 e ss)99 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 49 e ss A ii 17 e ss ( Hoffner 1998 63)

126

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

numa cena de serviccedilo ao rei em exerciacutecio

laquoHaacute muito tempo nos primeiros anos Alalu era rei no ceacuteu Alalu estava sen-tado no trono e o pesado Anu o primeiro entre os deuses permanecia perante ele Ele inclinava-se aos peacutes dele (de Alalu) e colocava-lhe na matildeo taccedilas de bebidaraquo100

Tal como sucederaacute quando Anu estaacute no trono e Kumarbi no lugar de Anu101 a hierarquizaccedilatildeo divina tem aqui um registo literaacuterio de verdadeira encenaccedilatildeo do movimento das divindades no espaccedilo real com o ministrum que oferece bebidas ao rei subservientemente inclinado perante ele Cena similar ocorre no Canto de Ullikummi quer nas jaacute citadas cenas de banquete entre o Deus Mar e Kumarbi e entre o Deus Sol e Tešub102 quer no episoacutedio em que Šawoška e Tešub sobem de matildeos dadas ao monte Ḫazzi para observar Ullikumi numa visatildeo que faz Tešub deixar transparecer a sua ira atraveacutes das feiccedilotildees do rosto103 A encena-ccedilatildeo do sentido reverencial do poder tem ainda um peculiar episoacutedio no Canto de Ullikummi quando o vizir de Tešub Tašmišu beija trecircs vezes os joelhos e quatro vezes os tornozelos de Ea104

No iniacutecio do Canto do Deus LAMMA a encenaccedilatildeo do poder evolui mesmo para uma maior dramatizaccedilatildeo da competiccedilatildeo divina quando LAMMA conse-gue ferir Šawoška no peito e fazer Tešub cair do ceacuteu

laquo[hellip] Enquanto Šawoška falava [com o seu irmatildeo Tešub] a seta de LAMMA [voou] e atravessou() Šawoška no peito Uma segunda seta de LAMMA [voou] Eles [Tešub e Šawoška] apressaram-se em direccedilatildeo ao carro para [hellip] [mas a seta de LAMMA] atravessou [hellip] de tal forma quehellip natildeo pocircde maishellip eles natildeo puderam fugir LAMMA obrigou [hellip] Ele tomou [hellip] e [hellip] atraacutes de Tešub A pedra [foi()] atraacutes de Tešub Ela bateu no ceacuteu e abalou [o ceacuteu como se fosse um pano] de tal modo que [Tešub] caiu [do ceacuteu] LAMMA [hellip] e tomou as reacutedeas e o [chicote] das matildeos de Tešubraquo105

O registo mitoloacutegico hurrita inclui assim uma dimensatildeo dramaacutetica da luta divina similar ateacute a alguns episoacutedios homeacutericos Aliaacutes o poder surge ateacute simbolicamente mediado no caso pelas laquoreacutedeasraquo e pelo laquochicoteraquo de Tešub

100 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 2 A i 5-11 (Hoffner 1998 42)101 CTH 344 Canto de Kumarbi sect 3 A i 12-17 (Hoffner 1998 42)102 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 6-9 A ii 1-37 e sectsect 25-31 A iv 41 ndash B i 13 (Hoffner

1998 57)103 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 32 B i 14-28 (Hoffner 1998 60)104 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 52 A ii 17-12 (Hoffner 1998 63) dado o estado

fragmentaacuterio da tabuinha que contecircm esta parte do texto eacute possiacutevel que o autor de tais atos seja Tešub e natildeo Tašmišu

105 CTH 343 Canto do Deus LAMMA sect 1-2 A i 2-20 (Hoffner 1998 46)

127

Joatildeo Paulo Galhano

demonstrando que a sofisticaccedilatildeo narrativa hurrita passou tambeacutem por uma maior mediaccedilatildeo

A dimensatildeo encenada do poder na mitologia hurrita incluiu tambeacutem mar-cas de introspeccedilatildeo numa verdadeira encenaccedilatildeo dos dilemas interiores de exerciacute-cio do poder como acontece num dos fragmentos do Canto de Ḫedammu106 mas eleva a encenaccedilatildeo literaacuteria a um grau superlativo com a introduccedilatildeo de elementos musicais na narrativa especialmente com a referecircncia aos instrumentos musicais designados por arkammi e galgaturi cuja natureza exata se desconhece ainda que parecendo serem de bronze107 Aliaacutes a associaccedilatildeo da muacutesica ao contrapoder repete-se no Canto de Ullikummi quando o Deus Mar organiza um banquete para Kumarbi onde estatildeo muacutesicos devidamente equipados com laquoinstrumentos de Ištarraquo108

A dramatizaccedilatildeo das narrativas hurritas ganha um focirclego maior com a amplificaccedilatildeo da estrutura sentimental dos agentes divinos atribuindo com frequecircncia registos emocionais humanos agraves principais divindades No Canto de Kumarbi Tešub entristece-se quando sabe da contestaccedilatildeo de Kumarbi agrave sua receacutem obtida realeza mas move-se imediatamente para um registo de arrogacircn-cia julgando-se superior a todos os deuses incluindo a Ea109 A emotividade de Tešub tem uma expressatildeo humanizada ainda mais evidente no seu choro cujas laquolaacutegrimas correm como torrentesraquo apoacutes ouvir a descriccedilatildeo de Ḫedammu da boca de Šawoška110 e depois de saber as novidades acerca de Ullikummi pelo Deus Sol111 A humanizaccedilatildeo do divino tem um desenvolvimento posterior no Canto da Libertaccedilatildeo em que Tešub tem como adversaacuterio natildeo um monstro criado por Kumarbi mas a sua situaccedilatildeo de pobreza e diacutevidas ou seja uma oposiccedilatildeo desper-sonalizada que pode tornar vulneraacutevel ateacute o rei divino em exerciacutecio112

Em resumo relativamente agraves conceccedilotildees de poder associadas agraves narrativas mitoloacutegicas hurro-hititas pode concluir-se que da hurritizaccedilatildeo resultou a intro-duccedilatildeo da categoria de realeza no concerto divino integrada num contexto de

106 CTH 348 Canto de Ḫedammu sect 71 (Hoffner 1998 52-53)107 CTH 348 Canto de Ḫedammu sect 11 (Hoffner 1998 51) laquoldquo[hellip] [O Deus Mar()] ouviu e o

seu espiacuterito regozijou-se() Ele [apoiou()] o seu peacute num banco Eles puseram um ritatildeo na matildeo do Deus Mar O grande Deus Mar comeccedilou por responder a Kumarbi ldquoO nosso acordo estaacute estabelecido Kumarbi Pai dos deuses Vem ateacute minha casa dentro de sete dias e [eu dar-te-ei] Šertapšuruḫi minha filha cujo comprimento eacute [hellip] e cuja largura eacute uma milha [Tu beberaacutes()] Šertapšuruḫi como uma doce natardquo Quando Kumarbi ouviu (isto) o seu [espiacuterito] regozijou-se A noite caiacuteu [hellip] Eles levaram o grande Deus Mar da casa de Kumarbi acompanhado pela (muacutesica dos) brocircnzeos instrumentos arkammi e galgaturi e acompanharam-no a sua casa (Aiacute) ele sentou-se numa boa cadeira feita de [hellip] O Deus Mar esperou sete dias por Kumarbiraquo

108 CTH 345 Canto de Ullikummi sect 8 A ii 14-19 C ii 7-21 (Hoffner 1998 57)109 CTH 344 Canto de Kumarbi sectsect 18-19 A iii 2-29 (Hoffner 1998 44)110 CTH 348 Canto de Ḫedammu sectsect 51-52 (Hoffner 1998 52)111 CTH 345 Canto de Ullikummi sectsect 30-32 B i 1-28 (Hoffner 1998 60)112 CTH 789 Canto da Libertaccedilatildeo sectsect 42-46 ii 4rsquo ndash 21rsquo (Hoffner 1998 75)

128

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

rivalidades divinas de base familiar em que a instituiccedilatildeo da paternidade ou o modelo patriarcal surge com destacado relevo Aleacutem disso as estruturas de po-der associadas ao mundo divino complexificaram-se com a inserccedilatildeo de poderes moderadores conselheiros e sancionatoacuterios integrados em alianccedilas poliacuteticas que associaram a verticalidade do mando agrave dimensatildeo coletiva do poder com frequecircncia disputado atraveacutes de mediadores divinos ou de criaccedilotildees monstruo-sas A superlativa encenaccedilatildeo do poder a que se associa o recurso ao siacutembolo como mediador literaacuterio de representaccedilatildeo a par da dramatizaccedilatildeo das narrativas hurritas surge como um importante contributo hurrita agrave mitologia dos Hititas

Riqueza e complexidade anatoacutelica antigaResta agora discutir se o aporte hurrita agrave mitologia hitita foi de todo

inovador face agrave natureza de mitos anatoacutelicos antigos mais complexos como o Desaparecimento do Deus Sol e Telipinu e a Filha do Deus Mar No primeiro destes dois mitos o Deus Mar enfrenta o Deus Tempestade atraveacutes de um processo radicalmente diferente do que ocorre nas narrativas hurritas o Deus Tempestade enfrenta o problema do desaparecimento do Deus Sol de forma atiacutepica pela presenccedila de uma forccedila negativa designada pela palavra hitita ḫaḫḫima traduziacutevel para inglecircs por laquoFrostraquo113 para castelhano por laquoLetargoraquo114 para italiano por laquoGeloraquo115 e para portuguecircs por laquoGeadaraquo ou laquoGeloraquo116

O mito do Desaparecimento do Deus Sol conceptualiza o poder divino como um combate entre um princiacutepio de vida concretizado no Deus Tempestade e um princiacutepio de morte materializado em ḫaḫḫima ou seja tal como sucede nos mitos hurritas olha-se para o poder divino como resultado de uma oposiccedilatildeo inicialmente caracterizada como rivalidade entre o Deus Mar e o Deus Tempestade Poreacutem diferentemente das narrativas mitoloacutegicas hurritas o desiacutegnio deste combate natildeo estaacute na obtenccedilatildeo do lugar cimeiro de rei dos deuses Parece haver mais semelhanccedilas com o tiacutepico mito associado ao ritual mugawar em que uma divindade desaparece e depois urge encontrar para que a ordem coacutesmica seja restabelecida ainda que difira deste tipo de mitos anatoacutelicos antigos pelo facto de o desaparecimento do Deus Sol natildeo ter causa ou origem indeterminada mas decorrer da disputa entre o Deus Mar e o Deus Tempestade a fim de se saber qual dos dois eacute o mais forte117

Ao desaparecimento do Deus Sol segue-se o aparecimento do seu contraacuterio ḫaḫḫima uma forccedila paralisante e bloqueadora do crescimento da vegetaccedilatildeo que parece pocircr em causa o poder do Deus Tempestade ainda que sem qualquer

113 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol (Hoffner 1998 27 e ss)114 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol (Bernabeacute 1987 62 e ss)115 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol (Pecchioli Daddi-Polvani 1990 63 e ss)116 Galhano 2010 351117 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol sectsect 1-2 A i 1-10 (Hoffner 1998 27)

129

Joatildeo Paulo Galhano

disputa por um hipoteacutetico lugar de rei divino A natureza inversa dos efeitos de ḫaḫḫima comparativamente aos efeitos do Deus Sol118 fazem dele mais do que uma forccedila negativa a ausecircncia de uma forccedila divina positiva jaacute que ḫaḫḫima eacute o que estaacute quando o Deus Sol natildeo estaacute ou seja um negativo do Deus Sol sem estatuto de laquodeusraquo Neste aspeto pode ser encontrada alguma semelhanccedila entre o Mito de Illuyanka e o mito do Desaparecimento do Deus Sol em virtude de em ambos os textos se tratar de uma luta entre o Deus Tempestade e um princiacutepio de mal ainda que a serpente do Mito de Illuyanka seja uma forccedila positivamente maligna ao passo que ḫaḫḫima se apresenta como ausecircncia de uma forccedila divina benigna o Deus Sol

Para lidar com o problema de ḫaḫḫima o Deus Tempestade envia con-secutivamente outras entidades divinas o Vento (irmatildeo do Deus Tempestade) o deus da guerra ZABA4BA4 o deus LAMMA e finalmente Telipinu (filho do Deus Tempestade) todos derrotados por ḫaḫḫima Na parte final do texto hoje perdida supotildee-se que num enfrentamento final protagonizado pelo Deus Tem-pestade ḫaḫḫima fosse finalmente vencido119 Tambeacutem neste aspeto se podem encontrar semelhanccedilas com as narrativas mitoloacutegicas hurritas a mediaccedilatildeo na luta pelo poder verificada nas narrativas hurritas (em que Kumarbi se opotildee a Tešub por intermeacutedio dos deuses Prata e LAMMA e dos monstros Ḫedammu e Ullikummi) tem paralelo no facto do Deus Tempestade enfrentar ḫaḫḫima tam-beacutem atraveacutes da mediaccedilatildeo de outras divindades (Vento ZABA4BA4 LAMMA e Telipinu)

Tambeacutem o Deus Mar luta por intermeacutedio de ḫaḫḫima ou seja de forma igualmente indireta A mediaccedilatildeo na luta pelo poder surge assim como mais um denominador comum agraves narrativas mitoloacutegicas hurritas e ao mito do Desapare-cimento do Deus Sol Pode ateacute ressalvar-se que na leitura de alguns hititoacutelogos o real opositor do Deus Tempestade natildeo seria o Deus Mar mas sim o Deus Sol que se teria ausentado talvez propositadamente para testar o poder do seu pai (do Deus Tempestade) atraveacutes da sua ausecircncia ie da presenccedila de ḫaḫḫima120 Em todo o caso a oposiccedilatildeo ocorre sempre entre dois deuses que se enfrentam por intermeacutedio de outros divindades ou natildeo

O Desaparecimento do Deus Sol interessa bastante em razatildeo de nele se cru-zarem os dois motivos baacutesicos da mitologia anatoacutelica antiga o tema da luta do Deus Tempestade com um adversaacuterio que natildeo obstante o sucesso inicial acaba derrotado como no Mito de Illuyanka e o tema da ausecircncia da divindade que provoca o desaparecimento de todos os bens da terra apenas regressando com a realizaccedilatildeo de um ritual do tipo mugawar O facto de na base do desaparecimento

118 Razatildeo pela qual a traduccedilatildeo para Portuguecircs poderia ser laquoGeloraquo de forma semelhante agrave soluccedilatildeo de traduccedilatildeo para Italiano

119 Cf Pecchioli Daddi-Polvani 1990 58-59120 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 60

130

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

do Deus Sol estar a rivalidade entre o Deus Mar e o Deus Tempestade coloca o mito do Desaparecimento do Deus Sol exatamente na interseccedilatildeo entre os mitos anatoacutelicos antigos e as narrativas mitoloacutegicas hurritas

O paralelo do Desaparecimento do Deus Sol com o Mito de Illuyanka parece contudo ter limites significativos visto que se neste uacuteltimo a luta se daacute entre o senhor das aacuteguas pluviais (o Deus Tempestade) e o detentor das aacuteguas subter-racircneas (Illuyanka) no mito do Desaparecimento do Deus Sol a rivalidade existe entre o Deus Tempestade enquanto senhor das aacuteguas doces e o soberano das aacuteguas salgadas o Deus Mar ainda que em ambos os casos venccedila o detentor das aacuteguas mais uacuteteis aos fins agriacutecolas Curiosamente em ambas as narrativas haacute preocupaccedilatildeo em preservar os olhos do Deus Tempestade121 instrumento essen-cial da sua accedilatildeo Natildeo obstante o paralelo do mito do Desaparecimento do Deus Sol com os outros mitos de divindades ausentes parece ser mais significativo do que aquele com o Mito de Illuyanka ateacute porque em ambos haacute recurso aos conselhos de Ḫannaḫanna122

Por responder fica a questatildeo de saber se foi o mito do Desaparecimento do Deus Sol que por cisatildeo deu origem aos temas baacutesicos da mitologia anatoacutelica antiga ou se inversamente foram estes temas que fundindo-se e sofrendo contaminaccedilatildeo hurrita produziram o mito do Desaparecimento do Deus Sol A intuiccedilatildeo diria que a simplicidade (dos temas baacutesicos da mitologia anatoacutelica antiga) teraacute antecedido a complexidade daquele mito relativo ao Deus Sol assim se estabelecendo uma hipoteacutetica cronologia relativa da mitologia anatoacutelica O problema torna-se de mais difiacutecil resoluccedilatildeo se lembrarmos que a presenccedila de ar-caiacutesmos linguiacutesticos e a existecircncia de um fragmento in ductus original em hitita antigo datam o mito do Desaparecimento do Deus Sol de um periacuteodo bastante recuado na histoacuteria hitita O problema complica-se em virtude de nos mitos de divindades ausentes os efeitos do desaparecimento da divindade se darem numa realidade socioeconoacutemica mais complexa e estruturada do que no mito do desaparecimento do Deus Sol123 assim se colocando este mito em fase anterior agravequeles Efetivamente se a maior parte dos mitos de divindades ausentes tem o seu referente quer no campo quer nos homens casas altares de deuses e recin-tos de animais no Desaparecimento do Deus Sol esses referentes estatildeo apenas na realidade agriacutecola e pastoral

Para laacute das rivalidades divinas presentes no Desaparecimento do Deus Sol importa saber se aiacute os poderes estatildeo mais verticalizados agrave maneira das narrativas mitoloacutegicas hurritas ou mais horizontalizados como sucede na generalidade dos mitos de divindades ausentes A estrateacutegia seguida pelo Deus Mar para

121 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol sect 7 B i 32-41 (Hoffner 1998 28) e CTH 321 Mito de Illuyanka (segunda versatildeo) sectsect 21 e ss D iii 2 e ss (Hoffner 1998 13)

122 CTH 323 Desaparecimento do Deus Sol sect 7 B i 32-41 (Hoffner 1998 28)123 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 61-63

131

Joatildeo Paulo Galhano

enfrentar o Deus Tempestade como visto passa pela ocultaccedilatildeo do Deus Sol o que poderia significar que do ponto de vista do Deus Mar o Deus Sol seria mais forte e superior do que o seu proacuteprio pai o Deus Tempestade assim se configurando uma situaccedilatildeo similar ao Canto de Kumarbi em que as geraccedilotildees mais jovens de deuses satildeo mais poderosas do que as mais antigas A parte final do mito contudo demonstra que esta perspetiva do Deus Mar eacute errada dado que presumivelmente o Deus Tempestade acabaraacute por derrotar ḫaḫḫima

Se o Deus Sol surge em primeiro lugar nas listas de divindades registadas nos tratados hititas124 e se no mito do Desaparecimento de Telipinu ele eacute apeli-dado de laquogrande Deus Solraquo125 ou mesmo de laquoDeus Sol dos Deusesraquo noutros loci126 em nenhuma passagem dos mitos anatoacutelicos antigos ele surge qualificado como rei dos deuses ainda que a funccedilatildeo de juiz e de dispensador da justiccedila que lhe eacute comummente adstrita o coloque num patamar superior em relaccedilatildeo aos humanos e em particular ao rei do Ḫatti assim cumprindo a sua funccedilatildeo de laquopas-tor da humanidaderaquo por intermeacutedio do rei127 Ou seja a organizaccedilatildeo do poder no Desaparecimento do Deus Sol assemelha-se mais com a horizontalidade dos mitos de divindades ausentes do que com a riacutegida verticalidade do mando das narrativas mitoloacutegicas hurritas

A estruturaccedilatildeo mitoloacutegica em ciclo visiacutevel nas narrativas hurritas se estaacute praticamente ausente da mitologia anatoacutelica antiga pode ter ocorrido no Desa-parecimento do Deus Sol e no texto Telipinu e a Filha do Deus Mar A razatildeo de tal possibilidade prende-se com a coincidecircncia de figuras divinas em ambas as narrativas (o Deus Sol o Deus Tempestade Telipinu o Deus Mar e a sua filha) e com o facto de a filha do Deus Mar ser dada como esposa a Telipinu no mito Te-lipinu e a Filha do Deus Mar e surgir no Desaparecimento do Deus Sol a chamar o seu pai laquodo ceacuteuraquo para onde teria ido apoacutes ser dada como esposa a Telipinu128

O tema deste hipoteacutetico ciclo estaria centrado na luta entre o Deus Mar e o Deus Tempestade em que a refrega entre as duas divindades no Desapareci-mento do Deus Sol teria tido um preacutevio episoacutedio de negociaccedilatildeo entre o Deus Mar e o Deus Tempestade cujo mediador eficaz teria sido Telipinu ao conseguir ganhar uma esposa e fazer com que o Deus Sol regressasse ao seu lugar habitual A proposta de leitura dos mitos do Desaparecimento do Deus Sol e Telipinu e a

124 Gurney 1954 139125 CTH 324 Desaparecimento de Telipinu sect 2 A i 4-6 (Hoffner 1998 18)126 CTH 671 Sacrifiacutecio e Oraccedilatildeo ao Deus Tempestade de Nerik sect 9 rev 11-17 (Hoffner 1998

24) e CTH 336 Mitos da Deusa Inara e) sect 4 A rev 2-5 (Hoffner 1998 32)127 Bryce 2002 141-42 Šuppiluliuma adotou a titulatura de laquoMinha majestade Šuppiluliuma

Grande Rei Rei do Ḫatti Heroacuteihellipraquo em que a expressatildeo laquoMinha Majestaderaquo corresponde ao heterograma dUTUŠI que contecircm o elemento de ligaccedilatildeo ao Deus Sol hitita cujo ideograma era dUTU assim se evidenciando quer a importacircncia do Deus Sol para o exerciacutecio da justiccedila terrena quer a quase identificaccedilatildeo do rei com aquele deus (Cf Beckman 2002 37-41)

128 Pecchioli Daddi-Polvani 1990 61-62

132

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

Filha do Deus Mar como ciclo que se pode reputar razoaacutevel foi mesmo alargada no sentido de incluir tambeacutem o mito do Desaparecimento de Telipinu que daria sequecircncia agravequeles dois textos Esta inclusatildeo contudo tem pouca sustentaccedilatildeo dado que neste uacuteltimo a divindade natildeo desaparece em consequecircncia de alguma luta divina como ocorre no Desaparecimento do Deus Sol e em Telipinu e a Filha do Deus Mar mas antes por motivos imprevistos e desconhecidos que natildeo satildeo sequer relacionaacuteveis com alguma falta humana129

Em todo o caso a fixaccedilatildeo da trama inicial do mito Telipinu e a Filha do Deus Mar na tensatildeo entre dois deuses ndash o Deus Tempestade e o Deus Mar ndash ainda que possa ser mera reflexatildeo mitoloacutegica sobre fenoacutemenos naturais aproxima tambeacutem este mito das narrativas hurritas cujo tema principal estaacute na disputa entre Kumarbi e Tešub ainda que naquele mito sem quaisquer preocupaccedilotildees pela realeza divina Verifica-se ainda outra analogia do mito Telipinu e a Filha do Deus Mar com as narrativas mitoloacutegicas hurritas relativa agrave instacircncia do poder conselheiro se nas narrativas hurritas essa instacircncia surge concretizada por exemplo em Šerrišu e Tašmišu que aconselham Tešub no mito Telipinu e a Filha do Deus Mar eacute Ḫannaḫanna quem interveacutem para dar conselhos ao Deus Tempestade relativos ao pagamento do dote ao Deus Mar130 A caracterizaccedilatildeo de Ḫannaḫanna como um poder conselheiro no mito Telipinu e a Filha do Deus Mar tem confirmaccedilatildeo no Desaparecimento do Deus Sol em que o Deus Tempestade apoacutes ver frustradas todas as tentativas de derrotar o Deus Mar atraveacutes de terceiros decide procurar justamente Ḫannaḫanna

O facto de o Deus Mar entregar a sua filha a Telipinu juntamente com a libertaccedilatildeo do Deus Sol pode revelar uma estrateacutegia de aproximaccedilatildeo do Deus Mar ao Deus Tempestade ou seja o Deus Mar pode ter usado o casamento de sua filha como estrateacutegia de obtenccedilatildeo de poder assim se aproximando da divindade que ele proacuteprio qualifica de poderosa Esta leitura aproxima o mito Telipinu e a Filha do Deus Mar da segunda versatildeo do Mito de Illuyanka em que tambeacutem o casamento serve de expediente para a obtenccedilatildeo de poder no caso o casamento do filho do Deus Tempestade com a filha de Illuyanka com o objetivo de reaver os olhos e o coraccedilatildeo perdidos no primeiro combate com a serpente

Finalmente em abono da riqueza da mitologia anatoacutelica antiga segura-mente comparaacutevel agrave fertilidade de conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder das narrativas hurritas pode ainda ver-se que a accedilatildeo maleacutefica de ḫaḫḫima no Desaparecimento do Deus Sol tem um episoacutedio similar no mito O Conjuro da Atadura em que tambeacutem a forccedila maleacutefica Grande Rio surge como agente principal das complica-ccedilotildees sofridas quer no mundo agriacutecola e pastoral quer na esfera humana com a

129 Galhano 2010 349-58130 CTH 322 Telipinu e a Filha do Deus Mar sectsect 5-6 A ii 6-25 (Hoffner 1998 26-27)

133

Joatildeo Paulo Galhano

particularidade de neste mito tambeacutem o Deus Tempestade participar na accedilatildeo maleacutefica que prejudica natildeo soacute homens e animais mas tambeacutem a divindade LAMMA131

Consideraccedilotildees finais

A hurritizaccedilatildeo eacutetnica do territoacuterio hitita derivou de um longo processo de contactos populacionais entre Hititas e Hurritas tendo iniacutecio bem cedo na histoacuteria da Anatoacutelia A guerra e a poliacutetica expansionista dos Hititas foram dos principais agentes propiciadores deste intercacircmbio eacutetnico ainda que a hurritiza-ccedilatildeo populacional da Anatoacutelia tambeacutem tenha ocorrido em tempo de paz entre Ḫattuša e o Mitanni A ingerecircncia egiacutepcia no norte da Siacuteria designadamente com o estabelecimento do acordo mitano-egiacutepcio no reinado de Arnuwanda reforccedilou a presenccedila hurrita nas fronteiras do reino hitita preparando a substan-ciaccedilatildeo do perfil hurro-hitita da cultura anatoacutelica no tempo de Šuppiluliuma I As instituiccedilotildees poliacuteticas imperiais mormente a vice-realeza promoveram ainda mais essa condicionada fusatildeo cultural entre Hurritas e Hititas Desta perspetiva deve valorizar-se o papel de elementos como Puduḫepa na amalgamaccedilatildeo cultural dos setores hurrita e hitita desembocando mais tarde jaacute com Tudḫaliya IV no siacutembolo da hurritizaccedilatildeo religiosa hitita por excelecircncia os relevos de Yazılıkaya

Vimos que nos mitos anatoacutelicos de divindades ausentes exceccedilatildeo feita ao mito do Desaparecimento do Deus Sol e a outros mitos menores sobressaem conceccedilotildees de interdependecircncia e correlaccedilatildeo divina alinhadas pelo diapasatildeo da necessidade de harmonia celeste para o bom andamento da ordem coacutesmica ainda que estes primeiros mitos da Anatoacutelia estejam ligados a rituais destinados a superar momentos de crise A tendecircncia natildeo hieraacuterquica dos mitos anatoacutelicos antigos se tambeacutem assume registos de complementaridade no reconhecimento de pares divinos como eacute exemplo a dupla formada pelo Deus Tempestade e pela Deusa Sol chega a associar uma certa pusilanimidade a alguns agentes divinos Em todo o caso alguns deuses do panteatildeo autoacutectone da Anatoacutelia parecem ter algum ascendente sobre outras divindades como acontece exemplarmente com Ḫannaḫanna

A tendecircncia natildeo hieraacuterquica dos mitos anatoacutelicos antigos de divindades ausentes dissipa-se no seu quase contemporacircneo Mito de Illuyanka132 onde se observa uma modalidade de luta do Deus Tempestade com uma forccedila maacute generi-camente designada laquoserpenteraquo Aiacute a luta pelo poder simboliza a vitoacuteria do bem sobre o mal mas tambeacutem a competiccedilatildeo pelo domiacutenio das aacuteguas subterracircneas

131 CTH 390 O Conjuro da Atadura (Bernabeacute 1987 86-87)132 Cf Galhano 2010 349-58 onde se argumenta pela posteridade do Mito de Illuyanka em

relaccedilatildeo aos mitos de divindades ausentes fundamentando-se tal proposta no facto de no Mito de Illuyanka haver uma conceccedilatildeo teodiceica inexistente nos mitos de divindades ausentes

134

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

e das aacuteguas pluviais reconhecendo-se a superior valia das segundas para fins agriacutecolas O Mito de Illuyanka ostenta uma estoacuteria de recuperaccedilatildeo de poder perdido por parte do Deus Tempestade que aquando da sua primeira derrota eacute abandonado pelo coletivo divino apenas recuperando a sua reputaccedilatildeo depois de um segundo combate com a serpente Tal aspeto demonstra que a solidariedade divina dos mitos de divindades ausentes estaacute ali desaparecida

Com a adoccedilatildeo das narrativas mitoloacutegicas hurritas cujo aporte maior se concretizou no Ciclo de Kumarbi eacute introduzida a ideia de realeza divina dispu-tada em sucessivas conjunturas geracionais Uma vez Tešub nomeado rei divino o Ciclo de Kumarbi desenvolve o ressentimento de Kumarbi por ter sido destro-nado O poder surge aiacute integrado em duas linhagens familiares de divindades cada uma delas associada ou ao domiacutenio celeste ou ao mundo inferior sendo possiacutevel que esta base familiar da disputa possa ter tido um referente arcaico em mitos que reviviam e ritualizavam a oposiccedilatildeo entre as forccedilas do mundo inferior e potecircncias de ordem celeste Assim as narrativas mitoloacutegicas hurritas adotadas pelos Hititas valorizam o horizonte familiar A belicosidade associada agraves narrativas mitoloacutegicas hurritas se pode ser considerada um reflexo do con-texto poliacutetico hurrita em permanente tensatildeo com Ḫattuša tem tambeacutem fortes possibilidades de consubstanciar uma forma narrativa de registo do traumaacutetico coisa que natildeo acontece nem no Mito de Illuyanka nem nos mitos de divindades ausentes (exceccedilatildeo feita ao mito do Desaparecimento do Deus Sol) que na sua essecircncia tendem a valorizar a superaccedilatildeo da crise e a vitoacuteria das forccedilas celestes favoraacuteveis agrave agricultura

A complexificaccedilatildeo que resultou da integraccedilatildeo do Ciclo de Kumarbi no Ḫatti traduziu-se na adoccedilatildeo de diferentes instacircncias de poder Dentre as mais importantes destacaacutemos natildeo soacute a instacircncia do poder moderador e legitimante concretizado no deus Ea mas tambeacutem os niacuteveis de poder conselheiro encor-pados tanto em Šerrišu como nos vizires do poder e do contrapoder factos que permitiram estabelecer um paralelo com a conceccedilatildeo de poder associada agrave deusa Ḫannaḫanna dos mitos de divindades ausentes Aquela instacircncia do poder conselheiro deriva em poder sancionatoacuterio das Deusas Destino e das Deusas Matildee junto de Kumarbi especialmente no momento de criaccedilatildeo de Ullikummi Em todo o caso a ideia de alianccedila de vaacuterias instacircncias de poder subjaz a toda a mitologia do Ciclo de Kumarbi A mitologia de origem hurrita encena assim uma conceccedilatildeo de poder divino coletivo ainda que bastante hierarquizado e multi-estruturado O ressentimento de Kumarbi ao resultar na criaccedilatildeo de monstros maleacuteficos e de divindades concorrentes de Tešub demonstrou ainda que as narrativas do Ciclo de Kumarbi conceptualizaram as lutas pelo mando como uma accedilatildeo mediada do opositor ao poder

A multi-estruturaccedilatildeo do poder nas narrativas de origem hurrita incluiu ainda a introduccedilatildeo de uma dimensatildeo temporal alargada Esta conceptualiza-ccedilatildeo dos governos divinos foi tambeacutem acompanhada de uma nova dimensatildeo

135

Joatildeo Paulo Galhano

literaacuteria do poder em diversas ocasiotildees representada de forma extremamente graacutefica A encenaccedilatildeo literaacuteria levada a cabo nas narrativas mitoloacutegicas hurri-tas ganhou uma dramatizaccedilatildeo da competiccedilatildeo divina ainda maior atraveacutes da fixaccedilatildeo de cenas de pungente belicosidade divina e com a adoccedilatildeo literaacuteria de siacutembolos do poder Esta encenaccedilatildeo literaacuteria sem paralelo na mitologia anatoacute-lica antiga incluiu mesmo registos de introspeccedilatildeo divina trazendo os dilemas interiores do exerciacutecio do poder para o niacutevel mitoloacutegico No Ciclo de Kumarbi haacute ainda um adicional registo dramaacutetico com a introduccedilatildeo de elementos mu-sicais e com a estruturaccedilatildeo sentimental dos deuses em tons frequentemente humanizados

Natildeo obstante a variedade das conceccedilotildees de poder visiacuteveis nas narrativas mitoloacutegicas hurritas alguns mitos anatoacutelicos antigos mostram tambeacutem uma extraordinaacuteria riqueza e complexidade conceptual A luta entre deuses tem registo quer no mito do Desaparecimento do Deus Sol quer no texto Telipinu e a Filha do Deus Mar ainda que sem recurso agrave categoria hurrita de rei divino Esta competiccedilatildeo apresenta semelhanccedilas com o Mito de Illuyanka pelo facto de tambeacutem nos mitos do Desaparecimento do Deus Sol e Telipinu e a Filha do Deus Mar haver uma oposiccedilatildeo entre o Deus Tempestade e um princiacutepio de mal concretizado em ḫaḫḫima

As conceccedilotildees de poder no mito do Desaparecimento do Deus Sol satildeo comparaacuteveis aos registos das narrativas hurritas em virtude de em ambos os casos a competiccedilatildeo divina ocorrer atraveacutes da mediaccedilatildeo de outros agentes rivais dirigidos pelos oponentes principais O mito do Desaparecimento do Deus Sol estaacute mesmo na exata interseccedilatildeo conceptual dos mitos anatoacutelicos antigos com as narrativas hurritas visto cruzar os temas da ausecircncia divina tiacutepica dos mitos de divindades ausentes e da luta de um deus com uma forccedila maacute caracteriacutestica do Mito de Illuyanka com a conceptualizaccedilatildeo do poder em rivalidade essencial ao Ciclo de Kumarbi

Natildeo se podendo saber se foi o mito O Desaparecimento do Deus Sol que por cisatildeo originou os temas mais elementares da mitologia anatoacutelica antiga ndash a ausecircncia divina e a oposiccedilatildeo entre o Deus Tempestade e uma forccedila maacute ndash ou se inversamente foram esses temas que se fundiram e deram origem agravequele mito posteriormente enriquecido com o tema hurrita da rivalidade divina natildeo se pode estabelecer com seguranccedila uma cronologia relativa da mitologia hurro-hitita Contudo pode afirmar-se que a estruturaccedilatildeo do poder no Desapa-recimento do Deus Sol assemelha-se mais com a horizontalidade da generalidade dos mitos anatoacutelicos antigos do que com a verticalidade do poder das narrativas do Ciclo de Kumarbi A estruturaccedilatildeo narrativa em ciclo visiacutevel no Ciclo de Ku-marbi pode tambeacutem ter tido paralelo na mitologia anatoacutelica antiga dado que o mito do Desaparecimento do Deus Sol pode ser a consequecircncia diegeacutetica de Telipinu e a Filha do Deus Mar O texto Telipinu e a Filha do Deus Mar conteacutem tambeacutem outros ingredientes comuns ao Ciclo de Kumarbi designadamente a

136

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

conceptualizaccedilatildeo de poderes conselheiros na orquestra divinaEm suma se a hurritizaccedilatildeo dos conteuacutedos mitoloacutegicos trouxe para solo

anatoacutelico novas estruturas de sentido assentes em novas conceccedilotildees de poder a mitologia anatoacutelica antiga continha jaacute uma grande diversidade de ingredientes conceptuais razatildeo pela qual natildeo exageramos o valor do aporte hurrita agraves conce-ccedilotildees de poder da mitologia anatoacutelica mais antiga

137

Joatildeo Paulo Galhano

Bibliografia

Barjamovic Gojko 2011 A Historical Geography of Anatolia in the Old Assyrian Period Copenhagen Museum Tusculanum Press

Beckman Gary 2007 ldquoFrom Ḫattuša to Carchemish The Latest on Hittite Historyrdquo In Current Issues and the Study of the Ancient Near East ed Mark W Chavalas Claremont California Regina Books

mdashmdashmdash 2002 ldquolsquoMy Sun-Godrsquo Reflections of Mesopotamian Conceptions of Kingship among the Hittitesrdquo In Ideologies as Intercultural Phenomena Proceedings of the Third Annual Symposium of the Assyrian and Babylonian Intellectual Heritage Project Held in Chicago USA October 27-31 2000 ed A Panaino e G Pettinato 37-43 Milano Universitagrave di Bologna

Beckman Gary e Harry Hoffner eds 1999 Hittite Diplomatic Texts 2ordf ed Atlanta Georgia Scholars Press Society of Biblical Literature

Bernabeacute Alberto 1987 Textos Literarios Hetitas Madrid Alianza EditorialBiacuteblia Sagrada 1995 Lisboa Difusora BiacuteblicaBryce Trevor 2005 The Kingdom of the Hittites Oxford Oxford University Pressmdashmdashmdash 2002 Life and Society in the Hittite World Oxford Oxford University PressCarreira Joseacute Nunes 2009 Mitos e Lendas Hititas Lisboa Colibrimdashmdashmdash 1999 Historiografia Hitita Lisboa Colibri Centro de Histoacuteria da

Universidade de LisboaCollins Billie Jean 2007 The Hittites and their World Atlanta Society of Biblical

LiteratureDietrich Manfried Oswald Loretz e Joaquiacuten Sanmartiacuten eds 1995 The

Cuneiform Alphabetic Texts from Ugarit Ras Ibn Hani and other places (KTU) Muumlnster Ugarit-Verlag

Eder W e J Renger eds 2007 Chronologies of the Ancient World Names Dates and Dynasties Leiden Boston Brill

Ferro Marc 2009 O Ressentimento na Histoacuteria Lisboa Editorial TeoremaFriedrich Johannes 1991 Kurzgefaszligtes Hethitisches Woumlrterbuch Heidelberg

Carl Winter ndash UniversitaumltsverlagGalhano Joatildeo Paulo 2012 Espaccedilo Tempo e Poder nos Mitos do Ḫatti de Ugarit

e de Hesiacuteodo Uma Morfologia Comparativa Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Histoacuteria Antiga apresentada agrave Universidade de Lisboa

mdashmdashmdash ldquoRepresentaccedilotildees e usos humanos nos mitos anatoacutelicos antigosrdquo Cadmo 20347-67

Garciacutea Trabazo Joseacute Virgilio 2002 Textos Religiosos Hititas Mitos Plegarias y Rituales Madrid Trotta

138

A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita

Gurney O R 1954 The Hittites Harmondsworth Penguin BooksGuumlterbock Hans G H Hoffner Jr e Theo van den Hout 2002-2013 The Hittite

Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago Vol Š Fascicles 1 2 e 3 Chicago The Oriental Institute

mdashmdashmdash 1997 The Hittite Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago Vol P Chicago The Oriental Institute

mdashmdashmdash 1989 The Hittite Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago Vol L-N Chicago Oriental Institute

Hoffner Harry 2009 Letters from the Hittite Kingdom Atlanta Society of Biblical Literature

mdashmdashmdash 1998 Hittite Myths 2ordf ed Atlanta Georgia Scholar PressKlengel Horst 1998 Geschichte des hethitischen Reiches Leiden BrillLaroche Emmanuel 1971 Catalogue des Textes Hittites Eacutetudes et Commentaires

Paris KlincksieckLarsen Mogens Trolle 2015 Ancient Kanesh A Merchant Colony in Bronze Age

Anatolia Cambridge Cambridge University PressLiverani Mario 2001 International Relations in the Ancient Near East 1600 ndash

1100 BC New York ndash BasingstokeMacQueen J G 1959 ldquoHattian Mythology and Hittite Monarchyrdquo Anatolian

Studies 9171-88Neu Erich ed trad e comentaacuterio 1996 Das hurritische Epos der Freilassung

I Untersuchungen zu einem hurritisch-hethitischen Textensemble aus Ḫattuša Wiesbaden Harrassowitz Verlag

Olmo Lete G del 1981 Mitos y Leyendas de Canaan Segun la Tradicion de Ugarit Madrid Ediciones Cristiandad

Pecchioli Daddi Franca e Anna Maria Polvani 1990 La Mitologia Ittita Brescia Paideia Editrice

Pritchard J B ed 1969 Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament 3ordf ed Princeton New Jersey Princeton University Press

Rieken E Daniel Schwemer Gerfrid Muumlller Doris Prechel e Gernot Wilhelm dir 2009- Mythen der Hethiter in Hethitologie Portal Mainz Em httpswwwhethportuni-wuerzburgde

Watkins Calvert 2001 ldquoAn Indo-European linguistic area and its characteristics Ancient Anatoliardquo In Areal Diffusion and Genetic Inheritance ed P Aikhenvald e R Dixon 44-63 Oxford Oxford University Press

Wegner Ilse 2007 Einfuumlhrung in die hurritisch Sprache 2 uumlberarbeite Auflage Wiesbaden Harrassowitz Verlag

Yigit Turgut 2016 ldquoThe political and cultural meanings of the Hittite empire period rock monumentsrdquo Athens Journal of History 2 (1)59-67

139

Elisa de Sousa

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio (Imperialism in the Phoenician colonial world)

Elisa de Sousa(esousacampusulpt 0000-0003-3160-108X)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras UNIARQ-Centro de Arqueologia

laquoInformal imperialism can exist without colonialism but colonialism cannot exist without imperialismraquo

B Bush

Resumo - A colonizaccedilatildeo feniacutecia no Mediterracircneo Central Ocidental e nas costas atlacircnticas teve um impacto muito profundo natildeo soacute em termos socioeconoacutemi-cos mas tambeacutem culturais nos territoacuterios ultramarinos A heranccedila oriental iraacute sobrepor-se em muacuteltiplas ocasiotildees ao substrato autoacutectone precedente atraveacutes de relaccedilotildees de domiacutenio que podem ser interpretadas no acircmbito de um imperialismo cultural

Palavras-chave Feniacutecios Indiacutegenas Colonizaccedilatildeo Cultura

Abstract ndash The Phoenician colonization in the Central and Western Mediterranean and in the Atlantic shores had a deep impact in the overseas ter-ritories not only in terms of society and economy but also in the cultural scene The oriental heritage will overlapse in many occasions the previous indigenous substratum through relations of dominance that can be interpreted under the concept of imperial culturalism

Keywords Phoenician Indigenous Colonization Culture

1 Introduccedilatildeo

O presente artigo resulta de um desafio que foi lanccedilado por ocasiatildeo do Se-minaacuterio Interdisciplinar de Histoacuteria Antiga Arqueologias de Impeacuterio ndash Impeacuterios da Era Axial relacionado com a questatildeo da existecircncia ou natildeo de uma qual-quer vertente de cariz imperialista no quadro da diaacutespora feniacutecia do Extremo Ocidente A resposta a esta problemaacutetica natildeo eacute naturalmente faacutecil de abordar considerando a escassez de dados histoacutericos e tambeacutem arqueoloacutegicos sobre as-petos especiacuteficos do processo de colonizaccedilatildeo feniacutecia do Mediterracircneo Central e das regiotildees mais ocidentais sobretudo no quadro de eventuais conflitos que se possam ter gerado entre estes grupos e as populaccedilotildees locais Ao que tudo indica natildeo teraacute existido um componente de cariz marcadamente militar no quadro destes contactos nem sequer uma forte intenccedilatildeo de conquista territorial destes

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_7

140

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

novos territoacuterios por parte dos colonos orientais pelo menos numa fase inicial1 Contudo eacute inegaacutevel que a expansatildeo de valores culturais de matriz orientalizante atinge um alcance verdadeiramente notaacutevel tendo em diversos cenaacuterios quase obliterado as tradiccedilotildees autoacutectones Com efeito e sobretudo a partir do seacuteculo VIII e VII aC que corresponde agrave fase de maacuteximo apogeu deste fenoacutemeno co-lonial surge em todo o Ocidente Mediterracircneo e em parte do litoral atlacircntico uma autecircntica koineacute orientalizante que se iraacute manter durante mais de duzentos anos

A difusatildeo da cultura semita nestes territoacuterios longiacutenquos prendeu-se ne-cessariamente com a existecircncia de relaccedilotildees de domiacutenio e de poder2 desiguais entre os receacutem-chegados e as comunidades autoacutectones com quem entraram em contacto Neste sentido torna-se entatildeo possiacutevel falar de um imperialismo feniacutecio de cariz essencialmente cultural3 que de certa forma se impocircs sobre sistemas socioculturais preacute-existentes

Naturalmente estas relaccedilotildees natildeo tiveram um caraacutecter exclusivamente unilateral sofrendo as proacuteprias comunidades feniacutecias instaladas nos territoacuterios ultramarinos metamorfoses que iratildeo configurar ainda durante a primeira me-tade do 1ordm mileacutenio aC diferentes quadros culturais No entanto a existecircncia e sobrevivecircncia de um substrato de matriz oriental constitui uma evidecircncia inegaacutevel nas margens mediterracircneas e atlacircnticas do Ocidente do Velho Mundo

2 A Feniacutecia e os antecedentes da colonizaccedilatildeo

A existecircncia de um imperialismo cultural feniacutecio natildeo foi um fenoacutemeno que se verificou exclusivamente no quadro da colonizaccedilatildeo ocidental

Apesar das cidades feniacutecias do Oriente se terem configurado ao longo da sua histoacuteria como entidades fundamentalmente autoacutenomas e independentes eacute possiacutevel identificar certas conjunturas onde um ou vaacuterios destes nuacutecleos conse-guiram alcanccedilar um certo poder hegemoacutenico

A partir da chamada crise de 1200 aC e sobretudo durante quase toda a primeira metade do 1ordm mileacutenio aC a principal protagonista destes episoacutedios foi a cidade de Tiro Em finais do 2ordm mileacutenio aC e na sequecircncia das profundas transformaccedilotildees e reestruturaccedilotildees econoacutemicas poliacuteticas sociais e comerciais que iratildeo afetar o Proacuteximo Oriente durante os momentos iniciais da Idade do

1 Contudo outras formas de agressatildeo satildeo equacionaacuteveis no acircmbito da interaccedilatildeo entre comunidades autoacutectones e os agentes colonizadores como foi jaacute defendido por Wagner 2005 178

2 Bush 20063 Neste trabalho eacute utilizada uma definiccedilatildeo simplificada de uma terminologia criada a partir

da segunda metade do seacuteculo XX denominada de laquoimperialismo culturalraquo e com implicaccedilotildees sobretudo no campo do poacutes-colonialismo Sobre a problemaacutetica relativa agrave multiplicidade de abordagens e interpretaccedilotildees relativas a este conceito ver Tomlinson 1991

141

Elisa de Sousa

Ferro4 este centro urbano parece ter emergido como uma das principais en-tidades comerciais da aacuterea substituiacutedo ao que parece o papel anteriormente desempenhado por Ugarit5

Esta hegemonia tiacuteria chegou em determinados momentos a ultrapassar a mera esfera cultural e comercial revestindo-se de um caraacutecter inclusivamente poliacutetico aproveitando o decreacutescimo do poder egiacutepcio sobre a regiatildeo6 Natildeo eacute portanto de estranhar que esse nuacutecleo tenha constituiacutedo anos mais tarde um dos principais impulsionadores na empresa colonial feniacutecia no Ocidente7

Eacute ainda durante os momentos iniciais da Idade do Ferro no Proacuteximo Orien-te a partir da segunda metade do seacuteculo XI aC que se verificam os primeiros indiacutecios desta poliacutetica expansionista tiacuteria que exerce uma influecircncia que se iraacute tornar progressivamente mais evidente no vale de Jezrael Os dados arqueoloacute-gicos recolhidos nesta aacuterea particularmente no quadro da composiccedilatildeo dos es-poacutelios funeraacuterios da necroacutepole de Achziv evidenciam uma importante presenccedila tiacuteria que teraacute tido como principais objetivos o controle de importantes recursos agraacuterios industriais e tambeacutem comerciais8 Paralelamente eacute tambeacutem durante esta fase que se observam quantidades muito significativas de importaccedilotildees tiacuterias em algumas aacutereas de Chipre como eacute o caso da necroacutepole de Paleopaphos Skales cuja intensidade conduziu inclusivamente agrave admissatildeo da existecircncia de grupos feniacutecios nos centros urbanos da regiatildeo9 Tal fenoacutemeno poderia ser tambeacutem uma realidade em Creta concretamente em Kommos10

Contudo e apesar desta crescente influecircncia tiacuteria no Proacuteximo Oriente a partir da segunda metade do seacuteculo XI aC o cenaacuterio poliacutetico parece revestir-se de um caraacutecter ainda pouco centralizado onde a iniciativa privada teria uma importacircncia acrescida11 situaccedilatildeo que parece alterar-se em momentos sucessi-vos12

Com efeito os monarcas tiacuterios das primeiras centuacuterias do 1ordm mileacutenio aC transformaram a cidade numa das principais potecircncias mariacutetimas e comer-ciais do Proacuteximo Oriente13 capaz de controlar e monopolizar os principais mercados e rotas comerciais da aacuterea Os tiacutetulos que ostentavam por exemplo Hiram I (970969-936 aC) Rei de Tiro e da Feniacutecia e Ithobaal I (887-856 aC) Rei dos Sidoacutenios satildeo indicadores da primazia da cidade sobre os restantes

4 Para uma siacutentese atualizada ver Ruiz-Gaacutelvez Priego 20135 Aubet 20006 Finkelstein e Piasetzky 2009 Ruiz-Gaacutelvez Priego 2013 e 1167 Aubet 19948 Aubet 20009 Karageorghis 1983 Bikai 1983 Aubet 2000 80 Ruiz-Gaacutelvez Priego 2013 12510 Aubet 2000 Shaw 199811 Ruiz-Gaacutelvez Priego 2013 12512 Galaacuten e Ruiz-Gaacutelvez 200713 Aubet 2008 182-83

142

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

nuacutecleos feniacutecios Tal realidade transparece inclusivamente na existecircncia de uma confederaccedilatildeo entre Tiro e Sidoacuten durante os seacuteculos IX e VIII aC onde parecem ter sido os reis tiacuterios os que exerceram de forma efetiva o poder14 A influecircncia poliacutetica de Tiro sobre outras cidades feniacutecias como Biblos verifica--se pela fundaccedilatildeo de um estabelecimento comercial tiacuterio (Botrys) no interior no territoacuterio giblita15 Tambeacutem em aacutereas mais longiacutenquas como o norte da Siacuteria e Ciliacutecia a existecircncia de nuacutecleos fundados por Tiro parece ter desencadeado uma forte influecircncia poliacutetica e cultural a julgar por algumas estelas e inscriccedilotildees recuperadas Por outro lado cabe natildeo esquecer o controle de algumas cidades da aacuterea israelita em consequecircncia do tratado estabelecido entre Hiram I e Salomatildeo16 Recentes investigaccedilotildees sobre a veracidade histoacuterica destes relatos biacuteblicos tecircm posto em questatildeo vaacuterios aspetos ateacute entatildeo assumidos entre os quais as aparentes relaccedilotildees de igualdade aiacute sugeridas entre a monarquia tiacuteria e a israelita Com efeito os dados arqueoloacutegicos que tecircm sido recolhidos na regiatildeo parecem contrariar as informaccedilotildees escritas17 indicando que Tiro teraacute exercido um domiacutenio efetivo sobre estes territoacuterios sendo inclusivamente proposto que os proacuteprios reis israelitas estariam de certa forma dependentes da casa real tiacuteria18

Este incremento da posiccedilatildeo hegemoacutenica de Tiro durante os iniacutecios do 1ordm mileacutenio aC respondeu claramente a condicionantes econoacutemicas estrateacutegi-cas O controle de redes comerciais e da exploraccedilatildeo de aacutereas essenciais para a obtenccedilatildeo de recursos quer metaliacuteferos quer agriacutecolas teratildeo sido os principais motivos que subjazem agrave preeminecircncia de Tiro face agraves restantes cidades feniacutecias e outras aacutereas do Proacuteximo Oriente

Mesmo a partir do seacuteculo IX aC quando a pressatildeo assiacuteria se faz sentir de forma mais substancial no Proacuteximo Oriente as cidades feniacutecias parecem ter continuado a usufruir de um estatuto privilegiado19 situaccedilatildeo que eacute justificada pela importacircncia destes nuacutecleos no quadro dos principais circuitos comerciais da regiatildeo Com efeito os tributos entregues por Tiro aos monarcas assiacuterios satildeo verdadeiramente impressionantes quer em diversidade quer em quantidade o que mostra a riqueza da cidade durante esta fase20 Mesmo as campanhas militares assiacuterias no norte da Siacuteria que aparentemente teratildeo condicionado o acesso das metroacutepoles feniacutecias agraves mateacuterias-primas da Anatoacutelia21 natildeo teratildeo tido impactos insuperaacuteveis no quadro econoacutemico e comercial destes nuacutecleos quiccedilaacute

14 Markoe 2000 3915 Aubet 1994 5016 Aubet 1994 53 e 7617 Finkelstein e Silberman 2007 Liverani 2005 Martiacuten Ruiz 201018 Martiacuten Ruiz 2010 26 Ruiz e Wagner 2005 10819 Markoe 2000 40 Aubet 200820 Jankowska 1969 Zaccagnini 1984 Bunnens 1985 Aubet 2008 18321 Aubet 1994 54

143

Elisa de Sousa

devido justamente agrave aquisiccedilatildeo de outros recursos estrateacutegicos derivados da poliacutetica colonial ultramarina que seria nesta altura jaacute uma realidade22

A reestruturaccedilatildeo da rede comercial das cidades feniacutecias e o seu redireccio-namento progressivamente sistemaacutetico face aos circuitos ocidentais que garan-tiam mateacuterias-primas essenciais para a induacutestria do Proacuteximo Oriente teraacute tido o seu iniacutecio ainda durante o seacuteculo X aC intensificando-se sobretudo a partir da centuacuteria seguinte23 possivelmente em consequecircncia dos esforccedilos em manter o seu imperialismo comercial no Proacuteximo Oriente e para fazer face agrave crescente pressatildeo tributaacuteria assiacuteria

Estes primeiros contactos entre o mundo feniacutecio-chipriota e o Extremo Ocidente encontram-se arqueologicamente plasmados nas extraordinaacuterias des-cobertas realizadas recentemente em Huelva24 e tambeacutem pela proacutepria presenccedila em contextos coevos de materiais supostamente produzidos nesta mesma aacuterea25 no Proacuteximo Oriente como eacute o caso das fiacutebulas de tipo Huelva descobertas em Meggido26 e nos contextos funeraacuterios de Achziv27 e do tuacutemulo 523 de Amathus28 Estas evidecircncias arqueoloacutegicas de contactos entre o Proacuteximo Oriente e o Ex-tremo Ocidente tecircm sido associadas a acontecimentos histoacutericos descritos nos textos biacuteblicos que ocorreram sobretudo durante o final do reinado de Hiram I em concreto as expediccedilotildees a Tarsish realizadas em parceria com Salomatildeo29

Para aleacutem destes passos iniciais no Extremo Ocidente a reestruturaccedilatildeo da poliacutetica econoacutemica e comercial tiacuteria refletiu-se paralelamente tambeacutem na fun-daccedilatildeo de outras coloacutenias no Mediterracircneo durante o uacuteltimo quartel do seacutec IX aC30 Em 820 aC a fundaccedilatildeo de Kition na ilha de Chipre permitiu o controlo dos recursos de cobre da ilha e das suas redes comerciais31 Poucos anos depois e de acordo com os dados das fontes claacutessicas em 814 e 813 aC momentos que se parecem aproximar das recentes dataccedilotildees raacutedio carboacutenicas obtidas em escavaccedilotildees recentes32 os tiacuterios fundaram Cartago metroacutepole que se tornou num ponto es-trateacutegico para o acesso aos recursos e redes comerciais do Mediterracircneo Central e tambeacutem um nuacutecleo de apoio para a exploraccedilatildeo dos territoacuterios mais ocidentais

22 Mederos Martiacuten 2006 Aubet 2008 Nuntildeez 201523 Mederos Martiacuten 2006 179 Nuntildeez 2015 28-2924 Gonzaacutelez de Canales Serrano et Llompart 200525 Mederos 199626 Finkelstein e Piasetzky 2006 Ruiz Galvez 2013 13727 Ruiz-Gaacutelvez Priego 2013 12028 Karageorghis 198729 Mederos Martiacuten 2006 179 Nuntildeez 2015 2930 A fundaccedilatildeo de Auza presumivelmente localizada no litoral liacutebio seria anterior a esta

data tendo ocorrido durante o reinado de Ihobaal (887-856 aC) No entanto a inexistecircncia de dados arqueoloacutegicos que permitam confirmar a sua antiguidade e a proacutepria existecircncia justificam a sua omissatildeo neste trabalho

31 Aubet 1994 5532 Docter et al 2005

144

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

Ateacute aos meados do seacuteculo VIII aC Tiro parece ter mantido a sua autono-mia hegemonia e prestiacutegio comercial no Proacuteximo Oriente33 Eacute apenas a partir deste momento quando verifica uma maior pressatildeo tributaacuteria e uma poliacutetica expansionista agressiva por parte do impeacuterio assiacuterio que a situaccedilatildeo se altera podendo ter gerado uma intensificaccedilatildeo da colonizaccedilatildeo ultramarina Durante os reinados de Tiglatpilaser III e Sargatildeo II34 as campanhas militares assiacuterias resultaram na conquista de vaacuterias aacutereas da costa feniacutecia tendo como consequecircn-cia a reduccedilatildeo dos territoacuterios de exploraccedilatildeo deportaccedilotildees e inclusive perda de alguma autonomia poliacutetica ainda que Tiro tenha permanecido grosso modo independente35 Contudo a instabilidade carecircncias alimentares e de mateacuterias--primas assim como as fortes pressotildees demograacuteficas e tributaacuterias parecem ser os principais fatores que desencadeiam uma nova vaga colonial que atingiu o Mediterracircneo Central e Ocidental e chegou inclusivamente e ainda que de for-ma indireta ao litoral atlacircntico36 A principal justificaccedilatildeo para uma tatildeo extensa diaacutespora tem sido a necessidade de captar recursos estrateacutegicos provavelmente metaliacuteferos indisponiacuteveis em aacutereas mais proacuteximas No caso concreto da Peniacuten-sula Ibeacuterica para aleacutem dos recursos auriacuteferos e estaniacuteferos atlacircnticos conveacutem recordar a riqueza argentiacutefera da zona de Huelva (Rio Tinto) sendo esta uma das aacutereas nevraacutelgicas do mundo feniacutecio ocidental37 Contudo as pressotildees demograacute-ficas que seguramente se teratildeo sentido no Proacuteximo Oriente durante esta fase poderatildeo tambeacutem explicar esta intensificaccedilatildeo do fenoacutemeno colonial assim como a instalaccedilatildeo de novos nuacutecleos em aacutereas mais afastadas dos principais recursos mineiros como ocorre por exemplo na aacuterea de Maacutelaga38

Independentemente das referecircncias das fontes claacutessicas que estabelecem o iniacutecio desta colonizaccedilatildeo ainda em finais do 2ordm mileacutenio aC39 este processo estaacute arqueograficamente atestado apenas a partir sobretudo do seacuteculo IX e de for-ma mais intensiva e sistemaacutetica durante os seacuteculos VIII e VII aC Com efeito eacute partir destes momentos que se comprova a presenccedila feniacutecia em locais como Uacutetica Leptis Magna Hippo Hadrumetum Cartago (Tuniacutesia) Motya Solunto Palermo (Siciacutelia ndash Itaacutelia) Nora Sulcis Tharros Bithia Caralis (Sardenha ndash Itaacute-lia) Ceuta Mogador Lixus (Marrocos) Caacutedis Castillo de Dontildea Blanca Huelva

33 Aubet 2008 18534 Markoe 2000 41-4435 Aubet 1994 60 Aubet 2008 18636 Arruda 1999-2000 Dietler 2009 737 Aubet 1994 242-24338 Wagner e Alvar 1989 e 2003 Wagner 2005 18339 Veleio Pateacuterculo situa a fundaccedilatildeo de Gadir (atual Caacutedis) cerca de 80 anos depois da

queda de Troacuteia (1110 ou 1104 aC) sendo Uacutetica na costa tunisina fundada pouco mais tarde (1100 aC) Por sua vez Pliacutenio indica que Lixus na costa marroquina possuiacutea um templo dedicado a Melkart ainda mais antigo que o de Gadir pelo que seria o estabelecimento mais antigo da diaacutespora feniacutecia no Ocidente

145

Elisa de Sousa

Carambolo Sevilha Cerro Macareno Carmona Morro de Mezquetilla Chor-reras Cerro del Villar Cerro del Prado Toscanos Maacutelaga Cerro Alarcoacuten Sexi Abdera La Fonteta (Espanha) Tavira Castelo de Castro Marim Abul Alcaacutecer do Sal Setuacutebal Lisboa Almaraz Santareacutem Santa Olaia (Portugal) e tambeacutem nas ilhas de Pantelaacuteria Lampedusa Gozo e Malta40

3 Os contactos coloniais

A maior parte dos territoacuterios atingidos pela vaga colonizadora feniacutecia eram jaacute ocupados por comunidades indiacutegenas do Bronze Final Apesar de estas uacutelti-mas serem notavelmente diversificadas em termos poliacuteticos sociais e culturais os dados existentes ateacute ao momento indicam que partilhavam estrateacutegias econoacute-micas baseadas sobretudo na agricultura e pecuaacuteria e apesar de manterem em vaacuterios casos contactos de iacutendole comercial com outras aacutereas mediterracircneas41 os impactos sofridos ateacute entatildeo natildeo satildeo comparaacuteveis aos que se iratildeo verificar com a instalaccedilatildeo efetiva de colonos orientais no territoacuterio

Independentemente do grau de complexidade sociocultural que as culturas do Bronze Final possam ter atingido nos momentos que precederam o iniacutecio da colonizaccedilatildeo feniacutecia eacute inegaacutevel a sua inferioridade tecnoloacutegica em relaccedilatildeo aos receacutem-chegados Esta disparidade teraacute constituiacutedo um dos principais fatores de impacto durante os primeiros contactos estabelecidos

Com efeito as comunidades que fundaram as novas coloacutenias feniacutecias de-tinham o conhecimento de tecnologias mais avanccediladas como por exemplo a produccedilatildeo de ceracircmicas a torno de objetos de pasta viacutetrea o uso do moinho giratoacuterio e a reduccedilatildeo do ferro Os modelos arquiteturais utilizados eram com-pletamente distintos estando consubstanciados por exemplo em construccedilotildees de planta retangular e em arquiteturas mais complexas do que as utilizadas pelas populaccedilotildees indiacutegenas42 Sobre as suas praacuteticas culturais e religiosas quer de acircmbito domeacutestico quer de acircmbito mais institucional satildeo ainda poucos os da-dos disponiacuteveis ainda que os existentes indiquem clivagens muito significativas com as tradiccedilotildees autoacutectones particularmente no quadro do aparato cerimonial arquitetura religiosa e conotaccedilotildees simboacutelicas

As relaccedilotildees estabelecidas entre feniacutecios e as elites das comunidades locais podem ter sido iniciadas nos paracircmetros da troca de keimelia que estabelecem natildeo soacute viacutenculos meramente econoacutemicos mas tambeacutem de forte iacutendole sociocul-tural43 que teratildeo aberto redes comerciais futuras44 Tais ligaccedilotildees parecem ter tido

40 Aubet 1994 146-4941 Para uma siacutentese atualizada deste processo ver Ruiz Galveacutez Priego 201342 Arruda 2010 43943 Mauss 1970 Parise 2000 29-3044 Aubet 1994 123 125-26

146

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

consequecircncias avassaladoras no interior da dinacircmica quotidiana das populaccedilotildees autoacutectones Se por um lado o incremento de elementos considerados de prestiacute-gio poderaacute ter intensificado certas divisotildees sociais preacute-existentes beneficiando as elites locais45 tais produtos teratildeo constituiacutedo simultaneamente veiacuteculos de difusatildeo da cultura feniacutecia nos territoacuterios ultramarinos46 A desigualdade das trocas estabelecidas natildeo eacute nesta perspetiva uma questatildeo a considerar dado que o significado de produtos e objetos tem de ser necessariamente avaliado nos contextos socioculturais em que circula

Cabe tambeacutem natildeo esquecer que a instalaccedilatildeo de comunidades orientais im-plicou a trasladaccedilatildeo de costumes e praacuteticas poliacuteticas sociais religiosas e cultu-rais47 que natildeo passaram seguramente despercebidas agraves comunidades indiacutegenas A sua influecircncia teraacute tido repercussotildees na estrutura interna destas sociedades num processo geralmente denominado por laquoorientalizaccedilatildeoraquo48 das comunidades ocidentais Com efeito as principais divindades do panteatildeo feniacutecio oriental Baal Melkart e Astarteacute foram transpostas para os ambientes coloniais existin-do indiacutecios que permitem estabelecer que em determinadas aacutereas tais cultos teratildeo sido tambeacutem adotados pelos grupos indiacutegenas49

Por outro lado a necessidade de aplicar novas tecnologias de forma a incre-mentar a exploraccedilatildeo dos recursos locais sobretudo metaliacuteferos teraacute estado na origem da instalaccedilatildeo de autecircnticos bairros feniacutecios em povoados indiacutegenas de vaacuterias aacutereas despoletando em definitivo o processo de laquoorientalizaccedilatildeoraquo50

Por uacuteltimo e natildeo menos importante a provaacutevel existecircncia de alianccedilas poliacuteticas sistemaacuteticas entre as comunidades autoacutectones e os grupos orientais possivelmente substanciadas em laquomatrimoacutenios mistosraquo teraacute seguramente contribuiacutedo para este processo51 dando origem a novas geraccedilotildees educadas em grande parte no quadro dos valores culturais semitas

Com efeito em pouco tempo os elementos culturais de cariz orientalizante seratildeo aqueles que iratildeo marcar o registo arqueoloacutegico das aacutereas colonizadas du-rante a primeira metade do 1ordm mileacutenio aC

Em alguns casos conhecidos como por exemplo no litoral atlacircntico da Peniacutensula Ibeacuterica o mundo indiacutegena dos iniacutecios do mileacutenio praticamente desapareceu quando se iniciaram os contactos coloniais52 Os modelos de po-voamento colapsaram as estrateacutegias de exploraccedilatildeo do territoacuterio alteraram-se

45 Delgado Hervaacutes 2008 3246 A utilizaccedilatildeo destes bens de prestiacutegio eacute particularmente observaacutevel por exemplo nos

contextos funeraacuterios do sul da Andaluzia e Extremadura espanhola47 Beleacuten Deamos 200948 Dietler 2009 2349 Beleacuten Deamos 200950 Delgado Hervaacutes 2008 Aubet 201251 Ruiz Galvez Priego 2013 23652 Arruda 2014 531

147

Elisa de Sousa

a cultura material transformou-se e os ritos e costumes funeraacuterios adquiriram novas particularidades que se prendem mais com costumes semitas que com as tradiccedilotildees da Idade do Bronze Com efeito uma parte muito significativa dos povoados de altura dos iniacutecios do 1ordm mileacutenio foram abandonados aquando da instalaccedilatildeo de gentes orientais no territoacuterio e nos casos em que se observou uma continuidade a arquitetura e a cultura material assumiram a partir de entatildeo um caraacutecter marcadamente oriental53

Eacute provaacutevel que estas populaccedilotildees autoacutectones tenham sido pelo menos em parte absorvidas pelos nuacutecleos de habitat ocupados durante os momentos ini-ciais da Idade do Ferro Quer em locais de cariz mais indiacutegena quer em centros de natureza colonial observa-se em maior ou menor quantidade a presenccedila de produccedilotildees ceracircmicas que se inscrevem ainda nas tradiccedilotildees do Bronze Final54 No entanto a sua relevacircncia parece diminuir progressivamente ao longo do tempo atingindo percentagens muito reduzidas durante os finais da primeira metade do 1ordm mileacutenio aC

Uma situaccedilatildeo muito similar eacute tambeacutem evidente em outras aacutereas do Mediterracirc-neo como no sul da Sardenha onde as notaacuteveis estruturas nuraacutegicas que caracte-rizam as fases finais da Idade do Bronze desta aacuterea parecem ter sido abandonadas salvo algumas exceccedilotildees durante os iniacutecios da Idade do Ferro55 coincidindo com a fase inicial da instalaccedilatildeo permanente de populaccedilotildees orientais no territoacuterio

Eacute contudo ainda difiacutecil determinar se estas alteraccedilotildees se relacionam diretamente com a evoluccedilatildeo da poliacutetica colonial semita que adquire nestes momentos um caraacutecter efetivo e permanente ou se teratildeo sido uma consequecircn-cia de fatores de instabilidade internos despoletados no quadro dos contactos preacute-coloniais

Consideraccedilotildees finais

Os dados que a anaacutelise histoacuterica e arqueoloacutegica tem vindo a revelar jaacute natildeo permitem defender que a presenccedila feniacutecia nos territoacuterios coloniais se limitou a meras transaccedilotildees de cariz comercial e agrave necessidade de obtenccedilatildeo de mateacuterias--primas Os contactos que estas comunidades estabeleceram com as populaccedilotildees indiacutegenas alteraram de forma definitiva e irremediaacutevel o contexto poliacutetico social e cultural dos grupos intervenientes

Mesmo admitindo um caraacutecter essencialmente paciacutefico que teraacute deter-minado a natureza desses contactos56 a laquoconquistaraquo destas aacutereas longiacutenquas

53 Veja-se por exemplo o caso da aacuterea de Huelva e do Vale do Guadalquivir no sul do territoacuterio peninsular

54 Arruda 1999-2000 Azuar et al 1998 Gonzaacutelez Prats 1998 Rouillard et al 2007 Aubet et al 1999 Delgado e Ferrer 2007 Torres Ortiacutez et al 2014 Sousa 2015 e 2016

55 Ruiz Galvez Priego 200556 Este caraacutecter laquopaciacuteficoraquo tem contudo vindo a ser discutido no contexto da colonizaccedilatildeo

148

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

transformou-se numa realidade Ainda que os mecanismos dessa difusatildeo natildeo tenham adotado os cacircnones das verdadeiras potecircncias imperiais do mundo antigo definidos sobretudo pela imposiccedilatildeo de relaccedilotildees de domiacutenio atraveacutes de meios poliacuteticos e militares a laquoculturaraquo feniacutecia converteu-se numa laquoarmaraquo de eficaacutecia extraordinaacuteria na legitimaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo da presenccedila oriental nos territoacuterios colonizados

Determinar a verdadeira intencionalidade desta laquoconquista silenciosaraquo eacute uma questatildeo difiacutecil de abordar Com a eventual exceccedilatildeo de Cartago as coloacute-nias feniacutecias no Mediterracircneo Central Ocidental e do Atlacircntico nunca deram indiacutecios de poliacuteticas territoriais agressivas e a componente militar parece estar em grande parte ausente no projeto de expansatildeo Os intuitos de cariz essencial-mente comercial que subjazem a este processo poderatildeo ter amenizado numa primeira fase eventuais confrontos com as comunidades locais uma vez que as transaccedilotildees seriam beneacuteficas pelo menos nos quadros sociopoliacuteticos superiores para ambas partes intervenientes A difusatildeo de valores culturais orientais pode ser encarada como uma consequecircncia espontacircnea da fixaccedilatildeo de gentes feniacutecias em novos territoacuterios O seu efeito foi contudo evidente dado que resultou na criaccedilatildeo de uma koine cultural orientalizante que em algumas zonas como eacute o caso do ocidente Atlacircntico do territoacuterio peninsular57 soacute seraacute substituiacuteda com a romanizaccedilatildeo

Com efeito durante a fase inicial da Idade do Ferro (seacutec IX a VI aC) a cultura material do litoral do Mediterracircneo Central e Ocidental assim como da fachada atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e de Marrocos reveste-se de caracte-riacutesticas que satildeo facilmente rastreaacuteveis na sua geacutenese ao mundo oriental ainda que possam ter adquirido posteriormente feiccedilotildees mais regionais No quadro das produccedilotildees ceracircmicas dominam os vasos feitos a torno que se integram nas principais categorias morfo-funcionais do mundo semita (ceracircmicas de engobe vermelho acircnforas de transporte de produtos alimentares vasos de armazena-mento com decoraccedilotildees pintadas etc) Os modelos arquitetoacutenicos substanciados em estruturas de planta ortogonal por vezes organizadas em torno a paacutetios cen-trais e as proacuteprias teacutecnicas construtivas utilizadas revestem-se tambeacutem elas de um claro cariz oriental encontrando-se difusas por todas as aacutereas directa ou in-diretamente afetadas pela diaacutespora feniacutecia Mesmo no plano religioso funeraacuterio e cultual satildeo frequentes as manifestaccedilotildees que se podem relacionar diretamente com esse processo como se verifica pela adoccedilatildeo de cacircnones orientais na cons-truccedilatildeo de edifiacutecios religiosos nas evidecircncias do culto de divindades do Proacuteximo Oriente e na ampla disseminaccedilatildeo de praacuteticas e ritos funeraacuterios feniacutecios58

feniacutecia ocidental ndash Wagner 200557 Arruda 1999-2000 Sousa 201658 Entre outros Arruda 1999-2000 Aubet 1994 Frankestein 1997 Loacutepez Castro 2007

Ruiz Mata et Celestino Peacuterez 2001

149

Elisa de Sousa

Contudo reconstituir a histoacuteria de periacuteodos tatildeo remotos e em territoacuterios tatildeo perifeacutericos face aos nuacutecleos primaacuterios da produccedilatildeo de documentos escritos esbarra inevitavelmente na ausecircncia de dados concretos que permitam confir-mar ou refutar modelos interpretativos O registo arqueoloacutegico por si soacute eacute em grande parte insuficiente na medida em que os dados que se podem extrair des-tes vestiacutegios do passado satildeo pela sua natureza muito limitados A dificuldade de avaliar a multiplicidade do seu significado e de compreender o seu contexto cultural nas vaacuterias dimensotildees existentes entre o indiviacuteduo e a comunidade pode por vezes desmotivar tentativas de interpretaccedilatildeo do passado

Compreender a verdadeira essecircncia dos primeiros contactos estabelecidos entre colonos feniacutecios e comunidades indiacutegenas torna-se assim numa tarefa virtualmente impossiacutevel Eacute inegaacutevel que os grupos intervenientes neste processo satildeo heterogeacuteneos na sua composiccedilatildeo Cada comunidade indiacutegena envolve um grau de complexidade que escala divisotildees sociais no seu interior Entre escravos agricultores metalurgistas sacerdotes e elites poliacutetico-sociais oscilam valores costumes e praacuteticas culturais assim como a sua interpretaccedilatildeo de fenoacutemenos contemporacircneos Os proacuteprios grupos feniacutecios natildeo satildeo por outra parte uma entidade homogeacutenea Apesar do peso que Tiro seguramente exerceu na diaacutespora para Ocidente a presenccedila de indiviacuteduos com origens distintas quer em termos geograacuteficos (Sidoacuten Biblios Chipre e mesmo de outras aacutereas do Mediterracircneo) quer em termos sociais implica uma multiplicidade cultural que mal consegui-mos ainda interpelar59

Por outro lado eacute tambeacutem indiscutiacutevel que os contactos entre estes grupos heterogeacuteneos natildeo se revestiram de um caraacutecter unilateral e que a sociedade dos colonizadores foi alterada estruturalmente pelas ligaccedilotildees com a multiplicidade de comunidades autoacutectones As diferentes aacutereas orientalizadas exibem com efeito num curto periacuteodo temporal caracteriacutesticas proacuteprias que permitem a sua ulterior individualizaccedilatildeo

No entanto e apesar de todas as condicionantes previamente indicadas a sobrevivecircncia de elementos culturais feniacutecios nos territoacuterios colonizados e a desestruturaccedilatildeo dos sistemas preacute-existentes refletem a difusatildeo e predomiacutenio de valores costumes e praacuteticas orientais sobre outras comunidades60 No acircmbito destas relaccedilotildees desiguais de domiacutenio e poder laquoculturalraquo pensamos que eacute possiacutevel legitimar a existecircncia de um imperialismo feniacutecio no seu mundo colonial que teraacute vigorado ateacute aos meados do 1ordm mileacutenio aC

59 Beleacuten Deamos 2009 19760 Arruda 1999-2000 2014

150

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

Bibliografia

Arruda Ana Margarida 2014 ldquoA oeste tudo de novo Novos dados e outros modelos interpretativos para a orientalizaccedilatildeo do territoacuterio portuguecircsrdquo In VI Congresso Internacional de Estudos Feniacutecios e Puacutenicos ed A M Arruda 512-35 Lisboa Uniarq ndash Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa

mdashmdashmdash 2010 ldquoFeniacutecios no territoacuterio actualmente portuguecircs e nada ficou como antesrdquo In El Carambolo 50 antildeos de un tesoro 439-52 Sevilla Universidad de Sevilla

mdashmdashmdash 1999-2000 Los feniacutecios en Portugal Feniacutecios y mundo indiacutegena en el centro y sur de Portugal (siglos VIII-VI aC) Cuadernos de Arqueologiacutea Mediterraacutenea 5-6 Barcelona Publicaciones del Laboratorio de Arqueologiacutea de la Universidad Pompeu Fabra

Aubet Maria Eugenia 2012 ldquoEl barrio comercial fenicio como estrategia colonialrdquo Rivista di Studi Fenici 40 (2)221-36

mdashmdashmdash 2008 ldquoPolitical and economical implications of the new phoenician chronologiesrdquo In Beyond the homeland Markers in Phoenician chronology ed C Sagona 179-91 Leuven Peeters

mdashmdashmdash 2000 ldquoAspects of Tirian trade and colonization in the Eastern Mediterraneanrdquo Munsterche Beitrage zur Antiken Handelsgeschichte 19 (1)70-120

mdashmdashmdash 1994 Tiro y las colonias feniacutecias de Occidente Edicioacuten ampliada y puesta al diacutea Barcelona Criacutetica

Aubet Maria Eugenia P Carmona E Curiagrave A Delgado A Fernaacutendez Cantos e M Paacuterraga 1999 Cerro del Villar 1 El asentamiento fenicio en la desembocadura del rio Guadalhorce y su interaccioacuten con el hiterland Sevilla Junta de Andalucia

Azuar R P Rouillard E Gailledrat F Sala Selleacutes e A Badie 1998 ldquoEl asentamiento orientalizante e ibeacuterico antiacuteguo de laquoLa Rabitaraquo (Guardamar del Segura Alicante) Avance de las excavaciones 1996-1998rdquo Trabajos de Prehistoria 55 (2)111-26

Beleacuten Deamos M 2009 ldquoPhoenicians in Tartessosrdquo In Colonial Encounters in Ancient Iberia 193-228 Chicago Chicago University Press

Bikai P M 1983 ldquoThe Imports from the Eastrdquo In Palaepaphos-Skales An Iron Age Cemetery in Cyprus ed V Karageorghis Vol 2 396-406 Konstanz Universitatverlag Konstanz Deutsches Archaoligisches Institut

Bunnens G 1985 ldquoLe luxe pheacutenicien drsquoapregraves les inscriptions royales assyriennesrdquo Studia Phoenicia 3121-33

Bush B 2006 Imperialism and postcolonialism Harlow Pearson Education

151

Elisa de Sousa

Delgado Hervaacutes A 2008 ldquoColonialismos fenicios en el sur de Iberia Historias precedentes y modos de contactordquo In De Tartessos a Manila Siete estuacutedios coloniales y poscoloniales 19-32 Valencia Universidad de Valencia

Delgado A e M Ferrer 2007 ldquoCultural Contacts in Colonial Settings The construction of New Identities in Phoenician Settlements of the Western Mediterraneanrdquo Stanford Journal of Archaeology 518-42

Dietler M 2009 ldquoColonial Encounters in Iberia and the Western Mediterraneanrdquo In Colonial Encounters in Ancient Iberia 3-48 Chicago Chicago University Press

Docter R H Niemeyer A J Nijboer e J Van der Plicht 2005 ldquoRadiocarbon dates of animal bones in the earliest levels of Carthagerdquo In Oriente e Occidente metodi e discipline a confront Riflesioni sulla cronologia dellrsquoetaacute del Ferro in Italia ed G Bartoloni e F Delpino 557-77 Roma Istituti Editoriali Poligrafici Internazionali

Finkelstein I e N A Silberman 2007 David y Salomoacuten en busca de los reyes sagrados de la Biblia y las raices de la tradicioacuten occidental Madrid Siglo XXI

Filkensten I e E Piasetvsky 2009 ldquoRadiocarbon-dated destruction layers a skeleton for Iron Age chronology in the Levantrdquo Oxford Journal of Archaeology 28 (3)255-74

mdashmdashmdash 2006 ldquo14C and Iron Age chronological debate Rehov Khibet-en-Nahas Dan and Megiddordquo Radiocarbon 48 (3)373-86

Frankenstein S 1997 Arqueologia del colonialismo El impacto fenicio y griego en el sur de la Peninsula Iberica y el suroeste de Alemania Barcelona Criacutetica

Galaacuten E e M Ruiz-Galveacutez Priego 2007 ldquoWriting ciphers self-consciousness and private trade at the eve of the Phoenician colonizationrdquo In VI Congresso Internacional de Estudos Feniacutecios e Puacutenicos ed A M Arruda 229-37 Lisboa Uniarq Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa

Gonzaacuteles de Canales F L Serrano e J Llompart 2005 El emporio fenicio precolonial de Huelva (ca 900-770 aC) Madrid Biblioteca Nueva

Jankowska N B 1969 ldquoSome problems of the economy of the Assyrian empirerdquo In Ancient Mesopotamia Socio-economic History A Collection of Studies by Soviet Scholars 253-76 Moscow USSR Academy of Science

Gonzaacutelez Prats A 1998 ldquoLa Fonteta El asentamiento fenicio de la desembocadura del riacuteo Segura (Guardamar Alicante Espantildea) Resultados de las excavaciones de 19961997rdquo Rivista di Studi Fenici 26 (2)191ndash28

Karageorghis V 1987 ldquoChronique des fouilles et deacutecouvertes agrave Chypre 1986rdquo Bulletin de Coacuterrespondence Helleacutenique 111 (2)663-733

mdashmdashmdash ed 1983 Palaepaphos-Skales An Iron Age Cemetery in Cyprus Konstanz Universitatverlag Konstanz Deutsches Archaoligisches Institut

152

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio

Liverani Mario 2005 Maacutes Allaacute de la Biblia Historia Antigua de Israel Barcelona Criacutetica

Castro J L Loacutepez ed 2007 Las ciudades fenicio-puacutenicas en el Mediterraacuteneo Occidental Almeria Universidad de Almeria Centro de Estudios Fenicios y Punicos

Markoe Glenn 2000 Phoenicians Berkeley University of California PressMartiacuten Ruiz J A 2010 ldquoHiram I rey de Tirordquo Herakleion 37-35Mauss M 1970 The Gift Forms and functions of Exchange in archaic societies

London Cohen and WestMederos Martiacuten A 2006 ldquoFenicios en Huelva en el siglo X AC durante el

reinado de Hiratildem I de Tirordquo Spal 15167-88mdashmdashmdash 1996 ldquoLa conexiacuteon levantino-chipriota Indicios de comercio atlaacutentico

com el Mediterraacutenel Oriental durante el Bronce Final (1150-950 a C)rdquo Trabajos de Prehistoria 52 (5)95-115

Nuacutentildeez F J 2015 ldquoReflexiones sobre la cronologia de los iniacutecios de la Edad del Hierro en el Mediterraacuteneo ocidental y sus problemasrdquo Cuadernos de Prehistoria y Arqueologia de la Universidad Autoacutenoma de Madrid 4123-37

Parise N 2000 La nacita della moneta Segni premonetari e forme archaiche dello scambio Roma Donzelli editore

Shaw J 1998 ldquoKommos in Southern Crete na Aegean barometer for East-West interconnectionsrdquo In Eastern Mediterranean Cyprus- Dodecanese-Crete 16th ndash 6th cent BC ed V Karageorghis e N Stampolidis 13-28 Atenas Universidade de Creta A G Leventis Foundation

Sousa E 2016 ldquoA Idade do Ferro em Lisboa uma primeira aproximaccedilatildeo a um faseamento cronoloacutegico e agrave evoluccedilatildeo da cultura materialrdquo Cuadernos de Prehistoria y Arqueologia de la Universidad Autoacutenoma de Madrid 42167-85

mdashmdashmdash 2015 ldquoThe Iron Age occupation of Lisbonrdquo Madrider Mitteilungen 56109-38

Rouillard P E Gailledrat e F Sala Selleacutes 2007 Lrsquoeacutetablissement protohistorice de La Fontenta (fin VIIIe ndash fin VIe siegravecle av J C) Madrid Casa de Velaacutezquez

Ruiz L A e C Wagner 2006 ldquoDavid Salomoacuten e Hiran de Tiro una relacioacuten desigualrdquo Isimu 8107-12

Ruiz-Galveacutez Priego M 2013 Con el feniacutecio en los talones Los inicios de la Edad del Hierro en la cuenca del Mediterraacuteneo Barcelona Bellaterra Arqueologiacutea

mdashmdashmdash ed 2005 Territorio nuraacutegico y paisaje antiguo La meseta de Pranemuru (Cerdentildea) en la Edad del Bronce Madrid Universidad Complutense

153

Elisa de Sousa

Ruiz Mata D e S Celestino Peacuterez eds 2001 Arquitectura oriental y Arquitectura orientalizante en la Peniacutensula Ibeacuterica Madrid Consejo Superior de Investigaciones Cientificas

Tomlinson J 1991 Cultural Imperialism a critical introduction London Continuum

Torres Ortiacutez M E Loacutepez Rosendo J M Gener Basallote M A Navarro Garciacutea e J M Pajuelo Saacuteez 20014 ldquoEl material ceracircmico de los contextos fenicios del ldquoTetaro Coacutemicordquo de Caacutediz un anaacutelisis preliminarrdquo In Los Fenicios en la Bahiacutea de Caacutediz Nuevas investigaciones ed M Botto 51-82 Pisa Roma Fabrizio Serra

Wagner C 2005 ldquoFenicios en el Extremo Occidente conflito y violencia en el contexto colonial arcaicordquo Revista Portuguesa de Arqueologia 8 (2)177-92

Wagner C e J Alvar 2003 ldquoLa colonizacioacuten agriacutecola en la Peniacutensula Ibeacuterica Estado de la cuestioacuten y nuevas perspectivasrdquo In Ecohistoria del paisaje agrario La agricultura fenicio-puacutenica en el Mediterraacuteneo 187-203 Valencia Universitat de Valencia

mdashmdashmdash 1989 ldquoFenicios en Occidente la colonizacioacuten agriacutecolardquo Rivista di Studi Fenici 1761-102

Zaccagnini C 1984 ldquoLa circolazione dei beni di lusso nelle fonti neo-assirerdquo Opus 3235-47

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

155

Marcel L Paiva do Monte

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio1

(Decapitation and exhibition of the enemy as discourse and exercise of power in the Neo-Assyrian empire)

Marcel L Paiva do Monte(marcelpetroskigmailcom ORCID 0000-0002-2811-3459)

CHAM - Centro de Humanidades NOVA FCSHUAc

Resumo - Em contextos de violecircncia militar ou venatoacuteria a decapitaccedilatildeo eacute um ato de inusitada atrocidade cujo propoacutesito eacute sobretudo simboacutelico e semioacutetico Ato de propa-ganda elemento de rituais ou signo de triunfo a apropriaccedilatildeo da cabeccedila de um inimigo ndash componente visiacutevel fundamental da identidade e do ser ndash eacute uma sineacutedoque poderosa que manifesta a sua derrota e a ruiacutena de tudo o que representa para o vitorioso Neste trabalho satildeo expostas reflexotildees sobre o papel da caput hostis como instrumento discursivo do poder poliacutetico na Assiacuteria do I mileacutenio aC estabelecendo diferentes significados produzidos pelas suas modalidades de expressatildeo visual e textual

Palavras-chave Decapitaccedilatildeo Guerra Assiacuteria Assurbaniacutepal Teumman

Abstract ndash In military or venatory contexts of violence decapitation is a startling atrocity with a mostly symbolic and semiotic purpose An act of propaganda element of rituals or sign of triumph the appropriation of an enemyrsquos severed head ndash a crucial visible component identity and self ndash acts as a powerful synecdoche that manifests its physical defeat and the ruin of everything he stands for to the victor In this work are presented a few reflections concerning the role of the caput hostis as discoursive instrument of political power in Assyria during the 1st millennium BCE establishing some of the different meanings produced by several modes of textual and visual expressions

Keywords Decapitation Warfare Assyria Ashurbanipal Teumman

A decapitaccedilatildeo de um inimigo e a exibiccedilatildeo da sua cabeccedila como trofeacuteu tem um significado autoevidente a derrota e humilhaccedilatildeo de um homem e a suprema

1 Abreviaturas usadas CAH III-2 1991 ndash The Cambridge Ancient History Vol 3 part 2 The Assyrian and Babylonian Empires and other States of the Near East from the Eighth to the Sixth Centuries BC OIP 2 ndash Luckenbill D D 1924 The Annals of Sennacherib (Oriental Institute Publications 2) RIMA 2 ndash Grayson A K 1991 Assyrian Rulers of the Early First Millennium BC I (1114-859 BC) RINAP 31 ndash Grayson A Kirk Novotny Jamie (eds) 2012 The Royal Inscriptions of Sennacherib King of Assyria (704ndash681 BC) Part 1 SAA IV ndash Queries to the Sungod Divination and Politics in Sargonid Assyria (State Archives of Assyria IV) SAA IX ndash Assyrian Prophecies (State Archives of Assyria IX) SAA XI ndash Imperial Administrative Records Part II Provincial and Military Administration (State Archives of Assyria XI) ARAB ndash Luckenbill D D 1968 Ancient Records of Assyria and Babylonia 2 vols New York Greenwood Press

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_8

156

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

vitoacuteria de outro Utilizando essa demonstraccedilatildeo o vitorioso afirma dispor com-pletamente do adversaacuterio atraveacutes do seu corpo A cabeccedila do inimigo prova cabal da vitoacuteria converte-se tambeacutem num signo que a reifica que a torna visiacutevel e sensiacutevel imprimindo-a nas mentes de todos a quem tal exibiccedilatildeo pudesse ser dirigida

Estas observaccedilotildees serviratildeo aqui como mote a um estudo mais especiacutefico de um caso que permite observar num contexto histoacuterico concreto um exemplo da construccedilatildeo do imaginaacuterio acerca do rei no impeacuterio neo-assiacuterio Este rei idea-lizado Assurbaniacutepal seraacute contrastado com a imagem mais mundana de outro monarca que era natildeo apenas estrangeiro mas tambeacutem inimigo da Assiacuteria (logo um laquoanti-reiraquo) Teumman rei do Elam De tal comparaccedilatildeo resulta inevitaacutevel a derrota do Elamita cujo destino seria catastroacutefico desmascarado e exposto pela retoacuterica assiacuteria tambeacutem o relato da sua morte violenta e os seus restos mortais foram utilizados como veiacuteculos de propaganda uma oportunidade para refor-ccedilar a feiccedilatildeo imaginada positiva poderosa e legiacutetima do rei da Assiacuteria Este tema do argumentaacuterio poliacutetico neo-assiacuterio surge em representaccedilotildees visuais e textuais elaboradas entre os seacuteculos X e VII aC A decapitaccedilatildeo de Teumman durante a batalha de Til Tuba e a representaccedilatildeo de escribas assiacuterios inventariando o nuacutemero de inimigos mortos atraveacutes da contagem das suas cabeccedilas empilhadas satildeo dois aspetos diferentes do mesmo topos visual embora com significados opostos que alternam entre conhecimento (epistegraveme) e obliacutevio atributos de vitoacuteria e de derrota respetivamente

1 O teatro da violecircncia

A guerra e a vitoacuteria militar eram temas privilegiados na representaccedilatildeo do poder nos mais variados contextos geograacuteficos e culturais do Proacuteximo Oriente antigo Nesse acircmbito temaacutetico geral a violecircncia e a mutilaccedilatildeo de inimigos der-rotados eram elementos retoacutericos frequentes no registo iconograacutefico e textual A guerra e a sua violecircncia conduzida pelo poder integravam um discurso que acentuava a componente militar da realeza refletindo a capacidade do soberano de conservar e alargar natildeo apenas o territoacuterio mas tambeacutem a disponibilidade de recursos materiais Refletia tambeacutem de uma forma apologeacutetica a imposiccedilatildeo da paz domeacutestica e da tranquilidade externa pelo uso da forccedila Tal discurso expressava uma cultura poliacutetica com elementos comuns em vaacuterios contextos no Proacuteximo Oriente pese embora as diferenccedilas culturais por vezes profundas entre regiotildees como o Egito a Siacuteria ou a Mesopotacircmia

A decapitaccedilatildeo do inimigo enquanto topos iconograacutefico seria algo inco-mum na Mesopotacircmia ao contraacuterio do que sucedia por exemplo em certas regiotildees da Siacuteria Neste quadro o tema constituiria mais um dos vetores da in-fluecircncia cultural siro-hitita sobre a Assiacuteria como foi exposto por Rita Dolce que

157

Marcel L Paiva do Monte

seguindo caminhos abertos por Irene J Winter2 fornece uma perspetiva acerca da adoccedilatildeo do tema do inimigo decapitado nas inscriccedilotildees reais e na iconografia assiacuteria Como modelos e antecedentes para esta influecircncia artiacutestica e discursiva Dolce refere peccedilas iconograacuteficas siacuterias como o laquoestandarteraquo de Ebla ou esculturas produzidas no reino siro-hitita de Carchemiš3

Na Assiacuteria de facto este tema comeccedila a ser mais identificaacutevel nas inscri-ccedilotildees reais ao mesmo tempo que pela primeira vez surge o geacutenero analiacutestico durante o reinado de Tiglat-Falasar I4 Desde entatildeo vaacuterios reis assiacuterios relatam nas suas inscriccedilotildees com maior ou menor frequecircncia as crueldades incluindo a decapitaccedilatildeo infligidas sobre os inimigos derrotados Apesar de tais atos natildeo serem praticados de forma sistemaacutetica mas seletiva de acordo com o grau de ofensa cometida contra o poder assiacuterio e a relaccedilatildeo com ele preacute-existente5 a sua representaccedilatildeo nos programas artiacutesticos e nas inscriccedilotildees reais passam a assumir alguma preponderacircncia

Aššurnaṣirpal II foi um dos reis que utilizou com maior fulgor nos seus textos analiacutesticos o relato das seviacutecias punitivas perpetradas contra populaccedilotildees hostis Eacute possiacutevel citar como exemplo uma campanha que este efetuou contra o reino de Bicirct-Adini durante a qual ordenou o esfolamento de um grande nuacutemero de oficiais e soldados Ao proacuteprio rei inimigo a mesma medida foi aplicada antes de os seus restos mortais serem exibidos como sinal de vitoacuteria6 Referindo-se a outra ocasiatildeo Aššurnaṣirpal II apresenta mais um exemplo de um rol mais diversificado de tormentos cometidos contra inimigos insubmissos

laquoQueimei muitos cativos entre eles Capturei muitos soldados vivos a alguns cortei os braccedilos e as matildeos a outros cortei os narizes as orelhas e as extremidades Arranquei os olhos de muitos soldados Fiz uma pilha com os vivos e uma outra com cabeccedilas Pendurei as suas cabeccedilas em aacutervores em torno da cidaderaquo7

Num dos relevos esculpidos do palaacutecio de Aššurnaṣirpal II em Kalḫu eacute possiacutevel observar uma cena na qual cabeccedilas de inimigos satildeo objetos de mofa tal como num jogo soldados assiacuterios descontraem atirando-as uns para os outros Enquanto decorre tal brincadeira muacutesicos tocam os seus instrumentos confer-indo um certo lirismo agrave cena de escaacuternio do inimigo8

2 Dolce 2004 121-32 Winter [1982] 2010 1525-62 Ver tambeacutem Reade 1979 335 Harmanşah 2007 69-99

3 Ver as figs 5-11 em Dolce 2004 124-294 Grayson 1981 38 Tadmor 1997 325-38 (especialmente 327-28) Liverani 1988 763-655 Reed 2007 106 Cf Reade 1979 332-346 RIMA 2 A 01011 i 89-937 RIMA 2 A 01011 i 116-18 8 British Museum BM 124550 (fig 1)

158

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

Todavia a puniccedilatildeo de um vencido constituiacutea geralmente um espetaacuteculo puacuteblico mais sofisticado Como este que teraacute tido lugar no reinado de Assaradatildeo apoacutes a sua vitoacuteria contra Sarduaris rei do Urarṭu e Abdi-Milkuti rei de Siacutedon aliados contra a Assiacuteria

laquoPara que o poder de Aššur meu senhor se tornasse manifesto pendurei as suas cabeccedilas nos ombros dos seus nobres e com cacircnticos e muacutesica desfilei pela praccedila de Niacuteniveraquo9

Aleacutem da apropriaccedilatildeo do saque obtido pela guerra o esfolamento a imo-laccedilatildeo a mutilaccedilatildeo de olhos e membros sem esquecer a decapitaccedilatildeo eram alguns dos atos que os textos descreviam e que materializavam de forma pungente a forccedila do mando da Assiacuteria Tais supliacutecios eram cometidos como castigos mas tambeacutem serviam o intuito de propagar uma mensagem intimidatoacuteria junto de inimigos externos fossem estes reais ou meramente potenciais Pretendia-se assim que a fama do poder assiacuterio precedesse a marcha dos seus exeacutercitos A es-sas accedilotildees bem se adequa a expressatildeo de A T Olmstead que haacute muitas deacutecadas qualificou este tipo de discurso e de exerciacutecio de poder praticado pelos Assiacuterios como um modo de calculated frightfulness10

Esta brutalidade exercida pelo poder que ocorria sem duacutevida no plano da realidade e era projetada no plano da representaccedilatildeo literaacuteria e iconograacutefica adequa-se agrave qualificaccedilatildeo de laquofesta punitivaraquo que Michel Foucault atribuiu agrave pena e tortura capital aplicadas nos contextos por ele estudados11 Entre os objectivo da teatralizaccedilatildeo em torno de muitos supliacutecios infligidos sobre os corpos de solda-dos e reis inimigos natildeo estaria alheia a tentativa de gerar o temor e de dissuadir as revoltas um dos laquoefeitos positivosraquo que Foucault postula surgirem com a demonstraccedilatildeo da capacidade de violecircncia do poder

Esperar-se-ia que esses efeitos fossem gerados no contexto assiacuterio pela exibiccedilatildeo da violecircncia como laquotaacutetica poliacuteticaraquo12 que passaria tambeacutem em uacuteltimo plano pela execuccedilatildeo de um programa artiacutestico e pela utilizaccedilatildeo de uma retoacuterica textual e visual que induzisse determinados comportamentos por parte dos seus recetores13

Os efeitos da continuidade do emprego destes mecanismos de intimidaccedilatildeo ao longo da expansatildeo assiacuteria podem ser exemplificados por um trecho extraiacutedo

9 ARAB II sect 51410 Olmstead 1918 209-6311 Foucault 1975 1512 Foucault 1975 3113 Essas reaccedilotildees seriam naturalmente distintas consoante os observadores fossem estes

membros da elite proacutexima do poder pessoas de baixa extracccedilatildeo que tivessem o privileacutegio de en-trar num palaacutecio assiacuterio ou mesmo dignitaacuterios refeacutens ou prisioneiros estrangeiros reverecircncia ou identificaccedilatildeo por parte de uns temor e admiraccedilatildeo por parte de outros

159

Marcel L Paiva do Monte

da ceacutelebre Carta ao deus Aššur documento redigido no reinado de Sargatildeo II Este texto pertencente ao geacutenero literaacuterio das laquocartas aos deusesraquo relata a sua oitava campanha desencadeada contra as regiotildees montanhosas que rodeavam a Assiacuteria junto ao Urarṭu e agrave Meacutedia Um trecho escolhido serve como demons-traccedilatildeo do efeito dissuasor que se esperava provocar pela fama da capacidade militar assiacuteria

laquoContra Parsuaš me dirigi Os chefes da terra de Namri Sangibuti Bicirct-Abdadani e da terra dos poderosos Medos sabendo da vinda da minha expediccedilatildeo ndash como a devastaccedilatildeo das suas terras que tivera lugar no ano anterior estava ainda na sua memoacuteria o terror abateu-se sobre elesraquo14

A menccedilatildeo a estas brutalidades exercidas sobre os vencidos surge nas fontes textuais geralmente apoacutes a referecircncia agrave accedilatildeo beacutelica propriamente dita Natildeo se tratando assim de atos de guerra tout court seriam entendidos tambeacutem como a execuccedilatildeo de uma decisatildeo judicial equivalente agrave pena capital (dicircn napištim) uma das prerrogativas que na Mesopotacircmia era tradicionalmente exclusiva do rei Por isso mesmo num diferente niacutevel semacircntico laquocrimeraquo e laquocriminosoraquo eram expressotildees aplicadas tambeacutem a inimigos externos sobre os quais recairia a laquopenaraquo ou castigo laquojudicialraquo ndash a guerra punitiva cuja execuccedilatildeo se concebia como autorizada encorajada e confiada pelos deuses ao rei15

De facto do ponto de vista ideoloacutegico o rei assiacuterio afirmava-se como laquoo rei que com a ajuda de Aššur e de Šamaš os deuses que nele confiam age justa-menteraquo šarru ša ina tukūlti dAššur u dŠamaš ilāni tikli-šu mešeriš16 ou como o laquoguardiatildeo do que eacute correto e amante da justiccedilaraquo naṣir kitti u rarsquoim mešari17 Neste sentido a guerra natildeo era apenas concebida como fenoacutemeno unicamente situado num plano poliacutetico e militar mas apresentada como a justa retribuiccedilatildeo perante um casus belli cuja culpa recairia sempre no adversaacuterio segundo o discurso ideoloacutegico estruturante das inscriccedilotildees reais18 O inimigo era visto como um laquocri-minosoraquo um laquopecadorraquo o uacutenico responsaacutevel pelo seu proacuteprio castigo sofrido agraves matildeos do rei assiacuterio que mais natildeo faria do que agir como verdugo dos deuses na terra19 Senaquerib justifica desta forma a sua primeira campanha desencadeada

14 Extraiacutedo da ediccedilatildeo de Thureau-Dangin 1912 3915 Uma siacutentese fundamental sobre a guerra como ato de justiccedila em Oded 1992 29-4416 Aššurnaṣirpal II RIMA 2 A01011 i 2217 Senaquerib OIP 2 23 H2 i 4-518 Oded 1992 3019 Tal conceccedilatildeo do monarca como instrumento como arma de guerra utilizado pela divin-

dade eacute um elemento comum nas culturas do Proacuteximo Oriente antigo Ressurge com frequecircncia no Antigo Testamento por exemplo no oraacuteculo do profeta Isaiacuteas contra os Assiacuterios que satildeo designados pelas palavras de Yahweh como laquovara da minha coacuteleraraquo laquobastatildeo do meu furorraquo e como um laquomachadoraquo manejado pelo proacuteprio Deus (Is 10 5-16) Cf o versiacuteculo em que Yahweh vitupera a hybris do rei da Assiacuteria que na perspetiva do profeta biacuteblico contraria a confianccedila nas

160

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

contra os rebeldes caldeus na Babiloacutenia comandados por Marduk-apla-iddina liacuteder da tribo de Bicirct-Yakīn Este eacute apresentado como um laquo[instigador] de revoltas [baranū] um maquinador de traiccedilatildeo [karaš surrāti] causador de males [epeš limutti] cuja vilania eacute grande [ša anzilla-šu kabtu]raquo20

Seguindo Bustenay Oded pode entender-se este contraste entre os atributos do soberano assiacuterio com os dos seus adversaacuterios como um elemento moral de justificaccedilatildeo para a guerra Legitimar-se-ia assim a expansatildeo militar atraveacutes de laquoargumentos eacuteticosraquo que a explicavam e enquadravam numa conceccedilatildeo de laquoguerra justaraquo21 Esses argumentos faziam parte de um discurso e de uma retoacuterica que refletia os paracircmetros ideoloacutegicos que sustentavam a expansatildeo militar assiacuteria natildeo apenas por intermeacutedio de textos como as inscriccedilotildees reais mas tambeacutem com o recurso a imagens e peccedilas monumentais que preenchiam os palaacutecios assiacuterios22

2 Assurbaniacutepal vs Teumman

Um dos conjuntos monumentais assiacuterios mais importantes pela sua riqueza narrativa e execuccedilatildeo artiacutestica eacute constituiacutedo por vaacuterios ortoacutestatos esculpidos em baixo-relevo que pertenciam ao Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive construiacutedo por Senaquerib Este complexo palaciano fora utilizado mais tarde pelo seu neto As-surbaniacutepal que nele concentrou tambeacutem os esforccedilos da sua produccedilatildeo simboacutelica Parte desse esforccedilo resultou nos relevos que retratam a batalha de Til Tuba travada contra os Elamitas no ano de 653 (ou 664) aC episoacutedio culminante de uma conjuntura agitada no quadro do difiacutecil relacionamento entre a Assiacuteria e o Elam23

Apoacutes um periacuteodo de paz inaugurado ainda no reinado de Assaradatildeo24 Urtaku rei do Elam fora deposto por um indiviacuteduo chamado Teumman que se dispocircs a desencadear o conflito latente com a Assiacuteria Teumman eacute designado com

divindades e conta apenas com a sua arrogacircncia e poder laquoAcaso gloriar-se-aacute o machado contra quem o manejaraquo (Is 1015) ie o rei mortal contra a entidade divina que o instrumentaliza

20 OIP 248 A1 621 O objectivo desta argumentaccedilatildeo era segundo Bustenay Oded laquoto endow moral sanction

to Assyrian violence by presenting it as the punishment for evildoersraquo (Oded 1992 44)22 Reade 1979 329-43 Bachelot 1991 109-28 Ataccedil 2006 69-101 Algumas publicaccedilotildees

sobre os relevos assiacuterios Barnett 1970 Reade 1998 e Collins 200823 British Museum ME 124801a-c figs 2-4 Sala XXXIII do palaacutecio Sudoeste de Niacutenive Ver

Reade 1979 329-43 Watanabe 2004 103-14 Reed 2007 101-30 Bahrani 2008 22-55 sobre a batalha consultar Fales 2010 202-5 que defende a data de 664 aC Uma siacutentese da conjuntura e das relaccedilotildees entre a Assiacuteria e o Elam Brinkman 1965 161-66 Boardman et al 1991 47-53 147-54

24 Um inqueacuterito oracular (SAA IV 74) dirigido ao deus Šamaš pedido por Assaradatildeo mos-tra as duacutevidas que o lado assiacuterio alimentava sobre a sinceridade da oferta de paz enviada por Urtaku rei do Elam laquoŠamaš grande senhor dai-me uma resposta firme e positiva sobre o que eu vos estou a perguntar se Urtaku rei do Elam enviou a sua proposta para fazer a paz com Assaradatildeo rei da Assiacuteria ndash enviou ele na verdade do seu coraccedilatildeo [ina kitti libbi-šu] palavras verdadeiras e honestas de paz a Assaradatildeo rei da Assiacuteriaraquo

161

Marcel L Paiva do Monte

desprezo por Assurbaniacutepal como algueacutem laquosemelhante a um demoacutenioraquo tamšil gallē25 Apoacutes o rei assiacuterio ter recusado a solicitaccedilatildeo de Teumman para que aquele extraditasse para o Elam os filhos do rei elamita deposto refugiados na Assiacuteria26 travar-se-ia uma batalha em Til Tuba um local situado nas margens do rio Ulaya jaacute bem no interior do Elam

A batalha eacute vividamente retratada nos relevos do Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive atraveacutes de uma composiccedilatildeo narrativa complexa e dinacircmica com um grande cuidado no detalhe nos seus elementos figurativos e em cenas individualizadas que retratam a violecircncia do combate27 Por toda a parte soldados elamitas satildeo chacinados e empurrados para o rio que transporta inuacutemeros cadaacuteveres na sua correnteza O proacuteprio Assurbaniacutepal afirma que laquocom os seus cadaacuteveres bloqueei o rio Ulayaraquo28

Neste sentido o combate um acontecimento histoacuterico e as aacuteguas do rio elemento fiacutesico e concreto de uma paisagem real servem como perfeitas metaacuteforas para a funccedilatildeo intemporal atribuiacuteda agrave realeza de combater o caos e expulsar o inimigo da ordem civilizada que o rei tinha a obrigaccedilatildeo de estabe-lecer ou restaurar Este elemento aquaacutetico para onde era empurrado o exeacutercito elamita levava os mortos expulsos de volta para a esfera do caos do indistinto identificando-se de algum modo com a accedilatildeo de um laquodiluacutevioraquo (abūbu)

Assurbaniacutepal o rei assiacuterio estaacute no entanto ausente dos relevos que ex-potildeem o combate de Til Tuba Pelo contraacuterio em todo o conjunto da composiccedilatildeo Teumman eacute um elemento constante O rei do Elam e a sua cabeccedila surgem em vaacuterias accedilotildees que ocorrem ao longo da composiccedilatildeo Decapitado diante do proacuteprio filho29 por um soldado comum a sua cabeccedila eacute transportada ao longo de vaacuterios momentos da narrativa visual para ser entregue ao rei assiacuterio O momento em que se consuma tal encomenda natildeo surge representado visualmente mas tal se afirma textualmente nos anais de Assurbaniacutepal30 e na epiacutegrafe inscrita sobre uma das cenas da batalha que representa um soldado servindo agora como correio transportando velozmente a cabeccedila

laquoCabeccedila de Teumman rei do Elam que no meio da batalha um soldado comum do meu exeacutercito cortou Para me dar as boas novas despacharam-na velozmente para a Assiacuteriaraquo31

25 Piepkorn 1933 60-61 B iv 7426 Piepkorn 1933 61-63 B iv 87-9927 Ver abaixo figs 2-428 Piepkorn 1933 68-69 B v 97 Ver ARAB II sect 1072 Russell 1999 159 3529 O seu filho Tammaritu sofreria o mesmo destino que o pai laquoCom o encorajamento de

Aššur e Ištar matei-os As suas cabeccedilas eu cortei um diante do outroraquo (Gerardi 1988 31)30 Piepkorn 1933 61 B vii 61 laquoa cabeccedila cortada de Teumman que um soldado comum do

meu exeacutercito decapitouraquo nikis qaqqadi Teumman ša ikkisu aḫurū ummanatē-ia31 Citado a partir de Gerardi 1988 29 Cf Russell 1999 159 10a

162

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

De facto a cabeccedila do malogrado rei elamita eacute a componente principal de todos os paineacuteis aos quais confere coerecircncia narrativa32 A sua importacircncia enquanto princiacutepio fundamental de toda a composiccedilatildeo eacute reafirmada poreacutem em outro painel de relevo celebrizado pela designaccedilatildeo de Cena do Banquete neste relevo em abrupto contraste com a desordem violenta da batalha Assurbaniacutepal e a sua consorte satildeo representados em ameno bivaque num espaccedilo paciacutefico nos jardins de um palaacutecio onde aves plantas e aacutervores servos e muacutesicos compotildeem uma cena que se pode qualificar como idiacutelica33 No interior desse espaccedilo de tran-quilidade a cabeccedila de Teumman surge pendurada numa aacutervore introduzindo na composiccedilatildeo um aspeto contraditoacuterio Que niacuteveis de significado se podem aferir de todo este conjunto artiacutestico

A cabeccedila de um rei no plano simboacutelico eacute uma sineacutedoque representando a sua comunidade de suacutebditos a sua verdadeira quase literal caput regni Por este motivo o rei assume uma qualidade abstrata idealizada ou imaginada Se essa imaginaccedilatildeo acerca do rei incorre num certo grau de objetificaccedilatildeo por parte de muitos dos que com ele convivem e que agrave sua volta gravitam em proximidade ela tornar-se-ia mais forte pelo contraacuterio agrave medida que o sujeito que o imagina se acha social e geograficamente mais distante Essa abstraccedilatildeo de um modo comum aos mais diversos contextos histoacutericos e culturais do poder poliacutetico seria encorajada pelos rituais do poder pelo protocolo e outros mecanismos sociais que instituiacuteam juriacutedica e socialmente essa distacircncia entre o soberano e os outros seres humanos incluindo os seus suacutebditos34

A cabeccedila do rei do Elam que governava um paiacutes distante hostil e poderoso possuiria certamente essa feiccedilatildeo indistinta e imaginada nas mentes dos Assiacuterios que a dado momento se tornaram seus inimigos A sua forccedila como ideia seria naturalmente maior entre os soldados comuns do exeacutercito assiacuterio que ao contraacuterio das elites e populaccedilotildees residentes nas capitais teriam tambeacutem pouco ou nenhum conhecimento direto e concreto do seu proacuteprio soberano Assurbaniacutepal tambeacutem ele envolto numa espeacutecie de laquoneacutevoaraquo ritual sacra e protocolar do poder35

Teumman surge representado em modo metafoacuterico no relatoacuterio de um oraacuteculo remetido a Assurbaniacutepal relacionado diretamente com esta conjuntura de conflito O Elamita parece ser comparado a uma serpente (ṣerru) que o deus comunica o oraacuteculo teria arrancado do interior de uma arma (uma maccedila ou bastatildeo narrsquoamtu) e laquocortado aos pedaccedilosraquo

laquoPalavras sobre os Elamitas [o] deus diz assim ldquoFui e vimrdquo Ele disse cinco vezes seis vezes e depois ldquoVim do bastatildeo Arranquei a serpente que estava no

32 Watanabe 2004 103-1433 British Museum ME 124920 (fig 5) Consultar Bahrani 2008 22-55 34 Liverani 1979 302-335 Acerca da vida do rei em contexto de corte consultar Liverani 2009 81-91

163

Marcel L Paiva do Monte

seu interior cortei-a aos pedaccedilos e quebrei o bastatildeordquo Ele disse ldquoDestruirei o Elam O seu exeacutercito seraacute arrasado ao niacutevel da terrardquoraquo36

Atraveacutes deste oraacuteculo a divindade assegurava ao rei assiacuterio que o inimigo como um animal dissimulado e perigoso (uma serpente escondida dentro de uma arma) seria derrotado e deixaria de representar uma ameaccedila Esta metaacute-fora natildeo referindo a decapitaccedilatildeo do Teumman parece situar-se num momento anterior agrave sua morte em batalha e agrave derrota final do Elam em Til Tuba Poreacutem eacute sugestiva acerca do modo como o inimigo era comparado com uma serpente cuja decapitaccedilatildeo poderia trazer a vitoacuteria agrave Assiacuteria37

A decapitaccedilatildeo de Teumman adquire assim um valor simboacutelico poderoso o Elam a entidade coletiva que o sustinha perde a sua caput reacutegia o que significa a perda simboacutelica da sua identidade poliacutetica e da sua independecircncia Este ato promove uma alteraccedilatildeo na qualidade de ente imaginado do rei elamita a partir do momento em que este perde a vida e a cabeccedila nas margens do Ulaya a sua di-mensatildeo abstrata comeccedila a desvanecer-se Teumman o rei do Elam transforma-se gradualmente aos olhos dos seus inimigos e conquistadores em Teumman um homem

A apropriaccedilatildeo final do corpo de Teumman eacute demonstrada nos textos onde Assurbaniacutepal faz relatar como cuspiu na sua cabeccedila cortada38 como a exibiu na cidade de Arbela39 e pelas ruas de Niacutenive colocando-a aos ombros de Dunānu um dos aliados de Teumman que foram capturados40 Em pompa triunfal por entre muacutesica e laquoalegriaraquo o saque do Elam e os inimigos da Assiacuteria foram assim exibidos perante a populaccedilatildeo

laquoA cabeccedila de Teumman rei do Elam pendurei ao pescoccedilo de Dunanu () Com o saque do Elam e os despojos de Gambulu que ao comando de Aššur as minhas matildeos capturaram ndash com cantores e muacutesica entrei em Niacutenive por entre exclamaccedilotildees de alegria [ina ḫidāte]raquo41

Assurbaniacutepal teraacute depois consagrado a cabeccedila do seu inimigo aos deuses efetuando sobre ela libaccedilotildees de vinho em contexto ritual42 Eacute notoacuteria a seme-lhanccedila deste ato com as libaccedilotildees efetuadas sobre os cadaacuteveres dos leotildees mortos

36 SAA IX 8 (traduccedilatildeo portuguesa em Caramelo 2002 205-6) 37 Sugestatildeo de Francisco Caramelo Acerca dos oraacuteculos assiacuterios acerca desta conjuntura

poliacutetico militar consultar Caramelo 2002 232-4038 Bonatz 2004 94 Russell 1999 160 1139 Sobre a parada em Arbela ver referecircncias em tabuinhas cuneiformes que se planeavam

transpor para epiacutegrafes de relevos em ARAB II sectsect 1041 1043 1045 e 107140 Ver imagem 66 em Russell 1999 181 = British Museum ME 12480241 Piepkorn 1933 72-73 B vi 50-56 Ver Russel 1999 160-6142 Bonatz 2004 98-99 Russell 1999 161 14

164

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

pelo rei assiacuterio conforme eacute visiacutevel em vaacuterios dos seus relevos que representam a caccedila como actividade reacutegia43 A este propoacutesito afirma Dominik Bonatz que a oferta da cabeccedila de Teumman aos deuses seria um ritual poliacutetico inaugurado por Assurbaniacutepal que introduz assim de forma algo destoante uma actividade laquoprimitivaraquo no seio de uma sociedade urbana e estatal complexa44

Estas manifestaccedilotildees rituais em agradecimento aos deuses seriam consid-eradas como a prova cabal do ponto de vista ideoloacutegico e religioso da justiccedila da causa de Assurbaniacutepal e do apoio divino a ele dispensado O rei assiacuterio aliaacutes teria recebido a resposta agraves suas preces e duacutevidas atraveacutes de consultas oraculares

laquoIštar ouviu os lamentos que lhe dirigi e disse ldquoNatildeo temasrdquo [la tapallaḫ] e confortou o meu coraccedilatildeoraquo

Pelo contraacuterio ao rei elamita teriam surgido pressaacutegios nefastos dizem os textos assiacuterios provavelmente com engenho criativo e retoacuterico que um eclipse surgira no Elam prevendo a sua derrota45 e que um acidente teria deixado Teumman com alguns problemas de sauacutede O incauto Teumman apresentado como descrente do poder dos deuses ou pelo menos convencido que teria a sua ajuda teria ignorado todos estes avisos a sua proacutepria maacute-feacute e imoralidade teriam atraiacutedo a vinganccedila divina laquoTeumman maquinou males [limutti] o deus Sicircn planeou para ele portentos nefastosraquo46

A sua derrota e decapitaccedilatildeo seriam o corolaacuterio da sua impiedade e atos de injusticcedila Eacute entatildeo que aquilo que era indistinto abstrato imaginado (Teumman rei do Elam) se transformava em algo puacuteblico e conhecido as suas feiccedilotildees reais incluindo as suas caracteriacutesticas fiacutesicas concretas e proacuteprias (por exemplo as rugas a textura e cor da pele eventuais assimetrias do rosto)47 tornam-no aos olhos dos que o podem agora contemplar na sua destruiccedilatildeo num ser humano exposto no seu momento mais fraacutegil e vulneraacutevel A exibiccedilatildeo puacuteblica da cabeccedila do rei elamita destroacutei o mito da sua realeza mas natildeo a sua identidade humana em contraste com o soberano assiacuterio a quem os deuses teriam conferido laquoforccedila virilidade e um exaltado poderraquo dunnu zikrūtu emuqān ṣirāti48 Ao contraacuterio do que defende Davide Nadali relativamente agrave representaccedilatildeo do laquoinimigoraquo em geral Teumman natildeo eacute viacutetima de um annullamento49 Pelo contraacuterio a exibiccedilatildeo triunfal

43 Como eacute notado por Bonatz 2004 98 Ver Reade 1998 72-7944 Bonatz 2004 10045 Piepkorn 1933 B v 4-8 Ver Apecircndice de Joachim Mayr na mesma obra 105-946 Piepkorn 1933 62-63 B v 3-547 Os paineacuteis revelam um pormenor interessante a representaccedilatildeo da cabeccedila de Teumman

revela uma certa calviacutecie depois de cair o seu capacete Eacute especialmente visiacutevel em ME 124801a (registo superior) = fig 4

48 Piepkorn 1933 28-29 B i 1149 Nadali 2011-2003 53-57

165

Marcel L Paiva do Monte

dos seus restos mortais iluminava aquilo que por ser apenas imaginado estava oculto Expotildee-se assim aquilo que na perspetiva assiacuteria era um comportamento subversivo e hostil uma obstinaccedilatildeo ilegiacutetima na fuga ao controlo pelo rei assiacuterio natildeo pertencendo ao domiacutenio da ordem e do cosmos Teumman ao deixar de ser apenas uma ideia ou personagem imaginado de um rei inimigo estrangeiro passa a ser algo conhecido logo conquistado A vitoacuteria obtida contra ele e contra o Elam adquiria assim uma dimensatildeo laquoepisteacutemicaraquo que se pode abstrair atraveacutes da metaacutefora da exposiccedilatildeo e manipulaccedilatildeo impune dos seus restos mortais50

A fase final deste processo de humanizaccedilatildeo ou banalizaccedilatildeo de Teumman eacute natildeo obstante rica em significado A representaccedilatildeo onde o rei assiacuterio eacute re-tratado em convivecircncia tranquila com a sua consorte no jardim rodeados de muacutesicos aves e plantas inclui a imagem da cabeccedila do malogrado rei elamita pendurada numa aacutervore como trofeacuteu51 O propoacutesito deste contraste eacute oacutebvio ao caos da batalha de Til Tuba nas margens de um rio transformado em escoadouro de cadaacuteveres num espaccedilo de desordem e confusatildeo e onde o rei inimigo ainda surge como um ser vivente sucede a ordem e a tranquilidade representada pelo jardim onde Assurbaniacutepal beberica com a sua esposa Nesse jardim Teumman ainda existe mas apenas enquanto resto mortal soacute com o inimigo neste estado derrotado morto e banalizado seria possiacutevel o advento da paz e a construccedilatildeo de um espaccedilo poliacutetico e coacutesmico de ordem Pois enquanto aquele respirasse seriam a chacina o combate e a morte a imperar

A utilizaccedilatildeo do espaccedilo como elemento discursivo natildeo eacute verbalizada de modo expliacutecito poreacutem torna-se evidente que os lugares de algum modo se transformam em atributos da realeza ndash o jardim de Assurbaniacutepal eacute um siacutem-bolo ou uma metaacutefora para o ideal do mundo controlado pela Assiacuteria ameno proacutespero fecundo pacato52 Em oposiccedilatildeo o lugar onde se desenrola a batalha contra os Elamitas situado fora dos domiacutenios assiacuterios eacute um espaccedilo de morte de fuga em estouro nele corre um rio o Ulaya que como o Lethes romano faz escorrer para o apsucirc ie para o esquecimento para o torpor do obliacutevio que caracterizava o marido de Tiamat as veleidades de Teumman em comparar-se a Assurbaniacutepal

3 Vencer fazer esquecer

Em certos contextos do Proacuteximo Oriente antigo decepar e reunir partes dos cadaacuteveres de soldados inimigos como um meio de facilitar a contagem das baixas infligidas parece ter sido uma praacutetica comum Recordemos o Egito em que era costume cortar natildeo somente as matildeos direitas dos inimigos mortos mas

50 Liverani 1979 30751 Bonatz 2004 99-100 (cf Caramelo 2003 92)52 Ver as observaccedilotildees em Caramelo 2003 92

166

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

tambeacutem os seus oacutergatildeos sexuais A espoliaccedilatildeo da virilidade e da forccedila vital do inimigo deveraacute ser vista como um instrumento de caraacutecter laquomaacutegico-punitivoraquo que consubstanciava a vitoacuteria53

Na arte palaciana assiacuteria a decapitaccedilatildeo do inimigo como elemento discur-sivo e propagandiacutestico eacute ainda patenteada em cenas que representam uma dupla de escribas fazendo o trabalho de contagem de cabeccedilas cortadas Este topos visual aparece em diversos relevos assiacuterios a maior parte deles originaacuterios do Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive A contagem das cabeccedilas e natildeo dos corpos parece ter sido uma forma de facilitar esse inventaacuterio jaacute que nessas representaccedilotildees as cabeccedilas satildeo empilhadas diante dos escribas Efetuando um gesto de contagem estes registam as quantidades aferidas em tabuinhas de argila folhas de perga-minho ou papiro e em laquotaacutebuas de ceraraquo (lērsquou)54

Ao contraacuterio da decapitaccedilatildeo de Teumman cujo significado poliacutetico e sim-boacutelico eacute evidente nestes exemplos entendidos a partir de uma anaacutelise prelimi-nar descritiva a accedilatildeo que intentam representar aparenta ser mais prosaica natildeo possuindo qualidades simboacutelicas especiais55 Na aparecircncia tratar-se-ia de um ato puramente administrativo pois os exeacutercitos assiacuterios em tracircnsito contavam com escribas que cumpriam tarefas burocraacuteticas e logiacutesticas tais como o raciona-mento e distribuiccedilatildeo de equipamento o registo de tributos e de saque e mesmo o registo de baixas tantas as proacuteprias como as do inimigo56

No entanto a anaacutelise deste tema iconograacutefico permite-nos alcanccedilar out-ros niacuteveis de significado Um deles eacute a vitoacuteria sobre o inimigo por via da sua decomposiccedilatildeo ou dissoluccedilatildeo O conteuacutedo semacircntico destas imagens pretendia mostrar que o exeacutercito inimigo ainda que numeroso passara a ser atomizado pela acumulaccedilatildeo das suas baixas em pilhas disformes Eacute disso sintomaacutetico que em vaacuterias dessas imagens as cabeccedilas decapitadas surjam em associaccedilatildeo com os frutos do saque efetuado pelos Assiacuterios como armas mobiliaacuterio e toda a sorte de outros bens57

Reduzir o inimigo a um objecto de tratamento estatiacutestico equivalia a transformaacute-lo numa entidade anoacutenima58 Tal eacute a interpretaccedilatildeo de Davide Nadali que postula acertadamente que as cabeccedilas dos guerreiros adversaacuterios antes isoladas mas integradas na completude fiacutesica do seu ser e corpo perdem a sua personalidade e individualidade ao serem acumuladas como objetos Misturan-do-se confundindo-se com muacuteltiplas outras identidades numa massa amorfa o

53 Segundo Arauacutejo 2010 102-454 Dois exemplos de imagens de relevos do British Museum BM 124955-7 de Senaquerib

(fig 6) e ME 124825 (fig 7) de Assurbaniacutepal Sobre este tema iconograacutefico consultar ainda Russell 1991 292 nota 36 e o trabalho mais recente de Julian Reade (Reade 2012)

55 Bonatz 2004 9956 Saggs 1963 148 Reade 201257 Fig 7 ME 124825 Cf Nadali 2001-2003 6658 Bonatz 2004 93

167

Marcel L Paiva do Monte

inimigo torna-se segundo as palavras de Nadali laquoirreconheciacutevel e reduzido a um mero objectoraquo sobre o qual incidia a accedilatildeo militar assiacuteria59

Esvaziando-se a identidade do inimigo desta forma simboacutelica pode assim notar-se uma metaacutefora para a imersatildeo no laquocaos primordialraquo em que a inexistecircn-cia das coisas se definia antes de mais pela ausecircncia de uma forma de um nome de uma identidade De facto se Teumman um inimigo com um estatuto reacutegio pode ser visto ainda como um personagem importante na narrativa construiacuteda pelos produtores destas representaccedilotildees textuais e visuais os seus soldados pelo contraacuterio poderatildeo ser nelas considerados como meros figurantes Esta indis-tinccedilatildeo ou perda de individualidade do inimigo atraveacutes da morte equivale ao seu obliacutevio Neste contexto o esquecimento absoluto do derrotado constituiacutea uma inversatildeo da possibilidade que o vitorioso dispunha de perpetuar os seus laquofeitosraquo atraveacutes da celebraccedilatildeo monumental do registo literaacuterio e da construccedilatildeo da sua memoacuteria ndash isto eacute da sua sobrevivecircncia para laacute da morte

Reflexos sobre o obliacutevio do inimigo como um estado equiparado agrave sua morte absoluta surgem amiuacutede nos textos analiacutesticos A sua fuga ainda que bem-sucedida pode ser entendida como uma laquosaiacuteda de cenaraquo da Histoacuteria de acordo com a visatildeo oficial assiacuteria Sargatildeo II no seu oitavo palucirc (714 aC) duran-te a sua campanha militar contra Manneus e Medos derrotou Mitatti da terra de Zikirtu Depois de a sua capital Parda ser destruiacuteda Mitatti fugiu com o seu povo laquopara natildeo mais ser vistoraquo60

Por sua vez Šuzubu alias Mušēzib-Marduk liacuteder dos rebeldes caldeus teria fugido sozinho durante a quarta campanha do reinado de Senaquerib (700 aC) O pavor causado pela perspetiva de uma batalha contra os exeacutercitos assiacuterios tecirc-lo-ia feito escapar sozinho nunca mais tendo havido notiacutecia do seu paradeiro laquoEle fugiu sozinho como um lince [kima azari] e nunca se soube o seu paradeiroraquo61

O obliacutevio contudo poderaacute natildeo ser apenas considerado como metaacutefora para a morte ou fuga apavorada do inimigo como resultado da conquista e da vitoacuteria sobre o adversaacuterio a deportaccedilatildeo de populaccedilotildees eacute tambeacutem envolvida num dis-curso ideoloacutegico que lhe pode ser associado62 Esta praacutetica que se tornou bastante mais usual a partir do reinado de Tiglat-Falasar III63 consistia na deslocaccedilatildeo forccedilada de comunidades que viviam em territoacuterios conquistados pelos Assiacuterios e tornados depois em proviacutencias como meio de puniccedilatildeo de aproveitamento de

59 Nadali 2001-2003 66 laquonumerosi corpi acefali e denudati di nemici ormai irriconoscibili e ridotti a meri oggetiraquo

60 ARAB II sect 19 Fuchs 1993 110 Ann sect 12761 RINAP 31 nordm 15 ls iv 23 Se Šuzubu escapou como laquoum linceraquo um animal selvagem

Lulicirc rei de Siacutedon havia fugido no ano anterior (701 aC) para Chipre laquocomo um peixeraquo kima nūni iparšid

62 Nadali 2001-2003 56-5763 A melhor siacutentese sobre este tema Oded 1979

168

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

recursos humanos e como forma de destruir a identidade poliacutetica da comunidade afetada As populaccedilotildees deportadas espoliadas da sua personalidade proacutepria en-quanto membros de uma entidade poliacutetica passavam a ser integradas no interior do mundo controlado pelos Assiacuterios concebido como um espaccedilo onde imperava a ordem exigida para o equiliacutebrio coacutesmico e terreno

Ao niacutevel discursivo a ideia dessa integraccedilatildeo podia ocorrer por exemplo na absorccedilatildeo dos deportados pela proacutepria populaccedilatildeo assiacuteria Tal eacute refletido na ex-pressatildeo laquocontei-os entre as gentes da Assiacuteriaraquo itti nišē māt Aššur amnu-šunūti64 Estas expressotildees convencionais revelam que de algum modo estas gentes eram consideradas subsumidas imersas ainda que ao niacutevel discursivo e ideoloacutegico no conjunto dos suacutebditos do soberano Importa referir que a deportaccedilatildeo era um momento privilegiado para a atuaccedilatildeo dos escribas assiacuterios pois as deslocaccedilotildees de pessoas por territoacuterios vastos implicavam um aparato logiacutestico sofisticado e um esforccedilo organizativo acentuado para a sua realocaccedilatildeo posterior O registo escrito das famiacutelias e indiviacuteduos deportados com suas origens e destinos65 eacute um sinal de como a sua absorccedilatildeo na ordem assiacuteria era mais um aspeto da dimensatildeo episteacutemica da conquista

A estas observaccedilotildees deve ser adicionada uma outra os temas da con-tagem de tributos e dos restos mortais de inimigos como signos de vitoacuteria e a contagem de populaccedilotildees deportadas ref letem natildeo somente uma dimensatildeo simboacutelica de um discurso baseado na violecircncia mas tambeacutem uma faceta burocraacutetica do exerciacutecio do poder A natureza administrativa do poder complementa ao niacutevel discursivo a dimensatildeo religiosa heroica e carismaacuteti-ca do soberano revelando a complexidade da ideologia e cultura poliacutetica no impeacuterio neo-assiacuterio Natildeo era apenas o pathos da guerra ndash o furor a agressivi-dade e a coragem fiacutesica dos soldados Assiacuterios face ao inimigo ndash o uacutenico meio de demonstrar como fazem os relevos ninivitas onde se espraia a batalha de Til Tuba a capacidade e justeza do poderio da Assiacuteria a sua organizaccedilatildeo enquanto estado era um elemento racional que reforccedilava a sua imagem de superioridade

Consideraccedilotildees finais

A exibiccedilatildeo da cabeccedila de Teumman como um dos protagonistas do pro-grama monumental de Assurbaniacutepal e o tema da acumulaccedilatildeo de cabeccedilas de soldados inimigos mortos contribuem para banalizar e depreciar o inimigo em

64 Isto se afirma por exemplo acerca de Caldeus do Sul da Mesopotacircmia recolocados por Tiglat-Falasar III em diferentes proviacutencias assiacuterias apoacutes as suas campanhas na Babiloacutenia laquoe contei-os juntamente com o povo da Assiacuteria Sobre eles impus tal como aos Assiacuterios o jugo de Aššur meu senhorraquo (ARAB I sect 764)

65 Ver por exemplo os registos compilados em SAA XI cap 8

169

Marcel L Paiva do Monte

contraste com a projeccedilatildeo da majestade do soberano assiacuterio e da forccedila dos seus exeacutercitos cuja accedilatildeo era objecto de justificaccedilatildeo ideoloacutegica e moral

Todavia devemos identificar uma diferenccedila significativa nestes dois modos de tratamento simboacutelico e artiacutestico do tema do inimigo decapitado por um lado se Teumman atraveacutes da sua cabeccedila cortada eacute humanizado ao ser despido da sua aura reacutegia ao ser-lhe retirada a maacutescara da realeza os seus soldados pelo contraacuterio eram desumanizados e equiparados a objetos A sua morte equivalia agrave sua expulsatildeo para o caos primordial que o rei assiacuterio como qualquer soberano mesopotacircmico tinha o dever de combater66

Entre estas duas perspetivas se observa uma tensatildeo entre o ato de expor de trazer agrave luz e conhecer o inimigo conquistado (logo a sua transformaccedilatildeo em algo familiar que jaacute natildeo provoca tensatildeo ou medo) e o discurso que provoca simbolicamente o seu esquecimento a sua imersatildeo no obliacutevio e no caos Se como objetos de um registo contabiliacutestico que os agregava de modo indistinto os comuns soldados eram despidos da sua identidade e como tal remetidos ao obliacutevio os seus reis passariam a integrar a gesta narrativa da expansatildeo assiacuteria os seus nomes recordados como derrotados ou submetidos nas inscriccedilotildees que glorificavam os monarcas de Aššur

A inclusatildeo do tema da decapitaccedilatildeo dos inimigos nos programas artiacutesticos dos palaacutecios assiacuterios constituiacutea um ato comunicativo endereccedilado natildeo jaacute a partir da periferia como taacutetica psicoloacutegica que respondia a necessidades militares directa no terreno mas sim no centro do poder Este controlo sobre as imagens e representaccedilotildees assumia-se como uma siacutentese de uma forma de exerciacutecio de poder que refletia uma seleccedilatildeo cuidada e uma dimensatildeo propagandiacutestica67 Seria intenccedilatildeo dos produtores dessas representaccedilotildees linguiacutesticas e natildeo-linguiacutesticas (isto eacute o rei e a elite mais proacutexima do poder) provocar determinadas respostas nos observadores Poreacutem integrando-se no aparato simboacutelico dos palaacutecios e capitais assiacuterias estes relatos e imagens adquiriam uma dimensatildeo performa-tiva e maacutegico-religiosa que traduzia de modo mais sofisticado os paracircmetros ideoloacutegicos que o poder assiacuterio tencionava consubstanciar Assim esperar-se-ia que a representaccedilatildeo do inimigo morto tendo mais do que apenas um propoacutesito simboacutelico o mantivesse nesse estado de uma forma maacutegica68

Nestes elementos discursivos eacute notoacuterio um paradoxo o desencadear da guerra como actividade geradora de paz a celebraccedilatildeo da ordem coacutesmica pro-videnciada pelo soberano tornada possiacutevel apenas muitas vezes afrontando o ordaacutelio caoacutetico da batalha e por fim a exposiccedilatildeo da violecircncia e da crueldade infligida sobre corpos humanos pelo poder instituiacutedo ndash algo que a desejaacutevel

66 Reade 1979 332 Nadali 2001-200367 Reade 1979 329-43 Liverani 1979 297-31768 Nadali 2001-2003 64 Bahrani 2004 115-19

170

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

laquonormalidaderaquo da vida social aconselha agrave ocultaccedilatildeo ndash como forma de enaltecer a quietude de uma vida submissa e obediente Todavia estas contradiccedilotildees assim constatadas satildeo apenas aparentes e de resto estabelecidas a partir da nossa proacutepria perspetiva Guerra vs paz ordem vs caos o rei guerreiro vs o rei pastor piedoso para com o seu povo natildeo seriam antinomias tatildeo oacutebvias na visatildeo assiacuteria Estes opostos segundo paracircmetros culturais mais latos do Proacuteximo Oriente antigo coexistiriam na realidade mundana e divina desde a origem do mundo fazendo parte da sua estrutura e da sua loacutegica mais profunda

171

Marcel L Paiva do Monte

Bibliografia

Arauacutejo Luiacutes Manuel de 2010 ldquoA luta pela sobrevivecircncia no Egipto a expulsatildeo dos lsquoPovos do Marrsquordquo In A Guerra na Antiguidade Vol 3 ed A Ramos dos Santos e Joseacute Varandas 97-150 Lisboa Centro de Histoacuteria da Faculdade de Letras Caleidoscoacutepio

Ataccedil Mehmet-Ali 2006 ldquoVisual Formula and Meaning in Neo-Assyrian Relief Sculpturerdquo The Art Bulletin 88 (1)69-101

Bachelot Luc 1991 ldquoLa fonction politique des reliefs neacuteo-assyriensrdquo In Marchands diplomates et empereurs eacutetudes sur la civilisation meacutesopotamienne offertes agrave Paul Garelli ed Dominique Charpin e Francis Joannegraves 109-28 Paris Eacuteditions Recherche sur les Civilisations

Bahrani Zainab 2008 Rituals of War The Body and Violence in Mesopotamia New York Zone Books

mdashmdashmdash 2004 ldquoThe Kingrsquos Headrdquo Iraq 66115-19Barnett R D 1970 Assyrian Palace Reliefs in the British Museum London

Trustees of the British MuseumBonatz Dominik 2004 ldquoAshurbanipalrsquos headhunt an anthropological

perspectiverdquo Iraq 6693-102Boardman J I E S Edwards N G L Hammond et E Sollberger eds 1991

Cambridge Ancient History Vol 3 parte 2 The Assyrian and Babylonian Empires and other States of the Near East from the Eighth to the Sixth Centuries BC 2ordf ed Cambridge Cambridge University Press

Brinkman J A 1965 ldquoElamite Military Aid to Merodach-Baladanrdquo Journal of Near Eastern Studies 24 (3)161-66

Caramelo Francisco 2003 ldquoOs jardins reais na Assiacuteria uma reproduccedilatildeo idealizada da naturezardquo Revista da Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas 1585-92

mdashmdashmdash 2002 A linguagem profeacutetica na Mesopotacircmia (Mari e Assiacuteria) Cascais Patrimonia

Collins Paul 2008 Assyrian Palace Sculptures London British Museum PressDolce Rita 2004 ldquoThe lsquohead of the enemyrsquo in the sculptures from the palaces of

Nineveh an example of lsquocultural migrationrsquordquo Iraq 66121-32 Foster Benjamin R 1996 Before the Muses an Anthology of Akkadian Literature

2ordf ed 2 vols Bethesda CDL PressFoucault Michel 1975 Surveiller et Punir Naissance de la Prison Paris

GallimardGrayson A K 1981 ldquoAssyrian Royal Inscriptions Literary Characteristicsrdquo In

Assyrian Royal Inscriptions New Horizons in Literary Ideological and

172

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

Historical Analysis Papers of a Symposium held in Cetona (Siena) June 26-28 1980 ed F M Fales 35-47 Roma Istituto per LrsquoOriente

Harmanşah Oumlmuumlr 2007 ldquoUpright stones and building narratives formation of a shared architectural practice in the Ancient Near Eastrdquo In Ancient Near Eastern Art in Context Studies in Honor of Irene J Winter by her students ed J Cheng e M H Feldman 69-99 Leiden Boston Brill

Liverani Mario 2009 ldquoThe King in the Palacerdquo Orientalia 78 (1)81-91mdashmdashmdash 1988 Vicino Oriente Antico Storia Societagrave Economia Roma Laterzamdashmdashmdash 1979 ldquoThe Ideology of the Assyrian Empirerdquo In Power and Propaganda

A Symposium on Ancient Empires ed M T Larsen 297-317 Kobenhavn Akademisk Forlag

Luckenbill D D 1968a Ancient Records of Assyria and Babylonia 2 vols New York Greenwood Press

mdashmdashmdash 1968b Ancient Records of Assyria and Babilonia 2 vols New York Greenwood Press

mdashmdashmdash 1924 The Annals of Sennacherib (Oriental Institute Publications 2) Chicago University of Chicago Press

Nadali Davide 2001-2003 ldquoGuerra e morte lrsquoannullamento del nemico nella condizione del vintordquo Scienze dellrsquoAntichitagrave 1151-70

Oded Bustenay War Peace and Empire Justifications for War in Assyrian Royal Inscriptions Wiesbaden Ludwig Reichert Verlag

mdashmdashmdash 1979 Mass Deportations and Deportees in the Neo-Assyrian Empire Wiesbaden Ludwig Reichert Verlag

Olmstead A T 1918 ldquoThe Calculated Frightfulness of Ashur-nasir-apalrdquo Journal of the American Oriental Society 38209-63

Piepkorn A C 1933 Historical Prism Inscriptions of Ashurbanipal I ndash Editions E B1-5 D and K Chicago University of Chicago Press

Reade Julian 2012 ldquoVisual Evidence for the Status and Activities of Assyrian Scribesrdquo Leggo Studies Presented to Frederick Mario Fales on the Occasion of His 65th Birthday (Leipziger Altorientalische Studien 2) ed G B Lanfranchi D Morandi Bonacossi C Pappi e S Ponchia 699-717 Wiesbaden Harrassowitz

mdashmdashmdash (1998) 2007 Assyrian Sculpture Reimpressatildeo London The British Museum Press

mdashmdashmdash 1979 ldquoIdeology and Propaganda in Assyrian Artrdquo In Power and Propaganda A Symposium on Ancient Empires ed M T Larsen 329-43 Copenhaga Akademisk Forlag

Reed Stephanie 2007 ldquorsquoBlurring the Edgesrsquo A Reconsideration of the Treatment of Enemies in Ashurbanipalrsquos Reliefsrdquo In Ancient Near Eastern Art in

173

Marcel L Paiva do Monte

Context Studies in Honor of Irene J Winter by her Students ed J Cheng e M H Feldman 101-30 Leiden Boston Brill

Grayson A K 1991 Assyrian Rulers of the Early First Millennium BC I (1114-859 BC) Vol 2 de The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods Toronto Buffalo London Toronto University Press

Grayson A Kirk e Jamie Novotny eds 2012 The Royal Inscriptions of Sennacherib King of Assyria (704ndash681 BC) Part 1 (The Royal Inscriptions of the Neo-Assyrian Period 31) Winona Lake Eisenbrauns

Russell John Malcolm 1999 The Writing on the Wall Studies in the Architectural Context of Late Assyrian Palace Inscriptions Winona Lake Eisenbrauns

mdashmdashmdash 1991 Sennacheribrsquos Palace Without Rival at Nineveh Chicago The Chicago University Press

Starr I ed 1990 Queries to the Sungod Divination and Politics in Sargonid Assyria (State Archives of Assyria IV) Helsinki Helsinki University Press

Parpola S ed 1997 Assyrian Prophecies (State Archives of Assyria IX) Helsinki Helsinki University Press

Fales F M e J N Postgate eds 1995 Imperial Administrative Records Part II Provincial and Military Administration (State Archives of Assyria XI) Helsinki Helsinki University Press

Saggs H W F 1963 ldquoAssyrian Warfare in the Sargonid Periodrdquo Iraq 25145-54Tadmor Hayim 1997 ldquoPropaganda Literature Historiography Cracking the

Code of the Assyrian Royal Inscriptionsrdquo In Assyria 1995 Proceedings of the 10th Anniversary Symposium of the Neo-Assyrian Text Corpus Project Helsinki September 7-11 1995 ed S Parpola e R M Whiting 325-36 Helsinki The Neo-Assyrian Text Corpus Project

Thureau-Dangin Franccedilois 1912 Une relation de la huitiegraveme campagne de Sargon II Paris Geuthner

Watanabe C W 2004 ldquoThe lsquoContinuous Stylersquo in the narrative schemes of Ashurbanipalrsquos reliefsrdquo Iraq 66103-14

Winter Irene J [1982] 2010 ldquoArt as Evidence for Interaction Relations between the Neo-Assyrian Empire and North Syria as Seen from the Monumentsrdquo In On Art in the Ancient Near East Vol 1 Of the First Millennium BCE 525-62 Leiden Brill

Wiseman Donald J 1953 ldquoAssyrian writing-boardsrdquo Iraq 173-13

174

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

Fig 2 Batalha de Til Tuba (detalhe) Assurbaniacutepal Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive British Mu-seum ME 124801b copy The Trustees of the British Museum

Fig 1 Palaacutecio de Aššurnasirpal Kalḫu (Nimrud) British Museum ME 124550 copy The Trustees of the British Mu-seum

175

Marcel L Paiva do Monte

Fig 4 A cabeccedila de Teumman sendo despachada para junto do rei assiacuterio British Museum ME 124801a copy The Trustees of the British Museum

Fig 3 Teumman sendo decapi-tado por um soldado as-siacuterio Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive British Muse-um ME 124801c copy The Trustees of the British Museum

176

Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio

Fig

5 O

Ban

quet

e A

ssur

baniacute

pal

Palaacute

cio

Sudo

este

de

Niacuten

ive

Bri

tish

Mus

eum

ME

1249

20

copy Th

e Tr

uste

es o

f the

Bri

tish

Mus

eum

177

Marcel L Paiva do Monte

Fig 6 Palaacutecio Sudoeste de Niacutenive British Museum ME 124955-7 copy The Trustees of the Brit-ish Museum

Fig 7 Escribas contando ca-beccedilas e tributos Palaacute-cio Sudoeste de Niacutenive British Museum ME 124825 copy The Trustees of the British Museum

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

179

Joatildeo Pedro Vieira

Beber do Nilo ou do Eufrates O papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do

imperium neobabiloacutenico em Judaacute1 (To drink from the Nile or the Euphrates On the role of (the book of)

Jeremiah in legitimising the Neo-Babilonic imperium over Judah)

Joatildeo Pedro Vieira(jpferreiravieiragmailcom ORCID 0000-0002-0318-9297)

Universidade de Lisboa

Resumo - Com base em Jr 27-29 o presente estudo argumenta que Jeremias defendia a submissatildeo divinamente fundamentada de Judaacute perante o Impeacuterio Neobabiloacutenico e que a sua intervenccedilatildeo sociopoliacutetica poderaacute ter sido reconhecida pelas elites poliacuteticas neoba-biloacutenicas como instrumento de legitimaccedilatildeo e imposiccedilatildeo do seu imperium sobre Judaacute

Palavras-chave Poliacutetica ideologia Jeremias Impeacuterio Neobabiloacutenico Judaacute

Abstract ndash Relying mainly on Jr 27-29 the present study contends that Jeremiah upheld Judahrsquos divinely ordained submission to the Neo-Babylonian Empire and that its socio-political action may have been acknowledged by the Neo-Babylonian elites as a means of legitimating and enforcing Neo-Babylonian rule over Judah

Keywords Politics ideology Jeremiah Neo-Babylonian Empire Judah

Introduccedilatildeo

A presente contribuiccedilatildeo pretende explorar e problematizar a dimensatildeo poliacutetico-ideoloacutegica inerente agrave tradiccedilatildeo textual jeremiana na perspetiva da expansatildeo poliacutetico-militar neobabiloacutenica na Palestina e das suas repercussotildees poliacuteticas e ideoloacutegicas entre as elites sociopoliacuteticas judaiacutetas Para tal propoacutesito seraacute necessaacuterio discernir linhas de pensamento e atuaccedilatildeo tanto no que se refere agraves entidades editoriaisredacionais envolvidas na textualizaccedilatildeo da tradiccedilatildeo jeremiana como no que se reporta agrave presumiacutevel intervenccedilatildeo sociopoliacutetica de Jeremias enquanto agente histoacuterico A investigaccedilatildeo da atividade profeacutetica jere-miana sob o prisma de uma accedilatildeo protetora construtiva mas igualmente criacutetica e socialmente relevante da instituiccedilatildeo real enquanto epicentro da sociedade hierosolimita e representante da ordem divina em linha com os paralelos profeacute-ticos mariotas e neoassiacuterios seraacute um dos seus vetores estruturantes2

1 Abreviaturas usadas KAI (Donner-Roumlllig 2002) HALOT (Khoeler-Baumgartner 2000) SAA (Parpola-Watanabe 1988)

2 De Jong 2007 2011 A exiguidade do espaccedilo disponiacutevel natildeo permite tratar com o necessaacuterio desenvolvimento os muacuteltiplos pressupostos e aproximaccedilotildees conjeturais que fundamentam estruturalmente a presente contribuiccedilatildeo Em siacutentese assume-se que a intervenccedilatildeo sociopoliacutetica

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_9

180

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

A dimensatildeo poliacutetica e ideoloacutegica da tradiccedilatildeo textual jeremiana

A tradiccedilatildeo textual jeremiana representada principalmente pelas famiacutelias textuais alexandrina (LXX) e massoreacutetica (TM) eacute atravessada por muacuteltiplas tensotildees e contradiccedilotildees interpretativas resultantes da incorporaccedilatildeo de materiais diversos e ideologicamente contraditoacuterios ou mesmo antagoacutenicos Este caraacutecter compoacutesito e polifoacutenico da tradiccedilatildeo levou os inteacuterpretes agrave inferecircncia de vaacuterios estratos redacionais intervenccedilotildees editoriais configuraccedilotildees de interesses ideo-logias e grupos sociopoliacuteticos conflituantes situados em Judaacute na Babiloacutenia e no Egito

Respondendo possivelmente a um conflito de autoridade e legitimidade religiosa e sociopoliacutetica sobre a Judaacute poacutes-monaacuterquica a visatildeo dos dois cestos de figos (Jr 24) conserva um dos textos mais poleacutemicos e fraturantes da tradiccedilatildeo construindo um discurso manifestamente dicotoacutemico e exclusivista marcado pela bipolarizaccedilatildeo hiperboacutelica da comunidade3 De acordo com este texto apenas os grupos deportados em 597 aC equacionados com os figos oacutetimos beneficiam da eleiccedilatildeo divina e da sua promessa de restauraccedilatildeo enquanto Sedecias os seus altos oficiais os hierosolimitas remanescentes e os exilados no Egito equacio-nados com os figos peacutessimos intragaacuteveis se tornam no alvo de uma retoacuterica de execraccedilatildeo excluiacutedos e condenados ao oproacutebrio e ao extermiacutenio

A tradiccedilatildeo jeremiana dispotildee igualmente de materiais heuriacutesticos tex-tual redacional e literariamente heterogeacuteneos diretamente reportaacuteveis agrave conflituosidade sociopoliacutetica hierosolimita durante a crise de 609-586 aC com especial incidecircncia no periacuteodo de 597-586 aC Jr 2210-30 deixa en-trever atitudes jeremianas historicamente verosiacutemeis relativamente a Joacaz II (Šallum) Josias Joaquim e Joaquin Jr 28-29 evidencia a existecircncia de expetativas restauracionistas provavelmente centradas na figura reacutegia de Joaquin tanto em Judaacute como nas comunidades exiacutelicas babiloacutenicas expotildee a posiccedilatildeo de Jeremias quanto agrave relaccedilatildeo entre Judaacute e o Impeacuterio Neobabiloacutenico e sugere o desenvolvimento de fortes clivagens poliacuteticas e ideoloacutegicas Jr 38 retrata em particular o grau de inf luecircncia dos altos-oficiais reacutegios na conduccedilatildeo do estado judaiacuteta e a difiacutecil gestatildeo do officium regis nos momentos finais da monarquia daviacutedida

histoacuterica de Jeremias natildeo se teraacute desenvolvido em conformidade eou representaccedilatildeo nem de um cacircnone (proto-)deuteronoacutemico de caraacutecter centralizador exclusivista monoteiacutesta e fortemente intolerante nem de um reformismo josiano implementado nessas linhas nem de qualquer movimento poliacutetico-religioso de iacutendole reformista assente nessa ideologia (contra eg Holladay 1986-89 11-10 Albertz 1994a 195-242 Sweeney 2001 137-70 Leuchter 2006 2008)

3 Veja-se Ez 1115

181

Joatildeo Pedro Vieira

O Reino de Judaacute no contexto poliacutetico internacional de 626-582 a C

Considerando a evoluccedilatildeo poliacutetica de Judaacute entre c 734 e 586 aC e apesar do longo periacuteodo de dominaccedilatildeo neoassiacuteria eacute liacutecito afirmar que pelo menos parte substancial das elites sociopoliacuteticas judaiacutetas nunca se teraacute verdadeiramente conformado com a submissatildeo de Judaacute a uma potecircncia mesopotacircmica De facto sempre que criadas circunstacircncias poliacuteticas favoraacuteveis (705-701 630-620 601-597 588-586 aC) os grupos de decisatildeo hierosolimitas procuraram sacudir o jugo mesopotacircmico Os seus caacutelculos estrateacutegicos envolveram invariavelmente uma outra potecircncia regional ndash o Egito ndash a uacutenica teoricamente capaz de garantir a proteccedilatildeo externa e oferecer apoio poliacutetico-militar efetivo aos estados palestin-enses

Com a complexificaccedilatildeo do cenaacuterio geopoliacutetico internacional a partir da deacutecada de 620 aC a gestatildeo da poliacutetica externa judaiacuteta passou a caracterizar--se por uma alternacircncia forccedilosa e sinuosa de fidelidades poliacuteticas entre Egito saiacuteta e Babiloacutenia com consequecircncias internas amiuacutede dramaacuteticas O efeacutemero periacuteodo de autonomia poliacutetica controlada de Judaacute possibilitado pelo eclipse da hegemonia neoassiacuteria entre 626 e 609 aC e a concomitante ascensatildeo do Egito4 terminou drasticamente no 2ordm semestre de 609 Necao II ordenou a execuccedilatildeo (provaacutevel) de Josias5 a deportaccedilatildeo de Joacaz II a nomeaccedilatildeo coerciva de Joaquim e a imposiccedilatildeo de um avultado tributo (2 Rs 2329-34) Poreacutem a hegemonia egiacutep-cia sobre a Palestina foi de curta duraccedilatildeo Derrotados na batalha de Qarkemiš no 2ordm semestre de 605 aC os exeacutercitos egiacutepcios foram perseguidos e trucidados em Ḫamat e nos finais de 604 aC Nabucodonosor II voltava agrave Palestina para submeter ou destruir os recalcitrantes6 Joaquim natildeo teraacute tido outra opccedilatildeo senatildeo reconhecer a suserania neobabiloacutenica

A repulsatildeo das forccedilas de Nabucodonosor II agraves portas do Egito em finais de 601 aC criou a oportunidade para a rejeiccedilatildeo da hegemonia neobabiloacutenica em Judaacute7 No 1ordm trimestre de 597 aC Judaacute sofria as consequecircncias da sublevaccedilatildeo Apoacutes um cerco natildeo superior a 2 meses Jerusaleacutem capitulava pacificamente A cida-de e o estado judaiacuteta foram por isso poupados mas a famiacutelia real elites dirigentes e parte dos sectores militares e produtivos da cidade foram deportados Joaquin foi destituiacutedo e substituiacutedo por Sedecias e a cidade foi parcialmente espoliada8

O realinhamento mesopotacircmico de Judaacute revelou-se fraacutegil O ressurgimento

4 Veja-se Narsquoaman 2005 365-69 Miller-Hayes 2006 446-47 Schipper 20115 Narsquoaman 2005 381 Talshir 19966 Croacutenica Babiloacutenica BM 21946 frente ll 2-13 Glassner 2005 226-29 Wiseman 1956 23-28

66-69 Lipschits 2005 37-407 Croacutenica Babiloacutenica BM 21946 vordm ll 5-7 Glassner 2005 228-29 Wiseman 1956 29-31

70-71 Lipschits 2005 49-518 2Rs 2410-18 Croacutenica Babiloacutenica BM 21946 vordm ll 12-13 Glassner 2005 230-31 Wiseman

1956 32-35 72-73

182

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

poliacutetico-militar do Egito na Siacuteria-Palestina a partir de c 595 aC e o relativo afas-tamento da Babiloacutenia do cenaacuterio ocidental convenceram parte determinante das elites dirigentes hierosolimitas a furtarem-se novamente ao jugo mesopotacircmico o mais tardar em 588 aC num clima de progressiva agudizaccedilatildeo das clivagens poliacutetico-ideoloacutegicas internas Nos finais desse ano ou iniacutecios de 587 aC as forccedilas neobabiloacutenicas regressavam a Jerusaleacutem O receio de uma intervenccedilatildeo militar egiacutepcia levou ao levantamento provisoacuterio do cerco contudo pronta-mente retomado9 No veratildeo de 586 aC apoacutes ano e meio de cerco e muacuteltiplas depredaccedilotildees e destruiccedilotildees ao longo do territoacuterio judaiacuteta as forccedilas neobabiloacutenicas forccedilaram a entrada na cidade10 Seguiram-se deportaccedilotildees execuccedilotildees pilhagens com especial destaque para o palaacutecio e o templo e menos de um mecircs depois a destruiccedilatildeo sistemaacutetica da cidade Sedecias foi severamente punido e deportado a monarquia daviacutedida abolida e Judaacute provincializado sob a direccedilatildeo de um alto--oficial judaiacuteta Gedalyāhucirc b rsquoĂḥicircqām (Godolias)11

Godolias natildeo foi capaz de unificar os remanescentes em torno do governo sedeado em Miṣpah a norte de Jerusaleacutem sob observaccedilatildeo neobabiloacutenica Pou-cos meses depois da sua nomeaccedilatildeo um grupo dissidente liderado por Ismael de ascendecircncia real e apoiado por Balsquoalicircs de Amon regressou a Judaacute para derrubar o governo provincial e eventualmente restaurar a monarquia daviacutedida Godolias e os representantes da autoridade neobabiloacutenica teratildeo sido assassinados12 Apesar disso as forccedilas ismaelitas acabaram por ser repelidas e parte dos sobreviventes na nova capital dispersa por receio de represaacutelias tendo no Egito um dos principais destinos de exiacutelio13 Em 582 aC os neobabiloacutenios moveram a uacuteltima campanha militar conhecida no Sul da Palestina extraindo de Judaacute uma terceira leva de de-portados14 e acentuando a depressatildeo social poliacutetica e econoacutemica em que haviam mergulhado Judaacute e sobretudo Jerusaleacutem15

A intervenccedilatildeo poliacutetico-religiosa de Jeremias

Jr 2 Yahweh rsquoĕlōhicircm lebaddekā16

Jr 218 oferece um possiacutevel ponto de partida relativamente agrave conceptuali-zaccedilatildeo das relaccedilotildees poliacuteticas entre Judaacute e as potecircncias estrangeiras na tradiccedilatildeo jeremiana laquoIsraelraquo eacute retoacuterica e interrogativamente interpelado com a questatildeo laquoE agora que ganhas em seguir o caminho do Egito para beber das aacuteguas do Šihocircr

9 Jr 375 7-9 1110 Jr 393 526-7 2Rs 25311 2Rs 257-22 Jr 396-9 (TM) Jr 407 5210-26 29 (TM)12 2Rs 2525 Jr 411-313 2Rs 2526 Jr 4314 Jr 5230a (TM)15 Lipschits 2003 2005 186-27116 2Rs 1919

183

Joatildeo Pedro Vieira

Que ganhas em seguir o caminho da Assiacuteria para beber das aacuteguas do Nāhārraquo Como e em que sentido interpretar esta interrogaccedilatildeo Em que medida reflete o pensamento e a accedilatildeo de Jeremias

O v 18 insere-se na periacutecope constituiacuteda pelos vv 14-19 e numa unidade mais vasta delimitada por 21 e 4417 e centrada na temaacutetica da infidelidade de Israel a Yahweh O etnoacutenimo laquoIsraelraquo seraacute melhor entendido como designaccedilatildeo metoniacutemica para Judaacute e particularmente Jerusaleacutem ndash esta uacuteltima identificaccedilatildeo eacute jaacute sugerida por 22a (laquoVai e proclama a Jerusaleacutemraquo gt LXX) No contexto de 214-19 a imagem de Israel eacute construiacuteda atraveacutes de um leacutexico que enfatiza a servidatildeo humilhaccedilatildeo fraqueza dependecircncia assim como a destruiccedilatildeo da terra e do povo A infidelidade a Yahweh eacute equacionada com o faacutetuo recurso a duas potecircncias poliacuteticas internacionais metonimicamente evocadas atraveacutes dos potamoacutenimos Šihocircr (=Nilo ou um seu braccedilo oriental LXX Gecircocircn) referente ao Egito e Nāhār (=Eufrates) referente agrave Assiacuteria

A passagem natildeo esclarece qual a motivaccedilatildeo ou natureza desse recurso limitando-se a especificar que Israel bebe da aacutegua desses rios e a exprimir a inutilidade dessa accedilatildeo (mah lāk lederek hellip dativo de interesse) Ao procurar satisfazer a sua sede buscando conforto e salvaccedilatildeo nas aacuteguas desses caudalosos rios Judaacute abandonou e desprezou Yahweh laquofonte de aacuteguas vivasraquo (213bα2) A dupla interrogaccedilatildeo seraacute provavelmente um reflexo da flutuaccedilatildeo da poliacutetica exter-na judaiacuteta entre a fidelidade ao Egito e a fidelidade ao Impeacuterio Neobabiloacutenico ndash metonimicamente representado pelo etnoacutenimo laquoAssiacuteriaraquo18 ndash no periacuteodo 604-588 aC Acerca da primeira potecircncia afirma o v 16 considerado intrusivo por alguns autores que os filhos de Nōp e de Taḥpanḥēs laquoraparatildeoraquo19 a cabeccedila de Israel Um pouco antes o v 15 apresentava o Impeacuterio Neobabiloacutenico sob a imagem de leotildees os quais rugiam contra Israel e incendiaram e despovoaram as suas cidades sugerindo uma referecircncia aos acontecimentos de 597 aC

Partindo do pressuposto de que qualquer ato comunicativo profeacutetico ou escribal visaria cumprir genericamente um criteacuterio de relevacircncia maacutexima a referecircncia agrave destruiccedilatildeo e despovoamento de Judaacute e a projeccedilatildeo da humilhaccedilatildeo e dececcedilatildeo egiacutepcia num futuro proacuteximo enquadrar-se-atildeo mais adequadamente num periacuteodo criacutetico presumivelmente situado entre 597 e 588 aC Esta opccedilatildeo interpretativa natildeo estaacute poreacutem isenta de dificuldades ndash eg a referecircncia ale-gavelmente vaga e imprecisa (poeacutetica) agrave Babiloacutenia num periacuteodo em que dela havia jaacute um conhecimento direto e manifesto20 Natildeo obstante a assunccedilatildeo de um contexto preacute-609 aC com base na vaga alusatildeo agrave agressatildeo egiacutepcia (v 16) tornaria

17 Holladay 1986-89 162 Lundbom 1999 249 veja-se Albertz 2003 32818 Veja-se Lm 5619 Conjeturalmente revocalizado yerōlsquoucirck por McKane [1986] 2001 36-37 Lundbom 1999

269 272 ou yerēlsquoucirck preferido por Holladay 1986-89 151 contra Bartheacutelemy 1986 466-6720 Veja-se Jr 27-29

184

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

aparentemente pouco inteligiacutevel a poliacutetica externa hesitante de Judaacute alegada por Jr 218 e historiograficamente corroborada para os periacuteodos 604-601 e 595-588 aC21 O v 16 seraacute melhor entendido enquanto projeccedilatildeo da intervenccedilatildeo egiacutepcia de 609 aC na oacutetica dos acontecimentos de 597-586 aC

Jr 236-37 oferece informaccedilatildeo adicional acerca do modo como a relaccedilatildeo en-tre Judaacute o Egito saiacuteta e o Impeacuterio Neobabiloacutenico era concebida A inconstacircncia e infidelidade de Israel cuja identidade estaacute impliacutecita nos vv 33-37 sob a forma de um alocutaacuterio feminino22 haviam jaacute trazido a humilhaccedilatildeo do paiacutes agraves matildeos da Assiacuteria e resultaratildeo numa nova humilhaccedilatildeo agraves matildeos do Egito Daiacute23 sairaacute Israel com as matildeos sobre a cabeccedila (v 37a) uma manifestaccedilatildeo de desgraccedila e desespero sendo possiacutevel que o texto se reporte ao envio de emissaacuterios ao Egito no acircmbito de negociaccedilotildees para garantir o apoio saiacuteta contra o domiacutenio neobabiloacutenico Efe-tivamente eacute Yahweh quem traz o oproacutebrio a Israel ao rejeitar os seus aliados (v 37a)

As passagens acima tratadas defendem agrave semelhanccedila de Is 301-7 e Os 711-13 121-2 uma perspetiva teo-ideoloacutegica segundo a qual Judaacute deve rejeitar qualquer alianccedila poliacutetica com potecircncias estrangeiras e particularmente no caso vertente com o Egito Semelhante perspetiva se pode encontrar em Is 301-7 Nem o Egito nem o Impeacuterio Neobabiloacutenico se apresentam como alternativa a Yahweh Ambas as potecircncias agrediram e humilharam significativamente Judaacute no passado e o Egito voltaria certamente a fazecirc-lo pelo que qualquer das opccedilotildees equivalia claramente a um ato de traiccedilatildeo e infidelidade poliacutetico-religiosa temaacuteticas fortes em Jr 21 ndash 44 Estaacute aqui subjacente a convicccedilatildeo numa relaccedilatildeo de privileacutegio e fidelidade entre Yahweh e o seu povo ndash e natildeo entre Yahweh e o rei ndash especialmente caracteriacutestica de Dt e da linguagem dita laquodeuteronomistaraquo de tradiccedilotildees profeacuteticas como Is Os e Am

Embora soacute parcialmente reflitam a dinacircmica do debate poliacutetico interno em Jerusaleacutem no contexto de 594-588 aC os textos acima tratados satildeo surpreen-dentes na tradiccedilatildeo jeremiana agrave luz da atuaccedilatildeo sociopoliacutetica de Jeremias descrita em secccedilotildees como Jr 201-6 211-10 27-29 ou 37-38 onde a tradiccedilatildeo atribui ao profeta uma intervenccedilatildeo ativa fraturante e incisiva perante a realeza e as elites sociopoliacuteticas e religiosas hiersolimitas em defesa da urgente submissatildeo de Judaacute ao domiacutenio neobabiloacutenico como ordem poliacutetica divinamente sancionada por Yahweh Qual das atitudes poliacuteticas representaraacute mais fielmente a atividade sociopoliacutetica de Jeremias Eacute em Jr 27-29 onde repousam algumas das tradiccedilotildees presumivelmente mais antigas24 (apesar de grandes interpolaccedilotildees redacionais25)

21 Sharp 2003 115-1622 Veja-se Jr 232a23 Lundbom 1999 293-94 296 contra McKane [1986] 2001 55 Holladay 1986-89 111124 Veja-se eg De Jong 201225 Veja-se infra e eg modelo redacional de Albertz 2003 312-45

185

Joatildeo Pedro Vieira

que o esforccedilo de interpretaccedilatildeo seguinte se focaraacute privilegiando os testemunhos textuais fornecidos pela versatildeo alexandrina26

Jr 27-29 a submissatildeo agrave Babiloacutenia como imperativo divinoJr 27 a conferecircncia hierosolimita de 593 aC e o jugo da BabiloacuteniaJr 2727 relata uma intervenccedilatildeo profeacutetica de Jeremias no contexto do conveacute-

nio poliacutetico-diplomaacutetico que teraacute reunido em Jerusaleacutem sob provaacutevel instigaccedilatildeo egiacutepcia os emissaacuterios dos estados do Edom Moab Amon Tiro e Siacutedon O conveacutenio teraacute sido animado por um forte sentimento antibabiloacutenico e destinar--se-ia a discutir a insurreiccedilatildeo dos estados participantes contra a hegemonia neobabiloacutenica28 A dataccedilatildeo apresentada por TM v 1 (gtLXX) estaacute manifestamente incorreta (texto conflato) uma vez que os acontecimentos se referem ao reinado de Sedecias e natildeo de Joaquim devendo assumir-se aqui com base na ligaccedilatildeo temaacutetica e narrativa iacutentima entre Jr 27-28 um periacuteodo algo anterior ao quinto mecircs do ano 4 de Sedecias (Jr 281aα-β (TM))29 ie algures entre abrilmaio e setembro de 593 aC30

Carregando correias e cangalhos31 sobre o pescoccedilo Jeremias interpela os emissaacuterios afirmando-lhes que Yahweh criador no justo exerciacutecio do seu poder confiara ao rei da Babiloacutenia32 a soberania sobre a criaccedilatildeo e laquoestes paiacutesesraquo (vv 5-6) e ordenara a todos os povos e reinos o dever sagrado de carregar a canga ou jugo (lsquoōl) da Babiloacutenia e servir o seu rei (v 8) Os emissaacuterios satildeo ainda dissuadidos de confiarem nos agentes profeacuteticosdivinatoacuterios que defendem aconselham ou preveem a resistecircncia agrave Babiloacutenia ou o insucesso desta (v 9) a palavra daqueles eacute lapidarmente classificada de falsa (šeqer) e ilegiacutetima (vv 9-10) Soacute a submissatildeo poderaacute evitar o exiacutelio e a destruiccedilatildeo (vv 8 11)

26 O presente trabalho assume que LXX ndash cujo ideal-tipo textual reconstruiacutedo por Ziegler (1957) natildeo soacute eacute comparativamente mais breve que o ideal-tipo massoreacutetico em c 14 como apresenta uma disposiccedilatildeo de materiais significativamente diferente ndash testemunha indiretamente uma fase anterior e heuristicamente preferiacutevel da tradiccedilatildeo textual jeremiana em linha com Janzen (1973) Tov (1997 2003 143) Bogaert (2003) e De Jong (2011 484-87) entre outros e contra eg Lundbom (1999 57-63 2010 1-9) Cf a posiccedilatildeo mais prudente de Stipp 2010 106-7

27 Para a reconstruccedilatildeo do texto hebraico hipoteticamente subjacente a Jr 27 (LXX) veja-se Janzen 1973 Ziegler 1957 Stulman 1985 1986 86-89 Tov 1999 Rabin et al 1997 Bogaert 2003 Crawford et al 2008 De acordo com Stulman (1986 129) a versatildeo massoreacutetica conserva um texto c 73 mais longo que a Vorlage proto-massoreacutetica hipoteacutetica de LXX

28 Lipschits 2005 63-64 Malamat 2001 311-13 Kahn 2007 508-9 2008 143-4429 Janzen 1973 1430 Para uma perceccedilatildeo da correspondecircncia aproximada entre os calendaacuterios judaiacuteta neoba-

biloacutenico e juliano e dos problemas inerentes veja-se Parker et Dubberstein 1956 Galil 1996 108-15 2010

31 Sobre a interpretaccedilatildeo e traduccedilatildeo dos termos mocircṭāh mocircsērāh e lsquoōl veja-se HALOT sv mocircṭāh mocircsērāhlsquoōl Holladay 1986-89 2119-20 Becking 2004 151-52 Foreman 2011 190-95

32 O antropoacutenimo laquoNabucodonosorraquo eacute muito provavelmente omitido em todo o capiacutetulo 27 na versatildeo alexandrina

186

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

Tomando Sedecias por destinataacuterio (circunstancial A 2ordf p pl eacute inconsis-tente e subentende antes um coletivo e natildeo um indiviacuteduo) o oraacuteculo seguinte (vv 12 14-15) retoma o imperativo de submissatildeo ao rei da Babiloacutenia e reenfatiza a falsidade dos profetas O uacuteltimo oraacuteculo endereccedilado ao povo e sacerdotes (vv 16-20 22) omite qualquer referecircncia direta ao imperativo de submissatildeo para se consagrar exclusivamente agrave argumentaccedilatildeo contra os laquofalsosraquo profetas rejeitada a sua comissatildeo divina (v 17) e desafiados a interceder junto de Yahweh (v 18) O objetivo deste derradeiro oraacuteculo eacute evidente deslegitimar e rejeitar qualquer ma-nifestaccedilatildeo profeacutetica que anunciasse a restauraccedilatildeo da parafernaacutelia cultual levada para a Babiloacutenia em 597 aC (vv 16 19-20 21)33

Jr 27 (LXX) em perspetiva torna-se clara a preponderacircncia de duas te-maacuteticas de importacircncia estruturante (a) a submissatildeo voluntaacuteria agrave Babiloacutenia enquanto condiccedilatildeo sine qua non para a integridade e sobrevivecircncia de Judaacute e sobretudo (b) o laquofalsoraquo profetismo diretamente ligado agrave impugnaccedilatildeo da tese da submissatildeo Ao longo dos trecircs oraacuteculos eacute esta uacuteltima temaacutetica ndash mais nitida-mente em TM ndash que apresenta maior relevo No entanto no terceiro oraacuteculo TM confere visibilidade a uma terceira temaacutetica que aiacute desempenha um papel dominante mas natildeo menos irrelevante na oacutetica da accedilatildeo simboacutelica introduzida pelos vv 2-3 o regresso dos objetos do templo de Jerusaleacutem

Efetivamente TM incorpora uma seacuterie de adiccedilotildees redacionais que apro-fundando o deacutefice de coesatildeo interna de Jr 27 jaacute detetaacutevel na versatildeo alexandrina e assumindo uma provaacutevel perspetiva exiacutelica ou mesmo poacutes-exiacutelica ndash Jr 5217 20 e 2 Rs 2513 estatildeo aparentemente subentendidos e a adiccedilatildeo do v 19bβ indica Jerusaleacutem como espaccedilo de referecircncia dos autores (bālsquoicircr hazzōrsquot)34 ndash acentuam natildeo soacute a falsidade do anuacutencio do regresso dos objetos do templo projetando a sua restauraccedilatildeo por accedilatildeo divina num futuro indefinido como tambeacutem a longa duraccedilatildeo do domiacutenio neobabiloacutenico (v 7 gt LXX) Neste contexto natildeo seraacute for-tuito que Sedecias Jerusaleacutem e Judaacute como nota Sharp35 sejam implicitamente excluiacutedos da promessa de paz explicitamente formulada aos emissaacuterios e reis estrangeiros (v 11) O terceiro oraacuteculo contradiz inclusivamente o sentido das secccedilotildees anteriores eliminando a hipoacutetese de salvaccedilatildeo pela submissatildeo inicial-mente apresentada e transformando tacitamente a desobediecircncia e o exiacutelio em certezas (vv 19-22)

O horizonte exiacutelico ou poacutes-exiacutelico sugerido pela intensa atividade redacio-nal detetada em Jr 2716-22 (TM) eacute igualmente extensiacutevel agraves unidades anteriores do capiacutetulo e em particular agrave temaacutetica do laquofalsoraquo profetismo Agrave semelhanccedila de Jr 239-32 a rejeiccedilatildeo do profetismo assume em Jr 279-18 (TM) um aspeto

33 Veja-se 2Rs 2413 (TM)34 Bogaert 2003 64 Carroll 2006 2530-3735 Sharp 2013

187

Joatildeo Pedro Vieira

manifestamente poleacutemico operando no sentido natildeo soacute da vilificaccedilatildeo e deslegi-timaccedilatildeo dos agentes profeacuteticos e sua responsabilizaccedilatildeo pela cataacutestrofe de 586 aC36 como tambeacutem da promoccedilatildeo da superioridade e autenticidade do muacutenus profeacutetico jeremiano A poleacutemica contra os laquofalsosraquo profetas jaacute enraizada na fase textualredacional testemunhada por LXX e assinalada noutros capiacutetulos pela traduccedilatildeo de nebicircrsquoicircm por pseudoprophecirctai quando aplicado a antagonistas37 insere-se no quadro ideoloacutegico de passagens como Ez 138-10 e Zc 132-6 natildeo fazendo provavelmente parte do nuacutecleo primitivo de Jr 2738

Jr 28 o confronto com Hananias e as esperanccedilas restauracionistasEacute em Jr 28 que a poleacutemica contra os profetas que apoiam a resistecircncia agrave

Babiloacutenia e anunciam o regresso de Joaquin dos exilados e dos objetos do tem-plo atinge um dos seus momentos mais marcantes na tradiccedilatildeo jeremiana Jr 28 relata um presumiacutevel confronto entre Jeremias e Ḥănanyāh b lsquoAzzucircr (Hananias) ocorrido no templo de Yahweh e datado do quinto mecircs do ano 4 de Sedecias ie aprox entre agosto e setembro de 593 aC (vd supra)

Conforme observado a propoacutesito de Jr 27 o momento era particularmente sensiacutevel do ponto de vista da poliacutetica externa judaiacuteta Por um lado a subleva-ccedilatildeo babiloacutenica de 595-594 aC ainda que de curta duraccedilatildeo e logo seguida de uma campanha agrave Siacuteria39 alimentara esperanccedilas na derrocada do impeacuterio e na consequente repatriaccedilatildeo dos deportados que continuariam a ecoar tanto nas comunidades exiacutelicas como em Judaacute Por outro o Egito comeccedilava a reafirmar a sua influecircncia na Siacuteria-Palestina e Judaacute no acircmbito do conveacutenio internacional de Jerusaleacutem discutia externa e internamente a eventualidade cada vez mais certa de uma insurreiccedilatildeo As conversaccedilotildees poliacutetico-diplomaacuteticas e o recru-descimento da agitaccedilatildeo sociopoliacutetica testemunhados por Jr 27-28 ter-se-atildeo desenvolvido sem conhecimento do desfecho da campanha militar vitoriosa do Egito contra o Kuš cujas notiacutecias teratildeo chegado a Elefantina por volta de 10 de II Šemu do ano 3 de Psameacutetico II ie 26-10-593 aC40 No entanto eacute provaacutevel que os acontecimentos em Jerusaleacutem pressupusessem o conhecimento de que

36 Veja-se Jr 531 810 206 1411-1637 Jr 267 8 11 16 281 291 8 mas tambeacutem 27938 Veja-se McKane 1996 685-708 Carroll 2006 2530-3739 Segundo a Croacutenica Babiloacutenica BM 21946 vordm ll 21-24 Nabucodonosor enfrentou uma

sublevaccedilatildeo entre Kislev e Tebet do seu ano 10 (ie dezembro de 595 ndash fevereiro de 594) a qual teraacute exigido a sua intervenccedilatildeo direta Entre Tebet e Adar do mesmo ano (meados de janeiro ndash meados de abril) Nabucodonosor teraacute marchado triunfalmente pelo Ḫatti numa campanha de meacutedio alcance com o objectivo dissuadir qualquer intuito de sublevaccedilatildeo nas proviacutencias oci-dentais (Glassner 2004 230-31 Wiseman 1956 73-74)

40 Kahn 2008 147 Talvez esse desconhecimento ajude a explicar parcialmente o facto de o Egito se manter fora do horizonte impliacutecito inerente ao relato do confronto entre Jeremias e Hananias

188

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

a campanha fora desencadeada e talvez mesmo a expectativa de um desenlace favoraacutevel ao Egito41

Hananias anuncia de forma contundente que Yahweh quebraraacute a cangajugo (lsquoōl) do rei da Babiloacutenia e faraacute regressar a Jerusaleacutem num prazo de 2 anos natildeo soacute os objetos do templo como igualmente Joaquin e os exilados de Judaacute (vv 2-3) Reafirmando retoricamente o anuacutencio de Hananias sob a forma de uma epiacutetrope (v 7) ndash mas omitindo (intencionalmente) a referecircncia a Joaquin ndash Jeremias capta a atenccedilatildeo do seu antagonista para rapidamente alegar que conquanto os profetas desde sempre (min halsquoocirclām) tivessem profetizado sobre a guerra (lemilḥāmāh v 8 TM expande a sequecircncia para completar a triacuteade laquoguerra fome e pesteraquo) contra grandes potecircncias soacute quando a palavra do pro-feta que anunciava a paz (šālocircm) se concretizasse se saberia que esse profeta cuja accedilatildeo natildeo beneficiava da autoridade da tradiccedilatildeo fora verdadeiramente enviado por Yahweh (v 9)

Hananias reage agressivamente reiterando a sua mensagem atraveacutes da subversatildeo fiacutesica e performativa da accedilatildeo jeremiana ndash a trave (cangalhos Heb mocircṭāh ne gr kloioi) da canga que Jeremias carregava eacute arrancada e quebrada (v 10) ndash e da reafirmaccedilatildeo do fim da hegemonia neobabiloacutenica por intervenccedilatildeo divina (v 11) Publicamente humilhado e desmantelada a sua argumentaccedilatildeo Je-remias retira-se42 A reacuteplica a Hananias surge pouco tempo depois atraveacutes de dois oraacuteculos de tom vincadamente acusatoacuterio e poleacutemico o primeiro reafirmando contundentemente a hegemonia neobabiloacutenica atraveacutes da imagem renovada da canga de ferro (vv 13-14) o segundo rejeitando a comissatildeo divina de Hananias e anunciando imprecatoriamente a sua morte (vv 15-17)

O contraste entre os vv 6-9 e 12-16 relativamente agrave atitude de Jeremias eacute conspiacutecuo e argumenta no sentido da secundariedade do uacuteltimo segmento43 estreitamente ligado agrave temaacutetica do laquofalsoraquo profetismo (a ele acresce muito prova-velmente o v 17) Esta temaacutetica configura um estrato redacional jaacute presente em LXX ndash Hananias eacute aqui classificado de pseudoprophecirctes (v 1) ndash mas aprofundado em TM pela adiccedilatildeo de v 16bβ Hananias eacute condenado agrave morte porque profetizou a rebeliatildeo (sārā) contra Yahweh44 Aleacutem disso a adiccedilatildeo sistemaacutetica do tiacutetulo nābicircrsquo em TM vv 5 6 10 12 15 17 reflete uma fase avanccedilada do processo de construccedilatildeo da imagem profeacutetica paradigmaacutetica de Jeremias vincando a sua superioridade e autoridade contra todos os restantes profetas caracterizados pela falsidade da

41 A conjugaccedilatildeo das informaccedilotildees fornecidas pelas inscriccedilotildees de Abu Simbel e pela Carta de Aristeias (Fernaacutendez Marcos 1983 13-14 2000 41 Thackeray 1904 2-4) sugerem a participaccedilatildeo de tropas auxiliares judaiacutetas na campanha saiacuteta contra o Kuš (Albertz 2003 97 Freedy ndash Redford 1970 476 contra Kahn 2007 2008 145-46)

42 Possivelmente secundaacuterio para McKane 1996 721-2243 Com De Jong 2012 e McKane 1996 72544 Veja-se Dt 136 Hibbard 2011 348

189

Joatildeo Pedro Vieira

sua comissatildeo e da sua mensagem45Caso se reconheccedila valor heuriacutestico miacutenimo agrave representaccedilatildeo narrativa de

Jr 28 cuja versatildeo mais antiga estaraacute conservada em LXX o confronto entre Jeremias e Hananias testemunha um recrudescimento significativo de tensotildees divergecircncias e conflitos de natureza sociopoliacutetica e ideoloacutegica em Jerusaleacutem acerca do domiacutenio neobabiloacutenico sobre Judaacute A intervenccedilatildeo antibabiloacutenica de Hananias sugere que sectores importantes da sociedade hierosolimita incluin-do parte das suas elites dirigentes acalentavam a esperanccedila na restauraccedilatildeo de Joaquin e no regresso dos exilados e dos objetos do templo siacutembolo da plena restauraccedilatildeo de Judaacute Para esses sectores a reversatildeo ao statu quo ante passaria necessariamente pela destruiccedilatildeo do Impeacuterio Neobabiloacutenico impulsionada pela intervenccedilatildeo salviacutefica de Yahweh46 Nos termos da ordem poliacutetica entatildeo vigente instituiacuteda e conservada sob controlo poliacutetico-militar neobabiloacutenico diferido a atividade profeacutetica de Hananias revestia-se de um caraacutecter manifestamente sub-versivo assumindo a ilegitimidade de Sedecias e anunciando o fim divinamente determinado da sua realeza

Neste contexto ao defender o dever de submissatildeo de Judaacute agrave Babiloacutenia Jeremias agia em conformidade impliacutecita com os interesses da monarquia sedeciana e dos seus grupos de apoio conferindo-lhes a sanccedilatildeo divina que Hananias lhes negava Tal atuaccedilatildeo poderaacute eventualmente explicar a omissatildeo da referecircncia a Joaquin no v 7 facto congruente com a imagem criacutetica (ou ateacute hostil) de Joaquin transmitida por Jr 1318 (TM) e 2224a (LXX) 28-30ordf (LXX)47 De acordo com a presumiacutevel tendecircncia primitiva destas passagens Joaquin fora humilhado despojado da sua realeza e banido (heb lsquoăricircricirc gr ekkecircrukton) de Judaacute por Yahweh o qual rejeitara assim a sua relaccedilatildeo de privileacutegio e eleiccedilatildeo com o rei judaiacuteta Apesar de Joaquin e as elites dirigentes hierosolimitas terem acabado por se render a Nabucodonosor apoacutes um curto cerco evitando assim a

45 Carroll 1996 192 2004 77-80 De Jong 201146 Seitz 1989 20947 A anaacutelise da periacutecope suscita muacuteltiplas interpretaccedilotildees e reconstruccedilotildees de cariz redacional

por vezes francamente divergentes (Job 2006 79-97 McKane [1986] 2001 540-52 Holladay 1986-89 1604-12 Lundbom 2004 153-64) Assume-se aqui que Ag 223 eacute posterior a Jr 2224 e que os vv 24b-27 devem ser excluiacutedos como comentaacuterio exegeacutetico desenvolvido com base no v 24a eou 28 Quanto aos vv 28-30 e embora LXX possa refletir um texto-base hebraico defetivo por haplografia nalguns casos (v 28aα2 30aβ) o v 28b (TM) apresenta sinais muito significativos de intervenccedilatildeo redacional As formas verbais singulares do v 28b (LXX) indicam que wezarlsquoocirc (gtLXX) seraacute secundaacuterio e que as desinecircncias verbais teratildeo sido correspondente-mente harmoni- zadas em TM Aleacutem disso a forma declarativa do v 28 (LXX) carecendo de correspondente para halsquoeṣeb e da referecircncia agrave descendecircncia do rei transmite um significado diferente ao v Joaquin foi efetivamente dispensado como um vaso inuacutetil expulso de Judaacute No v 30 lsquoăricircricirc significaraacute muito provavelmente laquobanidoraquo segundo LXX e natildeo laquosem filhosraquo pelo que o v 30b deveraacute ser considerado uma glosa secundaacuteria hipoteticamente ligada agraves intervenccedilotildees responsaacuteveis pela inserccedilatildeo da temaacutetica do destino e estatuto da descendecircncia joaquinita e por uma ressemantificaccedilatildeo de lsquoăricircricirc

190

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

ocupaccedilatildeo violenta e destruiccedilatildeo da cidade Jeremias parece ter subalternizado o ato de submissatildeo perante as consequecircncias disruptivas da resistecircncia Todavia natildeo eacute possiacutevel determinar se a atuaccedilatildeo do profeta implicava um compromisso ou simplesmente um alinhamento sociopoliacutetico e ideoloacutegico ainda que parcial com a elite dirigente sedeciana

Jr 29 Babiloacutenia uma nova JudaacuteConstruto literaacuterio eivado de problemas textuais redacionais e interpreta-

tivos48 Jr 29 transfere para as comunidades exiladas na Babiloacutenia o horizonte da conflituosidade sociopoliacutetica e ideoloacutegica em torno da suserania neobabiloacutenica e introduz uma perspetiva escatoloacutegica de restauraccedilatildeo aparentemente em bene-fiacutecio exclusivo dos deportados de 597 aC A sobrescriccedilatildeo editorial constituiacuteda pelos vv 1-3 identifica o texto sequente como uma carta (heb sēper gr biacuteblou) de Jeremias dirigida aos anciatildeos sacerdotes e profetas (LXX pseudoprohecirctas) de-portados para a Babiloacutenia em 597 aC O v 2 data a carta de forma algo imprecisa limitando-se a situaacute-la apoacutes a deportaccedilatildeo de 597 aC (ie 597-596 aC) embora essa dataccedilatildeo seja francamente duvidosa e natildeo pareccedila ser igualmente aplicaacutevel ao episoacutedio de Acab e de Sedecias (vv 21-23) melhor enquadraacutevel no contexto da insurreiccedilatildeo babiloacutenica de 595-594 aC49 nem porventura ao alegado surgimento de figuras profeacuteticas na Babiloacutenia (v 15b)

Jeremias exorta os exilados a instalarem-se de modo permanente e a desenvolverem pacificamente a sua existecircncia na Babiloacutenia assumida como espaccedilo de vivecircncia efetivo (presente) e aparentemente transgeracional (futuro) da comunidade deportada (vv 5-6) O v 7 representa o paroxismo da poliacutetica submissiva e colaboracionista propugnada por Jeremias os exilados satildeo instados a procurar o sucessoprosperidade (šalocircm) da Babiloacutenia (TM lsquoicircr mas LXX gecircn) e a rogar por ela (TM) a Yahweh pois da prosperidade da Babiloacutenia (TM) depen-dia intimamente a prosperidade dos exilados50 Deste modo Jeremias afirmava a identidade total e divinamente prescrita entre os destinos da comunidade exiacutelica e os destinos do Impeacuterio Neobabiloacutenico contra qualquer esperanccedila de colapso do

48 A anaacutelise de Jr 29 abaixo esboccedilada revela a coexistecircncia de perspetivas divergentes sobre o exiacutelio o estatuto das comunidades judaiacutetas em Jerusaleacutem e na Babiloacutenia a restauraccedilatildeo de Judaacute e o proacuteprio papel de Jeremias na sua dupla aceccedilatildeo de personagem histoacuterica e tradiccedilatildeo textual indiciando o desenvolvimento de intensos conflitos pela autoridade religiosa e sociopoliacutetica sobre Jerusaleacutem e Judaacute nos periacuteodos neobabiloacutenico e persa Sobre os conflitos sociopoliacuteticos e ideoloacutegicos dos periacuteodos neobabiloacutenico e persa veja-se eg Person 2002 Leuchter 2008 Sharp 2003 157-64 Carroll 1996 72-73 258-60

49 Veja-se Holladay 1986-89 1 contra Lundbom 200450 A inextricabilidade entre os destinos da comunidade deportada e o Impeacuterio Neobabiloacuteni-

co eacute mitigada em LXX atraveacutes da traduccedilatildeo dos sufixos pronominais hebraicos na 3ordf p sg (-āh) por pronomes pessoais na 3ordf p pl (autocircn) desvinculando da Babiloacutenia natildeo soacute o imperativo de intercessatildeo como igualmente a prosperidade da comunidade exilada

191

Joatildeo Pedro Vieira

impeacuterio e de repatriaccedilatildeo dos deportados a curtomeacutedio prazo51As secccedilotildees seguintes carecem de uma ligaccedilatildeo orgacircnica ao nuacutecleo da

mensagem jeremiana surgindo de forma aparentemente apositiva algo desconexa e tematicamente algo irrelevante devendo ser mais propriamente interpretadas como expansotildees redacionais e exegeacuteticas centradas na (re)in-terpretaccedilatildeo dos vv 5-752 Usando de fraseologia tiacutepica os vv 8-9 regressam agrave poleacutemica contra o profetismo rejeitando categoricamente quaisquer formas de mediaccedilatildeo profeacutetica ou divinatoacuteria e classificando natildeo soacute a mensagem desses agentes ndash cujo conteuacutedo o texto natildeo explicita ndash de falsa como tambeacutem a sua comissatildeo divina de ilegiacutetima Segue-se nova viragem discursiva e temaacutetica compreendida pelos vv 10-14aα1 que introduzem uma perspetiva escatoloacutegica e salviacutefica em benefiacutecio dos exilados de 597 aC Yahweh anuncia que dentro de 70 anos faraacute regressar a laquoeste lugarraquo (rsquoel hammaqocircm hazzeh) ndash provavelmente Jerusaleacutem ndash os deportados de 597 aC

O texto longo da versatildeo massoreacutetica insere neste ponto duas extensas adiccedilotildees redacionais constituiacutedas pelos vv 14aα2 e 16-20 e apresenta um texto desconexo cuja sequecircncia primitiva provaacutevel (vv 14 16-20 15 21) eacute testemu-nhada pela recensatildeo luciacircnica53 Estas inserccedilotildees introduzem viragens discursivas profundas e natildeo menos irrelevantes na oacutetica dos vv 5-7 Enquanto o v 14aα2 expande a promessa de restauraccedilatildeo a todos os deportados e exilados assumin-do uma perspetiva poacutes-586 aC e contradizendo a tendecircncia exclusivista dos vv 10-14aα1 os vv 16-20 centram-se na condenaccedilatildeo total da realeza daviacutedida e da comunidade judaiacuteta que permaneceu em Jerusaleacutem em 597 aC votadas ao extermiacutenio recuperando para isso vaacuterios toacutepicos e estruturas fraseoloacutegicas caracteriacutesticas do idioleto deuterojeremiano54

Com base no v 15 os vv 21-31 regressam agrave poleacutemica contra o profetismo e respondem negativamente agrave pretensatildeo de acesso agrave mediaccedilatildeo profeacutetica na Babiloacute-nia declarada pelos exilados (v 15) Agrave exceccedilatildeo de carta de Šemalsquoyāhucirc (Chemaiacuteas)

(vv [25]26-28) todo o restante material em forma oracular poderaacute ser conside-rado uma excrescecircncia redacional em torno da temaacutetica do laquofalsoraquo profetismo embora o valor heuriacutestico dos seus componentes seja variaacutevel

Assim os vv 21-23 contecircm um oraacuteculo consagrado agrave difamaccedilatildeo e anatemi-zaccedilatildeo de Acab (TM + b Qocirclāyāh) e de Sedecias (TM + b Marsquoăśēyāh) aos quais

51 Veja-se Hill 1999 147-53 O autor enfatiza a similaridade fraseoloacutegica iacutentima entre Jr 295-7 Dt 205-8 e Is 6521-23

52 McKane 1996 735-46 Carroll 2006 2555-5853 Esta ordem apresenta a conspiacutecua vantagem de oferecer uma sequecircncia discursiva mais

coerente e inteligiacutevel aos vv 14-21 (Janzen 1973 118 Ziegler 1957 346-47)54 Perseguiccedilatildeo e extermiacutenio pela espada fome e peste transformaccedilatildeo num objecto de horror

maldiccedilatildeo etc a recusa em ouvir a palavra de Yahweh o envio continuado dos profetas servos de Yahweh De referir ainda a menccedilatildeo inicial agrave imagem dos figos baseada em Jr 24 Relativamente agrave fraseologia e aos toacutepicos deuterojeremianos veja-se Stulman 1986 89-94 Stipp 1998 2009

192

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

TM atribui um estatuto claramente profeacutetico atraveacutes da adiccedilatildeo do v 21aβ ainda que os motivos avanccedilados para tatildeo perentoacuteria condenaccedilatildeo pareccedilam insuficien-tes e vagos senatildeo mesmo inconsequentes Finalmente os vv 24-32 direcionam a poleacutemica contra Chemaiacuteas atraveacutes de dois oraacuteculos O primeiro incompleto (vv 25-28) censuraria Chemaiacuteas por repreender o sacerdoacutecio hierosolimita por natildeo reprimir e castigar Jeremias que anunciava a longa duraccedilatildeo do exiacutelio (interpretaccedilatildeo baseada no v 6) e incentivava os exilados agrave aceitaccedilatildeo do status quo Jaacute o segundo oraacuteculo (vv 31-32) dirigido aos exilados critica asperamente Chemaiacuteas por ter profetizado de forma falsa e ilegiacutetima (v 31) ndash TM acrescenta o tema da rebeliatildeo (sārāh v 32b) em linha com 2816bβ ndash Chemaiacuteas seraacute castigado e a sua descendecircncia excluiacuteda do plano divino de restauraccedilatildeo de Judaacute (v 32)

Eacute provavelmente no nuacutecleo heuriacutestico constituiacutedo pelos vv 5-7 (25)26-28 que se concentraratildeo os dados mais relevantes e fiaacuteveis acerca da atitude de Jere-mias para com o imperium neobabiloacutenico e do modo como essa atitude era per-cecionada entre as elites deportadas na Babiloacutenia Agrave luz da injunccedilatildeo jeremiana dos vv 5-7 a Babiloacutenia natildeo deveria ser encarada como um espaccedilo de privaccedilatildeo submissatildeo e servidatildeo mas sim como um espaccedilo positivo e ateacute promissor onde os deportados tinham oportunidade de beneficiar apesar de tudo da continui-dade transgeracional das becircnccedilatildeos divinas e nesse sentido de uma existecircncia tatildeo paciacutefica e proacutespera quanto maior fosse a sua cooperaccedilatildeo com o impeacuterio Daiacute que Hill considere a existecircncia de uma identificaccedilatildeo metafoacuterica entre Judaacute e a Babiloacutenia por um lado e Jerusaleacutem e a cidade da Babiloacutenia por outro55

Ao exortar os judaiacutetas deportados agrave aceitaccedilatildeo do status quo adquirido e ao incitaacute-los agrave geraccedilatildeo de descendecircncia (v 6) Jeremias reconheceria implicitamente a improbabilidade de uma reposiccedilatildeo do status quo anterior a 597 aC e aceitava claramente a possibilidade da longa duraccedilatildeo do exiacutelio parecendo ignorar em simultacircneo de forma talvez intencional natildeo somente as privaccedilotildees e humilhaccedilotildees inerentes agrave deportaccedilatildeo como tambeacutem as pretensotildees sociopoliacuteticas das elites deportadas agrave sua repatriaccedilatildeo e agrave recuperaccedilatildeo do seu anterior estatuto e poder em Jerusaleacutem Os protestos de Chemaiacuteas provavelmente um membro qualificado do sacerdoacutecio hierosolimita ou da administraccedilatildeo reacutegia ndash e natildeo profeta ndash sugerem que as elites hierosolimitas deportadas continuavam a exercer influecircncia sobre Jerusaleacutem repudiavam natural e veementemente qualquer cenaacuterio de prolon-gamento do exiacutelio e procuravam dissuadir e reprimir todo e qualquer discurso nesse sentido Uma vez mais Jeremias parece agir em conformidade com os interesses da realeza sedeciana e sua envolvecircncia sociopoliacutetica cujo estatuto seria profundamente afetado pelo regresso das elites deportadas56

55 Hill 1999 147-53 199 20556 No entanto a evoluccedilatildeo poliacutetica de Judaacute entre 592-587 com a ascensatildeo das inclinaccedilotildees e

grupos proacute-babiloacutenicos em Jerusaleacutem e a aproximaccedilatildeo cada vez maior ao Egito teraacute contribuiacutedo para um desgaste crescente das relaccedilotildees entre Jeremias e a realeza sedeciana (Jr 3711-16 384-

193

Joatildeo Pedro Vieira

Conclusatildeo Jeremias e o desenvolvimento de uma ideologia de submissatildeoO lugar do Egito no discurso jeremianoA manifesta importacircncia do Egito na poliacutetica externa judaiacuteta entre 594 e

586 aC corroborada por Ez 171557 e pelo oacutestraco nordm 3 de Laqiš58 faria esperar o afloramento de referecircncias a essa potecircncia no acircmbito de Jr 27-29 No entanto o Egito estaacute surpreendentemente ausente de Jr 27-29 quer nas suas formas mais antigas quer no texto longo massoreacutetico Esta natildeo eacute poreacutem uma situaccedilatildeo cir-cunscrita a Jr 27-29 Considerando o conjunto da tradiccedilatildeo jeremiana e excluindo agrave partida natildeo soacute materiais claramente exiacutelicos disseminados ao longo de Jr 4114 ndash 44 ndash que reduzem o Egito de forma poleacutemica e difamatoacuteria a um espaccedilo de puniccedilatildeo execraccedilatildeo e extermiacutenio dos judaiacutetas natildeo deportados ndash como tambeacutem os materiais oraculares de Jr 461-2659 ndash cuja atribuiccedilatildeo se afigura altamente proble-maacutetica ndash restam apenas escassos materiais associaacuteveis ao Egito e enquadraacuteveis na actividade sociopoliacutetica coeva de Jeremias eg Jr 376-8 4210-12 Mesmo aqui o Egito saiacuteta permanece uma realidade poliacutetica impliacutecita natildeo nomeada60

Por conseguinte para o discurso jeremiano a opccedilatildeo poliacutetica alternativa agrave submissatildeo ao Impeacuterio Neobabiloacutenico parece nunca se ter colocado nos termos de um alinhamento poliacutetico com o Egito saiacuteta mas simplesmente nos termos da rejeiccedilatildeo da ndash e da resistecircncia agrave ndash suserania neobabiloacutenica Tal posiccedilatildeo poliacutetica e ideoloacutegica contrasta nitidamente com Jr 218 36 passagens que criticam veementemente a poliacutetica de alianccedilas de Judaacute entendida como inaceitaacutevel mani-festaccedilatildeo de infidelidade e apontam para um isolacionismo teopoliacutetico centrado na suserania de Yahweh pouco compatiacutevel com a difiacutecil situaccedilatildeo poliacutetica de Judaacute no periacuteodo 609-586 aC

Esta leitura sugere que Jr 218 36 e sua envolvecircncia apesar de historicamente

5)57 De acordo com este v Sedecias teraacute procurado o apoio militar (e certamente poliacutetico) do

Egito atraveacutes do fornecimento de cavalos e tropas58 Dataacutevel do periacuteodo 592-588 aC o oacutestraco nordm 3 de Laqiš (ll 14-18) menciona uma deslo-

caccedilatildeo do comandante (śar haṣābārsquo) Konyāhucirc b rsquoElnātān em direccedilatildeo ao Egito que poderaacute indiciar a existecircncia de relaccedilotildees poliacutetico-militares ativas com essa potecircncia no acircmbito da assistecircncia a que Ez 1715 alude (Lemaire 1977 108 Veja-se Lipschits 2005 64-65)

59 Trata-se de materiais que celebram a derrota de Necao II em Qarkemiš (605 aC) e a vin-ganccedila de sangue obtida por Yahweh pelas humilhaccedilotildees infligidas a Judaacute e anunciam a invasatildeo e subjugaccedilatildeo do Egito agraves matildeos de Nabucodonosor II

60 Em Jr 376-8 ainda que Jeremias advirta implicitamente contra as falsas esperanccedilas depo-sitadas no auxiacutelio egiacutepcio o foco discursivo repousa sobre a inamovibilidade da ameaccedila militar neobabiloacutenica (veja-se Ez 1715-17) Jaacute em Jr 4210-12 na sequecircncia do assassiacutenio de Godolias e perante a iminecircncia de uma fuga para o Egito o profeta garantia aos judaiacutetas a proteccedilatildeo de Yahweh contra uma eventual intervenccedilatildeo babiloacutenica e desaconselhava implicitamente o exiacutelio para o Egito Veja-se Lipschits 2005 304-49 Stipp 2012

194

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

relevantes oferecem uma representaccedilatildeo tardia da atividade historiograficamen-te presumida de Jeremias Contrariamente o discurso jeremiano de Jr 27-29 revela-se criticamente orientado para a proteccedilatildeo e conservaccedilatildeo da realeza judaiacute-ta e para a sobrevivecircncia etnopoliacutetica de Judaacute correspondendo assim ao perfil profeacutetico sociologicamente construtivo e mais antigo identificado por De Jong61 Os motivos pelos quais o Egito constitui um elemento marginal no discurso poliacutetico de Jr 27-29 natildeo satildeo facilmente identificaacuteveis

A aceitaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico como condiccedilatildeo de sobrevivecircncia poliacuteticaA anaacutelise de Jr 27-29 indica que Jeremias teraacute sido muito provavelmente

um defensor inveterado da submissatildeo poliacutetica agrave Babiloacutenia possivelmente desde a eacutepoca da primeira deportaccedilatildeo O seu discurso incorpora um entendimento realista das circunstacircncias poliacuteticas de Judaacute no contexto geopoliacutetico da Aacutesia Ocidental e emerge como um verdadeiro discurso de submissatildeo marcado pela interiorizaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo ideoloacutegica da estrutura de relaccedilotildees de poder vi-gente (subalternidade) Para Jeremias a submissatildeo era a condiccedilatildeo divinamente sancionada da sobrevivecircncia da monarquia judaiacuteta Este desenvolvimento ideo-loacutegico e discursivo acomodatiacutecio e cooperante exemplarmente ilustrado em Jr 295-7 natildeo eacute totalmente inaudito no contexto cultural siro palestinense Em-bora num contexto significativamente diferente as inscriccedilotildees de Panammuwa II e Bar-Rakib (c 733-725 aC) ilustram o modo como as elites sociopoliacuteticas e a realeza de Samlsquoal desenvolveram uma retoacuterica e ideologia de subalternidade em que o estatuto de vassalidade do reino foi incorporado como um facto poliacutetico positivo gerador de poder e prestiacutegio62

Eacute provaacutevel que a atividade sociopoliacutetica de Jeremias oferecendo ao domiacutenio neobabiloacutenico uma sanccedilatildeo divina local tenha chegado ao conhecimento das eli-tes neobabiloacutenicas Efetivamente se essa atividade teve a inclinaccedilatildeo ideoloacutegica e pelo menos alguma da visibilidade e impacto que os segmentos mais fiaacuteveis da tradiccedilatildeo jeremiana lhe atribuem afigura-se provaacutevel que a corte neobabiloacutenica estivesse minimamente ciente do valor sociopoliacutetico e religioso de Jeremias e o encarasse como instrumento local de legitimaccedilatildeo e imposiccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico sobre Judaacute

Existem alguns dados que corroboram este cenaacuterio A praacutetica poliacutetica im-perial neoassiacuteria63 Ez 1712-19 e 2Cr 3613 sugerem que Nabucodonosor II teraacute coagido Sedecias a celebrar um tratado jurado que invocaria Yahweh como uma das testemunhas e garantes divinos da sua observacircncia e executor das maldiccedilotildees

61 De Jong 2011 507-862 KAI 215-216 Hallo 2003 158-61 veja-se Hamilton 1998 221-3063 Veja-se eg tratado de Assaradatildeo com Balsquoal de Tiro IV ll 6-18 (SAA 25)

195

Joatildeo Pedro Vieira

previstas em caso de incumprimento64 Tal inclusatildeo significava a ocorrecircncia de um aproveitamento e instrumentalizaccedilatildeo estrateacutegicos dos recursos simboacutelicos e ideoloacutegicos locais ao serviccedilo da imposiccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico Para aleacutem disso os corpora profeacuteticos mariota e neo-assiacuterio assim como o tratado de sucessatildeo de Assaradatildeo com Humbareš de Nahšimarti65 ilustram eloquentemente o poder poliacutetico e ideoloacutegico que a realeza mesopotacircmica reconhecia ao fenoacuteme-no profeacutetico cujas manifestaccedilotildees procurava ativamente monitorizar e controlar66

O reconhecimento do valor sociopoliacutetico do profetismo jeremiano poderia assim explicar tanto o pretenso tratamento de exceccedilatildeo que os altos oficiais mili-tares neobabiloacutenicos teratildeo reservado a Jeremias como igualmente a transmissatildeo da tutela sobre o profeta ao governo provincial de Miṣpāh sob a lideranccedila de Godolias na sequecircncia da ocupaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem e do desmante-lamento da monarquia judaiacuteta (Jr 3914 cf 401-3) Teraacute sido nestas condiccedilotildees que Jeremias teraacute dado continuidade agrave mensagem poliacutetica preacutevia defendendo que os babiloacutenios natildeo deveriam ser temidos ndash em linha com o discurso poliacutetico do governo provincial (Jr 409aβ-10) ndash e que (apoacutes o assassiacutenio de Godolias) os judaiacutetas deveriam permanecer em Judaacute (Jr 4210-12)67

64 Wong 2001 59-65 Monte 2010 9265 ND 4336 ll 108-122 (SAA 26)66 Nissinen 2003 Caramelo 200267 Veja-se Stipp 2012 122 125-32

196

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

Bibliografia

Albertz Rainer 2003 Israel in Exile The History and the Literature of the Sixth Century BCE Atlanta Society of Biblical Literature

mdashmdashmdash 1994 From the Beginnings to the End of the Monarchy Vol 1 de A History of Israelite Religion in the Old Testament Period Louisville Westminster John Knox Press

Bartheacutelemy Dominique 1986 Isaiumle Jeacutereacutemie Lamentations Vol 2 de Critique Textuelle de lrsquoAncien Testament Fribourg Goumlttingen Eacuteditions Universitaires Fribourg Vandenhoeck amp Ruprecht

Becking Bob 2004 Between Fear and Freedom Essays on the Interpretation of Jeremiah 30-31 Leiden Brill

Bogaert Pierre-Maurice 2003 ldquoLa vetus latina de Jeacutereacutemie texte tregraves curt teacutemoin de la plus ancienne Septante et drsquoune forme plus ancienne de lrsquoheacutebreu (Jer 39 et 52)rdquo In The Earliest Text of the Hebrew Bible The Relationship between the Masoretic Text and the Hebrew Base of the Septuagint Reconsidered ed Adrian Schenker 51-82 Atlanta Society of Biblical Literature

Caramelo Francisco 2002 A linguagem profeacutetica na Mesopotacircmia (Mari e Assiacuteria) Cascais Patrimonia

Crawford Sidnie Jan Joosten e Eugene Ulrich 2008 ldquoEditions of the Oxford Hebrew Bible Deuteronomy 321-9 1 Kings 111-8 and Jeremiah 271-10 (34 G)rdquo Vetus Testamentum 58352-66

Carrol Robert P 2006 Jeremiah 2 vols Sheffield Sheffield Phoenix Pressmdashmdashmdash 1996 Uses of Prophecy in the Book of Jeremiah London Xpress ReprintsDonner Herbert e Wolfgang Roumlllig 2002 Kanaanaumlische und aramaumlische

Inschriften Vol 1 Wiesbaden Harrassowitz VerlagElliger Karl e Wilhelm Rudolph eds 1997 תורה נביאים וכתובים Biblia Hebraica

Stuttgartensia Stuttgart Deutsche BibelgesellschaftFernaacutendez Marcos Natalio 1983 ldquoCarta de Aristeasrdquo In Apoacutecrifos del Antiguo

Testamento Tomo 2 dir Alejandro Diez Macho 9-64 Madrid Ediciones Cristianidad

Foreman Benjamin A 2011 Animal Metaphors and the People of Israel in the Book of Jeremiah Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht

Freedy Kenneth S e Donald B Redford 1970 ldquoThe Dates in Ezekiel in Relation to Biblical Babylonian and Egyptian Sourcesrdquo Journal of the American Oriental Society 90 (3)462-85

Galil Gershon 1996 The Chronology of the Kings of Israel and Judah Leiden Brill

Glassner Jean-Jacques 2005 Mesopotamian Chronicles Leiden Brill

197

Joatildeo Pedro Vieira

Hallo William W ed 2003 Monumental Inscriptions from the Biblical World Vol 2 de The Context of Scripture Canonical Compositions Monumental Inscriptions and Documents from the Biblical World Leiden Brill

Hamilton Mark W 1998 ldquoThe Past as Destiny Historical Visions in Samrsquoal and Judah under Assyrian Hegemonyrdquo The Harvard Theological Review 91 (3)215-230

Hill John 1999 Friend of Foe The Figure of Babylon in the Book of Jeremiah MT Leiden Brill

Holladay William L 1986-89 Jeremiah A Commentary on the Book of the Prophet Jeremiah 2 vols Philadelphia Minneapolis Fortress Press

Hibbard J Todd 2011 ldquoTrue and False Prophecy Jeremiahrsquos Revision of Deuteronomyrdquo Journal for the Study of the Old Testament 35 (3)339-58

Janzen John Gerald 1973 Studies in the Text of Jeremiah Cambridge Harvard University Press

Jong Matthijs J de 2012 ldquoThe Fallacy of lsquoTrue and Falsersquo in Prophecy Illustrated by Jer 288-9rdquo Journal of Hebrew Scriptures 12 (5) Disponiacutevel em httpwwwjhsonlineorgArticlesarticle_172pdf (12-10-2012)

mdashmdashmdash 2011 ldquoWhy Jeremiah is Not Among the Prophets An Analysis of the Terms נביא and נבאים in the Book of Jeremiahrdquo Journal of Hebrew Scriptures 35 (4)483-510

Kahn Danrsquoel 2008 ldquoSome Remarks on the Foreign Policy of Psammetichus II in the Levant (595-589 BC)rdquo Journal of Egyptian History 1 (1)139-57

mdashmdashmdash 2007 ldquoJudean Auxiliaries in Egyptrsquos Wars against Kushrdquo Journal of the American Oriental Society 127 (4)507-16

Khoeler Ludwig e Walter Baumgartner 2000 The Hebrew and Aramaic Lexicon to the Old Testament Leiden Brill

Lemaire Andreacute 1977 Les Ostraca Tomo 1 de Inscriptions heacutebraiumlques Paris Les Eacuteditions du Cerf

Leuchter Mark 2008 The Polemics of Exile in Jeremiah 26-45 Cambridge Cambridge University Press

mdashmdashmdash 2006 Josiahrsquos Reform and Jeremiahrsquos Scroll Historical Calamity and Prophetic Response Sheffield Sheffield Phoenix Press

Lipschits Oded 2005 The Fall and Rise of Jerusalem Judah under Babylonian Rule Winona Lake Eisenbrauns

Lundbom Jack R 2010 Jeremiah Closer Up the Prophet and the Book Sheffield Sheffield Phoenix Press

mdashmdashmdash 2004 Jeremiah 21-36 A New Translation with Introduction and Commentary New York Doubleday

198

Beber do Nilo ou do EufratesO papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute

mdashmdashmdash 1999 Jeremiah 1-20 A New Translation with Introduction and Commentary New York Doubleday

Malamat Abraham 2001 History of biblical Israel major problems and minor issues Leiden Brill

McKane William 1996 Commentary on Jeremiah XXVI-LII Vol 2 de A Critical and Exegetical Commentary on Jeremiah Edinburgh T amp T Clark

mdashmdashmdash (1986) 2001 Introduction and Commentary on Jeremiah I-XXV Vol 1 de A Critical and Exegetical Commentary on Jeremiah Reimp Edinburgh New York T amp T Clark

Miller James M e John H Hayes 2006 A History of Ancient Israel and Judah Louisville Westminster John Knox Press

Monte Marcel 2010 ldquoOs tratados adē ndash instrumentos poliacuteticos e juriacutedicos na construccedilatildeo imperial assiacuteria (seacutecs VIII-VII aC)rdquo Dissertaccedilatildeo de mestrado apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Narsquoaman Nadav 2005 Ancient Israel and Its Neighbors Interaction and Counteraction Collected essays Vol 1 Winona Lake Eisenbrauns

Nissinen Marti 2003 Prophets and Prophecy in the Ancient Near East Atlanta Society of Biblical Literature

Parker Richard A e Waldo H Dubberstein 1956 Babylonian Chronology 626 BC-AD 75 Providence Brown University Press

Parpola Simo e Kazuko Watanabe eds 1988 Neo-Assyrian Treaties and Loyalty Oaths Vol 2 de State Archives of Assyria Helsinki Helsinki University Press

Person Raymond F 2002 The Deuteronomic School History Social Setting and Literature Atlanta Society of Biblical Literature

Rabin Chaim Shemaryahu Talmon e Emanuel Tov eds 1997 The Book of Jeremiah Jerusalem Magnes Press

Schipper Bernd U 2011 ldquoEgyptian Imperialism after the New Kingdom The 26th Dynasty and the Southern Levantrdquo In Egypt Canaan and Israel History Imperialism Ideology and Literature Proceedings of a Conference at the University of Haifa 3-7 May 2009 ed S Bar Danrsquoel Kahn e J Shirley 268-90 Leiden Boston Brill

Seitz Christopher 1989 Theology in Conflict Reactions to Exile in the Book of Jeremiah Berlin Walter De Gruyter

Sharp Carolyn J 2003 Prophecy and Ideology in Jeremiah Struggles for Authority in Deutero-Jeremianic Prose London New York T amp T Clark

Stipp Hermann-Josef 2010 ldquoThe Concept of the Empty Land in Jeremiah 37-43rdquo In The Concept of Exile in Ancient Israel and its Contexts ed Ehud Ben Zvi e Christoph Levin 103-54 Berlin New York Walter de Gruyter

199

Joatildeo Pedro Vieira

mdashmdashmdash 1998 Deuterojeremianische Konkordanz St Ottilien Eos VerlagStulman Louis 1986 The Prose Sermons of the Book of Jeremiah A Redescription

of the Correspondences with Deuteronomistic Literature in Light of the Recent Text-Critical Research Atlanta Scholars Press

mdashmdashmdash 1985 The Other Text of Jeremiah A Reconstruction of the Hebrew Text Underlying the Greek Version of the Prose Sections of Jeremiah With English Translation Lanham New York London University Press of America

Sweeney Marvin Alany 2001 King Josiah The Lost Messiah of Israel Oxford Oxford University Press

Talshir Zipora 1996 ldquoThe Three Deaths of Josiah and the Strata of Biblical Historiography (2 Kings XXIII 29-30 2 Chronicles XXXV 20-5 1 Esdras I 23-31)rdquo Vetus Testamentum 46 (2)213-36

Thackeray Henry 1904 The Letter of Aristeas translated into English London Macmillan

Tov Emanuel 1999 The Greek and Hebrew Bible Collected Essays on the Septuagint Leiden Boston Koumlln Brill

mdashmdashmdash 1997 ldquoSome Aspects of the Textual and Literary History of the Book of Jeremiahrdquo In Le Livre de Jeacutereacutemie Le prophegravete et son milieu Les oracles et leur transmission ed Pierre-Maurice Bogaert 145-67 Leuven Leuven University Press

Wiseman Donald John 1956 Chronicles of the Chaldean Kings (626-556 BC) in the British Museum London Trustees of the British Museum

Wong Ka Leung 2001 The idea of retribution in the Book of Ezekiel Leiden Brill

Ziegler Joseph ed 1957 Ieremias Baruch Threni Epistula Ieremiae Vol 15 de Septuaginta Vetus Testamentum Graecum Auctoritate Societatis Literarum Gottingensis editum Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

201

Antoacutenio Ramos dos Santos

Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico1 (Nabonidus and the end of the Neobabilonian Empire)

Antoacutenio Ramos dos Santos(ajr-santossapopt ORCID 0000-0002-6610-9733)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de Histoacuteria

Resumo - Este estudo trata a figura de Naboacutenido o uacuteltimo rei do impeacuterio neoba-biloacutenico Pretende-se apresentar uma breve biografia expondo eventos decorridos ao longo do seacuteculo VI a C bem como analisar a questatildeo do poder real e respetiva subdivisatildeo relacionando-o com eventos de instabilidade poliacutetica em particular a sua deslocaccedilatildeo agrave Araacutebia em 553 aC

Palavras-chave Naboacutenido Babiloacutenia Imperialismo Araacutebia Teima

Abstract ndash This study regards the figure of Nabonidus the last king of the Neobabilonian empire It is intended to present a brief biography exposing events which occurred throughout the 6th century BCE and to analyse the matter of royal power and its subdivision relating it to events of political instability particularly relating to the Arabian expedition of 553BCE

Keywords Nabonidus Babilonia Imperialism Arabia Tayma

Natildeo se sabe praticamente nada acerca das atividades do uacuteltimo rei de Ba-biloacutenia antes da sua subida ao trono Pensou-se que desempenhara o cargo de prefeito durante o reinado de Nabucodonosor porque aparece um personagem chamado Naboacutenido que tinha esse tiacutetulo citado em 597 num documento Mas tal implicava que tivesse uma vintena de anos e consequentemente assumido o poder com a idade de 70 anos O que parece pouco provaacutevel devendo-se dis-tinguir os personagens Por outro lado a estela de Pognon2 parece indicar um nascimento tardio tendo a sua matildee dado agrave luz em 610-600 mas natildeo mais tarde

Segundo elementos informativos procedentes da estela de Adad-guppi3

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013

2 Veja-se Beaulieu 1989 703 Ver ADAD-GUPPI - IM-gu-up-pi-I (649-547aC) - Matildee do rei Naboacutenido da X dinastia

de Babiloacutenia (dinastia caldaica) e mulher conhecida sobretudo pelas suas estelas ndash uma com uma autobiografia ndash de Kharran cidade nativa e onde foi devota (palikhtu) como sacerdotisa do templo Ekhulkhul dedicado ao deus Sicircn (deus lua) Soube demonstrar a sua piedade tambeacutem demonstrada agraves divindades Ningal Nusku e Sadarnunna no seu filho fazendo por ele tudo quanto foi necessaacuterio para introduzi-lo na corte de Nabucodonosor II e de Neriglissar Alcanccedilado esse objectivo Naboacutenido aproveitando um golpe militar produzido contra Labashi-Marduk com um reinado efeacutemero ficou com o controlo de Babiloacutenia Segundo a documentaccedilatildeo existente Adad-guppi morreu centenaacuteria (102 anos)

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_10

202

Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico

esta teraacute introduzido Naboacutenido na corte de Nabucodonosor e de Neriglissar ten-do recebido uma educaccedilatildeo de priacutencipe na sequecircncia Ignoram-se os motivos do movimento sedicioso que o levou ao trono assim como a data da reconstruccedilatildeo do templo de Harran Naboacutenido teraacute empreendido os trabalhos apoacutes a sua estada em Harran Este facto eacute contraditoacuterio com uma inscriccedilatildeo de Harran segundo a qual o rei empreendeu os trabalhos depois da sua permanecircncia em Teima Este testemunho contradiz uma outra inscriccedilatildeo real neobabiloacutenica segundo a qual o Ehulhul4 foi terminado depois de 553

Mas o enigma principal deste reinado reside no motivo da sua grande per-manecircncia na Araacutebia Nenhum dos argumentos invocados desde o querer vigiar o Egito enquanto enfrentava os saqueadores aacuterabes tinha pedido instalar-se na Palestina e enviar um chefe militar a Teima Nada prova que o comeacutercio do golfo Peacutersico fora entatildeo desviado ateacute agrave peniacutensula araacutebica e que fora suficientemente importante para justificar a presenccedila do soberano num oaacutesis perdido Apenas resta o motivo religioso isto eacute a atraccedilatildeo de um grande centro lunar

Naboacutenido controlou o paiacutes durante 17 anos atraveacutes da mediaccedilatildeo do filho de quem natildeo parece ter havido oposiccedilatildeo O uacuteltimo rei do Impeacuterio babiloacutenico foi uma figura estranha cujas intenccedilotildees poliacuteticas escapam quase por completo Filho de um governador provavelmente de origem aramaica apesar do seu nome babiloacutenico Nabu-balatsu-iqbi e de uma sacerdotisa do deus Sicircn de Har-ran Adad-guppi Naboacutenido natildeo era de ascendecircncia real como reconhecido nas estelas de Hilleh e de Harran Entronizado por uma conspiraccedilatildeo pretendia ser o continuador de Neriglissar e de Nabucodonosor e mesmo dos grandes sobe-ranos da Assiacuteria

As suas inscriccedilotildees e a autobiografia da sua matildee redigida sob a sua super-visatildeo refletem uma vontade de continuidade imperial Natildeo pode negar-se a influecircncia desta mulher na devoccedilatildeo de seu filho por Sicircn e que parece ter ditado as suas decisotildees poliacuteticas mais importantes

Ao ter lugar a sua subida ao trono em 556 Naboacutenido teve uma visatildeo na

em Dur-Karashu na regiatildeo de Sippar O seu filho Naboacutenido retirado no oaacutesis aacuterabe de Teima natildeo compareceu ao seu funeral Na eacutepoca de Assurbaniacutepal residiu em Harracircn em 649 a C e cuja histoacuteria eacute conhecida atraveacutes de uma pseudo-autobiografia gravada numa estela que integrada seguidamente na estrutura da mesquita da atual povoaccedilatildeo de Eski Harracircn Antes de morrer em 547 ela pode ver o seu filho Naboacutenido o uacuteltimo dos reis neobabiloacutenicos empreender a restauraccedilatildeo do culto no Ehulhul saqueado pelos Medos A sua autobiografia foi redigida de acordo com as instruccedilotildees de Naboacutenido e guardada no templo do deus Sicircn em Hacircrran Adad-guppi estava muito ligada a este centro religioso do qual ela era provavelmente originaacuteria e manifestava uma devoccedilatildeo particular ao deus Sicircn deus da Lua sem ter nunca exercido uma funccedilatildeo religiosa a ele ligada eacute sem dano que ela eacute apresentada frequentemente como uma sacerdotisa de Sicircn de Hacircrran a qualificaccedilatildeo de laquodevotaraquo do deus seria mais apropriada Na sua pseudo-autobiografia apraza o reinado de 42 anos a Assurbaniacutepal isto eacute ateacute 627 aC

4 O templo de Sicircn em Harran Cf Beaulieu 1989 73

203

Antoacutenio Ramos dos Santos

qual Marduk lhe ordenava a reconstruccedilatildeo do Ehulhul o templo de Sicircn em Har-ran que permanecera em ruiacutenas desde a expediccedilatildeo de 610 O rei natildeo via pos-sibilidade em cumprir a missatildeo visto que por essa eacutepoca os Medos ocupavam o paiacutes5 O deus acalmou os temores do rei anunciando o desaparecimento dos Medos Em 555 Naboacutenido mudou-se para Larsa para resolver vaacuterios problemas administrativos Durante trecircs anos reavivou uma seacuterie de expediccedilotildees siacuterias que o levariam ateacute aos confins de Edom

No ano 3 isto eacute em 553 a profecia divina cumpriu-se Ciro rei de Anzan haacute seis anos sublevou-se contra Astiacuteages e as tropas medas abandonaram a regiatildeo de Harran Naboacutenido apressou-se a reconstruir o Ehulhul com grande indignaccedilatildeo por parte do clero de Marduk Para aleacutem disso a situaccedilatildeo econoacute-mica devia ser pouco favoraacutevel e uma seacuterie de distuacuterbios tiveram lugar em Babiloacutenia Borsippa Nippur Ur Uruk e Larsa Contudo o rei natildeo abandonou o seu propoacutesito e tomou a decisatildeo de partir para a Araacutebia apoacutes ter confiado o governo de Babiloacutenia ao seu filho Bel-sharra-usur6 Naboacutenido dirigiu-se ao oaacutesis de Teima que foi possivelmente tomado em 552 assim como as cidades de Dadanu Padakku Hibra Iadihu e Iatribu Permaneceu dez anos na Araacutebia impedindo assim a celebraccedilatildeo das festas do Ano Novo em Babiloacutenia Durante este tempo a situaccedilatildeo internacional evoluiu rapidamente com a ascensatildeo de Ciro e dos Persas

A permanecircncia do rei de Babiloacutenia em Teima eacute um enigma O uacutenico motivo aparente eacute de tipo religioso Teima era um grande centro lunar Naturalmente existem duacutevidas em invocar este factor No entanto teraacute sido importante A devoccedilatildeo de Naboacutenido a Sicircn era grande e este intentou impor o culto deste deus agrave proacutepria Babiloacutenia levando agrave revolta dos sacerdotes jaacute exasperados pelo incre-mento do controlo real sob a administraccedilatildeo dos templos

O controlo das rotas comerciais a recolha de tributo ou qualquer outra operaccedilatildeo militar ou comercial poderia ser assegurada por um governador em Teima e pelo estacionamento permanente de tropas A presenccedila do rei natildeo era necessaacuteria e pode ser explicada como o resultado de uma crise poliacutetica em Babiloacutenia De acordo com o proacuteprio Naboacutenido a partida para a Araacutebia foi pro-vocada pela falta de piedade dos Babiloacutenios que negligenciaram a lideranccedila de Sicircn e cometeram faltas contra ele Todavia natildeo existe prova de uma rebeliatildeo em Babiloacutenia no 1ordm ano do seu reinado embora devesse ter havido alguma oposiccedilatildeo agraves suas crenccedilas religiosas e a ortodoxia tenha sido restabelecida por

5 O tema da presenccedila dos Medos em Harran continua em discussatildeo Alguns autores afirmam que Harran foi ocupada pelos Medos ateacute 553 a C Contudo haacute fontes que nos permitem duvidar disso assim como de que o impeacuterio neobabiloacutenico controlava a Siacuteria e o norte da Mesopotacircmia Ver Curtis 2003 157-67

6 Seria morto em Opis depois de ter ajudado Naboacutenido contra Ciro Os acontecimentos satildeo descritos na laquoCroacutenica de Naboacutenidoraquo Ver Glassner 2004 201-5 e Roux 1985 327

204

Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico

Bel-sharra-usur As suas convicccedilotildees devem tecirc-lo levado a confrontos com seg-mentos da oligarquia e da populaccedilatildeo particularmente com o clero de Marduk

A estada em Teima pode ser explicada como o resultado das divergecircncias poliacuteticas entre Naboacutenido e o seu filho enquanto a conquista do norte araacutebico foi motivado objetivos puramente imperialistas como a vasta riqueza da regiatildeo Tiveram lugar por seu turno deserccedilotildees importantes como a de Goacutebrias o go-vernador do Gutium que se uniu a Ciro7

Natildeo se sabe a razatildeo do abandono de Teima por Naboacutenido se uma ofensiva de Ciro preparadora do assalto a Babiloacutenia ou outra qualquer8 O certo eacute que depois de dez anos este saiu de Teima em 542 O Ehulhul foi entatildeo solenemente inaugurado em Harran o regresso do rei a Babiloacutenia permitiu o recomeccedilo das cerimoacutenias religiosas Ignoram-se os detalhes das medidas tomadas para pre-venir os perigos de um ataque que os uacuteltimos acontecimentos tornavam faacuteceis de prever Assim no Outono de 539 tudo se desenvolveu muito depressa tendo Bel-sharra-usur sido morto no seu palaacutecio Naboacutenido sido feito prisioneiro e Ciro entrado como triunfador na capital

A tradiccedilatildeo lanccedila duacutevidas acerca da sorte do uacuteltimo rei Segundo Xenofonte o monarca foi morto mas Josefo disse que foi exilado o que estaria mais de acordo com a clemecircncia e poliacutetica tolerante de Ciro9

A divisatildeo do poder

Naboacutenido confiou formalmente a laquorealezaraquo ao filho aquando a sua partida para o oeste e a Araacutebia Ao fazecirc-lo o rei natildeo desejava abdicar mas apenas insti-tucionalizar a divisatildeo das prerrogativas reais entre os dois Algumas prerroga-tivas reais natildeo foram legadas a Bel-sharra-usur a saber o tiacutetulo de rei os anos de reinado que continuaram datados de acordo com os anos de Naboacutenido no trono o natildeo ter lugar o festival do Ano Novo durante a permanecircncia em Teima reassumido logo que este voltou a construccedilatildeo de inscriccedilotildees que sempre referiam

7 Nada nos permite dizer que Gutium era uma proviacutencia babiloacutenica e que UgbaruGobrias era um babiloacutenico A uacutenica referecircncia eacute de Xenofonte (Cyr 461-11) e deve-se ter cuidado quando tratamos essa obra como uma fonte A julgar pelas fontes babiloacutenicas Gutium eacute um termo geograacutefico bastante vago nesse periacuteodo e foi conquistado por essa eacutepoca como Meacutedia Segundo o Cilindro de Ciro o rei Persa alcanccedilou as suas primeiras vitoacuterias no paiacutes de Gutium e as tropas dos Medos Ugbaru podia ser governador de uma proviacutencia persa que compreendia pelo menos partes do ocidente da Meacutedia e nordeste da Assiacuteria e que delimitava com o territoacuterio babiloacutenico Eacute notaacutevel que tendo conquistado Babiloacutenia Ciro devolvesse os deuses e cidadatildeos deportados para Babiloacutenia por Naboacutenido De acordo com o texto do Cilindro de Ciro essas cidades estendiam-se ao laquoterritoacuterio de Gutiumraquo o que parece uma clara indicaccedilatildeo de que a regiatildeo natildeo era parte do impeacuterio neobabiloacutenico

8 Acerca do destino de Naboacutenido existe o testemunho de Beroso (FGrH 680 frag 10a) e a Profecia Dinaacutestica Veja-se Kuhrt 2013 80-81 e Liverani 2003 1-12

9 Veja-se Beaulieu 1989 219-32

205

Antoacutenio Ramos dos Santos

o rei como o dirigente ativoOutras prerrogativas foram partilhadas como eacute o caso de refeiccedilotildees sacrifi-

ciais as oferendas reais e os juramentos que prometiam o desempenho de vaacuterios tipos de serviccedilos e a divisatildeo das forccedilas armadas marchando o rei para a Araacutebia com as laquoforccedilas de Akkadraquo

Todavia Bel-sharra-usur desempenhava alguns deveres aparecendo em alguns documentos com a expressatildeo laquofilho do reiraquo durante a sua regecircncia Naboacutenido natildeo interferiu directamente nos assuntos de Babiloacutenia durante o periacuteodo de estada em Teima mas manteve seguramente a correspondecircncia com o filho

Bel-sharra-usur rapidamente tomou uma posiccedilatildeo proeminente no reino apoacutes a ascensatildeo do seu pai Manteve para aleacutem das atividades oficiais um lado privado explicitado em vaacuterios documentos Como membro da famiacutelia Nur-Sin e com a famiacutelia Egibi a que pertencem os documentos o regente aparece como um proeminente homem de negoacutecios e o chefe de uma Casa rica

Aparentemente a usurpaccedilatildeo de 556 natildeo envolveu apenas uma mudanccedila de dirigente mas tambeacutem a confiscaccedilatildeo das propriedades da famiacutelia de Neriglissar em proveito de Bel-sharra-usur Muitas ligaccedilotildees existiam como a de Nabucirc--ahhecirc-iddina chefe da Casa de Egibi Este aparece em transaccedilotildees privadas do regente e dos seus servidores Mesmo em reinados anteriores como o de Nabu-codonosor ou do proacuteprio Neriglissar Nabucirc-ahhecirc-iddina foi um agente por mais de quarenta anos de Neriglissar desempenhando a funccedilatildeo com Bel-sharra-usur tendo sido uma fonte de capital para os vaacuterios creacuteditos

Consideraccedilotildees finais

O final do impeacuterio caldaico e a anexaccedilatildeo persa satildeo duas faces de uma mes-ma moeda A tentativa de secularizaccedilatildeo por parte de Naboacutenido modificando a estrutura dos templos dominados ateacute entatildeo pelo clero do deus diminuindo rendimentos a esses cleros particularmente ao do deus Marduk e as reformas fundiaacuterias foram agravadas ao que tudo leva a crer pelas questotildees religiosas propriamente ditas O monarca babiloacutenico foi visto como um desafio ao poder dos sacerdotes e o rei dos Persas como aquele que iria repor uma ordem violada anteriormente pelo soberano caldaico Os Persas foram para o clero de Marduk libertadores Eles assumiram as crenccedilas e tradiccedilotildees babiloacutenicas e assimilaram Babiloacutenia ao Impeacuterio que se dilatava e se dirigia para as costas do Mediterracircneo O legado de sedentarizaccedilatildeo urbanizaccedilatildeo e burocratizaccedilatildeo babiloacutenicas foram recebidos como parte do Impeacuterio Aquemeacutenida num longo caminho de cosmo-politismo e universalidade Como uma continuidade da tradiccedilatildeo imperial no Proacuteximo Oriente antigo

206

Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico

Documentos

Documento nordm1Divisatildeo de campos por ordem real

YOS VI103 ndash laquoA terra araacutevel de Becircl que no mecircs Nisanu o seacutetimo de Naboacute-nido rei de Babiloacutenia Belshazzar o filho do rei por ordem do rei dividiu entre os oficiais racircb sucirctu

[ hellip ]raquordquo

Documento nordm2Empreacutestimo de dinheiro

Nbn 184 ndash laquoA respeito da Casa de Nabucirc-ahecirc-iddin o filho de Shulacirc filho de Egibi que eacute contiacutegua agrave Casa de Becircl-iddin filho de Ricircmucirct filho do oficial dikucirc por trecircs anos a Nabucirc-mukicircn-ahi o escriba de Belshazzar o filho do rei por uma mina e meia de prata ele deu com a provisatildeo da qual natildeo deve existir renda para a casa nem juro sobre o dinheiro O madeiramento da casa ele renovaraacute e qualquer abertura da parede e taparaacute Apoacutes trecircs anos o dinheiro acrescido a uma e meia minas Nabucirc-ahecirc-iddin a Nabucirc-mukicircn-ahi daraacute e Nabucirc-mukicircn-ahi deixaraacute a casa agrave disposiccedilatildeo de Nabucirc-ahecirc-iddinraquo

Documento nordm3Transacccedilatildeo monetaacuteria do Administrador de Bel-sarra-usur

Nbn 688 ndash laquoRelativo a uma mina e quinze siclos de prata diacutevida e juro a reivindicaccedilatildeo de Nabu-sabit-qati o mordomo de Bel-sarra-usur o filho do rei pela quantia devida por Bel-iddina o filho de Bel-sum-iskun filho de Sin-tabni e pela qual o campo de sementeira que estaacute entre as portas da cidade foi tomado como cauccedilatildeo pela diacutevida na quantia de uma mina e quinze siclos Nabu-sabit--qati recebeu de Itti-Marduk-balatu o filho de Nabu-ahhe-iddin filho de Egibi como for a debitado a Bel-iddina

Testemunhas Babiloacutenia 27ordm dia do mecircs de Adaru 12ordm do reinado de Naboacutenidoraquo Documento nordm 4Eacutedito de Becircl-sharra-usur

YBT VI 103 ndash laquo(Eacutedito repeitante) agrave terra araacutevel de Becircl que Becircl-sharra-usur o filho do rei no mecircs de Nisannu do 7ordm ano do reinado de Naboacutenido rei de Babiloacutenia por ordem do rei repartiu entre os grandes arrendataacuterios

Por um kurru de terra araacutevel plantada (de palmeiras a renda seraacute) de 40 kurru (de tacircmaras)

207

Antoacutenio Ramos dos Santos

Aiacute dentro estaratildeo (contidos) 5 kurru (de tacircmaras) para o salaacuterio dos arbo-ricultores que escavaratildeo canais e solo faratildeo o muro do pomar e suportaratildeo os encargos que o filho do rei lhes confiara

(Quanto agraves) obrigaccedilotildees e agraves raccedilotildees de manutenccedilatildeo do chefe do distrito dos encaregados de contas dos encarregados de tirar as medidas e dos guardas-por-tatildeo as suas obrigaccedilotildees (seratildeo) de 130 kurru 5 qucirc 12 por kurru (de rendas) dar-se-agrave ao chefe do distrito aos contabilistas aos medidores e aos porteiros reccedilotildees de manutenccedilatildeo de 3 qucirc 12 (de tacircmaras) por kurru (de rendas) Estes poderatildeo beneficiar disso (imediatamente)

Se o filho do rei daacute 125 kurru de terra laquode culturaraquo(o tomador) daraacute 1200 kurru de cevada por toda a (renda) por lote de 125 kurru (de terra) 5 kurru de terra araacutevel lhe seratildeo entregues para todas as raccedilotildees de manutenccedilatildeo do chefe do distrito dos contabilistas dos medidores e dos porteiros

Por cada arado dar-se-lhe-aacute 4 bois 2 animais de cornos jovens 4 agricul-tores Os bois natildeo deveratildeo enfraquecer Os instrumentos de ferro satildeo levados em conta

Por kurru (as rendas dos tomadores) acrescentaratildeo agrave renda fundiaacuteria 130 de kurru 5 qucirc 12 de cevada e de tacircmaras como raccedilotildees de manutenccedilatildeo (de Becircl) e as daratildeo ao Esagil

Eles entregaratildeo a cevada e as tacircmaras na totalidade no EsagilPor kurru (rendas) eles daratildeo a mais da sua renda fundiaacuteria 3 qucirc 12 de

raccedilotildees de manutenccedilatildeo ao chefe do distrito aos contabilistas aos medidores e aos porteiros

No primeiro ano [o Esagil] daraacute 125 kurru de cevada para as sementeiras assim como 145 kurru de cevada para as raccedilotildees de manutenccedilatildeo dos agricultores (agrave razatildeo de) 4 kurru cada uma [e]para os animais do gado corniacutegeroraquo

208

Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico

Bibliografia

Beaulieu Paul-Alain 1989 The Reign of Nabonidus King of Babylon 556-539 BC Michigan Yale University

Chavalas Mark W 2006 The Ancient Near East Oxford Blackwell PublishingCurtis J 2003 ldquoThe Assyrian heartland in the period 612-539 BCrdquo In

Continuity of Empire () Assyria Media Persia Padova eds Giovanni B Lanfranchi Michael Roaf et Robert Rollinger 157-68 Padova Sargon Editrice e Libreria

Glasser Jean-Jacques dir 2004 Chroniques Meacutesopotamiennes Paris Les Belles Lettres

Grayson A Kirk 2000 Assyrian and Babylonian Chronicles Winona Lake Eisenbrauns

Joannegraves Francis dir 2001 Dictionnaire de la Civilisation Meacutesopotamienne Paris Robert Laffont

mdashmdashmdash 2000 La Meacutesopotamie au 1er milleacutenaire avant J-C Paris Armand ColinKuhrt Ameacutelie 2010 The Persian Empire A Corpus of Sources from the

Achaemenid Period London RoutledgeLecoq Pierre 1977 Les inscriptions de la Perse acheacutemeacutenique Paris GallimardLiverani M 2003 ldquoThe Rise and Fall of Mediardquo In Continuity of Empire ()

Assyria Media Persia Padova eds Giovanni B Lanfranchi Michael Roaf et Robert Rollinger 1-12 Padova Sargon Editrice e Libreria

Pritchard James B ed (1950) 1992 Ancient New Eastern Texts Relating to the Old Testament Princeton Princeton University Press

Roux George 1985 La Meacutesopotamie Essai drsquohistoire politique eacuteconomique et culturelle Paris Seuil

Saggs H W F 1996 Babylonians London British Museum PressWiseman D J 1956 Chronicles of Chaldean Kings (626-556 BC) in the British

Museum London The Trustees of the British Museum

209

Maria de Faacutetima Rosa

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciro duas atitudes divergentes face ao

culto do deus Marduk1 (The fall of Babylon in 539 BC Nabonidus and Cyrus two different

approaches to the cult of god Marduk)

Maria de Faacutetima Rosa(frosafcshunlpt ORCID 0000-0003-2302-7751)

Universidade Nova de Lisboa CHAM Universidade dos Accedilores

Resumo - Partindo da anaacutelise de algumas fontes cuneiformes este breve estudo pre-tende explorar os diferentes comportamentos de Naboacutenido e de Ciro face ao culto do deus Marduk As suas atitudes suscitam importantes questotildees tais como Qual teria sido o peso da accedilatildeo dos dois soberanos no domiacutenio religioso na queda da Babiloacutenia em 539 aC De que modo e em que campos se joga a laquopropagandaraquo poliacutetico-religiosa efetuada pelo monarca aquemeacutenida Satildeo questotildees como estas que pretendemos estu-dar neste artigo

Palavras-chave Marduk Naboacutenido Sicircn Ciro II Babiloacutenia

Abstract ndash Through the analysis of some important cuneiform sources this brief study intends to explore the different attitudes of Nabonidus and Cyrus in relation to the cult of god Marduk In fact some important questions arise What was the weight of the action of the two sovereigns in the religious domain with the progressive distancing of Nabonidus from the clergy of the laquonationalraquo god in the fall of Babylon at the hands of a Persian dynasty In what way did the Achaemenid monarch construct his political and religious laquopropagandaraquo These are the questions that we intend to study in this article

Keywords Marduk Nabonidus Sicircn Cyrus II Babylon

Segundo relata o Cilindro de Ciro na origem da queda da Babiloacutenia esteve uma ordem dada pelo deus Marduk ao imperador persa no sentido de conquis-tar a cidade O deus tutelar da Babiloacutenia pretendia punir o rei Naboacutenido pelo seu desrespeito pelo culto Para tal Marduk ordenara a Ciro que marchasse sobre a cidade e com ele partira para a batalha laquocomo um verdadeiro amigoraquo2

As fontes cuneiformes denotam um contraste entre as atitudes poliacuteticas e religiosas de Ciro imperador persa e de Naboacutenido uacuteltimo soberano do periacuteodo

1 Abreviaturas usadas AJA ndash American Journal of Archaeology ANET ndash Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament ETCSL ndash Electronic Text Corpus of Sumerian Literature JNES ndash Journal of Near Eastern Studies

2 ANET 315

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_11

210

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk

neobabiloacutenico Enquanto o primeiro eacute retratado como um monarca justo e te-mente aos deuses o segundo demarca-se pela sua conduta improacutepria e pela sua impiedade Este contraste dever-se-aacute ao facto de a grande maioria das fontes de que dispomos datar de um periacuteodo posterior agrave tomada da cidade Logo eacute possiacute-vel que muitas tenham sido escritas por instigaccedilatildeo do proacuteprio Ciro3 No entanto tudo aponta para que as reformas religiosas levadas a cabo por Naboacutenido e a sua prolongada ausecircncia da capital tenham levado a um crescente descontentamento da populaccedilatildeo Assim ao entrar na Babiloacutenia Ciro pocircde aproveitar este descon-tentamento para se apresentar perante os seus habitantes como um verdadeiro libertador O discurso de Ciro pretendia certamente angariar uma base de apoio local que lhe permitisse proceder a uma integraccedilatildeo segura da Babiloacutenia no im-peacuterio persa

A mensagem ideoloacutegica era simples Marduk retirara o poder a Naboacutenido e outorgara-o a Ciro porque ele era ao contraacuterio daquele bondoso para a sua populaccedilatildeo

1 A gloacuteria e o esplendor da Babiloacutenia

Naboacutenido sobe ao poder em 556 aC apoacutes uma conjura Agrave data a Babiloacutenia era uma das maiores e mais esplendorosas cidades do mundo antigo em grande parte devido aos trabalhos de reconstruccedilatildeo e de embelezamento levados a cabo por Nabucodonosor II Respeitada e enaltecida a cidade constituiacutea o centro poliacutetico de um extenso territoacuterio Na sua arquitetura monumental transparecia toda a grandeza e majestade do poder real

Estima-se que a sua populaccedilatildeo rondasse os 100000 habitantes Na urbe conviviam natildeo soacute babiloacutenios como tambeacutem habitantes de outras partes do impeacuterio e ateacute mesmo estrangeiros A sua heterogeneidade devia-se em grande medida agraves vaacuterias vagas de deportaccedilotildees ocorridas em anos anteriores A coloacutenia judaica que aiacute se estabeleceu como resultado das deportaccedilotildees levadas a cabo em 598 aC e em 587 aC eacute um exemplo desta situaccedilatildeo O poder exercido pelo rei sobre uma populaccedilatildeo tatildeo diversificada necessitava de meios que assegurassem e justificassem a sua legitimidade Ora na Mesopotacircmia essa legitimidade vinha sempre laquode cimaraquo4 eram os deuses que a concediam

Eacute na segunda metade do segundo mileacutenio aC que o deus tutelar da Babiloacutenia Marduk ascende ao cume do panteatildeo sumeacuterio-acaacutedico5 Data desta altura a redaccedilatildeo da epopeia de criaccedilatildeo designada enūma eliš O texto descreve a vi-toacuteria de Marduk sobre o caos e a sua consequente nomeaccedilatildeo como chefe supremo

3 Beaulieu 1993 244 e Briant 1998 504 Conta o relato sumeacuterio do diluacutevio que laquoa realeza desceu dos ceacuteusraquo (ETCSL 174)5 Charpin 2003 114 n 1

211

Maria de Faacutetima Rosa

(como laquorei dos deusesraquo) pela assembleia divina6 Atraveacutes da contenccedilatildeo do caos imaginado como uma imensa massa de aacutegua7 Marduk permitira a ordenaccedilatildeo do mundo e a criaccedilatildeo da humanidade A Babiloacutenia fora entatildeo construiacuteda como o seu santuaacuterio no centro do mundo8 passando a assumir um papel fundamental na organizaccedilatildeo e estruturaccedilatildeo do universo Ora segundo a ideologia babiloacutenica para governar os destinos da populaccedilatildeo deste universo as divindades teriam de-signado um lugar-tenente um representante de Marduk na terra No periacuteodo em questatildeo esse representante era Naboacutenido Como facilmente se depreende o que os deuses haviam concedido prontamente poderiam retirar caso aquele que por eles fora escolhido para assumir a realeza natildeo desempenhasse condignamente a sua missatildeo

O culto do deus Marduk compreendia simultaneamente trecircs vertentes distintas o culto da cidade da Babiloacutenia o culto do paiacutes da Babiloacutenia (uma espeacutecie de culto nacional) e o culto da realeza A celebraccedilatildeo mais importante ocorria anualmente no mecircs de nisannu e durava cerca de 12 dias Durante as cerimoacutenias o poema enūma eliš era recitado e recriado relembrando a ameaccedila que pendia sobre a populaccedilatildeo caso Marduk decidisse retirar a sua proteccedilatildeo ao rei e agrave populaccedilatildeo o mundo mergulharia novamente no caos

O primeiro aspeto que podemos destacar entre as acusaccedilotildees de que Naboacutenido eacute alvo eacute precisamente o facto de o soberano ter cessado as celebraccedilotildees Segundo consta na Narrativa em Verso de Naboacutenido o monarca teraacute declarado laquoEu omitirei (todos) os festivais eu ordenarei (ateacute) a cessaccedilatildeo da festa do Ano Novoraquo9

2 O culto do deus Marduk e a festa do Ano Novo (akītu)

No iniacutecio do seu reinado Naboacutenido teraacute abandonado a capital deixando o governo da cidade entregue ao seu filho Becircl-šarra-uṣur (conhecido como Baltasar por intermeacutedio do relato vetero-testamentaacuterio) O soberano ter-se-aacute instalado no oaacutesis de Teima localizado no nordeste da peniacutensula araacutebica10 A ausecircncia do soberano impedia a realizaccedilatildeo da cerimoacutenia do Ano Novo Como referimos a festa natildeo celebrava apenas a entronizaccedilatildeo de Marduk a delegaccedilatildeo dos seus poderes ao rei era um dos aspetos mais importantes da celebraccedilatildeo Era esta espeacutecie de acordo esta alianccedila entre Marduk e o soberano que o akītu como se denominava em acaacutedico celebrava A renovaccedilatildeo anual da alianccedila possibilitava

6 Proclamaccedilatildeo que culmina com a atribuiccedilatildeo dos seus cinquenta nomes (nas tabuinhas VI e VII)

7 Personificada na epopeia pela deusa Tiacircmat que assume no combate coacutesmico a forma de uma serpente

8 Esta ideia transparece no conhecido mapa-mundo babiloacutenico em exposiccedilatildeo no museu britacircnico

9 Texto naturalmente exagerado para denegrir a imagem do rei (ANET 313)10 O rei teraacute permanecido em Teima 10 anos (ANET 562) provavelmente de 553 aC a 542 aC

212

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk

ao rei consolidar o seu poder e permitia agrave Babiloacutenia manter a sua proteccedilatildeo divina Para aleacutem disto esperava-se que atraveacutes dos rituais e das preces que entatildeo tinham lugar os deuses pudessem propiciar boas colheitas e proporcionar um bom ano agriacutecola Podemos dizer que diferentes correntes de pensamento convergiam no akītu para aleacutem da componente poliacutetica e cosmogoacutenica segundo a qual se recriava o combate coacutesmico entre a ordem (personificada por Marduk) e o caos a celebraccedilatildeo contemplava aspetos mais ligados aos ciclos da natureza e agrave fertilidade

Descurando o akītu Naboacutenido arriscava perder o favoritismo que o deus lhe concedera e mergulhar o mundo no caos na desordem Com efeito segundo conta o Cilindro de Ciro fora precisamente devido agrave sua constante negligecircncia e ao seu desrespeito pelo culto que a populaccedilatildeo ficara como laquomortaraquo11 As accedilotildees de Naboacutenido teriam levado Marduk a abandonar a regiatildeo12

A importacircncia poliacutetica do akītu natildeo era negligenciaacutevel Senatildeo vejamos Conforme conta a Croacutenica de Naboacutenido durante repetidos anos laquoo rei natildeo veio agrave Babiloacutenia [para as cerimoacutenias do mecircs de nisannu] o deus Nabucirc natildeo veio agrave Babiloacutenia o deus Becircl13 natildeo saiu (do Esagila em procissatildeo) a fes[ta do Ano Novo foi omitida]raquo14 Um dos momentos principais das celebraccedilotildees ocorria quando a estaacutetua de Marduk era transportada numa procissatildeo de grandes dimensotildees desde o seu templo o Esagila15 ateacute ao chamado templo do akītu localizado no exterior da cidade16 Para a cerimoacutenia chegavam agrave capital diversas divindades17 que par-ticipavam no cortejo liderado por Marduk A um niacutevel cosmoloacutegico podemos interpretar estas deslocaccedilotildees como a necessidade das divindades confirmarem presencialmente a sua lealdade ao deus-rei Marduk18 Jaacute a um niacutevel poliacutetico a presenccedila dos deuses tutelares das vaacuterias partes do territoacuterio tinha como fim as-severar a sua submissatildeo ao poder central agrave Babiloacutenia No fundo podemos dizer que o akītu era a ocasiatildeo em que se exibia todo o poder poliacutetico da Babiloacutenia Descuidar o akītu e negligenciar o culto de Marduk deus nacional significava assim menosprezar a identidade poliacutetica da Babiloacutenia De facto era atraveacutes das estaacutetuas divinas que participavam na procissatildeo do akītu que os cidadatildeos babiloacute-nios e estrangeiros tinham uma noccedilatildeo mais precisa do imenso territoacuterio sobre o qual a Babiloacutenia reinava19

Por fim referimos que durante a estadia dos deuses no akītu o rei entregava

11 ANET 31512 Ibid13 Nome pelo qual Marduk eacute designado nos periacuteodos mais tardios Significa laquosenhorraquo14 Ibid 30615 O Esagila ficava localizado no centro da urbe16 Sobre a procissatildeo e todo o cerimonial que a rodeava veja-se Van de Mieroop 2003 27217 As estaacutetuas divinas eram transportadas por barco Na Mesopotacircmia a estaacutetua divina natildeo

era uma mera representaccedilatildeo da divindade mas sim o proacuteprio deus18 O motivo principal era a coraccedilatildeo de Marduk19 Ibid 271-72

213

Maria de Faacutetima Rosa

doaccedilotildees aos diferentes cultos esperando obter o apoio divino necessaacuterio agraves suas conquistas militares Ora a cessaccedilatildeo das celebraccedilotildees teria certamente pesado na relaccedilatildeo entre o soberano e a classe sacerdotal que se via privada dos dona-tivos que recolhia nesta ocasiatildeo A par desta medida um conjunto de reformas religiosas levadas a cabo por Naboacutenido sobretudo a partir de 553 aC viria agudizar o descontentamento do clero em relaccedilatildeo ao monarca

3 O culto de Sicircn deus lunar

Maior estranheza teraacute causado o facto de Naboacutenido segundo referem alguns textos20 ter transferido a atenccedilatildeo que devia ser dispensada ao deus ba-biloacutenico para uma outra divindade do panteatildeo sumeacuterio-acaacutedico o deus lunar Sicircn A devoccedilatildeo a Sicircn teraacute surgido por influecircncia da sua matildee Adad-guppi uma mulher consagrada a esta divindade Um texto gravado numa estela erigida em Harran local onde Adad-guppi nascera e cumprira as suas funccedilotildees como sacerdotisa de Sicircn constata a relaccedilatildeo de proximidade entre Naboacutenido e a sua matildee21 Natildeo admira portanto que Naboacutenido tenha expressado desde o iniacutecio do seu reinado o desejo de reconstruir o templo do deus em Harran22 projeto que viria a concretizar passados poucos anos23

Segundo Naboacutenido a ordem de reconstruccedilatildeo do templo fora dada pelo proacute-prio deus laquoSicircn24 fez-me ter um sonho e disse o seguinte ldquoReconstroacutei o Ehulhul o templo de Sicircn em Harran e eu dar-te-ei todos os paiacutesesrdquoraquo25 Esta devoccedilatildeo ao

20 Trata-se sobretudo da Narrativa em Verso de Naboacutenido As inscriccedilotildees de Naboacutenido encon-tradas em Harran parecem evidenciar tambeacutem esta situaccedilatildeo Contudo devemos ter em conta que as mesmas se inserem num contexto de culto muito particular onde Sicircn eacute a figura central

21 Trata-se de uma espeacutecie de autobiografia da matildee de Naboacutenido Cf ANET 560-56222 Harran era um centro comercial importante situado no cruzamento das rotas que ligavam

a Mesopotacircmia agrave Anatoacutelia Desde 610 aC data que coincide com o afastamento do jugo assiacuterio o templo encontrava-se em ruiacutenas

23 Segundo a visatildeo mais tradicional os Medos teriam ocupado Harran ateacute 553 aC bem como outras regiotildees da antiga Assiacuteria No entanto estudos mais recentes contestam esta ideia Jursa (2003 177) com base nas fontes neobabiloacutenicas indica que a maior parte do territoacuterio da antiga Assiacuteria caiacutera sob o domiacutenio babiloacutenico e natildeo Medo uma visatildeo partilhada tambeacutem por Liverani (Liverani 2003 7) que vai mais longe contestando inclusivamente a noccedilatildeo de um laquoimpeacuterio medoraquo tal como o faz aliaacutes Rollinger (2009 51) Segundo Liverani os medos que se assemelhavam mais a uma confederaccedilatildeo de chefes tribais teriam ficado apenas com os Zagros que jaacute haviam sido previamente perdidos pela Assiacuteria O autor sustenta que laquothe Medes assumed the dirty job of destruction while the Babylonians assumed the role of restorersraquo (ibid) Para Curtis laquothe idea that the Medes were controlling Harrān may have to be abandoned but it is still significant that they were in this area at least in 555 BCraquo (Curtis 2003 166)

24 Uma outra inscriccedilatildeo gravada numa estela de basalto alega que quem deu a ordem de reconstruccedilatildeo a Naboacutenido foi o proacuteprio Marduk (veja-se ANET 319)

25 Ibid 562 Esta iniciativa insere-se na realidade num programa mais vasto de reconstru-ccedilotildees na proacutepria Babiloacutenia que incluiacuteram por exemplo o famoso Esagila o templo de Marduk Naboacutenido ficou para a histoacuteria como o laquorei arqueoacutelogoraquo devido agrave sua pesquisa no solo dos edifiacutecios reconstruiacutedos de depoacutesitos de fundaccedilatildeo dos seus antecessores (Roux 1995 427)

214

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk

deus lunar patente natildeo soacute na sua dedicaccedilatildeo agrave reconstruccedilatildeo do Ehulhul como tambeacutem na sua estadia em Teima um importante centro de culto do deus lunar e na nomeaccedilatildeo de uma das suas filhas como grande sacerdotisa do deus Sicircn em Ur teraacute certamente chocado o clero de Marduk A ligaccedilatildeo de Naboacutenido a Sicircn natildeo teraacute sido bem aceite pela comunidade religiosa

No rescaldo da conquista da Babiloacutenia surge um texto jaacute aqui referido que testemunha o descontentamento face ao monarca devido agrave sua ligaccedilatildeo a Sicircn O documento alega que Naboacutenido agira de forma inconveniente confecionando a estaacutetua de um deus estranho laquoEle criou um fantasma [um deus] que ningueacutem tinha visto [antes] no paiacutes [hellip] Ele instalou-o num pedestal [] ele chamou--o pelo nome de Nanna26raquo27 Podemos ter uma ideia mais clara do peso desta conduta improacutepria num verso onde se afirma que Naboacutenido tendo reconhecido o siacutembolo do crescente lunar no Esagila interrogara laquoPara quem foi este templo construiacutedoraquo28 Em resposta o proacuteprio afirmara laquoSicircn assinalou o seu templo com o seu siacutemboloraquo29 Como vemos segundo a visatildeo de uma parte da elite babiloacutenica Naboacutenido escolhera menosprezar a importacircncia do seu deus tutelar e dar prima-zia a um deus que natildeo detinha no seio do panteatildeo babiloacutenico agrave semelhanccedila de Bel30 o lugar cimeiro Esta atitude desrespeitosa era sobretudo inadequada a um sumo-sacerdote de Marduk facto que teraacute contribuiacutedo para a formaccedilatildeo desta opiniatildeo criacutetica

Visatildeo muito diferente teria o proacuteprio Naboacutenido o rei natildeo soacute defendia a soberania de Sicircn31 como acusava a sua populaccedilatildeo de desrespeitar o culto por ele imposto o culto do deus que laquosuplanta todos os outrosraquo32 Vejamos laquoos cidadatildeos da Babiloacutenia Borsippa Nippur Ur Uruk (e) Larsa os administradores dos tem-plos (e) as pessoas dos centros de culto do paiacutes de Akkad ofenderam a sua (de Sicircn) grande divindade portaram-se mal e pecaram (porque) desconheciam a grande ira do rei dos deuses Nannaraquo33 A impiedade dos cidadatildeos dos centros poliacuteticos e religiosos da Mesopotacircmia teraacute sido o motivo apresentado por Naboacutenido para justificar a sua saiacuteda da capital

Um uacuteltimo aspeto a ressaltar prende-se com um dos epiacutetetos atribuiacutedo por Naboacutenido a Sicircn Para aleacutem de laquoCrescente Divinoraquo o deus era considerado como o laquorei de todos os deusesraquo Ora este tiacutetulo referia-se normalmente a Marduk a

26 Nome sumeacuterio de Sicircn27 Beaulieu 2007 161-6228 Ibid29 Ibid30 bēl (laquosenhorraquo) eacute o tiacutetulo atribuiacutedo a Marduk a partir do final do segundo mileacutenio altura

em que se torna o deus par excellence (Oshima 2007 348)31 Eacute esta a realidade que transparece na leitura de alguns textos32 ANET 56333 Beaulieu 2007 145

215

Maria de Faacutetima Rosa

divindade que o conquistara apoacutes derrotar o caos Os babiloacutenios34 conheciam o seu deus nacional como um verdadeiro deus-rei que ascendera ao topo da soberania divina apoacutes o difiacutecil combate que dera origem ao mundo tal como era conhecido Assim sendo a titulatura laquoSicircn senhor dos deuses do ceacuteu e da terra rei dos deuses deus(es) dos deusesraquo35 natildeo poderia senatildeo ter causado uma certa apreensatildeo

A questatildeo que se coloca eacute porquecirc esta devoccedilatildeo a Sicircn Eacute possiacutevel que Naboacutenido fosse filho de um governador de origem arameia A sua estadia em Teima apesar de envolta em grande misteacuterio deveraacute ter sobretudo um motivo de ordem religio-sa36 Como referimos Teima era um importante santuaacuterio de Sicircn e um centro de culto para as populaccedilotildees que veneravam este deus Ora Sicircn era tambeacutem adorado entre os arameus e os aacuterabes37 Eacute por conseguinte possiacutevel que expressando a sua devoccedilatildeo agrave divindade o soberano tambeacutem ele um arameu pretendesse unificar sob a sua hegemonia as diversas populaccedilotildees dispersas pelo territoacuterio38

Por outro lado H Lewy aponta divergecircncias entre a poliacutetica seguida por Naboacutenido e aquela que fora seguida pelos seus antecessores Segundo o autor o soberano pretendia governar seguindo a tradiccedilatildeo imperial assiacuteria que preconi-zava um ideal assente no estabelecimento de um impeacuterio universal consagrado natildeo a uma divindade nacionalista como Marduk mas sim a um deus universal39

4 A queda da Babiloacutenia

Durante a ausecircncia de Naboacutenido datildeo-se novos desenvolvimentos na cena poliacutetica internacional Em 550 aC Ciro derrota os Medos tornando-se senhor do maior impeacuterio que a antiguidade conhecera ateacute entatildeo40 Embalado pelo sucesso desta conquista o imperador persa prossegue a sua poliacutetica expansionista e dirigindo-se para oeste anexa vaacuterias regiotildees De entre estas conquistas destaca-se a tomada de Urartu provavelmente em 547 aC41 e da Liacutedia algures entre

34 Ou pelo menos a elite babiloacutenica35 Sobre estes tiacutetulos a questatildeo dos epiacutetetos normalmente atribuiacutedos a Marduk e a discussatildeo

em torno da designaccedilatildeo laquodeuses dos deusesraquo (DINGIRMEŠ ša DINGIRMEŠ) veja-se Beaulieu 1993 254

36 A este podemos juntar motivos de ordem poliacutetica Em Teima o soberano estava mais perto do Egito e da Palestina podendo controlar e vigiar melhor estas regiotildees Para aleacutem disto Teima estava localizada num local propiacutecio ao controlo de certas rotas comerciais pelo que tambeacutem podem ter pesado nesta sua deslocaccedilatildeo agrave Araacutebia motivos de ordem econoacutemica

37 Black ndash Green 1992 3538 Veja-se Green 1992 37 e J Lewy 1948 apud Beaulieu 2007 16339 Sobre a discussatildeo deste assunto veja-se Lewy 1949 apud Garelli ndash Nikiprowetzki 1977

247-4840 Roux 1995 42941 Veja-se o estudo de Rollinger (2009) acerca das campanhas de Ciro e a sua interpretaccedilatildeo

da Croacutenica de Naboacutenido

216

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk

545 e 542 aC42 famosa pela sua riqueza Estas movimentaccedilotildees a agitaccedilatildeo junto agraves fronteiras da Babiloacutenia e a traiccedilatildeo de alguns dos seus aliados43 poderatildeo ter precipitado o regresso do monarca agrave capital

De facto na veacutespera da queda da Babiloacutenia Naboacutenido regressa agrave cidade retoma a celebraccedilatildeo do akītu e toma as disposiccedilotildees necessaacuterias com vista agrave preparaccedilatildeo da capital para um possiacutevel ataque persa Um indiacutecio em particular elucida-nos sobre este ponto44

Paul-Alain Beaulieu relacionou o facto de Naboacutenido ordenar a reuniatildeo das estaacutetuas dos deuses de Sumer e de Akkad na capital com a sua intenccedilatildeo de evitar que as mesmas fossem capturadas pelo inimigo A captura da estaacutetua divina por um poder estrangeiro e o seu transporte ateacute ao paiacutes conquistador onde se tornava refeacutem assinalava a cisatildeo definitiva entre o deus e o seu paiacutes Segundo a loacutegica de entatildeo esta realidade representava uma atitude da divindade que escolhia favorecer o paiacutes inimigo castigando assim o seu eleito (o rei) e a sua populaccedilatildeo

No relato da Croacutenica de Naboacutenido relativo ao deacutecimo seacutetimo e uacuteltimo ano do governo de Naboacutenido consta o seguinte

laquoNo mecircs de [Lugal-Marada e os outros deuses] da cidade de Marad Zababa e os (outros) deuses da cidade de Kiš a deusa Ninlil [e os outros deuses de] Hursagkalama entraram na Babiloacutenia Ateacute ao final do mecircs de Ululu (todos) os deuses de Akkad () entraram na Babiloacutenia Os deuses de Borsippa Kutha e Sippar (no entanto) natildeo entraramraquo45

O envio das estaacutetuas para a capital previa dois objetivos por um lado Naboacutenido impedia que estas fossem tomadas pelos persas e por outro lado o soberano garantia o apoio dos deuses na esperada batalha Com a presenccedila das divindades a seu lado Naboacutenido teria mais hipoacuteteses de derrotar os persas Contudo testemunhos apontam para o facto de nem todos os centros urbanos terem enviado os seus deuses voluntariamente46 A contestaccedilatildeo a Naboacutenido era forte Para aleacutem da classe sacerdotal descontente com as reformas do soberano os exilados47 em territoacuterio babiloacutenico expressavam o seu apoio crescente a Ciro Eacute por conseguinte possiacutevel que se tenha formado uma opiniatildeo proacute-persa que veria mais benefiacutecios na chegada de Ciro do que na continuaccedilatildeo das poliacuteticas de Naboacutenido

42 Natildeo se sabe ao certo a data desta conquista eacute possiacutevel que se situe entre 545 e 542 aC ou ateacute mesmo apoacutes a tomada da Babiloacutenia (ibid 56 n 23)

43 Eacute o caso do governador dos guacutetios Gobias que se teria aliado a Ciro44 Sobre este assunto veja-se o estudo de Beaulieu 1993 45 ANET 30646 Op cit Beaulieu 1993 25747 Visatildeo patente no Livro de Isaiacuteas

217

Maria de Faacutetima Rosa

Todavia a investida final contra a Babiloacutenia natildeo teraacute partido de uma accedilatildeo voluntaacuteria de Ciro Com efeito o imperador alega ter agido sob a ordem do deus Marduk laquo(Marduk) ordenou-lhe que marchasse contra a cidade da Babiloacuteniaraquo48 Eacute o deus nacional quem decide retirar o seu favor a Naboacutenido e desta forma destronar o rei que laquonatildeo o adoravaraquo49 Para tal Marduk escolhera um substituto um soberano que ao contraacuterio daquele era justo e piedoso A escolha de Marduk fora metoacutedica e cuidada A divindade laquoexaminou todos os paiacuteses procurando um governante justo que estivesse disposto a levaacute-lo (na procissatildeo anual)raquo 50 Eacute aqui que Ciro coloca a toacutenica do seu discurso isto eacute no respeito pela celebraccedilatildeo do akītu A poliacutetica persa passa por apresentar Ciro como um legiacutetimo sucessor dos reis nacionais e como o restaurador do culto de Marduk Ciro natildeo eacute apenas outro soberano mas sim aquele que fora escolhido por estar disposto a liderar Marduk na procissatildeo

A concentraccedilatildeo das estaacutetuas na capital evento acima referido constitui um dos episoacutedios em que Ciro baseia a sua laquopropagandaraquo Segundo o imperador persa Naboacutenido natildeo protegera os deuses Muito pelo contraacuterio o soberano tecirc-los-ia aprisionado na capital contra a sua vontade deixando as cidades desprotegidas e abertas a possiacuteveis ameaccedilas Fora Ciro quem uma vez chegado agrave capital ordenara o regresso das estaacutetuas agraves suas capelas laquoEu recoloquei segundo a ordem de Marduk o grande senhor todos os deuses de Sumer e de Akkad que Naboacutenido tinha trazido para a Babiloacutenia para ira do senhor dos deuses intactos nos seus santuaacuterios os lugares que os fazem felizesraquo51 O ato de Ciro toma o sentido de uma libertaccedilatildeo A sua chegada agrave Babiloacutenia simboliza simultaneamente a libertaccedilatildeo da populaccedilatildeo (que relembramos estava laquocomo mortaraquo) e a libertaccedilatildeo dos deuses que se teriam visto livres para regressarem agraves suas moradas

Segundo consta Ciro teraacute permitido o restabelecimento dos antigos cultos52 e ordenado inclusivamente o incremento laquodas oferendas regulares ao senhor dos senhoresraquo53 Marduk O governo de Ciro seria marcado pelo respeito pelos costu-mes religiosos Atraveacutes desta poliacutetica de toleracircncia o imperador teraacute conquistado o apoio da populaccedilatildeo local

48 ANET 31549 Ibid 31650 Ibid 31551 Ibid 31652 A visatildeo segundo a qual Ciro seria um apoacutestolo da toleracircncia deve ser revista De facto

Ciro atua em vaacuterios aspetos como muitos dos seus antecessores assiacuterios que teratildeo permitido o retorno de exilados e conferido privileacutegios (kidinnūtu) agrave Babiloacutenia O discurso de Ciro no seu famoso cilindro eacute aliaacutes bastante semelhante a algumas inscriccedilotildees de Sargatildeo II Veja-se a este propoacutesito Van der Spek 2014 sobretudo 241-49

53 Ibid 315

218

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk

Um ano apoacutes a tomada da Babiloacutenia em 538 aC Ciro nomeia o seu filho Cambises como governador da nova unidade administrativa do impeacuterio persa a Babiloacutenia54 A coroaccedilatildeo de Cambises ocorre na festa do Ano Novo no akītu

54 Cambises teraacute adotado o tiacutetulo de laquorei da Babiloacuteniaraquo durante cerca de um ano

219

Maria de Faacutetima Rosa

Bibliografia

Beaulieu P-A 2007 ldquoNabonidus the mad king a reconsideration of his stelas from Harran and Babylonrdquo In Representations of political power case histories from times of change and dissolving order in the Ancient Near East ed M Heinz e M Feldman 137-66 Winona Lake Eisenbrauns

mdashmdashmdash 1993 ldquoAn episode in the fall of Babylon to the Persiansrdquo JNES 52 (4)241-61

Black J A G Cunningham J Ebelin E Fluumlckiger-Hawker E Robson J Taylor e G Zoacutelyomi eds 1998-2006 The Electronic Text Corpus of Sumerian Literature Oxford Em httpetcslorinstoxacuk

Black J e A Green 1993 Gods demons and symbols of Ancient Mesopotamia London British Museum Press

Briant P 1998 Histoire de lrsquoempire perse De Cyrus agrave Alexandre Paris FayardCharpin D 2003 Hammu-rabi de Babylone Paris Presses Universitaires de

FranceCook J M 1983 The Persian Empire London Joseph Malaby DentCurtis J 2003 ldquoThe Assyrian heartland in the period 612-539 BCrdquo In Continuity

of Empire () Assyria Persia Padua ed G Lanfranchi M Roaf e R Rollinger 157-68 Winona Lake Eisenbrauns

Garelli P e V Nikiprowetzki 1974 Le Proche-Orient asiatique Les empires meacutesopotamiens Israel Paris Presses Universitaires de France

Green T 1992 The city of the moon god Religious traditions of Harran Leiden Brill

Jursa M 2003 ldquoObservations on the Problem of the Median ldquoEmpirerdquo on the Basis of Babylonian Sourcesrdquo In Continuity of Empire () Assyria Persia Padua ed G Lanfranchi M Roaf e R Rollinger 169-79 Winona Lake Eisenbrauns

Liverani M 2003 ldquoThe Rise and Fall of Mediardquo In Continuity of Empire () Assyria Persia Padua ed G Lanfranchi M Roaf e R Rollinger 1-12 Winona Lake Eisenbrauns

Petit T 1990 Satrapes et satrapies dans lrsquoempire acheacutemeacutenide de Cyrus le Grand agrave Xerxegraves Ier Paris Les Belles Lettres

Pritchard J B ed 1969 Ancient Near Eastern texts relating to the Old Testament Princeton Princeton University Press

Rollinger R 2009 ldquoThe Median ldquoEmpirerdquo the End of Urartu and Cyrusrsquo the Great Campaign in 547 BC (Nabonidus Chronicle II 16)rdquo Ancient West amp East 7 49-63

Roux G 1995 La Meacutesopotamie Paris Eacuteditions du Seuil

220

A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciroduas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk

Santos A R dos 2003 A Babiloacutenia dos Caldeus uma caracterizaccedilatildeo socioeconoacutemica Lisboa Colibri

Oshima T 2007 ldquoThe Babylonian God Mardukrdquo In The Babylonian World ed G Leick 348-60 New York London Routledge

Mierrop M Van de 2003 ldquoReading Babylonrdquo AJA 107257-75Spek R J Van der 2014 ldquoCyrus the Great Exiles and Foreign Gods A

Comparison of Assyrian and Persian Policies on Subject Nationsrdquo In Extraction amp Control Studies in Honor of Matthew W Stolper ed M Kozuh W F M Henkelman C E Jones e Ch Woods 233-64 Chicago Chicago Oriental Institute

Waerzeggers C 2001 ldquoThe Babylonian Priesthood in the Long Sixth Century BCrdquo Bulletin of the Institute of Classical Studies 54 (2)59-70

221

Carmen Soares

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica1

(Persian Kings in Herodotusrsquo Histories Law and Freedom roots of the monarchic ideology)

Carmen Soares(cilsoaresgmailcom ORCID 0000-0003-3005-4635)

Universidade de Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Resumo - O presente estudo apoiando-se na teorizaccedilatildeo poliacutetica que o proacuteprio au-tor apresenta em 380-82 passa em revista passos fundamentais das Histoacuterias para a caracterizaccedilatildeo dos governos monocraacuteticos dos soberanos persas O que se busca clarificar eacute a forma como a relaccedilatildeo desses governantes com a lei e a liberdadeservidatildeo em que se encontram os que governam nos levam agrave conclusatildeo da inexistecircncia de uma figura modelar do monarca Heroacutedoto oferece sim dos monarcas tanto laquoretratos mistosraquo (daqueles que se governam ora com justiccedila ora de modo despoacutetico como Ciro e Dario e antes deles Deacutejoces da Meacutedia) como um laquoretrato puroraquo (do tirano insolente Cambises)

Palavras-chave teorizaccedilatildeo poliacutetica monarquia tirania lei liberdade

Abstract ndash In this paper after a brief analysis of Histories 380-82 the author addres-ses the issue of the Persian monarchsrsquo autocratic governments What he tries to make clear is the close relationship there is between those sovereigns and the law and also the degree of freedom or slavery experienced by the people under their rule The main conclusions reached are none of Herodotusrsquo Persian kings corresponds to a portrait of the perfect monarch on the contrary we can find what could be called laquomixed portraitsraquo (when a king acts in some cases justly but in others assumes a despotic way of ruling ndash as do Cyrus and Darius as also Dejoces from Media) and a laquopure portraitraquo (of the insolent tyrant Cambyses)

Keywords political theory monarchy tyranny law freedom

Fonte escrita incontornaacutevel para o conhecimento da visatildeo grega do seacutec V a C sobre a ideologia das monarquias orientais as Histoacuterias de Heroacutedoto desde sempre cativaram o leitor graccedilas sobretudo agrave sua forma atraente de apresentar os factos Vestidos com uma roupagem bastante proacutexima das personagens traacutegicas do drama ateniense os protagonistas da histoacuteria persa satildeo natildeo obstante esse laquocolorido dramaacuteticoraquo alvo de um tratamento poliacutetico-filosoacutefico coerente e devidamente fundamentado O retrato dos monarcas persas soacute pode ser bem compreendido se tivermos em conta a articulaccedilatildeo entre dois

1 Trabalho desenvolvido no acircmbito do projeto UIDELT001962013 financiado pela FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_12

222

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

vetores de anaacutelise que emanam da duplicidade geneacutetica do discurso poliacutetico por um lado patenteando uma reflexatildeo teoacuterica sobre o assunto (theoria) pelo outro a sua manifestaccedilatildeo praacutetica (praxis)2 Isto eacute Heroacutedoto tem a preocupaccedilatildeo racional de fornecer uma reflexatildeo epistemoloacutegica sobre o regime monaacuterquico (entendido no sentido neutro e etimoloacutegico de lsquogoverno de um soacutersquo) a qual serve como jaacute tive oportunidade de defender noutro lugar3 de laquoficha de leituraraquo para os perfis concretos que vai apresentando do monarca (termo tambeacutem usado com o seu valor baacutesico de lsquogovernante uacutenicorsquo) Consciente desta dupla perspetivaccedilatildeo do universo poliacutetico do texto herodotiano entendi dividir em duas partes complementares o meu estudo a saber 1 Fundamentaccedilatildeo teoacuterica do regime monaacuterquico 2 Materializaccedilotildees do regime os retratos dos monarcas

1 Fundamentaccedilatildeo teoacuterica do regime monaacuterquico

Eacute no livro III (caps 80-82) que deparamos com a apresentaccedilatildeo de seis for-mas de governaccedilatildeo distintas passiacuteveis de distribuir por dois grupos opostos do ponto de vista moral a que entendo chamar com base na caracterizaccedilatildeo eacutetica de que satildeo alvo de laquoos melhoresraquo e laquoos pioresraquo regimes4 Sem nunca deixar transparecer a sua opiniatildeo sobre a presente mateacuteria Heroacutedoto coloca na boca de trecircs nobres persas a apresentaccedilatildeo dos fatores que contemporaneamente seriam tidos pelo menos entre algumas elites pensantes gregas como laquomarca-dores da identidaderaquo de cada uma das politeiai Se eacute verdade que mesmo sem lhes atribuir nomes diferentes o historiador daacute conta de uma forma laquoperfeitaraquo (ou como se lecirc em grego aristos) e de outra laquodegeneradaraquo (correspondente a kakistos) para a democracia e a oligarquia jaacute quando estaacute em causa o lsquogoverno de um soacutersquo satildeo dois os nomes empregues Mounarchie (correspondente ioacutenico do substantivo aacutetico monarchia que havia de entrar via latim nas liacutenguas modernas) pelo sentido neutro que comporta vem aplicada tanto ao modelo despoacutetico apresentado por Otanes5 como agrave sua forma perfeita defendida por Dario6 O outro dos nomes usado para apelidar a constituiccedilatildeo monocraacutetica eacute tyrannis7 e restringe-se tal como hoje ao perfil opressivo do que continuamos a designar de lsquotiraniarsquo

2 Jaacute procedi anteriormente a uma anaacutelise mais alargada da abordagem theoria e praxis poliacute-tica nas Histoacuterias de Heroacutedoto ndash Soares 2014a ndash bem como agrave comparaccedilatildeo entre os retratos dos regimes tiracircnico e democraacutetico ndash Soares 2014b

3 Cf Soares 20164 Cartledge (2009 21) tambeacutem reconhece neste trecho das Histoacuterias a identificaccedilatildeo de seis

formas de constituiccedilatildeo geacutermen da tipologia platoacutenica constituiacuteda por trecircs forma laquoboasraquo e ou-tras tantas laquodegeneradasraquo de constituiccedilatildeo O paralelismo entre Heroacutedoto e as seis constituiccedilotildees reais caraterizadas no diaacutelogo O Poliacutetico de Platatildeo jaacute foi objeto da minha reflexatildeo (Soares 2014a)

5 38036 382347 3811

223

Carmen Soares

Embora a questatildeo da historicidade do laquoDiaacutelogo dos Persasraquo permaneccedila em aberto e quanto a mim seja marginal relativamente agravequele que me parece o motivo principal para a sua inclusatildeo na obra (a racionalidade do Autor) o facto eacute que Heroacutedoto introduziu o episoacutedio com a afirmaccedilatildeo expressa de que foram proferidos discursos inacreditaacuteveis (na opiniatildeo de alguns Gregos) mas a verdade eacute que foram proferidos8 Esta espeacutecie de juramento de autenticidade natildeo tem para mim que ser entendida como uma prova irrefutaacutevel de que o historiador acreditava que os Persas tivessem mesmo tido semelhante conversa algures entre 52221 a C por ocasiatildeo do golpe que levou agrave deposiccedilatildeo do mago Gaumata O seu desiacutegnio poderia apenas ser dar a entender ao puacuteblico que tal como al-guns Gregos repudiavam a tirania avaliada pelo Coriacutentio Socles como a mais injusta e sanguinaacuteria das realizaccedilotildees humanas9 tambeacutem os Persas (pela boca de Otanes) concebiam o regime com idecircnticas cores negras Em suma Gregos e Persas aparecem irmanados no seu oacutedio agrave tirania perspetiva concordante com a funcionalidade aqui dada pelo historiador ao Baacuterbaro paradigma do Grego

Atentemos agora ainda que sumariamente nos elementos caracterizadores e distintivos das duas formas de governo de um soacute Na base da argumentaccedilatildeo sobre as vaacuterias constituiccedilotildees deparamos com um princiacutepio que haveria de per-manecer como fundamento da filosofia poliacutetica posterior a saber a correlaccedilatildeo entre eacutetica e poliacutetica Este diaacutelogo pode no entanto dar-se em sentidos opostos Esclarecendo melhor ou eacute o exerciacutecio do poder absoluto que influencia o caraacutecter do governante ou ao inveacutes cabe a este aspeto determinar a forma de governaccedilatildeo A conceccedilatildeo de tirania (retratada por Otanes e Megabizo) deriva da primeira leitura donde ressalta a ideia de que mesmo ao indiviacuteduo com uma conduta moral exemplar (a quem os Gregos da eacutepoca atribuiacuteam o tiacutetulo de lsquoo melhor dos homensrsquo10) o poder ilimitado corrompe-o11 Jaacute a monarquia (tal como a apresenta Dario) fica a dever ao ethos do governante o estatuto de regime perfeito (aristos) e regenerador i e o uacutenico que pode restabelecer a ordem social arruinada sob as disputas dos oligarcas pelo protagonismo12 ou sob as cumplicidades danosas dos governantes de origem popular13 Em suma o caraacutecter do governante afigura-se um motivo central da aceccedilatildeo claacutessica grega da ideologia poliacutetica

8 3801 Todas as traduccedilotildees apresentadas satildeo da minha autoria9 592α110 380311 Note-se que como alerta a helenista Emily Baragwanath (2015 21-22) a apreciaccedilatildeo de

Otanes natildeo deve ser entendida como evidecircncia de que Heroacutedoto acreditava na universalida-de de comportamentos humanos o que implicaria que nas Histoacuterias todos os governantes autocraacuteticos teriam percursos absolutamente idecircnticos Segundo propotildee a autora a presente observaccedilatildeo do aristocrata persa natildeo deve pois ser lida como uma verdade absoluta aplicando--se concretamente ao comportamento de Cambises

12 382313 3824

224

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

Das consideraccedilotildees acabadas de fazer retiramos tambeacutem a conclusatildeo de que a tirania corresponde agrave versatildeo defeituosa do governo de um soacute como bem con-firma o facto de nas Histoacuterias vir sempre associada a conotaccedilotildees pejorativas14 Na verdade o regime colhe apenas criacuteticas todas elas verdadeiros atentados contra os principais fundamentos da vida em sociedade tal como os Gregos a concebiam as normas (sejam elas sociais ou juriacutedicas noccedilotildees ambas contidas no termo nomos) a moderaccedilatildeo (reverso da condenada hybris) e a justiccedila (ou cumprimento das leis) Em concreto esses viacutecios do poder tiracircnico deduzimo-los respetivamente das seguintes praacuteticas denunciadas por Otanes alterar os costumes paacutetrios exercer violecircncia sobre as mulheres e condenar agrave morte sem julgamento15

Para que fique completo o retrato da tirania falta ainda lembrar dois traccedilos de caraacutecter do tirano a inveja (incompreensiacutevel numa pessoa que vive na pros-peridade) e a inseguranccedila (que se traduz na desconfianccedila que domina as relaccedilotildees do governante com os suacutebditos e na sua recetividade face agraves caluacutenias) Porque a personagem que procede a esta caracterizaccedilatildeo do regime eacute o defensor da de-mocracia faz sentido que tendo em mente dois mecanismos identitaacuterios da sua constituiccedilatildeo preferida aponte agrave tirania a seguinte falha a ausecircncia de controlo das financcedilas puacuteblicas e da atuaccedilatildeo do governante Ou seja como diz Otanes o tirano natildeo tem que prestar contas e faz o que lhe apetece16

Por contraste com esta caracterizaccedilatildeo detalhada da ideologia tiracircnica o perfil da monarquia assenta apenas na jaacute referida eacutetica do governante e num valor que modernamente associamos mais agrave democracia a liberdade No termo da fala de Dario deparamos com as seguintes declaraccedilotildees

Para resumir tudo o que foi aduzido num uacutenico termo a liberdade donde nos veio e quem nos a deu Do povo da oligarquia ou de um monarca Sou por conseguinte da opiniatildeo de que visto noacutes termos sido libertados por um uacutenico homem defendamos esse tipo de regime e aleacutem disso porque temos por bem natildeo dissolver os costumes paacutetrios Realmente esta natildeo eacute a melhor atitude17

Duas ideias sobressaem da argumentaccedilatildeo final do nobre persa para eleger a monarquia como o melhor regime a liberdade natildeo eacute prerrogativa exclusiva de um determinado modelo de constituiccedilatildeo (visto que se aventa a hipoacutetese de vigorar tanto num governo de soberania popular numa oligarquia como numa monarquia) mas eacute criteacuterio decisivo na afericcedilatildeo da qualidade do mesmo o res-peito pelos nomoi paacutetrios traduz o que numa linguagem moderna poderiacuteamos

14 Veja-se o recurso abundante a vocabulaacuterio da raiz kak- No seu estudo Ferrill (1978 391-97) documenta com exemplos vaacuterios o uso herodotiano do termo tyrannos aplicado aos reis orientais com esse sentido negativo

15 380516 380317 3825

225

Carmen Soares

designar de lsquoconservadorismorsquo ideoloacutegico Ou seja Dario em uacuteltima instacircncia confessa preferir a monarquia a qualquer outro sistema governativo (mesmo que esse se paute pela excelecircncia18) por razotildees de conformidade agrave tradiccedilatildeo persa E esta em termos poliacuteticos era monaacuterquica A figura do governante uacutenico evocada como abonaccedilatildeo da escolha de Dario natildeo o esqueccedilamos eacute precisamente Ciro rei fundador do Impeacuterio Persa nascido da libertaccedilatildeo do jugo da Meacutedia Lendo nas entrelinhas do discurso do futuro rei persa eacute pois a seguinte a loacutegica da sua argumentaccedilatildeo se os Persas tecircm vivido sob a intendecircncia de um monarca desde que se libertaram da sujeiccedilatildeo opressiva dos Medos natildeo haacute qualquer argumento vaacutelido para contestar a sapiecircncia de um lsquocostumersquo (nomos) paacutetrio e incorrer na sua perniciosa lsquotransgressatildeorsquo (anomia)

As transgressotildees ao nomos natildeo restringidas como aqui ao plano mera-mente institucional constituem em grau diverso um dos traccedilos mais marcantes dos perfis dos monarcas persas governantes insolentes que agrave luz da visatildeo grega da condiccedilatildeo humana se encontram fatalmente condenados agrave ruiacutena No fim desventurado desses liacutederes de homens estaacute simbolicamente contido o anuacutencio inevitaacutevel da queda do regime a que datildeo corpo o impeacuterio

Quanto agrave virtude libertadora da monarquia nos termos em que eacute evocada soacute faz sentido para quem passa de um estado de submissatildeo ao de domiacutenio Eacute o que sucede precisamente no contexto histoacuterico em que Heroacutedoto situa o laquoDiaacutelo-go dos Persasraquo apoacutes a deposiccedilatildeo do governo do Mago usurpador Gaumata Mas se tivermos em conta a perspetiva dos Gregos por ocasiatildeo das invasotildees dos reis persas percebemos que eacute por idecircntica razatildeo que o historiador lhes coloca na boca queixas acesas contra a escravidatildeo que para eles acarreta o governo (tiracircnico) de um soacute senhor o monarca oriental pois priva-os da liberdade Em suma monarquia tanto significa liberdade como escravidatildeo depende da pers-petiva

3 Materializaccedilotildees do regime os retratos dos monarcas

Desde a publicaccedilatildeo em 1966 da obra de referecircncia Form and Thought in Herodotus de H R Immerwahr que se identificou um padratildeo narrativo comum ao retrato dos chefes dos povos baacuterbaros contemplados nas Histoacuterias Condicio-nados pelos princiacutepios universais da instabilidade da fortuna e da fragilidade da condiccedilatildeo humana todos os liacutederes vivem um percurso de ascensatildeo e queda (que pode ser apenas de decliacutenio ou de total destruiccedilatildeo) O que me proponho fazer natildeo eacute acompanhar pari passu essa biografia dramatizada dos reis persas (anaacutelise que vaacuterios estudiosos consagrados jaacute levaram a cabo19) Natildeo eacute minha intenccedilatildeo igual-mente dar conta da presenccedila nos retratos dos governantes uacutenicos (mounarchoi)

18 Cf 382219 Veja-se Waters 1971 Gammie 1986 Silva 1995 1997 e 2000

226

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

de todos os marcadores das identidades tiracircnica e monaacuterquica apresentados no ceacutelebre passo de teorizaccedilatildeo poliacutetica por mim brevemente analisado na primeira parte desta intervenccedilatildeo20 Pretendo sim demonstrar em que medida o historiador exemplifica na caracterizaccedilatildeo e atuaccedilatildeo das suas personagens sobretudo aqueles fundamentos poliacuteticos que agrave luz da mentalidade do autor e dos seus mais diretos destinataacuterios os Gregos satildeo fundamentais ao exerciacutecio do poder a lei e a liberdade

No que concerne a importacircncia conferida ao nomos eacute por demais conhecido o primado que Heroacutedoto lhe reconhece em todas as culturas21 Como o que nos interessa agora considerar eacute a relaccedilatildeo do governante com a lei eacute sobre a imagem do rei-juiz que me irei debruccedilar Se como vimos no laquoDiaacutelogo dos Persasraquo o monarca elogiado por Dario eacute um indiviacuteduo da melhor iacutendole (aristos) e obser-var os costumes paacutetrios uma evidecircncia de tal distinccedilatildeo eacute natural que quando os Medos escolheram o seu primeiro rei tenham tido por criteacuterio de meacuterito ser ele o uacutenico homem a aplicar a justiccedila com retidatildeo22 Embora os caps 96-101 do livro I se reportem a um monarca medo (e natildeo a um persa) Deacutejoces o primeiro rei dos Medos natildeo podemos esquecer que os dois povos (e respetivas ideologias reacutegias) se fundem graccedilas aos laccedilos de sangue que ligam Ciro tambeacutem ele o primeiro rei (agora) dos medo-persas ao avocirc o uacuteltimo soberano da Meacutedia independente e dominadora Astiacuteages Ou seja conhecer a imagem que Heroacutedoto desenha do nascimento da monarquia meda eacute necessariamente aceder aos fundamentos da monarquia persa (ou talvez fosse melhor chamar-lhe monarquia medo-persa)23

No episoacutedio em apreccedilo dois termos satildeo usados para designar o exerciacutecio do governo de um soacute tirania (τυραννίς) e realeza (βασιληίη) O primeiro continua a ter uma conotaccedilatildeo negativa designando um poder despoacutetico ao passo que o segundo eacute sinoacutenimo de soberania legiacutetima24 Esta diferenccedila semacircntica decorre dos contextos em que satildeo empregues A palavra laquotiraniaraquo aparece duas vezes Embora a primeira ocorrecircncia se tomada isoladamente possa corresponder ao valor neutro de lsquosoberaniarsquo o facto de ser esse o termo usado para designar o verdadeiro mas inconfesso moacutebil da atuaccedilatildeo juriacutedica exemplar de Deacutejoces consiste num aviso ao leitor da natureza despoacutetica das suas intenccedilotildees Estas seratildeo desveladas por completo assim que lhe for confiada a lsquorealezarsquo Note-se ainda

20 Sobre este assunto veja-se Romilly 1959 Evans 1981 Rocha Pereira 1981 e 1990 Lateiner 1984 Pelling 2002

21 Ideia sintetizada de forma magistral na maacutexima atribuiacuteda por Heroacutedoto (3384) a Piacuten-daro segundo a qual a lei eacute rainha de todas as coisas (fr 169 a Snell-Maehler) Sobre os valores de nomos e sua importacircncia na obra herodotiana leia-se Evans 1965 Humphreys 1987 Quanto aos significados do termo e evoluccedilatildeo do conceito na Greacutecia antiga veja-se Ostwald (1969 1-54) e Romilly (1971 51-71)

22 196323 Dewald (2002 27) reconhece que este episoacutedio permite implicitamente uma criacutetica e

anaacutelise do desenvolvimento do poder monaacuterquico24 Concordo pois com posiccedilatildeo idecircntica defendida por Ferrill (1978 388-91)

227

Carmen Soares

que eacute a palavra basileus25 aquela que o historiador usa para designar o tipo de governante que os Medos pretendiam e que quando surge pela segunda vez o termo τυραννίς este vem associado a um adjetivo com sentido pejorativo χαλεπός (lsquoimplacaacutevel intransigentersquo) A inflexibilidade mesmo aplicada ao exerciacutecio da justiccedila como eacute o caso presente26 eacute reveladora quanto a mim de falta de moderaccedilatildeo virtude tatildeo apregoada pelos Gregos e reverso do defeito mais censurado aos homens em geral e ao tirano em particular a hybris27 Atentemos na sequecircncia segundo a qual no texto se alude aos dois regimes poliacuteticos

Heroacutedoto conta que a motivaccedilatildeo para Deacutejoces se ter empenhado mais na aplicaccedilatildeo da justiccedila no seio da sua aldeia foi por desejar ardentemente a tirania (ἐρασθεὶς τυραννίδος28) O mesmo eacute dizer que as funccedilotildees de juiz servem de cata-pulta para as funccedilotildees poliacuteticas29 Aleacutem desta relaccedilatildeo umbilical entre os poderes juriacutedico e poliacutetico30 haacute que considerar tal como vimos a propoacutesito da fala de Dario no laquoDiaacutelogo dos Persasraquo a faceta regeneradora da monarquiarealeza Na verdade eacute o clima de desordem generalizada (ἐούσης ἀνομίης πολλῆς ibidem ἐούσης ὦν ἁρπαγῆς καὶ ἀνομίης31) que leva os Medos a tomarem a decisatildeo de nomear um rei (βασιλέα) cuja missatildeo seraacute precisamente estabelecer a boa ordem (veja-se o uso do verbo εὐνομέομαι οὕτω ἥ τε χώρη εὐνομήσεται32) Diante do curriculum exemplar de Deacutejoces enquanto juiz os Medos foram unacircnimes em elegecirc-lo rei33 Na mente dos Medos estaacute sem margem para duacutevidas o desiacutegnio de serem governados por um basileus e natildeo um tyrannos34 Mas seraacute precisamente

25 198126 1100127 Num estudo sobre a caracterizaccedilatildeo dos reis Katherine Clarke (2015) explora ateacute que ponto

a manipulaccedilatildeo do mundo natural pelos reis pode ou natildeo ser lida como sinal do despotismo dos governantes O seu estudo eacute particularmente interessante por chamar a atenccedilatildeo para a necessidade de considerarmos a origem do foco de censura o que leva agrave conclusatildeo de que muitas das vezes natildeo se pode conceber essa visatildeo negativa como sendo a posiccedilatildeo do historiador mas de terceiros

28 196229 Ou como propotildee Baragwanath (2015 30) a atuaccedilatildeo de Deacutejoces como juiz natildeo reflete o

seu caraacuteter justo mas sim o desejo de ser tirano da Meacutedia30 Esta constitui aliaacutes uma ideia comum agrave ideologia monaacuterquica grega da eacutepoca Veja-se a

tiacutetulo ilustrativo alguns exemplos relativos agrave Eacutepoca Arcaica (Odisseia 199-11 em que se afir-ma que o rei irrepreensiacutevel decide de forma justa ou seja cabe-lhe exercer a justiccedila Hesiacuteodo Trabalhos e Dias 35-39 passo em que se atribui aos basileis essa mesma funccedilatildeo que no caso vertente aplicam injustamente por se deixarem corromper) e na Eacutepoca Claacutessica (com destaque para a ecircnfase que Platatildeo atribui ao laquoJustoraquo ndash to dikaion ndash como predicado distintivo da iacutendole do laquopoliacutetico verdadeiroraquo cf eg O Poliacutetico 293d8)

31 197232 197333 198134 No seu estudo sobre o uso do termo tyrannos (em vez de basileus) para Eacutedipo em alguns

passos na peccedila homoacutenima de Soacutefocles Knox (1954 97-98) sublinha tal como aqui a ideia de que aquele designa o governante nomeado mas natildeo o descendente de uma linha hereditaacuteria monaacuterquica

228

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

com a mudanccedila de estatuto de homem privado para homem puacuteblico que se tor-nam claros os marcadores da identidade poliacutetica tiracircnica de Deacutejoces

Se o palaacutecio (βασιλήια35) uma exigecircncia do novo senhor pode ser entendido como um atributo material natural do poder reacutegio (um verda-deiro signum imperii36) jaacute a extrema fortificaccedilatildeo de que eacute alvo o edifiacutecio e os procedimentos protocolares para o acesso dos suacutebditos ao rei parecem-me marcas camufladas de uma conceccedilatildeo tiracircnica do poder Embora a inacessibi-lidade do rei possa ser vista sob o prisma favoraacutevel do reconhecimento que lhe eacute feito lsquode ser distintorsquo (ἑτεροῖος37) natildeo julgo ser essa a uacutenica explicaccedilatildeo a ter em conta Aliaacutes Heroacutedoto apresenta razotildees humanas bem diversas dessa para as seguintes medidas a formaccedilatildeo de uma guarda pessoal do rei a in-clusatildeo da sua residecircncia e tesouros no meio de uma cintura de sete muralhas a obrigatoriedade de contacto indireto entre monarca e suacutebditos (atraveacutes de mensageiros) e a criaccedilatildeo de um corpo de espiotildees pessoais (os chamados laquoolhos e ouvidos do reiraquo)38

Foi para se proteger a si e aos seus tesouros que Deacutejoces mandou construir essa Ecbaacutetana inexpugnaacutevel39 A desconfianccedila tiacutepica da alma tiracircnica insegura dos seus meacuteritos revela-se na forma como afasta de si os seus pares aqueles que como se lecirc no texto natildeo satildeo menos do que ele em qualidades (οὐδὲ ἐς ἀνδραγαθίη λειπόμενοι40) Eacute destes em particular que se quer resguardar pois neles lsquoima-ginarsquo (ἐσέμνυνε ibidem) potenciais rivais ao trono A inveja que implicitamente atribui aos outros mais natildeo eacute do que o reflexo de um viacutecio pessoal tiacutepico do tirano Tambeacutem a rede de espiotildees encobre e legitima defeitos proacuteprios de uma governaccedilatildeo opressora a denuacutencia e a caluacutenia Ateacute a faceta de juiz determinante como vimos para a nomeaccedilatildeo de Deacutejoces como rei da Meacutedia se mostra alterada pelo exerciacutecio despoacutetico do poder Os termos distintos em que o historiador apresenta Deacutejoces-juiz antes e depois de ser investido das funccedilotildees de chefe do povo satildeo suficientemente expliacutecitos pelo que passo a confrontar em citaccedilatildeo os dois passos do texto

Pela sua forma de atuar recebia dos concidadatildeos elogios de natildeo pouca mon-ta de modo que as gentes das outras aldeias tomaram conhecimento de que Deacutejoces era o uacutenico indiviacuteduo a aplicar a justiccedila com retidatildeo (κατὰ τὸ ὀρθὸν

35 198436 Outros satildeo trono carro real cavalos Sobre as representaccedilotildees e as ideologias monaacuterquicas

dos Aquemeacutenidas veja-se Briant (1996 217-65)37 199238 Dewald (2002 28) qualifica este exerciacutecio da tirania de laquoautocracia burocraacuteticaraquo uma

vez que complexifica o protocolo institucional e distancia em muito o governante dos go-vernados

39 199140 1992

229

Carmen Soares

δικάζων)41Depois de tomadas estas medidas protocolares e de ter fortalecido o seu poder com a tirania tornou-se um guardiatildeo implacaacutevel da justiccedila (ἦν τὸ δίκαιον φυλάσσων χαλεπός)42

A toacutenica deixa de assentar numa ideia positiva de exerciacutecio imparcial da justiccedila para passar a distinguir-se pela intransigecircncia A situaccedilatildeo eacute tanto mais grave para as partes do processo quando ao contraacuterio do que sucedia quando Deacutejoces natildeo governava deixou de haver um contacto direto entre juiz e julgado(s) Ou seja o exerciacutecio da lei faz-se em diferido o que poderia com-prometer a desejaacutevel retidatildeo dos julgamentos Natildeo obstante esse distanciamento entre justiccedila e indiviacuteduos forccedilado pela ideologia poliacutetica monaacuterquica a missatildeo do juiz eacute resumida nestes termos julgar cada crime de acordo com o meacuterito43 Para entendermos cabalmente o sentido da expressatildeo grega κατrsquo ἀξίην temos de trazer agrave colaccedilatildeo deste passo o cap 137 (sect 1)

Aiacute Heroacutedoto elogia o costume persa de fazer depender a aplicaccedilatildeo de penas extremas de uma avaliaccedilatildeo da conduta do reacuteu na sua globalidade Em causa estaacute a interdiccedilatildeo de por causa de uma uacutenica falta o rei-juiz condenar agrave morte e de os Persas aplicarem aos servos da sua casa um sofrimento irremediaacutevel Tais castigos soacute podem ser aplicados se da ponderaccedilatildeo entre crimes (ἀδικήματα) e serviccedilos prestados (ὑπουργήματα) resultar uma proporccedilatildeo maior dos primei-ros Respeitam os monarcas persas este nomos dando assim mostras de possuir a idoneidade que os torna merecedores do tiacutetulo de rei Ou pelo contraacuterio desrespeitam-no incorrendo na transgressatildeo (anomia) proacutepria do soberano insolente (hybristes) o tyrannos A resposta a estas interrogaccedilotildees encontramo-la nos retratos de Cambises e Dario Se quanto ao primeiro natildeo temos a miacutenima duacutevida em identificaacute-lo com o exemplo mais bem acabado da galeria herodoti-ana de monarcas anomoi o rei regenerador da monarquia persa eacute alvo de um tratamento mais complexo no que se refere agrave sua faceta de juiz Eacute por essa razatildeo que dedicarei mais atenccedilatildeo ao perfil de Dario

Padecendo de um estado de demecircncia que lhe inspira uma espeacutecie de laquoesquizofreacutenicaraquo mania da perseguiccedilatildeo Cambises enceta uma seacuterie de execuccedilotildees sumaacuterias44 Por baixo da capa da inveja e da necessidade de desagravar pretensas injuacuterias agrave sua autoridade o soberano esconde um caraacutecter inseguro Eacute por conseguinte um indiviacuteduo intolerante face a qualquer tipo de concorrecircncia ao seu poder A imaginaacuteria pretensatildeo do irmatildeo Esmeacuterdis ao

41 196342 1100143 1100244 Sobre o assunto veja-se Silva 1997 Soares (2003 418-42)

230

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

trono leva-o a cometer o primeiro fratriciacutedio45 Segue-se-lhe a morte da irmatilde-esposa voz que decide silenciar por intoleracircncia absoluta face a manifestaccedilotildees de bom senso46 O lastro homicida estende-se ainda a indiviacuteduos fora do ciacuterculo familiar mais proacuteximo agravequeles que por serem seus pares (ὁμοίους47) facilmente rotularia de usurpadores As censuras que estas e outras condenaccedilotildees agrave morte de concidadatildeos suscitam tanto na boca do historiador48 como na do conselheiro real Creso49 ganham maior verosimilhanccedila narrativa se as entendermos precisamente como materializaccedilotildees do desrespeito (anomia) de Cambises pelo atraacutes elogiado costume paacutetrio da pena capital Ao mandar matar pessoas sem uma uacutenica razatildeo que o fundamente (ἐπrsquo οὐδεμιῇ αἰτίῃ ἀξιοχρέῳ) o soberano contradiz o coacutedigo eacutetico-juriacutedico persa ou seja natildeo corresponde ao perfil do mounarchos ou basileus dikaios mas ao do tyrannos hybristes o mesmo eacute dizer adikos Em resumo insolente injusto e transgressor satildeo os qualificativos que ressaltam do retrato de Cambises e que legitimam a sua inclusatildeo entre a galeria dos governantes tiranos50

Passemos agora a considerar a imagem de Dario agrave luz do desempenho das competecircncias de rei-juiz Logo no iniacutecio do seu reinado o novo senhor do impeacuterio persa delibera a condenaccedilatildeo agrave morte de compatriotas do mais alto estatuto social Intafernes um seu par (pois fazia parte como ele do grupo dos sete conjurados responsaacuteveis pela deposiccedilatildeo do Mago usurpador 3118-119) Oretes governador de Sardes51 Embora sequenciais no contexto da narraccedilatildeo os dois episoacutedios revelam formas distintas de o rei aplicar a justiccedila No caso de Intafernes eacute dupla a insolecircncia (Ἰνταφέρνεαhellip ὑβρίσαντα52) cometida Natildeo soacute desrespeitou o nomos receacutem-criado da prerrogativa conce-dida aos seis conjurados de poderem falar diretamente com o rei (exceto se ele estivesse deitado com uma mulher) como infligiu danos fiacutesicos irreparaacuteveis (correspondentes ao supra referido ἀνήκεστον πάθος53) em servos que natildeo eram seus A mutilaccedilatildeo do nariz e das orelhas dos mensageiros figuras indis-pensaacuteveis desde os tempos do medo Deacutejoces ao protocolo reacutegio revela tanto a prepotecircncia do nobre persa como o seu temor de um potencial rival ao trono A soluccedilatildeo que Dario toma para erradicar semelhante ameaccedila eacute se quisermos usar o vocabulaacuterio juriacutedico que jaacute nos surgiu anteriormente lsquoimplacaacutevelrsquo De

45 33046 331-3247 335548 Ibidem49 336150 O seu soacutesia grego eacute Periandro de Corinto figura que jaacute tive ocasiatildeo de tratar noutra oca-

siatildeo (Soares 2003 442-48)51 3127-12852 3118153 11371

231

Carmen Soares

facto a sentenccedila de morte recai natildeo soacute sobre o infrator mas atinge tambeacutem todos os varotildees da famiacutelia (medida que visava eliminar potenciais vingadores da morte do chefe do clatilde)

No entanto ao inveacutes do seu antecessor Dario natildeo vem desenhado com as tintas carregadas da obstinaccedilatildeo doentia O restaurador da boa ordem na Peacutersia goza de um caraacutecter suficientemente ponderado para sem comprometer a afir-maccedilatildeo inequiacutevoca da sua autoridade reduzir uma pena que pela sua radicali-dade poderia contribuir para criar dele a imagem do tirano e natildeo a do monarca De facto aquele a quem Heroacutedoto atribui o papel de defensor da monarquia como o melhor regime sabe fazer a leitura poliacutetica correta do desgosto que tatildeo implacaacutevel pena causaria na esposa de Intafernes Concede-lhe pois a graccedila de poupar a vida do seu irmatildeo e do filho primogeacutenito A misericoacuterdia do monarca constitui quanto a mim uma estrateacutegia narrativa para revelar como no retrato do bom monarca-juiz se fundem rigor e toleracircncia

No episoacutedio seguinte a histoacuteria da morte de Oretes o leitor das Histoacuterias depara com a exemplificaccedilatildeo do nomos juriacutedico persa da condenaccedilatildeo agrave morte mediante a avaliaccedilatildeo ponderada da conduta do julgado O poderoso governador da Liacutedia Friacutegia e Ioacutenia vem apresentado como autor de um vasto conjunto de crimes (ἐξύβρισε παντοῖα54 πάντων τῶν ἀδικημάτων εἵνεκεν55) Uma ambiccedilatildeo crescente de poder levou-o a liquidar dois ilustres aristocratas persas Mitrobates e o filho Cranaspes mortes que lhe valeram a passagem da proviacutencia da Friacutegia para o seu controle No entanto como seria de prever esse reforccedilo de influecircncia pessoal de um saacutetrapa natildeo eacute visto com bons olhos pelo monarca receacutem-chegado ao poder Dario a braccedilos numa fase de afirmaccedilatildeo de autoridade com uma seacuterie de sublevaccedilotildees um pouco por todo o impeacuterio56 Ou seja a atuaccedilatildeo de Oretes soacute pode ser vista pelo rei como um prejuiacutezo (κακὰ δὲ μεγάλα57) e natildeo um serviccedilo (veja-se o uso do verbo lsquoajudarrsquo ὠφέλησε ibidem) prestado aos Persas Digo laquoaos Persasraquo (Πέρσας58) e natildeo laquoao rei dos Persasraquo pois satildeo esses os termos em que Dario expotildee a culpa de Oretes perante uma assembleia dos mais notaacuteveis Persas (Περσέων τοὺς λογιμωτάτους59) Oretes corresponde por conseguinte agrave figura do inimigo puacuteblico a abater Reproduzo de seguida a argumentaccedilatildeo empregue para encontrar um carrasco voluntaacuterio para a insolecircncia intoleraacutevel (ὕβριν οὐκ

54 1126255 3127156 Essas revoltas vecircm atestadas na inscriccedilatildeo de Behistun para as regiotildees de Elam Babiloacutenia

Assiacuteria Egito e Paacutertia entre outras Como refere Briant (1996 127-28) natildeo se pode falar com base no testemunho de Heroacutedoto de uma verdadeira revolta da Liacutedia mas apenas de insubor-dinaccedilatildeo do seu saacutetrapa

57 3127358 3127359 31272

232

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

ἀνασχετόν60) do saacutetrapa pois nela se evoca o nomos persa que autoriza o rei-juiz a condenar um suacutebdito agrave morte

Entre voacutes haacute algueacutem que seja capaz de me trazer Oretes vivo ou de mataacute-lo A esse homem que natildeo prestou nenhum auxiacutelio aos Persas mas que pelo con-traacuterio lhes causou grandes males61

Se como tentaacutemos demonstrar Dario encarna as qualidades do rei-juiz e Cambises representa o seu reverso no que se refere agrave faceta de rei libertador ela continua a estar retratada no primeiro graccedilas agrave sua condiccedilatildeo de monarca regenerador do impeacuterio mas jaacute surgira antes nas Histoacuterias ligada agrave caracterizaccedilatildeo de Ciro o Grande Rei62

De Dario jaacute consideraacutemos esta imagem de paladino da liberdade a propoacutesi-to do seu papel na recuperaccedilatildeo do poder dos Persas face aos Medos Nesse sen-tido podemos designaacute-lo de segundo unificador do impeacuterio medo-persa sob comando persa O primeiro o fundador do impeacuterio e como tal justo merecedor do tiacutetulo de lsquopairsquo (πατήρ63) Ciro conquistou o apoio dos seus compatriotas na rebeliatildeo contra o jugo de Astiacuteages com a promessa de os tornar livres (γίνεσθε ἐλεύθεροι64) Importa todavia natildeo esquecer o real sentido que no contexto da poliacutetica expansionista intriacutenseca agrave ideologia monaacuterquica oriental assume a noccedilatildeo de liberdade lsquoSer livrersquo significa lsquoser senhor de escravosrsquo Dos numerosos exemplos que ao longo da obra datildeo conta desse entendimento lembro apenas um outro envolvendo tambeacutem os Medos aiacute apresentados na perspetiva oposta agraves que evoquei Sobre eles conta Heroacutedoto que combatendo contra os Assiacuterios em prol da liberdade revelaram-se valerosos guerreiros e ao repelirem a escravidatildeo tornaram-se livres65

Mas seraacute essa liberdade agrave luz do pensamento grego a verdadeira liberdade A resposta a esta questatildeo levar-nos-ia pelo caminho fascinante mas longo e por essa razatildeo de momento inviaacutevel da visatildeo herodotiana sobre a eleutheria grega Lembro apenas que a sobejamente conhecida aversatildeo dos Gregos (Atenienses e Espartanos em especial) agrave soberania persa passa por uma mundividecircncia diferente de soberania de um soacute e sua relaccedilatildeo com a liberdade A conhecida conversa entre Xerxes e Demarato rei espartano exilado na sua corte travada na sequecircncia da inspeccedilatildeo das forccedilas navais pelo monarca persa encerra as id-eias principais do pensamento grego nessa mateacuteria Na boca do Persa coloca

60 3127361 3127362 A primeira vez que lhe vem atribuiacutedo esse tiacutetulo (βασιλεὺς ὁ μέγας) eacute em 1188163 389364 1126665 1952

233

Carmen Soares

Heroacutedoto um novo sentido de liberdade natildeo ser governado por um soacute homem Eis os termos em que se exprime

Se [os Lacedemoacutenios] fossem governados agrave nossa maneira por uma soacute pessoa com receio dela natildeo soacute se tornariam melhores do que satildeo por natureza como poderiam estando em desvantagem fustigados pelo chicote avanccedilar contra um maior nuacutemero [de adversaacuterios] Todavia entregues agrave liberdade nenhuma dessas coisas seratildeo capazes de realizar66

A imagem opressiva que transparece deste retrato do soberano uacutenico faacute-la o historiador ser verbalizada primeiro por um monarca persa depois por um ex-diarca grego Quanto a mim estamos uma vez mais perante a conhecida universalidade de valores tiacutepica do texto herodotiano Haacute no entanto diferenccedilas de perspetiva denunciadoras de identidades distintas De facto nas palavras pronunciadas por Demarato fica tambeacutem impliacutecita a ideia de que a liberdade dos Gregos decorre de natildeo serem governados por um monarca O estatuto de soberania natildeo o reconhecem a um homem mas sim a princiacutepios normativos rigorosos (νόμος ἰσχυρός e δεσπότης νόμος67) Daiacute que o Lacedemoacutenio tenha dito dos seus compatriotas que embora sejam livres natildeo o satildeo em absoluto (ἐλεύθεροι γὰρ ἐόντες οὐ πάντα ἐλεύθεροί εἰσι68)

Em conclusatildeo a imagem herodotiana do papel da liberdade e da lei na construccedilatildeo da ideologia do governo de um soacute e respetivo governante assenta em princiacutepios filosoacutefico-poliacuteticos proacuteprios da mundividecircncia heleacutenica do seu autor Assim a monarquia (ou realeza) corresponde agrave versatildeo perfeita do regime a tirania agrave forma degenerada o monarca (ou rei) encarna virtudes o tirano viacutecios

Da conjugaccedilatildeo entre esta bipolaridade poliacutetica e a crenccedila profundamente grega na fragilidade de todos os mortais sem exceccedilatildeo (onde se inclui por conseguinte o rei) resulta que nenhum dos retratos considerados corresponde ao modelo do governante de excelecircncia Se nos casos de Ciro e Dario ainda somos confrontados com o que proponho designar de laquoretratos mistosraquo (de monarca e tirano) ndash pois os comportamentos louvaacuteveis permitem compensar outros indignos ndash no de Cambises deparamos com um laquoretrato puroraquo (de tirano)

66 7103467 Cf respetivamente 71021 e 7704468 71044

234

Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica

Bibliografia

Baragwanath E 2015 ldquoCharacterization in Herodotusrdquo In Fame and Infamy Essays for Christopher Pelling on Characterization in Greek and Roman Biography and Historiography eds R Ash J Mossman and F B Titchener 15-35 Oxford Oxford University Press

Briant P 1996 Histoire de lrsquoempire perse De Cyrus agrave Alexandre Paris FayardCartledge P 2009 Ancient Greek Political Thought in Practice Cambridge

University PressClarke K 2015 ldquoPutting up Pyramids Characterizing Kingsrdquo In Fame and

Infamy Essays for Christopher Pelling on Characterization in Greek and Roman Biography and Historiography eds R Ash J Mossman and F B Titchener 37-51 Oxford Oxford University Press

Dewald C 2003 ldquoForm and Content the Question of Tyranny in Herodotusrdquo In Popular Tyranny Sovereignty and Discontents in Classical Athens ed K Morgan 25-38 Austin University of Texas Press

Evans J A S 1965 ldquoDespotes nomosrdquo Athenaeum 43142-53Ferrill A 1978 ldquoHerodotus on tyrannyrdquo Historia 27 (3)385-98Gammie J G 1986 ldquoHerodotus on kings and tyrants objective historiography

or conventional portraiturerdquo Journal of Near Eastern Studies 45 (3)171-195

Humphreys S C 1987 ldquoLaw Custom and Culture in Herodotusrdquo Arethusa 20211-20

Immerwahr H R 1966 Form and Thought in Herodotus Cleveland Scholars PR

Knox B 1954 ldquoWhy is Oedipus Called Tyrannosrdquo CJ 50 (3)97-102 130 = 1979 ldquoWhy is Oedipus Called Tyrannosrdquo In Word and Action Essays on the Ancient Theater 87-95 Baltimore London The John Hopkins University Press

Lasserre F 1976 ldquoHeacuterodote et Protagoras le deacutebat sur les constitutionsrdquo MH 33 (2)65-84

Lateiner D 1984 ldquoHerodotean historiographical patterning the constitutional debaterdquo Quaderni di Storia 20257-84

Evans J A S 1981 ldquoNotes on the debate of the Persian Grandees in Herodotus 3 80-82rdquo Quaderni Urbinati di Cultura Classica 3679-84

Ostwald M 1969 Nomos and the Beginnings of the Athenian Democracy Oxford Oxford University Press

Parker V 1988 ldquoΤύραννοςThe semantics of a political concept from Archilochus to Aristotlerdquo Hermes 126 (2)145-72

235

Carmen Soares

Pelling C 2002 ldquoSpeech and action Herodotusrsquo Debate on the Constitutionsrdquo Proceedings of the Cambridge Philosophical Society Vol 48 123-58 Cambridge Cambridge University Press

Rocha Pereira M H 1990 ldquoO lsquoDiaacutelogo dos Persasrsquo em Heroacutedotordquo In Estudos Portugueses Homenagem a Antoacutenio Joseacute Saraiva 351-62 Lisboa Ministeacuterio da Educaccedilatildeo Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

mdashmdashmdash 1981 ldquoO mais antigo texto europeu de teoria poliacuteticardquo Nova Renascenccedila 1364-70

Romilly J 1971 La loi dans la penseacutee greque des origines agrave Aristote Paris Socieacuteteacute drsquoEacutedition ldquoLes Belles Lettresrdquo

mdashmdashmdash 1959 ldquoLe classement des constitutions drsquoHeacuterodote agrave Aristoterdquo Revue des Eacutetudes Greques 7281-99

Rosivach V J 1988 ldquoThe Tyrant in Athenian Democracyrdquo QUCC 5943-57Silva M F 2000 ldquoO desafio das diferenccedilas eacutetnicas em Heroacutedoto Uma questatildeo

de inteligecircncia e saberrdquo Humanitas 523-26mdashmdashmdash 1997 ldquoCambises no Egipto Croacutenica de um rei loucordquo In Historiografiacutea

y bibliografia Actas del coloquio internacional sobre historiografia y biografia (de la antiguedad al renac) eds J A Sanchez Mariacuten J Lens Tuero e C L Rodriacuteguez 1-14 Madrid Ediciones Clasicas

mdashmdashmdash 1995 ldquoDario o Grande Rei personagem em Histoacuterias de Heroacutedotordquo Maacutethesis 463-88

Soares C 2016 ldquoRegimes poliacuteticos nas Histoacuterias de Heroacutedoto O ldquoDiaacutelogo dos Persasrdquo (3 80-82)rdquo In PoacutelisCosmoacutepolis Identidades Globais amp Locais coords Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho e Thomas Figueira 43-52 Coimbra Satildeo Paulo Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

mdashmdashmdash 2014a ldquoTheoria e praacutexis poliacutetica em Heroacutedotordquo Cuadernos de Filologiacutea Claacutessica Estudios griegos e indoeuropeus 2457-79

mdashmdashmdash 2014b ldquoDiaacutelogos nas Histoacuterias de Heroacutedoto entre teoria e praxis poliacutetica Tirania e democracia contrastes e semelhanccedilasrdquo Phoicircnix 20 (1)25-39

mdashmdashmdash 2003 A morte em Heroacutedoto Valores universais e particularismos eacutetnicos Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia

Waters K H 1971 Herodotus on Tyrants and Despots A Study in Objectivity Historia Einzelschriften 15 Wiesbaden Franz Steiner-Werlag

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

237

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

Ser rainha na Peacutersia antiga1 (To be a queen in Ancient Persia)

Maria de Faacutetima Sousa e Silva(fanp13gmailcom ORCID 0000-0001-5356-8386)

Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra

Resumo - Eacutesquilo Heroacutedoto e Plutarco satildeo os autores que em diferentes eacutepocas me-lhor retratam a vida na corte persa e a influecircncia feminina que circundava o monarca Sob as cores da fantasia muito de verdadeiro ressalta da sua intervenccedilatildeo pessoal e poliacutetica

Palavras-chave Atossa Amestris Parisaacutetide Persas Vida de Artaxerxes Histoacuterias

Abstract Aeschylus Herodotus and Plutarch are the authors who in different times give a portrait of the Persian court and of female influence on the monarch Under fiction their true personal and political influence is undeniable

Keywords Atossa Amestris Parisatis Persians Life of Artaxerxes Histories

Abordar o tema do estatuto e intervenccedilatildeo da rainha da Peacutersia atraveacutes do olhar grego da eacutepoca claacutessica ndash aquela em que o acesso a uma outra cultura foi estimulado pelo conflito entre as duas margens do Egeu o impeacuterio persa e a Greacutecia ndash eacute utilizar sobretudo dois testemunhos os Persas de Eacutesquilo e Heroacutedoto o pai da Histoacuteria Comprometidos o poeta traacutegico e o historiador com uma versatildeo inspirada em acontecimentos verdadeiros mas a que natildeo falta o elemento ficcional sem o rigor que uma investigaccedilatildeo minuciosa e um relato imparcial exigiriam mesmo assim projetam a opiniatildeo que a Greacutecia do seacutec V a C tinha da cultura oriental neste aspeto concreto A focagem adotada por cada um eacute diversa natildeo soacute em funccedilatildeo dos pressupostos dos diferentes geacuteneros em que se ex-primiam mas tambeacutem pela proacutepria sensibilidade e experiecircncia de vida Eacutesquilo um combatente contra a invasatildeo persa em terreno grego traccedila do inimigo em termos sobretudo simboacutelicos e universalistas a imagem de uma grande potecircn-cia apesar disso natildeo imune ao castigo divino que um excesso de arrogacircncia acarreta Heroacutedoto um grego da Aacutesia desenvolve a longa trajetoacuteria que leva agrave constituiccedilatildeo de um grande impeacuterio do oriente e justifica dentro de uma tradiccedilatildeo aquemeacutenida a campanha decisiva que os Persas se determinaram a levar a cabo na Europa Num e noutro destes dois autores Atossa esposa de Dario e matildee de Xerxes assume um papel determinante como paradigma da ideologia reinante

1 Este trabalho foi desenvolvido no acircmbito do projeto UIDELT001962013 financiado pela FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_13

238

Ser rainha na Peacutersia antiga

e exemplo da influecircncia que a rainha consorte ou regente podia ter na corte persa Seacuteculos mais tarde inspirado ainda nos autores claacutessicos e na recriaccedilatildeo de paradigmas do passado Plutarco dedica a Artaxerxes uma das suas Vidas2 insistindo em quadros do quotidiano do palaacutecio onde o ciacuterculo feminino em torno do rei tem uma relevacircncia inegaacutevel Somados estes testemunhos podemos rever o trajeto da corte persa durante pouco mais de um seacuteculo (seacutec V e iniacutecio do IV a C) com as suas querelas paixotildees oacutedios influecircncias Dentro de um de-terminado conceito literaacuterio todos estes relatos focam sobretudo tagrave genoacutemena as praacuteticas do quotidiano sem deixarem de reconhecer que os grandes momentos e as tomadas de decisatildeo poliacutetica tecircm com estes bastidores uma relaccedilatildeo estreita

Ao envolver Gregos sobretudo Espartanos na questatildeo sucessoacuteria que con-frontou os dois filhos de Dario II Artaxerxes II e Ciro3 Plutarco4 resume assim a opiniatildeo grega sobre a corte persa lsquoComprovaram agrave evidecircncia que o impeacuterio persa e o seu rei possuiacuteam ouro em abundacircncia luxo e mulheres mas em tudo o mais eram de uma ostentaccedilatildeo vaziarsquo Este sentimento sempre animou a Greacutecia agrave resistecircncia contra um inimigo apenas na aparecircncia superior sem no entanto impedir o fasciacutenio e a curiosidade por um mundo inegavelmente contrastante com o espiacuterito heleacutenico pela sua riqueza e ostentaccedilatildeo

As leis consuetudinaacuterias dos Persas eram estritas quanto ao casamento do soberano a noiva devia ser escolhida de entre as filhas das melhores famiacutelias da aristocracia persa A escolha era feita pelos progenitores de acordo com criteacuterios poliacuteticos no sentido da consolidaccedilatildeo de alianccedilas que pudessem robustecer o poder do monarca Os exemplos satildeo inequiacutevocos Segundo Heroacutedoto o grande Ciro casou com Cassandane filha de Farnaspes de linhagem aquemeacutenida5 Cambises seu filho com Fedima filha de Otanes6 Atossa filha de Ciro o Grande

2 Manfredini et Orsi 1996 XXVII sublinham a lsquosingularidadersquo desta Vida de acordo com os criteacuterios habituais no bioacutegrafo Artaxerxes natildeo era nem grego nem romano mas um baacuterbaro e Plutarco natildeo era um apreciador de baacuterbaros Daiacute a Vida de Artaxerxes resultar numa espeacutecie de lsquoretrato negativorsquo que natildeo deixa de ser surpreendente dentro do sentido pedagoacutegico que justifica as Vidas

3 A Xerxes filho de Dario I e condutor da campanha contra a Greacutecia sucedeu Artaxerxes I (465-425 a C) avocirc de Artaxerxes II Entre eles ocorreu o reinado curto de Xerxes II herdeiro legiacutetimo de Artaxerxes I rapidamente assassinado seguido de um irmatildeo bastardo filho do mes-mo Artaxerxes I que se chamou Dario II Deste Dario II (424-405 a C) e de Parisaacutetide ndash ambos filhos de Artaxerxes I mas de diferentes concubinas ndash nasceram lsquoquatro filhos Artaxerxes o mais velho seguido de Ciro e os mais novos Ostanes e Oxartesrsquo (Vit Artax 12) Alguma dis-paridade de testemunhos rodeia este ciacuterculo familiar X An 11 menciona apenas Artaxerxes e Ciro tambeacutem referidos por Cteacutesias com nomes distintos (FGrHist 688 F 15a 51) D S 1755 menciona Ostanes como irmatildeo de Artaxerxes II e pai de Dario III Cteacutesias atribui a Dario II e Parisaacutetide treze filhos Sobre o assunto veja-se Manfredini et Orsi 1996 267 As grandes fontes de Plutarco para a Vida de Artaxerxes satildeo Diacutenon Cteacutesias e Xenofonte

4 Plut Vit Artax 201 Perrin 1975 5 Hdt 211 3226 Hdt 3683

239

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

casou com Dario I7 por fim Xerxes I filho de Dario desposou Ameacutestris filha de Otanes8 Plutarco em consonacircncia recorda o casamento de Artaxerxes II o epoacutenimo da sua Vida com lsquouma mulher bonita e de bom caraacuteter por imposiccedilatildeo dos paisrsquo9 Entre os compromissos que Artaxerxes II assumiu de casar vaacuterias das suas filhas com nobres estaacute a promessa feita a Tiribazo de lhe conceder a matildeo de Ameacutestris10 quando poreacutem levado pela paixatildeo pela mesma filha desejou quebrar o compromisso lsquoprometeu em seu lugar como esposa a Tiribazo a mais novarsquo Atossa11 Em momentos particulares da histoacuteria persa como aquele que se seguiu agrave crise de sucessatildeo aberta pela morte de Cambises sem herdeiros a tradiccedilatildeo afeta ao casamento real podia tornar-se ainda mais restritiva Entre os compromissos assumidos pelo grupo de aristocratas que derrubaram o falso Esmeacuterdis contava--se uma claacuteusula de importacircncia para a solidariedade que entre eles se alicerccedilava12 lsquoDecidiram que natildeo seria permitido ao rei casar com nenhuma mulher que natildeo da estirpe dos conjuradosrsquo Ciente da relevacircncia do coacutedigo tradicional de alianccedilas por matrimoacutenio o mesmo Dario I que agora acedia ao trono lsquocontraiu casamen-tos de grande importacircncia para os Persas desposou duas filhas de Ciro Atossa e Artistone ndash Atossa jaacute tinha sido casada com Cambises seu irmatildeo e depois com o Mago13 Artistone era virgem14 Outra mulher com quem casou foi uma filha de Esmeacuterdis filho de Ciro chamada Paacutermis Desposou tambeacutem uma filha de Otanes a que desmascarou o Magorsquo15 Eacute oacutebvio nesta multiplicidade de uniotildees o desejo de Dario de consolidar a sua legitimidade primeiro elegendo filhas e

7 Hdt 313318 Hdt 7619 Plut Vit Artax 25 Dario II e Parisaacutetide no desejo de aproximaccedilatildeo agrave famiacutelia de Hidarnes

(um dos aliados de Dario I na luta contra o Mago) promoveram uma dupla uniatildeo do herdeiro real Artaxerxes com Estatira e tambeacutem da princesa Ameacutestris com um outro filho do aristo-crata Teritucme Apaixonado por uma das suas irmatildes Teritucme matou Ameacutestris e organizou contra o soberano uma rebeliatildeo Este crime acarretou a morte do filho de Hidarnes bem como de todos os outros parentes Estatira foi dos poucos que escapou por intervenccedilatildeo empenhada de Artaxerxes Cf Cteacutesias FGrHist 688 F15 Poupado foi tambeacutem Tissafernes seu irmatildeo entatildeo residente na Aacutesia Menor Jaacute no poder Artaxerxes II por influecircncia da mulher tomou atitudes favoraacuteveis aos seus parentes para lhes desagravar a memoacuteria mandou matar o escudeiro delator da conspiraccedilatildeo de Teritucme e reintegrou o filho deste seu cunhado Mitradates na satrapia paterna (FGrHist 688 F16)

10 Plut Vit Artax 27411 Plut Vit Artax 27412 Hdt 384213 De todos os maridos de Atossa foi sem duacutevida o uacuteltimo Dario aquele que deu agrave corte

persa maior dignidade e poder Por isso Eacutesquilo nos Persas faz de Atossa simplesmente a viuacuteva de Dario sem qualquer alusatildeo aos seus casamentos anteriores

14 Talvez esta ideia de umas primeiras nuacutepcias com o monarca justifique a preferecircncia afetiva que Dario manifestava por Artistone Por isso lhe dedicou uma estaacutetua em ouro cinzelado (Hdt 7692) Da uniatildeo de Dario com Artistone nasceram dois filhos Aacutersames (Hdt 7692) e Goacutebrias (7722)

15 Hdt 3882

240

Ser rainha na Peacutersia antiga

esposas dos monarcas seus predecessores de quem natildeo provinha em sucessatildeo directa aleacutem de privilegiar a filha de um dos seus correlegionaacuterios na rebeliatildeo de acordo com o pacto estabelecido Superiores interesses da corte deixavam ao rei em nome das suas preferecircncias ou sentimentos uma margem de escolha muito limitada

Pontualmente a dinacircmica de conquista podia aconselhar uma estrateacutegia a proposta de alianccedila com uma estrangeira que natildeo passa de um golpe di-plomaacutetico e eacute suscetiacutevel de levantar suspeitas de tal modo era divergente da praacutetica consagrada Assim Cambises (530-522 a C) futuro conquistador do Egito integrou nos seus planos de anexaccedilatildeo do reino do Nilo uma proposta de casamento com uma princesa egiacutepcia16 filha de Amaacutesis Heroacutedoto justifica esta proposta com uma vinganccedila pactuar com os interesses de um meacutedico egiacutepcio ao serviccedilo da corte persa e por isso afastado da paacutetria e da famiacutelia que pretendia vingar a escolha que o faraoacute fizera impender sobre a sua competecircncia O pedido de Cambises natildeo aparecia portanto como uma homenagem ou pacto de alianccedila mas como um desafio Assim o entendeu tambeacutem o faraoacute que apenas se preocu-pou com uma questatildeo difiacutecil como recusar sem recusar na certeza de que se acedesse lsquoficava mortificadorsquo e se negasse lsquoincorria na ira de Cambisesrsquo Imaginou entatildeo ao que conta Heroacutedoto um dolo o de substituir a proacutepria filha por outra jovem Niteacutetis filha do monarca anterior Apries A descoberta deste ludiacutebrio uma ofensa pessoal e poliacutetica a Cambises tornou-se uma etiologia para o ataque ao Egito17 A esta versatildeo decerto persa que justificava a campanha Heroacutedoto contrapotildee outra egiacutepcia para fundamentar a aproximaccedilatildeo entre as duas casas reais Essa outra versatildeo tambeacutem interessante defendia que Cambises era filho de Ciro e desta Niteacutetis e que teria sido Ciro a pedir a matildeo da princesa egiacutepcia e natildeo o filho18 Revelador eacute o motivo que Heroacutedoto invoca para depreciar a veracidade desta segunda versatildeo19 lsquoEacute que antes de mais nada os Egiacutepcios estatildeo fartos de sa-ber ndash porque se haacute povo que conheccedila as leis persas eacute sem duacutevida o egiacutepcio ndash que aqueles tecircm por regra natildeo entregar o trono a um bastardo quando haacute um filho legiacutetimorsquo Com esta observaccedilatildeo o autor de Histoacuterias confirma a impossibilidade de um casamento entre o rei persa e uma estrangeira verdadeiramente o uacutenico ponto em comum nas duas leituras do episoacutedio

A algumas destas alianccedilas poliacuteticas a tradiccedilatildeo soma o sentimento Plutarco assinala este condimento na alianccedila de Artaxerxes II com Estatira uma noiva imposta pelos pais mas que o marido mais tarde natildeo quis perder lsquoapesar da

16 Hdt 311-31317 Hdt 31518 Hdt 321 A versatildeo que faz de Cassandane a matildee de Cambises tem todas as condiccedilotildees

para ser a mais fidedigna e estaacute de acordo com o testemunho dos textos cuneiformes Veja-se CAH2 419

19 Hdt 322

241

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

opiniatildeo daquelesrsquo20 De facto convulsotildees posteriores21 tornaram mal vista a famiacute-lia da consorte real e punidos de morte alguns dos seus elementos o rei (Dario II) queria tambeacutem eliminar a nora natildeo fosse Artaxerxes lsquoter conseguido conven-cer a matildee a duras penas com pedidos e laacutegrimas de que a poupassem e o natildeo separassem da mulherrsquo22 Este episoacutedio salienta a autoridade da rainha-matildee e a precariedade das alianccedilas poliacuteticas alterados os pressupostos que as justificaram

A Cambises eacute atribuiacuteda a iniciativa de uma alteraccedilatildeo profunda nos casa-mentos reacutegios e a praacutetica progressivamente alargada de alianccedilas consanguiacuteneas Segundo Heroacutedoto foi a paixatildeo do rei por uma das suas irmatildes que desencadeou a revisatildeo do nomos instituiacutedo23 para o que o monarca teve de consultar os conselheiros da corte os uacutenicos com autoridade para promover alteraccedilotildees nos costumes Receosos do acircnimo perturbado de Cambises os conselheiros respon-deram a uma lacuna legal com outra lei em vigor24 lsquoQue natildeo se encontrava uma lei que permitisse a um irmatildeo casar com uma irmatilde mas em contrapartida havia uma que autorizava o rei dos Persas a agir segundo a sua vontadersquo Cambises pocircde entatildeo casar com a irmatilde que amava e mais tarde com outra ainda Atossa25 A mesma praacutetica veio a repetir-se segundo Plutarco Dario II e Parisaacutetide os pais de Artaxerxes II eram tambeacutem meios-irmatildeos filhos ambos de Artaxerxes mas de diferentes concubinas26 Seguindo a mesma tradiccedilatildeo Artaxerxes II apaixonou--se por uma das suas filhas Atossa27 com quem veio a casar com o patrociacutenio da rainha-matildee e lsquohaacute mesmo quem diga que aleacutem de Atossa o rei casou tambeacutem com outra das suas filhas Ameacutestrisrsquo28 Parisaacutetide faz neste contexto o mesmo papel que Heroacutedoto tinha atribuiacutedo aos conselheiros de Cambises Mesmo que Artaxerxes por pejo a natildeo consultasse e ao que parece mantivesse na clandes-tinidade uma relaccedilatildeo com a filha a velha rainha repetiu a doutrina progressista dos conselheiros de Cambises natildeo por receio da fuacuteria de um Artaxerxes fraco mas para lhe conquistar a simpatia e o dominar Parisaacutetide aconselhou29 lsquoque casasse com a jovem e fizesse dela sua esposa legiacutetima mandando passear as leis e os costumes agrave grega jaacute que para os Persas o rei era a lei e tinha sido designado

20 Plut Vit Artax 2121 Veja-se supra nota 822 Plut Vit Artax 2223 Hdt 331224 Hdt 331425 Hdt 3316 cf 3311 Sobre este casamento consanguiacuteneo de Cambises cf Cteacutesias

FGrHist 688 F13 (14) Strab 1715 Cteacutesias identifica a primeira das irmatildes que Cambises despo-sou e que o acompanhou ao Egito com Roxana e Estrabatildeo com Meacuteroe As outras duas filhas de Ciro e Cassandane eram Atossa e Artistone (3882 7692)

26 Plut Vit Artax 12 cf Cteacutesias FGrHist 688 F15 Outros exemplos satildeo referidos por Man-fredini et Orsi 1996 297-98

27 Plut Vit Artax 232-428 Plut Vit Artax 23429 Plut Vit Artax 233

242

Ser rainha na Peacutersia antiga

pelos deuses para arbitrar o bem e o malrsquo E interveio no processo como uma verdadeira casamenteira louvando junto de Artaxerxes a beleza e o caraacuteter de Atossa30 O amor de Artaxerxes por sua filha Atossa ficou comprovado nos anos em que a lepra a vitimou31 aleacutem de dar mostras de um grande desgosto a que os suacutebditos e amigos responderam com presentes generosos assumiu o gesto de hu-mildade de se prostrar numa suacuteplica diante da deusa Hera32 em mais uma quebra da etiqueta motivada pelo sentimento a que Artaxerxes era atreito Este foi um gesto que ganhou popularidade quando lsquoos dezasseis estaacutedios que separavam o templo do palaacutecio se atravancaram de ouro prata puacuterpura e cavalosrsquo33

Agrave consorte real assistia uma distinccedilatildeo particular que se assinalava desde logo com a etiqueta que rodeava as bodas reacutegias Com o mesmo aparato se as-sinalava o termo da vida da soberana motivo de honras fuacutenebres luxuosas e de um luto alargado aos suacutebditos34

Ostentaccedilatildeo equivalente era de regra no quotidiano do palaacutecio onde a sobe-rana comparecia coberta de joias e em trajo esplendoroso de seu uso exclusivo e que ningueacutem mais poderia utilizar35 Grave quebra do protocolo seria tambeacutem que algueacutem dela se abeirasse ou lhe tocasse Eacute neste pressuposto que Eacutesquilo retrata em cena a vinda de Atossa36 viuacuteva de Dario e matildee de Xerxes desfilando por entre os cortesatildeos Sobre um carro magnificente37 seguida de um seacutequito numeroso ela impotildee a atitude respeitosa dos velhos do coro que se prostram e lsquolhe dirigem as homenagens que lhe satildeo devidasrsquo38 Esta eacute a imagem sumptuo-sa da rainha da Peacutersia na plenitude de todo o seu poder ainda que sejam as apreensotildees que a todos afligem a razatildeo da sua vinda Mas quando a crise poliacutetica se instala com a notiacutecia da derrota na Greacutecia numa segunda entrada em cena Eacutesquilo despoja Atossa de toda a magnificecircncia anterior faacute-la vir agora a peacute em trajos soacutebrios como imagem de partilha do sofrimento do seu povo e de clarividente sentido poliacutetico39 Uma enorme popularidade cercou Estatira esposa

30 Plut Vit Artax 233 Plutarco (234) invoca o testemunho de Heraclides de Cumas (autor de uns Persikaacute seacutec IV a C) que igualmente regista o casamento de Artaxerxes com as suas duas filhas Atossa e Ameacutestris

31 Saacutenchez Hernaacutendez Gonzaacutelez Gonzaacutelez 2009 540 recordam o que diz Heroacutedoto (1138) sobre a lepra ndash o isolamento a que era relegado o paciente por se entender a doenccedila como um castigo divino ndash e imaginam que esse foi o motivo do lsquoescruacutepulo religiosorsquo do rei

32 Plut Vit Artax 234-5 Anaitis a deusa ora identificada por Plutarco com Atena (Artax 31) ora com Aacutertemis (273)

33 Plut Vit Artax 23534 Hdt 21135 Seria uma tremenda quebra de etiqueta que algueacutem comparecesse no banquete real com

trajos reacutegios mesmo que os tivesse recebido por benesse do monarca (Vit Artax 152)36 Sobre o tratamento da personagem de Atossa nos Persas veja-se Silva 2005 108-1137 Era interdito ao rei persa sair do palaacutecio a peacute Deveria circular sempre num carro ou a

cavalo (Heraclides de Cumas FGrHist 689 F1 Diacutenon FGrHist 690 F26)38 Pers 150-15439 Pers 607-609

243

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

de Artaxerxes II que nas suas saiacutedas do palaacutecio tomou a iniciativa de se deixar admirar pelo povo40 lsquoSempre se apresentava sem cortinas o que permitia que as mulheres do povo se aproximassem para abraccedilaacute-la Por isso a rainha era amada de todosrsquo Deveraacute esta atitude de Estatira ser entendida como uma exceccedilatildeo de apurado sentido poliacutetico Ou teria havido na corte persa com o curso dos anos alguma abertura no sentido de uma maior exposiccedilatildeo da casa real e de proximi-dade com o povo41

No quotidiano do palaacutecio agrave rainha-matildee como agrave esposa do rei estavam des-tinados privileacutegios no acesso e contacto com a figura reacutegia Dentro das regras de um protocolo que pretendia protegecirc-lo como intocaacutevel no cume da hierarquia soacute agraves duas mulheres diz Plutarco42 era permitido partilhar a mesa do rei43 Esta-va tambeacutem conferido agrave rainha-matildee e agrave consorte participar nos passatempos do soberano Parisaacutetide jogadora haacutebil de dados encontrava nesse dom uma forma de ter acesso a Artaxerxes retirando daiacute dividendos de influecircncia44 Apesar de as divergecircncias poliacuteticas terem trazido algum esfriamento agraves relaccedilotildees matildee-filho Parisaacutetide lsquonatildeo soacute teve artes de se mostrar amaacutevel como tambeacutem partilhava das suas diversotildees era confidente dos seus amores que favorecia e ateacute presenciava em suma deixou pouco espaccedilo ao conviacutevio e presenccedila de Estatira porque Pari-saacutetide odiava entre todos Estatira e o que pretendia era exercer influecircncia sobre o reirsquo Anexas agraves prerrogativas que a corte dispensava agrave rainha-matildee e agrave consorte real esta referecircncia de Plutarco deixa patentes as disputas e intrigas a que a rela-ccedilatildeo entre as duas mulheres estava sujeita na concorrecircncia pelos favores reacutegios45 O conviacutevio quotidiano entre as duas parecia ocultar um intuito de controle e de vigilacircncia permanente46 Assim no costume de se visitarem e de partilharem refeiccedilotildees Plutarco adivinha mais do que uma convivecircncia natural um indiacutecio lsquode que se temiam e deste modo se asseguravam de que comiam os mesmos ali-mentos servidos pelas mesmas pessoasrsquo Esta observaccedilatildeo estabelece uma medida extrema para a animosidade e ciuacutemes desenvolvidos na corte persa Entre as duas vontades fortes Artaxerxes oscilava dobrado por uma subserviecircncia que causou alguma desintegraccedilatildeo e decadecircncia no impeacuterio que governava47

40 Plut Vit Artax 5341 Pseudo-Plutarco Moralia 173f diz que Estatira natildeo comparecia diante do povo por

iniciativa proacutepria mas por determinaccedilatildeo de Artaxerxes o que poderaacute significar que os dois pressupostos ndash objetivos poliacuteticos e progresso na etiqueta ndash se harmonizam

42 Plut Vit Artax 5343 Diacutenon FGrHist 689 F2 retoca este princiacutepio ao afirmar que o rei costumava tomar as re-

feiccedilotildees sozinho Pontualmente podiam ser admitidos a esse conviacutevio alguns membros da famiacutelia real mas sempre em mesas separadas e menos luxuosas Soacute em ocasiotildees festivas os cortesatildeos partilhavam a mesma sala com o soberano

44 Plut Vit Artax 172-345 Plut Vit Artax 19146 Plut Vit Artax 19247 Cf Pl Lg 694-698 X Cyr 8812

244

Ser rainha na Peacutersia antiga

O mesmo privileacutegio da consorte e da rainha-matildee junto do soberano serviu de motivo a Eacutesquilo no seu desenho dramaacutetico da corte persa Ao fantasma de Dario seu marido soacute Atossa se atreve a dirigir a palavra face agrave discriccedilatildeo respeitosa dos cortesatildeos que nem a crise profunda que se abateu sobre Susa per-mitiu romper48 Como tambeacutem na qualidade de rainha-matildee lhe estaacute conferida a missatildeo de receber o soberano derrotado no regresso da campanha Com os trajos sumptuosos que poraacute agrave sua disposiccedilatildeo para substituir os farrapos do vencido Atossa garante a Xerxes a reintegraccedilatildeo simboacutelica no trono e na autoridade sobre a Peacutersia49

Esta convivecircncia privilegiada faz da rainha da Peacutersia uma figura de enor-me influecircncia dentro da corte intervindo diretamente nas decisotildees reacutegias ou substituindo a autoridade real nas suas ausecircncias Natildeo surpreende portanto que a rainha tenha alguma visibilidade e mereccedila dos diversos testemunhos a tentativa de se criar da sua personalidade um perfil Trate-se de Roxana50 a irmatilde-esposa que acompanhou Cambises na campanha do Egito51 de Ameacutestris esposa de Xerxes ou de Parisaacutetide esposa de Dario II e matildee de Artaxerxes II todas elas revelam inteligecircncia sagacidade e sentido poliacutetico Roxana eacute chamada a intervir junto de Cambises com a sua opiniatildeo sobre uma questatildeo tatildeo delicada como a da descendecircncia e das relaccedilotildees entre os herdeiros reais Perante as vio-lecircncias perpetradas por um rei que Heroacutedoto retratou como louco Roxana natildeo hesitou em o censurar abertamente em mateacuteria tatildeo suscetiacutevel como o homiciacutedio a mando do rei do seu irmatildeo Esmeacuterdis Envolta em fantasia52 esta intervenccedilatildeo da esposa de Cambises assenta no pressuposto da influecircncia e audiccedilatildeo que a rainha podia ter junto do soberano de quem lhe era ateacute possiacutevel discordar no conhecimento dos segredos de Estado53 Eacute certo que Roxana se tornou mais uma viacutetima da sua frontalidade avisada junto do rei que a agrediu ateacute agrave morte54 Sem que esse assassinato tenha segundo Heroacutedoto outro sentido sobre o estatuto da soberana perante um Cambises que natildeo poupou igualmente parentes cortesatildeos e leais servidores aos seus arroubos de loucura

Dentro da mesma convenccedilatildeo Heroacutedoto envolve em cada uma das campa-nhas projetadas pelos soberanos da Peacutersia a intervenccedilatildeo da rainha Determi-nante foi sem duacutevida o papel assumido por Atossa na campanha contra a Greacutecia planeada por Dario e levada a cabo por Xerxes O curriculum que faz dela esposa de trecircs monarcas e matildee de um quarto natildeo foi de somenos para desenvolver

48 Pers 694-70649 Pers 832-83850 Veja-se supra nota 25 51 Hdt 331152 Hdt 33253 Cf Heroacutedoto 3303 3611 375254 Hdt 3311

245

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

na mulher inteligente que era uma capacidade poliacutetica e um ascendente de-terminantes no futuro do impeacuterio De acordo com as Histoacuterias55 Atossa foi a impulsionadora dessa investida ela mesma eco junto de Dario dos jogos de poder que se desenrolavam no palaacutecio56 atuou de facto por sugestatildeo do grego Democedes de Crotona57 meacutedico da corte e detentor de um enorme prestiacutegio pelas curas obtidas junto do rei e da rainha mas apesar do sucesso e da genero-sidade reacutegia Democedes aspirava ao regresso agrave paacutetria para o que se valeu desse mesmo prestiacutegio de modo a influenciar primeiro Atossa e atraveacutes dela o proacuteprio monarca58 O cenaacuterio escolhido por Heroacutedoto para a conversa entre o casal reacutegio sobre mateacuteria poliacutetica foi a alcova Na intimidade do quarto Atossa deu conta da sua sagacidade e prudecircncia Lembrou ao rei o lema da corte persa o princiacutepio de que o condutor dos destinos da Peacutersia natildeo devia ficar inativo mas promover conquistas59 aproveitando da energia juvenil Dario ganharia a consideraccedilatildeo do seu povo aleacutem de o manter ocupado e submisso agrave sua autoridade Aos argumen-tos poliacuteticos a Atossa de Heroacutedoto acrescentou um toque de capricho feminino o sonho de ter escravas gregas ao seu serviccedilo60 Dario natildeo contestou a oportu-nidade nem o conteuacutedo do conselho reconheceu ateacute que ele coincidia com os seus propoacutesitos Contrapocircs apenas outra prioridade a Ciacutetia antes da Greacutecia Mas incapaz de repudiar a opiniatildeo de Atossa enveredou pelo compromisso avanccedilar primeiro para a Ciacutetia mas ir desencadeando os preliminares para um ataque agrave Greacutecia e cedeu naquele que era o principal objetivo da consorte encarregar De-mocedes de conduzir uma incursatildeo de espiotildees no territoacuterio grego Abria-se com o beneplaacutecito reacutegio para o meacutedico de Crotona o sonhado caminho do regresso

Influente na mesma campanha a Atossa dos Persas atua num cenaacuterio diverso Eacute como regente apoacutes a morte do marido e o desfecho iminente da campanha que evidencia curiosidade poliacutetica e idoneidade para uma avaliaccedilatildeo da natureza do inimigo e das causas profundas da derrota Vemo-la interrogar

55 Hdt 3129-13756 Asheri Medaglia et Fraschetti 1990 344 consideram este diaacutelogo como lsquoetioloacutegicorsquo ou

seja expressivo das causas que determinaram a campanha persa contra a Greacutecia Tal como He-lena se tornou causa paradigmaacutetica de um conflito terriacutevel Atossa eacute considerada a motivadora das guerras peacutersicas

57 Hart 1982 77 considera esta cena um misto de um conto tradicional mas lsquocom um soacutelido substrato de verdadersquo nomeadamente no que diz respeito agrave identidade de Democedes

58 As Histoacuterias de Heroacutedoto datildeo conta da presenccedila de meacutedicos estrangeiros na corte persa detentores de um enorme prestiacutegio e de uma influecircncia poliacutetica relevante Assim o oftalmolo-gista egiacutepcio (311-2) que o faraoacute mandara exilado para a Peacutersia e que usa do seu poder junto de Dario I para estimular um ataque ao Egito (cf 31292) Plutarco refere como uma das suas fontes para a Vida de Artaxerxes Cteacutesias de Cnidos meacutedico da famiacutelia real e um conhecedor profundo da sua vida iacutentima que registou num relato intitulado Persikaacute (Vit Artax 1 2) Houve quem considerasse que Cteacutesias se deixou influenciar na narrativa que produziu por Parisaacutetide a rainha-matildee (FGrHist 688 F15a 51)

59 Cf Hdt 7860 Cf Ael VH 1127

246

Ser rainha na Peacutersia antiga

os cortesatildeos do coro sobre os Gregos de acordo com os criteacuterios proacuteprios da mentalidade persa61 sobre a localizaccedilatildeo geograacutefica do inimigo o seu potencial financeiro estrateacutegia de combate e as chefias que o conduzem A conversa com Dario agora que a morte do velho soberano se interpocircs tornou-se puacuteblica para um balanccedilo e compreensatildeo do desastre que coroou a campanha da Greacutecia mas sem perder um certo tom de confidencialidade pelo facto de ser Atossa o interlo-cutor privilegiado do fantasma A Atossa esquiliana ouve mais do que comenta mas compete-lhe fornecer agrave interpretaccedilatildeo do fantasma uma siacutentese do ocorrido dos pressupostos e responsaacuteveis

Por fim Parisaacutetide teve uma influecircncia indesmentiacutevel no reinado do ma-rido Dario II (424-405 a C) e sobretudo de acordo com Plutarco na questatildeo sucessoacuteria e no novo monarca o seu filho mais velho Artaxerxes II Deu mostras de uma personalidade que a literatura grega considerou tiacutepica da soberana persa Perspicaacutecia e sagacidade destacam-se como suas carateriacutesticas fundamentais62 aleacutem de uma crueldade verdadeiramente baacuterbara63

Questotildees relacionadas com a sucessatildeo reacutegia foram responsaacuteveis por momen-tos de instabilidade na corte de Susa A importacircncia de um sucessor legiacutetimo do trono revela-se por exemplo com Cambises que entre os seus atos de loucura cometeu o crime de matar a mulher que estava graacutevida64 e assim privou a corte de um herdeiro e facilitou o acesso a um usurpador e a necessidade de uma re-volta para trazer de regresso a normalidade Apesar de prudente esta disposiccedilatildeo confrontou-se com inuacutemeras dificuldades e controveacutersias Uma situaccedilatildeo difiacutecil ocorreu com Dario I na altura de avanccedilar contra o Egito Recorda Heroacutedoto65 que o monarca apesar de ter jaacute quando acedeu ao trono trecircs filhos do casamen-to com uma filha de Goacutebrias acabou designando como seu sucessor Xerxes o primogeacutenito de quatro outros filhos que teve com Atossa66 filha de Ciro por este ser o filho mais velho nascido depois de o pai ter estatuto de rei Esta soluccedilatildeo foi sugerida por Demarato um soberano lacoacutenio no exiacutelio residente na corte e conselheiro do rei de acordo com uma praacutetica espartana Ao reconhecer como sensata a sugestatildeo de Demarato Dario I fixou um precedente que haveria de ser invocado mais tarde em situaccedilotildees semelhantes Sem que no entanto Heroacutedoto deixe de reconhecer que lsquomesmo sem este conselho Xerxes teria sido rei porque Atossa era todo-poderosarsquo67

Poleacutemica de dimensotildees bastante mais graves envolveu a sucessatildeo de Dario

61 Pers 230-24462 Plut Vit Artax 172 23363 Plut Vit Artax 6564 Hdt 332465 Hdt 72-366 Aleacutem de Xerxes Histaspes (Hdt 7642) Masistes (782) e Aqueacutemenes (797)67 Hdt 73

247

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

II com a intervenccedilatildeo da soberana Parisaacutetide Plutarco68 deixa claro que o caraacute-ter de Artaxerxes o primogeacutenito deacutebil e fraco contrastava com a determinaccedilatildeo de Ciro o filho segundo que cativou o apoio da matildee69 O argumento da rainha foi o usado no caso de Xerxes o de que quando Artaxerxes nasceu o pai era um cidadatildeo comum e jaacute rei quando Ciro veio ao mundo Designado saacutetrapa da Liacutedia e comandante dos exeacutercitos na costa Ciro iniciou uma rebeliatildeo contra o herdeiro indigitado suspeito como traidor Ciro foi salvo por Parisaacutetide ape-sar da gravidade da acusaccedilatildeo Com o afastamento de Ciro para o litoral foram criadas condiccedilotildees para uma verdadeira guerra de sucessatildeo Nos bastidores Pa-risaacutetide favorecia os interesses de Ciro70 a quem disponibilizava recursos numa demonstraccedilatildeo de autoridade e de liberdade na gestatildeo de bens consideraacuteveis71 e conspirava em segredo72 Esta teia de intrigas aproveitava ainda do feitio mole do rei73 Todo este empenho pelos interesses de Ciro justificou a acusaccedilatildeo contra Parisaacutetide de ser com alguns amigos a verdadeira causadora da guerra Entre os que mais a hostilizavam estava Estatira incomodada com a influecircncia da sogra e com o risco que significava para a seguranccedila do rei74 O contencioso entre as duas mulheres que na versatildeo de Plutarco representavam as duas faccedilotildees em litiacutegio havia de fazer de Estatira uma viacutetima da vinganccedila da rainha-matildee75

A vitoacuteria de Ciro que implicou a sua morte76 abriu um longo percurso de preacutemios e vinganccedilas em que Parisaacutetide deu largas ao ressentimento e a uma fero-cidade baacuterbara Natildeo soacute demoveu Artaxerxes a eliminar alguns dos seus inimigos pessoais como chamou a si o prazer de liquidar alguns por suas proacuteprias matildeos77 A um sujeito da Caacuteria que se vangloriava de ter sido o autor do golpe mortal contra Ciro e que o rei mandara matar Parisaacutetide reclamou-o para lhe aplicar uma morte de requintada malvadez78 a Mitridates que se arrogava igual faccedilanha Parisaacutetide denunciou-o ao rei que o mandou torturar e executar79 o eunuco do rei Masabates que tinha decepado a cabeccedila e matildeos de Ciro Parisaacutetide obteve-o

68 Plut Vit Artax 2169 Plut Vit Artax 22 cf X An 11470 Plut Vit Artax 4171 Manfredini et Orsi 1996 274 lembram que Parisaacutetide dispunha de um territoacuterio designa-

do por lsquocintura da rainharsquo na Siacuteria de grandes recursos em cereais gado e outros proventos a que competia fornecer agrave rainha fundos para os seus gastos cf X An 149 Cteacutesias FGrHist 688 F16 Pl Alcib 123 b-c

72 Plut Vit Artax 4173 Plut Vit Artax 43-4 51-374 Plut Vit Artax 64-575 Plut Vit Artax 65 cf 17676 A guerra terminou com a batalha de Cunaxa em 401 a C77 Sobre as viacutetimas deste processo de vinganccedila veja-se Almagor 2009 131-4678 Plut Vit Artax 14579 Plut Vit Artax 161

248

Ser rainha na Peacutersia antiga

do rei como aposta numa partida de dados80 de posse da sua presa lsquoordenou que os carrascos castigassem Masabates tirando-lhe os olhos em vida e que o crucificassem e lhe arrancassem a pelersquo Por fim agrave censura real respondeu com sobranceria a Clearco um dos estrategos gregos das hostes de Ciro foi garantida na prisatildeo uma raccedilatildeo agrave parte por empenho de Cteacutesias e com o beneplaacutecito de Parisaacutetide81 e perante a condenaccedilatildeo que o aguardava a rainha-matildee empenhou-se junto do monarca para que o poupasse

Clearco veio a converter-se na mola impulsionadora de uma vinganccedila que de haacute muito bailava no espiacuterito da velha rainha82 quando Artaxerxes influen-ciado pela mulher Estatira se decidiu por quebrar o juramento feito agrave matildee e eliminaacute-lo O estratego centralizou portanto mais uma intriga protagonizada pelas duas mulheres mais influentes do ciacuterculo real E foi extrema a decisatildeo de Parisaacutetide a de envenenar a rival A intervenccedilatildeo da rainha-matildee neste atentado de uma gravidade limite parece ao proacuteprio Plutarco uma versatildeo inverosiacutemil imaginada por Cteacutesias Mas no progressivo desafio agrave vontade de Artaxerxes que o Queroneu vai somando o assassinato de Estatira aparece como um cliacutemax na-tural como um sinal da confianccedila que Parisaacutetide tinha na sua proacutepria influecircncia e ascendente junto do rei Simulando passar uma esponja sobre as dissensotildees do passado aproveitou-se da convivecircncia com a esposa real e da conivecircncia de uma criada fiel83 para servir agrave nora uma refeiccedilatildeo envenenada No maior sofri-mento Estatira pocircde ainda denunciar ao marido a responsabilidade da matildee na sua morte Mas apesar da investigaccedilatildeo que desencadeou Artaxerxes deu prova de fraqueza e dependecircncia da vontade materna foi sobre a serva que o castigo incidiu deixando a que para Plutarco seria a mandante do crime incoacutelume Das suas duacutevidas Artaxerxes deu sinal com uma discreta rutura de relaccedilotildees e com o envio de Parisaacutetide para um exiacutelio em Babiloacutenia Rutura essa aliaacutes de pouca du-raccedilatildeo (401-395 a C) Ao rei afinal fazia falta a presenccedila da matildee a sua perspicaacutecia e determinaccedilatildeo para suprir as suas proacuteprias debilidades Parisaacutetide acolheu de bom grado esta nova disposiccedilatildeo do monarca e lsquocolaborou de boa mente em tudo com o rei natildeo o contradizendo em nada que ele fizesse Em contrapartida tinha um enorme poder sobre ele e conseguia dele tudo o que queriarsquo84

80 Plut Vit Artax 171-6 Cf compromisso semelhante obtido por Ameacutestris de Xerxes em Hdt 91111

81 Plut Vit Artax 181-482 No sect6 Plutarco anuncia o atentado de Parisaacutetide contra a nora em consequecircncia da posiccedilatildeo das

duas na disputa entre Artaxerxes e Ciro pelo trono Mas protela a descriccedilatildeo deste episoacutedio para o sect19 nas consequecircncias da guerra Com esta dispersatildeo alude a divergecircncia similar entre outros testemu-nhos de Diacutenon que integra o atentado no curso da guerra e de Cteacutesias que o coloca no seu termo

83 Plutarco (192) utiliza a intervenccedilatildeo da senhora e da escrava de uma forma que retoma a estrateacutegia traacutegica da senhora ama as culpas de uma satildeo adensadas ou aligeiradas em funccedilatildeo do grau de conivecircncia da outra Sobre as versotildees controversas deste episoacutedio cf Diacutenon FGrHist 690 F15b Cteacutesias FGrHist 688 F29b Plut Vit Artax 193-4

84 Plut Vit Artax 231-2

249

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

O conflito sucessoacuterio que opocircs Artaxerxes II e Ciro renovou-se na geraccedilatildeo seguinte entre Dario o primogeacutenito e Oco seu irmatildeo mais novo mas muito mais ambicioso e obstinado quando o rei anunciou como seu sucessor Dario III Oco natildeo olhou a meios para reivindicar o poder Tentou utilizar a preferecircncia de que Atossa sua irmatilde gozava junto do rei85 Passou a adulaacute-la a prometer-lhe casamen-to e a posiccedilatildeo de consorte real apoacutes a morte do pai E Plutarco recorda86 lsquoCorria ateacute o boato de que mesmo em vida do pai Atossa se encontrava com o irmatildeo agraves escondidas ainda que a Artaxerxes essa traiccedilatildeo passasse despercebidarsquo Tudo parece indicar que os objetivos de Oco tivessem encontrado em Atossa correspondecircncia sobretudo quando apoacutes a execuccedilatildeo de Dario o herdeiro indigitado as suas espe-ranccedilas se viram reforccediladas ainda uma vez lsquoincentivadas por Atossarsquo87

O ciacuterculo feminino em volta do rei incluiacutea muitas concubinas cujo estatuto revestia algum desprestiacutegio para uma mulher de distinccedilatildeo Daiacute como vimos a reserva de Amaacutesis em enviar para a Peacutersia a sua filha para tatildeo desprestigiante destino88 Haacute mesmo uma hierarquia no hareacutem segundo o ascendente de cada mulher89 A obtenccedilatildeo de concubinas resultava da compra90 do saque de guerra91 ou da exigecircncia do rei de filhas de famiacutelia da proacutepria aristocracia persa92 Imagem desta reivindicaccedilatildeo pode ser a exigecircncia que Xerxes no regresso da campanha contra a Greacutecia fez da cunhada por quem se sentia apaixonado93 Dados os elos familiares com Masistes seu irmatildeo Xerxes evitou uma ordem direta e enveredou pelo dolo Tentou primeiro seduzir a cunhada frustradas as suas pretensotildees usou o estratagema de casar o proacuteprio filho com a sobrinha para provocar uma aproximaccedilatildeo Os objetivos de alcance poliacutetico que estas alianccedilas representavam para a corte persa Heroacutedoto converteu-os num processo de alcance pessoal Plutarco afirma que Artaxerxes II embora tivesse pela mulher um sentimento afetuoso mesmo assim se rodeou de lsquo360 concubinas de excelsa belezarsquo94

O costume persa preservava este ciacuterculo feminino como propriedade ex-clusiva do monarca O zelo da exclusividade que Plutarco considera proacuteprio de baacuterbaros justificava a pena de morte para quem ousasse tocar uma concubina reacutegia ou para quem dela se aproximasse ou a abordasse nos seus trajetos de carro95 Foi com incoacutemodo que Artaxerxes II recebeu do filho Dario III que

85 Plut Vit Artax 261-286 Plut Vit Artax 26287 Plut Vit Artax 30188 Hdt 31289 Hdt 31490 Hdt 113591 Hdt 976292 Hdt 3159293 Hdt 9108194 Plut Vit Artax 272 Ou seja o equivalente ao nuacutemero de dias do ano cf D S 1777695 Plut Vit Artax 271

250

Ser rainha na Peacutersia antiga

acabava de nomear seu herdeiro o pedido ndash legiacutetimo por provir do herdeiro indigitado mas inconveniente ndash de que lhe concedesse Aspaacutesia96 sua concubina antes favorita de Ciro o irmatildeo do rei97 Escacircndalo agravado por a jovem que pocircde escolher ter optado pelo priacutencipe herdeiro98 Artaxerxes tudo fez para a conservar ou pelo menos para evitar que o filho a possuiacutesse como uacuteltimo recur-so nomeou-a sacerdotisa de Aacutertemis em Ecbaacutetana obrigando-a a um voto de castidade vitaliacutecia99

O hareacutem englobadas as mulheres legiacutetimas e as concubinas fazia parte da heranccedila que se transferia de um monarca para o seu sucessor Assim aconteceu com as mulheres de Cambises em relaccedilatildeo ao Mago que ainda que ilegitimamen-te lhe sucedeu no trono ateacute ser desmascarado100 Este episoacutedio de instabilidade poliacutetica serviu ainda para demonstrar a intervenccedilatildeo destas mulheres nos destinos da Peacutersia Otanes um dos conjurados serviu-se da filha Fedima para apurar a identidade de Esmeacuterdis que entatildeo reinava sobre a Peacutersia101 sem hesitar em a pocircr em perigo em nome dessa importante informaccedilatildeo Eacute na cama que a filha de Otanes toca as orelhas do desconhecido com quem dormia e obteacutem a prova de que natildeo se trata do filho de Ciro mas de um Mago usurpador102

Das concubinas esperava-se que animassem com os seus cantos e danccedilas os banquetes da corte103 Apesar de lhe ser devido o respeito das concubinas a rainha tinha de aceitar-lhes a proximidade com o soberano Em termos de coabitaccedilatildeo as mulheres encontravam-se rotativamente com o monarca104 numa privacidade respeitada os proacuteprios conjurados que destronaram o Mago e leva-ram Dario I ao poder no seu pacto de proximidade e cooperaccedilatildeo abriram uma claacuteusula de exceccedilatildeo para este aspeto105 Uma infraccedilatildeo a esta regra era punida de morte fosse qual fosse o estatuto do transgressor106

Eacute consensual nos diversos testemunhos a abundacircncia de recursos e a liberdade no seu uso por parte das mulheres A Democedes o meacutedico de

96 Esta mulher da Foceia na Ioacutenia livre de nascimento ficou famosa pela beleza caraacuteter e educaccedilatildeo superiores o que lhe valeu os apelidos de lsquosensatarsquo e lsquobelarsquo (X An 1102 Ael VH 121 Ath 13576d Plu Per 2411-12) Aspaacutesia foi primeiro incorporada no campo de Ciro como sua concubina e apoacutes a derrota deste transitou para o hareacutem do soberano vitorioso (Plu Vit Artax 269 X An 1102)

97 Plut Vit Artax 26598 Plut Vit Artax 27299 Plut Vit Artax 274100 Hdt 3683101 Hdt 368-69102 O mesmo plano para desmascarar o Mago eacute referido por Justino (1917) Trata-se de um

recurso eficaz por o falso Esmeacuterdis ter sofrido a mutilaccedilatildeo das orelhas como castigo103 Diacutenon FGrHist 689 F1 27104 Hdt 3696105 Hdt 3842106 Hdt 31181

251

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

Crotona que tratou com sucesso de Dario as mulheres presentearam com taccedilas de ouro mergulhadas num cofre onde ele era tanto que lsquoum criado chamado Ciacuteton juntou uma grande riqueza em ouro soacute por ter apanhado as moedas que transbordavam das taccedilasrsquo107

No hareacutem real viviam em conjunto as esposas e as concubinas do rei108 Entre elas era habitual a convivecircncia as conversas as disputas os zelos Quebrar esta rotina e isolar as mulheres era sinal de uma anormalidade suspeita proacutepria por exemplo de um monarca ilegiacutetimo como o Mago que sucedeu a Cambises109 E apesar dos costumes que estipulavam uma rotatividade nos favores reacutegios tudo indica que a natureza humana suscitasse atritos entre concorrentes Um caso significativo eacute o que Heroacutedoto110 narra a propoacutesito do desagrado de Cassandane por alguma desatenccedilatildeo da parte de Ciro seu marido envolvido nos encantos de uma concubina egiacutepcia eacute claro que a situaccedilatildeo motivou comentaacuterios e divisotildees no hareacutem Cassandane tinha a seu favor o que qualquer persa consideraria uma credencial de peso tinha dado ao rei muitos filhos esbeltos e fortes todos eles apesar de o monarca se mostrar desatento ou insensiacutevel Esta indiferenccedila validou o rancor da soberana e ateacute a vinganccedila do seu primogeacutenito que assumindo as dores da matildee entendeu atacar o Egito de onde a rival era oriunda Nos seus contornos excessivos este episoacutedio assenta num quadro aceitaacutevel o das tensotildees pessoais de que o hareacutem persa era cenaacuterio

Proacuteximo do fecho das Histoacuterias111 Heroacutedoto introduz um conto de ficccedilatildeo situado em Sardes e depois em Susa112 finda a invasatildeo persa da Heacutelade113 O pro-tagonista eacute Xerxes viacutetima de uma paixatildeo por duas mulheres rivais da consorte legiacutetima Ameacutestris a mulher de Masistes seu irmatildeo e a filha deste casal Artaiacutente Num esboccedilo raacutepido Heroacutedoto desenha o perfil do objeto dessa paixatildeo trata-se de uma anoacutenima lsquoa mulher de Masistesrsquo Natildeo se lhe exalta a beleza mas uma superioridade moral que faz dela mais do que uma viacutetima uma criatura inocente e honesta que resiste agraves pretensotildees do rei A proacutepria condiccedilatildeo de mulher de Masistes lhe serve de escudo No entanto apesar de aparentemente protegida estaacute destinada a sofrer uma violecircncia profunda e de todo inesperada

Incapaz de se fazer obedecer Xerxes inventou um dolo casar o filho com a sobrinha filha de Masistes para provocar uma aproximaccedilatildeo Mas inespera-damente a inconstacircncia de Xerxes leva-o a focar-se numa nova paixatildeo agora pela sobrinha e nora lsquoa mulher de Dario seu filhorsquo114 e com sucesso Pouco eacute

107 Hdt 31304108 Hdt 3683-5 3882-3 31304-5109 Hdt 3685110 Hdt 331-3111 Hdt 9108-113112 Hdt 91081-2113 Sobre esta histoacuteria veja-se Wolff 1964 51-81114 Hdt 91082

252

Ser rainha na Peacutersia antiga

adiantado sobre esta outra figura feminina tem nome Artaiacutente e recebe o es-tigma de uma imoralidade que a distancia da matildee na forma de se entregar agraves pretensotildees reais

O aparato das roupas habitual na corte funciona como um isco que volun-taacuteria ou involuntariamente Ameacutestris a consorte reacutegio lanccedila agrave imponderaccedilatildeo e vaidade do marido com a oferta de um trajo imponente feito por suas matildeos Natildeo se enganou a perspicaacutecia de Ameacutestris jaacute desconfiada da infidelidade do rei Xerxes rejubilou e atraacutes desse gozo apoderou-se dele uma generosidade impru-dente A Artaiacutente lsquoordenoursquo que pedisse da sua magnacircnima solicitude o que quisesse A jovem joga no processo com ligeireza e uma vaidade que partilhava com o monarca acrescida de um desafio muito feminino que a amante lanccedilava sobre a mulher legiacutetima

Colocado perante um pedido imprudente o rei tenta recusar eacute sobretudo o medo115 de Ameacutestris que o domina Desdobra-se noutras promessas sem con-seguir lsquopersuadi-larsquo116 Por isso cede com a mesma fraqueza que eacute apanaacutegio de outros monarcas persas na intimidade Cometido o delito chega o momento de a rainha lsquoverrsquo e lsquocompreenderrsquo a ofensa de que foi viacutetima verifica-a na imponde-raccedilatildeo da rival que natildeo cessa de se gabar117 fascinada com o seu tesouro e sem se dar conta de que ofendia uma fera em potecircncia

Ameacutestris vai revestir o papel da soberana que cobra a reparaccedilatildeo mas falha o alvo da vinganccedila lsquosuspeitandorsquo que a inspiraccedilatildeo do delito viesse da matildee a mulher de Masistes Por isso a decisatildeo racional e fria que tomou de lsquoarruinar a adversaacuteriarsquo118 falhou o alvo e pela injusticcedila tornou-se de uma tremenda cruel-dade119

Ameacutestris comeccedila por aprisionar a vontade real aguarda para fazer o pe-dido o dia do aniversaacuterio real120 em que segundo o protocolo o rei natildeo podia negar um pedido que lhe fosse feito121 Foi entatildeo que lhe pediu o seu presente a mulher de Masistes

Apesar do lsquohorror e indignaccedilatildeorsquo que sentiu por razotildees de natureza fami-liar e eacutetica122 Xerxes anuiu Ameacutestris essa foi inflexiacutevel Serviu-se dos guardas do rei para aprisionar a sua viacutetima E optou como cobranccedila pela mutilaccedilatildeo123 Ao conceder a Ameacutestris a satisfaccedilatildeo do seu pedido o monarca lsquopercebia-lhe as

115 Hdt 91093 cf 191116 Hdt 91093117 Hdt 91093118 Hdt 91101119 Cf 7114 sobre a crueldade de Ameacutestris120 Sobre a forma persa de celebrar o aniversaacuterio cf Heroacutedoto 1133121 Hdt 91111122 Hdt 91103123 Hdt 9112 Heroacutedoto vulgariza entre os soberanos baacuterbaros este tipo de praacuteticas cf

2162 3693-6 373 31181 31542 4201

253

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

intenccedilotildeesrsquo124 e portanto entregava conscientemente uma viacutetima nas suas matildeos E natildeo satisfeito em lsquoconceder a Ameacutestris que procedesse a seu bel prazerrsquo125 pocircs em marcha uma maacutequina de hipocrisia junto de Masistes Fingiu generosidade apelou ao parentesco avanccedilou com elogios126 para lhe propor outra companhei-ra em vez da esposa e matildee dos seus filhos uma filha do rei

A reaccedilatildeo de Masistes foi de estupefaccedilatildeo e recusa com base nas regras ele-mentares de convivecircncia conjugal127 Na sua reaccedilatildeo ficou patente que natildeo era um irmatildeo que reconhecia em Xerxes mas a prepotecircncia de um soberano A causa que os confrontou natildeo foi apenas pessoal mas sobretudo poliacutetica Ferido na sua arrogacircncia Xerxes depocircs a maacutescara retirou-lhe a oferta da filha sem lhe devolver a mulher porque natildeo se tratava de uma escolha mas de uma imposiccedilatildeo Masistes partiu com o desafio de resistir agrave tirania por que se sentia atingido

De regresso a casa concertou-se com os filhos para obter a reparaccedilatildeo que se impunha pela sublevaccedilatildeo militar Xerxes poreacutem avisado a tempo mobilizou as suas forccedilas e massacrou-o128 junto com os filhos e com os apoiantes num aniqui-lamento pessoal e poliacutetico Heroacutedoto deixava impliacutecita a ideia de que enquanto o avanccedilo grego prosseguia no sentido da libertaccedilatildeo da Europa a casa e o poder real persas se fraturavam em disputas intestinas Incoacutelume ficou Ameacutestris de um gesto de cobranccedila em si mesmo legiacutetimo ainda que manchado por um sabor a injusticcedila

Do todo fornecido por estes diversos testemunhos mesclados de ficccedilatildeo e de tradiccedilotildees populares resulta a ideia do peso e da autoridade que a soberana detinha na corte da Peacutersia apesar do aparente distanciamento que protegia a superior figura do rei Proacuteximas e influentes sobretudo quando o monarca manifestava um caraacuteter deacutebil estas figuras agiram com visibilidade e interferecircncia no fluir histoacuterico da corte

124 Hdt 91103125 Hdt 91111126 Hdt 91112127 Hdt 91113128 Hdt 91131-2

254

Ser rainha na Peacutersia antiga

Bibliografia

Almagor E 2009 ldquoA ldquobarbarianrdquo symposium and the absence of philanthropia (Artaxerxes 15)rdquo In Symposion and philanthropia in Plutarch 131-46 Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Asheri D S M Medaglia e A Fraschetti 1990 Erodoto Le Storie III La Persia Milano Fondazione Lorenzo Valla-Mondadori Editore

Beck M ed 2014 A Companion to Plutarch Chichester BlackwellBriant P 1996 Histoire de lrsquo empire perse De Cyrus agrave Alexandre Paris FayardDesideri P 1995 ldquolaquoNon scriviamo storie ma viteraquo (Plut Alex 1 2) la formula

biografica di Plutarcordquo In Testis temporum Aspetti e problemi della storiografia antica 15-25 Pavia Universitagrave

mdashmdashmdash 2012 ldquolaquoNon scriviamo storie ma viteraquo (Plut Alex 1 2) la formula biografica di Plutarcordquo In Saggi su Plutarco e la sua fortuna ed A Casanova 219-27 Firenze Firenze University Press

Fuscagni S 2000 ldquoLe Vite parallele come genere letterario ovvero Plutarco uno storico e il suo genererdquo In I Generi Letterari in Plutarco (Atti de VIII Convegno plutarcheo Pisa 2-4 giugno 1999) ed I Gallo e C Moreschini 19-28 Napoli M DrsquoAuria

Gallo I e C Moreschini ed 2000 I generi letterari in Plutarco Atti del VIII Convegno plutarcheo Pisa 2-4 giugno 1999 Napoli M DrsquoAuria

Garvie A F 2009 Aeschylus Persae Oxford Oxford University PressGeiger J 2014 ldquoThe Project of the Parallel Lives Plutarchrsquo conception of

Biographyrdquo In A Companion to Plutarch ed Mark Beck 292-303 Chichester Wiley-Blackwekk

mdashmdashmdash 2000 ldquoPolitical Biography and the Art of Portraiture some Parallelsrdquo In I Generi Letterari in Plutarco (Atti de VIII Convegno plutarcheo Pisa 2-4 giugno 1999) ed I Gallo e C Moreschini 39-45 Napoli M DrsquoAuria

Hart J 1982 Herodotus and Greek History London-Camberra Croom HelmHumble N ed 2010 Plutarchrsquos Lives Parallelism and Purpose Swansea

Classical Press of WalesManfredini N e D P Orsi 1996 Plutarco Le Vite di Arato e di Artaserse

Milano Fondazione Lorenzo Valla-Mondadori EditorePeacuterez Jimeacutenez A 2000 ldquoRetrato literario y biografiacutea menor en el corpus

Plutarcheumrdquo In I Generi Letterari in Plutarco (Atti de VIII Convegno plutarcheo Pisa 2-4 giugno 1999) ed I Gallo e C Moreschini Napoli M DrsquoAuria 29-37

Perrin B 1975 Plutarchrsquos Lives Vol 9 Cambridge (MS) Harvard University Press-Leadership College London

255

Maria de Faacutetima Sousa e Silva

Saacutenchez Hernaacutendez J P e M Gonzaacutelez Gonzaacutelez 2009 Plutarco Vidas paralelas Vol 7 Madrid Gredos

Silva M F 2005 Eacutesquilo o primeiro dramaturgo europeu Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra

Sores C 2007 ldquoRules for a good description theory and practice in the Life of Artaxerxes (sectsect1-19)rdquo Hermathena 182 86-89

Stadter P A 2016 Plutarch and his Roman Readers Oxford Oxford University Press

mdashmdashmdash 1992 Plutarch and the Historical Tradition London- New York RoutledgeWolff E 1964 ldquoDas Weib des Masistesrdquo Hermes 92 51-81

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

257

Nuno Simotildees Rodrigues

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas1

(Peri Basilissas Regarding the political importance of five Hellenistic queens)

Nuno Simotildees Rodrigues(nonniusflulpt ORCID 0000-0001-6109-4096)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras CEC e CH-ULisboa Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UC

Resumo - Este ensaio visa refletir sobre o papel da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera do poder a partir do estudo de cinco ca-sos Oliacutempia do Epiro Laoacutedice I da Siacuteria Berenice I do Egito Arsiacutenoe II do Egito e Cleoacutepatra VII do Egito

Palavras-chave Oliacutempia do Epiro Laoacutedice I da Siacuteria Berenice I do Egito Arsiacutenoe II do Egito Cleoacutepatra VII do Egito

Abstract ndash This essay aims to think about womenrsquos role in Hellenistic times and society taking the sphere of power as specific context through five case-studies Olympias of Epirus Laodice I of Syria Berenice I of Egypt Arsinoe II of Egypt and Cleopatra VII of Egypt

Keywords Olympias of Epirus Laodice I of Syria Berenice I of Egypt Arsinoe II of Egypt Cleopatra VII of Egypt

Durante o periacuteodo heleniacutestico as figuras femininas ganham um lugar na literatura grega designadamente na historiografia que ateacute entatildeo lhes estivera se natildeo vedado pelo menos bastante condicionado Isso dever-se-aacute muito provavel-mente ao facto de tambeacutem no processo e vivecircncia histoacutericos as mulheres terem conquistado um espaccedilo de accedilatildeo que ateacute entatildeo lhes era estranho Natildeo temos obviamente a veleidade de pensar que a mulher grega comum teraacute alcanccedilado nessa eacutepoca um lugar de que fora ateacute entatildeo constantemente afastada Isso seria demasiado anacroacutenico Mas parece-nos evidente que as rainhas heleniacutesticas em particular enquanto membros das elites surgem nas fontes da eacutepoca com um protagonismo poliacutetico que jamais alguma mulher grega conhecera seja ele negativo ou positivo Vejamos alguns exemplos

1 Oliacutempia do Epiro

O primeiro caso emblemaacutetico desta laquonovaraquo realidade e forma de olhar o feminino eacute Oliacutempia a matildee de Alexandre da Macedoacutenia Esta princesa do Epiro

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013 e do projeto UIDELT001962013

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_14

258

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

viveu entre c 373 e 316 a C Muito provavelmente a filha do rei Neoptoacutelemo da Moloacutessia nasceu com o nome de Poliacutexena tendo sido renomeada Oliacutempia por Filipe da Macedoacutenia depois que ela lhe deu um filho varatildeo o que coincidiu com a vitoacuteria dos cavalos do marido nos Jogos Oliacutempicos2 Este casamento aconteceu em 359 aC tendo-se Oliacutempia separado do soberano macedoacutenio em 337 aC depois de ter dado agrave luz Alexandre e Cleoacutepatra e na sequecircncia de uma seacuterie de alegadas infidelidades conjugais por parte do marido Oliacutempia autoexilou-se entatildeo no Epiro com o filho Alexandre ao mesmo tempo que Filipe celebrava um novo casamento desta vez com uma mulher da nobreza macedoacutenica igualmente chamada Cleoacutepatra Por detraacutes da atitude da rainha e do filho dela deveraacute ter estado muito por certo o processo de sucessatildeo do trono que os vaacuterios casamentos de Filipe determinavam e respetivas descendecircncias almejavam Apoacutes o assassiacutenio de Filipe em 336 aC que para alguns natildeo teraacute sido estranho a Oliacutempia3 a basilissa encarregou-se de eliminar a sua rival Cleoacutepatra bem como os familiares dela mais influentes e regressou ao reino do marido4 Depois de Alexandre ter partido para o Oriente a regecircncia da Macedoacutenia foi assumida por Antiacutepatro mas Oliacutempia manteve-se influente na corte e consequentemente na poliacutetica do reino Enquanto Oliacutempia poreacutem representava na Macedoacutenia uma faccedilatildeo estrangeira Antiacutepatro e a sua famiacutelia traduziam um partido autoacutectone cuja oposiccedilatildeo aos interesses da matildee de Alexandre a julgar pelas cartas trocadas entre o general e Oliacutempia ia crescendo significativamente5 Entre os argumentos que orientavam o partido macedoacutenico incluiacutea-se a ideia de que o controlo feminino dos destinos poliacuteticos do reino soacute poderia ser prejudicial para o Estado Essa oposiccedilatildeo levou a que em 331 aC Oliacutempia retornasse ao Epiro onde a filha Cleoacutepatra era entatildeo a regente Juntas constituiacuteram ali um partido de oposiccedilatildeo ao governo de Antiacutepatro o qual era entatildeo coadjuvado pelo seu filho Cassandro

Em 323 aC contudo a morte de Alexandre em Babiloacutenia provocou uma luta de poder sem precedentes entre a nobreza macedoacutenica Entre as faccedilotildees em confronto encontrava-se a da proacutepria Oliacutempia cujo peso era tatildeo grande quanto o de qualquer um dos diaacutedocos Enquanto os generais do rei dividiram entre si o territoacuterio que se estendia da Greacutecia agrave Iacutendia e ao Egito o trono da Macedoacutenia foi atribuiacutedo a um filho de Alexandre e de uma princesa da Sogdiana chamada Roxana6 Tratava-se de um herdeiro mesticcedilo que cumpria um dos projetos do filho de Oliacutempia a miscigenaccedilatildeo entre orientais e europeus Mas era essa

2 Plu Alex 2 Moralia 401b Sobre os vaacuterios nomes de Oliacutempia ver Macurdy 1985 24 Miroacuten 2002 1617 Carney 2006 15-17

3 Sobre esta questatildeo ver Arist Pol 1311b4 Sobre o tiacutetulo de basilissa ver Macurdy 1985 85 Em parte eacute o que podemos deduzir de passos como Plu Alex 278 e Gell 134 nos quais

lemos sobre as cartas trocadas entre matildee e filho Ver nota 206 Waterfield 2011

259

Nuno Simotildees Rodrigues

mesma caracteriacutestica que fazia crescer focos de oposiccedilatildeo entre os sectores greco-macedoacutenicos mais conservadores pelo que se nomeou um co-rei Filipe Arrideu meio-irmatildeo de Alexandre Sendo ambos os reis ainda crianccedilas Antiacutepatro manteve a regecircncia do paiacutes

Em 319 aC os novos reis chegaram agrave Macedoacutenia e pouco depois morria o regente Foi contudo Poliperconte e natildeo o filho de Antiacutepatro Cassandro quem lhe sucedeu na regecircncia Perante a resistecircncia de Cassandro a essa escolha Poliperconte solicitou a ajuda de Oliacutempia fazendo-a regressar tambeacutem agrave Macedoacutenia Esta atitude do novo regente eacute relevante do valor poliacutetico que a matildee de Alexandre angariara entre os Macedoacutenios e natildeo soacute Cassandro pelo seu lado encontrou apoio em Aacutedea Euriacutedice a mulher de Filipe Arrideu Inteirando-se da situaccedilatildeo Oliacutempia fez-se acompanhar de um exeacutercito com o qual defrontou o de Aacutedea Euriacutedice O efetivo confronto beacutelico todavia nunca aconteceu visto que os homens de Aacutedea se renderam e colocaram-se ao lado de Oliacutempia aparentemente impressionados pela majestade dela O testemunho de Duacuteris daacute conta de duas mulheres que aparecem no campo de batalha equipadas com as armas que melhor dominavam Aacutedea Euriacutedice envergando uma armadura macedoacutenica visto que havia sido militarmente treinada enquanto Oliacutempia surgia como uma meacutenade avanccedilando agrave frente do seu exeacutercito tocando uma flauta dionisiacuteaca7 Como salienta D Miroacuten talvez aqueles soldados simplesmente natildeo estivessem preparados para lidar com a chefia de uma mulher que se vestia laquoagrave homemraquo como se fosse uma amazona8 Mas natildeo deixa de ser curiosa a adesatildeo a uma outra que representa a desmesura dionisiacuteaca Parece-nos evidente que estamos no domiacutenio da historiografia pateacutetica um estilo de texto historiograacutefico que se rege pela presenccedila de categorias associadas a outros estilos poeacuteticos como o traacutegico ou temas em que predominam as emoccedilotildees dos intervenientes

Tendo ganhado este confronto Oliacutempia tratou de eliminar imediatamente a ameaccedila que Filipe Arrideu e Aacutedea Euriacutedice representavam para o exerciacutecio do seu poder Nesse contexto foram mesmo executados vaacuterios dos nobres macedoacutenios que representavam oposiccedilatildeo a Oliacutempia Talvez tenha sido essa atitude que a fez perder apoios entre os Macedoacutenios e aumentar os de Cassandro pelo que a situaccedilatildeo poliacutetica de Oliacutempia no territoacuterio agravou-se Em 317 aC a rainha retirou-se para Pidna juntamente com a sua corte em que se incluiacuteam Roxana e o filho dela a enteada Tessalonica a princesa epirota Deidamia aleacutem de parentes e vaacuterios amigos9 Ao fim de um longo periacuteodo de cerco e de

7 Ath 13560 et sq Sendo Aacutedea Euriacutedice descendente das aristocracias iliacutericas fora educada por sua matildee na tradiccedilatildeo das artes militares tal como acontecia com as mulheres da regiatildeo e o que era estranho ao resto da Greacutecia Ver Miroacuten 2002 26 Carney 2006 16 44 72-76 84-85 87 96-97 126-27 129 136

8 Miroacuten 2002 279 Miroacuten 2002 28

260

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

muitos desaires num eventual processo de ajuda Oliacutempia reconheceu a derrota e entregou-se a Cassandro acreditando que teria direito a viver10 Mas depois de um julgamento em que nem sequer esteve presente Oliacutempia foi condenada agrave morte O processo de execuccedilatildeo da rainha tambeacutem natildeo foi paciacutefico e apenas quando recorreu aos familiares das viacutetimas de Oliacutempia Cassandro conseguiu a execuccedilatildeo da matildee de Alexandre Magno11

Eacute em Diodoro Siacuteculo autor contemporacircneo de Augusto e em Plutarco que viveu na transiccedilatildeo do seacuteculo I para o seacuteculo II que encontramos as principais referecircncias a Oliacutempia do Epiro Mas apesar de relativamente tardios no que diz respeito agrave proximidade cronoloacutegica com a personagem em causa Diodoro e Plutarco deveratildeo refletir uma tradiccedilatildeo que teraacute tambeacutem dado origem agraves fontes em que radicam as suas informaccedilotildees Muitos dos elementos a que estes dois autores gregos recorrem para compor a figura de Oliacutempia coincidem na toacutenica que derivaraacute natildeo apenas da exatidatildeo da laquoverdade histoacutericaraquo mas tambeacutem de uma laquoideiaraquo de Oliacutempia que se teraacute construiacutedo na historiografia claacutessica e que foi sucessivamente retransmitida

A figura da laquomatildeeraquo domina o caraacutecter desta mulher De facto em grande parte ela existe apenas pela relaccedilatildeo com o filho Alexandre Apesar disso eacute inegaacutevel que Oliacutempia ganha por momentos direito a um protagonismo autoacutenomo designadamente no que diz respeito agrave luta que enceta pelo domiacutenio do reino macedoacutenico Ao que parece no Epiro as mulheres gozavam de uma liberdade relativamente maior do que acontecia nas cidades gregas do Sul ou ateacute mesmo na Macedoacutenia e o papel das rainhas-matildees como mostra o caso de Oliacutempia aponta para essa realidade12 Estar-se-aacute assim em consonacircncia com o que acontecia no Oriente Muito provavelmente Aiacute era comum o soberano ser sucedido de uma forma consuetudinaacuteria pelo filho varatildeo mais velho Mas nem sempre isso acontecia de forma paciacutefica Muitas vezes os atos de poligamia ou o repuacutedio de uma rainha levavam a que os seus filhos fossem preteridos em favor dos descendentes de uma segunda ou terceira mulher a quem o rei se unisse Criavam-se assim as condiccedilotildees para uma luta de sucessatildeo na qual o papel das rainhas-matildees se revelava essencial De facto a provaacute-lo encontramos o caso de Ahatmilku rainha de Ugarit que chefiou uma luta para que apoacutes a morte do rei Niquemepa seu marido lhe sucedesse um filho seu o da rainha hitita Puduhepa esposa de Ḫattušili III o de Tii e Nefertiti no Egito os de Haguite e Betsabeacute que apoacutes a morte de David defenderam cada qual os seus interesses nas pessoas dos seus filhos ambos candidatos ao trono

10 D S 1949-5111 Just 1469-11 Uma siacutentese da biografia de Oliacutempia pode ser lida em Macurdy 1985

22-48 e em Carney 2000 114-52 Carney 2006 8412 Na verdade jaacute Euriacutedice a matildee de Filipe tinha agido de uma forma pouco normal para o

que era haacutebito no contexto em causa

261

Nuno Simotildees Rodrigues

de Israel o exemplo de Maaca matildee do rei Abias13 ou ainda os de Neuacutesta matildee de Joiaquim14 Samuramat rainha da Assiacuteria e matildee de Adad-Nirari Naquirsquoa-Zakuto outra rainha assiacuteria matildee de Assaradatildeo Adad-Guppi rainha babiloacutenia matildee de Naboacutenido e Atossa da Peacutersia filha de Ciro esposa de Dario e matildee de Xerxes15 Um conjunto de mulheres que em certa medida intervieram e controlaram mesmo a poliacutetica do Proacuteximo Oriente Antigo do seacuteculo XIII ao V aC16 Alguns destes casos satildeo mesmo testemunhados pelas fontes gregas nomeadamente por Heroacutedoto cujas rainhas baacuterbaras satildeo exemplo de praacuteticas desta natureza17 Este quadro permite-nos aproximar a realidade da Macedoacutenia do seacuteculo IV aC do que ocorrera jaacute antes nos territoacuterios orientais

Por outro lado o facto de Oliacutempia reclamar uma ascendecircncia miacutetica eacute sintoma de uma importacircncia que se deseja acentuar ainda que isso possa ser uma construccedilatildeo historiograacutefica feita a posteriori Ao reclamar Teacutetis como sua antepassada Oliacutempia tornava-se semelhante agrave matildee de Aquiles com quem por sua vez o filho Alexandre fazia questatildeo de se identificar (eg Plu Alex 57)

Quando comparado com o que conhecemos da restante Greacutecia este elemento surge como uma peculiaridade mas outra caracteriacutestica desta rainha da Macedoacutenia eacute o facto de ser laquoestrangeiraraquo Tanto o Epiro como a Macedoacutenia pertenciam ao universo comum da Heacutelade apesar das diferenccedilas que os separavam e das que os afastavam das regiotildees gregas do Sul balcacircnico ou da Aacutesia Menor Mas a unidade linguiacutestica era uma realidade entre outras a ter em conta e tanto os Epirotas como os Macedoacutenios se consideravam membros dessa koine que formava o Mundo Heleniacutestico Ainda assim em relaccedilatildeo agrave Macedoacutenia o Epiro era tido como uma regiatildeo estrangeira com costumes distintos o bastante para se assinalar a diferenccedila A posiccedilatildeo social e a funccedilatildeo poliacutetica das mulheres na comunidade seriam categorias atraveacutes das quais se marcariam tais diferenccedilas levando Alexandre a afirmar que a matildee tinha escolhido bem ao colocar-se ao lado da faccedilatildeo que se refugiara no Epiro visto que laquoos Macedoacutenios jamais tolerariam ser governados por uma mulherraquo18

Aleacutem da afirmaccedilatildeo expliacutecita do caraacutecter estrangeiro de Oliacutempia outros elementos haacute que nos historiadores antigos permitem a definiccedilatildeo da personali-dade da rainha como alheia ao universo heleacutenico em geral Consideramos que entre esses elementos estaacute o caraacutecter politicamente emancipado que fornece as coordenadas principais do retrato da matildee de Alexandre

13 2Cr 1121-2214 2Rs 248-1615 Hdt 72316 Sobre esta questatildeo vide Tavares 1998 15-28 Ben-Barak 1987 30-52 Andreasen 1983

186-9017 Ver Amaral 1994 Agradecemos agraves nossas colegas Doutora Carmen Leal Soares e Doutora

Ana Luacutecia Amaral Curado as sugestotildees que deram para esta parte do nosso estudo18 Apud Miroacuten 2002 24 cf D S 1911

262

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

A atividade e iniciativa poliacuteticas da rainha surgem em quase todos os textos antigos que a mencionam As manobras que leva a cabo para se apropriar do poder e as forccedilas cuja chefia assume satildeo disso evidecircncia19 A atividade epistolar a ela associada aponta inclusive nesse sentido20 Eacute tambeacutem enquanto rainha-matildee que grande parte da sua imagem poliacutetica se define Qual sombra por detraacutes de Alexandre Oliacutempia manobra forccedilas e projeta objetivos21 As suas atitudes poliacuteti-cas revelam-se fundamentais no contexto em causa e Oliacutempia toma decisotildees que fatalmente condicionaratildeo a sua imagem A crueldade que demonstra ter ao aprisionar Filipe e Euriacutedice e as execuccedilotildees que daiacute decorrem contribuem para definir o caraacutecter da rainha condicionando a sua imagem histoacuterica Justifica-se assim a sua morte ingloacuteria se natildeo mesmo indigna como um castigo pelas crueldades e ateacute certo ponto injusticcedilas que demonstrou para com os seus ad-versaacuterios poliacuteticos22 Esta acaba por ser uma imagem retoricamente definida pela ideia de crimecastigo ou em termos comparatistas com a poeacutetica do traacutegico hybrisnemesis Tais accedilotildees inscrevem-se num quadro de categorias cuja evocaccedilatildeo literaacuterio-historiograacutefica estava em voga desde o seacuteculo V aC e em particular nos dois primeiros seacuteculos do Impeacuterio em que determinadas caracteriacutesticas para uma representaccedilatildeo positiva ou negativa da personalidade que se pretendia construir eram particularmente evidenciadas Neste caso concreto o retrato de Oliacutempia passa por um crivo em grande parte de influecircncia estoica em que a ex-ibiccedilatildeo do furor por exemplo em nada contribui para a sua dignificaccedilatildeo enquanto femina politica23 Aliaacutes esta mesma ideia eacute por si soacute pejorativa no contexto em causa Esse furor contudo contrasta com a sensatez de uma resposta iroacutenica como a que podemos ler em Aulo Geacutelio e em Plutarco como Alexandre tinha escrito uma carta agrave matildee em que se autointitulava filho de Zeus Aacutemon a rainha ter-lhe-aacute respondido laquoPeccedilo-te filho que te cales e que natildeo me difames ou me acuses perante Hera pois por certo ela vingar-se-aacute de mim se continuares a

19 Nep Eum 186 D S 1911 49-50 Hyp Eux 31-3620 Nep Eum 186 D S 1911 49-50 Gell 134 Plu Alex 78 39 Curt 7136-40 Ath

14659f-660a A relaccedilatildeo de Oliacutempia com a epistolografia eacute uma constante assinalada por quase todos os autores que a ela se referem o que parece indicar a sua real existecircncia e importacircncia apesar da possibilidade de as cartas citadas nas fontes conhecidas serem apoacutecrifas Tendo-se dedicado a escrever cartas Oliacutempia demonstra natildeo soacute ser uma personalidade de interesses poliacuteticos definidos como tambeacutem eventualmente dominar a escrita o que natildeo seria vulgar para uma mulher na eacutepoca De igual modo uma ceacutelebre resposta dada a Alexandre numa carta exemplifica a sua inteligecircncia poliacutetica cf Miroacuten 2002 36-37 59

21 Plu Alex 39 Cf a construccedilatildeo historiograacutefica da figura de Agripina Menor Sobre esta questatildeo ver Girod 2015 esp 207-28

22 D S 1911 A condenaccedilatildeo de Oliacutempia numa assembleia in absentia contribui para essa inglorificaccedilatildeo D S 1951 Natildeo eacute de excluir evidentemente a hipoacutetese de existir algum exagero retoacuterico nas descriccedilotildees das crueldades de Oliacutempia cujo objectivo seraacute o de construir intencio-nalmente uma determinada imagem cf Paus 877

23 Por exemplo Curt 7136-40 Cf Pimentel 1993

263

Nuno Simotildees Rodrigues

admitir nas tuas cartas que sou amante do seu maridoraquo24 Na verdade estamos perante uma suave mas seacuteria admoestaccedilatildeo poliacutetica que natildeo deixa de ser uma autoproclamaccedilatildeo

Por outro lado eacute inegaacutevel que Oliacutempia assume as suas responsabilidades desejando um julgamento justo para todo o seu percurso A justiccedila natildeo eacute mesmo alheia ao seu caraacutecter como podemos deduzir do passo de Plutarco em que a rainha reconhece as qualidades de uma rival nos amores com Filipe25 Neste sen-tido sugere-se tambeacutem que seria capaz de fazer mudar a opiniatildeo da Macedoacutenia que ao ouvi-la em assembleia deduziria a sua importacircncia poliacutetica natildeo soacute pela associaccedilatildeo a Alexandre e a Filipe como tambeacutem pelas suas capacidades oratoacuterias e retoacutericas A composiccedilatildeo laquovirilizadaraquo de Oliacutempia a que estas conceccedilotildees dizem respeito ganha maior consistecircncia com a descriccedilatildeo da sua presenccedila em campo de batalha preparada para o confronto com a rival Aacutedea Euriacutedice Analisadas em pormenor estas referecircncias indicam que Aacutedea Euriacutedice era ainda mais laquomascu-linizadaraquo do que Oliacutempia mas a princesa epirota natildeo deixa por isso de estar agrave frente de um exeacutercito acabando mesmo por aliciar os soldados adversaacuterios para o seu lado dado o carisma que tinha enquanto rainha da Macedoacutenia Este aspeto confirma a laquovirilidaderaquo de Oliacutempia uma vez que tais periacutecias e competecircncias eram fundamentalmente masculinas26 O fator confere-lhe tambeacutem uma digni-dade que acaba por afastar os que estavam encarregados da sua execuccedilatildeo o que em termos literaacuterios eacute significativo pois este seu caraacutecter nobre confere agrave matildee de Alexandre uma importacircncia suplementar De igual modo a morte de Oliacutempia eacute descrita por Diodoro obedecendo a essa mesma laquovirilidaderaquo visto que a rainha morreu sem proferir qualquer tipo de laquosuacuteplica ignoacutebil ou femininaraquo ao mesmo tempo que alcanccedilava a laquomaior dignidade das mulheres do seu temporaquo27

Esta composiccedilatildeo masculinizada eacute tambeacutem percetiacutevel no retrato familiar que dela daacute conta esse mesmo Diodoro ao apresentaacute-la como sempre ligada a laquoum grande homemraquo28 Posteriormente reencontraremos figuras em que essa imageacutetica se repete29

Faz tambeacutem parte desta composiccedilatildeo o espiacuterito religioso da rainha apesar dos traccedilos comuns agrave comunidade heleacutenica que nele possamos encontrar Neste domiacutenio o passo que se conserva nos escritos de Ateneu no qual a rainha defronta

24 Gell 134 Plu Moralia 141c25 Plu Moralia 141b-c26 D S 1951 Natildeo seraacute de excluir tambeacutem alguma associaccedilatildeo a Atena deusa da guerra Ou-

tras mulheres como Fuacutelvia e Agripina Maior foram representadas em situaccedilotildees semelhantes Vide eg Kaplan 1979 et Delia 1991

27 D S 195128 D S 195129 Uma vez mais este eacute o caso de Agripina Menor sempre apresentada como matildee irmatilde

mulher sobrinha e neta de imperadores independentemente das suas capacidades e vocaccedilatildeo poliacuteticas

264

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

os exeacutercitos de Aacutedea Euriacutedice eacute talvez dos mais emblemaacuteticos Quando nele se conta que Oliacutempia ia vestida como uma meacutenade avanccedilando ao som de uma flauta dionisiacuteaca enquanto Aacutedea Euriacutedice ia de amazona30 o texto fornece material para a definiccedilatildeo religiosa da matildee de Alexandre caracterizando-a como uma bacante que surge num campo de batalha Satildeo vaacuterios os documentos que apontam para a especial predileccedilatildeo da rainha pelos cultos misteacutericos designadamente pelos de Dioniso e Orfeu Sabemos por exemplo que teraacute sido quando se iniciava nos misteacuterios de Samotraacutecia que teraacute conhecido Filipe31 Este apontamento define Oliacutempia como algueacutem que possui uma aura religiosa algo marginal apesar de no seacuteculo IV aC na Greacutecia o dionisismo jaacute natildeo sofrer da estigmatizaccedilatildeo de que padecera Nesta caracterizaccedilatildeo Oliacutempia surge proacutexima de figuras importantes da literatura grega tambeacutem elas de certo modo marginalizadas como a personagem feminina central das Bacantes de Euriacutepides Agave Associado a esse caraacutecter misteacuterico vem um outro natildeo menos marcante e igualmente catalogador o comportamento associado agrave imagem da feiticeira que eacute um dos paracircmetros e toacutepicos mais recorrentes da definiccedilatildeo pejorativa do feminino na Antiguidade De facto Oliacutempia foi acusada de ter usado faacutermacos para atentar contra a vida de um dos filhos de Filipe32 Tambeacutem aqui Oliacutempia reencontra a sua natureza marginal desta vez proacutexima de personagens como Medeia ou Circe ou de divindades como Heacutecate que apesar do seu protagonismo e da maior ou menor simpatia que possamos nutrir por elas natildeo deixam de evocar uma alteridade negativa do feminino na cultura grega Para a caracterizaccedilatildeo de Oliacutempia como personalidade laquoestranharaquo porque laquoestrangeiraraquo contribui tambeacutem a jaacute aludida lenda segundo a qual se teria deitado com Zeus metamorfoseado em serpente com o que a rainha angaria uma morfologia divina e ao mesmo tempo perigosa dado o seu caraacutecter de fronteiracharneira A associaccedilatildeo a serpentes confirma aliaacutes tudo o que referimos33

Com Oliacutempia estamos sem duacutevida longe da conceccedilatildeo da mulher claacutessica ateniense silenciosa e recolhida no gineceu ainda que proveniente das elites revelando-se um importante grau de emancipaccedilatildeo talvez associado a uma certa pujanccedila econoacutemica que se traduz na influecircncia puacuteblica destas figuras34

2 Laoacutedice I da Siacuteria

Outra personalidade em quem eacute possiacutevel detetar este mesmo tipo de caracterizaccedilatildeo eacute a rainha Laoacutedice I da Siacuteria Laoacutedice I era mulher do rei Antiacuteoco

30 Ath 13560f D S 191131 Plu Alex 232 Miroacuten 2002 19 e fontes citadas apud Carney 2006 92 105 17933 Plu Alex 2-334 Miroacuten 2002 13 Na verdade natildeo sendo ateniense e detentora do estatuto de rainha a sua

condiccedilatildeo e o seu comportamento poliacutetico-social seria sempre distinto daquele da esmagadora maioria das atenienses evidentemente

265

Nuno Simotildees Rodrigues

II soberano da dinastia selecircucida Eacute possiacutevel que ambos fossem irmatildeos mas as fontes natildeo satildeo unacircnimes quanto a essa eventual relaccedilatildeo de parentesco35 Outra possibilidade eacute a de que fossem primos diretos Desconhecem-se as datas exatas do nascimento e do casamento de Laoacutedice I mas eacute verosiacutemil que se tenha casado em 267 aC36 Como tal eacute sensato pensarmos que esta princesa selecircucida teraacute nascido na deacutecada de 85 a 75 do seacuteculo III aC

Em 252 aC na sequecircncia de um tratado de paz estabelecido com o rei do Egito Ptolemeu II Filadelfo Antiacuteoco recebeu como garantia a filha daquele Be-renice com quem se casou Como salienta G Macurdy este facto deveraacute significar que Antiacuteoco II se divorciou da esposa anterior afastando-a assim por razotildees de natureza poliacutetica A accedilatildeo significava tambeacutem que doravante os filhos de Berenice ganhavam a possibilidade de herdar o trono selecircucida uma vez que a esposa an-terior havia sido relegada para segundo plano Efetivamente esta nova uniatildeo era de extrema importacircncia para o equiliacutebrio das potecircncias que se haviam constituiacutedo no Proacuteximo Oriente apoacutes a morte de Alexandre Magno Pelo seu lado Laoacutedice era recompensada com propriedades na regiatildeo da Babiloacutenia e de Borsippa como recorda uma inscriccedilatildeo cuneiforme da eacutepoca ao mesmo tempo que se retirava para Eacutefeso na Aacutesia Menor juntamente com os seus filhos Seleuco e Antiacuteoco III37

Mais tarde poreacutem a conjuntura poliacutetica voltou a inverter-se e sabemos que Berenice caiu na desgraccedila do rei que recuperou a proximidade com Laoacutedice Aliaacutes foi o seu filho Seleuco quem acabou por ser nomeado herdeiro de Antiacuteoco II em 247 aC Surgiu entatildeo o rumor de que Laoacutedice havia envenenado o soberano receando que ele desejasse voltar atraacutes e assim impedir que o filho de ambos reinasse na Siacuteria Mas natildeo eacute certo que isso tenha de facto acontecido38

Laoacutedice recuperou assim o seu estatuto de rainha e recebeu a corregecircncia do reino uma vez que o filho natildeo atingira ainda os vinte anos Mas a permanecircncia de Berenice e do filho dela em territoacuterio selecircucida era razatildeo mais do que suficiente para provocar inseguranccedila e incertezas O pai de Berenice havia entatildeo morrido e no Egito subira ao trono o irmatildeo dela Ptolemeu III Para evitar a possibilidade de Ptolemeu angariar apoios agrave custa da presenccedila da irmatilde na Siacuteria e vice-versa Laoacutedice decidiu eliminar tanto a rival como o enteado descendente direto de Antiacuteoco II

Outro episoacutedio associado agrave pujanccedila poliacutetica de Laoacutedice I da Siacuteria eacute contado por Filarco o qual eacute citado por Ateneu Segundo aquele autor Laacuteodice tinha uma aia de nome Daacutenae filha de uma hetera e disciacutepula de Epicuro que se havia enamorado de um militar chamado Soacutefron Quando Laoacutedice estava em

35 Polyaen 850 Porph FHG 370736 Macurdy 1985 8337 Ver referecircncias em Macurdy 1985 83-8438 Cf App Syr 65 Plin Nat 753 Hier Expl Dan 96 V Max 910 Polyaen 850 Macurdy

1985 84 sugere que esta seja a versatildeo egiacutepcia do acontecimento

266

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

Eacutefeso Soacutefron era a maacutexima autoridade militar laacute instalada Mas a rainha de-posta suspeitava da falta de lealdade de Soacutefron pelo que ordenou que o homem se apresentasse perante ela Daacutenae estava presente na audiecircncia e como sabia que a sua senhora tencionava executar Soacutefron tentou ajudar o homem de quem gostava comunicando com ele atraveacutes de sinais Soacutefron percebeu o que se es-tava a armar e ajudado por Daacutenae conseguiu escapar da audiecircncia acabando por fugir e aliando-se a Ptolemeu III Pelo seu lado tendo resistido a todos os interrogatoacuterios Daacutenae foi condenada por Laoacutedice a ser lanccedilada do alto de um rochedo Quando estava para ser arremessada do promontoacuterio a serva teria dito laquoNatildeo admira que os homens desprezem os deuses Salvei o meu amado que era para mim como um marido e eacute esta a recompensa que o ceacuteu me daacute Laoacutedice matou o homem que era seu marido e recebe toda esta gloacuteriaraquo39 O discurso de Daacutenae implica uma retoacuterica historiograacutefica de influecircncia mitograacutefica que natildeo era estranha agraves obras dos autores da eacutepoca mas acarreta tambeacutem uma imagem especiacutefica que pretendemos destacar O episoacutedio da aia de Laoacutedice sugere aliaacutes algo de romanesco natildeo sendo impossiacutevel que se trate precisamente disso de uma historieta inserida na narrativa da rainha com o objectivo de dar dela uma determinada impressatildeo40 Se a tradiccedilatildeo que reclamava a culpa do envenenamento de Antiacuteoco II para Laoacutedice associava tambeacutem a rainha ao assassiacutenio de Berenice do Egito e do seu filho a histoacuteria de Daacutenae recupera essa imagem e constroacutei a de uma rainha cruel que serve de braccedilo armado para a aplicaccedilatildeo dos caprichos divinos que fazem com que os Homens natildeo passem de joguetes Mas natildeo deixa de ser igualmente impressionante o sentido de justiccedila da rainha que natildeo hesita em castigar implacavelmente a traiccedilatildeo de uma amiga com a morte dela

Assim a atitude claramente poliacutetica leva a retratar Laoacutedice com a mesma forccedila de personalidade que haviacuteamos antes encontrado em Oliacutempia da Macedoacutenia Muitos dos historiadores antigos condenaram Laoacutedice pela sua crueldade enquanto outros ainda que poucos tenham preferido reconhecer nela a forccedila da necessidade pontual de afastar os rivais em defesa da proacutepria vida e da dos seus filhos41 Assim se justifica a eliminaccedilatildeo de Berenice e do seu herdeiro bem como a de Daacutenae Neste sentido tambeacutem Laoacutedice I da Siacuteria surge como uma femina politica de caraacutecter bem definido

Apesar de pouco mais sabermos acerca desta mulher um passo de Plutarco permite-nos deduzir que durante a guerra que opocircs os seus dois filhos mais tarde Laoacutedice se manteve ao lado do mais novo Antiacuteoco entatildeo com apenas catorze anos de idade contra o mais velho Seleuco42 Alguns autores sugerem que a intenccedilatildeo de

39 Ath 13593 FHG 133940 Este tipo de artifiacutecio estava em voga na eacutepoca como atesta Braun 193841 Macurdy 1985 85 Processo semelhante eacute o que encontramos eg na composiccedilatildeo da

figura de Messalina Sobre este caso ver Rodrigues 200342 Plu Mor 489a

267

Nuno Simotildees Rodrigues

Laoacutedice ao associar-se ao filho mais novo teraacute sido a de tentar precisamente controlar o jovem conseguindo desse modo manter-se mais proacutexima da poliacutetica do que aconteceria no caso de Seleuco subir ao trono Se assim foi tambeacutem Laoacutedice recorreu ao argumento da laquorainha-matildeeraquo para atingir os seus objetivos poliacuteticos Apiano refere que Laoacutedice foi morta por Ptolemeu III apesar de alguns historiadores colocarem o laquofactoraquo em duacutevida43 O certo eacute que o seu prestiacutegio na Antiguidade foi de tal modo grande que a partir dela vaacuterias rainhas receberam o seu nome44

3 Berenice I do Egito

Entre os Laacutegidas encontramos tambeacutem alguns nomes em que se reconhecem as caracteriacutesticas ateacute agora enunciadas O primeiro deles eacute Berenice I do Egito casada com Ptolemeu I Soacuteter em finais do seacuteculo IV aC Satildeo muitos e complexos os problemas historiograacuteficos colocados em torno desta rainha desde a data do seu nascimento tido por alguns no ano de 340 aC agrave relaccedilatildeo consanguiacutenea que teria ou natildeo com o marido Natildeo eacute nosso objectivo trataacute-los neste pequeno estudo45 Desejamos em vez disso salientar a atuaccedilatildeo poliacutetica da soberana Toda a prole de Berenice assumiu cargos importantes na poliacutetica do seu tempo Foi o filho dela que sucedeu a Ptolemeu I Soacuteter em 284 aC e natildeo o primogeacutenito deste nascido de outra princesa de nome Euriacutedice Isso mostra que a influecircncia de Berenice foi significativa e natildeo eacute de descartar a hipoacutetese de ela se ter feito uma vez mais nos bastidores da poliacutetica em que dominavam as rainhas-matildees Aleacutem disso o poeta Teoacutecrito testemunha a boa relaccedilatildeo que existia entre a rainha e o rei do Egito46 De igual modo a sua filha mais velha Arsiacutenoe II casou-se com o irmatildeo e tambeacutem ela veio a ser rainha do Egito Apesar de nunca se ter casado a terceira filha de Berenice chamada Filoacutetera recebeu altas honras dos irmatildeos Antiacutegona a quarta filha casou-se com Pirro em 298 aC e o seu filho Magas veio a ser rei de Cirene Como nota G Macurdy dificilmente estas alianccedilas se teriam feito se Berenice natildeo fosse tida como um elemento politicamente importante na casa real laacutegida47 Efetivamente Teoacutecrito elogia a sabedoria de Berenice e Plutarco refere-se mesmo ao poder intelectual da rainha destacando-a no quadro poliacutetico coevo Eacute tambeacutem isso que explica o facto de Berenice I ter recebido juntamente com o marido o tiacutetulo de laquoSoacuteterraquo ou laquoSalvadoraraquo laquoA que salvaraquo ou laquoA que protegeraquo e com ele alcanccedilado tambeacutem a apoteose com direito a um templo proacuteprio na cidade de Alexandria o Bereniceum48

43 App Syr 65 cf Macurdy 1985 8644 Sobre esta rainha ver ainda Ogden 1999 119-2445 Ver por eg Macurdy 1985 104-946 Theoc 1747 Macurdy 1985 106-10748 Ath 5202D Ogden 1999 61 68-73 215-17

268

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

4 Arsiacutenoe II do Egito

Mas entre os Laacutegidas outras mulheres se destacam como figuras de proa no contexto poliacutetico do seu tempo A jaacute mencionada Arsiacutenoe II eacute outro exemplo a ser considerado Tambeacutem esta nascida em 315 aC era uma mulher de sangue macedoacutenico visto que era irmatilde daquele que veio a ser seu marido Ptolemeu II Filadelfo do Egito Filha de Berenice I e de Ptolemeu I Soacuteter Arsiacutenoe II comeccedilou a sua carreira poliacutetica ao casar-se com o rei da Traacutecia Lisiacutemaco um dos diaacutedocos Aiacute a princesa laacutegida ter-se-aacute envolvido numa histoacuteria de contornos romacircnticos como sugerem alguns historiadores em que se percebem elementos do tema de Fedra e Hipoacutelito contudo verosiacutemil49 Seja como for ter-se-aacute criado e difundido a ideia de que a rainha da Traacutecia teria tentado envenenar o velho marido por se ter apaixonado pelo jovem filho dele Agaacutetocles Tal contexto teria granjeado a Arsiacutenoe uma fama pouco simpaacutetica de que o epiacuteteto laquoPeneacutelope de Lisiacutemacoraquo seria a expressatildeo mais iroacutenica50 As peripeacutecias que se contam na sequecircncia de tais atos poliacuteticos natildeo satildeo menos pejorativas para a rainha Uma das menos elogiosas narra como para escapar agraves tropas de Seleuco Arsiacutenoe teria ordenado que uma das criadas envergasse os seus vestidos para que desse modo a serva fosse confundida com a rainha e assim executada em vez de ela proacutepria51 Disfarccedilando-se de mendiga Arsiacutenoe conseguiu entatildeo embarcar e fugir para a Macedoacutenia52 Uma vez aiacute com a ajuda do meio-irmatildeo Ptolemeu Cerauno Arsiacutenoe veio a ser aclamada rainha do territoacuterio Mas a sua alegria durou pouco uma vez que Cerauno acabou por eliminar dois dos trecircs filhos da antiga rainha da Traacutecia ao mesmo tempo que o terceiro conseguia fugir para a Iliacuteria53 Muito provavelmente Arsiacutenoe apenas escapou agraves armas do irmatildeo porque este teraacute temido uma vinganccedila proveniente de Alexandria54

Depois da derrota de Ptolemeu Cerauno agraves matildeos dos Gauleses Arsiacutenoe fugiu para a Samotraacutecia e daiacute para o Egito Apesar de aclamada rainha entre os Macedoacutenios foi apenas no paiacutes do Nilo que esta laacutegida acabou por concretizar o exerciacutecio efetivo do poder poliacutetico cujo cliacutemax se verificou no facto de ter sido a primeira mulher macedoacutenia a receber a divinizaccedilatildeo ainda em vida55 A sua conquista do poder foi paulatina e natildeo sem desaires pessoais mas eficaz Comeccedilou por afastar a enteada e cunhada do poder e entre 276 e 275 aC casou-se com o irmatildeo Ptolemeu II Filadelfo Deste modo a dinastia laacutegida recuperava o costume da uniatildeo

49 Efetivamente a influecircncia de Euriacutepides parece ser grande na composiccedilatildeo deste episoacutedio Sobre a sua verosimilhanccedila ver Macurdy 1985 113 Ogden 1999 61

50 Cf Plu Dem 2551 A histoacuteria de Acerroacutenia em Tac Ann 145 tem contornos semelhantes aos desta narrativa52 Polyaen 85753 Just 1727-9 242-354 Macurdy 1985 11555 Ver documentos citados em Macurdy 1985 128-29 ver ainda Longega 1968 Carney 2013

269

Nuno Simotildees Rodrigues

fraternal praticada no Antigo Egito como expressa no mito de Iacutesis e Osiacuteris mas ateacute entatildeo inusitada entre Macedoacutenios e Gregos em geral56 Apenas hierogamias como a de Zeus e Hera57 davam conta dela correspondendo por certo a um fundamento ritual antigo A intenccedilatildeo teraacute sido claramente a apropriaccedilatildeo do poder ao mesmo tempo que se encetava uma forma de propaganda poliacutetica grega no Oriente ateacute entatildeo desconhecida que granjearia apoios populares e muito em especial das classes sacerdotais O ecircxito de tal manobra foi tal que ateacute mesmo Teoacutecrito motivado talvez pela necessidade de manter o patrociacutenio reacutegio ou pelo envolvimento no contexto poliacutetico de entatildeo elogia a uniatildeo incestuosa como uma reacuteplica da hierogamia grega mais conhecida58 Esta decisatildeo juntamente com a divinizaccedilatildeo em vida satildeo como eacute evidente a assunccedilatildeo de costumes orientais e para alguns historiadores o seu aproveitamento ter-se-aacute feito por iniciativa da proacutepria Arsiacutenoe59

Eacute hoje indiscutiacutevel que Arsiacutenoe II participou directa ou indiretamente no afastamento e eliminaccedilatildeo de adversaacuterios poliacuteticos Haacute contudo que natildeo olvidar a praacutetica da eacutepoca em que a eliminaccedilatildeo fiacutesica era um recurso habitual na administraccedilatildeo dos poderes De qualquer modo eacute significativo que Arsiacutenoe assuma esse papel o qual costumava ser mais facilmente atribuiacutedo a personalidades masculinas Na realidade na anaacutelise que temos vindo a expor verificamos um padratildeo de comportamento relativamente agraves mulheres sob estudo e respetivos contextos sociopoliacuteticos

Mas a partir de algumas fontes antigas eacute possiacutevel perceber tambeacutem que esta rainha laacutegida natildeo se limitou agraves intrigas de corte Efetivamente em 273 aC acompanhou o marido a Herooacutepolis numa campanha de inspeccedilatildeo dos mecanismos de defesa da fronteira egiacutepcia Outros documentos datildeo-na como instigadora de diretrizes poliacuteticas que vieram a ser aproveitadas pelo proacuteprio marido O recurso agrave sua imagem por parte de poetas como Teoacutecrito que para ela cultivaram formas de adulatio comprova tambeacutem a sua importacircncia Este conjunto de elementos permite portanto a inserccedilatildeo de Arsiacutenoe II no grupo das politicamente ativas rainhas heleniacutesticas60 Esta soberana faleceu em 270 aC

56 Macurdy 1985 117 nota que tanto na Macedoacutenia como na Greacutecia se tolerava a uniatildeo de irmatildeos natildeo uterinos o que natildeo era o caso de Arsiacutenoe e Ptolemeu II Filadelfo Theoc 12 5 chama a Arsiacutenoe laquotrecircs vezes esposaraquo

57 Il 14224-35358 Theoc 1459 Macurdy 1985 118 O que poderaacute ser discutiacutevel visto que a evidecircncia da utilidade poliacutetica

desta praacutetica eacute tatildeo grande que atribuiacute-la a Arsiacutenoe poderaacute natildeo passar de especulaccedilatildeo parcial60 Documentaccedilatildeo citada por Macurdy 1985 119 126-27 Uma siacutentese da atuaccedilatildeo poliacutetica

de Arsiacutenoe II pode ser lida nesta mesma obra 111-130 A este propoacutesito vale a pena citar Macurdy laquoArsinoe had beauty and intellect She appears to have been one of the greatest admi-nistrative women who have ever lived and she had all conceivable honors It is difficult to call her a good woman I believe that no record of a single good deed on her part has been handed down to us In her energy political foresight and utter unscrupulousness the Gods made her to match the men of her timeraquo (ibid 130) Ver tambeacutem Longega 1968 Ogden 1999 57-62 Carney 2013

270

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

5 Cleoacutepatra VII do Egito

Para finalizar este breve peacuteriplo pelas personalidades femininas que dominaram o periacuteodo heleniacutestico em termos poliacuteticos e que contribuiacuteram para uma nova perceccedilatildeo das mulheres na cultura grega condicionando desse modo a sua interpretaccedilatildeo ocidental citamos ainda o exemplo de Cleoacutepatra VII Filopator61 Esta figura foi por noacutes jaacute estudada sobretudo a partir de duas das principais fontes que acerca dela fornecem informaccedilotildees Flaacutevio Josefo e Plutarco62 Sendo estes dois autores centrais na caracterizaccedilatildeo da uacuteltima rainha dos Ptolemeus encontramos neles os elementos fundamentais que permitem o eixo principal na definiccedilatildeo desta mulher

Nascida em 69 aC Cleoacutepatra VII era uma das filhas de Ptolemeu XII Auletes Depois da morte deste em 51 aC sucedeu-lhe o filho Ptolemeu XIII ainda muito jovem que entretanto se casara com a irmatilde Cleoacutepatra segundo o costume que entatildeo se tinha jaacute instituiacutedo no Egito laacutegida O casamento dos dois irmatildeos contudo natildeo passou de uma alianccedila poliacutetica em que rapidamente se perceberam as forccedilas e interesses em confronto Em 48 aC Cleoacutepatra foi afastada do poder pelos partidaacuterios do irmatildeo mas Juacutelio Ceacutesar que na ocasiatildeo se encontrava no Egito na sequecircncia da guerra com Pompeio interveio no processo apoiando os interesses da rainha laacutegida No decurso das Guerras Alexandrinas que entatildeo eclodiram Ptolemeu XIII perdeu a vida e Cleoacutepatra assumiu o poder no Egito como legiacutetima herdeira dos Laacutegidas Para isso contudo desposou o mais novo dos seus irmatildeos Ptolemeu XIV

A relaccedilatildeo que teraacute desenvolvido com o general romano foi um dos grandes apoios que a rainha encontrou para a manutenccedilatildeo o seu poder A ideia de que Ceacutesar poderaacute ter sido o pai do primeiro filho de Cleoacutepatra reforccedila essa tese ainda que haja autores que ponham em causa tal paternidade63 Seja como for em 46 aC Cleoacutepatra seguiu Juacutelio Ceacutesar ateacute Roma acabando por regressar ao Egito apenas apoacutes o assassiacutenio do general romano Pouco depois morreu Ptole-meu XIV talvez envenenado pela proacutepria irmatilde64 Em 41 aC a rainha aliou-se a Marco Antoacutenio o oficial romano que representava os interesses de Ceacutesar e a proximidade entre ambos tornou-se de tal modo significativa que em 32 aC Octaacutevio declarou guerra agrave soberana do Egito tendo como objectivo evidente afastar definitivamente Antoacutenio das pretensotildees ao poder em Roma Agrave Urbe chegavam boatos de que a rainha greco-egiacutepcia se vangloriava de controlar os destinos do Capitoacutelio65 Os filhos que ela tivera do tribuno romano soacute ajudaram

61 Sobre as vaacuterias Cleopatras heleniacutesticas vide Macurdy 1937 7-18 Whitehorne 199462 Cf Rodrigues 1999 217-59 Rodrigues 2002 127-49 Rodrigues 2011 Rodrigues 2012

Rodrigues 201363 Vide eg Goldsworthy 2006 604-5 Goldsworthy 2010 220-2164 I AI 1589 Roller 2010 74-7565 Ver remissatildeo para fontes em Hughes-Hallet 1990 64-82 Walker e Higgs 2001 Jones 2006

271

Nuno Simotildees Rodrigues

Octaacutevio a formular as declaraccedilotildees de guerra O confronto das forccedilas em causa deu-se em Aacuteccio no ano 31 aC Antoacutenio e Cleoacutepatra foram derrotados e em 30 aC perante a possibilidade de se terem de humilhar a Octaviano e a Roma ambos optaram pelo suiciacutedio

Tambeacutem a histoacuteria de Cleoacutepatra VII estaacute repleta de pormenores que fa-vorecem o romanesco e o novelesco e que os historiadores devem usar com cautela66 Mas satildeo esses mesmos elementos que permitem em grande parte a construccedilatildeo de uma determinada imagem da uacuteltima rainha heleniacutestica e que a coloca na sequecircncia dos exemplos anteriormente citados Por outro lado apesar de quaisquer histoacuterias que se contem acerca de Cleoacutepatra VII eacute evidente que ela foi suficientemente importante para inquietar os Romanos e o seu Estado

De facto a construccedilatildeo de Cleoacutepatra como femina politica eacute o primeiro objectivo dos autores que acerca dela escreveram67 Para a concretizaccedilatildeo dessa imagem a Cleoacutepatra satildeo atribuiacutedas atitudes e opccedilotildees viris que a masculinizam e a fazem contrastar com as personagens femininas consideradas ideais de que Octaacutevia mulher de Antoacutenio eacute o paradigma bem como accedilotildees que no campo amoroso ultrapassam o limite da temperanccedila68 Essa definiccedilatildeo eacute conseguida graccedilas a caracteriacutesticas como o domiacutenio do poder e a ambiccedilatildeo ou por atributos que a transformam numa figura malquista maacute anfitriatilde traidora lasciva impiedosa mentirosa eroticamente ativa e sedutora tentando dominar o oculto atraveacutes da feiticcedilaria manifestando alguma loucura exibindo crueldade e assumindo-se mesmo como assassina69 Todas estas caracteriacutesticas satildeo percetiacuteveis nos autores que acerca dela escreveram ou deixaram registos Eacute mesmo evidente que muitas delas se aproximam do que analisaacutemos relativamente a Oliacutempia da Macedoacutenia uma das suas laquoantepassadasraquo O que equivale a dizer que a uacuteltima das laacutegidas eacute uma reediccedilatildeo da primeira das rainhas heleniacutesticas Isto eacute Cleoacutepatra VII Filopator completa um ciclo de imagens inaugurado pela matildee de Alexandre e que sem duacutevida alterou definitivamente a forma de olhar o feminino na cultura grega e por consequecircncia na cultura ocidental

Com efeito quando as Actas do julgamento que condenou agrave morte Maria Antonieta Arquiduquesa da Aacuteustria e Rainha de Franccedila se referiam agrave mulher comparaacutevel laquoagraves perversas rainhas da Antiguidaderaquo quem estaria no imaginaacuterio daqueles juiacutezes senatildeo mulheres como estas70

Ashton e Walker 200666 Hughes-Hallet 199067 Becher 196668 Rodrigues 2012 Rodrigues 201369 Cf Rodrigues 1999 217-59 Rodrigues 2002 127-49 Rodrigues 2011 Rodrigues 2012

Rodrigues 201370 Lever 2000 334

272

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

Em suma

Sendo o periacuteodo heleniacutestico o do encontro das culturas orientais e europeias favorecido ao niacutevel das elites e natildeo soacute pela rede de casamentos que entatildeo se estabeleceu eacute inevitaacutevel considerar que a ideia de alteridade ganhou espaccedilo consideraacutevel com essa convergecircncia71 Efetivamente no Proacuteximo Oriente Antigo encontramos elementos suficientes para que se estabeleccedila uma comparaccedilatildeo viaacutevel com esta nova forma de olhar a mulher que se define como laquoOutraraquo tanto pelo geacutenero a que pertence como pelo ambiente cultural em que germina Assinalaacutemos os casos das rainhas-matildees que encontraram um espaccedilo proacuteprio e omnipresente nas literaturas orientais antigas Mas podemos acrescentar outros modelos que poderatildeo ter surgido como referecircncias a autores como Josefo ao reconstruiacuterem a histoacuteria de uma soberana como Cleoacutepatra por exemplo Casos como os de Dalila Ataacutelia e Jezabel poderatildeo ter estado subjacentes agrave sua composiccedilatildeo Possivelmente trata-se de um produto da influecircncia da literatura e cultura orientais com as quais os Gregos passaram a ter a possibilidade de se familiarizarem Por outro lado para um grego a ideia de Cleoacutepatra como uma laquoreencarnaccedilatildeoraquo de outra lendaacuteria rainha oriental Ocircnfale como evoca Plutarco natildeo seria de todo despropositada72 Que outros modelos poderatildeo ter estado subjacentes agraves composiccedilotildees que assinalaacutemos Sugerimos paralelos com personagens da cultura grega como Heacutecate Medeia Circe e Fedra e parece-nos evidente que os Gregos olhariam para estas rainhas tendo estes e outros caracteres como referecircncias Comparaacute-las-iam a Peneacutelope figura presente mas discreta ou a Clitemnestra protoacutetipo da imagem feminina negativa73 Ou recorreriam mesmo agrave Histoacuteria e teriam como matrizes Safo ou Aspaacutesia Ao seu modo miacuteticas ou reais essas mulheres tinham ajudado a construir como por ela tinham sido laquoconstruiacutedasraquo uma determinada ideia de feminino Rejeitadas ou aceites como modelos de comportamento eacute no Helenismo que descobrimos a mulher que comeccedila a ser de facto autoacutenoma que se permite a conduzir destinos poliacuteticos Se as anteriores indicaram o caminho eacute com as rainhas heleniacutesticas que se concretiza a accedilatildeo e isso traduz uma mudanccedila social poliacutetica e mental que permitiu se natildeo os factos que natildeo negamos pelo menos a sua imagem e representaccedilatildeo Neste campo haveria que saber qual era de facto a verdadeira accedilatildeo da mulher ateniense no seacuteculo V por exemplo Seria mesmo como por vezes se pretende Por outro lado haacute que natildeo esquecer que a laquoHistoacuteria escrita pelos vencedoresraquo conduziu a uma anatematizaccedilatildeo do feminino

Eacute verdade que jaacute antes os textos gregos tinham dado a conhecer mulheres interventoras Jaacute referimos a obra de Heroacutedoto como caso em que surgem exemplos paradigmaacuteticos como Artemiacutesia e Toacutemiris Mas a novidade eacute que

71 A este propoacutesito recordemos as chamadas Bodas de Susa Plu Alex 36 37 70 Eum 172 Plu Ant 90 4 Jaacute Aspaacutesia o fora na biografia de Peacutericles Per 24973 Rodrigues 2010

273

Nuno Simotildees Rodrigues

as mulheres agora intervenientes na vida puacuteblica natildeo satildeo mais exclusivamente baacuterbaras Efetivamente a rainha heleniacutestica eacute grega de origem ou pelo menos falante de grego sendo esta a liacutengua de uma cultura essencialmente androcecircntrica A rainha heleniacutestica tornou-se contudo mais do que isso ao viver a sua experiecircncia no espaccedilo natildeo-grego Essas mulheres alimentaram-se das vivecircncias culturais do Outro e redefiniram-se tornando-se figuras politicamente ativas a que os historiadores gregos imprimiram doses de reprovaccedilatildeo e censura Trata-se de um novo paradigma de feminino para o modelo imperial que se comeccedilava a definir no horizonte perante e a partir de matrizes e modelos como Peneacutelope Lucreacutecia ou Corneacutelia a matildee dos Gracos74

Naquelas eacute igualmente impossiacutevel natildeo reconhecer a inovaccedilatildeo e a diferenccedila no caminho de uma emancipaccedilatildeo ateacute entatildeo estranha Como a esfinge criatura da mitologia concebida de uma ideia oriental mas que ganhou vida no espaccedilo heleacutenico tambeacutem estas mulheres se deixaram representar atraveacutes de escul-turas e efiacutegies que obedeceram a cacircnones classicizantes75 mas comportando-se como liberdade de accedilatildeo nova que no entanto se insere no espiacuterito heleniacutestico da oikoumene Aparentemente muitos dos seus contemporacircneos conviviam jaacute muito bem com essa laquonovidaderaquo Assim apesar das mudanccedilas que o medievo trouxe agrave Histoacuteria da Europa parece-nos indiscutiacutevel que neste espaccedilo e tempo heleniacutesticos se processaram alteraccedilotildees e mudanccedilas de perspetiva que alteraram para sempre as formas de olhar a mulher

74 Ver Rodrigues 200575 Cf Sales 2005

274

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

Bibliografia

Amaral A L 1994 ldquoDuas rainhas em Heroacutedoto Toacutemiris e Artemiacutesiardquo Humanitas 461741

Andreasen N A 1993 ldquoThe role of the Queen Mother in the Israelite societyrdquo Catholic Biblical Quarterly 45 (2)186-90

Arauacutejo L M 2001 ldquoEsfingerdquo In Dicionaacuterio do Antigo Egito coord L M Arauacutejo 337 Lisboa Editorial Caminho

Ashton S e S Walker 2006 Cleopatra London Duckworth Bristol Classical PressBecher I 1966 Das Bild der Kleopatra in der griechischen und lateinischen

Literatur Berlin Akademie-VerlagBen-Barak Z 1987 ldquoThe Queen consortrdquo In La femme dans le Proche Orient

antique ed J-M Durand 30-52 Paris Eacuteditions Recherche sur les civilisations

Braun M 1938 History and Romance in Graeco-Oriental Literature Oxford Blackwell

Carney E D 2013 Arsinoeuml of Egypt and Macedon a Royal Life Oxford Oxford University Press

mdashmdashmdash 2006 Olympias Mother of Alexander the Great London Routledgemdashmdashmdash 2000 Women and Monarchy in Macedonia Norman University of

Oklahoma PressDelia D 1991 ldquoFulvia Reconsideredrdquo In Womenrsquos History and Ancient History

ed S B Pomeroy 173-96 London Chapel Hill University of North Carolina Press

Girod V 2015 Agrippine Sexe crimes et pouvoir dans la Rome impeacuteriale Paris Tallandier

Goldsworthy A 2010 Antony and Cleopatra London PhoenixGoldsworthy A 2006 Caesar The Life of a Colossus London PhoenixHughes-Hallett L 1990 Cleopatra Histories Dreams and Distortions London

BloomsburyJones P J 2006 Cleopatra A Sourcebook Norman University of Oklahoma PressKaplan M S 1979 ldquoAgrippina semper atrox A Study in Tacitusrsquo Characterization

of Womenrdquo In Studies in Latin Literature and Roman History ed C Deroux 410-17 Turnhout Latomus

Lever E 2000 Marie Antoinette The Last Queen of France New York PortraitLongega G 1968 Arsinoe II Roma ldquoLrsquoErmardquo di BretschneiderMacurdy G H 1985 Hellenistic Queens A Study of Woman-Power in Macedonia

275

Nuno Simotildees Rodrigues

Seleucid Syria and Ptolemaic Egypt Chicago Ares PublishersMacurdy G H 1937 Vassal-Queens and Some Contemporary Women in the

Roman Empire Baltimore Johns Hopkins Press Miroacuten D 2002 Olimpia (ca 373-316 aV) Madrid Ediciones del OrtoOgden D 1999 Polygamy Prostitutes and Death The Hellenistic Dynasties

London Duckworth The Classic Press of WalesPimentel M C 1993 ldquoQuo uerget furorrdquo Aspectos estoacuteicos na Phaedra de Seacuteneca

Lisboa ColibriRodrigues N S 2013 ldquoAmimetobiou the One ldquoof the Inimitable Liferdquo

Cleopatra as a Metaphor for Alexandria in Plutarchrdquo In Alexandrea ad Aegyptum The Legacy of Multiculturalism in Antiquity ed R Sousa M C Fialho M Haggag e N Simotildees Rodrigues 58-69 Porto Ediccedilotildees Afrontamento Centro de Investigaccedilatildeo Transdisciplinar ldquoCultura Espaccedilo amp Memoacuteriardquo

mdashmdashmdash 2012 ldquoNomos e kosmos na caracterizaccedilatildeo do Antoacutenio e da Cleoacutepatra de Plutarcordquo In Nomos Kosmos amp Dike in Plutarch eds J Ribeiro Ferreira D F Leatildeo e C A Martins de Jesus 101-8 Coimbra Classica Digitalia Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

mdashmdashmdash 2011 ldquoA ldquoDa Vida Inimitaacutevelrdquo A Cleoacutepatra de Plutarco como Metaacutefora orientalrdquo Caliacuteope 2282-97

mdashmdashmdash 2010 ldquoAinda Clitemnestra a laquomulher de maacutescula vontaderaquordquo Cadmo 20393-405

mdashmdashmdash 2005 ldquoA heroiacutena romana como matriz de identidade femininardquo In Mito claacutessico no Imaginaacuterio Ocidental coord D F Leatildeo MC Fialho e MF Silva prefaacutecio M Claacuteudio 67-85 Coimbra Ariadne Editora

mdashmdashmdash 2003 ldquoMessalina ou Aphrodita tragica in Vrberdquo In Presenccedila de Victor Jabouille org A Ventura 513-34 Lisboa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

mdashmdashmdash 2002 ldquoPlutarco historiador dos Laacutegidas o caso de Cleoacutepatra VII Filopatorrdquo In Actas do Congresso ldquoPlutarco educador da Europardquo coord J Ribeiro Ferreira 127-49 Porto Fundaccedilatildeo Eng A Almeida

mdashmdashmdash 1999 ldquoO Judeu e a Egiacutepcia o retrato de Cleoacutepatra em Flaacutevio Josefordquo Polis Revista de Ideas y Formas Poliacuteticas de la Antiguumledad Claacutesica 1121759

Roller D W 2010 Cleopatra A Biography Oxford Oxford University PressSales J C 2005 Ideologia e propaganda real no Egito Ptolomaico (305-30 aC)

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia

Tavares A A 1998 ldquoA mulher nas lutas pela sucessatildeo do poder real no Meacutedio Oriente Antigordquo In Poder e Sociedade Da Antiguidade ao periacuteodo

276

Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas

contemporacircneo (Actas das Jornadas Interdisciplinares) org M J Ferro Tavares 15-28 Lisboa Universidade Aberta

Walker s e P Higgs 2001 Cleopatra of Egypt From History to Myth London British Museum Press

Waterfield R 2011 Dividing the Spoils The War for Alexander the Greatrsquos Empire Oxford University Press

Whitehorne J 1994 Cleopatras London New York Routledge

277

Filipe Carmo

O Imperium da origem ao Principado1 (Imperium from origin to Principate)

Filipe CarmoUniversidade de Lisboa Faculdade de Letras Universidade de Lisboa

(filcarmgmailcom ORCID 0000-0002-7093-6248)

Resumo - O imperium teria sido para alguns historiadores e num determinado periacuteodo histoacuterico um poder soberano de comando um poder absoluto de vida e de morte ao qual os laquosuacutebditosraquo deviam sem restriccedilotildees obedecer O estudo da evoluccedilatildeo do conceito ndash que poderia para outros ter tido origem no estabelecimento de uma hegemonia do Estado Romano sobre outros estados ou no comando militar de uma alianccedila ou ainda numa afirmaccedilatildeo de caraacutecter pessoal uma potecircncia carismaacutetica conducente ao sucesso assumida pelo chefe ndash conduz-nos atraveacutes dos seacuteculos que vatildeo desde a fundaccedilatildeo de Roma ateacute aos primeiros tempos do principado a constatar a sua compatibilizaccedilatildeo com a existecircncia da cidadania e naturalmente a natildeo entender a referida obediecircncia de modo absoluto A aquisiccedilatildeo do imperium pelos magistrados superiores da cidade estaria por outro lado estreitamente associada a uma sucessatildeo de atos de natureza civil e religiosa cujo natildeo cumprimento adequado poria em causa a legitimidade do exerciacutecio de tal poder Eacute precisamente uma crise de tal legitimidade iniciada pela atomizaccedilatildeo do poder e derivada das conquistas romanas e das guerras civis que conduz numa fase posterior ndash atraveacutes das ditaduras de Sula e de Ceacutesar dos triunviratos e da criaccedilatildeo do principado ndash a uma reaccedilatildeo que leva agrave concentraccedilatildeo progressiva do imperium e agrave institucionalizaccedilatildeo do imperium Romanum sob formas que jaacute satildeo proacuteximas dos conceitos modernos de impeacute-rio e imperialismo O que natildeo ocorre contudo sem um retorno a sentidos do conceito que pressupotildeem o poder reacutegio e aspiraccedilotildees a um estatuto divino

Palavras-chave Roma lex curiata imperium domi imperium militiae auspicia imperium Romanum

Abstract Imperium was for some historians and in a very specific historical period a sovereign power of command an absolute power of life and death to which laquosubjectsraquo should unreservedly obey The study of the evolution of the concept ndash which could have originated for some other scholars either in the establishment of a hegemony of the Roman state over other states or in the military command of an alliance or even in a personal assertion of a charismatic power conducive to success assumed by the king ndash leads us through the centuries from the foundation of Rome to the earliest days of the Principate to corroborate its compatibility with citizenship and of course not to understand the obedience referred to in an absolute way Further the acquisition of imperium by the cityrsquos higher magistrates was closely associated with a succession of acts of a civil and religious nature whose inadequate compliance could jeopardize

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_15

278

O Imperium da origem ao Principado

the legitimacy of the exercise of such power It is precisely a crisis of such legitimacy initiated by the atomization of power and derived from the Roman conquests and the civil wars that leads at a later stage ndash throughout the dictatorships of Sulla and Caesar the triumvirates and the creation of the Principate ndash to a reaction conducive to the progressive concentration of imperium and to the institutionalisation of the imperium Romanum in forms that are close to modern concepts of empire and imperialism This does not happen however without a return to the senses of the concept that presuppose regal power and aspirations to a divine status

Keywords Rome lex curiata imperium domi imperium militiae auspicia imperium Romanum

Poder reacutegio durante a Monarquia poder consular durante a Repuacuteblica e mais tarde comeccedilando com Augusto o poder do priacutencipe tecircm em comum na Roma antiga um elemento fundamental que eacute o imperium Trata-se em princiacute-pio de um poder soberano de comando um poder absoluto de vida e de morte ao qual os laquosuacutebditosraquo devem sem restriccedilotildees obedecer

Eacute esta uma definiccedilatildeo contudo que natildeo estaacute isenta de problemas e que soacute pode ser tida como meramente provisoacuteria e adequada no sentido de ajudar a colocar a questatildeo numa perspetiva o mais geral possiacutevel Assim jaacute em 1966 Robert Combegraves face agraves dificuldades em sistematizar satisfatoriamente as nu-merosas teorias existentes sobre o referido conceito se havia visto obrigado a recuar na sua ideia de elaborar um quadro sinteacutetico de tais teorias2 Refletindo alguns anos depois sobre tais dificuldades Henk Versnel haveria de reforccedilar tal sentimento de complexidade excluindo a hipoacutetese de optar por um dos opostos pontos de vista incidentes sobre uma eventual controveacutersia jaacute que natildeo soacute as posiccedilotildees em conflito eram muitas como natildeo havia encontrado dois acadeacutemicos que estivessem de acordo em todos os aspetos em causa3

Um dos aspetos em que natildeo havia acordo e que surgiria como uma primeira linha divisoacuteria entre as diferentes posiccedilotildees em confronto eacute referido pelo proacuteprio Versnel e coloca de um lado acadeacutemicos como Mommsen Rubino Leifer Ernst Meyer e de Francisci que defendiam que o imperium originariamente expri-mia o poder absoluto do rei tanto nas questotildees civis como militares opiniotildees a que se opocircs Heuss cuja posiccedilatildeo apoiada por Alfoumlldi Bernardi Arangio-Ruiz Mazzarino e Catalano restringia tal poder absoluto aos assuntos militares De imediato contudo se haviam observado diferenccedilas de opiniatildeo no seio destes grupos de acadeacutemicos traduzidas pela contraposiccedilatildeo de conceitos vizinhos como auctoritas e potestas ou de utilizaccedilotildees correspondentes diferenciadas no tempo e no espaccedilo Eacute neste enquadramento que Versnel apresenta uma perspeti-va mais historicista do conceito admitindo com Heuss que soacute progressivamente

2 Combegraves 1966 36-83 Versnel 1970 313

279

Filipe Carmo

o conceito de imperium teraacute passado a cobrir o poder soberano situaccedilatildeo que contudo viria a ser restringida mais tarde pelo surgimento do direito de provo-catio4

1 Duas noccedilotildees de imperium

Integrando-se agrave primeira vista no segundo grupo de acadeacutemicos que limitam o imperium aos assuntos militares Ugo Coli destaca-se dele contudo porque natildeo atribui ao rex romano enquanto tal esse poder Para Coli o imperium surge como o comando militar supremo da federaccedilatildeo latina exercido por um dos chefes dos estados aliados (socii) escolhido para o efeito Eventual imperator (comandante uacutenico a unicidade sendo fundamental na guerra) dos exeacutercitos aliados do nomen Latinum (povo no sentido de grupo eacutetnico latino) o rex ro-mano exerceria nessa qualidade um poder distinto do que exercia a niacutevel interno do Estado Romano (regnum para Coli) e que era uma potestas ndash noccedilatildeo oposta agrave de libertas ndash de caraacutecter absoluto sobre os seus suacutebditos natildeo-livres (essa geneacuterica potestas do rex sobre os seus suacutebditos seria assim equivalente ao conceito de imperium tal como provisoriamente definido acima) O que contrastava com as relaccedilotildees estabelecidas entre os socci do nomen Latinum que eram Estados sobe-ranos (relaccedilotildees portanto entre iguais relaccedilotildees estabelecidas no contexto de um embrionaacuterio direito internacional) Porque o imperium surge como um comando militar supremo e assenta numa relaccedilatildeo entre iguais Coli soacute admite a aplicaccedilatildeo do conceito no foro interno do Estado romano apoacutes o regnum ser extinto e dar lugar agrave res publica Soacute entatildeo o populus se afirma como soberano eacute sujeito de relaccedilotildees juriacutedicas e os cidadatildeos adquirindo a libertas satildeo iguais entre eles O po-der de comandar estendido da guerra a outras atividades comuns (a convocaccedilatildeo dos contingentes a sua organizaccedilatildeo a celebraccedilatildeo das cerimoacutenias propiciatoacuterias e uma vez a guerra vencida o agradecimento aos deuses a reparticcedilatildeo do saque e eventualmente o destino a dar ao territoacuterio conquistado) eacute assumido natildeo dire-tamente pelo populus que natildeo eacute uma entidade fiacutesica mas pelo seu representante eleito o magistrado supremo Esse novo poder por analogia com o que sucede a niacutevel das relaccedilotildees inter estatais eacute designado imperium5

4 Versnel 1970 314-15 A provocatio era um direito de apelo ao populus reunido na assembleia das centuacuterias contra as decisotildees dos magistrados supremos (ver a este propoacutesito Humbert 2007 295-97 e 304-5)

5 Coli 1951 145-68 Essa magistratura suprema de caraacutecter ordinaacuterio e mandato limitado a um ano (um praetor maximus ou um ditador) admitida por alguns autores daraacute lugar deacutecadas mais tarde ao consulado dual o que implicaraacute uma partilha do imperium por dois magistrados supremos Para outros autores fieacuteis agrave tradiccedilatildeo literaacuteria o consulado dual surge logo no iniacutecio da Repuacuteblica Ocasionalmente o poder supremo na Repuacuteblica eacute assumido por um magistrado de caraacutecter extraordinaacuterio o ditador coadjuvado por um magister equitum exercendo ambos essas funccedilotildees por um periacuteodo natildeo superior a seis meses (ver Carmo 2010 17-20 23-24 e 89-90)

280

O Imperium da origem ao Principado

O cidadatildeo um liber estaacute assim sujeito ao dever de obedecer agraves ordens da-quele o magistrado supremo que tem o direito (ius imperandi) de as dar Dever--se-aacute sublinhar no entanto que Coli se defronta com dificuldades em explicar condiccedilotildees intermeacutedias entre um liber e um suacutebdito como satildeo os casos do cliens e do escravo liberto que explica serem situaccedilotildees que embora de inferioridade satildeo compatiacuteveis com a libertas Eacute de realccedilar neste enquadramento a analogia que o acadeacutemico estabelece entre essas situaccedilotildees individuais e as que refere como envolvendo os Estados

middot o cidadatildeo natildeo submetido a nenhuma situaccedilatildeo de inferioridade compa-raacutevel ao Estado soberano que exerce quando chega a sua vez a prerrogativa de comando da alianccedila

middot o suacutebdito que eacute assimilado ao antigo Estado que perde tal qualidade porque eacute conquistado pelo Estado hegemoacutenico (vi capti e deditio-receptio in potestatem)

middot o cliente equiparado ao Estado que reconhece a superioridade (maies-tas) do Estado hegemoacutenico coloca-se sob a sua proteccedilatildeo mas manteacutem a condi-ccedilatildeo de Estado

middot o liberto equivalente agrave coletividade dos vencidos que recupera por decisatildeo do Estado hegemoacutenico a sua anterior condiccedilatildeo de Estado6

Uma alternativa agrave origem da ideia de imperium a sua proveniecircncia da Et-ruacuteria em vez das relaccedilotildees estabelecidas no seio do nomen Latinum eacute defendida por vaacuterios autores modernos e referida como possiacutevel pelo proacuteprio Coli Sendo a tradiccedilatildeo literaacuteria unacircnime relativamente agrave proveniecircncia da Etruacuteria de insiacutegnias do imperium como os doze lictores com os feixes e os machados uma hipoacutetese sobre o momento de concretizaccedilatildeo dessa adoccedilatildeo seria o da guerra vitoriosa que segundo Dioniacutesio de Halicarnasso7 Tarquiacutenio Prisco teria conduzido contra o nomen Etruscum e que teria sido concluiacuteda com a colocaccedilatildeo em estado de sujei-ccedilatildeo dessa naccedilatildeo O envio dos doze lictores a Tarquiacutenio seria o reconhecimento da sua situaccedilatildeo de comando sobre o exeacutercito comum das doze cidades da liga etrusca em substituiccedilatildeo do anterior comandante por elas escolhido siacutembolo portanto da respetiva hegemonia Coli conclui que nesta hipoacutetese de proveniecircn-cia do imperium dos etruscos esse natildeo seria o poder despoacutetico dos soberanos do oriente (de que aliaacutes segundo o acadeacutemico os reis romanos jaacute dispunham

6 Coli 1951 145-51 e tambeacutem 104-97 D H 357-62

281

Filipe Carmo

internamente8) mas a mera laquohegemoniaraquo grega9Teriacuteamos assim em conclusatildeo uma primeira noccedilatildeo de imperium a do

direito internacional instituiccedilatildeo primordial e uma segunda noccedilatildeo a do direito puacuteblico interno (o imperium consular o imperium do ditador ) a segunda sendo derivada da primeira10

2 Uma alternativa agrave origem do conceito

Uma alternativa agrave origem do conceito de imperium como um comando mi-litar assente numa relaccedilatildeo entre iguais eacute analisada por Versnel na sua obra sobre o triunfo Trata-se de um significado maacutegico-religioso cuja origem primitiva assentaria numa laquopotecircncia pessoal carismaacutetica que conduz ao sucessoraquo O impe-rium assim concebido cuja detenccedilatildeo pelo rex romano seria um caso particular significativo encontrar-se-ia investido no proacuteprio chefe ndash ao qual o povo os sol-dados laquose submetem devido agrave confianccedila que tecircm na sua forccedila na sua coragem na sua potecircncia maacutegica pessoalraquo ndash e natildeo seria suscetiacutevel de transferecircncia11 Essa submissatildeo que na origem se afirmaria espontaneamente ndash na sequecircncia de uma vitoacuteria ou outra demonstraccedilatildeo de forccedila coragem ou potecircncia maacutegica e que se traduziria por uma cerimoacutenia um rito em que o chefe era aclamado12 chamado pelo seu tiacutetulo ndash teria passado ainda durante o periacuteodo reacutegio a assumir um caraacutecter impessoal abstrato atraveacutes da preacutevia atestaccedilatildeo pelo deus supremo das qualidades necessaacuterias ao exerciacutecio de funccedilotildees de direccedilatildeo e de comando Eacute o rex inauguratus que recebe o augurium favoraacutevel de Juacutepiter13 A regularidade da

8 Seria assim absurdo segundo Coli isolar um direito de comandar o imperium em quem tem um poder absoluto e incondicional ao qual a pessoa sujeita natildeo pode resistir Um tal poder iria assim muito aleacutem do mero direito militar de comando Coli refere ainda que esse poder absoluto do rei era equivalente ao do pai sobre os filhos ao do dominus sobre os escravos ao do vencedor sobre os derrotados na guerra (vi capti)

9 Coli 1951 154-5610 Ibid 15811 Versnel 1970 315-18 Versnel cita de Francisci que adotaria uma posiccedilatildeo intermeacutedia

entre Haumlgerstroumlm e Wagenvoort acadeacutemicos que estudaram a noccedilatildeo primitiva de mana e as suas relaccedilotildees com o imperium

12 Os autores antigos usam nestes casos natildeo o termo acclamare mas appellare ou salutare e em particular appellatio imperatoria ou salutatio imperatoria (Combegraves 1966 90 nota 50)

13 Versnel 1970 315-18 e 340-49 O autor refere que esta cerimoacutenia a appellatio regia teria equivalentes posteriores nas appellatio praetoria (relativa ao pretor mais tarde ao cocircnsul enquanto comandantes militares) e appellatio imperatoria (atestada uma primeira vez no caso de Cipiatildeo um privatus em 210 aC na Hispacircnia aclamado imperator pelos seus soldados) Tanto a appellatio regia como a appellatio praetoria teriam lugar imediatamente apoacutes a creatio (designaccedilatildeo do rei ou eleiccedilatildeo do magistrado superior) enquanto a appellatio imperatoria surgiria apoacutes uma vitoacuteria na guerra A creatio seria aliaacutes precedida de uma auspicatio a cerimoacutenia de tomada ou observaccedilatildeo dos auspicia a consulta agrave vontade dos deuses Dever-se-aacute observar por outro lado que Andreacute Magdelain embora admitindo a appellatio regia natildeo concorda com a conceccedilatildeo do rex inauguratus Segundo este acadeacutemico o rei eacute investido

282

O Imperium da origem ao Principado

cerimoacutenia passaria com a Repuacuteblica a ser anual e a exigir um formalismo que mais tarde os juristas haveriam de classificar como constitucional

3 A lex curiata

Uma das questotildees criacuteticas com que os revolucionaacuterios do final do seacuteculo VI aC que expulsaram Tarquiacutenio o Soberbo se defrontaram teraacute estado relacionada com a legitimidade do magistrado ou magistrados que substituiacuteram o rex nas suas funccedilotildees de comando civil e militar A legitimidade do rex teraacute sido aparentemen-te garantida pela sua aclamaccedilatildeo nos comitia curiata assembleia que o proacuteprio rei teria convocado apoacutes ter tomado o poder e pelos auspiacutecios de investidura que satildeo tomados pelo rei e atraveacutes dos quais o soberano pede a Juacutepiter para o inves-tir14 Que o novo regime tenha adotado desde logo um elemento de anualidade na legitimaccedilatildeo dos magistrados parece paciacutefico para a historiografia Que esse elemento no que concerne a investidura civil dos magistrados tenha sido desde logo a lex curiata ou tenha derivado da continuidade da aclamaccedilatildeo agora com periodicidade anual na assembleia das cuacuterias eacute questatildeo jaacute mais controversa Ainda mais controversa seraacute ainda a questatildeo da eleiccedilatildeo dos magistrados que dissociada da investidura segundo alguns acadeacutemicos soacute teria surgido mais tarde provavelmente em meados do seacuteculo V aC A investidura tendo lugar

por Juacutepiter no decurso da cerimoacutenia da tomada de auspiacutecios que eacute da iniciativa do proacuteprio soberano e que pelo menos no caso de Roacutemulo e segundo as fontes antecede a aclamaccedilatildeo pelo povo (Magdelain 1968 39)

14 Andreacute Magdelain critica as conceccedilotildees de acesso ao poder dos reis por parte de Ciacutecero e Taacutecito que incluem a rogatio de uma lex curiata pelo proacuteprio rei Eacute um procedimento que Magdelain considera transposto da praacutetica republicana relativa agrave investidura do ditador e dos cocircnsules Magdelain critica igualmente as conceccedilotildees de Tito Liacutevio e de Dioniacutesio de Halicarnasso que ignoram a existecircncia da lex curiata mas para os reis latinos que sucedem a Roacutemulo estatildeo desvirtuadas por elementos de origem republicana (1) a rogatio que eacute feita por um interrex (2) uma eleiccedilatildeo que tem a particularidade de incidir sobre um uacutenico candidato e (3) uma confirmaccedilatildeo do voto pela auctoritas dos patres No que concerne os reis etruscos por outro lado aquelas fontes excluem o interrex e a auctoritas patrum colocando o proacuteprio rei a presidir a assembleia popular Eacute menos niacutetida nesses autores a alternativa entre a existecircncia de um voto ou uma simples aclamaccedilatildeo embora a opccedilatildeo por esta uacuteltima pareccedila mais provaacutevel (Magdelain 1968 30-33 e 37-40) Observe-se no entanto que Magdelain natildeo esclarece como teraacute sido a tomada do poder pelos reis admitindo-se que na sua oacutetica ela estaria isenta de qualquer formalismo e assente em meras relaccedilotildees de forccedilas militares ou poliacuteticas Francesco de Martino por outro lado fiel agrave sua conceccedilatildeo de monarquia resultante de uma federaccedilatildeo gentiacutelica defende uma posiccedilatildeo diferente Faria sentido segundo ele que a lex curiata tivesse surgido com a transformaccedilatildeo constitucional que havia tido lugar quando Roma foi organizada como polis com um poder central a sobrepor-se agrave assembleia federativa A soberania enquanto atributo dos patres teria entatildeo deixado de ser suficiente para a investidura do chefe passando a ser necessaacuterio ligar os dois elementos unitaacuterios do Estado ou seja o magistrado e o povo O ato formal requerido para tal objetivo teria sido precisamente a lex curiata mediante a qual a exigecircncia poliacutetica unitaacuteria havia ganho expressatildeo juriacutedica e o populus havia adquirido pela primeira vez a qualidade de oacutergatildeo constitucional (De Martino 1972-1975 158-59 ver tambeacutem Carmo 2010 11-12)

283

Filipe Carmo

conforme jaacute referido na assembleia das cuacuterias a eleiccedilatildeo uma escolha entre vaacuterios candidatos seria realizada pelo menos para os cocircnsules na assembleia das centuacuterias Assim no iniacutecio da Repuacuteblica segundo esses acadeacutemicos o povo natildeo elegeria os magistrados limitando-se a investi-los Presume-se que a reivin-dicaccedilatildeo pelo povo do direito de eleger os candidatos que a seguir investe tenha surgido na sequecircncia das movimentaccedilotildees plebeias que conduziram agrave criaccedilatildeo e eleiccedilatildeo dos seus proacuteprios magistrados15

A questatildeo do conteuacutedo e do significado da lex curiata eacute colocada logo agrave partida pela sua designaccedilatildeo que em muitos acadeacutemicos surge como lex curiata de imperio Poder-se-ia concluir daqui que o objetivo da lei era muito simples-mente a atribuiccedilatildeo do imperium aos magistrados Natildeo eacute essa a posiccedilatildeo de Andreacute Magdelain que considera a expressatildeo ndash lex curiata de imperio ndash enganadora e forjada pelos modernos O imperium natildeo esgotaria o conteuacutedo da lex curiata que de facto se estenderia a outras atribuiccedilotildees nem seria compatiacutevel com o seu emprego a favor dos magistrados menores (eleitos nos comitia tributa) Os poderes que ela atribuiacutea aos magistrados superiores aleacutem do imperium seriam a jurisdictio e o auspicium Magdelain natildeo deixa contudo de admitir referindo Ciacutecero16 que na investidura dos magistrados pelas cuacuterias a peccedila mais impor-tante eacute a atribuiccedilatildeo do direito de auspiacutecios jaacute que graccedilas a ele seraacute possiacutevel ao magistrado tomar posse dos seus poderes civis atraveacutes dos auspiacutecios de entrada em funccedilotildees e do comando militar atraveacutes dos auspiacutecios de partida17 Assim tudo se passaria como se a lex curiata procedesse a uma atribuiccedilatildeo imediata efetiva do auspicium e a uma atribuiccedilatildeo meramente potencial do imperium e da jurisdictio poderes estes que seriam ativados oportunamente pelo proacuteprio

15 Magdelain 1968 34-35 Ver tambeacutem nota precedente16 Cic Leg agr 227 231 (as cuacuterias soacute teriam subsistido ateacute ao seacuteculo I aC por causa da

atribuiccedilatildeo dos auspicia) Ver tambeacutem Cic Leg agr 230 (a lex curiata seria indispensaacutevel ao exerciacutecio do comando militar)

17 Magdelain 1968 17-20 A inclusatildeo da jurisdictio o poder de se ocupar da justiccedila civil e criminal deduzir-se-ia de um vasto plano de neutralizaccedilatildeo da vida puacuteblica que teraacute tido lugar em 56 aC e que se teria articulado agrave volta de intercessiones dos tribunos da plebe contra a passagem de leges curiatae que visariam em particular o funcionamento do Estado e da justiccedila A questatildeo do conteuacutedo da lex curiata eacute objeto de um trabalho especiacutefico de JJ Nicholls escrito um ano antes do livro em referecircncia de Magdelain e que este desconhece Nicholls coloca em particular a questatildeo de saber se a lex curiata tinha de facto o conteuacutedo de uma lei ou se se tratava meramente de uma declaraccedilatildeo solene uma adoccedilatildeo unilateral de imperium por parte do magistrado superior feita independentemente da aprovaccedilatildeo ou desaprovaccedilatildeo da assembleia (Nicholls 1967 258) Mais agrave frente (274-77) Nicholls refere-se especificamente a trabalhos anteriores de Magdelain datados de 1964 em que este jaacute exprime a opiniatildeo de que a lex curiata eacute a peccedila fundamental do regime republicano preenchendo o vazio constitucional que deriva da inexistecircncia de uma lei que esteja na origem das magistraturas antigas O facto de tal lei natildeo existir diversamente do que sucede nos regimes poliacuteticos modernos teria conduzido agrave necessidade de uma investidura pessoal pelas cuacuterias que atribuiacutesse aos magistrados os respetivos poderes (ver a este respeito Magdelain 1968 5-12)

284

O Imperium da origem ao Principado

magistrado atraveacutes como referido dos auspiacutecios de entrada em funccedilotildees e dos auspiacutecios de partida

A relaccedilatildeo entre auspicium e imperium nomeadamente a questatildeo de saber qual o poder que eacute predominante se um eacute determinado pelo outro ou vice-versa natildeo eacute contudo objeto de tratamento incontroverso na historiografia contempo-racircnea Versnel procede agrave anaacutelise desta questatildeo em toda a sua complexidade em toda a sua faacutecies labiriacutentica e entre outras ilaccedilotildees conclui que o povo tinha que se pronunciar sobre o imperium dos magistrados que a lex curiata visava sobretudo embora natildeo exclusivamente os assuntos militares (e nestes dois aspetos natildeo satildeo visiacuteveis contradiccedilotildees com as teses de Magdelain) e que a cerimoacute-nia de aprovaccedilatildeo da lei embora procedesse a um auspicatio natildeo conferia nem ratificava o auspicium18 (mas aqui a oposiccedilatildeo com as referidas teses eacute evidente) As dificuldades com que Versnel se defronta na sua anaacutelise poderatildeo estar re-lacionadas com a sua convicccedilatildeo de que os magistrados quando convocam os comitia curiata jaacute estatildeo na posse do auspicium Nesta convicccedilatildeo estaacute impliacutecita a admissatildeo de que quem reuacutene a assembleia eacute o proacuteprio magistrado que acaba de ser eleito nos comitia centuriata Ora eacute este ponto de partida que Magdelain precisamente contesta defendendo que quem convoca a assembleia e faz a ro-gatio da lex curiata eacute o magistrado que o precede que dispotildee ainda para tal dos poderes que lhe haviam sido conferidos no iniacutecio do seu mandato

4 Imperium domi e imperium militiae

Magdelain considera a questatildeo da autoria da rogatio da lex curiata laquola pierre drsquoachoppement pour toute theacuteorie de la loi curiateraquo e que laquode la reacuteponse qursquoon lui apporte deacutepend la structure de lrsquoensembleraquo Mommsen ndash que esteve na base dos estudos modernos sobre a referida lex e entendia que era o proacuteprio magistrado superior a apresentar a rogatio da sua proacutepria lei ndash teria no parecer do acadeacutemico sido determinante na evoluccedilatildeo das teorias que ilogicamente colocam a entrada em funccedilotildees antes do voto da lex curiata Eacute fundamental ter presente neste contexto que Ciacutecero considera que a lex curiata eacute votada por causa dos auspiacutecios (auspiciorum causa) o que pressupotildee que o magistrado ainda esta-ria sem auspiacutecios e natildeo reuniria assim as condiccedilotildees para convocar a assembleia19

18 Versnel 1970 319-39 Destacar-se-atildeo entre as numerosas opiniotildees que Versnel confronta os contributos de Mommsen Ernst Meyer de Francisci Heuss Rubino Latte von Luumlbtow Voci Haumlgerstroumlm Altheim Combegraves Staveley Catalano Nocera Wagenvoort Magdelain e Cancelli O autor contudo natildeo refere Magdelain 1968 cujo contributo natildeo pode deixar de ser considerado bastante significativo

19 Ver nota 16 supra e Magdelain 1968 26-27 Dever-se-aacute no entanto observar que o entendimento de Ciacutecero eacute vaacutelido para a sua proacutepria eacutepoca o que neste caso o potildee ao abrigo de eventuais acusaccedilotildees de anacronismo Acusaccedilotildees a que natildeo escapa contudo quando se trata da sua conceccedilatildeo da atribuiccedilatildeo do imperium aos reis (Cic Rep 225 231 233 235 e 238) em

285

Filipe Carmo

Assim para Magdelain o magistrado ordinaacuterio ao ser eleito por uma assembleia das centuacuterias que apenas exprime a sua preferecircncia pela sua pessoa relativamente a outros candidatos natildeo dispotildee ainda dos poderes que lhe satildeo indispensaacuteveis agrave convocaccedilatildeo das cuacuterias Eacute por essa razatildeo que tal convocaccedilatildeo deve ser feita pelo magistrado precedente que fazendo aprovar a lex curiata garante a investidura civil do seu sucessor A investidura por Juacutepiter solicitada pelo proacuteprio interessado seria posterior ocorrendo atraveacutes da tomada dos aus-piacutecios da entrada em funccedilotildees20

Este eacute um esquema arcaico que se teraacute alterado pelo menos em termos de perceccedilatildeo pela opiniatildeo puacuteblica no decurso do periacuteodo republicano Aos olhos do povo o que na Repuacuteblica Tardia conta o que de facto constitui a investidura do magistrado eacute a eleiccedilatildeo e os auspiacutecios que a autorizam enquanto a aprovaccedilatildeo da lex curiata e a tomada dos auspiacutecios de entrada em funccedilotildees embora sempre presentes satildeo entendidas como meras formalidades Para Magdelain essa evo-luccedilatildeo consubstancia um verdadeiro abuso que teraacute conduzido ao contrassenso juriacutedico-constitucional de transformar o que natildeo passava de uma aprovaccedilatildeo por Juacutepiter da convocaccedilatildeo da assembleia eleitoral (o que deveria ser feito para qualquer convocaccedilatildeo do povo) numa investidura do magistrado que viesse a ser eleito A eleiccedilatildeo bastar-se-ia assim a ela proacutepria e teria passado a conferir ao eleito os seus poderes21

Tambeacutem os auspiacutecios de partida ndash que satildeo os auspiacutecios que o general toma quando deixa a cidade para exercer o comando militar e que incluem a pro-nunciaccedilatildeo puacuteblica e solene de votos e o uso natildeo soacute pelo general mas tambeacutem pelos seus lictores dos seus trajes de guerra ndash requerem a votaccedilatildeo preacutevia da lex curiata Enquanto os auspiacutecios de entrada em funccedilotildees dotam o magistrado com o seu imperium domi ndash o poder civil ndash os auspiacutecios de partida conferem-lhe o im-perium militiae o seu comando militar Eacute esta conceccedilatildeo de dois tipos distintos

que a alegada existecircncia de dois passos nesse processo ndash um primeiro voto na assembleia das cuacuterias que dota o rei dos seus poderes e um segundo voto na mesma assembleia que aprova a lex curiata e confirma tais poderes ndash natildeo passaria de uma transposiccedilatildeo para a Monarquia da opiniatildeo vulgar sobre os mecanismos constitucionais do seu tempo Natildeo existindo assembleia das centuacuterias ateacute Seacutervio Tuacutelio Ciacutecero substituiacutea-a na primeira votaccedilatildeo pela proacutepria assembleia das cuacuterias (Magdelain 1968 30-31 e nota 14 supra)

20 Magdelain 1968 28-29 O que eacute verdade para as magistraturas ordinaacuterias natildeo o eacute contudo para uma magistratura extraordinaacuteria como a ditadura em que a ordem dos processos eacute invertida Era o ditador que apresentava a sua proacutepria lex curiata o que segundo Magdelain estaria de acordo com a natureza da instituiccedilatildeo Nomeado apoacutes decisatildeo do senado por um dos cocircnsules na cerimoacutenia auspicial da dictio ndash que representava a sua investidura por Juacutepiter e natildeo pelo cocircnsul que o nomeava ndash o ditador procedia de seguida agrave dictio do seu magister equitum e agrave convocaccedilatildeo das cuacuterias porque a investidura por Juacutepiter lhe havia jaacute conferido o imperium e o auspicium necessaacuterios a tais atos O voto da lex curiata que se seguia equivalia a uma investidura civil consistindo ao mesmo tempo numa homenagem que prestava ao povo que ia dominar monarquicamente por um periacuteodo que podia ir ateacute seis meses

21 Magdelain 1968 36-40

286

O Imperium da origem ao Principado

de imperium que Magdelain partilha com numerosos outros acadeacutemicos que nos afasta da conceccedilatildeo unitaacuteria acima referida de Heuss e outras que confinam o acircmbito do conceito ao comando militar22 A importacircncia da aquisiccedilatildeo do im-perium militiae e do seu pressuposto que satildeo os auspiacutecios de partida estaacute bem patente em 217 aC durante a Segunda Guerra Puacutenica e quatro deacutecadas mais tarde quando os cocircnsules ndash respetivamente Flamiacutenio e Claacuteudio Pulcro ndash se viram desautorizados o primeiro pelo senado e o segundo pelos seus proacuteprios soldados por se terem dispensado das cerimoacutenias de partida ndash a investidura no comando militar por Juacutepiter ndash assumindo que a investidura pelo povo atraveacutes da eleiccedilatildeo e do voto da lex curiata seria suficiente Verifica-se assim que nestes dois casos os princiacutepios constitucionais arcaicos mesmo que defendidos por mero oportunismo poliacutetico ndash como teraacute sido o caso da oposiccedilatildeo do senado a Flamiacutenio ndash ainda estariam em vigor mas que poderaacute ter sido neste periacuteodo que se iniciou o movimento que no final da Repuacuteblica conduziu ao ceticismo sobre o valor das cerimoacutenias que como a dos auspiacutecios de partida eram tidas como meras formalidades23

A eficaacutecia o acircmbito temporal dos auspiacutecios de entrada em funccedilotildees ndash e logo o imperium domi do magistrado ndash soacute se esgota no final do periacuteodo de um ano que eacute o do mandato do cocircnsul24 No caso dos auspiacutecios de partida tal eficaacutecia soacute cessa no final da campanha quando o general regressa a Roma e atravessa o pomerium a linha que separa a cidade ndash zona desmilitarizada ndash do territoacuterio exterior em que o magistrado dispotildee do seu imperium pleno natildeo sujeito a pro-vocatio25

22 De referir neste ponto a observaccedilatildeo em Richardson 1991 5 relativa agrave utilizaccedilatildeo de magistrados que em princiacutepio faziam uso apenas do imperium domi (neste caso os pretores cuja magistratura teria sido concebida em 366 aC apenas com objetivos judiciais e natildeo militares) para missotildees no exterior que requeriam o imperium militiae inicialmente no contexto da Primeira Guerra Puacutenica e mais tarde em 227 aC para comandos na Siciacutelia e na Sardenha Richardson natildeo soacute constata que o importante eacute natildeo que o magistrado tenha sido eleito para um cargo especiacutefico mas que detenha aquele particular poder que eacute o imperium (situaccedilatildeo que parece contradizer a conceccedilatildeo de Magdelain segunda a qual a jurisdictio natildeo se confundiria com o imperium) como expressa a sua surpresa por outro lado por as fontes antigas natildeo comentarem essa mudanccedila de direccedilatildeo da pretura

23 Magdelain 1968 40-4224 Na realidade tambeacutem outros magistrados ordinaacuterios casos do pretor e do censor dispotildeem

de imperium domi e de imperium militiae e naturalmente dos seus pressupostos que satildeo os auspiacutecios de entrada em funccedilotildees e os auspiacutecios de partida O imperium militiae eacute necessaacuterio ao censor quando conduz a cerimoacutenia do lustrum ndash relativa a um periacuteodo de cinco anos ndash que requer a convocaccedilatildeo da assembleia das centuacuterias Para tal dispondo dos auspicia maxima procede a uma auspicatio de natureza semelhante agrave que eacute conduzida pelo general ao adquirir o seu poder militar obtendo assim a necessaacuteria investidura jupiteriana que lhe permite em seguida convocar a assembleia (Magdelain 1968 46-51 ver tambeacutem Versnel 1970 338-39)

25 Conforme referido supra nota 4 a provocatio eacute um direito de apelo ao populus contra as decisotildees do magistrado supremo As insiacutegnias mais visiacuteveis do imperium do cocircnsul satildeo constituiacutedas pelos doze lictores que o precedem e que transportam os feixes (desprovidos

287

Filipe Carmo

5 Privatus cum imperium promagistrados e imperium militiae

De acordo com o direito arcaico a tomada dos auspiacutecios de partida feita no Capitoacutelio portanto na zona no interior do pomerium eacute necessaacuteria agrave aquisiccedilatildeo do imperium militiae As exigecircncias das guerras no exterior a multiplicaccedilatildeo destas guerras sobretudo a partir da Segunda Guerra Puacutenica vatildeo alterar tal estado de coisas

Em primeiro lugar Roma vecirc-se constrangida a confiar comandos militares a simples particulares26 em que o caso mais em evidecircncia seraacute porventura o do jovem Cipiatildeo a quem o populus atribui em 210 aC o imperium militiae na Hispacircnia Tal atribuiccedilatildeo estaacute dissociada do poder civil (os acadeacutemicos designam por privati cum imperium os generais nestas condiccedilotildees) jaacute que Cipiatildeo natildeo havia sido eleito magistrado e natildeo pressupotildee a aprovaccedilatildeo de uma lex curiata Trata-se de um comando extraordinaacuterio criado por uma lei especial votada pelo populus e que torna supeacuterflua a intervenccedilatildeo das cuacuterias A capacidade de tomada dos aus-piacutecios de partida no Capitoacutelio inseparaacutevel da detenccedilatildeo do poder civil estaacute assim excluiacuteda mas tais comandantes extraordinaacuterios recebem algo de equivalente o que Magdelain designa laquoauspiacutecios de guerraraquo embora natildeo seja especificado como nem onde O que se poderaacute depreender contudo de outro caso notaacutevel o da atribuiccedilatildeo a Octaacutevio ndash desta vez natildeo atraveacutes do populus mas por decisatildeo do senado ndash do imperium propretoriano eacute que a cerimoacutenia auspicial podia ser transportada para outros locais que natildeo Roma jaacute que as leges arae Augusti Narbonensis datadas do final do reinado de Augusto referem especificamente que a investidura jupiteriana de Octaacutevio teve lugar em 7 de Janeiro de 43 aC em Espoleto na Itaacutelia Central

Em segundo lugar o recurso ao prolongamento das funccedilotildees de magistrado para missotildees de guerra torna-se cada vez mais corrente o que vem mesmo a implicar que a partir de Sula cerca de 80 aC os cocircnsules soacute saiam de Roma ex-cecionalmente As campanhas guerreiras ou as simples funccedilotildees de governaccedilatildeo das proviacutencias passam a ser sobretudo da responsabilidade de prococircnsules ou de propretores que para isso teratildeo que dispor do imperium militiae Para tal duas hipoacuteteses se podiam verificar num primeiro caso o magistrado encontra-se

ou natildeo dos machados respetivamente no interior da cidade quando exercem o imperium domi e para aleacutem do pomerium quando exercem o imperium militiae) As outras insiacutegnias (independentemente da sua utilizaccedilatildeo efetiva nos tempos republicanos) do imperium satildeo a toga pretexta a cadeira curul a coroa de ouro e o cetro com a aacuteguia Dever-se-aacute contudo observar que no caso particular do triunfo o magistrado conserva o imperium mantendo-se no exterior da cidade e dispotildee dele ainda no proacuteprio dia da cerimoacutenia transpondo o pomerium e penetrando na cidade onde decorreraacute a sua consagraccedilatildeo como general vitorioso (Magdelain 1968 44)

26 Em 211 aC face agrave ameaccedila cartaginesa o senado jaacute havia decretado que todos os que tinham sido no passado ditadores cocircnsules ou censores poderiam ser investidos no imperium ateacute que o inimigo fosse afastado das muralhas da cidade (Liv 26109)

288

O Imperium da origem ao Principado

ainda em campanha quando cessa o seu mandato o que significa a perda da sua competecircncia urbana por um lado mas por outro a prorrogaccedilatildeo do seu impe-rium militiae e a manutenccedilatildeo dos seus auspiacutecios de guerra num segundo caso o general soacute parte em campanha apoacutes o seu mandato ter expirado e a questatildeo da aquisiccedilatildeo dos auspiacutecios de guerra coloca-se de modo idecircntico ao acima referido para o privatus cum imperium

Esta evoluccedilatildeo da ordem constitucional eacute entendida de modo diverso pelos contemporacircneos do periacuteodo final da Repuacuteblica Ciacutecero purista conservador critica o novo estado de coisas dizendo que os auspiacutecios necessaacuterios satildeo tomados sim mas mal e por isso satildeo nulos Ceacutesar menos exigente considera que o local de tomada dos auspiacutecios de guerra eacute indiferente O que parece contudo inegaacutevel ndash transformaccedilatildeo profunda que afeta as relaccedilotildees entre o sagrado e o profano ndash eacute que a verdadeira fonte do imperium havia jaacute desde haacute deacutecadas deixado de ser a investidura por Juacutepiter para passar a ser a investidura popular27

6 Imperium domi e ritos da urbe

A dualidade do imperium ndash domi e militiae ndash jaacute pressuposta pela distinccedilatildeo entre auspiacutecios de entrada e auspiacutecios de partida acaba por ter correspondecircncia para Magdelain na contraposiccedilatildeo do territoacuterio urbano ao territoacuterio extraurba-no Eacute a inauguratio que sucede ao avistamento milagroso dos doze abutres por Roacutemulo28 que define aquele territoacuterio urbano dando-lhe um estatuto privilegia-do Um augurium29 dum tipo particular desce sobre o solo urbano protege-o contra as influecircncias nefastas do exterior e daacute-lhe um estatuto que eacute uacutenico A urbe eacute por outro lado submetida a interditos que lhe satildeo proacuteprios que tendem a preservar a sua pureza religiosa e a pocirc-la ao abrigo de contaminaccedilotildees causadas pelas sepulturas e pela atividade guerreira que dela satildeo excluiacutedas No espiacuterito dos romanos o exeacutercito estaacute associado agrave morte daiacute que os dois interditos tecircm a mesma natureza A vocaccedilatildeo do exeacutercito eacute a de se ocupar com as forccedilas nefastas do exterior e se excecionalmente penetra no territoacuterio urbano por ocasiatildeo do triunfo ele deve previamente purificar-se passando sob a porta triumphalis o que tem sido interpretado como um laquorito de passagemraquo que impede as contami-naccedilotildees O interdito guerreiro atinge inclusivamente dado o seu caraacutecter militar a assembleia das centuacuterias ndash que deve ser reunida no Campo de Marte situado na zona exterior do pomerium ndash e o proacuteprio deus da guerra ndash Marte ndash cujo culto eacute extraurbano tem o seu altar mais antigo fora da urbe Os interditos funeraacuterio

27 Magdelain 1968 51-5728 Liv 171-3 refere o avistamento dos doze abutres e o estabelecimento de muralhas

delimitadoras da urbe as quais pressupotildeem a existecircncia do pomerium que eacute referida em Liv 1444-5

29 Etimologicamente augurium significa laquoaumentoraquo laquoacrescentoraquo e corresponde agrave transferecircncia de uma becircnccedilatildeo uma outorga divina de uma forccedila sobrenatural

289

Filipe Carmo

e guerreiro tecircm a funccedilatildeo de assegurar a continuidade dos ritos primordiais que expulsaram os espiacuteritos nefastos e procederam agrave fundaccedilatildeo de Roma Assim proibindo o seu regresso mantecircm intacto o referido augurium sobrenatural garantindo a permanecircncia da urbe como uma zona de paz

Para Magdelain a dualidade do imperium eacute o reflexo da dualidade territo-rial assim como satildeo inseparaacuteveis a teoria dos ritos de fundaccedilatildeo e a da investidura do poder Natildeo teria pois havido lugar a uma dissociaccedilatildeo do poder civil do poder militar pretensamente ocorrida no decurso da Repuacuteblica Essa dissociaccedilatildeo seria originaacuteria teria decorrido do direito augural que havia cindido a cidade em dois territoacuterios distintos e atribuiacutedo dois poderes tambeacutem diferentes ao titular de uma soberania com duas faces

Por outro lado os auspiacutecios primordiais tomados por Roacutemulo ao fundar Roma teriam tido o duplo efeito de lhe conferir o imperium domi e de inaugurar a urbe Assim uma tal interpretaccedilatildeo da lenda da fundaccedilatildeo concebida pela tra-diccedilatildeo a partir do modelo dos auspiacutecios de entrada em funccedilotildees dos magistrados superiores equivale a ver naqueles a renovaccedilatildeo em princiacutepio anual da inaugu-raccedilatildeo da urbe portanto da fundaccedilatildeo da cidade30

A repeticcedilatildeo do avistamento milagroso dos doze abutres que a lenda criada pelos ideoacutelogos Augustanos atribui a Octaacutevio pretende transformar este num novo Roacutemulo que vem fundar Roma uma segunda vez Isto ocorre apoacutes um periacuteodo que sucede agrave guerra social de 91-89 aC em que em particular a cida-dania eacute alargada aos aliados italianos de Roma recolocando a questatildeo do espaccedilo em que o imperium domi o poder civil deveria vigorar e em que o nuacutemero de detentores do imperium militiae sobretudo os promagistrados aumenta expo-nencialmente O pomerium manteacutem-se em termos de direito sagrado como o limite da urbe e isso natildeo eacute indiferente para os ritos associados ao poder em particular no que respeita ao local onde os auspiacutecios devem ser tomados Mas a realidade do exerciacutecio do poder civil impotildee-se e alarga o seu acircmbito a toda a Itaacutelia sem que seja possiacutevel delimitar adequadamente as etapas de tal processo31 Por outro lado o exerciacutecio do imperium militiae das magistraturas extraordi-naacuterias de plenos poderes tambeacutem se altera atraveacutes de uma simplificaccedilatildeo em particular das formalidades que lhe estatildeo associadas32

7 A reaccedilatildeo agrave atomizaccedilatildeo do poder o imperium Romanum

Um ponto culminante neste processo evolutivo do imperium teraacute sido o

30 Magdelain 1968 57-7131 O caso dos cocircnsules de 49 aC eacute exemplo embora extremo desta dificuldade Integrados

no exeacutercito de Pompeio em Tessaloacutenica ndash solo portanto natildeo italiano ndash esses cocircnsules renunciam a presidir agraves eleiccedilotildees consulares sem lex curiata e portanto agrave apresentaccedilatildeo dessa mesma lei Ver DC 4143 e Magdelain 1968 28

32 Magdelain 1968 72-73

290

O Imperium da origem ao Principado

ano 23 aC quando eacute estabelecida a superioridade do poder de Augusto Eacute nessa ocasiatildeo que lhe eacute atribuiacutedo a tiacutetulo vitaliacutecio o cargo de prococircnsul significando tambeacutem essa atribuiccedilatildeo que Augusto natildeo teraacute que renunciar ao cargo quan-do entra na cidade ou renovaacute-lo quando dela saia (ou seja quando transpotildee o pomerium num ou noutro sentido) Passa aleacutem disso a gozar de um imperium superior ao do governador em qualquer proviacutencia33 Neste enquadramento natildeo surpreende que a historiografia tenha vindo a produzir interpretaccedilotildees que con-duzem a ver na evoluccedilatildeo dos primeiros tempos do Principado uma apropriaccedilatildeo por Octaacutevio de atributos jupiterianos nomeadamente atraveacutes da adjunccedilatildeo agrave sua pessoa do prenome de Imperator e do sobrenome de Augustus e da aquisiccedilatildeo de um monopoacutelio tendencial dos auspicia militiae Dado que as vitoacuterias satildeo obtidas pelos seus legati sob os seus auspiacutecios ou sob as suas ordens elas satildeo suas e soacute ele deveraacute receber as honras delas derivadas nomeadamente a cerimoacutenia do triunfo34

Para JS Richardson a consequecircncia das honras atribuiacutedas a Augusto em 23 aC teraacute sido a formalizaccedilatildeo de algo que jaacute anteriormente havia tido manifes-taccedilotildees concretas designadamente com Juacutelio Ceacutesar (natildeo poderaacute deixar de se dar relevo ao facto de que os passos no sentido da concentraccedilatildeo do poder tenham surgido como uma reaccedilatildeo agrave sua atomizaccedilatildeo o referido aumento exponencial do nuacutemero de detentores do imperium militiae ocorrido apoacutes Sula) Embora em termos estritamente legais continuasse a haver outros detentores de imperium para aleacutem do princeps na praacutetica ele havia concentrado o poder nas suas matildeos O imperium havia assim sido efetivamente unificado num modo como nunca havia sucedido desde a eacutepoca dos reis natildeo sendo pois surpreendente que simul-taneamente uma noccedilatildeo mais moderna de impeacuterio a de imperium Romanum tenha surgido e que tenha sido pela utilizaccedilatildeo do imperium atraveacutes de todo o mundo conhecido que a monarquia havia regressado a Roma35

A expressatildeo imperium Romanum traduziria assim o controlo romano do mundo e natildeo o imperium entendido este mais como uma laquosubstacircnciaraquo (eacute a pa-lavra utilizada por Richardson) concedida pelos deuses atraveacutes da qual nos tem-pos da Repuacuteblica os membros da elite senatorial conduziam a guerra a favor do Estado e mais tarde no Principado os generais o faziam em princiacutepio em nome

33 DC 5332 A autoridade de Augusto foi ainda reforccedilada pela atribuiccedilatildeo vitaliacutecia do poder tribuniacutecio sem que usasse o tiacutetulo de tribuno

34 Combegraves 1966 155-56 e seguintes Ver tambeacutem Fears 1981 43-66 nomeadamente no que respeita agrave alegada substituiccedilatildeo da representaccedilatildeo de Juacutepiter como fonte das vitoacuterias romanas pela figura de Augusto

35 Richardson 1991 8-9 Galinsky neste enquadramento chama a atenccedilatildeo para o paralelo entre os desenvolvimentos a niacutevel da poliacutetica interna e o imperium Romanum laquohellipjust as the [developments in domestic policy] were directed toward the institutionalization of Augustusrsquo power so was the overriding aim of foreign policy the institutionalization of the imperium of Rome The two coalesced in the imperator Augustushellipraquo (Galinsky 1996 369)

291

Filipe Carmo

do imperador De algum modo aliaacutes imperium Romanum sempre teria existido no sentido de que expressava um poder coletivo o do populus Romanum o que aproximaria o sentido do conceito do de res publica e integraria tanto o poder militar como o poder civil36

Imperium como o poder exercido individualmente imperium como o po-der exercido por uma coletividade natildeo esgotam contudo os sentidos em que a palavra eacute usada Uma utilizaccedilatildeo do termo que se afirma no final da Repuacuteblica eacute a que o assimila a estrutura entidade poliacutetica sentido intimamente relacionado com o espaccedilo em que o poder eacute exercido por tal entidade (introduzindo assim uma aceccedilatildeo territorial)37 Conveacutem contudo manter presente que a utilizaccedilatildeo do termo pode pressupor em simultacircneo os sentidos de poder de entidade (o Esta-do) e de extensatildeo territorial Assim quando utilizamos a expressatildeo imperium Romanum ndash e natildeo haacute razotildees para crer que nos uacuteltimos tempos da Repuacuteblica Romana e nos primoacuterdios do Impeacuterio natildeo sucedesse o mesmo ndash podemos estar a referir-nos tanto ao Estado Romano como ao territoacuterio em que a sua autoridade se exerce ou ainda ao conceito abstrato que tal autoridade traduz e que eacute o poder que exerce sobre os povos que habitam o referido territoacuterio e eventualmente sobre outros povos que se encontram fora dos limites territoriais pressupostos

Eacute a existecircncia de tal conceito abstrato que permite aliaacutes compreender a evoluccedilatildeo que conduz aos outros sentidos Jaacute Poliacutebio em meados do seacuteculo II aC descrevia os romanos como senhores de quase todo o mundo habitado38 Na sua perspetiva o impeacuterio romano incluiacutea natildeo soacute os territoacuterios definidos como pro-viacutencias39 mas tambeacutem grandes reinos heleniacutesticos como o Egito e a Siacuteria e outros pequenos reinos e cidades tidas como livres Visatildeo ainda mais universalista seria a transmitida pelas proacuteprias moedas romanas que jaacute nos anos 70 do seacuteculo I aC representavam Roma com o seu peacute sobre o globo ou o do primeiro texto latino que na deacutecada anterior afirmava o imperium orbis terrae do povo roma-no40 Eacute esta capacidade de interferecircncia em territoacuterios que natildeo estatildeo sujeitos agrave

36 Richardson 1991 5 Jaacute no seacuteculo V aC o tribuno Canuleio colocava em termos poleacutemicos a questatildeo sobre quem dispunha do mais elevado imperium os seus oponentes patriacutecios ou o povo romano (Liv 451) Naturalmente que nesta perspetiva eram invocados tanto o poder militar como o civil Segundo Richardson 1991 6 o primeiro uso conhecido da expressatildeo imperium Romanum teria ocorrido jaacute apoacutes a morte de Ciacutecero com Saluacutestio (Sall Cat 101)

37 Richardson 1991 6 cita um fragmento de Aacutecio tragedioacutegrafo do seacuteculo II aC em que se refere o laquoArgivum imperiumraquo significando laquoreino de Argosraquo e a associaccedilatildeo por Ciacutecero de imperium a urbs civitas e res publica em contextos que sugerem que se trata quase de um sinoacutenimo dessas palavras

38 Plb 11 e 1339 Lintott 1981 53-54 O conceito primaacuterio de provincia era o de nomeaccedilatildeo funccedilatildeo a

desempenhar missatildeo a cumprir tendo sido a associaccedilatildeo dessa missatildeo a um territoacuterio preciso que progressivamente alterou ou ampliou o sentido da palavra estendendo-o ao territoacuterio diretamente administrado por Roma

40 Rhetorica ad Herennium 4913

292

O Imperium da origem ao Principado

sua administraccedilatildeo direta esse poder de se fazer obedecer ndash se necessaacuterio pela forccedila das armas ndash pelos povos pelos reis e por outros poderosos que conduz Roma progressivamente agrave criaccedilatildeo de relaccedilotildees ditas de amicitia com outros estados ndash frequentemente meros protetorados ndash agrave criaccedilatildeo de estados-tampatildeo agrave intromissatildeo nos assuntos internos de tais estados e naturalmente quando era essa a sua conveniecircncia a poliacuteticas de mera anexaccedilatildeo Com o avanccedilar dos tempos esta diversidade de relaccedilotildees com as partes constituintes do seu impeacuterio tenderaacute contudo a reduzir-se e uma maior uniformidade emergiraacute em que as proviacutencias no seu sentido de territoacuterios diretamente administrados abrangeratildeo a parcela fundamental dos territoacuterios sob controlo e o imperium Romanum na aceccedilatildeo territorial o sentido predominante41

Imperium natildeo deixa contudo de constituir um termo de difiacutecil definiccedilatildeo de modo a expressar todas as subtilezas de significado que transmite Se a institu-cionalizaccedilatildeo do imperium Romanum sob formas proacuteximas dos conceitos mo-dernos de impeacuterio e imperialismo se afirma nos uacuteltimos tempos da Repuacuteblica jaacute o poder exercido por Juacutelio Ceacutesar e sobretudo por Augusto introduz uma nova realidade que mais uma vez eacute difiacutecil de encontrar no nosso mundo atual Para Augusto que procura por todos os meios afirmar o seu poder pessoal o recurso aos siacutembolos de poder foi progressivamente adquirindo uma importacircncia fun-damental Se o seu pai adotivo Juacutelio Ceacutesar jaacute havia recorrido agrave construccedilatildeo do templo de Venus Genetrix situando-o no centro do Forum Julii para atestar a sua ascendecircncia divina Augusto natildeo deixou de lhe seguir o exemplo transfe-rindo algumas funccedilotildees religiosas antes localizadas no espaccedilo capitolino para o seu Forum engrandecendo-o com estaacutetuas e inscriccedilotildees honoriacuteficas Por outro lado o fervor que colocou na metamorfose urbana da cidade de Roma em par-ticular com as construccedilotildees edificadas no complexo norte do Campo de Marte contribuiu de modo significativo para afirmar a sua ambiccedilatildeo agrave imortalidade ndash a exemplo aliaacutes do que numerosos generais haviam procurado fazer no passado com os seus triunfos (cerimoacutenia agora monopolizada pelo princeps) e constru-ccedilatildeo de templos e altares ndash e explicar a veneraccedilatildeo de que foi alvo apoacutes a sua morte Veneraccedilatildeo ocorrida antes ainda da construccedilatildeo do templum novum divi Augusti que com dedicatoacuteria de Gaio Caliacutegula foi inaugurado em 37 dC42

41 Lintott 1981 53-6742 Rehak 2006 3-8 141-46

293

Filipe Carmo

Bibliografia

Carmo F 2010 O significado da implantaccedilatildeo da Repuacuteblica Romana Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Histoacuteria Antiga Lisboa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Coli U 1951 ldquoRegnumrdquo In Studia et Documenta Historiae et Iuris Vol 17 1-168 Roma Apollinaris

Combegraves R 1996 Imperator Recherches sur lrsquoemploi et la signification du titre drsquoImperator dans la Rome reacutepublicaine Paris Presses Universitaires de France

De Martino F 1972-1975 Storia della costituzione romana Vol 1 Naacutepoles Jovene

Fears J R 1981 ldquoThe Cult of Jupiter and Roman Imperial Ideologyrdquo In ANRW 2 (172)3-141

Galinsky K 1996 Augustan Culture Princeton Princeton University PressHumbert M 2007 Institutions politiques et sociales de lrsquoAntiquiteacute 9ordf ed Paris

DallozLintott A 1981 ldquoWhat was the lsquoImperium Romanumrsquordquo Greece amp Rome 2ordf seacuterie

28 (1)53-67Magdelain A 1968 Recherches sur lrsquolaquoImperiumraquo la loi curiate et les auspices

drsquoinvestiture Paris Presses Universitaires de FranceNicholls J J 1967 ldquoThe Content of the Lex Curiatardquo The American Journal of

Philology 88 (3)257-78Rehak P 2006 Imperium and Cosmos Augustus and the Northern Campus

Martius Madison The University of Wisconsin PressRichardson J S 1991 ldquoImperium Romanum Empire and the Language of

Powerrdquo The Journal of Roman Studies 811-9Smith C J 2006 The Roman Clan The ldquogensrdquo From Ancient Ideology to Modern

Anthropology Cambridge Cambridge University PressVersnel H S 1970 Triumphus an Inquiry into the Origin Development and

Meaning of the Roman Triumph Leiden Brill

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

295

Amiacutelcar Guerra

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircnia contrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente1

(Building the empire in Hispania contrasts amongst the narratives on the Roman conquest of the West)

Amiacutelcar Guerra(aguerracampusulpt ORCID 0000-0003-3478-0036)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras CH-ULisboa e UNIARQ

Resumo - A imagem que a historiografia antiga apresenta do processo de construccedilatildeo do imperialismo romano e dos seus intervenientes depende inevitavelmente de uma perspetiva enformada pela cultura grega e latina e pelos seus paradigmas Deste modo o quadro que se transmite dos povos hispacircnicos deve ser sempre lido nessa chave apresentando-se em oposiccedilatildeo agravequeles numa dicotomia que com frequecircncia se associa agrave oposiccedilatildeo entre civilizaccedilatildeo e barbaacuterie Constata-se de qualquer modo que a visatildeo desse mundo natildeo eacute necessariamente plana Dispomos de um nuacutemero consideraacutevel de exemplos que ilustram a complexidade desse panorama Neste sentido apresentam--se alguns exemplos em que de alguma forma se enuncia uma imagem reversa por um lado a arenga de Aniacutebal aos seus soldados antes da batalha do Ticino em que o general apresenta a sua perspetiva sobre o comportamento dos romanos por outro referem-se alguns episoacutedios em que se potildee em evidecircncia o heroiacutesmo de mulheres hispacircnicas a comeccedilar pelo que ocorre entre os Braacutecaros no contexto da campanha galaica de Deacutecimo Juacutenio Bruto

Palavras-chave Imperialismo romano Hispacircnia Deacutecimo Juacutenio Bruto Aniacutebal

Abstract ndash The ancient historiography offers an image of the Iberian conquest pro-cess and its actors according to a perspective shaped by Greek and Latin culture and its models Thus the portrait of the Hispanic peoples transmitted by the ancient sources must always be interpreted on this key i e as a dichotomy between civilization and barbarism However the view of this other world is not necessarily plain We have a considerable number of examples illustrating the complexity of the circumstances emerging of classical sources With this proposal we will analyse some examples in which a reverse of the ordinary perspective is offered Hannibalrsquos harangue to his soldiers before the battle of Ticinus and some episodes that highlight the heroism of Hispanic women

Keywords Roman imperialism Hispania Decimus Junius Brutus Hannibal

1 Este trabalho foi apoiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto UIDHIS043112013

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_16

296

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

1 Introduccedilatildeo

Quando se aborda a questatildeo das fontes relativa agrave histoacuteria da Hispacircnia romana percebe-se de imediato a amplitude e importacircncia dos textos que se reportam a essa fase marcada essencialmente pelas movimentaccedilotildees poliacutetico--militares associadas agrave conquista do territoacuterio Trata-se eacute certo de um periacuteodo bastante longo que abarca cerca de dois seacuteculos se considerarmos o lapso de tempo que vai das primeiras referecircncias agrave 2ordf guerra puacutenica ateacute agrave conclusatildeo de todo o processo com as guerras contra Cacircntabros e Aacutestures Sem ignorar aspe-tos relevantes para compreender a histoacuteria geografia e etnologia da Hispacircnia sobressai a informaccedilatildeo sobre as muacuteltiplas accedilotildees militares desse periacuteodo cen-tradas natildeo apenas no lado romano mas descrevendo igualmente as teacutecnicas e estrateacutegias de combate dos povos hispacircnicos bem como todo o contexto poliacutetico e laquodiplomaacuteticoraquo que as enquadra

Natildeo surpreende neste repositoacuterio que a narrativa sobre os conflitos se al-inhe por uma perspetiva romana ou mais propriamente por uma forma de ver imbuiacuteda de uma cultura greco-latina que domina o mundo mediterracircneo Se os textos sublinham por vezes a admiraccedilatildeo pelo desenvolvimento de umas regiotildees ribeirinhas do Mediterracircneo assinalam por outro lado alguma estranheza em relaccedilatildeo a um universo que natildeo se enquadra nessa esfera E neste caso se encon-tram as regiotildees setentrionais e ocidentais da Hispacircnia

Este contributo visa explorar precisamente esse contraste cultural e forma como alguns autores claacutessicos o exprimem apresentando-o de forma mais ou menos expliacutecita como sinais da superioridade civilizacional do imperialismo romano Dada a impossibilidade de analisar genericamente um tema tatildeo com-plexo no acircmbito de um contributo necessariamente bastante reduzido selecion-aremos alguns quadros especiacuteficos que de alguma forma proporcionam uma visatildeo diferenciada da realidade hispacircnica no periacuteodo da conquista

Trataremos de forma necessariamente breve da anaacutelise de textos de auto-res latinos como Tito Liacutevio Floro e Oroacutesio mas tambeacutem de liacutengua grega como Apiano Poliacutebio Plutarco procurando analisar alguns aspetos que se prendem com a forma de olhar para os diversos agentes deste processo expansionista romano cuja natureza eacute sempre apreciada numa perspetiva externa A escolha destes autores e de alguns dos seus textos pretende ilustrar de qualquer modo a diversidade de pontos de vista sobre os intervenientes e a complexidade que pode apresentar a representaccedilatildeo destas realidades locais2

2 As relaccedilotildees entre o imperialismo romano e o seu confronto com as entidades locais na perspetiva de diferentes autores claacutessicos constituem um toacutepico largamente analisado Para um acircmbito mais geral pode ver-se ultimamente Revell 2009 para o caso especiacutefico da Peniacutensula Ibeacuterica dispomos de uma abundante literatura Garciacutea Moreno 1987 1989 2005 Goacutemez Espe-losiacuten 1993 2009 Garciacutea Quintela 1999 Salinas 1999 2002 165-80 Pelegriacuten 2003 Gracia 2009 Hernaacutendez Prieto 2011 Aguilera 2012

297

Amiacutelcar Guerra

A superioridade da cultura greco-romana constitui naturalmente um dos toacutepicos que marcam a historiografia antiga emergindo com clareza a dicotomia entre esse universo e o que natildeo se enquadra nele A forma de encarar essa opo-siccedilatildeo eacute tratada pelo proacuteprio Estrabatildeo em especial nas reflexotildees que encerram o livro I da sua Geografia Eacute significativo que ele aiacute exprima a sua oposiccedilatildeo a uma perspetiva distinta com tradiccedilatildeo no pensamento grego3 Refere explicitamente a sua oposiccedilatildeo a Eratoacutestenes o qual natildeo concordava com uma visatildeo histoacuterica em que se opunha grego a baacuterbaro4 sublinhando o geoacutegrafo alexandrino que haacute plena justificaccedilatildeo nessa diferenccedila uma vez que temos por um lado sociedades que se regem pela lei pela educaccedilatildeo e pela razatildeo (τὸ νόμιμον καὶ τὸ παιδείας καὶ λόγων) por outro comunidades que representam todo o contraacuterio

Esta oposiccedilatildeo que pode ser mais evidente em Estrabatildeo eacute precisamente con-traacuteria agrave praacutetica de Alexandre Magno como se diz no passo referido e matizada como se veraacute em outros autores dando-se aqui especial destaque a Apiano

De qualquer modo mesmo que pontualmente possa sublinhar-se a digni-dade dos povos peninsulares nunca parece questionaacutevel a supremacia romana Esta natildeo resulta unicamente da sua elevada capacidade militar mas generi-camente do seu modo de vida da sua cultura refletida em muitos aspetos da organizaccedilatildeo social e poliacutetica e emergindo tanto nas estrateacutegias de guerra na sua conceccedilatildeo do bellum iustum como nos domiacutenios da diplomacia da sua relaccedilatildeo com os povos hispacircnicos Mas acima de tudo essa superioridade eacute de natureza eacutetica isto eacute pauta o seu comportamento por valores distintos soacutelidos e estaacuteveis Agrave semelhanccedila do que se pedia a qualquer cidadatildeo na sua vida privada e puacuteblica tambeacutem se pedia aos governantes e aos generais o respeito pelos princiacutepios que definiam o modelo do cidadatildeo

Essa realidade cultural insere-se na tradiccedilatildeo da histoacuteria e etnografia gregas de periacuteodo tardo-republicano e alto-imperial e por essa razatildeo os textos datildeo conta com frequecircncia de casos concretos que demonstram que a cultura da urbe se sobrepunha agrave dos povos dominados Um desses exemplos evocado tantas vezes pela historiografia moderna reside no episoacutedio da conquista de Lancia uma notaacutevel cidade dos Aacutestures e um dos uacuteltimos redutos deste povo As nar-rativas paralelas de Floro e Oroacutesio datildeo conta de um episoacutedio ilustrativo que se enquadra bem na tradiccedilatildeo romana de promover as virtudes dos seus generais e sua superioridade moral

3 Este texto e as suas implicaccedilotildees foi analisado tendo em conta a realidade hispacircnica em Plaacutecido (1989 252-53)

4 Eacute muito ampla a investigaccedilatildeo que explora esta oposiccedilatildeo como perspetiva de anaacutelise do mundo antigo entre eles Dauge 1981 Thollard 1987 Hall 1989 e Woolf 2011 em relaccedilatildeo agrave Hispacircnia em particular v Bermejo Barrera 1986 Duplaacute et al 1988 Pelegriacuten 2003 Gonzaacutelez Ballesteros 2009 e Aguilera Duraacuten 2012

298

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

laquoA valorosa cidade de Lacircncia acolheu o remanescente do exeacutercito destroccedilado onde se combateu a tal ponto com as dificuldades do terreno que quando se reclamava o incecircndio da cidade jaacute tomada a muito custo o general conse-guiu compreensatildeo para o facto de esta ser mais alto testemunho da victoacuteria de Roma mantendo-se assim que incendiadaraquo5

A narrativa de Oroacutesio eacute semelhante raquohellip e quando os soldados se pre-paravam para atacarem pelo fogo a cidade sitiada o comandante Cariacutesio por um lado pediu aos seus que pusessem termo ao incecircndio e por outro exigiu dos baacuterbaros a declaraccedilatildeo de rendiccedilatildeo - eacute que procurava com empenho deixar a cidade inteira e preservada como testemunho da sua victoacuteria6raquo

Como se tem sublinhado no contexto das narrativas que refletem bem os efeitos de uma eficiente accedilatildeo propagandiacutestica de Augusto7 estes aspetos particu-lares constituem elementos sugestivos e perfeitamente adequados aos objetivos do princeps

2 O olhar reverso sobre o imperialismo romano a arenga de Aniacutebal

A literatura claacutessica natildeo deixa todavia de apresentar de certa forma o contraponto dessa superioridade romana Quer seja por efeito retoacuterico quer na sequecircncia de uma visatildeo mais realista deste universo dos povos em conflito com Roma natildeo faltam elementos que datildeo conta de uma outra perspetiva de encarar o domiacutenio romano

Um dos mais sugestivos passos a este respeito colhe-se no ceacutelebre discur-so que Aniacutebal pronuncia aos seus soldados depois da passagem dos Alpes na iminecircncia de enfrentarem e derrotarem o inimigo na batalha do Ticino Como tem sido referido este ceacutelebre texto elaborado por Tito Liacutevio de acordo com os mais consagrados modelos retoacutericos8 coloca na boca do general cartaginecircs o que deveriam ser alguns dos argumentos que se poderiam invocar contra o comportamento laquoimperialistaraquo da Urbe

laquoPovo cruel e soberbo tudo faz seu e segundo o seu arbiacutetrio pensa que eacute justo impor-nos com quem havemos de estar em guerra com quem em paz

5 Reliquias fusi exercitus ualidissima ciuitas Lancia excepit ubi cum locis adeo certatum est ut cum in captam urbem faces poscerentur aegre dux impetrauerit ueniam (58) ut uictoriae Romanae stans potius esset quem incensa monumentum (Flor 23357-58)

6 hellip cumque milites circumdatam urbem incendio adoriri pararent dux Carisius et a suis cessationem impetrauit incendii et a barbaris uoluntatem deditionis exegit studiose enim nitebatur integram atque incolumem ciuitatem uictoriae suae testem relinquere (Oros 62110)

7 Sobre este toacutepico v Salinas 19988 Uma recente anaacutelise sob esta perspetiva retoacuterica pode encontrar-se em Manchoacuten Goacutemez

2013

299

Amiacutelcar Guerra

circunscreve-nos e encerra-nos em limites de montes e vales que natildeo podemos ultrapassar e que nem sequer respeita as fronteiras que estabeleceraquo9

E invoca de seguida as afrontas mais recentes da fronteira do Ebro e da questatildeo saguntina recordando ao mesmo tempo o roubo da Sardenha e da Siciacutelia

Ainda que se trate como se disse de uma peccedila retoacuterica o patavino natildeo deixa de pocircr em relevo dois aspetos que marcam o comportamento de Roma e que se encontram bem documentados nos relatos de guerra referentes agrave Hispacircnia a imposiccedilatildeo de exigecircncias agraves comunidades locais por vezes aparentemente injus-tificadas ou natildeo suficientemente expliacutecitas nomeadamente de ordem territorial e o incumprimento dos tratados que a proacutepria Roma subscreve

Na literatura referente agraves guerras na Hispacircnia encontra-se com frequecircncia a expressatildeo concreta dessa poliacutetica de fixaccedilatildeo das populaccedilotildees da determinaccedilatildeo de um territoacuterio e das respetivas fronteiras ou da imposiccedilatildeo de restriccedilotildees no domiacute-nio territorial Uma das mais relevantes consequecircncias desta poliacutetica manifesta--se no croacutenico problema da laquofalta de terrasraquo e que se encontra insistentemente referida no caso dos Lusitanos mas tambeacutem em outras entidades Um exemplo ilustrativo pode encontrar-se num famoso passo de Apiano (Hisp 59) no qual se transcreve a explicaccedilatildeo de Galba para o permanente conflito com este povo laquohellip a esterilidade do solo disse e a pobreza vos forccedilam a fazer estas coisas mas eu vos darei terras feacuterteis por serdes aliados sem recursos e vos estabelecerei em campos abundanteshellipraquo

Embora esta questatildeo seja frequentemente sublinhada nem sempre foi devi-damente avaliada pela historiografia moderna que apresenta geralmente uma interpretaccedilatildeo demasiado dependente da visatildeo que enforma os textos claacutessicos

Na realidade como se sublinha bem neste passo natildeo se trata precisamente de um problema de uma carecircncia de terras mas de uma questatildeo relativa agrave quali-dade das mesmas e por isso se acentua a oposiccedilatildeo entre a laquoesterilidade do soloraquo que caracteriza o territoacuterio ocupado pelos lusitanos e as laquoterras feacuterteisraquo que lhes satildeo prometidas10

Naturalmente a razatildeo pela qual os Lusitanos se debatem com essa difiacutecil situaccedilatildeo reside no facto de o poder romano ter desenvolvido no Sul da Hispacircnia em particular numa boa parte do territoacuterio da atual Andaluzia uma poliacutetica de acesso aos solos feacuterteis que privilegiou os povos aliados

9 Crudelissima ac superbissima gens sua omnia suique arbitrii facit cum quibus bellum cum quibus pacem habeamus se modum imponere aequum censet Circumscribit includitque nos terminis montium fluminumque quos non excedamus neque eos quos statuit terminos observat (Liv 23445)

10 Para a anaacutelise desta questatildeo e deste passo em particular v Sayas Abengochea 1989 esp 711-14

300

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

Entre eles Apiano refere os Blasto-feniacutecios e Coacutenios e certamente neles tambeacutem se integram os Turdetanos entre os quais podemos encontrar como arqueacutetipo Astolpas representante de uma proacutespera elite colaboracionista Deste modo essa regiatildeo proverbialmente rica no domiacutenio agriacutecola torna-se progressivamente inacessiacutevel aos que natildeo aceitam a influecircncia romana O contraste entre a natureza do territoacuterio controlado por romanos e lusitanos transparece igualmente num dos toacutepicos que a literatura associa a estes uacuteltimos o facto de estes serem populaccedilotildees que habitam essencialmente as zonas montanhosas Naturalmente esta circunstacircncia natildeo pode resultar de uma opccedilatildeo expressamente feita por essa entidade mas decorre do proacuteprio processo de conquista e da pressatildeo militar que os romanos exercem sobre eles empurrando-os para essa situaccedilatildeo

Voltando ao texto do discurso de Aniacutebal parece claro que na ideia do patavino o mundo lusitano se apresenta como uma realidade pobre e agreste circunstacircncia que anda associada ao caraacutecter belicoso deste povo Por essa razatildeo a promessa do general puacutenico de uma campanha proveitosa em tudo diferente das difiacuteceis accedilotildees anteriores in vastis Lusitaniae Celtiberiaeque montibus11 pode servir precisamente para sublinhar a dicotomia entre a pobreza destes e a riqueza dos povos da Cisalpina e da Itaacutelia

Pode colher-se nos textos claacutessicos uma ideia a da existecircncia de uma espeacutecie de determinismo que faz com as populaccedilotildees das regiotildees mais inoacutespitas natildeo sejam apenas mais pobres mas tambeacutem por essa razatildeo constroem um outro modelo de vida no qual a praacutetica da pilhagem constitui uma resposta agraves suas carecircncias Em consequecircncia disso desenvolveram capacidades especiais estando por isso mais preparadas para a guerra uma vez que o seu modelo de sobrevivecircncia passa por aquilo que as fontes designam de forma pejorativa como latrocinium o laquobandoleirismoraquo

Esta forma de caracterizar o mundo lusitano teve uma ampla difusatildeo na literatura claacutessica continuada por um conjunto muito diversificado de consideraccedilotildees na historiografia moderna especialmente nas uacuteltimas deacutecadas12

A alusatildeo a estes dois povos ibeacutericos deve corresponder nestas circunstacircncias a uma elaboraccedilatildeo histoacuterica marcada pelo anacronismo Tito Liacutevio recupera os seus conhecimentos da realidade histoacuterica subsequente (especialmente da segunda metade do seacutec II a C mas tambeacutem no seacutec I a C) em que os confrontos com Lusitanos e Celtiberos se registam amplamente nas fontes deixando a impressatildeo de que estes povos colocaram em seacuterias dificuldades os exeacutercitos de Roma Deste modo tambeacutem os puacutenicos teriam

11 Liv 2143812 Sobre o tema v Garciacutea y Bellido 1945 Clavel-Leacutevecircque 1978 Sayas Abengochea 1989

Vallejo Girveacutes 1994 Saacutenchez-Corriendo 1997 Goacutemez Fraile 1999 Saacutenchez Moreno 2006 Riess 2011 Vives Ferrer 2015

301

Amiacutelcar Guerra

enfrentado tais dificuldades que a empresa que se seguia seria certamente mais faacutecil e proveitosa

A inclusatildeo da referecircncia a essas entidades resulta mais do processo de construccedilatildeo retoacuterica e dos elementos nela incluiacutedos do que de circunstacircncias histoacutericas concretas reportaacuteveis a um periacuteodo precedente em que se regista-riam conflitos especiacuteficos entre puacutenicos celtiberos e lusitanos Esta observaccedilatildeo pretende pois chamar a atenccedilatildeo para o contexto do que se apresenta como a primeira referecircncia aos Lusitanos e que marcaria a forma como esta entidade entra na Histoacuteria Haacute que ponderar sempre as informaccedilotildees relativas a periacuteodos precedentes e em particular quando constituem elementos tiacutepicos de uma nar-rativa histoacuterica como os discursos naturalmente sempre pontuados por visotildees que correspondem mais agrave perspetiva do tempo que agraves condiccedilotildees vividas alguns seacuteculos antes Neste caso uma discrepacircncia de dois seacuteculos pode fazer bastante diferenccedila e esta pode passar despercebida a quem transmite a informaccedilatildeo A construccedilatildeo discursiva de Liacutevio poderaacute ser tributaacuteria de relatos correspondentes aos conflitos de periacuteodo cesariano que de alguma forma evocam a expressatildeo usada por Tito Liacutevio para definir a accedilatildeo do exeacutercito como uma pouco proveitosa perseguiccedilatildeo de rebanhos nas vastas montanhas da Lusitacircnia e da Celtibeacuteria (in vastis Lusitaniae Celtiberiaeque montibus pecora consectando) Esta referecircncia natildeo deixa de recordar algumas circunstacircncias particulares da incursatildeo de Ceacutesar na Lusitacircnia mais concretamente no monte Hermiacutenio conhecidas pelo texto Diacuteon Caacutessio13 onde se explica como os habitantes dessa regiatildeo procuraram per-turbar a accedilatildeo dos exeacutercitos romanos enviando agrave frente os seus rebanhos

3 Deacutecimo Juacutenio Bruto entre os Braacutecaros olhares sobre o he-roiacutesmo feminino na Hispacircnia

A construccedilatildeo de uma imagem do mundo ocidental parece resultar igual-mente com bastante clareza do conhecido episoacutedio da incursatildeo de Deacutecimo Juacutenio Bruto no mundo galaico a que se dedica aqui uma especial atenccedilatildeo Este eacute-nos apresentado de forma mais sugestiva por Apiano o qual inclui na sua nar-rativa alguns aspetos que contribuem para consolidar a ideia de que este autor transmite uma imagem complexa e por assim dizer mais equilibrada de que outros autores como Tito Liacutevio na qual se cruzam aparentemente perspetivas contrastantes a respeito dos povos locais

Haacute alguns anos analisando precisamente a imagem que este autor de liacuten-gua grega nos transmite na sua obra especialmente na dedicada agraves guerras na Hispacircnia Goacutemez Espelosiacuten14 chamava a atenccedilatildeo para esses contrastes de um lado pesaria a sua admiraccedilatildeo por Roma e pelo impeacuterio que construiu pelo seu

13 DC 3752514 Especialmente em Goacutemez Espelosiacuten 2009

302

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

contributo para a construccedilatildeo de um mundo mais unitaacuterio e integrador mais pa-ciacutefico e desenvolvido correspondendo bem agrave ideologia que o modelo augustano tinha elaborado e do qual participam igualmente outros autores na sua situaccedilatildeo como Estrabatildeo do outro a simpatia manifestada por alguns aspetos do caraacutecter ou atuaccedilatildeo dos opositores de Roma

Apesar de este autor grego se incluir entre os que admiram as reali-zaccedilotildees dos romanos ref lete bem a complexidade da sua situaccedilatildeo cultural revelando perspetivas sobre os acontecimentos que podem parecer contradi-toacuterias Ainda que a dicotomia entre civilizado e baacuterbaro estruture a sua visatildeo deste mundo hispacircnico com natural preferecircncia pelo que genericamente caracteriza o primeiro natildeo deixa de valorizar alguns aspetos concretos de um mundo que em certa medida constitui a sua antiacutetese E esta sua posiccedilatildeo radica estruturalmente na sua dupla identidade a de romano e de alexan-drino15

Depois de descrever largamente as circunstacircncias e intenccedilotildees com que se realizava esta accedilatildeo o texto de Apiano refere-se por duas vezes aos confrontos e agraves suas circunstacircncias repetindo essencialmente as mesmas ideias No primeiro (Apian Hisp 71) escreve laquoTendo certamente isto em consideraccedilatildeo (Deacutecimo Juacutenio Bruto) devastou tudo o que estava pelo caminho (viu) mulheres comba-tendo com os homens perecendo ao seu lado sem soltarem um gemido mesmo no momento do golperaquo16 O segundo passo reproduz termos e expressotildees deste referindo os seus aspetos essenciais a combatividade desse povo o papel das mulheres na guerra e forma espantosa como enfrentam o combate e reagem ao golpe fatal17 No entanto a esta informaccedilatildeo junta uma outra circunstacircncia que parece impressionaacute-lo particularmente laquoDe todas as mulheres capturadas umas infligiram-se a morte outras mataram os filhos com as proacuteprias matildeos preferindo de longe a morte ao cativeiro (App Hisp 72)raquo

Conjugam-se portanto nestas breves narrativas vaacuterios aspetos que dife-renciam culturalmente o mundo greco-latino destas comunidades galaicas18 Em primeiro lugar surpreende o papel das mulheres nos contextos de guerra impossiacutevel de imaginar para um grego Os exeacutercitos eram por sua natureza constituiacutedos exclusivamente por homens e o papel da mulher no contexto social

15 Sobre a importacircncia desta condiccedilatildeo na construccedilatildeo da sua histoacuteria v Bucher 2000 passim16 ὁ μὲν δὴ ταῦτ ἐνθυμούμενος ἐδῄου τὰ ἐν ποσὶν ἅπαντα συμμαχομένων τοῖς ἀνδράσι τῶν

γυναικῶν καὶ συναναιρουμένων καὶ οὔ τινα φωνὴν οὐδ᾽ ἐν ταῖς σφαγαῖς ἀφιεισῶν17 App Hisp 72 laquo(os Braacutecaros) eram um povo [muito belicoso] a par das mulheres armadas

tambeacutem eles combatiam e morriam com bravura natildeo cedendo nenhum deles natildeo voltando as costas e natildeo soltando um grito Das mulheres capturadas umas mataram-se a elas proacuteprias outras provocaram a dos seus filhos com as suas proacuteprias matildeos prezando mais a morte que o cativeiroraquo

18 Esta passagem de Apiano foi analisada sob diversas perspetivas nomeadamente em Mar-tiacutenez Lopes 1986 391 Goacutemez Espelosiacuten 1993 111 Alonso Troncoso 1996 61

303

Amiacutelcar Guerra

natildeo passava nunca pela participaccedilatildeo em atividades como a guerra Por esta ra-zatildeo a circunstacircncia de laquocombaterem ao lado dos homensraquo (συμμαχομένων τοῖς ἀνδράσι) coloca-as em paralelo com a condiccedilatildeo masculina e com a sua natureza o que seria necessariamente considerada uma situaccedilatildeo estranha agraves tradiccedilotildees do mundo laquocivilizadoraquo

Em segundo lugar sobressai a bravura com que elas enfrentavam a morte e especialmente o facto de natildeo laquosoltarem um gemido mesmo no momento do golperaquo Para aleacutem do facto de o combate ser por natureza acompanhado de incentivos e alarido espera-se que o momento em que o soldado eacute atingido seja marcado ao menos por uma manifestaccedilatildeo de dor Deste modo sendo insoacutelito para Apiano que estas mulheres enfrentem de um modo tatildeo silencioso essa situaccedilatildeo natildeo deixaraacute de ser valorizado pelo menos em determinadas leituras como uma marca de sentido positivo19

O contraste entre comportamento feminino em situaccedilotildees de conflito em alguns povos baacuterbaros e a realidade grega ou romana regista-se com alguma frequecircncia e encontra-se bem documentada em outras narrativas do processo de conquista da Hispacircnia sendo possiacutevel compreender diferentes facetas desse heroiacutesmo feminino Analisam-se de seguida algumas das ocorrecircncias mais sugestivas registadas em Iliturgi Sagunto Astapa20 e Salmantica

No que diz respeito agrave participaccedilatildeo feminina no combate o mais antigo episoacutedio eacute transmitido por Tito Liacutevio e reporta-se ao ataque romano a Iliturgi21 no ano 206 a C no qual se daacute conta que as mulheres e crianccedilas ajudavam os homens na guerra providenciando armamento ou transportando pedras para a reconstruccedilatildeo das muralhas (Liv 281913)22

Quanto ao temor de enfrentar a servidatildeo um exemplo paralelo regista--o para aleacutem de Liacutevio o proacuteprio Apiano ao descrever a tomada da cidade de Astapa que os romanos atacam por se manter fiel aos cartagineses laquoE compro-meteram com um juramento os cinquenta melhores a que logo que a cidade fosse tomada eliminariam as mulheres e crianccedilas lanccedilariam fogo (agrave pira) e de

19 Pode encarar-se a possibilidade de esta elevada belicosidade ou do extremismo das suas atitudes ser precisamente uma marca da sua cultura baacuterbara - v a este respeito algumas obser-vaccedilotildees em Marco 1993 e Aguilera 2012 545-46 Natildeo parece no entanto que seja esta vertente interpretativa seja a mais adequada neste caso

20 Uma anaacutelise comparativa destes trecircs primeiros casos de heroiacutesmo traacutegico pode encontrar--se em Pelletier 1987

21 Disputada longamente a sua localizaccedilatildeo foi estabelecida em meados do seacutec XX situando--se nas proximidades de Mengiacutebar (Jaeacuten) a cidade romana (Blanco et Lachica 1960) Para os mais recentes projetos de investigaccedilatildeo no siacutetio do Cerro de Maquiz e sua envolvecircncia v Lechuga et al 2015 tendo-se anunciado descobertas de vestiacutegios materiais (glandes pontas de catapulta) que corresponderiam ao cerco de Cipiatildeo

22 Sobre estes acontecimentos considerando fundamentalmente o papel das mulheres v Martiacutenez Loacutepez 1991 esp 249-50 Ruiz Montero et Jimeacutenez 2008 112

304

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

seguida matar-se-iam a si proacutepriosraquo (App Hisp 33)23 Este autor sublinha no final a atitude que tal comportamento suscitou no general romano Maacutercio o qual admirando τὴν ἀρετὴν τῶν Ἀσταπαίων poupou as suas casas

Em Liacutevio24 explica-se que essa situaccedilatildeo dramaacutetica acarretando inevita-velmente a perda da liberdade poderia acabar de dois modos ou com a morte honrosa (morte honesta) ou com a vergonhosa servidatildeo (infami seruitute) e naturalmente soacute a primeira atitude era digna25 De qualquer modo como jaacute sublinhou Agneacutes Pelletier26 a perspetiva de Liacutevio em relaccedilatildeo a esta ocor-recircncia encerra aspetos distintos e a valorizaccedilatildeo eventualmente positiva deste comportamento por outros autores dilui-se na constataccedilatildeo de que ela resulta mais da sua maacute consciecircncia da conscientia scelerum27 que se consubstanciava natildeo tanto no facto de terem sempre estado ao lado puacutenico mas antes por se entregaram ao bandoleirismo (latrocinio) realizando incursotildees em territoacuterio dos aliados de Roma (excursiones in finitimum agrum sociorum populi Roma-ni Liv 28223) Deste modo na perspetiva liviana a atitude dos habitantes de Astapa nada tinha de particularmente digno de apreccedilo mas resultava de sentimentos menos nobres determinados pelas circunstacircncias histoacutericas em que o cerco ocorria

A confrontaccedilatildeo das duas narrativas permite constatar que o texto de Api-ano reflete de forma mais evidente a duplicidade de perspetiva que a literatura claacutessica assume perante as comunidades que se confrontam com o mundo ro-mano onde esporadicamente se suscita uma admiraccedilatildeo por alguns traccedilos do seu caraacutecter E Apiano encontra-se naturalmente menos comprometido com a defesa da superioridade moral do imperialismo romano no confronto com os povos que vai submetendo

Tambeacutem neste caso de Astapa se tem discutido a eventual dependecircncia des-ta narrativa de alguns topoi da literatura claacutessica nomeadamente os que relatam os cercos de Sagunto pelos cartagineses (pertencente ao mesmo autor Liv 2114) e o de Abido por Filipe V (transmitida em Pol 1630-34)28 Inevitavelmente estas narrativas tecircm sempre algo de comum e alguns desses aspetos particulares no caso a escolha de 50 homens que perante juramento se comprometem a empreender uma seacuterie de accedilotildees decisivas29 podem constituir uma componente

23 Corresponde a Liv 2822 Sobre este episoacutedio v Eckstein 1995 48-51 Martiacutenez Loacutepez 1991 249-50 Goacutemez Espelosiacuten 2009 235-37

24 Liv 2822925 O passo pertinente diz hellip ut memores libertatis quae illo die aut morte honesta aut

seruitute infami finienda esset26 Pelletier 1989 113 no mesmo sentido Goacutemez Espelosiacuten 2009 23627 Liv 2822528 Especialmente em Walsh 1970 194-95 Walbank 1971 6029 Pol 1631 Liv 28227 App Hisp 33

305

Amiacutelcar Guerra

recuperada de outras descriccedilotildees de episoacutedios similares30Sobre a situaccedilatildeo que estes acontecimentos encerram se pronunciou tambeacutem

Garciacutea Riaza31 sustentando que apesar de algumas afinidades o caso saguntino descrito reuacutene um conjunto de especificidades que conferem um dramatismo peculiar a estas diferentes narrativas

Do mesmo modo as referecircncias da historiografia claacutessica ao cerco de Sal-mantica que acaba saqueada por Aniacutebal constituem um exemplo da intervenccedilatildeo feminina em contextos beacutelicos mas neste caso tambeacutem com peculiaridades que lhe conferem uma grande verosimilhanccedila Mais do que Plutarco32 eacute especialmente no relato de Polieno33 que se sublinha o papel combativo das mulheres as quais depois de conseguirem esconder as espadas dos inimigos entregam uma parte aos seus homens e combatem tambeacutem ao lado deles Sublinha-se neste caso a circunstacircncia de natildeo ser imaginaacutevel para os puacutenicos (e de igual forma para gregos e romanos) por razotildees culturais o envolvimento delas neste tipo de accedilotildees

De uma maneira geral o heroiacutesmo feminino eacute especialmente apreciado em narrativas que envolvem povos baacuterbaros ocidentais encontrando-se bem documentado na literatura claacutessica mesmo fora da Hispacircnia Neste sentido podem comparar-se estas particularidades com as que evidenciam mulheres germacircnicas em especial nos relatos de Taacutecito e Estrabatildeo Dessa confrontaccedilatildeo resulta claro que a coragem feminina revelada em territoacuterio dos Braacutecaros vai aleacutem da das suas congeacuteneres germacircnicas natildeo acompanham apenas os maridos na guerra mas pegam efetivamente em armas e o temor do cativeiro por parte das mulheres nobres natildeo eacute apenas consciente34 mas chega ao ponto extremo de infligirem a morte aos filhos e si proacuteprias35

Esta facilidade com que estas mulheres se dispotildeem a enfrentar a morte recorda o texto com que mesmo Apiano descreve os uacuteltimos momentos da resistecircncia de Numacircncia (App Hisp 96-97) laquoMas eles deixaram passar o dia acordando que muitos deles ainda se agarravam agrave liberdade e desejavam tirar-se a sua proacutepria vida (97) Tamanho era o amor pela liberdade e pela bravura nesta cidade baacuterbara e pequenaraquo36

30 Em relaccedilatildeo a estas consideraccedilotildees se levantaram algumas objeccedilotildees especialmente em Ecks-tein 1995 48-51 onde se sustenta que o texto de Liacutevio depende mais da descriccedilatildeo que Poliacutebio faz do cerco de Astapa

31 Garciacutea Riaza 1998-1999 208-932 Plut Moral 248E-249B33 Polyaen 74834 Tac Ger 835 App Hisp 72 Para uma circunstanciada anaacutelise da imagem da mulher germacircnica nos dois

autores citados v especialmente Gallego Franco 1999 62-63 onde se analisa genericamente o papel feminino na guerra e as suas atitudes perante o cativeiro pondo-se em paralelo precisa-mente com o que ocorre na Hispacircnia setentrional

36 Para uma anaacutelise deste episoacutedio enquanto exemplo de apego agrave liberdade da parte dos povos hispacircnicos v Goacutemez Espelosiacuten (2009 237-38) onde se considera igualmente a questatildeo

306

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

Deparamo-nos sempre com a dificuldade em estabelecer ateacute que ponto es-tas narrativas natildeo se inserem numa tradiccedilatildeo literaacuteria que veicula determinadas imagens que verificamos repetirem-se em outros contextos ndash como eacute o caso das consideraccedilotildees a respeito das mulheres germacircnicas segundo Taacutecito e Estrabatildeo37

Esse heroiacutesmo assume-se como realidade que se transmite por regra como caracteriacutestico de um coletivo tendo como atores uma comunidade mais ou menos extensa com frequecircncia todo o conjunto dos habitantes de uma cidade afetada por um conflito com Roma Deste modo soacute raramente essa realidade assume um caraacutecter individual Embora tanto uma circunstacircncia como outra sejam no contexto literaacuterio pertinentes para a caracterizaccedilatildeo dos povos hispacircnicos a primeira contribui de forma mais substancial para afirmar o caraacutecter das comunidades locais e definir a sua alteridade

No contexto em que a anaacutelise da historiografia moderna tem sublinhado precisamente o quadro mental em que as narrativas de conquista se inserem estes exemplos mostram a diversidade das perspetivas e a complexidade que envolve uma anaacutelise deste conjunto de informaccedilatildeo literaacuteria Nunca se pode perder de vista que a valorizaccedilatildeo das qualidades militares dos opositores de Roma constitui em si uma forma de acentuar o valor da sua empresa imperialista Em certa medida tambeacutem a exaltaccedilatildeo de certos aspetos da cultura destes povos natildeo questiona de modo algum a superioridade (militar e moral) romana nem a legitimidade do seu programa expansionista Por isso mesmo a extensatildeo da difusatildeo de uma cultura de que gregos e romanos se orgulham constitui tambeacutem uma vantagem para os povos submetidos que por esta via satildeo promovidos a uma outra condiccedilatildeo mais elevada

Trata-se no fundo de uma situaccedilatildeo que acaba por ter paralelos nos desiacutegnios do programa expansionista portuguecircs que ao alargar a feacute e o impeacuterio encara o contacto com uma boa parte desses povos com um contributo decisivo para a sua salvaccedilatildeo

da eventual dependecircncia de Apiano em relaccedilatildeo agraves suas fontes37 Gallego Franco (1999 62) analisa a informaccedilatildeo das fontes claacutessicas que aludem agraves mu-

lheres germacircnicas que acompanham os homens em campanha lutam com eles defende com especial forccedila a sua liberdade

307

Amiacutelcar Guerra

Bibliografia

Aguilera Duraacuten T 2012 ldquoUna visioacuten historiograacutefica alternativa la deconstruccioacuten del estereotipo del baacuterbaro prerromanordquo Antesteria 1543-55

Alonso Troncoso V 1996 ldquoPrimeras etapas en la conquista romana de Gallaeciardquo Militaria 853-66

Alvar Ezquerra J 1997 ldquoHeacuteroes ajenos Aniacutebal y Viriatordquo In Heacuteroes y antiheacuteroes en la Antiguumledad claacutesica eds J Alvar e J Mordf Blaacutezquez 137-53 Madrid Caacutetedra

Blanco Frejeiro A e G Lachica Casinello 1960 ldquoDe situ Iliturgisrdquo Archivo Espantildeol de Arqueologia 33 (101-102)193-96

Bermejo Barrera J C 1986 ldquoEl erudito y la barbarierdquo In Mitologiacutea y Mitos de la Hispania Prerromana Vol 2 13-43 Madrid Akal

Bucher G S 2000 ldquoThe Origins Program and Composition of Appian s Roman Historyrdquo Transactions and Proceedings of the American Philological Association 130411-58

Clavel-Leacutevecircque M 1978 ldquoBrigandage et piraterie repreacutesentations ideacuteologiques et pratiques impeacuterialistes au dernier siegravecle de la Reacutepubliquerdquo Dialogues drsquohistoire ancienne 417-31

Cruz-Andreotti G 2002 ldquoIberia e iberos en las fuentes histoacuterico-geograacuteficas griegas una propuesta de anaacutelisisrdquo Mainake 24153-80

Dauge Y A 1981 Le Barbare Recherches sur la conception romaine de la barbarie et de la civilisation Bruxelles Latomus

Duplaacute A M Otxoa e C Ortiz de Urbina Montoya 1988 ldquoCivilizacioacuten y barbarie en la Historiografiacutea republicana el caso de Hispania y los pueblos del norterdquo In Actas del Congreso de Historia de Euskal Herria I II Congreso Mundial Vasco 165-72 San Sebastiaacuten Txertoa

Eckstein A M 1995 Moral Vision in the Histories of Polybius Berkeley University of California Press

Gallego Franco H 1999 ldquoLa imagen de la lsquomujer baacuterbararsquo a propoacutesito de Estraboacuten Taacutecito y Germaniardquo Faventia 21 (1)55-63

Garciacutea Moreno L A 2005 ldquoPolibio y la creacioacuten del estereotipo de lo Hispano en la etnografiacutea y la historiografiacutea heleniacutesticasrdquo In Polibio y la Peniacutensula Ibeacuterica ed J Santos e E Torregaray 339-58 Bilbao Universidad del Paiacutes Vasco

mdashmdashmdash 1989 ldquoLa Hispania anterior a nuestra era verdad ficcioacuten y prejuicio en la Historiografiacutea antigua y modernardquo In Actas del VII Congreso Espantildeol de Estudios Claacutesicos Vol 3 17-43 Madrid Sociedad Espantildeola de Estudios Claacutesicos Editorial de la Universidad Complutense

308

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

mdashmdashmdash 1987 ldquoPresupuestos ideoloacutegicos de la actuacioacuten de Roma durante el proceso de la conquista de Hispaniardquo Gerioacuten 5211-44

Garciacutea Riaza E 1998-1999 ldquoDerecho de guerra romano en Hispania (218-205 a C)rdquo Memorias de Historia Antigua 19-20199-224

Garciacutea y Bellido A 1945 ldquoBandas y guerrillas en las luchas con Romardquo Hispania 21547-604

Goacutemez Espelosiacuten F J 2009 ldquoContradicciones y conflictos de identidad en Apianordquo Gerioacuten 27231-50

mdashmdashmdash 1996 ldquoEstrategias narrativas en la Historia de Apiano Algunos ejemplosrdquo Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa Classe di Lettere e Filosofia seacuterie 4 1 (1)103-17

mdashmdashmdash 1993 ldquoLa imagen del baacuterbaro en Apiano La adaptabilidad de un modelo retoacutericordquo Habis 24105-24

Goacutemez Fraile J Mordf 1999 ldquoMercenariado y bandolerismo en Celtiberia Dos cuestiones desenfocadasrdquo In IV Simposio sobre los Celtiacuteberos Economiacutea Homenaje a JL Argente Oliver (Daroca Septiembre 1997) ed F Burillo 503-9 Zaragoza Institucioacuten Fernando el Catoacutelico

Gonzaacutelez Ballesteros I 2009 ldquoEl estereotipo del baacuterbaro y la imagen de la civilizacioacuten en el occidente romano en la Geografiacutea de Estraboacutenrdquo Espacio Tiempo y Forma 22 seacuterie 2 22249-60

Gracia F 2009 Furor barbari Celtas y germanos contra Roma (ss IV aC-I dC) Barcelona Versatil

Hall E 1989 Inventing the barbarian Greek self-definition through Tragedy Oxford Clarendon Press

Hoz Bravo J de 2000 ldquoLa etnografiacutea de los pueblos de Iberia en Diodoro V 33-34 y el problema de sus fuentesrdquo In Epieikeia Studia graeca in memoriam Jesus Lens Tuero ed M Alganza 221-38 Granada Athos-Pergamos

Jones T e A Ereira 2008 Roma y los baacuterbaros Una historia alternativa Barcelona Critica

Manchoacuten Goacutemez R 2013 ldquoLa arenga de Aniacutebal en la batalla del Tesino (Liv XXI 43-44) como ejemplo del munus oratoris de Tito Liviordquo Florentia Iliberritana 2487-109

Martiacutenez Loacutepez C 1991 ldquoLas mujeres en la conquista y romanizacioacuten de la Hispania Meridionalrdquo Florentia Iliberritana 1245-54

mdashmdashmdash 1986 ldquoLas mujeres de la Peniacutensula Ibeacuterica durante la conquista cartaginesa y romanardquo In La Mujer en el mundo antiguo Actas de las V Jornadas de Investigacioacuten Interdisciplinaria Seminario de Estudios de la Mujer ed E Garrido Gonzaacutelez 387-96 Madrid Universidad Autoacutenoma de Madrid

Lechuga Chica M Aacute J P Belloacuten Ruiacutez e C Rueda Galaacuten 2015 ldquoNuevas

309

Amiacutelcar Guerra

propuestas de actuacioacuten para el estudio del oppidum de Iliturgi desde la arqueologiacutea del territoriordquo Revista Atlaacutentica-Mediterraacutenea 17211-21

Marco Simoacuten F 1993 ldquoFeritas Celtica imagen y realidad del baacuterbaro claacutesicordquo In Modelos ideales y praacutecticas de vida en la Antiguumledad claacutesica ed Eacute Falqueacute e F Gascoacute 141-66 Sevilla Universidad de Sevilla Universidad Internacional Meneacutendez Pelayo

Mitchell L 2007 Panhellenism and the barbarian in Archaic and Classical Greece Swansea The Classical Press of Wales

Pelegriacuten J 2003 Barbarie y frontera Roma y el Valle Medio del Ebro durante los siglos IIII aC Zaragoza Universidad de Zaragoza

Pelletier A 1987 ldquoSagonte Iliturgi Astapa trois destins tragiques vus de Romerdquo Meacutelanges de la Casa de Velaacutezquez 23 (1)107-24

Plaacutecido Suaacuterez D 1987-1988 ldquoEstraboacuten III el territorio hispano la geografiacutea griega y el imperialismo romanordquo Habis 18-19243-56

Revell L 2009 Roman imperialism and local identities Cambridge Cambridge University Press

Riess W 2011 ldquoThe roman bandit (latro) as criminal and outsiderrdquo In Social relations in the Roman World ed M Peachin 693-714 Oxford Oxford University Press

Ruiz Montero C e A M Jimeacutenez 2008 ldquoMulierum virtutes de Plutarco aspectos de estructura y composicioacuten de la obrardquo Myrtia 23101-20

Salinas de Friacuteas M 1999 ldquolaquoDe Polibio a Estraboacuten Los celtas hispanos en la historiografiacutea claacutesicardquo In Homenaje al profesor Montenegro Estudios de Historia Antigua ed A Alonso S Crespo T Garabito e Mordf E Solovera 191-203 Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial Universidad de Valladolid

mdashmdashmdash 1998 ldquoLa guerra de los caacutentabros y astures la etnografiacutea de Espantildea y la propaganda de Augustordquo In ldquoRomanizacioacutenrdquo y ldquoReconquistardquo en la Peniacutensula Ibeacuterica nuevas perspectivas eds Mordf J Hidalgo D Peacuterez e M J R Gervaacutes MJR 155-70 Salamanca Universidad de Salamanca

Saacutenchez-Moreno E 2011 ldquoDe la resistencia a la negociacioacuten acerca de las actitudes y capacidades de las comunidades hispanas frente al imperialismo romanordquo In De fronteras a provincias Interaccioacuten e integracioacuten en Occidente (ss III-I a C) ed E Garciacutea Riaza 97103 Palma de Mallorca Universitat de les Illes Balears

mdashmdashmdash 2006 ldquoEx pastore latro ex latrone duxhellip Medioambiente guerra y poder en el occidente de Iberiardquo In War and territory in the Roman World ed T Ntildeaco del Hoyo e I Arrayaacutes Morales 55-79 Oxford Archeopress

Saacutenchez Moreno E e T Aguilera Duraacuten 2013 ldquoBaacuterbaros y vencidos los otros en la conquista romana de Hispania Notas para una deconstruccioacuten

310

A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircniacontrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente

historiograacuteficardquo In Debita Verba Estudios en homenaje al profesor Julio Mangas Manjarreacutes ed R M Cid Loacutepez e E Garciacutea Fernaacutendez 225-44 Oviedo Servicio de Publicaciones de la Universidad de Oviedo

Saacutenchez-Corriendo Jaeacuten J 1997 ldquoiquestBandidos lusitanos o pastores trashumantes Apuntes para el estudio de la trashumancia en Hispaniardquo Hispania Antiqua 2169-92

Sayas Abengochea J J 1989 ldquoEl bandolerismo lusitano y la falta de tierrasrdquo Revista de la Facultad de Geografiacutea e Historia 4701-14

Thollard P 1987 Barbarie et civilisation chez Strabon Eacutetude critique des Livres III et IV de la Geographie Paris Les Belles Lettres

Vallejo Girveacutes M 1994 ldquoEl recurso de Roma al bandidaje hispanordquo Espacio Tiempo y Forma 7165-73

Vives Ferrer G 2015 ldquoEl fenoacutemeno del bandolerismo como sublevacioacuten contra Roma el caso de Hispania en la eacutepoca republicanardquo Antesteria 4187-97

Walbank F W 1971 ldquoLivyrsquos Fourth and Fifth Decadesrdquo In Livy ed T A Dorey 47-72 London Toronto Routledge Kegan Paul

Walsh P G 1970 Livy his historical aims and methods Cambridge Cambridge University Press

Woolf G 2011 Tales of the Barbarians Ethnography and Empire in the Roman West Oxford Wiley-Blackwell

311

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio1 (A look over imperial power in Suetonius)

Joseacute Luiacutes Lopes BrandatildeoUniversidade de Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

(iosephusflucpt ORCID 0000-0002-3383-2474)

Resumo - Ao escrever as Vidas dos Ceacutesares Suetoacutenio torna patente a sua interpretaccedilatildeo sobre o poder imperial e a forma como este deve ser exercido Trata-se verdadeira-mente de um novo e melhor Estado fundado por Augusto mas que assenta numa sucessatildeo mal definida e imprevisiacutevel na qual o destino desempenha o seu papel Mas tal poder sendo ilimitado e potencialmente incontrolaacutevel estaacute dependente do caraacutecter de quem o possui que pode oscilar entre um comportamento tiracircnico e individualista e uma atitude paternal e por consequecircncia universalista que abarca todas as aacutereas de intervenccedilatildeo governativa todas as ordens e todos os povos

Palavras-chave biografia Suetoacutenio poder imperadores Impeacuterio Romano

Abstract ndash In writing the Lives of the Caesars Suetonius makes clear his interpretation on imperial power and the way in which it must be exercised For him the empire founded by Augustus is truly a new and better state but based on an ill-defined and unpredicta-ble succession in which fate plays its part Such power being unlimited and potentially uncontrollable is dependent on the character of the possessor which can range from a tyrannical and individualistic behaviour to a paternal and therefore universalist attitude encompassing all areas of government intervention all Orders and all people

Keywords biography Suetonius power emperors Roman Empire

Suetoacutenio natildeo questiona o poder imperial trata-se de uma realidade incon-testaacutevel e para ele desejaacutevel No entanto tal poder concretiza-se em imperadores vivos e estaacute dependente deles com as suas virtudes e viacutecios A opccedilatildeo pela bio-grafia para transmitir a histoacuteria poliacutetica equivale precisamente a reconhecer definitivamente que a poliacutetica da Roma imperial jaacute natildeo era determinada pelo ciclo anual da eleiccedilatildeo dos magistrados mas pelo ciclo de vida de cada priacutencipe A oposiccedilatildeo tradicional da historiografia entre a virtude do passado e a decadecircn-cia do presente2 eacute substituiacuteda pelo confronto entre bons e maus imperadores ou entre o que cada qual tem em si de positivo e de negativo3

1 Trabalho desenvolvido no acircmbito do projeto UIDELT001962013 financiado pela FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia

2 Veja-se Giua 1990 538 Muito do material aqui usado eacute reformulado a partir de Brandatildeo 2009b

3 Consequentemente accedilotildees que para o historiador antigo informam a trama narrativa aparecem dispersas por rubricas de virtudes e viacutecios Veja-se Wallace Hadrill 1984 143

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_17

312

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

1 Uma nova ordem (status)

Para Suetoacutenio o poder imperial corresponde a um novo regime poliacutetico explicitamente distinto da Repuacuteblica mas que se comeccedila a desenhar com Juacutelio Ceacutesar e por isso inicia com ele o conjunto das Vidas Os primeiros capiacutetulos perdidos da Vida do ditador talvez nos esclarecessem sobre o plano do bioacutegrafo tal como Taacutecito no iniacutecio dos Annales (1) nos explica a razatildeo porque comeccedila pelos uacuteltimos momentos da vida de Augusto Ao comeccedilar a redaccedilatildeo das Vidas por Juacutelio Ceacutesar e natildeo por Augusto4 Suetoacutenio coloca a toacutenica na natureza mo-naacuterquica da transformaccedilatildeo que trata assim desde o iniacutecio5 O bioacutegrafo sublinha a continuidade nos objetivos apesar da distinccedilatildeo nos meios para os concretizar

Embora o proacuteprio Augusto afirme nas Res Gestae (34) que transferiu a res publica do seu poder para o arbitrium do senado e do povo romano Suetoacutenio realista diz que o imperador pensou restabelecer a Repuacuteblica mas que pondera-dos os perigos a que ele e o Estado ficariam expostos optou por mantecirc-lo em seu poder E de seguida o bioacutegrafo transmite a palavra a Augusto atraveacutes de um eacutedito onde este se apresenta como o autor de uma nova ordem6

laquolsquoAssim me seja permitido consolidar o Estado satildeo e salvo nos seus funda-mentos e daiacute recolher o fruto que almejo de ser proclamado autor do melhor regime e de levar comigo ao morrer a esperanccedila de que permaneceratildeo no seu lugar os alicerces do estado que eu tiver lanccediladorsquo Ele mesmo se encarregou a si proacuteprio do voto esforccedilando-se de todos os modos para que ningueacutem ficasse insatisfeito com o novo regimeraquo

Assim introduz Suetoacutenio nas Vidas dos Ceacutesares a ideia do principado ndash um nouus status Neste contexto natildeo emprega o termo princeps oriundo da tradiccedilatildeo republicana7 Para caracterizar a preeminecircncia de Augusto usa o termo auctor de modo a salientar que se trata de uma ordem nova baseada na auctoritas neste caso congruente com o que Augusto afirma no referido passo das Res Gestae de que estaacute acima de todos em autoridade e natildeo em poder Suetoacutenio tambeacutem

4 Plutarco escreveu Vidas de oito imperadores de Augusto a Viteacutelio de que soacute restam as de Galba e Otatildeo Taacutecito comeccedila pela ascensatildeo de Tibeacuterio porque acha que para o governo de Augusto existiam jaacute autores com engenho (Ann 11)

5 Suetoacutenio ao comeccedilar por Ceacutesar vem consagrar um cacircnone de imperadores estabelecido na eacutepoca de Trajano Cf Tac Ann 133 Plin Ep 535 App Praef 6 Veja-se La Penna 1987 294

6 Aug 282 lsquoIta mihi saluam ac sospitem rem p sistere in sua sede liceat atque eius rei fructum percipere quem peto ut optimi status auctor dicar et moriens ut feram mecum spem mansura in uestigio suo fundamenta rei p quae iecerorsquo Fecitque ipse se compotem uoti nisus omni modo ne quem noui status paeniteret

7 E em Cal 221 Suetoacutenio fala de uma species principatus demonstrando ter consciecircncia de que o nome de princeps e por consequecircncia principatus eacute uma forma haacutebil de iludir os legalistas Se bem que neste passo tambeacutem parece ser uma forma de caracterizar negativamente a fase considerada mais positiva do principado de Caliacutegula Veja-se Gascou 1984 783-85

313

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

natildeo expotildee a habilidade poliacutetica do fundador do principado mas a qualidade dos efeitos do seu projeto O intento depois abandonado de restaurar a Repuacuteblica inspira a Suetoacutenio um comentaacuterio que embora se mostre ambiacuteguo parece su-gerir aprovaccedilatildeo laquoeacute duvidoso se foi melhor o resultado ou a intenccedilatildeo8raquo isto eacute foi tatildeo correta a atitude de ponderar como foi afortunado o facto de natildeo levar avante o retorno ao Estado republicano9 Natildeo sugere que a ceacutelebre sessatildeo do senado de 27 aC fosse um golpe de teatro mas que se tratou de uma escolha racional o abandono ponderado de uma poliacutetica conservadora em proveito de uma adequa-ccedilatildeo realista aos tempos de que resultou um optimus status A expressatildeo parece evocar Trajano optimus princeps sobretudo se nos lembrarmos que as Vidas dos Ceacutesares terminam com o elogio do beatior e laetior status que viria depois de Domiciano graccedilas agraves virtudes dos principes seguintes10

2 Poder apoiado numa sucessatildeo imprevisiacutevel

Porque se trata de algo novo os problemas da sucessatildeo levantam-se de imediato com a morte de Augusto A suspeita de hipocrisia domina a narrativa da aclamaccedilatildeo de Tibeacuterio Provavelmente a sua hesitaccedilatildeo era sincera a sucessatildeo no principado era uma realidade sem precedentes A situaccedilatildeo do sucessor de Augusto era incoacutemoda pois tratava-se do herdeiro possiacutevel como se torna cla-ro pela transcriccedilatildeo de um excerto do testamento de Augusto11 Mas Suetoacutenio interpreta a hesitaccedilatildeo como uma farsa se aceitarmos a liccedilatildeo impudentissimus mimus12 (laquoAo principado embora natildeo hesitasse em ocupaacute-lo imediatamente e em exercecirclo ndash tomou ateacute para si uma guarniccedilatildeo de soldados o que lhe conferia poder e uma forma de soberania ndash recusou-o longo tempo com uma farsa assaz descaradahellipraquo) Para o bioacutegrafo o uso de guarda-costas mostra que Tibeacuterio deseja o poder13 mas recusa-o hipocritamente14 para depois o aceitar com

8 Aug 281 De reddenda re p bis cogitauit primum post oppressum statim Antonium memor obiectum sibi ab eo saepius quasi per ipsum staret ne redderetur ac rursus taedio diuturnae ualitudinis cum etiam magistratibus ac senatu domum accitis rationarium imperii tradidit sed reputans et se priuatum non sine periculo fore et illam plurium arbitrio temere committi in reti-nenda perseuerauit dubium euentu meliore an uoluntate

9 Segundo a interpretaccedilatildeo de Rolfe [1913-1914] 1979 1164 nb (acolhida por Gascou 1984 719) foram igualmente bons a intenccedilatildeo de Augusto de renunciar agrave Repuacuteblica e os efeitos do novo regime

10 Dom 23211 Tib 2312 Tib 24 Principatum quamuis neque occupare confestim neque agere dubitasset et statione

militum hoc est ui et specie dominationis assumpta diu tamen recusauit impudentissimo mimo Mimus eacute uma conjetura de Gronouius por comparaccedilatildeo com Cal 452 Otho 32 os manuscritos apresentam animo

13 A presenccedila de guarda-costas era associada a tirania desde o tempo dos Pisiacutestratos Veja-se Lindsay 1995 109 Eacute seguida aqui uma tradiccedilatildeo hostil a Tibeacuterio veja-se Gascou 1984 264-65

14 Tibeacuterio talvez estivesse a ser sincero tinha jaacute 54 anos e natildeo podia ter pretensotildees de emular

314

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

suspeita condescendecircncia15 (laquoFinalmente como que forccedilado e queixando-se da infeliz e pesada servidatildeo que lhe era imposta aceitou o impeacuterio desde que natildeo deixasse de poder acalentar a esperanccedila de um dia o abandonar Satildeo estas as palavras do proacuteprio lsquoateacute eu chegar agrave idade em que vos possa parecer justo dar algum repouso agrave minha velhicersquoraquo)16

Uma sucessatildeo indefinida gera a tentaccedilatildeo do crime e a primeira viacutetima da luta pela sucessatildeo imperial seria Agripa Poacutestumo cujo assassinato teraacute precedido a divulgaccedilatildeo da morte de Augusto17 Mas Suetoacutenio em alguns casos descortina crime onde este natildeo parece existir Assim diferentemente do relato da morte de Tibeacuterio na Vida do proacuteprio18 a suposta responsabilidade de Caliacutegula na supres-satildeo in extremis do antecessor aparece agravada na Vida do uacuteltimo19 de forma a transformar a sucessatildeo numa espeacutecie de usurpaccedilatildeo criminosa Da mesma forma se na Vida de Claacuteudio a morte do imperador eacute atribuiacuteda agrave accedilatildeo de Agripina20 na Vida de Nero insinua-se a responsabilidade deste na morte do pai adotivo para se concluir que se natildeo foi o auctor pelo menos foi cuacutemplice (conscius)21 Tambeacutem a ascensatildeo de Domiciano ao governo do impeacuterio eacute marcada pela hostilidade em relaccedilatildeo a Tito E se na Vida deste a morte eacute apenas atribuiacuteda agrave doenccedila na Vida de Domiciano22 sugere-se que eacute apressada por accedilatildeo (ou omissatildeo) do sucessor que abandona o irmatildeo na agonia da doenccedila23

Suetoacutenio natildeo defende explicitamente a adoccedilatildeo enquanto escolha do melhor como faz Taacutecito a propoacutesito da escolha de Pisatildeo por parte de Galba24 mas entre

Augusto Mas tambeacutem era difiacutecil contrariar a disposiccedilotildees testamentaacuterias deste Provavelmente Tibeacuterio precisava de tempo para definir o seu poder Veja-se Seager 1972 56-57 Syme 1974 485-86 Levick 1999 76

15 Tib 24 Tandem quasi coactus et querens miseram et onerosam iniungi sibi seruitutem recepit imperium nec tam aliter quam ut depositurum se quandoque spem faceret Ipsius uerba sunt lsquodum ueniam ad id tempus quo uobis aequum possit uideri dare uos aliquam senectuti meae requiemrsquo

16 Para Timonen 1993 133-48 Suetoacutenio em comparaccedilatildeo com Taacutecito (Ann 491) exagera a hesitaccedilatildeo na mira de vituperar o principado de Tibeacuterio desde o iniacutecio

17 Tib 2218 Tib 73219 Cal 122 Cf Tib 732 O facto de autores como Fiacutelon de Alexandria e Flaacutevio Josefo

natildeo atribuiacuterem a Caliacutegula responsabilidade na morte de Tibeacuterio deve ser tomado a favor da inocecircncia Taacutecito (Ann 6504-5) atribui a Maacutecron a iniciativa de apressar a morte do velho imperador e Diacuteon Caacutessio (58283) sustenta que a ordem partiu de Caliacutegula mas nenhum fala da participaccedilatildeo directa no ato de sufocar o imperador

20 Cl 4421 Nero 3322 Dom 2323 Esta ideia eacute secundada por Diacuteon Caacutessio (66262) segundo o qual Domiciano para apres-

sar o fim colocou Tito num cofre com gelo sob o pretexto de que necessitava de refrigeraccedilatildeo Segundo Aureacutelio Victor (Caes 105) Tito foi envenenado pelo irmatildeo Veja-se Martin 1991 196 Gascou 1984 385-86

24 Hist 115-16

315

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

os sucessores de Augusto todas as aclamaccedilotildees parecem ser problemaacuteticas agrave ex-ceccedilatildeo de Tito que manteacutem o poder que jaacute partilhava com o pai Poreacutem longe de contestar a aclamaccedilatildeo o bioacutegrafo aceita os factos como satildeo porque determinados por forccedilas transcendentes o que nos remete para outro aspeto determinante do poder imperial

21 Poder dependente do fatum ou do acasoTibeacuterio que recorria aos conselhos do astroacutelogo Trasilo estava convencido

de que tudo era governado pelo destino25 Na verdade o preacircmbulo do referido testamento de Augusto vem revelar que foi a atrox fortuna que ao arrebatar os filhos de Juacutelia Gaio e Luacutecio provocou a escolha de Tibeacuterio como herdeiro E a voz corrente referida a seguir de que a escolha se deve agrave necessitas transforma o advento de Tibeacuterio num acontecimento fatiacutedico que o proacuteprio Augusto natildeo evitou (ou ateacute acentuou) e que prenuncia males piores26 Tito advertiraacute uns conspiradores de que eacute ao fatum que cabe a tarefa de conceder o principado27 Com a construccedilatildeo da ponte de Barcas em Baias Caliacutegula aleacutem de alardear o seu poder sobre os elementos e sobre os povos parece querer simbolizar a sua vitoacuteria sobre o destino uma das explicaccedilotildees para o evento foi o facto de o astroacutelogo Trasilo ter dito a Tibeacuterio que laquoGaio seria tanto imperador como atravessaria o golfo de Baias a cavaloraquo28 Este fatalismo estaacute tambeacutem presente na generalizaccedilatildeo abusiva que encerra a Vida de Caliacutegula todos os Ceacutesares cujo praenomen fosse Gaio morreram assassinados29

De facto o religioso Suetoacutenio como o apresenta Pliacutenio parece sobrevalorizar esta conceccedilatildeo determinista da histoacuteria e multiplica as referecircncias a pressaacutegios30 A sucessatildeo dos imperadores surge enquadrada por um plano transcendente Augusto Galba ou Vespasiano segundo os pressaacutegios apresentados31 estatildeo haacute muito tempo destinados ao governo do orbe A hora do parto de Augusto segundo um pitagoacuterico especialista em astrologia promete um dominus terrarum32 Eles proacuteprios se apresentam como conscientes desta trama transcendente Augusto e Tibeacuterio sabem que Galba seraacute um sucessor33 Vespasiano prevecirc que satildeo os filhos a suceder-lhe34 e que Domiciano deve temer o ferro35

25 Tib 6926 Contudo Augusto soacute estava a justificar legalmente a adoccedilatildeo de Tibeacuterio veja-se Wiede-

mann 1989 1927 Tit 9128 Veja-se Wardle 1994 7029 Cal 60 Veja-se Wardle 1994 372 Hurley 1993 21730 Sobre este assunto veja-se Brandatildeo 2013 285-9531 Aug 931 ss Gal 92 Ves 45 Veja-se Gascou 1984 7758532 Aug 94533 Gal 4134 Ves 2535 Dom 141

316

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

Por outro lado Suetoacutenio constata que Claacuteudio alcanccedila o poder por um acaso extraordinaacuterio (mirabilis casus)36 O bioacutegrafo compraz-se a descrever amiuacutede situaccedilotildees que por pouco natildeo alteraram o curso dos acontecimentos Daiacute a importacircncia atribuiacuteda agrave arte divinatoacuteria manifesta na valorizaccedilatildeo de determinadas coincidecircncias37

3 Natildeo se trata de dominatio ou regnum

A propaganda destinada a afastar a ideia de que era um tirano estaacute impliacutecita na atuaccedilatildeo de Augusto Fora esse o principal erro de Ceacutesar cuja ambiccedilatildeo de reinar eacute continuamente sugerida ao longo da Vida Logo no princiacutepio Suetoacutenio transcreve um excerto do elogio fuacutenebre da tia de Ceacutesar onde o proacuteprio exalta a origem real e divina da famiacutelia38 Eacute significativa da sua ambiccedilatildeo a frase que Ceacutesar repete ao tomar conhecimento das resoluccedilotildees tomadas no senado em seu desfavor39 (laquomais dificilmente o expulsariam do primeiro para o segundo lugar entre os cidadatildeos do que do segundo para o uacuteltimoraquo)

O pretexto que leva agrave travessia do Rubicatildeo eacute a violecircncia do senado contra os tribunos da plebe que com o veto intercediam por Ceacutesar mas as verdadeiras causas seriam outras40 o medo de reduzido a cidadatildeo privado ser castigado por irregula-ridades cometidas no exerciacutecio do primeiro consulado41 e sobretudo a ambiccedilatildeo da tirania (dominatio)42 Ele proacuteprio citava amiuacutede um verso de Euriacutepides segundo a qual a ambiccedilatildeo reinar justifica a violaccedilatildeo da justiccedila e do respeito pelos deuses43

Mais agrave frente satildeo apresentados facta dictaque que fazem com que se consi-dere que abusou da tirania (dominatio) e que por conseguinte a morte eacute justa44

36 Cl 10 Cf DC 6013-4 e I AI 19212-25 Veja-se Martin 1991 229-3037 Cl 21 Nero 404 Nero 571 Gal 61 Tit1 38 Jul 61 Est ergo in genere et sanctitas regum qui plurimum inter homines pollent et caeri-

monia deorum quorum ipsi in potestate sunt reges Veja-se Canfora 2000 17-1839 Jul 291 difficilius se principem ciuitatis a primo ordine in secundum quam ex secundo in

nouissimum detrudi Plutarco (Caes 113-4) coloca a frase noutro contexto (no caminho para a Hispacircnia enquanto propretor) mas o significado eacute semelhante Veja-se Canfora 2000 145-46

40 Jul 302 Et praetextum quidem illi ciuilium armorum hoc fuit causas autem alias fuisse opinantur

41 Jul 303-4 Alii timuisse dicunt ne eorum quae primo consulatu aduersus auspicia legesque et intercessiones gessisset rationem reddere cogeretur Quod probabilius facit Asinius Pollio Pharsalica acie caesos profligatosque aduersarios prospicientem haec eum ad uerbum dixisse referens lsquohoc uoluerunt tantis rebus gestis Gaius Caesar condemnatus essem nisi ab exercitu auxilium petissemrsquo

42 Jul 305 Quidam putant captum imperii consuetudine pensitastisque suis et inimicorum uiribus usum occasione rapiendae dominationis quam aetate prima concupisset

43 Jul 305 Trata-se de uma parte do discurso de Eteacuteocles (E Ph 524) que Ciacutecero traduz por Nam si uiolandum est ius ltregnandigt gratia uiolandum est aliis rebus pietatem colas Veja-se Canfora 2000 153 Romilly 1969 183-84 e 186-87

44 Jul 761 Praegrauant tamen cetera facta dictaque eius ut et abusus dominatione et iure caesus existimetur

317

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

honras exageradas privileacutegios que superam o humanum fastigium e uma atuaccedilatildeo poliacutetica onde impera a arbitrariedade (licentia) e o desrespeito pelo patrius mos45 Tais honras satildeo agravadas por uma seacuterie de ditos ceacutelebres (dicta) que manifestam excesso (inpotentia) contra a res publica e arrogantia face aos pressaacutegios46 Aleacutem disso Ceacutesar natildeo se livra da infamia de que desejaria o tiacutetulo de rex apesar de afirmar que laquoera Ceacutesar e natildeo reiraquo e de durante as Lupercais afastar ndash gesto teatral suspeito ndash a coroa que Antoacutenio repetidamente lhe colocava sobre a cabeccedila e de a consagrar a Juacutepiter Oacuteptimo Maacuteximo47

Torna-se pois claro que princeps ou imperator se distanciam dominus ou tyrannus48 Poreacutem a diferenccedila entre princeps e dominus natildeo eacute de caraacutecter constitucional mas sobretudo de natureza moral49 O ecircxito de Augusto fica a dever-se agrave demarcaccedilatildeo em relaccedilatildeo a Ceacutesar manifesta em atitudes teatrais que o bioacutegrafo natildeo desmascara a recusa de templos e estaacutetuas de ouro a rejeiccedilatildeo apa-ratosa da ditadura acompanhada de atitudes de suacuteplica50 manifestaccedilatildeo de horror ao apelido de dominus ostensivamente conotado com laquomaldiccedilatildeo e desonraraquo51 e o respeito pelo senado52 satildeo apresentados como provas (documenta) da ciui-litas53 Tal virtude traduz a consciecircncia de cidadatildeo a rejeiccedilatildeo da monarquia de tipo oriental e da tirania (dominatio) e defesa da libertas54 entendida durante o principado sobretudo como liberdade de expressatildeo Ao contraacuterio de Ceacutesar que pelo abusus dominatione e pela inpotentia mereceu a morte Augusto eacute objecto da estima geral55 tornando-se assim um modelo para os sucessores

Tibeacuterio de formaccedilatildeo republicana revela ciuilitas a princiacutepio ao recusar maximi honores que incluiacuteam culto divino56 rejeita o praenomen de imperator o

45 Jul 763 Eadem licentia spreto patrio more magistratus in pluris annos ordinauit eoque arrogantiae progressus est ()

46 Jul 77 Nec minoris inpotentiae uoces propalam edebat ()47 Jul 792 Neque ex eo infamiam affectati etiam regii nominis discutere ualuit quamquam

et plebei regem salutanti lsquoCaesarem se non regem essersquo responderit et Lupercalibus pro rostris a consule Antonio admotum saepius capiti suo diadema reppulerit atque in Capitolium Ioui Optimo Maximo miserit

48 Veja-se Bradley 1991 3715-716 Nota Gascou 1984 721-22 que neste ponto Suetoacutenio estaacute de acordo com Pliacutenio (Pan 453) Scis ut sunt diuersa natura dominatio et principatus ita non aliis esse principem gratiorem quam qui maxime dominum grauentur Cf Cic Rep 150

49 Como sublinha Gascou 1984 721-2250 Aug 5251 Aug 531 Domini appellationem ut maledictum et obprobrium semper exhorruit Suetoacutenio

natildeo denuncia a habilidosa simulaccedilatildeo de horror52 Aug 53353 Aug 511 Clementiae ciuilitatisque eius multa et magna documenta sunt A ciuilitas a par

da clementia vem em Suetoacutenio associada agrave moderatio como demonstra Gascou 1984 722-2354 Cf Aug 54 Nec ideo libertas aut contumacia fraudi cuiquam fuit55 Aug 571 Pro quibus meritis quanto opere dilectus sit facile est aestimare56 Tib 261 Verum liberatus metu ciuilem admodum inter initia ac paulo minus quam priua-

tum egit Ex plurimis maximisque honoribus praeter paucos et modicos non recepit Na Vida de Tibeacuterio natildeo parece haver diferenccedila como mostra Gascou 1984 723 entre ciuilitas e moderatio

318

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

cognomen de pater patriae a coroa ciacutevica limita o uso do nome de Augusto que herdou agraves cartas dirigidas aos reis57 e sobretudo recusa o apelido de dominus58 e defende repetidamente a liberdade de expressatildeo e de pensamento59 chegan-do mesmo a restabelecer o que o bioacutegrafo designa por uma species libertatis60 Tambeacutem Claacuteudio revela ciuilitas ao recusar o praenomen de imperator e honras excessivas61 e ao mostrar respeito pelo senado e magistrados62 Quanto a Vespa-siano mostra-se ciuilis et clemens do iniacutecio ao fim do principado63 Tais diferenccedilas satildeo pois decorrentes do caraacutecter individual e dificilmente podem ser prevenidas

4 Poder ilimitado e eacutetico

Como natildeo haacute formas constitucionais de controlar o poder do imperador as restriccedilotildees satildeo apenas de ordem eacutetica dependem do caraacutecter pessoal objecto privilegiado de anaacutelise da biografia Palavras atribuiacutedas a Caliacutegula e a Nero revelam o deslumbramento que pode causar este poder ilimitado O primeiro a uma repreensatildeo da avoacute Antoacutenia responde64 laquoHaacutes-de lembrar-te que tudo me eacute permitido contra todosraquo Nero como que fascinado com a impunidade com que comete parricidia et caedes65 laquodisse que nenhum dos priacutencipes fazia ideia do que lhe era permitidoraquo

O autocontrolo e equiliacutebrio satildeo difiacuteceis de manter quando se possui tal poder (in imperio) comenta o bioacutegrafo66 Haacute o risco de enveredar pela inpotentia

visto que depois (Tib 322) afirma Parem moderationem minoribus quoque et personis et rebus exhibuit e em outro passo Tib 571 () etiam inter initia cum adhuc fauorem hominum mode-rationis simulatione captaret

57 Tib 26258 Tib 2759 Tib 28 Sed et aduersus conuicia malosque rumores et famosa de se ac suis carmina firmus

ac patiens subinde iactabat lsquoin ciuitate libera linguam mentemque liberas esse deberersquo60 Tib 30 Quin etiam speciem libertatis quandam induxit conseruatis senatui ac magistratibus

et maiestate pristina et potestate Tambeacutem Taacutecito (Ann 1773) fala de simulacra libertatis61 Cl 121 At in semet augendo parcus atque ciuilis praenomen Imperatoris abstinuit nimios

honores recusauit62 Cl 122 Atitudes que lhe valeram amor e fauor Cl 123 Quare in breui spatio tantum

amoris fauorisque collegit63 De acircmbito semacircntico proacuteximo eacute a comitas a afabilidade ilustrada atraveacutes do sentido de

humor de Vespasiano Ves 22 Et super cenam autem et semper alias comissimus multa ioco transigebat

64 Cal 291 lsquomementorsquo ait lsquoomnia mihi et ltingt omnis licerersquo E ao primo Gemelo suspei-tando de que ele tomava um contraveneno lsquoAntidotumrsquo inquit lsquoaduersus Caesaremrsquo Ameaccedila as irmatildes relegadas de que natildeo dispunha soacute de ilhas mas tambeacutem de espadas repete um verso traacutegico tiacutepico de um caraacutecter tiracircnico (Cal 301) lsquooderint dum metuantrsquo expressatildeo retirada do Atreu de Aacutecio Cf Tib 592 oderint dum probent

65 Ves 12 Nero 33 ss Nero 373 Elatus inflatusque tantis uelut successibus negauit lsquoquemquam principum scisse quid sibi liceretrsquo

66 Esta constataccedilatildeo encarece o caraacutecter de Tito ndash Tit 1 () tantum illi ad promerendam om-nium uoluntatem uel ingenii uel artis uel fortunae superfuit et quod difficillimum est in imperio

319

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

ou arrogantia ou superbia67 A intenccedilatildeo de substituir a species principatus pelo regnum68 e o desejo de autodivinizaccedilatildeo69 iniciam a narrativa da parte que diz respeito agrave descriccedilatildeo de Caliacutegula enquanto monstrum Quanto a Domiciano a propensatildeo para a dominatio manifesta-se desde a juventude70 e quando impera-dor aceita com agrado que o apelidem de dominus71 e com a mesma arrogantia autoproclama-se dominus et deus72 recebe honras que como Ceacutesar e Caliacutegula ultrapassam os limites humanos73 ao ponto de como eles se tornar odiado e ser castigado com a morte violenta que impende sobre os tiranos74 Sintomaacutetica eacute por isso a relaccedilatildeo dos imperadores com o senado que de algum modo eacute siacutembolo do regime republicano Nero chega a pensar em eliminar este oacutergatildeo75 e Caliacutegula natildeo mostra para com ele reuerentia ou lenitas76

Por outro lado o bom princeps sabe moderar a sua coacutelera contra os inimigos e respeita a propriedade No exerciacutecio do poder a moderatio opotildee-se agrave arrogacircn-cia da atuaccedilatildeo tiracircnica e agrave crueldade77 Implica a praacutetica da clementia cujo viacutecio oposto eacute a saeuitia ou crudelitas Esta eacute uma virtude que Ceacutesar evidencia o que o afasta da imagem de um tirano completo A par da moderatio Suetoacutenio no final da Vida de Domiciano78 coloca a abstinentia como virtude fundamental para o desempenho do bom priacutencipe Esta virtude implica o respeito pela propriedade alheia impede que o imperador use o seu poder para conseguir lucros indevidos A ausecircncia desta virtude eacute notada no exerciacutecio do imperium e das magistraturas de Ceacutesar79 A abstinentia opotildee-se agrave auaritia agrave cupiditas agrave rapacitas que definem a atuaccedilatildeo dos maus imperadores no que diz respeito aos bens dos cidadatildeos mor-tos ou vivos das cidades das proviacutencias dos templos Como auaritia designa

67 O traccedilo tiacutepico do comportamento tiracircnico Veja-se a propoacutesito de Pliacutenio-o-Velho Oli-veira 1992 26-27

68 Cal 221 Nec multum afuit quin statim diadema sumeret speciemque principatus in regni formam conuerteret

69 Cal 222 Verum admonitus et principum et regum se excessisse fastigium diuinam ex eo maiestatem asserere sibi coepit

70 Dom 13 ceterum omnem uim dominationis tam licenter exercuit ut iam tum qualis futu-rus esset ostenderet Dom 123 Ab iuuenta minime ciuilis animi confidens etiam et cum uerbis tum rebus immodicus

71 Dom 13172 Dom 13273 Dom 132-374 Dom 141 Per haec terribilis cunctis et inuisus tandem oppressus est75 Nero 37376 Cal 262 Nihilo reuerentior leniorue erga senatum () Cal 491 Edixit et lsquoreuerti se sed

iis qui optarent equestri ordini et populo nam se neque ciuem neque principem senatui amplius forersquo Cf Cal 262 A superbia e a uiolentia qualificam em geral a sua relaccedilatildeo com as diferentes classes (Cal 264 302) Na altura da morte projetava facinora maiora como a eliminaccedilatildeo dos membros mais eminentes das classes senatorial e equestre (Cal 8)

77 Veja-se Gascou 1984 724-2578 Dom 23279 Jul 541 Abstinentiam neque in imperiis neque in magistratibus praestitit

320

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

Suetoacutenio a avidez de riquezas de Nero80 mas tambeacutem a mesquinhez de Galba81 viacutecio que inclusivamente contribuiraacute para a sua queda A cupiditas pecuniae eacute apresentada como o uacutenico viacutecio de Vespasiano82 de cuja fama se natildeo consegue livrar83 e como segundo viacutecio de Domiciano suplantado apenas pela crueldade (saeuitia)84

A divisatildeo operada na biografia de Caliacutegula entre atos do princeps e atos do monstrum ou na de Nero entre factos louvaacuteveis e neutros por um lado e probra ac scelera por outro demonstram que Suetoacutenio opera uma consideraccedilatildeo moral de toda a atuaccedilatildeo destes priacutencipes O mesmo se depreende do facto de a morte dos maus imperadores tender a ser apresentada como um castigo da tirania85

5 Poder paternalista

Na sociedade romana imperial que apresenta uma piracircmide de laccedilos de clientela o princeps natildeo deve ser um dominus mas um patronus para os cida-datildeos para as cidades de Itaacutelia para as proviacutencias para os reis aliados86 Aleacutem da abstinentia exige-se de um priacutencipe a liberalitas do primeiro dos patroni Uma conceccedilatildeo laquopaternalistaraquo do imperador estaacute expliacutecita em particular na forma como Tito acode agraves viacutetimas das calamidades laquonatildeo apenas com o zelo de um priacutencipe mas tambeacutem com amor iacutempar de um pairaquo87 Augusto exibe a liberalitas com todas as ordens88 Vespasiano depois de minimizada a maacute fama da cupiditas pecuniae eacute definido como assaz generoso para com todos (in omne hominum genus liberalissimus)89 A liberalitas figura explicitamente entre as virtudes osten-tadas por Nero e Domiciano nos iniacutecios destes principados90 quando pareciam prometedores

Os priacutencipes manifestam em geral consciecircncia da importacircncia do everge-tismo como sustentaacuteculo do poder imperial As enumeraccedilotildees apresentadas por Suetoacutenio sugerem a importacircncia social e poliacutetica que o bioacutegrafo atribui a estes

80 Nero 26181 Gal 12182 Ves 161 Sola est in qua merito culpetur pecuniae cupiditas Ves 163 Quidam natura

cupidissimum tradunt83 Ves 191 Et tamen ne sic quidem pristina cupiditatis infamia caruit84 Ves 11 () constet licet Domitianum cupiditatis ac saeuitiae merito poenas luisse Dom

101 () et tamen aliquanto celerius ad saeuitiam desciuit quam ad cupiditatem (desenvolvimen-to em Dom121-2)

85 Como afirma Gascou 1984 787-98 Veja-se Brandatildeo 2008 115-37 e 2009b 357-8086 Veja-se Grimal 1993 1787 Tit 83 In iis tot aduersis ac talibus non modo principis sollicitudinem sed et parentis affec-

tum unicum praestitit nunc consolando per edicta nunc opitulando quatenus suppeteret facultas Veja-se Gascou 1984 743

88 Aug 411 Liberalitatem omnibus ordinibus per occasiones frequenter exhibuit89 Ves 1790 Nero 101 Dom 91

321

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

aspetos distribuiccedilotildees agraves diferentes classes celebraccedilatildeo de jogos91 ofertas durante os jogos92 embelezamento da Urbe obras fora da urbe e nas proviacutencias O ever-getismo traduz uma consciecircncia eacutetico-social do poder imperial eacute uma forma de promover a concoacuterdia ao minorar os efeitos decorrentes das desigualdades e eacute um meio eficaz de propaganda do regime Tibeacuterio caracterizado como avaro (pecuniae parcus ac tenax) torna-se modelo da ausecircncia de liberalitas93 A avareza de Galba eacute ridiculizada pela opiniatildeo puacuteblica atraveacutes de diversas anedotas94 Este imperador acabou por ofender todas as classes especialmente os soldados preto-rianos a quem nega o donativo habitual na altura da sua aclamaccedilatildeo95

Faz parte do conceito laquopaternalistaraquo do imperador uma funccedilatildeo moraliza-dora96 pautada pelo esforccedilo de retorno aos costumes antigos sobretudo depois de periacuteodos de guerras civis97 Augusto mais uma vez eacute modelo apregoa o retorno ao mos maiorum98 A ele se atribui uma seacuterie de medidas adotadas ou reformuladas que versam sobre a moralizaccedilatildeo da vida puacuteblica e privada promulga leis sumptuaacuterias leis de adulteriis et de pudicitia de ambitu de mari-tandis ordinibus99 reprime a usurpaccedilatildeo da cidadania100 promove o restauro do uso da toga101 restabelece a disciplina nos espetaacuteculos102 As medidas contra o

91 Veja-se Della Corte 1967 100-10292 Veja-se Pocintildea et Ubintildea 1985 577-60293 Tib 46-4894 Gal 1295 Gal 16196 Veja-se Gascou 1984 743 ss97 Cf Aug 321 Pleraque pessimi exempli in perniciem publicam aut ex consuetudine licen-

tiaque bellorum ciuilium durauerant aut per pacem etiam extiterant Tib 33 () atque etiam si qua in publicis moribus desidia aut mala consuetudine labarent corrigenda suscepit Cl 22 Quaedam circa caerimonias ciuilemque et militarem morem item circa omnium ordinum statum domi forisque aut correxit aut exoleta reuocauit aut noua instituit Ves 92 Amplissimos ordines et exhaustos caede uaria et contaminatos ueteri neglegentia purgauit 11 Libido atque luxuria coercente nullo inualuerat

98 Veja-se Hellegouarcrsquoh 1987 8499 Aug 341100 Segundo Gascou 1984 744 Augusto procura evitar a contaminaccedilatildeo do sangue romano

e a usurpaccedilatildeo do direito de cidade numa perspetiva moral promovendo o preacutemio do meacuterito pessoal (iustae causae) contra o favorecimento a clientes (Aug 403) Veja-se Tompson 1981 35-46 Claacuteudio aleacutem de proibir aos estrangeiros a utilizaccedilatildeo indevida de nomes romanos pune com a decapitaccedilatildeo os que usurpam a cidadania romana (Cl 253)

101 Aug 405102 Aug 44-45 Promoveu a distribuiccedilatildeo hieraacuterquica dos lugares dos espectadores e repressatildeo

da libertinagem (licentia) dos atores Tibeacuterio expulsou os atores e seus sectaacuterios de Roma apesar dos rogos do povo (Tib 372) Tambeacutem Domiciano na parte positiva do principado promove uma seacuterie de medidas de teor semelhante com vista agrave correctio morum os alvos satildeo a licentia theatralis os scripta famosa o gesticulandi saltandique studium bem como as probrosae feminae os adulteria a praacutetica homossexual passiva visada pela lex Scantinia os incesta das virgens vestais (Dom 83) Veja-se Baumann 1982 121-22

322

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

excesso de luxo satildeo louvadas em Ceacutesar103 Augusto104 Tibeacuterio105 Vespasiano106 e mesmo em Nero na fase positiva do seu principado107 Caliacutegula eacute louvado (na parte positiva) pelo facto de pretender afogar os spintriae organizadores de monstrosae libidines108

Um dos deveres dos imperadores eacute salvaguardar a dignidade das classes mais elevadas Tibeacuterio reprimiu senadores que recorriam a expediente indignos do seu estatuto109 matronas aduacutelteras110 e jovens das classes senatorial e equestre que se expunham voluntariamente a um processo infamante para natildeo serem impedidos de tomar parte nos jogos teatrais e da arena Suetoacutenio que reflete uma conceccedilatildeo tradicional e hieraacuterquica da sociedade apresenta negativamente os imperadores que tentam subverter esta ordem estabelecida111 Eacute que a dife-renciaccedilatildeo social assenta numa base moral Sendo a libertas comum a todos os cidadatildeos livres a dignitas distingue as classes segundo uma precisatildeo incluiacuteda na Vida de Vespasiano112 E o fundamento da dignitas encontra-se natildeo soacute nos feitos dos antepassados mas tambeacutem nas accedilotildees louvaacuteveis do cidadatildeo113

6 Poder universalista da Urbe ao orbe

Suetoacutenio que escrevia no tempo dos primeiros laquoAntoninosraquo oriundos da Hispacircnia deveria sentir ao seu redor o caraacutecter universal do poder imperial Aleacutem disso Adriano gostava de viagens Trata-se de um poder que afeta o orbe e este mostra-se reconhecido perante os bons priacutencipes Tal eacute o caso do reconhe-cimento puacuteblico da obra de Augusto apresentado em gradaccedilatildeo manifestaccedilotildees de laquoalguns pais de famiacuteliaraquo laquoalgumas cidades de Itaacuteliaraquo laquoa maior parte das proviacutenciasraquo e por fim laquoreis amigos e aliadosraquo114 honras acaso encarecidas pela

103 Jul 43104 Aug 341105 Tib 341106 Ves 11 restabelecimento de leis sobre libido atque luxuria107 Nero 162 Mas em contrapartida eacute-lhe censurado como ato de rapina o despojamento

das roupas e dos bens de uma matrona vestida com a puacuterpura proibida (Nero 323)108 Cal 161109 Tib 352110 Tib 351 Cf Tac Ann 250 Condenou ao desterro as matronas que para contornar a lei

se declaravam prostitutas (Tib 352) - crime de Vistiacutelia segundo Tac Ann 2852-3111 Della Corte 1967 165-90 aponta como criteacuterio suetoniano de avaliaccedilatildeo dos priacutencipes

a atitude para com a classe a que Suetoacutenio pertencia os cavaleiros Esta teoria eacute refutada por Gascou 1976 735-40

112 Vespasiano destitui senadores e cavaleiros por serem indignissimi e deixa claro que a distinccedilatildeo entre as duas ordens se faz com base na dignitas e natildeo tanto na libertas acrescentando que se um cavaleiro natildeo deve ofender um senador tem no entanto o direito de responder a uma ofensa (Ves 92)

113 Veja-se Lewis 1991 3655 114 Aug 59-60

323

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

generalizaccedilatildeo115 Eacute jaacute em contexto proacuteximo da narrativa da morte na viagem para Caacutepreas que se insere um episoacutedio que significa o reconhecimento do mundo ao poder de Augusto116

laquoQuando atravessava um dia a baiacutea de Puteacuteolos os passageiros e os tripulan-tes de um navio de Alexandria que acabara justamente de aportar vestidos de branco e coroados com grinaldas natildeo soacute lhe ofereceram incenso como tambeacutem o cumularam de bons auguacuterios e de extraordinaacuterios louvores lsquoPor ele viviam por ele navegavam da liberdade e da felicidade por ele fruiacuteamrsquoraquo

Trata-se de uma cerimoacutenia lituacutergica como sugere o aparato (roupas flores incenso) e o ritmo da invocaccedilatildeo a celebraccedilatildeo da paz universal e da seguranccedila nos mares e um reconhecimento ritual da obra de Augusto117 No caso de Ceacutesar salienta-se que ao luto se associaram tambeacutem numerosos estrangeiros entre os quais se destacaram pelos testemunhos de pesar os Judeus118

Se o poder assenta nas instituiccedilotildees da Urbe tambeacutem emana cada vez mais do orbe Haacute a consciecircncia de que as forccedilas provinciais podiam retirar ou conferir o impeacuterio O fim de Nero fica a dever-se a uma destituiccedilatildeo levada a cabo pelo orbe119 laquoApoacutes ter suportado tal priacutencipe pouco menos que catorze anos o orbe da terra destituiu-o finalmenteraquo O princiacutepio do fim foi a revolta dos Gauleses sob o comando de Viacutendex dizia-se por graccedila que o imperador com o seu canto tinha despertado os Galli jogando com a ambiguidade do nome que designava quer o povo da Gaacutelia quer a ave120 Taacutecito121 dissera que a crise de 68-69 veio revelar algo novo que o imperador podia ser aclamado em qualquer outro siacutetio que natildeo Roma como acontece com Galba Viteacutelio e Vespasiano Galba apresenta-se teatralmente como um libertador Simbolicamente vai proceder a uma libertaccedilatildeo (manumissio) universal122

115 Como o exagero de afirmar que cada rei fundou uma cidade com o nome de Cesareia Veja-se Gascou 1984 232-38 240-41

116 Aug 982 Forte Puteolanum sinum praeteruehenti uectores nautaeque de naui Alexandri-na quae tantum quod appulerat candidati coronatique et tura libantes fausta omina et eximias laudes congesserant lsquoper illum se uiuere per illum nauigare libertate atque fortunis per illum fruirsquo

117 Veja-se Rocca-Serra 1974 671-80 Benario 1975 84118 Jul 845 Ceacutesar concedera-lhes vaacuterios privileacutegios por o terem ajudado na guerra de Ale-

xandria veja-se Canfora 2000 233-38119 Nero 401 talem principem paulo minus quattuordecim annos perpessus terrarum orbis

tandem destituit Cf Cal 56 Ita bacchantem atque grassantem non defuit plerisque animus adoriri

120 Nero 452121 Hist 14122 Gal 101 Igitur cum quasi manumissioni uacaturus conscendisset tribunal propositis ante

se damnatorum occisorumque a Nerone quam plurimis imaginibus et astante nobili puero quem exulantem e proxima Baliari insula ob id ipsum acciuerat deplorauit temporum statum consa-lutatusque imperator legatum se senatus ac populi R professus est Veja-se Venini 1974 996-97

324

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

laquoEntatildeo como se fosse tratar de uma manumissatildeo subiu ao tribunal Diante dele foi colocado o maior nuacutemero possiacutevel de retratos de condenados e executados de Nero e ao seu lado de peacute estava um jovem nobre que expressamente para este acto mandara vir da mais proacutexima das ilhas Baleares onde estava exilado Deplorou a situaccedilatildeo dos tempos e depois de ser saudado como imperador declarou-se legado do senado e do povo romanoraquo

No que respeita a Vespasiano eacute o prefeito do Egito Tibeacuterio Alexandre que leva as suas legiotildees a prestarem juramento nas calendas de Julho dia que passou a ser a data oficial do principatus dies Seguiu-se-lhe o exeacutercito da Judeia123 E enquanto envia as tropas para Itaacutelia dirige-se ele proacuteprio para Alexandria para consultar Seraacutepis sobre o grau de certeza do seu poder (de firmitate imperii) Aiacute eacute por assim dizer confirmado com uma coroaccedilatildeo segundo um ritual que envolve costumes egiacutepcios124 Galba e Vespasiano apresentam ascensotildees ao poder semelhantes partindo de dois pontos opostos do impeacuterio Favorece a ambos uma profecia antiga de que da proviacutencia que governa sairaacute um chefe tal profecia eacute confirmada por oraacuteculos locais125 e pelo achado de uma antiguidade significativa126 Na altura em que o bioacutegrafo escreve a proacutepria origem dos imperadores espelha o alargamento geograacutefico na atribuiccedilatildeo do poder supremo um salto do Palatino para a regiatildeo Sabina com os Flaacutevios e para Hispacircnia com Trajano e Adriano O poder oriundo da Hispacircnia que se natildeo consolidou em Galba (que na verdade representava a velha aristocracia) vai efetivar-se nos Antoninos

O poder consolidado na urbe projeta-se depois sobre o orbe Uma forma eficaz de propaganda eacute o espetaacuteculo A consciecircncia da universalidade torna-se manifesta em Ceacutesar e em Augusto quando oferecem representaccedilotildees teatrais em todas as liacutenguas127 Destaca-se sobretudo entre os espetaacuteculos oferecidos por Caliacutegula uma novidade128 uma ponte formada com barcas entre Baias e Puteacuteolos por onde o imperador atravessou em dias sucessivos com um largo seacutequito de amigos e convidados129 Uma das interpretaccedilotildees aduzidas pelo bioacutegrafo patenteia

123 Cf Tac Hist 279 A versatildeo de Josefo (BI 4601) segundo a qual Vespasiano foi aclamado na Judeia eacute rejeitada pelos autores modernos como tendenciosa Veja-se Cesa 2000 64

124 O liberto Basiacutelides oferece-lhe segundo o costume local verbena coroas e bolos (Ves 71) Segundo Derchain 1953 261-79 os elementos apresentados (verbena coroas e bolos) fazem parte do ritual de coroaccedilatildeo dos monarcas egiacutepcios Veja-se tambeacutem Derchain et Hubaux 1953 38-52

125 Cf Gal 92 Ves 45 56126 Gal 104 Ves 73127 Jul 391 Aug 431128 Cal 191 Nouum praeterea atque inauditum genus spectaculi excogitauit129 Cal 192 Veja-se Martin 1991 309 Wardle 1994 194-96 Para Antonelli 2001 120-25 eacute

uma forma de demonstrar o poder ilimitado do priacutencipe em confronto com o poder dos oacutergatildeos constitucionais da Repuacuteblica

325

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

o desejo de emulaccedilatildeo da ponte que Xerxes lanccedilou sobre o Helesponto130 De facto no desfile o priacutencipe ostentava o pequeno Dario um refeacutem parto filho de Artaacutebano III Segundo outra explicaccedilatildeo seria para aterrorizar os Bretotildees e Germanos contra os quais se preparava uma expediccedilatildeo

De modo semelhante no que se refere a Nero o bioacutegrafo coloca explici-tamente entre os espetaacuteculos a receccedilatildeo ao rei da Armeacutenia Tiridates e a sua coroaccedilatildeo em Roma131 corolaacuterio de um sucesso poliacutetico e diplomaacutetico realizado sob os auspiacutecios do imperador mas que o bioacutegrafo omite132 E a verdade eacute que passados vinte anos da sua morte um falso Nero ainda teve grande acolhimento sobretudo entre os Partos (e o bioacutegrafo sugere que o episoacutedio se enquadra nas suas lembranccedilas133) o que revela a admiraccedilatildeo que o Oriente consagrava agravequele imperador

Outra das formas de propaganda de qualquer regime autoritaacuterio eacute a poliacutetica de grandes construccedilotildees na urbe e nas proviacutencias A Urbe era a imagem visiacutevel de Roma divinizada Os bons imperadores satildeo restauradores tanto quanto possiacutevel soacutebrios e preocupados com o bem puacuteblico No caso de Augusto e Vespasiano essa tarefa insere-se no programa de restauraccedilatildeo da Urbe depois das guerras civis134 Tambeacutem satildeo aprovadas inicialmente as construccedilotildees grandiosas de Do-miciano135 se bem que na parte negativa da vida se diga que foram ruinosos os gastos com construccedilotildees e espetaacuteculos136 Quanto a Caliacutegula parece sugerir-se uma tendecircncia megaloacutemana137

Simboacutelica poderaacute ser a construccedilatildeo da famosa Domus Aurea de Nero com uma estaacutetua colossal no vestiacutebulo poacuterticos imensos um lago central campos cultivados e bosques com requintadas salas de jantar em que sobressaiacutea a cena-tio rotunda cujo teto simulava a aboacutebada celeste138 conjunto que para Grimal corresponderia a uma espeacutecie de microcosmos do mundo mediterracircneo ao re-dor do lago central139 Torna-se significativa a construccedilatildeo do Anfiteatro Flaacutevio no

130 Cal 193 Cf Hdt 483 ss131 Nero 131 Non immerito inter spectacula ab eo edita et Tiridatis in urbem introitum ret-

tulerim132 A vitoacuteria diplomaacutetica que resultou na resoluccedilatildeo da complicada questatildeo armeacutenio-parta e

na pacificaccedilatildeo das fronteiras do impeacuterio Veja-se Cizek 1982 145-46 Griffin 1984 232-33 Fini 1993 73-78 Shotter 1997 31-33

133 Com a expressatildeo adulescente me Nero 572 Sobre este falso Nero veja-se Gallivan 1973 364-65 Bradley 1978 294-95

134 Aug 283 Ves 91135 Dom 5 Veja-se Gascou 1984 668 Jones 1996 49-50136 Dom 121137 Cal 21138 Nero 312 Cf Tac Ann 1542-43 A descriccedilatildeo inclui topoi retoacutericos contra a sumptuosi-

dade Veja-se Morford 1968 158-79 Blaison 1998 617-24139 Lugar onde mais tarde se elevaria o anfiteatro Flaacutevio Cf Mart Spect 25-6 Veja-se

Grimal 1955 16-17 Brandatildeo 2009a 223-30

326

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

centro da urbe integrado no programa de reconstruccedilatildeo em embelezamento da cidade140 e em cuja inauguraccedilatildeo141 se apresenta uma multidatildeo multieacutetnica como atesta o poeta Marcial que assistiu142

No centro estava a Urbe romana de onde todo o poder emanava e para onde todos os povos confluiacuteam Alterar este estatuto da Urbe ainda parece loucura de tiranos Sintomaacutetico das aspiraccedilotildees autocraacuteticas de Ceacutesar e de Caliacutegula seraacute a suspeita de que tencionam transferir a residecircncia para Alexandria143 Muitos destes rumores derivam simplesmente da busca de conformidade com a descriccedilatildeo dos tiranos retoacutericos que apresentavam uma seacuterie de traccedilos fixados

Em suma para Suetoacutenio o poder imperial eacute uma nova realidade que substituiu com vantagem a anarquia do final da Repuacuteblica mas que natildeo equivalia a um reinado um poder que se assenta numa sucessatildeo indefinida e que depende em muito quer de uma espeacutecie de determinismo coacutesmico representado pelo fatum ou fortuna quer do caraacutecter de quem o deteacutem o que justifica tambeacutem a opccedilatildeo pela biografia como meio privilegiado para analisar sistematicamente o ethos dos principes Enquanto dependente do caraacutecter do governante o poder tende a ser encarado de forma paternalista pela atuaccedilatildeo sobre os suacutebditos Sem perder de vista a tradicional ligaccedilatildeo agrave cidade o poder tem o seu fundamento na Urbe com a sua vocaccedilatildeo universalista mas estaacute cada vez mais dependente tambeacutem da aceitaccedilatildeo e por vezes imposiccedilatildeo do orbe Se as cidades das proviacutencias imitam a Urbe esta acaba por ser representaccedilatildeo cosmopolita do mundo de que eacute centro O papel das proviacutencias revela-se cada vez mais importante mas por enquanto a possibilidade de outra capital imperial eacute considerada uma loucura tiracircnica

140 Ves 91141 Tit 73142 Spect 3143 Jul 793 Cal 492 Boato levantado certamente a partir da projetada viagem de Caliacutegula

a Alexandria referida por Flaacutevio Josefo (AI 1981) Segundo Fiacutelon (Leg 162) Caliacutegula mantinha boas relaccedilotildees com os habitantes de Alexandria e considerava aquela cidade como a uacutenica ade-quada para consagrar a sua divinizaccedilatildeo (Leg 338) Veja-se Guastella 1992 261 Nero perante a revolta da Gaacutelia chega a sonhar com um reino no Oriente (Nero 402) ou que lhe confiem ao menos a prefeitura do Egito (Nero 472)

327

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Bibliografia

Antonelli G 2001 Caligola Imperatore folle o principe inadeguato al ruolo assegnatogli dalla sorte Roma Newton amp Compton

Baumann R 1982 ldquoThe reacutesumeacute of legislation in Suetoniusrdquo Zeitschrift der Savigny-Stiftung fuumlr Rechtsgeschichte Romanistische Abteilung 9981-127

Benario H W 1975 ldquoAugustus priacutencepsrdquo Aufstieg und Niedergang der roumlmischen Welt ANRW 2 (2)75-85

Blaison M 1998 ldquoSueacutetone et lrsquo ekphrasis de la Domus Aureardquo Latomus 57617-24Bradley K R 1991 ldquoThe imperial ideal in Suetoniusrsquo Caesaresrdquo In ANRW 2

(335)3701-732mdashmdashmdash 1978 Suetoacutenio Suetoniusrsquo Life of Nero An Historical Commentary

Bruxelles LatomusBrandatildeo J L 2013 ldquoO destino e a histoacuteria nas Vidas dos Ceacutesares de Suetoacuteniordquo In

Vir bonus peritissimus aeque Estudos de homenagem a Arnaldo do Espiacuterito Santo ed M Cristina Pimentel e Paulo Farmhouse 285-98 Lisboa Centro de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

mdashmdashmdash 2009a ldquoA ekphrasis suetoniana da Domus aureardquo In Liacutenguas e Literaturas Vol 1 de Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas Greacutecia e Roma ed Francisco Oliveira Claacuteudia Teixeira e Paula Barata Dias Coimbra Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos 223-30

mdashmdashmdash 2009b Maacutescaras dos Ceacutesares Teatro e moralindade nas Vidas suetonianas Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia

mdashmdashmdash 2008 ldquoTirano ao tibre Estereoacutetipos de tirania nas Vidas dos Ceacutesares de Suetoacuteniordquo Humanitas 60115-37

Butler H E e M Cary (1993) 1927 Suetoacutenio Suetonius Diuus Iulius introduction bibliography and notes by G B Townend New-York Oxford Oxford University Press

Canfora L 2000 Giulio Cesare Il dittatore democratico 5ordf ed Roma Bari Laterza

Carter J M ed 2012 Suetonius Divus Augustus Bristol Bristol Classical PressCesa M trans 2000 Svetonio Vita di Vespasiano Bologna CappelliCizek E 1982 Neacuteron Paris FayardDella Corte F 1967 Svetonio eques Romanus Firenze La Nuova ItaliaDerchain Ph e J Hubaux 1953 ldquoVespasien au Seacuterapeacuteumrdquo Latomus 1238-52

328

Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio

Fini M 1993 Nerone Duemila anni di calunnie Milano MondadoriGallivan P A 1973 ldquoThe false Neros A re-examinationrdquo Historia 22364-65Gascou J 1984 Sueacutetone historien Paris de Boccardmdashmdashmdash 1976 ldquoSueacutetone et lrsquoordre eacutequestrerdquo Revue Des Eacutetudes Latines 54257-77Giua M A 1990 ldquoAspetti della biografia latina del primo imperordquo Rivista

Storica Italiana 12 535-59Griffin M T 1984 Nero The End of a Dynasty London RoutledgeGrimal P 1993 O Impeacuterio Romano Lisboa Ediccedilotildees 70mdashmdashmdash 1955 ldquoSur deux mots de Neacuteronrdquo AFLT Pallas 315-20Guastella G 1999 Gaio Svetonio Tranquillo Lrsquoimperatore Claudio Venezia

Marsiliomdashmdashmdash ed et trans 1992 Gaio Svetonio Tranquillo La vita di Caligola Roma La

Nuova Italia ScientificaHellegouarcrsquoh J 1987 ldquoSueacutetone et le principat drsquoapregraves la Vie drsquoAugusterdquo In

Filologia e forme letterarie Studi offerti a F della Corte 79-94 Urbino Quattro Venti

Hurley D W 1993 An Historical and Historiographical Commentary on Suetoniusrsquo Life of C Caligula Atlanta Scholars Press

Jones B W ed 1996 Suetonius Domitian Edited with Introduction Commentary and Bibliography London Bristo Classical Press

Jones B e R Milns 2002 Suetonius the Flavian emperors a historical commentary London Bristol Classical Press

La Penna A 1987 ldquoCesare secondo Plutarcordquo In Plutarco Vite Parallele Allessandro Cesare ed D Magnino 207-306 Milano Biblioteca Univerzale Rizzoli

Levick B 1999 Tiberius the Politician London New York RoutledgeLewis R G 1991 ldquoSuetoniusrsquo Caesares and their literary antecedentsrdquo Aufstieg

und Niedergang der romischen Welt 2 (335)3623674Lindsay Hugh ed 1995 Suetonius Tiberius London Bristol Classical PressLouis N ed 2010 Commentaire historique et traduction du Divus Augustus de

Sueacutetone Bruxelles Eacuteditions LatomusMartin R 1991 Les douze Ceacutesars du mythe agrave la reacutealiteacute Paris Les Belles LettresMorford M P 1968 ldquoThe distortion of the Domus Aurea traditionrdquo Eranos

66158-79Mottershead J ed 1986 Suetonius Claudius Bristol Bristol Classical PressMurison Charles ed 1992 Suetonius Galba Otho Vitellius London Bristol

Classical Press

329

Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Oliveira F 1992 Les ideacutees politiques et morales de Pline lrsquoAncien Coimbra Instituto Nacional de Investigaccedilatildeo Cientiacutefica Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Pocintildea A e J F Ubintildea J F 1985 ldquoEl evergetismo imperial en Suetoniordquo Latomus 44577-602

Power T e R Gibson 2014 Suetonius the Biographer Studies in Roman Lives Oxford Oxford University Press

Rocca-Serra G 1974 ldquoUne formule cultuelle chez Sueacutetone (Divus Augustus 982)rdquo In Meacutelanges de philosophie de litteacuterature et drsquohistoire ancienne offerts agrave P Boyanceacute 671-80 Rome Palais Farnegravese

Rolfe J C (1913-1914) 1979 Suetoacutenio Suetonius Reimpressatildeo 2 vols Cambridge (MA) London Harvard University Press Heinemann

Romilly J 1969 ldquoIl pensiero di Euripide sulla tiranniardquo Dioniso 43 175-87Seager R 1972 Tiberius London Eyre MethuenSyme R 1974 ldquoHistory or biography The case of Tiberius Caesarrdquo Historia

23481-96Timonen A 1993 ldquoEmperors ars recusandi in biographical narrativerdquo Arctos

27133-48Tompson L A 1981 ldquoThe concept of purity of blood in Suetoniusrsquo life of

Augustusrdquo Museum Africum 735-46Venini Paola ed 1977 C Svetonio TranquilloVite di Galba Ottone Vitellio con

commentario Torino Paraviamdashmdashmdash 1974 ldquoSulle Vite suetoniane di Galba Otone e Vitelliordquo Rendiconti

dellrsquoIstituto Lombardo 108991-1014Wallace-Hadrill A 1984 Suetonius The Scholar and his Caesars New Haven

CT Yale University PressWardle D trans 2014 Suetonius Life of Augustus Translated with Introduction

and Historical Commentary Oxford Oxford University Pressmdashmdashmdash 1994 Suetoniusrsquo Life of Caligula A Commentary Bruxelles LatomusWarmington B H ed 1999 Suetonius Nero Text with Introduction and Notes

London Bristol Classical PressWiedemann T 1989 The JulioClaudian emperors ad 14-70 Bristol Bristol

Classical Press

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

331

Rodrigo Furtado

Peregrinationes ad loca sancta o estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

(Peregrinationes ad loca sancta the strange route of Melania-the-Elder in a globalised Mediterranean)

Rodrigo Furtado(rodrigofurtadocampusulpt ORCID 0000-0002-6720-5030)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Centro de Estudos Claacutessicos

Resumo - Este texto resulta das incongruecircncias omissotildees lapsos e reconstruccedilotildees das fontes sobre Melacircnia-a-Antiga Procurarei aduzir elementos que esclarecem (i) que Melacircnia partiu para o Oriente ca 374 mais de dez anos depois de ter ficado viuacuteva (ii) no contexto das perseguiccedilotildees de Valentiniano I (iii) e que primeiro rumou ao Egito antes de se estabelecer na Palestina Procurarei ainda (iv) situar o regresso de Melacircnia a Roma no contexto do conflito generalizado entre os mosteiros de Jerusaleacutem e os monges do Egito por um lado e Jeroacutenimo o seu mosteiro de Beleacutem e Teoacutefilo de Alexandria por outro

Palavras-chave Peregrinaccedilatildeo Antiguidade tardia Melacircnia-a-Antiga Cristianismo ndash seacutecs IV-V

Abstract ndash This text is an analysis of the incongruities omissions lapses and re-constructions of the sources about Melany-the-Ancient I will defend (i) that Melania left Rome for the East ca 374 more than ten years after she became a widow (ii) in the context of the persecutions of Valentinian I (iii) and that she went first to Egypt before settling in Palestine I will also (iv) analyse Melaniarsquos return to Rome in the context of the general conflict between the monasteries of Jerusalem and the monks of Egypt on the one hand and Jerome his monastery in Bethlehem and Theophilus of Alexandria on the other

Keywords Pilgrimage Late Antiquity Melania-the-Elder Christianity ndash IVth-Vth century

Por volta do ano 370 dC o Mediterracircneo era um mar romano haacute cerca de quatrocentos e trinta anos desde pelo menos a eliminaccedilatildeo pompeiana dos piratas e as subsequentes conquistas do Magno em terras orientais e sobretudo com o domiacutenio romano da estrateacutegica ilha de Chipre pelo republicano Catatildeo de Uacutetica Naturalmente a cosmoacutepolis agrave escala do Mediterracircneo Oriental era bem anterior no ano 370 durava haacute pelo menos setecentos anos desde que Alexandre derrubara o dominoacute persa Quatrocentos e trinta ou setecentos anos eacute grosso modo o tempo que nos separa a noacutes em Portugal do iniacutecio do periacuteodo filipino ou mais ainda do rei D Dinis Era muito tempo Por isso creio que tal como para noacutes seria difiacutecil para os homens da segunda metade do seacuteculo IV

httpsdoiorg1014195978‑989‑26‑1626‑1_18

332

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

dC conceber a possibilidade de um mundo diferente daquele em que viviam E no entanto ele estava a mudar e de forma acelerada as reformas de Diocleciano e de Constantino transformaram irremediavelmente o Impeacuterio e natildeo apenas em termos religiosos como estamos habituados a considerar

Neste mundo globalizado haacute um fenoacutemeno que natildeo sendo obviamente ge-neralizado ganha agora uma dimensatildeo nova o das peregrinaccedilotildees1 Em latim haacute pelo menos duas palavras que designam o fenoacutemeno ndash peregrinatio claro e iter Ambos os lemas tecircm tambeacutem outros significados e natildeo deixa de ser curioso que Egeacuteria por exemplo prefira referir-se ao seu iter e nunca agrave sua peregrinatio De qualquer modo e de forma simples e clara lsquoperegrinaccedilatildeorsquo surge como todo o tipo de viagem com objetivos religiososespirituais2 Neste sentido a peregrinaccedilatildeo implica normalmente uma deslocaccedilatildeo longa e difiacutecil (e frequentemente a proacutepria viagem num mundo em que ainda natildeo havia lsquocaminhosrsquo de peregrinaccedilatildeo era considerada mais densa em termos espirituais do que o destino em si3) a um determinado local tido como sagrado eou uma visita a um determinado lsquoholy manrsquo4 Claro que visitar um santuaacuterio ou um dos santos homens que pululavam sobretudo no Oriente do Impeacuterio natildeo era um fenoacutemeno apenas cristatildeo Delfos Diacutedima Oliacutempia ou os santuaacuterios de Ascleacutepio em Epidauro ou em Peacutergamo neste uacuteltimo caso com um notaacutevel equipamento de hotel amp spa5 eram destinos frequentes e deixo tambeacutem de lado o caso dos pregadores itinerantes como Pro-clo biografado por Marino de Naacutepoles ou os vaacuterios lsquofiloacutesofosrsquo e lsquosofistasrsquo cujas vidas interessaram a Eunaacutepio

Pelo menos nos primeiros tempos o Cristianismo conhecera vaacuterios destes pregadores itinerantes a comeccedilar pelo proacuteprio Jesus de Nazareacute ou por Paulo de Tarso Apesar de tudo seraacute difiacutecil encontrar casos evidentes de lsquoperegrinaccedilatildeorsquo entre cristatildeos pelo menos ateacute ao seacuteculo IV natildeo creio que os dois exemplos que por vezes satildeo dados o de Alexandre de Jerusaleacutem (que teraacute fugido no seacuteculo III da perseguiccedilatildeo na Capadoacutecia6) e o de Militatildeo de Sardes (que teraacute rumado agrave Palestina para procurar coacutepias fidedignas das Escrituras7) encaixem bem no conceito de peregrino

Nem mesmo com Helena a matildee do imperador Constantino as motivaccedilotildees religiosas foram razatildeo primeira para a viagem agrave Palestina em 3268 mesmo se

1 Cf Wilkinson 1977 V Turner et E Turner 1978 Hunt 1982 Maraval 1985 Bitton-Askelony 1999 Webb 1999 Marcos 2004 Dietz 2005

2 Sigo a definiccedilatildeo de Dietz 2005 303 Dietz 2005 30 laquoreaching a particular destination was often less important than the jour-

ney itselfraquo4 O tiacutetulo claacutessico eacute o de Brown 1971 Atualizaccedilotildees em Cameron 1999 Dahlman 2007

Rubenson 20085 Referecircncia de Dietz 2005 326 Cf Eus hist eccl 927 Cf Eus hist eccl 4268 Drijvers 1992 Pohlsander 1996

333

Rodrigo Furtado

Euseacutebio de Cesareia garante que a Augusta queria rezar nos locais outrora fre-quentados por Cristo eacute tambeacutem ele que nos diz que Helena tinha sido enviada para inspecionar as proviacutencias orientais com as suas comunidades e povos9 Ou-tras mulheres (quase sempre mulheres de facto) se lhe seguiram embora muitas vezes meros nomes Martana parece ter liderado uma comunidade feminina na Siacuteria10 ou talvez melhor a extravagante Pemeacutenia parece ter patrocinado a Igreja da Ascensatildeo em Jerusaleacutem11 Por fim ainda no seacuteculo IV mencione-se Egeacuteria12

Nenhuma destas mulheres no entanto me ocuparaacute aqui Este meu texto surge do cruzamento de duas leituras por um lado a tese de Maribel Dietz Wandering monks virgins and pilgrims Ascetic travel in the Mediterranean world que procura mostrar a diversidade de motivaccedilotildees que teraacute estado por traacutes do fenoacutemeno das peregrinaccedilotildees ateacute agrave eacutepoca de Carlos Magno por outro o con-junto de leituras sobre Melacircnia-a-Antiga atraveacutes das epiacutestolas de Jeroacutenimo e de Paulino de Nola e sobretudo da Historia Lausiaca de Palaacutedio Quando comecei a estudar Melacircnia e resolvi consultar o livro de Dietz percebi que muito prova-velmente haveria mais a dizer do que aquilo que a autora norte-americana deixa entender sobre esta personagem de resto com pequenas imprecisotildees13 A leitura posterior de um artigo de Franca Ela Consolino e da Melaniana de Nicole Moine permitiu perceber que a vida de Melacircnia continha algumas inconsistecircncias em que importava ainda atentar14 Muito recentemente em 2016 o livro de C M Chin e C T Schroeder acaba por retomar e desenvolver algumas das questotildees que em 2013 eu proacuteprio tinha tratado no contexto do congresso que deu origem a este estudo15 Tambeacutem posterior o excelente artigo de K W Wilkinson eacute o que mais se aproxima do tema que aqui proponho estudar16 Apesar de tudo julgo que sobretudo quanto agrave data da partida da Roma e aos motivos dessa partida este meu contributo acrescenta elementos a este uacuteltimo texto

Melacircnia-a-Antiga pertencia agrave gens Antonia Descendia de Antoacutenio Marce-lino praeses Lugdunensis na eacutepoca da tetrarquia prococircnsul da Aacutefrica e oficial do imperador Constante17 Antoacutenio tinha pertencido ao coleacutegio de prefeitos do pretoacuterio foi prococircnsul da Itaacutelia Iliacuteria e Aacutefrica entre 340-342 e cocircnsul em 341 Melacircnia casou com um membro da ainda mais prestigiada gens Valeria18

9 Vita Const 34210 Egeacuteria 23311 Pall hist laus 3514-15 Butler Joatildeo Rufo Vita Petri Iberi 3013-18 cf Devos 1969 Devos

197312 Veja-se Mariano et Nascimento 1998 com bibliografia13 Cf Dietz 2005 122-2314 Moine 1980 Consolino 2006 especialmente as pp 75-8415 Chin et Schroeder 201616 Wilkinson 201217 plre 1 548-549 laquoMarcellinus 16raquo18 Paul Nol ep 298

334

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

provavelmente com o prefeito da Cidade em 361 Valeacuterio Maacuteximo19 Ora este Valeacuterio Maacuteximo (se tiver sido mesmo ele o marido de Melacircnia) natildeo era um qual-quer Gala a primeira mulher de Juacutelio Constacircncio meio-irmatildeo de Constantino I era sua tia materna20 A imperatriz Justina mulher do imperador Valentiniano I e depois regente do impuacutebere Valentiniano II deve ter sido tambeacutem sua prima21 O pai de Valeacuterio Maacuteximo tinha sido vigaacuterio do Oriente em 325 prefeito do pretoacuterio do Oriente entre 327-8 da Gaacutelia com Constacircncio Ceacutesar em 332-3 e no Danuacutebio em 337 com Dalmaacutecio Ceacutesar22

Natildeo se sabe desde quando Melacircnia era cristatilde Apoacutes vaacuterias gestaccedilotildees algu-mas delas frustradas23 Melacircnia perdeu o marido e dois dos seus filhos no curto prazo de um ano E eacute aqui que comeccedilam os nossos problemas

No ano 384 Satildeo Jeroacutenimo na carta que escreveraacute agrave sua amiga Paula quando da morte da filha desta Blesila recorda Melacircnia como exemplo de virtudes ela que enfrentara com coragem a perda de dois filhos e do marido Traduzo

Natildeo derramou qualquer laacutegrima permaneceu imperturbaacutevel e arrojando-se aos peacutes de Cristo sorriu como se o tivesse a ele proacuteprio nos braccedilos laquoServir-te-ei agora mais devotadamente Senhor porque me livraste de tatildeo grande pesoraquo [ie do marido e dos filhos] [hellip] Com o mesmo pensamento com que despreza os que tinham morrido assim o prova depois em relaccedilatildeo ao seu uacutenico filho quando deixando-lhe tudo quanto tinha e tendo comeccedilado jaacute o Inverno na-vegou para Jerusaleacutem (Hier ep 395)

Palaacutedio conta uma histoacuteria semelhante

Ficando viuacuteva aos 22 anos foi digna do amor divino e sem dizer nada a nin-gueacutem (pois tecirc-la-iam impedido naqueles tempos em que Valente governava o impeacuterio) designou um tutor para o filho tomou consigo todos os seus bens moacuteveis e pocirc-los num barco com alguns servos e escravas depois zarpou a toda a pressa para Alexandria (Pall hist laus 461)

O texto de Paulino de Nola eacute bastante mais longo mas confirma grosso modo as informaccedilotildees anteriores Portanto e conjugando os textos destes trecircs autores Melacircnia abandonou o filho Valeacuterio Publiacutecola ainda natildeo com catorze anos24 e atravessou o Mediterracircneo em pleno Inverno Contudo esta partida natildeo

19 Amm 211224 cf plre 1 583 laquoMaximus 17raquo20 plre 1 382 laquoGalla 1raquo21 Chausson 2007 97-18722 Plre 1 590-591 ldquoMaximus 49rdquo23 Paul Nol ep 29824 Paul Nol ep 298 Hier chron a 374 Helm Pall hist laus 461 Butler cf Moine 1980

41-43

335

Rodrigo Furtado

estaacute isenta de problemas refiro aqui apenas dois ndash quando partiu afinal Melacircnia E aparentemente mais evidente porque partiu Melacircnia

Comeccedilo pela primeira pergunta de acordo com os trecircs textos que referi de Jeroacutenimo Palaacutedio e Paulino de Nola natildeo teraacute decorrido muito tempo entre a morte dos seus entes queridos e a partida para o Oriente todos querem fazer crer que a decisatildeo de Melacircnia de abandonar tudo e cruzar o Mediterracircneo foi quase imediatahellip e no entanto atentemos em trecircs pormenores Palaacutedio diz que Melacircnia deixou Itaacutelia no principado de Valente isto eacute entre 364 e 378 Este intervalo circunscreve o acontecimento mas eacute ainda demasiado largo Um pouco mais agrave frente na sua Historia Lausiaca o mesmo Palaacutedio assegura que quando do regresso de Melacircnia a Itaacutelia no ano 400 jaacute haacute 37 anos que a matrona levava uma existecircncia dedicada agrave caridade e agrave ascese25 fazendo as contas 400-37 chegamos ao ano 363 O mesmo Palaacutedio26 afirma que em 400 Melacircnia teria sessenta anos teria pois nascido por volta do ano 340 Sendo assim continuando a acreditar em Palaacutedio Melacircnia teria ficado viuacuteva em 362 com os vinte e dois anos que ele proacuteprio refere Todos estes dados satildeo compatiacute-veis com os textos se o marido de Melacircnia tiver morrido em 362 ela pode ter abraccedilado uma vida de caridade e ascese jaacute viuacuteva em 363 e pode ter partido para o Oriente no ano seguinte jaacute depois de 28 de Marccedilo de 364 quando Valente assumiu o principado para todos os efeitos tudo teria ocorrido num tempo curto Contudo Palaacutedio acrescenta uma outra informaccedilatildeo que vem perturbar este edifiacutecio cronoloacutegico Ele tambeacutem diz que a matrona permaneceu em Je-rusaleacutem durante vinte e sete anos ora 400-27=373 o que significa cerca de dez anos depois do periacuteodo que estaacutevamos a considerar De resto o mesmo Palaacutedio diz ainda que Melacircnia estaria no Egito quando da perseguiccedilatildeo movida por Valente contra os monges do Egito fieacuteis a Niceia ora esta perseguiccedilatildeo ocorreu apenas apoacutes a morte do centenaacuterio Atanaacutesio de Alexandria em 2 de Maio de 37327

Recapitulemos Palaacutedio diz que Melacircnia tinha sessenta anos quando re-gressou a Itaacutelia que tinha 22 anos quando ficou viuacuteva que logo apoacutes a morte do marido decide deixar o filho em Roma e parte para Alexandria durante o principado de Valente e que no ano 400 se entregava agrave vida asceacutetica haacute jaacute trinta e sete anos Contudo diz tambeacutem que a sua presenccedila em Jerusaleacutem durou soacute 27 anos e que algures depois de 2 de Maio de 373 estaria no Egito e natildeo na Pales-tina Ou Palaacutedio se enganou nas contas (eacute possiacutevel) ou algum copista se enganou a copiar as datas (o que eacute ainda mais provaacutevel) Descarto desde jaacute a hipoacutetese de Melacircnia ter ficado no Egito 10 anos entre 364-373 entre deixar a Itaacutelia e rumar

25 Pall hist laus 54 Butler26 Pall hist laus 543 Butler27 Pall hist laus 463 Butler

336

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

a Jerusaleacutem ela natildeo eacute compatiacutevel com o texto do proacuteprio Palaacutedio Segundo este mesmo autor Melacircnia teria ficado no Egito apenas ἥμισυ ἔτους (meio ano)

Jeroacutenimo e Paulino de Nola ajudam a esclarecer o imbroacuteglio Paulino que era familiar de Melacircnia e em cuja casa de Nola ela foi acolhida quando chegou a Itaacutelia no ano 400 diz que a matrona teria permanecido em Jerusaleacutem durante cinco lustros isto eacute vinte e cinco anos28 fazendo as contas ficamos com a data de 375 ano que cai dentro ainda do principado de Valente mas eacute ainda irrecon-ciliaacutevel com o tal curto periacuteodo de tempo decorrido entre a viuvez de Melacircnia e o abandono de Roma Jaacute esta a informaccedilatildeo sobre os vinte e cinco anos eacute com-patiacutevel grosso modo com os vinte e sete de estadia em Jerusaleacutem referidos por Palaacutedio algures entre 373 e 375 Melacircnia chegou a Jerusaleacutem Jeroacutenimo eacute o mais expliacutecito dos trecircs autores na primeira ediccedilatildeo do seu Chronicon diz que a partida de Melacircnia de Roma teraacute ocorrido no deacutecimo ano do principado de Valente jaacute em 37429 Paulino e Jeroacutenimo estatildeo pois mais ano menos ano de acordo com a informaccedilatildeo de Palaacutedio que daacute Melacircnia em Jerusaleacutem durante vinte e sete anos mas de modo algum com a ideia de que tendo ficado viuacuteva em 362 Melacircnia teria partido de imediato para o Oriente Creio que eacute esta ideia que deve ser aban-donada Tendo ficado viuacuteva provavelmente em 362 Melacircnia abandonou Roma de facto mas apenas cerca de onze-doze anos depois em 373-374 eacute evidente que Jeroacutenimo Paulino e Palaacutedio querem dar a impressatildeo de que tudo aconteceu de forma muito raacutepida na lsquovocaccedilatildeorsquo cristatilde de Melacircnia natildeo deve ter sido assim durante mais de dez anos Melacircnia deve ter vivido a sua lsquovida obscurarsquo em Roma com o filho e outros familiares que de resto se teratildeo oposto com ferocidade ao seu novo modo de vida segundo o que nos conta Paulino de Nola

Por que razatildeo partiu entatildeo Melacircnia para o Oriente deixando o proacuteprio filho Paulino de Nola diz que laquoabandonando o mundo e o seacuteculo escolheu como dom espiritual a cidade de Jerusaleacutem onde peregrinaria para fora do seu corpo exilada em relaccedilatildeo aos seus co-cidadatildeos tornando-se cidadatilde entre os santosraquo30 Cabe reconhecer o caraacutecter pioneiro de Melacircnia no ato de se retirar de um mundo de honras para se dedicar atraveacutes da ascese agrave vida espiritual E con-tudo haacute pormenores que colocam problemas a esta interpretaccedilatildeo antes de mais a referecircncia de Palaacutedio ao facto de Melacircnia ter partido sem dizer nada a ningueacutem Depois a ideia de poder vir a ser impedida de partir especialmente na eacutepoca em que Valente governava o impeacuterio Mas o que tem Valente a ver com isso Ele era imperador na metade oriental do Impeacuterio Valentiniano I era-o no Ocidente Roma inclusive De qualquer modo por que razatildeo haveria o imperador qualquer que ele fosse de ameaccedilar eventualmente a saiacuteda de Melacircnia

28 Ep 29629 Hier chron a 374 Helm30 Ep 2910

337

Rodrigo Furtado

A famiacutelia de Melacircnia opocircs-se ferozmente agrave sua vida asceacutetica31 Estaria Me-lacircnia a fugir da famiacutelia tentando evitar que a impedissem de partir Eacute possiacutevel mas isso natildeo explica a referecircncia ao imperador

Um olhar pela Roma do ano 373 pode sugerir uma outra razatildeo relacionada com um imperador (embora mais Valentiniano I do que Valente) De acordo com o historiador Amiano Marcelino que nunca fala de Melacircnia os anos entre 369-375 em Roma foram caracterizados pela imposiccedilatildeo da autoridade imperial na Urbe muitas vezes contra o Senado Deve ter sido um processo importante e a elite senatorial entendeu-o como um ataque a si proacutepria32 Eacute neste mesmo con-texto que talvez no iniacutecio de 374 tambeacutem Dacircmaso o bispo de Roma eacute acusado de ser responsaacutevel pelo massacre de seis anos antes na Basiacutelica Juacutelia em pleno forum romanum e tambeacutem pelo assalto na mesma altura agrave basiacutelica de Latratildeo que causara a morte de cento e setenta pessoas33 Natildeo conheccedilo relaccedilotildees directa entre Melacircnia e Dacircmaso mas um dos eacuteditos de Valentiniano I de 30 de Julho de 370 proibia de facto que os cleacuterigos procurassem convencer as matronas romanas a deixar-lhes os seus bens34

Ora precisamente essa era uma acusaccedilatildeo lanccedilada pelas famiacutelias de mu-lheres que como Melacircnia pretendiam abandonar tudo e dedicar-se a uma vida de caridade e ascese estariam a ser aliciadas pelo bispo de Roma ou pelos seus amigos E sabemos como a famiacutelia de Melacircnia se opocircs aos seus desiacutegnios de doar tudo aos pobres e agrave Igreja35 Seria Melacircnia proacutexima do bispo de Roma Natildeo sei

Mas a relaccedilatildeo difiacutecil de estabelecer entre Melacircnia e Dacircmaso natildeo eacute a uacutenica que talvez como hipoacutetese a relacione com o contexto dos processos judiciaacuterios de 369-375 em Roma Um dos senadores condenados foi um tal Avieno jaacute depois de 372 mais ou menos pela altura em que Melacircnia abandonou furtivamente Roma Natildeo se conhece a sua aacutervore genealoacutegica contudo Macroacutebio36 e Sidoacutenio Apolinaacuterio37 a propoacutesito de outros nobres com o mesmo nomen dizem que eles eram parentes dos tardios Valeacuterios Messala Corvino Ora um dos membros desta famiacutelia era precisamente o marido de Melacircnia e natildeo pode ser por acaso que o filho de ambos se veio a chamar Valeacuterio Publiacutecola precisamente o nome do primeiro cocircnsul da Repuacuteblica de quem o Valeacuterio Messala amigo de Rutiacutelio Namaciano reclamava descender38 Haacute pois boas hipoacuteteses de que Avieno seja primo do marido de Melacircnia Natildeo eacute muito

31 Paul Nol ep 291032 Embora a precisar de melhor investigaccedilatildeo vejam-se Alfoumlldy 1952 Hamblenne 1980

Matthews 1989 Vincenti 199133 Pietri 1976 409 Para o contexto do conflito veja-se a siacutentese de Pietri 1976 407-2334 Pietri 1976 41935 Paul Nol ep 291036 Macr Sat 162637 Ep 19438 De reditu suo 1 267-276

338

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

Contudo eacute tentador notar que tudo acontece na mesma altura em que Melacircnia parte agraves escondidas para o Oriente39 Que tivesse aproveitado alguma fragilidade da sua famiacutelia ou que ela proacutepria se sentisse insegura em Roma satildeo boas razotildees para uma fuga em pleno Inverno

Haacute ainda um terceiro problema a propoacutesito desta partida de Melacircnia para o Oriente Paulino de Nola e Jeroacutenimo dizem explicitamente que ao sair de Roma Melacircnia foi para Jerusaleacutem No entanto Palaacutedio faacute-la rumar antes ao Egito como jaacute referi Aqui Palaacutedio diz que ela visitou os monges ascetas da Niacutetria de onde se destacam Pambatildeo os lsquoIrmatildeos Мακροίrsquo Arsiacutesio Serapiatildeo o Grande Pafnuacutecio de Escetes e Isidoro de Alexandria40 Ora quando saiu (ou fugiu) de Roma Melacircnia ou foi para um lado ou para o outro natildeo foi para os dois lados ao mesmo tempo

Haacute pelo menos trecircs fatores que levam a que neste caso confiemos mais na versatildeo de Palaacutedio em primeiro lugar fontes independentes asseguram que Melacircnia manteve com os monges da Niacutetria relaccedilotildees privilegiadas ao longo de toda a sua vida ndash o proacuteprio Palaacutedio era um destes monges do deserto que se convertera ao ascetismo segundo ele proacuteprio conta depois de se ter encontrado com Melacircnia41 Os lsquoAltos Irmatildeosrsquo Isidoro Evaacutegrio e Palaacutedio representam os mais influentes padres do deserto no Egito de finais do seacuteculo IV e iniacutecios do seacuteculo V No Outono de 394 sete monges dos mosteiros de Melacircnia e de Rufino de Aqui-leia estaratildeo no Egito com o asceta Joatildeo de Licoacutepolis Melacircnia era proacutexima pois destes monges do Egito e faz sentido que aiacute se possa ter encontrado com eles42

Aleacutem disso de acordo com Palaacutedio quando Valente persegue estes monges do Egito depois da morte de Atanaacutesio e estes fogem para a Palestina Melacircnia foi com eles para Diocesareia43 a formal verbal usada eacute συνελθοῦσα (o particiacutepio feminino aoristo de συνέρχομαι) melhor ἐν οἷς καὶ αὐτὴ συνελθοῦσα Ao que parece pois segundo Palaacutedio Melacircnia estava no Egito quando Valente lanccedilou mais uma das suas perseguiccedilotildees contra os monges ascetas partidaacuterios de Niceia Soacute depois disso se teria estabelecido em Jerusaleacutem

Uacuteltimo factor Dietz mostrou que uma das caracteriacutesticas das peregrinaccedilotildees no seacuteculo IV pelo menos tatildeo importante quanto a visita a locais santos teraacute sido a visita aos homens santos a contemporacircnea de Melacircnia Egeacuteria que tambeacutem passou pelo Egito antes de se encaminhar para a Palestina eacute disso exemplo pela mesma altura tambeacutem Jeroacutenimo Paula e Eustoacutequio iratildeo primeiro ao Egito antes de se estabelecerem em Beleacutem esta mesma Paula continuaraacute as suas visitas

39 Pietri 1976 41940 Pall hist laus 52-3 9 102-4 462 Butler hist laus 10D Ameacutelineau41 Pall hist laus 44 Butler42 Hist monach prol 2 119 164 2610 Festugiegravere43 463 Butler

339

Rodrigo Furtado

aos homens santos desta feita no Chipre e de novo no Egito44 Sendo assim que Melacircnia tenha comeccedilado por passar meio ano no Egito como refere Palaacutedio natildeo eacute algo excecional mas uma caracteriacutestica do proacuteprio ato de peregrinar na Antiguidade Tardia

Ora neste mundo globalizado que eacute o Mediterracircneo romano lsquosanta Me-lacircniarsquo deixou Roma para se dirigir para Oriente Natildeo se tratou de uma decisatildeo tomada logo apoacutes a morte do marido como os seus laquobioacutegrafosraquo querem fazer crer ndash apenas 11-12 anos depois de enviuvar ela saiu de Roma Provavelmente esperou que o filho se pudesse candidatar a praetor urbanus e iniciar pois o percurso das honras A saiacuteda de Roma foi no entanto furtiva sem dizer nada a ningueacutem durante o Inverno O ambiente de perseguiccedilatildeo que se vivia na Urbe contra alguns dos membros do senado ateacute contra possivelmente um familiar do marido pode ter apressado a partida de Melacircnia Natildeo rumou agrave Palestina como Jeroacutenimo e Paulino dizem ndash por certo foi primeiro ao Egito visitar os santos Padres do deserto como refere um deles Palaacutedio Parecendo que natildeo este dado pode levar a reconsiderar a sua viagem ndash e se Melacircnia natildeo tivesse intenccedilatildeo desde o iniacutecio de se vir a estabelecer na Palestina mas procurasse de facto fazer uma autecircntica peregrinaccedilatildeo como uma viagem longa mas de ida e volta agrave seme-lhanccedila de Egeacuteria De resto se Palaacutedio tiver razatildeo teraacute sido um acontecimento absolutamente fortuito a perseguiccedilatildeo de Valente aos monges da Niacutetria a obrigar Melacircnia a estabelecer-se na Palestina45 onde a matrona milionaacuteria acabaraacute por fundar um mosteiro em Jerusaleacutem em pleno Monte das Oliveiras que chegaraacute a acolher cinquenta virgens

Como jaacute vimos Melacircnia soacute voltaraacute a Itaacutelia cruzando de volta o Mediterracirc-neo romano no ano 400 Eacute Palaacutedio o uacutenico que explica por que razatildeo o teraacute feito

Depois de muitos anos quando ouviu falar da neta que ela tinha casado e de-sejava renunciar ao seacuteculo talvez para que ela natildeo fosse arrastada para alguma maacute doutrina heresia ou maacute vida embarcou num navio aos sessenta anos e a partir de Cesareia chegou a Roma vinte dias depois46

A que se refere Palaacutedio Sem o fazer explicitamente julgo que ele se refere agrave famosa controveacutersia origenista que opocircs Jeroacutenimo a Rufino de Aquileia e aos padres do deserto egiacutepcios e na qual Melacircnia se veraacute envolvida jaacute nos anos 90 do seacuteculo IV47

Esta era uma poleacutemica em torno da doutrina cristatilde e do pensamento de Oriacutegenes de Alexandria o maior teoacutelogo cristatildeo do seacuteculo III a discoacuterdia entre

44 Dietz 2005 121 123 126-28 133 13745 Pall hist laus 463-4 Butler Paul Nol ep 291146 Pall hist laus 54 Butler47 Clark 1992 Furtado 2013

340

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

Jeroacutenimo e Rufino este uacuteltimo o principal amigo de Melacircnia no Oriente radi-cava em torno de assuntos como a preacute-existecircncia ou natildeo das almas humanas em relaccedilatildeo ao corpo a inferiorizaccedilatildeo do corpo e de toda a criaccedilatildeo material ou a ausecircncia de ressurreiccedilatildeo da carne Ora regressado a 397 em Roma Rufino de Aquileia traduzira a Apologia Origenis da autoria de Panfiacutelio e o Peri Archōn de Oriacutegenes Foi o suficiente para que os amigos romanos de Jeroacutenimo procurassem a condenaccedilatildeo do amigo de Melacircnia por difundir doutrinas origenistas Estas traduccedilotildees perderam-se mas natildeo produziram em Roma a condenaccedilatildeo imediata de Rufino talvez porque o papa Siriacuteaco natildeo devia manter boas relaccedilotildees com Jeroacutenimo desde que sucedera a Dacircmaso em 384 Assim eram as relaccedilotildees entre os santos naqueles tempos

Siriacuteaco morreu por sua vez em 399 e foi sucedido por Anastaacutecio O novo bispo de Roma parece dar mais ouvidos aos anti-origenistas e procura concitar o apoio do bispo de Milatildeo contra os que defendiam estas doutrinas No ano 400 Rufino estava pois em perigo assim como as doutrinas origenistas defendidas sobretudo pelos Padres do deserto egiacutepcios os tambeacutem amigos de Melacircnia

Em todo este conflito Melacircnia estaraacute do lado de Rufino o que lhe valeraacute a inimizade posterior de Jeroacutenimo que falaraacute dela como aquela lsquocujo nome que designa escuridatildeo eacute bem testemunha das trevas da sua perfiacutediarsquo48 A etimologia do nome de Melacircnia (cf μελανία=nigredo) apontava de facto para a escuridatildeo O desentendimento vai a tal ponto que Jeroacutenimo apaga Melacircnia da nova ediccedilatildeo do seu Chronicon Eacute neste contexto que a matrona regressa a Itaacutelia eacute provaacutevel que a lsquomaacute doutrina a heresia e a maacute vidarsquo que ameaccedilariam a neta tambeacutem chamada Melacircnia possam ser entendidas pois no contexto deste combate doutrinal entre Rufino e os partidaacuterios de Jeroacutenimo em Itaacutelia

E contudohellip sem rejeitar essa possibilidade pergunto-me se Melacircnia teraacute abandonado Jerusaleacutem de tatildeo livre vontade para proteger os seus contra as perigosas doutrinas de Jeroacutenimo

De facto natildeo foi apenas em Itaacutelia que recrudesceu em 399-400 a luta contra os partidaacuterios das doutrinas de Oriacutegenes por iniciativa de Anastaacutecio de Roma Tambeacutem a Oriente precisamente nestes anos o poderoso bispo Teoacutefilo de Alexandria desencadeava uma dura perseguiccedilatildeo contra os monges do Egito (que tinham entretanto regressado agraves suas celas talvez apoacutes a morte de Valente) Foram pouco teoloacutegicos os motivos que levaram agrave perseguiccedilatildeo de Teoacutefilo ele que antes defendera e protegera os monges do deserto efetivamente os historia-dores Soacutecrates e Sozoacutemeno falam da descoberta de irregularidades financeiras e de corrupccedilatildeo na igreja de Alexandria49 e na recusa do monge Isidoro (o amigo de Melacircnia) em entregar o dinheiro das esmolas destinadas aos pobres para o

48 Hier ep 133349 Socr hist eccl 67 Soz hist eccl 812

341

Rodrigo Furtado

programa de construccedilatildeo de igrejas defendido pelo bispo50 Certo eacute que Teoacutefilo usando o pretexto do pensamento origenista que muitos destes monges parti-lhavam excomungou-os e queimou-lhes as celas muitos deles fugiram primeiro para Jerusaleacutem (talvez para o Monte das Oliveiras onde Melacircnia os pode ter acolhido) e depois para Escitoacutepolis na Decaacutepolis51 Contudo natildeo ficam aiacutehellip natildeo pode ser por mero acaso que nenhum dos monges egiacutepcios que conhecemos tenha permanecido na Palestina depois de 400 encontramo-los logo a seguir em Constantinopla52 Mas por que razatildeo natildeo ficaram os monges na Palestina Creio saber porquecirc Sozoacutemeno diz que Teoacutefilo procurou o favor da corte de Constantinopla para a sua causa contra os monges do deserto obrigando-os a rumarem ao Boacutesforo para se defenderem das acusaccedilotildees Aleacutem disso chegou ateacute noacutes uma carta de Teoacutefilo de Alexandria aos bispos da Palestina e do Chipre (= Hier ep 92) Aqui ele justifica a sua perseguiccedilatildeo contra os monges de Niacutetria e exorta os restantes bispos a imitaacute-lo (= Hier ep 92) Ou seja Teoacutefilo exorta a que a perseguiccedilatildeo seja prosseguida fora do Egito Se os monges se refugiam em Constantinopla junto de Joatildeo Crisoacutestomo eacute verosiacutemil que tambeacutem natildeo se sentissem seguros na demasiado proacutexima Palestina onde se encontrava Melacircnia Ora eacute precisamente nesta mesma altura quando Teoacutefilo movia mundos e fundos contra os origenistas que Melacircnia parte para Roma como referi eacute mais do que provaacutevel que Teoacutefilo tenha estendido a sua perseguiccedilatildeo ateacute Jerusaleacutem tornando pelo menos instaacutevel a presenccedila dos monges egiacutepcios e da sua amiga na regiatildeo ndash que tenham todos saiacutedo da Palestina no mesmo ano eacute sinal suficiente para aventar a possibilidade

Resulta este texto no fundo das incongruecircncias omissotildees lapsos e recon-

struccedilotildees das fontes sobre Melacircnia ndash apesar de normalmente se dizer que uma fonte eacute tanto mais fidedigna quanto mais proacutexima estiver dos acontecimentos que narra O caso de Melacircnia eacute ainda mais excecional porque os trecircs autores que sobre ela mais falam satildeo todos seus contemporacircneos e melhor ainda todos eles conheceram Melacircnia conversaram com ela foram proacuteximos dela Paulino era seu familiar Palaacutedio converteu-se ao ascetismo graccedilas aos seus ensinamentos e Jeroacutenimo depois de a admirar tornou-se um dos seus inimigos E contudo talvez porque foram tudo isso deixam-nos uma imagem de Melacircnia multiforme como santa e como herege Nesse sentido o ato de peregrinar no Mediterracircneo Romano-Cristatildeo se inclui o sentido mais comum da visita a lugares santos enquadra-se na verdade numa semacircntica polieacutedrica ndash Melacircnia mostra-o Nem saiu de Roma imediatamente apoacutes a viuvez imbuiacuteda por uma qualquer acircnsia

50 Socr hist eccl 69 Soz hist eccl 811-1551 Clark 1992 44-4852 Cf Leroux 1972 335-41 e Durand 1976 191-206

342

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

asceta nem talvez quando o fez tenha sido a atraccedilatildeo pelos Lugares Santos o seu primeiro motivo Depois de permanecer no Egito ruma agrave Palestina natildeo por von-tade proacutepria mas provavelmente expulsa com os monges da Niacutetria Um quarto de seacuteculo mais tarde se volta a cruzar o Mediterracircneo jaacute anciatilde admito que o tenha feito mais em fuga do que pelo desejo (que natildeo nego tambeacutem ter existido) de rever ou de proteger os seus familiares e amigos Peregrinar peregrinou contudo nem sempre as razotildees espirituais devem ter funcionado como uacutenica motivaccedilatildeo

343

Rodrigo Furtado

Bibliografia

Alfoumlldy A 1952 A Conflict of Ideas in the Late Roman Empire The Clash between the Senate and Valentinian I trad Harold Mattingly Oxford New York Oxford University Press

Bitton-Ashkelony B 1999 ldquoThe Attitudes of Church Fathers toward pilgrimage to Jerusalem in the fourth and fifth centuriesrdquo In Jerusalem Its sanctity and centrality to Judaism Christianity and Islam ed L L Levine 188-201 New York Continuum

Brown P 1971 ldquoThe Rise and Function of the Holy Man in Late Antiquityrdquo Journal of Roman Studies 6180-101

Cameron Av 1999 ldquoOn Defining the Holy Manraquo in J Howard-Johnston ndash P A Haywardrdquo In The Cult of Saints in Late Antiquity and the Early Middle Ages Essays on the Contribution of Peter Brown ed J Howard-Johnston e Paul Antony Hayward 27-43 Oxford Oxford University Press

Chausson F 2007 Stemmata aurea Constantin Justine Theacuteodose revendications geacuteneacutealogiques et ideacuteologie impeacuteriale au Ive siegravecle ap J-C Roma laquoLrsquoErma raquo di Bretschneider

Chin C M e C T Schroeder eds 2016 Melania Early Christianity through the life of one family California University of California Press

Clark E A 1992 The Origenist controversy The cultural construction of an early Christian debate Princeton New Jersey

Consolino F E 2006 ldquoTradizionalismo e trasgressione nellrsquoeacutelite senatoria romana ritratti di signore fra la fine del iv e lrsquoinizio del v secolordquo In Le trasformazioni delle eacutelites in etagrave tardoantica Atti del convegno internazionale Perugia 15-16 marzo 2004 ed R L Testa 65-139 Roma laquoLrsquoErma raquo di Bretschneider

Dahlman B 2007 ldquoThe Theme of Secret Holinessrdquo In Saint Daniel of Sketis a Group of hagiographic texts edited with introduction translation and commentary 70-89 Uppsala University of Uppsala

Devos P 1973 ldquoSaint Jerocircme contre Poemeniardquo Analecta Bollandiana 91117-20

mdashmdashmdash 1969 ldquolsquoLa servante de Dieurdquo Poemenia drsquoapregraves Pallade la tradition copte et Jean Rufusrdquo Analecta Bollandiana 87189-208

Dietz M 2005 Wandering monks virgins and pilgrims Ascetic travel in the Mediterranean world 300-800 University Park PA The Pennsylvania State University

344

Peregrinationes ad loca sanctao estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado

Drijvers J W 1992 Helena Augusta the mother of Constantine the Great and the legend of her finding of the True Cross Leiden Brill

Durand M-G 1976 ldquoEvagre le Pontique et le lsquoDialogue sur la vie de saint Jean Chrysostomersquordquo Bulletin de Litteacuterature Eacuteccleacutesiastique 3191-206

Furtado R 2013 ldquoQuando os santos se zangam Melacircnia-a-Antiga cuius nomen nigredinis testatur perfidiae tenebras (Hier ep 1333)rdquo In Mulheres Feminino Plural coord Cristina Santos Pinheiro Anne Martina Emonts Maria da Gloacuteria Franco e Maria Joatildeo Beja 125-41 Funchal Nova Delphi

Hamblenne P 1980 ldquoUne lsquoconjurationrsquo sous Valentinienrdquo Byzantion 50198ndash225

Hunt E D 1982 Holy Land Pilgrimage in the Later Roman Empire ad 312ndash460 Oxford Oxford University Press

Leroux J-M 1972 ldquoJean Chrysostome et la querelle origeacutenisterdquo In Epektasis meacutelanges patristiques offerts au cardinal Jean Danieacutelou ed J Fontaine e Ch Kannengiesser 335-41 Paris Beauchesne

Maraval P 1985 Lieux saints et pegravelerinages drsquoOrient Histoire et geacuteographie des origines agrave la conquecircte Arabe Paris Les Editions du Cerf

Marcos M 2004 ldquoEl origen de la peregrinacioacuten religiosa en el mundo cristiano Jerusaleacuten y Romardquo In Monasterios y peregrinaciones en la Espantildea Medieval ed J A Garciacutea de Cortaacutezar 11-31 Palencia Fundacioacuten Santa Mariacutea La Real Centro de Estudios del Romanico

Mariano A B e A A Nascimento 1998 Egeacuteria Viagem do Ocidente agrave Terra Santa Lisboa Colibri

Matthews J 1989 The Roman Empire of Ammianus London DuckworthMoine N 1980 ldquoMelanianardquo Recherches Augustiniennes 153-79Pietri C 1976 Roma Christiana Recherches sur lrsquoeacuteglise de Rome son organisation

sa politique son ideacuteologie de Militade agrave Sixte III (311-440) Roma Eacutecole Franccedilaise de Rome

Pohlsander H A 1996 Helena Empress and Saint Chicago Ares PublishersRubenson S 2008 ldquoAsceticism and Monasticism I Easternrdquo Constantine to c 600

In Vol 2 de The Cambridge History of Christianity ed Augustine Casiday e Frederick W Norris 637-68 Cambridge Cambridge University Press

Turner V e E Turner 1978 Image and pilgrimage in Christian culture anthropological perspectives New York Columbia University Press

Vincenti U 1991 ldquolsquoPraescriptio forirsquo e senatori nel tardo impero romano drsquoOccidenterdquo Index 19433-40

345

Rodrigo Furtado

Webb D 1999 Pilgrims and pilgrimage in the Medieval West London I B Tauris

Wilkinson J 1977 Jerusalem pilgrims before the crusades Warminster Aris amp Phillips

Wilkinson K W 2012 ldquoThe Elder Melaniarsquos Missing Decaderdquo Journal of Late Antiquity 5166-84

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

347

Iacutendice Teoniacutemico

Iacutendice Teoniacutemico

Alalu 120-21 120 n 71 123 n 78 126Aacutemon (tambeacutem Amon) 44 59-60

59n11 60nn14-15 62-65 62 n 28 65n37 67-68 Ver tambeacutem Zeus Aacutemon

An (tambeacutem Anu Anum) 96 120-22 120-21n71 123n78 125-26

Anaitis 242n32Anu Ver An Anum Ver An Aacutertemis 242n32 250Ascleacutepio 332Aššur (deus) 158-59 161n29 163

168n64Aštabi (tambeacutem Deus Guerra Aštabi)

121Astarteacute 146Atena 242n32 263Balsquolu 123Baal 146Becircl Ver MardukChu 41Cristo Ver JesusDagan 97Daganzipa 121Deus (matriz judaico-cristatilde) 33-34

118n58 159n19 334 Javeacute (tambeacutem Yahweh) 159n19 182-91 191n54 193-94 193nn59-60

Deusa Trono 116Destino (agente personificado) 18 311

315 326 (deusas Destino hititas) 124 124n91 134

Deusas Matildee 124 124n91 134Divindades Irširra 121Divindades Primevas 124Ea 123-27 124n88 134Enlil 78-80 78nn24-25 84 90 93 96Geb 41Grande Rio 132Ḫannaḫanna 116 116n47 124 130

132-34Hathor 44Ḫebat 113-14 121Ḫedammu 119-25 127 129Hera 242 262 269Hoacuterus 43 66Ḫupašiya 107 117 119 125Ḫurri 121Illuyanka 122-23 125 129-30 132-35Impaluri 121Inanna 92 93n25 Ver tambeacutem IštarInara 107 117-19Iacutesis 269Ištar 91 113-14 121 127 161n29 164

Ver tambeacutem Inanna

348

Iacutendice Teoniacutemico

Jesus (tambeacutem Cristo Jesus Cristo Je-sus de Nazareacute) 29 32 34 332-34

Juacutepiter 281-82 282n13 285-86 285n20 288 290n34 (Oacuteptimo Maacuteximo) 317

Kazal 121Kanzura 121Khonsu 62 65 66n49 72Kubaba 112 114Kumarbi 119-27 121n74 122n75

123n78 124n91 129 132 134Lamma 112-13 113n28 122 125-26

129 133Lua (deus Lua hitita) 116 121 Ver

tambeacutem Khonsu Nanna SicircnLugal-Marad 216Maet 59Marduk 16 23 79n19 80-81 83-85

84n37 93 93n25 100 160 203-6 209-218 (Becircl) 212

Mar (deus Mar hitita) 121-22 125-32 127n107 135 205

Marte 288 292Melkart 144n39 146Montu 59 59n11 60n14Mukišanu 121Nabucirc 212Namḫeacute 121Nanna 214 Ver tambeacutem SicircnNekhebet 44-45Ningal 201n3Ninlil 216Ninurta 23Nusku 201n3Osiacuteris 43 269Patilde 116Prata 121-23 121n74 122n75 125 129Ptah 44Reacute 44 64Sadarnunna 201n3

Šamaš 76n5 82-85 84n37 91 159 160n24

Seraacutepis 324Sicircn (tambeacutem Sursquoen) 90n3 201 202 Sol (deus solar) 43 (deus Sol hitita)

115 116n47 117 121 123 125-29 (deusa sol hitita) 115-16 116n44 (deusa Sol de Arinna) 116n44 133 133n32 Ver tambeacutem Šamaš

Tempestade (deus Tempestade hitita) 11520 116n44-45 118n57 122-21 125 118-35 (deus Tempestade de Kuliwišna) 115 (deus Tempestade de Nerik) 114

Teacutetis 261Uadjit 44-45Yahweh Ver Deus (matriz judaico-

-cristatilde)Zababa 216Zeus 264 269Zeus Aacutemon 262

349

Iacutendice Antroponiacutemico

Iacutendice Antroponiacutemico

Abdi-Milkuti 158Abias 261Abraatildeo 24-25 24n9Abravanel 32 34Acab 190-91Aacutecio 291n37 318n64Adad-Guppi 201-2 201n3 213 261Adad-Nirari 216Adea Euriacutedice (matildee de Filipe) 259

259n7 260n12 262-64Adjib 45Adriano 322 324Agaacutetocles 268Agave 264Agripa Poacutestumo (neto de Augusto)

314Agripina Maior (esposa de Germacircnico

matildee de Agripina Menor e Caliacutegu-la) 263n26

Agripina Menor (filha de Tibeacuterio es-posa de Claacuteudio matildee de Nero) 262n21 263n29 314

Ahatmilku 260Alexandre de Jerusaleacutem 332Alexandre Magno 32 257-63 262n20

265 297 331Amaacutesis 240Amenemhat I 62

Amen-hotep I 59Amen-hotep (Sumo Sacerdote) 59n11

60nn14-15 60-62 64 67Amen-hotep II 47 66Ameacutestris (esposa de Xerxes) 239 244

248n80 251-53Ameacutestris (filha de Artaxerxes II)

239n9 241 242n30Amiano Marcelino 377Anastaacutecio (papa) 340Aniacutebal 18 295 298 300 305Anitta 109Antiacutegona (filha de Berenice) 267Antiacuteoco II 264-66Antiacuteoco III 265Antiacutepatro 258-59Antoacutenia Menor 318Antoacutenio Marcelino 333Antoacutenio Vieira P 32 34Apiano 263 296-97 299-305Apil-Sicircn 77Apries 240Aqqi 92 95Aqueacutemenes 246n66Aquiles 261Arioc 24Arnuwanda I 111 113

350

Iacutendice Antroponiacutemico

Aacutersames 239n14Arsiacutenoe II 257 267-69 269n60Arsiacutesio 338Artaacutebano III 325Artaiacutente 251-252Artaxerxes I 238n3 241Artaxerxes II 237-44 246-50Artemiacutesia 272Artistone (filha de Ciro e Cassandane)

239 239n14Aspaacutesia 272Aspaacutesia (concubina de Artaxerxes II)

250 250n96Assaradatildeo 156 160 160n24 196n63

195 261Assurbaniacutepal 155-65 166n54 168

174 176 201-2n3Assurbaniacutepal II 157Astiacuteages 203 226 232Astolpas 300Ataacutelia 272Atanaacutesio de Alexandria 335 338Atossa (filha de Artaxerxes II) 240-41Atossa (filha de Ciro irmatilde de Cam-

bises esposa de Dario I matildee de Xerxes) 237-39 241-42 244-46 249 261

Augusto (tambeacutem Gaio Octaacutevio) 18 260 270-71 278 287-90 290nn33-34 292 298 311-25 321n100

Avieno (senador primo de Melacircnia) 337

Balsquoal de Tiro 194n63Balsquoalicircs de Amon 182Bakenkhonsu 60n15Bar-Rakib 194Basiacutelides (liberto) 324n124Becircl-šarra-uṣur (tambeacutem Baltasar)

203-5 211Berenice 17 257 265-68

Betsabeacute 260Blesila 334Burnaburiaš II 112Cadorlaomer 24Caliacutegula 292 312n7 314-15 314n19

318-20 322 324-26 326n143Cam 23 Cambises 17 218 223n11 229-30 232-33

238-41 241n25 244 246 250-51Canuleio 291n36Cassandane 238 240n18 241n25 251Cassandro 258 259-60Catatildeo de Uacutetica 331Celtiberos 300-301Ceacutesar Ver Juacutelio CeacutesarCiacutecero 282n14 283-84 284-85n19

288 291nn36-37 316n43Cipiatildeo 281n13 287 303n21Circe 264 272Ciro (Ciro o Jovem filho de Dario II

e Parisaacutetide) 238 238n3 247-51 248n82 250n96

Ciro II (Ciro o Grande) 16-17 203-4 204n7 209-10 215-18 217n52 225-26 232-33 238-40 241n25 246 261

Ciacuteton 251Claacuteudio (Imperador Claacuteudio Tibeacuterio

Claacuteudio Nero) 316 318 321n100 Claacuteudio Pulcro 286Clearco 248Cleoacutepatra (Cleoacutepatra VII Filopator)

17 43n16 257 270-73Cleoacutepatra (esposa de Filipe) 258Cleoacutepatra (filha de Filipe) 258Clitemnestra 272Constacircncio II (Constacircncio Ceacutesar) 334Constante 333Constantino I 332 334 341Corneacutelia 273Cranaspes 231

351

Iacutendice Antroponiacutemico

Creso 230Chemaiacuteas (tambeacutem Šemalsquoyāhucirc) 191-92Dalila 272Dalmaacutecio Ceacutesar 334Dacircmaso I (papa) 337 340Daacutenae 265-66Dario I (Dario o Grande) 17 221-

27 229-33 237 238n3 239 239nn13-14 242 244-46 245n58 250-51 261

Dario II 238 238n3 239n9 241 244 246

Dario III 238n3 249Dario (filho de Artaacutebano III) 325David 24 118 118n58 260Deacutecimo Juacutenio Bruto 18 295 301-2Deidamia 259Deacutejoces 17 221 226-30Demarato 232-33 246Democedes de Crotona 245 250Den 44-45 Diocleciano 331Dioniacutesio de Halicarnasso 280 282n14Domiciano 313-15 314n23 319-20

321n102 325Dunānu 163Egeacuteria 332-33 338-39Egibi 205-6Enḫeduanna 90 90n3Enkidu 94Epicuro 265Eratoacutestenes 297Esmeacuterdis 229 239 244 250Estatira (esposa de Artaxerxes II)

239n9 240 242-43 247-48Estrabatildeo 241n25 297 302 305-6Eteacuteocles 316n43Eunaacutepio 332Euriacutedice (matildee de Filipe) Ver Aacutedea Eu-

riacutedice

Euriacutedice (matildee de Ptolemeu I Soacuteter) 267

Euriacutepides 264 268n49 316Euseacutebio de Cesareia 333Eustoacutequio 338Evaacutegrio 338Farnaspes 238Fedima 238 250Fedra 268 272Filipe da Macedoacutenia 258 263-64Filipe Arrideu 259 262Filipe V 304Fiacutelon de Alexandria 314n19 326n143Filoacutetera 267Flamiacutenio 286Flaacutevio Josefo 204 270 272 314n19

324n123 326n143Floro 296-97Fuacutelvia 263n26Gaio (neto de Augusto) 315Gala (mulher de Juacutelio Constacircncio) 334Galba 299 312n4 314-15 320-21 323-24Gaumata 223 225Gemelo (Gemelo Tibeacuterio primo de

Caliacutegula neto de Tibeacuterio) 318n64Gilgameš (tambeacutem Gilgamesh) 94Goacutebrias (tambeacutem Ugbaru) 204 204n7

239n14 246Godolias (tambeacutem Gedalyāhucirc b

rsquoĂḥicircqām) 182 193n60 195Golias 24Haguite 260Hammu-rabi (tambeacutem Hammurabi)

15 75-88 110Hananias (tambeacutem Ḥănanyāh b

lsquoAzzucircr) 187-89 187n40Ḫantili II 110Hatchepsut 43n16 66 66n48 111Hattušili I 110-11Hattušili III 113-15 113n30 260

352

Iacutendice Antroponiacutemico

Helena (Helena de Troacuteia) 245n56Helena (matildee de Constantino I) 332-

33Henoc 31Herihor 57 62-68 63n33Hidarnes 239n9Hipoacutelito 268Hiram I 141-43Histaspes 246n66Humbareš de Nahšimarti 195Ḫuzziya II Ver Zidanta IIIbacircl-picirc-El II 77Intafernes 230-31Isidoro de Alexandria 338 340Ismael 182Ithobaal I 141Jeremias 16 27 179-200Jeroacutenimo 333-36 338-41Jezabel 272Joacaz II (tambeacutem Šallum) 180-81Joatildeo Crisoacutestomo 347Joatildeo de Licoacutepolis 338Joaquim 180-81 185Joaquin 180 187-89 189n47Josefo Ver Flaacutevio JosefoJosias 180-81Juacutelia (filha de Augusto) 315Juacutelio Ceacutesar 17 270 277 288 290 292

301 312 316-17 319 322-24 326 334

Juacutelio Constacircncio 334Justina (esposa de Valentiano I) 334Kameacutes 48Khaemuaset 59 59n11Khamon 59Konyāhucirc b rsquoElnātān 193n58Labashi-Marduk 201n3Laoacutedice I da Siacuteria 17 257 264-67Libu 57n2Lisiacutemaco 268

Lot 24Luacutecio (neto de Augusto) 315Lucreacutecia 273Lugalzagesi 93 96-97 100Maaca 261Macroacutebio 337Maacutecron (prefeito do pretoacuterio) 314n19Magas 267Maneton 38Maništušu 91Marcial 326Marco Antoacutenio 270Marduk-apla-iddina 160Marino de Naacutepoles 332Martana 333Masabates 247Masaharta 63n31 66n49Masistes 246n66 249 251-53Mechuech 57n2 58Medeia 264 272Megabizo 223Melacircnia-a-Antiga 18 331-345Menkheperreacute 63n29 n31 66Merenptah 57n2Merneit (tambeacutem Meritneit) 43n16Meacuteroe (irmatilde de Cambises) 241n25Militatildeo de Sardes 332Mitradates 239n9Mitrobates 231Muršili I 110-11Muršili II 112-13 113n23 118Muwa 111Naboacutenido (tambeacutem Naboacutenides) 91

201-220 261Nabucirc-ahhecirc-iddina 205Nabu-balatsu-iqbi 202Nabucodonosor II 27 181 185n32

187n39 189 193-94 201-2 201n3 205 210

Naquirsquoa-Zakuto 261

353

Iacutendice Antroponiacutemico

Narām-Sicircn 91 98 101Necao II 181 193n59Nedjemet 65 73Nefertiti 260Neitikeret (tambeacutem Nitocris) 43Neoptoacutelemo (rei da Moloacutessia) 258Neriglissar 201n3 202 205Nero 318-20 322-25 226n143Nesiamon 60Nesitas 109Neuacutesta 261Nimerod 23-24 Niquemepa 260Niteacutetis 240Noeacute 23Nur-Daggal 98Nur-Sin 205Oco 249Octaacutevia 271Octaacutevio Ver AugustoOliacutempia (matildee de Alexandre) 17

257-64 262n20 266 271 Ocircnfale 272Opiano 119Oretes 230-32Oriacutegenes 339-40Oroacutesio 296-98Ostanes 238n3Otanes 222-24 223n11 238-39 250Otatildeo 312n4Oxartes 238n3Paddatiššu 110Pafnuacutecio de Escetes 338Palaacutedio 333-36 338-39 341Palaiacutetas 109Pambatildeo 338Panammuwa II 194Panehesi 61 65 67Panfiacutelio 340

Parisaacutetide 237 238n3 239n9 241 243-44 245n58 246-48

Paacutermis 239Parrattarna 111Paser 59 59n11Pauer-reacute 59 59n11Paula 334 338Paulino de Nola 333-37 338-39 341 Paulo de Tarso 332Pemeacutenia 333Peneacutelope 268 272-73Periandro 230n50Persas 28 203 205 216 223 225-26

229 231-32 237-39 241Piankh 64-66Pinedjem I 66-67 66n49Pirro 267Pisiacutestrato 313n13Pitḫana 106Piyaššili (tambeacutem Šarri-Kušuḫ) 112Pliacutenio-o-Jovem 315 317n48Pliacutenio-o-Velho 144n39 319n67Plutarco 17 237-43 238nn2-3 242n30

248n32 245n58 246-49 248n82-83 260 262-63 266-67 270 272 296 305 312n4

Poliacutebio 291 296 304n30Poliperconte 259Pompeio 270 289n31Proclo 332Psameacutetico II 187Psusennes I 66Ptolemeu Cerauno 268Ptolemeu I Soacuteter 267-68Ptolemeu II Filadelfo 265 268 269n56Ptolemeu III 265-66Ptolemeu XII Auletes 270Ptolemeu XIII 270Ptolemeu XIV 270Puduḫepa (tambeacutem Puduhepa) 113-15

354

Iacutendice Antroponiacutemico

113n30 133 133n30 260Ramseacutes II 63n33 66n48Ramseacutes III 57 57n2 59Ramseacutes IV 66n48Ramseacutes VII 58Ramseacutes IX 58-60Ramseacutes X 58-60Ramseacutes XI 57-67 66n48 72Ricircm-Sicircn 76n6 83 84n37 85n41Roacutemulo 282-83nn13-14 288-89Roxana (esposa de Alexandre) 258-59Roxana (irmatilde de Cambises) 241 244Rufino de Aquileia 338-40Rutiacutelio Namaciano 337Safo 272Salmanasar V 99Salomatildeo 118n58 142-43Saluacutestio 291Šallum Ver Joacaz IIŠamaš-haṣir 76n5Samsicirc-Addu 76 91Samuramat 261Sarduaris 158Sargatildeo de Akkad 15 89-105Sargatildeo II (rei da Assiacuteria) 144 159 167

217n52Šarri-Kušuḫ Ver PiyaššiliSebekkareacute Sebekneferu 43n16Sedecias 180-82 185-91 193n57 194Seleuco 265-68Šemalsquoyāhucirc Ver ChemaiacuteasSemerkhet 45Senaquerib 159-60 166n54 167Serapiatildeo o Grande 338Seti I 62 63n33Sidoacutenio Apolinar 337Ṣillicirc-Sicircn 78n15 83 85Sicircn-iddinam 76n5Siriacuteaco (papa) 340

Siwa-palar-huhpak 77 81Smendes I 64 66-68Socles 223Soacutecrates 340Soacutefron 265-66Sozoacutemeno 340-41Suetoacutenio 18 311-29Sula 17 277 287 290Taacutecito 282 305-6 312 312n4 314

314n16 314n19 323Tammaritu 161n29 Taḥpanḥēs 183Tarquiacutenio o Soberbo 282Tarquiacutenio Prisco 280Tauseret 43Teoacutecrito 267 269Teoacutefilo de Alexandria 331 340-41Teritucme 239n9Tessalonica (enteada de Roxana) 259Teumman 155-56 160-69 175Tibeacuterio 312n4 313-15 313nn13-14

314n16 314n19 315n26 317 321-22 321n102 324

Tibeacuterio Alexandre (prefeito do Egipto) 324

Tidal 24Tiglat-Falasar I 157Tiglat-Falasar III (tambeacutem Tiglatpila-

ser III) 144 167 168n64Tii 260Tiribazo 239Tiridates (rei da Armeacutenia) 325Tissafernes 239n9Tito 314-15 314n23 318n66 320Tito Liacutevio 282 296 298 300-301 303Toacutemiris 272Trajano 312n5 313 324Trasilo (astroacutelogo) 315Tukulti Ninurta 23Turi 48

355

Iacutendice Antroponiacutemico

Tutmeacutes I 66 66n48 111Tutmeacutes III 46 46n28 66 66n48Tutmeacutes IV 47 111Ugbaru Ver GoacutebriasUenamon 68Urtaku 160 160n24Ur-Zababa 92-93Valente 334-39Valentiniano I 18 331 334 336-37Valentiniano II 334Valeacuterio Maacuteximo 334Valeacuterio Messala 334 337Valeacuterio Publiacutecola 337Vespasiano 315 318 318n63 320 322

322n111 323-25Viacutendex (revoltoso da Gaacutelia) 323Vistiacutelia (mulher condenada por Tibeacute-

rio) 322n110Viteacutelio 323n4Xenofonte 204 204n7 238n3Xerxes I 238n3 239 242 244 246-47

248n80 249 251-53 261 325Xerxes II 238n3Zidanta II (tambeacutem Ḫuzziya II) 111Zimricirc-Licircm 76n5 78-79 78n12 79n17

80n22 81n26 82 83n34

356

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

Aba 112Abdera 145Abido 304Abul 145Aacuteccio 271Achziv 141 143Aacutefrica 23Aacutefrica Proconsular 333Aacutefrica Subsaariana 65Akkad (cidade de Akkad) 90 90n5

100-101Akkad (paiacutes de Akkad) 214 216Akkad (impeacuterio Acaacutedico) 15 29 89-102Aksaray 98n47Alcaacutecer do Sal 145Alepo 111-12Alexandria 28 267-68 323-24

323n118 326n143 334-35Almaraz 145Alto Egito (tambeacutem Chemau) 44-45

48 61 64 66-67Alta Mesopotacircmia (tambeacutem Norte da

Mesopotacircmia) 76 91n9 100 112 203 Ver tambeacutem Assiacuteria

Alta Nuacutebia Ver KušAmathus 143Amon (estado de) 182 184-85Amorritas 76 78n12 80 95

Amurru (paiacutes de) 78n12 111Anatoacutelia 15 97-98 98n47 107-12

108n3 113n28 119 133 142 213n22

Andaluzia 146n46Anzan 203Araacutebia 201-5 215n36 Araḫtu 112Aranzaḫ 121Arbela 163 163n39Armeacutenia 325Arzawa 108 110Ashdod 93n26 Ashur 85Aacutesia 46n29 237Aacutesia Menor 237 239n9 261 265Aacutesia Ocidental 48 194Assiacuteria (regiatildeo) 91 168 204n7 213n23

231n56 Ver tambeacutem Alta Mesopo-tacircmia

Assiacuteria (impeacuterio Assiacuterio) 101 155-65 168 183-84 202 161

Assiacuterios 27 158 159n19 162 166-68 168n64 232

Aššur (cidade de) 99-100 169Aššuwa 111Astapa 303-4 304n30 Aacutestures 295 297

357

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

Atlacircntico 140 146 148Auza 143n30Azupirānu 92Babiloacutenia (cidade de) 76 80-81 82n32

86n46 93n25 100-101 110 113n28 158 168 192 203-4 210-12 213n25 214 216-18 231n56 248 258 265

Babiloacutenia (impeacuterio Babiloacutenico) 15-16 21 23 27 75-86 91 112 180-192 194 201-218

Babiloacutenios 195 203 210 212-15Bagdad 100Baias 315 324Baixa Mesopotacircmia (tambeacutem Sul da

Mesopotacircmia) 85n41 95n33 96-97 100 168n64

Baixo Egito (tambeacutem Tamehu) 44-45 64 66

Baleares 326Behistun 231n56Biblos 68 142Bicirct-Abdadani 159Bicirct-Adini 157Biacutetia (tambeacutem Bithia) 144Bicirct-Yakīn 160Blasto-feniacutecios 300Borsippa 203 214 216 265Botrys 142Braacutecaros 18 295 301 302n17 305Bretotildees 325Caacutedis (tambeacutem Gadir) 144 144n39Caldeus 160 167 168n64Campo de Marte 288 292Cacircntabros 296Capadoacutecia 332Capitoacutelio 270 287Caacutepreas 323Caralis 144Carambolo 145Caacuteria 247Carmona 145

Cartago 143-44 148Cassitas 23 110Castro Marim 145Celtibeacuteria 301Cerro Alarcoacuten 145Cerro de Maquiz 303n21Cerro del Prado 145Cerro del Villar 145Cerro Macareno 145Cesareia 323n115 339Ceuta 144Chemau Ver Alto EgitoChinear 23-24Chipre 141 143 149 167n61 331 339

341Chorreras 145Cirene 267Ciacutetia 245Coacutenios 300Constantinopla 241Crotona 245 250Cunaxa 247n76Dadanu 203Decaacutepolis 341Deir el-Medina 59Delfos 332Delta (regiatildeo do) 48 58 58n2 67-68Delta do rio Habur 78Diacutedima 332Diocesareia 338Djanet Ver TacircnisDoacuterios 58Dra Abu el-Naga 61ldquoDuas Terrasrdquo (tambeacutem ldquoDois Paiacutesesrdquo)

45 46n27 49 66 Cf EgitoDur-Karashu 202n3Dūr-Šarrukicircn 100 Cf KhorsabadEbabbar (templo de Šamaš em Sippar)

91Ebla 29 97 157

358

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

Ebro 299Ecbaacutetana 228 250Edom 185 203Eacutefeso 265Egeu 58 237Egiacutepcios 39 39n4 46n29 47 48n39

49 240Egito 23 25-26 28 39 42 44-46 47n35

48-49 56-60 62 67-69 92n15 156 165 180-84 187-88 187n40 192n56 193-94 193nn57-59 202 215n36 231n56 240 241n25 244 245n58 246 251 257-58 260 265-70 291 324 326n143 331 335-36 338-42 Ver tambeacutem Alto Egipto Baixo Egipto ldquoDois Paiacutesesrdquo ldquoDuas Terrasrdquo

Ehulhul 201-2n3 202-4 213Ekhulkhul 201n3Ekur (templo de Enlil em Nippur) 90Elam 15 24 75 77-79 77nn9-10

78n15 79nnn17-18 81-83 81n29 98 98n51 156 160-65 160n23 231n56

Elassar 24Elefantina 46n28 60 187El-Hiba 67Emašmaš (templo de Ištar em Niacutenive)

91Epidauro 332Epiro 17 257-58 260-61Esagila (templo de Marduk em Ba-

biloacutenia) 93 100 212 212n15 213n25 214

Escitoacutepolis 341Eski Harracircn 201-2n3 Ver tambeacutem

HarranEšnunna 76-78 77n8 78n12 78n15

81n29 83 83n34 85 85n43Espartanos 232 238Espoleto 287Etruacuteria 280 Etruscos 58 280

Eufrates (tambeacutem Nāhār) 46 78n16 80n22 92 95-97 110-11 183

Europa 237 235 273Extremo Ocidente 143Faium 67Feniacutecios 139ldquoFloresta dos Cedrosrdquo 97Filisteus 26 58Foceia 250n96Friacutegia 231Gadir Ver Caacutedis Gaacutelia 323 326n143 334Gaacutelia Cisalpina 300Gambulu 163Gauleses 268 323Germanos 325Goim 24-25Golfo Peacutersico 96-97Gozo 145Greacutecia 28 58 226n21 237-38 238n3

242 244-46 245n56 249 258 259n7 261 264 269n56

Gregos 32 109 223-27 232-33 238 246 269 272

Gutium 204 204n7Hadrumetum 144Haacutelis 109Ḫamat 181Hardai 61Harran (tambeacutem Harracircn) 201-2n3

202-4 203n5 213 213nn20-23 Cf Eski Harracircn

Ḫaššuwa 110Ḫatti 109-110 110n12 111-13 111n22

113n28 119 131 131n127 134 187 (ldquoTerra do Ḫattirdquo) 117

Ḫattuša 109-110 112-14 133-34Ḫazzi 126Hebreus 16 23 25-29 31 34 118Heacutelade 251 261Helesponto 325

359

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

Herooacutepolis 269Hibra 203Hilleh 202Hippo 144Hispacircnia 18 281n13 287 295-296

299 301 303 305 305n35 316n39 322 324

Hispacircnicos 18 295-297 305n36 306Hititas 29 75 107 108n3 109 121

133-34Huelva 143-44 147n53Hurritas 30 107 109-111 113 123 133Hursagkalama 216Iadihu 203Iatribu 203Iliacuteria 268 233Iliturgi 303Impeacuterio Romano Ver RomaIacutendia 58 258Indo-Europeus 108n3 109Ioacutenia 231 250Isin 76 76nn6-7Israel 25-26 30n23 182-184 261Išuwa 111Itaacutelia 58 114 289-300 320 322 324

333 335-36 339-40Itaacutelia Central 287Jazira 78Jerusaleacutem 28 31 181-89 190n48 191-

92 192n56 195 331-36 338-41Judaacute 16 26-27 179-84 186-90 190n47

192-95 192n56 193n59Judeia 31 324 324n123Judeus 27-28 31 323Kalḫu (tambeacutem Nimrud) 100 157 174Kaneš 109 109n9Karkemiš 112-14Karnak 59n11 60 64-66 68 72-73Katḫaituwa 112n26Khorsabad 100 Cf Dūr-Šarrukicircn

Kiš 92-93 96-97 100 216Kition 143Kizzuwatna 110-11 113Kommos 141Kuch Ver KušKummiya 124Kurdacirc 79n18Kuš (tambeacutem Alta Nuacutebia Kuch)

46n28 48 61 65 187 188n41Kutha 216La Fonteta 145Lagaš 96-97Lampedusa 145Lacircncia 297-98Larsa 15 75-76 75n3 76nn5-7 78

78n12 83-86 84n39 85n45 86n48 96 203 214

Lawazantiya 110 113Leptis Magna 144Levante 47n33 48n37 96Liacutebano 46 97 Cf ldquoFloresta dos Ce-

drosrdquo RetenuLicht 48Liacutedia 215 231 231n53 247Lisboa 145Lixus 144 144n39Lullubu 94n32Lusitacircnia 301Lusitanos 299-301Luvitas 109Macedoacutenia 257-61 263 266 268

269n56 271Macedoacutenios 259 261 268-69Magan 97Maacutelaga 144-45Malgiucircm 76 76n7Malta 145Mankisum 77ldquoMar Inferiorrdquo Ver Golfo PeacutersicoMar Mediterracircneo Ver Mediterracircneo

360

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

ldquoMar Superiorrdquo Ver MediterracircneoMarad 216Maraššantiya 109Mari 78-79 78n12 85 97Meacutedia 17 27 159 204n7 221 225-26

227n29 228Meacutedio Eufrates 78n12Medinet Habu 59-60Mediterracircneo 15 18 46 56 58 69

143 147 149 205 296 325 331 334-35 339 341-42 (Mediterracircneo Central) 139 144 148 (Mediter-racircneo Ocidental) 139-40 144 148 (Mediterracircneo Oriental) 96 331

Medos 159 167 201-2n3 203 203n5 204n7 213n23 215 225-27 232

Meggido 143Meluḫḫa 97Mecircnfis 48Mesopotacircmia 15-16 23-24 26-27 29

33 76n5 77 77n10 79n17 80-81 85 90 92 94 94n30 97 99-100 156 159 210 121n17 213n22 214 Ver tambeacutem Alta Mesopotacircmia Assiacuteria Baixa Mesopotacircmia Sumeacuteria

Miṣpah 182Mitanni 47 108 110-12 123 133Moab 185Mogador 144Moloacutessia 258ldquoMontanhas da Pratardquo (tambeacutem cordil-

heira de Tauro) 97Monte das Oliveiras 339 341Montu 59 59n11 60Morro de Mezquetilla 145Motya 144Mukiš 112Nāhār Ver EufratesNamri 159Napata (Guebel Barkal) 46n28Neobabiloacutenios 182

Nilo (tambeacutem Šihocircr) 46n28 48 67 182-83 240 268 Ver tambeacutem Primeira Catarata Quarta Cata-rata

Nimrud Ver KalḫuNiacutenive 91 121n74 158 160-61

160n23 163 166 174-77Nippur 90 96 203 214Niacutetria 338-39 341-42Niya 112Nola 333-37 339Nōp 183Nora 144ldquoNove Arcosrdquo 46Nuacutebia 45-48 46n28 48n39 61 65 67

Ver tambeacutem Kuš UauatNuhašše 112Numacircncia 305Ocidente 18 101 139-41 143 144n39

149 336 Ver tambeacutem Extremo Ocidente

Oliacutempia 332Opis 203Oriente 18 22 24n10 28 100 140

258 160 269 325 326n143n 331-32 334-36 338-40 Ver tam-beacutem Proacuteximo Oriente

Padakku 203Palaacutecio Sudoeste (Niacutenive) 160-61

160n23 166 174-77Paleopaphos Skales 141ldquoPaiacutes de Sumer e Akkadrdquo 78 79n19

85 85n41 216-17Palermo 144Palestina 18 46n29 47nn34-35 58

179 181-82 202 215n36 331-32 335 338-39 341-42 Cf Siro-Pales-tina Retenu

Pantelaacuteria 145Parsuaš 159Paacutertia 231n56Peacutergamo 332

361

Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico

Peacutersia 16-17 231 237 242 244-45 245n58 249-50 253

Pidna 259Pi-Ramseacutes 48 58 68Pognon 201Portugal 34 38 145 331Povos do Mar 57-58Primeira Catarata 46 Cf NiloProacuteximo Oriente 15 47 58 78 80 89

96 100-102 108 140-44 148 156 159 165 170 205 261 265 272 Ver tambeacutem Oriente

Puacutenicos 300-301 305Purušḫḫanda 98Puteacuteolos 323-24Qadeš 111Qarkemiš 181 193n59Qatna 112Quarta Catarata 46 46n28 Cf NiloRetenu 46 Ver tambeacutem Siacutero-Palesti-

na PalestinaRetenu Superior 46n29Roma (cidade de) 270 282n14 286

289 292 321n102 323 325 331 333 335-41

Roma (impeacuterio romano) 13 17 21 28-29 39 39n2 271 277 279 290-92 297302 304 306 311 341

Romanos 18 21 32 271 288 291 295 300 302-3 305-6

Sagunto 303-4Salmantica 303 305Samlsquoal 194Samaria 26Semitas 95n33Samotraacutecia 264 268Sangibuti 159Santa Olaia 145Santareacutem 145Sardenha 144 147 286n22 299Sardes 230 251 332

Setuacutebal 332Sevilha 145Sexi 145Siciacutelia 144 286n22 299Siacutedon 158 167n61 185Šihocircr Ver NiloSindjar 86Sippar 91 100n63 201-2n3 216Siacuteria 17 46n29 47n34 78 97 108

110-13 133 142 156 187 203n5 247n71 257 264-66 291 333 Cf Siro-Palestina Retenu

Siacuteria do Norte 97 108 110-11 Cf ldquoFlo-resta dos Cedrosrdquo ldquoMontanhas da Pratardquo Tauro

Siacuterio-palestina (tambeacutem Siacuteria-Pales-tina Corredor siro-palestinense) 45 46n29 47 182 187 Ver tambeacutem Retenu Palestina Siacuteria

Sogdiana 258Solunto 144Šubartum 85Šubat-Enlil 91n10Sulcis 144Sumeacuteria (tambeacutem Sumer) 23 96-97

100Sumeacuterios 95n33Susa 244 246 251 272n71Tamehu Ver Baixo EgitoTacircnis (tambeacutem Djanet) 64 66-68Tauro (cordilheira) Ver ldquoMontanhas

da PratardquoTavira 145Tebas (Greacutecia)Tebas (Egipto) 48 59 59n11 61 63-64

63n31 66-68Teima 201-5 202n3 211 211n10 214-

15 215n36Tessaloacutenica 289n31Tharros 144Ticino 18 295 298

362

Iacutendice Antroponiacutemico

Tigre (rio) 76n7 78n16 96-97Til Tuba 156 160-61 163 165 168 175Tilmun 97Tiro 140 142 144 149 185Toscanos 145Traacutecia 268Turdetanos 300Tuttul 97Uauat (tambeacutem Baixa Nuacutebia) 46n28

48 67 Ugarit 111 141 260Ulaya (rio) 161 163 165Umma 96Upi 77Ur 90n3 92n22 95-96 203 214Urarṭu 158-59Uruk 76 76nn6 93-94 96-97 203 214Uacutetica 144 144n39 331Vale das Rainhas 60Vale dos Reis 66Yamhad 78 79n18Yamutbal 86Yarmuti 96Zalmaqum 79n18

363

Iacutendice de Fontes Antigas

Iacutendice de Fontes Antigas

1 Texto BiacuteblicoAgeu

223 189n47Amoacutes

1-2 30n23Apocalipse

1718 27n19Daniel

239 31n2571 31n25713-14 31n26719-25 31n258-11 31n25

Deuteronoacutemio239 31n2571 31n25713-14 32n19719-25 31n258-11 31n25205-8 191-92n51

Primeiro Livro das Croacutenicas110 23n3

Segundo Livro das Croacutenicas11 118n581121-22 261n1332 27n173613 194

Ezequiel1115 180n31-11 27n20138-10 1871712-19 1941715 19325-31 30n23

Geacutenesis108 23n3108-12 23n4141 24n71414 24n141414-16 24n9144-9 24n8

Isaiacuteas14-24 30n233446-47 30n2336-37 27n17301-7 18440 27n216521-23 191-92n51

Jeremias21-44 183-8422 183213 183214-19 183215 183

364

Iacutendice de Fontes Antigas

216 184218 182 184 193232 184233-37 184236 193236-37 184237 184531 187n36810 187n361318 (TM) 1891411-16 187n36206 187n362210-30 1802224 189n472224 (LXX) 1892228-30 (LXX) 189 189n47239-32 18624 18025-38 30n23267 187n37268 187n372611 187n372616 187n3727 (LXX) 185-7271 (TM) 185272-3 185-86275-6 185277 186278 185279 185 187n37279-10 185279-18 (TM) 1862711 185-862712 1862714-15 1862716 1862716-20 1862716-22 (TM) 1862717 186

2718 1862719 1862719-20 1862719-22 1862721 1862722 18627-28 185 18727-29 16 179 184-87 193-94 28 185 187-90281 185 187n37 188281 (TM) 185282-3 188285 (TM) 188286 (TM) 188286-9 188287 188-89288 1882810 1882810 (TM) 1882811 1882812 (TM) 1882812-16 1882813-14 1882815 (TM) 1882815-17 1882816 188 1922817 1882817 (TM) 1882824 189 189n472824-27 189n472828 189n472828 (LXX) 189n472828 (TM) 189n472828-30 1892830 189n4729 190-92 190n4829 (TM) 182n11291 187n37291-3 190

365

Iacutendice de Fontes Antigas

292 190295-6 190295-7 190-91n51 194296 192297 190298 187n37298-9 1912910-14 1912914 1912914-21 191n532915 190-912916-20 1902921 1912921-23 190-912921-31 1912924-32 1922925-28 1922931 1922931-32 1922932 19234 27n20375 182n9376-8 193377-9 182n93711 182n93711-16 192n5637-39 27n2037-38 18438 180384-5 192n56393 182n10396-9 (TM) 182n113914 195401-3 195407 182n11409-10 195411-3 182n124114-44 1934210-12 192-93 193n60 195

43 183n13461-26 19346-51 30n2352 6-7 182n105210-26 182n115217 1865220 1865230 (TM) 182n14

Joel4 30n23

Judite11 27n18

Lucas21-6 29n2231-3 29n22

Lamentaccedilotildees56 183n18

Miqueias55 24n6

Naum2-3 30n23

Oseias711-13 18421-2 184

Segundo Livro de Reis624-41 26n1617 26nn16-171813-37 27n172329-34 181248-16 261n142410-18 181n82413 (TM) 186n332513 1862525 182n122526 182n13253 182n10257-22 182n11

Primeiro Livro de Samuel81-18 34n33

366

Iacutendice de Fontes Antigas

171-58 24n12Sofonias

1-2 30n23Zacarias

Zac 132-6 187

2 Textos ApoacutecrifosLivro de Henoc

91-93 31n24

3 Fontes HititasAnais de Ḫattušili I

CTH 4 obvi24-26 110n14Eacutedito Constitucional de Telipinu

CTH 19 i28 110n17Tratado de Tudḫaliya I com Paddatiššu

do KizzuwatnaCTH 26 (KUB 34117-20) 110n19

Anais Completos de Muršili IICTH 61 Ano 2 112n26

Muršili II Sobre o Caso TawannannaCTH 70 (KUB 144ii3-12) 113n28

Apologia de ḪattušiliCTH 81 sect9 113n29

Mito de IlluyankaCTH 321 107 114 117-20 117n52

122-23 125 129-30 132-35CTH 321 A obvi28 107n2CTH 321 A obvi11-14 118n56CTH 321 B obvi17rsquo-18rsquo 118n58CTH 321 (2ordf versatildeo) sect21 130n121CTH 321 Diii2 130n121

Telipinu e a Filha do Deus MarCTH 322 128 131-32 135CTH 322 sectsect5-6 Aii6-25 132n130

Desaparecimento do Deus Sol CTH 323 107 117 117n51 123

128nn113-15 128-35CTH 323 sectsect1-2 Ai1-10 128n117CTH 323 sect7 Bi32-41 130nn121-2

Desaparecimento de TelipinuCTH 324 114-15 131-32 134n34CTH 324 A obvi5-9 134n35CTH 324 A obvI29-32 116n46CTH 324 E obvii15rsquo-16rsquo 116n46CTH 324 sect2 Ai4-6 131n125

Desaparecimento do Deus TempestadeCTH 325 115 117CTH 325 sect5 Ai16-21 115n37CTH 325 sect9 Ai34-36 117n49

O Deus Tempestade da Rainha Harapšili

CTH 327 115CTH 327 sect3 Aiii1-4 115n40

O Deus do Escriba PirwaCTH 328 115 115n36CTH 328 (KUB 3332ii5rsquo) 115n39CTH 328 obvi15rsquo 115n41

O Deus Tempestade de KuliwišnaCTH 329 115CTH 329 ii5 115n38 115n41

Anzili e ZukkiCTH 333 115n39

Fragmentos de Mitos de Divindades Ausentes

CTH 335 116n44Mitos da Deusa Inara

CTH 336 sectsect1-2 ii1-10 116n47CTH 336 sect3 Bii4-9 116n46CTH 336 sectsect4-6 Arev2-13 116n47

Canto do Deus LAMMACTH 343 119n64 123 126CTH 343 sectsect6-8 Aiii1-38 123n81CTH 343 sect1-2 Ai2-20 126n105

Canto de KumarbiCTH 344 119-20 119n63 122-27 131CTH 344 A obvi12-14 120n71CTH 344 A obvi18-22 120n71CTH 344 A obvi18-26 123n78

367

Iacutendice de Fontes Antigas

CTH 344 sect2 125n98CTH 344 sect2 Ai5-11 126n100CTH 344 sect3 Ai12-17 126n101CTH 344 sect13 Aii39-54 125n93CTH 344 sectsect18-19 Aii2-29 126n109CTH 344 sect20 Aiii30-39 124n88

Canto de UllikummiCTH 345 120 120n66 122-27CTH 345 sect6 Aii1-8 122n77CTH 345 sectsect6-9 Aii1-37 127n94

126n102CTH 345 sect8 Aii14-19 127n108CTH 345 sect8 Cii7-21 127n108CTH 345 sectsect11-12 Aiii10-18 126n91CTH 345 sectsect25-31 Aiv41-Bi13

125n95 126n102CTH 345 sectsect30-32 Bi1-28 127n111CTH 345 sect32 Bi14-28 126n103CTH 345 sectsect35-37 Bii5-30 125n96 CTH 345 sectsect40-42 123n80CTH 345 sectsect48-49 Aii10-19 126n89CTH 345 sect49 123n80CTH 345 sect49 Aii17 127n99CTH 345 sect49 Aii17-26 124n85CTH 345 sect52 Aii17-12 126n104CTH 345 sectsect56-60 Aiii1-39 124n86CTH 345 sectsect60-63 Aiii30-55

127n92CTH 345 sect65 Aiv9-12 126n87

Canto de ḪedammuCTH 348 120 120n66 122-23 127CTH 348 sect11 127n107CTH 348 sectsect51-52 127n110CTH 348 sectsect61-62 123n83 CTH 348 sect71 124n84 127n106CTH 348 sect93 122n76CTH 348 sectsect111-152 125n97

Canto de PrataCTH 364 120-22 120n65CTH 364 sectsect32-33 121n74

CTH 364 sectsect51-52 122n75Oraccedilatildeo de Puduḫepa agrave Deusa Sol de

ArinnaCTH 384 113n32

O Conjuro da AtaduraCTH 390 132CTH 390 133n131

Ritual para a Construccedilatildeo de um Novo Palaacutecio

CTH 414 115 115n43CTH A obvi34-38 116n44

Sacrifiacutecio e Oraccedilatildeo ao Deus Tempesta-de de Nerik

CTH 671 sect9 rev11-17 131n126A Lua Caiacuteda do Ceacuteu

CTH 727 116CTH 727 C obvii10-14 116n45CTH 727 C reviii10rsquo-11 116n45

Canto da LibertaccedilatildeoCTH 789 120 120n68 127CTH 789 sectsect42-46 ii4rsquo-21rsquo 127n112

Keilschrifturkunden aus Boghazkoumli KUB 144ii3-12 113n28KUB 2738 92n16 KUB 313 92n16KUB 3332ii5rsquo 115n39KUB 34117-20 110n19

4 Fontes da MesopotacircmiaAltbabylonische Briefe

AbB 1310 ls9-12 86n48Anais de Assurbaniacutepal 161

Bvii61 161n30Ancient Near Eastern Texts Relating to

the Old Testament ANET 306 212n14 216n45ANET 313 211n9ANET 315 209n2 212n11-12 217n45ANET 319 213n19ANET 560-62 213n21

368

Iacutendice de Fontes Antigas

ANET 562 211n10ANET 563 214n32

Ancient Records of Assyria and Babylonia ARAB 1764 168n64ARAB 219 167n60ARAB 2514 158n9ARAB 21041 163n39ARAB 21043 163n39ARAB 21045 163n39ARAB 21071 163n39ARAB 21072 161n28

The Annals of SennacheribOIP 223 H2i 4-5 159n19OIP 248 A16 160n20

Archives Royales de Mari ARM 76n5ARM 551 79n17ARM 552 79n17ARM 262370 ls15rsquo-17rsquo 81n20ARM 262379 84n37ARM 262385 ls8rsquo-15rsquo 83n35ARM 262 386 ls6rsquo-10rsquo 85n40ARM 281 81n29ARM 287 79n17ARM 288 79n17ARM 289 79n17

Carta ao deus Aššur 159 159n14 Cilindro de Ciro 204n7 209 212

217n52Coacutedigo de Hammu-rabi 80 83-84

Proacutelogo 13-8 80n23 84n38Proacutelogo 111-13 80n23 84n38Proacutelogo 116-19 81n21Proacutelogo 127 84n38Proacutelogo 145-49 84n38Proacutelogo 464-66 82n30Proacutelogo 55-12 85n44Proacutelogo 514-23 85n44Epiacutelogo 24 R28-34 83n36

Epiacutelogo 25 R95-98 82n31Croacutenica Babiloacutenica

BM 21946 obv2-13 181n6BM 21946 obv5-7 181n7BM 21946 obv12-13 181n8BM 21946 obv21-24 187n39

Croacutenica do Esagila 91 100 100n64l58 91n25Croacutenica de Naboacutenido 203n6 212

215n41 216 Ver ANET 306 Croacutenica dos Reis Antigos 100 100n65

101 101n68Documentaccedilatildeo de Mari

A1931 ls8-11 81n27A4626 ls8rsquo-10rsquo 82n33

Enūma Eliš 24n10 210-11Epopeia de Gilgameš 94

Tab 15-11 94n29Tab 212-13 94nn29-30

Estela de Harran de Naboacutenido 202 213Electronic Text Corpus of Sumerian Lit-

erature ETCSL 174 210n4

Geografia de Sargatildeo 98-99 99n53l 52 94n32ls 57-59 94n30l 58 95n34

Histoacuteria sumeacuteria do diluacutevio Ver ETC-SL 174

Inschriften von Nabonidus Koumlnig von Babylon

Nbn 184 206Nbn 688 206

Lenda de Sargatildeo 90n7 92 92n19ls 8rsquo-9rsquo (frag TRS 73) 93n24l 11 92n20l 14 (frag 3N T 296) 93n23

Litteacuteratures anciennes du Proche-Orient LAPO 3IIA1a-b 90n4LAPO 3IIA1c-d 90n3

369

Iacutendice de Fontes Antigas

LAPO 394 (IH2b) 96nn39-40LAPO 397 (IIA1a1-28) 97n42LAPO 397 (IIA1a 1-34) 98n51LAPO 397 (IIA1a29-63) 97n43LAPO 399 (IIA1b) 97n44LAPO 399 (IIA1b17-35) 97n45 99n57LAPO 16300 83n34LAPO 17733 80n22

Lista dos Reis Sumeacuterios 33n31 90n8Luta Entre Balsquolu e Yammu 123

KTU 11 123n82KTU 11-2 123n82KTU 12 123n82

Meacutemoires de la Deacuteleacutegation en Perse MDP 988 98n52

Narrativa em verso de Naboacutenido 211 213n20 Ver tambeacutem ANET 313

O Casamento de Martu 95O Rei da Batalha 92n15 98

l 18 98n48Oacutestracos de Laqiš

314-18 193 193n58Records from Erech at the time of Na-

bonidus YOS 6103 206

The Royal Inscriptions of Mesopotamia RIMA 1 A0392 i14-22 91n11

91n13RIMA 2 A01011 i22 159n16RIMA 2 A01011 i89-93 157n6RIMA 2 A01011 i116-18 157n7

Sargatildeo o Heroacutei Conquistador 102n70The Royal Inscriptions of Sennacherib

King of Assyria RINAP 31 no15 ls iv23 167n61

State Archives of Assyria SAA 25 iv6-18 194n63SAA 26 195n65SAA 474 160n24SAA 98 163n36

SAA 118 168n65Tratado de Assaradatildeo com Balsquoal de

Tiro Ver SAA 25 iv6-18Tratado de Narām-Sicircn com Awan

(Elam) Ver MDP 988Ur Excavations Texts

UET 123 90n3UET 1271 90n3

7 Fontes EgiacutepciasMateriais papiroloacutegicos

Papiro Abbott 59 61PBerlim 10487 (LRL21) 65n43pBM EA10383 sect25 61n18 Papiro Mayer A 61Papiro de Turim 1887 60Viagem de Uenamon 64 68

6 Fontes Greco-latinasAmiano Marcelino

211224 334n19Apiano

Hisp 33 303 304n29Hisp 59 299Hisp 71 302Hisp 72 302 302n17 305n35Hisp 96-97 305Praef 6 312n5Syr 65 265n38 267n43

AristoacutetelesPol 1311b 258

Ateneu13560f 259n7 264n3013576d 250n9613593 266n3914659f-660a 262n205202d 267n48

Aulo Geacutelio134 258n5 262n20 263n24

370

Iacutendice de Fontes Antigas

Aureacutelio ViacutectorCaes 105 314n23

CiacuteceroLeg agr 227 283n16Leg agr 230 283n16Leg agr 231 283n16Rep 150 317n48Rep 225 284n19Rep 231 284n19Rep 233 284n19Rep 235 284n19Rep 238 284n19

Cteacutesias de CnidoFGrHist 688 F15 239n8 241n26FGrHist 688 F15a 238n3FGrHist 688 F15a51 245n58FGrHist 688 F13(14) 241n25FGrHist 688 F16 239n9 247n71FGrHist 688 F29b 248n83

Corneacutelio NeposEum 186 262nn19-20

Cuacutertio Rufo7136-40 262n20 262n23

DiacutenonFGrHist 690 F15b 248n83FGrHist 690 F26 242n37

Diacuteon Caacutessio37525 301m134143 289n315332 390n3358283 314n196013-4 316n3666262 314n23

Dioniacutesio de Halicarnasso357-62 208n7

Diodoro Siacuteculo1755 238n317776 249n941911 261n18 262nn19-20 262n22

264n301949-51 260n101951 262n22 263n26 263nn27-2849-50 262nm19-20

Egeacuteria233 333n10

ElianoVH 1127 245n60VH 121 250n96

EacutesquiloPers 150-154 242n38Pers 230-244 246n61Pers 607-609 242n39Pers 694-706 244n48Pers 832-838 244n49

Estrabatildeo1715 241n25

EuriacutepidesPh 524 316n43

Euseacutebio de CesareiaHist Eccl 426 332n7Hist Ecll 92 332n6Vita Const 324 333n9

Fiacutelon de AlexandriaLeg 162 326n143Leg 338 326n143

Flaacutevio JosefoAI 1589 270n64AI 1981 326n143AI 19212-225 316n36BI 4601 324n123

Floro23357-58 298n5

HecateuFHG 1339 266n39

Heraclides de CumasFGrHist 689 F1 242n37FGrHist 689 F127 243n43FGrHist 689 F2 250n103

371

Iacutendice de Fontes Antigas

Persikaacute 242n30 245n58Heroacutedoto

191 252n1151952 232n651962 227n281963 226n22 228n41196-101 2261972 227n311973 227n321981 226n25 227n331984 228n351991 228n391992 228n37 228n4011001 227n26 229n4211002 229n4311262 231n5411266 232n641133 252n1201135 249n9011371 230n531138 242n3111881 232n62211 238 242n342162 252n123311-312 245n58311-313 240n16312 249n88314 249n89315 240n17321 240n18322 238n5 240n19331-3 251n1103303 244n53 3311 241n25 244n51 244n513312 241n233314 241n243316 241n25332 244n523324 246n64

3355 230nn47-483361 230n493384 226n213611 244n533683 238n6 250n1003683-5 251n1083685 251n109368-69 250n1013693-6 252n1233696 250n104373 252n1233752 244n53380-82 16 2213803 222n5 223n10 224n163805 224n173811 222n73822 225n183823 223n123823-4 222n63824 223n133825 224n173842 239n12 250n1053882 239n15 241n253882-3 251n1083893 232n6331181 230n52 250n106 252n1233118-119 23031271 231n5531272 231n5931273 231nn57-58 231n60 232n613127-128 230n5131292 245n583129-137 245n5531304 251n10731304-5 251n10831331 239n731542 252n12331592 249n92483 325n130

372

Iacutendice de Fontes Antigas

4201 252n123592α1 223n972-3 246n6573 243n6778 245n59761 239n87642 246n667692 239n14 241n257722 239n14782 246n66797 246n6671021 233n6771034 233n6671044 233nn67-687114 252n1199762 249n9191081 249n9391081-2 259n11291082 251n1149108-113 251n11191093 252nn115-1791101 252n11891103 252n122 253n12491111 248n8 252n121 253n12591112 253n12691113 253n1279112 252n12391131-2 253n128

HesiacuteodoOp 35-39 227n30

HipeacuteridesEux 31-36 262n19

Historia MonachorumProl 2 338n42119 338n42164 338n422610 338n42

Rhetorica ad Herennium 4913 291n40

HomeroIl 14224-353 269n57Od 199-11 227n30

JeroacutenimoChron A 374 Helm 334n24Ep 395 334Ep 92 341Ep 1333 240n48Expl Dan 96 265n38

JustinoEpit 1917 250n102Epit 1727-9 268n53Epit 1469-11 260n11Epit 242-3 268n53

MacroacutebioSat 1626 337n36

MarcialSpect 25-6 325

OpianoH 315-25 119n59

Oroacutesio62110 298n6

Palaacutedio da GalaacuteciaHLaus 52-3 Butler 338n40HLaus 9 Butler 338n40HLaus 102-4 Butler 338n40HLaus 10D Ameacutelineau 338n40HLaus 3514-15 333n11HLaus 44 Butler 338n41HLaus 461 334 334n24HLaus 462 Butler 338n40HLaus 463 Butler 335n27HLaus 463-4 Butler 335n27HLaus 54 Butler 335n25 339n46HLaus 543 Butler 335n26

Paulino de NolaEp 296 336n28Ep 298 333n18 334nn23-24Ep 2910 336n30 337n31 337n35

373

Iacutendice de Fontes Antigas

Ep 2911 339n45 Pausacircnias

877 262n22Platatildeo

Alc 123b-c 247n71Leg 694-698 243n47Plt 293d8 337n30

Pliacutenio-o-MoccediloEp 535 312n6Pan 453 45n48

Pliacutenio-o-VelhoHN 753 265n38

PlutarcoAlex 2 258n2 264n31Alex 2-3 264n33Alex 278 258n5Alex 36 272n71Alex 37 272n71Alex 39 262n31Alex 70 272n71Ant 904 272n72Artax 12 238n3 241n26Artax 21 241n20 247n68Artax 22 241n22 247n69Artax 25 239n9Artax 31 241n32Artax 41 247n70 247n72Artax 43-4 247n73 Artax 51-3 247n73Artax 53 243n40 243n42Artax 6 248n82Artax 64-5 247n74Artax 65 246n63 247n75Artax 145 247n78Artax 152 242n35Artax 161 247n79Artax 171-6 248n80Artax 172 246n62Artax 172-3 243n44

Artax 176 247n75Artax 181-4 248n81Artax 19 248n82Artax 191 243n45Artax 192 243n45 248n83Artax 193-4 248n83Artax 201 238n4Artax 231-2 248n84Artax 232-4 241n27Artax 233 241n29 242n30 246n62Artax 234 241n28 242n30Artax 234-5 242n32Artax 235 242n33Artax 261-2 249n85Artax 262 249n86Artax 265 250n97Artax 269 250n69Artax 271 249n95Artax 272 249n94 250n98Artax 273 242n32Artax 274 239nn10-11 250n99Artax 301 249n87Caes 113-4 316n39Dem 25 268n50Eum 1 272n71Mor 141c 263cMor 173f (Ps) 243Mor 248e-249b 305n32Mor 401b 258n2Mor 489a 266n42Per 249 272n72Per 2411-12 250

Poliacutebio11 291n3813 291n381630-34 3041631 304n29

PolienoStrat 748 305n33

374

Iacutendice de Fontes Antigas

Strat 850 265n35 265n38Strat 857 268n52

PorfiacuterioFHG 3707 265n35

Res Gestae Divi Augusti34 312

Rutiacutelio NamacianoDe reditu suo 1267-276 337n38

SaluacutestioCat 101 291n36

Sidoacutenio ApolinaacuterioEp 194 337n37

Soacutecrates de ConstantinoplaHist Eccl 67 340n49Hist Eccl 69 341n50

SozoacutemenoHist Eccl 811-15 341n50Hist Ecll 812 340n49

SuetoacutenioAug 281 313n8Aug 282 312n6Aug 283 325n134Aug 321 321n97Aug 341 321n99 322n104Aug 403 321n100Aug 405 321n101Aug 411 320n88Aug 431 324n127Aug 44-45 321n102Aug 511 317n53Aug 52 317n50Aug 531 317n51Aug 533 317n52Aug 54 317n54Aug 571 317n55Aug 931 315n31Aug 982 323n116Cal 8 319n76Cal 122 314n19

Cal 161 322n108Cal 191 324n128 Cal 192 324n129Cal 21 325n137Cal 221 312n7 319n68Cal 222 319n69Cal 262 319n76Cal 264 319n76Cal 291 318n64Cal 301 318n64Cal 302 319n76Cal 452 313n12Cal 491 319n76Cal 492 326n143Cal 60 315n29Cl 21 316n37Cl 121 318n61Cl 122 314n19Cl 123 318n62Cl 22 321n97Cl 253 321n100Cl 44 314n20Dom 13 319n70Dom 23 314n22Dom 5 325n135Dom 83 321n102Dom 91 320n90Dom 101 320n84Dom 121 325n136Dom 121-2 320n84Dom 123 319n70Dom 131 319n71Dom 132 319n72Dom 132-3 319n73Dom 141 315 319n74Dom 232 313n10 319n78Gal 61 316n37Gal 92 315n31 324n125Gal 101 323n122

375

Iacutendice de Fontes Antigas

Gal 104 324n126Gal 12 321n94Gal 121 320n81Gal 161 321n95 322n108Jul 61 316n38Jul 291 316n39Jul 302 316n40Jul 303-4 316n41Jul 305 316nn42-43Jul 391 324n127Jul 541 319n79Jul 761 316n44Jul 763 317n45Jul 77 317n46Jul 792 317n47Jul 793 326n143Jul 845 323n118Nero 101 320n90Nero 131 325n131Nero 162 322n107Nero 261 320n80Nero 323 322n107Nero 33 314n21 318n65Nero 373 318n65 319n75Nero 401 323n119Nero 402 326n143Nero 404 316n37Nero 452 323n120Nero 472 326n143Nero 571 316n37Nero 572 325n133Otho 32 313n12Tib 22 314n17Tib 23 313n11Tib 24 313n12 314n15Tib 261 317n56Tib 262 318n57Tib 27 318n58Tib 28 318n59

Tib 30 318n60Tib 322 318-19n56Tib 33 321n97Tib 341 322n105Tib 351 322n110Tib 352 322nn109-10Tib 372 321n102Tib 46-48 321n93Tib 571 318-19n56Tib 592 318n64Tib 69 315n25Tib 732 314nn18-19Tit 1 316n37 318n66Tit 77 326Tit 83 320n87Tit 91 315n27Ves 11 320n84Ves 45 315n31 324n125Ves 56 324n125Ves 71 324n124Ves 73 324n126Ves 91 325n134 326n140Ves 92 321n97 322n112Ves 11 322n106Ves 12 318n65Ves 161 320n82Ves 163 320n82Ves 17 320n89Ves 191 320n90Ves 22 318n63

Taacutecito Ann 11 312n4Ann 1773 318n60Ann 250 322n110Ann 2852-3 322n110Ann 491 314n16Ann 6504-5 314n19Ann 133 312n5Ann 145 268n51

376

Iacutendice de Fontes Antigas

Ann 1542-43 325n138Ger 8 305n34Hist 14 323n121Hist 279 324n123Hist 115-16 314n24

Teoacutecrito125 267n4614 269n5617 269n58

Tito Liacutevio171-3 288n281444-5 288n28451 291n362114 30421438 300n1123445 299n926109 287n26281913 3032822 303n2328223 30428225 304n2728227 304n2928229 304n24

XenofonteAn 11 238n3An 149 247n71An 1102 250n92An 114 247n69Cyr 461-11 204n7Cyr 8812 249n47

377

Volumes publicados na Coleccedilatildeo Humanitas Supplementum

1 Francisco de Oliveira Claacuteudia Teixeira e Paula Barata Dias Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas Vol 1 ndash Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e Roma (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2009)

2 Francisco de Oliveira Claacuteudia Teixeira e Paula Barata Dias Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas Vol 2 ndash Liacutenguas e Literaturas Idade Meacutedia Renascimento Recepccedilatildeo (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2009)

3 Francisco de Oliveira Jorge de Oliveira e Manuel Patriacutecio Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas Vol 3 ndash Histoacuteria Arqueologia e Arte (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2010)

4 Maria Helena da Rocha Pereira Joseacute Ribeiro Ferreira e Francisco de Oliveira (Coords) Horaacutecio e a sua perenidade (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2009)

5 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo Maacutescaras dos Ceacutesares Teatro e moralidade nas Vidas suetonianas (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2009)

6 Joseacute Ribeiro Ferreira Delfim Leatildeo Manuel Troumlster and Paula Barata Dias (eds) Symposion and Philanthropia in Plutarch (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2009)

7 Gabriele Cornelli (Org) Representaccedilotildees da Cidade Antiga Categorias histoacutericas e discursos filosoacuteficos (Coimbra Classica DigitaliaCECHGrupo Archai 2010)

8 Maria Cristina de Sousa Pimentel e Nuno Simotildees Rodrigues (Coords) Sociedade poder e cultura no tempo de Oviacutedio (Coimbra Classica DigitaliaCECHCECCH 2010)

9 Franccediloise Frazier et Delfim F Leatildeo (eds) Tychegrave et pronoia La marche du monde selon Plutarque (Coimbra Classica DigitaliaCECH Eacutecole Doctorale 395 ArScAn-THEMAM 2010)

10 Juan Carlos Iglesias-Zoido El legado de Tuciacutedides en la cultura occidental (Coimbra Classica DigitaliaCECH ARENGA 2011)

11 Gabriele Cornelli O pitagorismo como categoria historiograacutefica (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2011)

12 Frederico Lourenccedilo The Lyric Metres of Euripidean Drama (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2011)

13 Joseacute Augusto Ramos Maria Cristina de Sousa Pimentel Maria do Ceacuteu Fialho Nuno Simotildees Rodrigues (coords) Paulo de Tarso Grego e Romano Judeu e Cristatildeo (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

14 Carmen Soares amp Paula Barata Dias (coords) Contributos para a histoacuteria da alimentaccedilatildeo na antiguidade (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

378

15 Carlos A Martins de Jesus Claudio Castro Filho amp Joseacute Ribeiro Ferreira (coords) Hipoacutelito e Fedra - nos caminhos de um mito (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

16 Joseacute Ribeiro Ferreira Delfim F Leatildeo amp Carlos A Martins de Jesus (eds) Nomos Kosmos amp Dike in Plutarch (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

17 Joseacute Augusto Ramos amp Nuno Simotildees Rodrigues (coords) Mnemosyne kai Sophia (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

18 Ana Maria Guedes Ferreira O homem de Estado ateniense em Plutarco o caso dos Alcmeoacutenidas (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

19 Aurora Loacutepez Andreacutes Pocintildea amp Maria de Faacutetima Silva De ayer a hoy influencias claacutesicas en la literatura (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

20 Cristina Pimentel Joseacute Luiacutes Brandatildeo amp Paolo Fedeli (coords) O poeta e a cidade no mundo romano (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

21 Francisco de Oliveira Joseacute Luiacutes Brandatildeo Vasco Gil Mantas amp Rosa Sanz Serrano (coords) A queda de Roma e o alvorecer da Europa (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica DigitaliaCECH 2012)

22 Luiacutesa de Nazareacute Ferreira Mobilidade poeacutetica na Greacutecia antiga uma leitura da obra de Simoacutenides (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica DigitaliaCECH 2013)

23 Faacutebio Cerqueira Ana Teresa Gonccedilalves Edalaura Medeiros amp JoseacuteLuiacutes Brandatildeo Saberes e poderes no mundo antigo Vol I ndash Dos saberes (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia2013) 282 p

24 Faacutebio Cerqueira Ana Teresa Gonccedilalves Edalaura Medeiros amp Delfim Leatildeo Saberes e poderes no mundo antigo Vol II ndash Dos poderes (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia 2013) 336 p

25 Joaquim J S Pinheiro Tempo e espaccedilo da paideia nas Vidas de Plutarco (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia 2013) 458 p

26 Delfim Leatildeo Gabriele Cornelli amp Miriam C Peixoto (coords) Dos Homens e suas Ideias Estudos sobre as Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia 2013)

27 Italo Pantani Margarida Miranda amp Henrique Manso (coords) Aires Barbosa na Cosmoacutepolis Renascentista (Coimbra Classica DigitaliaCECH 2013)

28 Francisco de Oliveira Maria de Faacutetima Silva Tereza Virgiacutenia Ribeiro Barbosa (coords) Violecircncia e transgressatildeo uma trajetoacuteria da Humanidade (Coimbra e Satildeo Paulo IUC e Annablume 2014)

29 Priscilla Gontijo Leite Eacutetica e retoacuterica forense asebeia e hybris na caracterizaccedilatildeo dos adversaacuterios em Demoacutestenes (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2014)

30 Andreacute Carneiro Lugares tempos e pessoas Povoamento rural romano no Alto Alentejo - Volume I (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra

379

Classica Digitalia 2014)31 Andreacute Carneiro Lugares tempos e pessoas Povoamento rural romano no Alto

Alentejo - Volume II (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia 2014)

32 Pilar Goacutemez Cardoacute Delfim F Leatildeo Maria Aparecida de Oliveira Silva (coords) Plutarco entre mundos visotildees de Esparta Atenas e Roma (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2014)

33 Carlos Alcalde Martiacuten Luiacutesa de Nazareacute Ferreira (coords) O saacutebio e a imagem Estudos sobre Plutarco e a arte (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2014)

34 Ana Iriarte Luiacutesa de Nazareacute Ferreira (coords) Idades e geacutenero na literatura e na arte da Greacutecia antiga (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2015)

35 Ana Maria Ceacutesar Pompeu Francisco Edi de Oliveira Sousa (orgs) Greacutecia e Roma no Universo de Augusto (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2015)

36 Carmen Soares Francesc Casadesuacutes Bordoy amp Maria do Ceacuteu Fialho (coords) Redes Culturais nos Primoacuterdios da Europa - 2400 Anos da Fundaccedilatildeo da Academia de Platatildeo (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

37 Claudio Castro Filho ldquoEu mesma matei meu filhordquo poeacuteticas do traacutegico em Euriacutepides Goethe e Garciacutea Lorca (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

38 Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho amp Thomas Figueira (coords) PoacutelisCosmoacutepolis Identidades Globais amp Locais (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

39 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Maria do Ceacuteu Graacutecio Zambujo Fialho amp Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo (coords) O Livro do Tempo Escritas e reescritasTeatro Greco-Latino e sua recepccedilatildeo I (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

40 Maria de Faacutetima Sousa e Silva Maria do Ceacuteu Graacutecio Zambujo Fialho amp Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo (coords) O Livro do Tempo Escritas e reescritasTeatro Greco-Latino e sua recepccedilatildeo II (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

41 Gabriele Cornelli Maria do Ceacuteu Fialho amp Delfim Leatildeo (coords) Cosmoacutepolis mobilidades culturais agraves origens do pensamento antigo (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

42 Nair de Nazareacute Castro Soares Claacuteudia Teixeira (coords) Legado claacutessico no Renascimento e sua receccedilatildeo contributos para a renovaccedilatildeo do espaccedilo cultural europeu (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2016)

380

43 Franccediloise Frazier amp Olivier Guerrier (coords) Plutarque Eacuteditions Traductions Paratextes (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2017)

44 Claacuteudia Teixeira amp Andreacute Carneiro (coords) Arqueologia da transiccedilatildeo entre o mundo romano e a Idade Meacutedia (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2017)

45 Aldo Rubeacuten Pricco amp Stella Maris Moro (coords) Pervivencia del mundo claacutesico en la literatura tradicioacuten y relecturas (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra eAnnablume 2017)

46 Claacuteudia Cravo amp Susana Marques (coords) O Ensino das Liacutenguas Claacutessicas reflexotildees e experiecircncias didaacuteticas (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2017)

47 Breno Battistin Sebastiani Fracasso e verdade na recepccedilatildeo de Poliacutebio e Tuciacutedides (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2017)

48 Christian Werner Memoacuterias da Guerra de Troia a performance do passado eacutepico na Odisseia de Homero (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018)

49 Paola Bellomi Claudio Castro Filho Elisa Sartor (eds) Desplazamientos de la tradicioacuten claacutesica en las culturas hispaacutenicas (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra eAnnablume 2018)

50 VM Ramoacuten Palerm G Sopentildea Genzor AC Vicente Saacutenchez (eds) Irreligiosidad y Literatura en la Atenas Claacutesica (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018)

51 Luiz Ceacutesar de Saacute Juacutenior Escrever para natildeo morrer retoacuterica da imortalidade no epistolaacuterio de Damiatildeo de Goacuteis (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018)

52 Joseacute Luiacutes Brandatildeo amp Paula Barata Dias (coords) O Melhor eacute a Aacutegua da Antiguidade Claacutessica aos Nossos Dias (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018)

53 Tereza Virgiacutenia Ribeiro Barbosa Matheus Trevizam Juacutelia Batista Castilho de Avellar Tempestades claacutessicas dos Antigos agrave Era dos Descobrimentos (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018)

54 Lorena Jimeacutenez Justicia y Alberto J Quiroga Puertas (eds) Ianus innovacioacuten docente y reelaboraciones del legado claacutesico (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018)

55 Carmen Soares Joseacute Luiacutes Brandatildeo amp Pedro C Carvalho (coords) Histoacuteria Antiga Relaccedilotildees Interdisciplinares Fontes Artes Filosofia Poliacutetica Religiatildeo e Receccedilatildeo (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2018)

381

56 Carmen Soares Joseacute Luiacutes Brandatildeo amp Pedro C Carvalho (coords) Histoacuteria Antiga Relaccedilotildees Interdisciplinares Paisagens Urbanas Rurais amp Sociais (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2018)

57 Isabella Tardin Cardoso Marcos Martinho (eds) Ciacutecero obra e recepccedilatildeo (Coimbra e Satildeo Paulo Imprensa da Universidade de Coimbra e Annablume 2018) 239 p [ainda natildeo lanccedilado]

58 Delfim Leatildeo Joseacute Augusto Ramos Nuno Simotildees Rodrigues (coords) Arqueologias de Impeacuterio (Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2018)

(Paacutegina deixada propositadamente em branco)

Estas laquoArqueologias de Impeacuterioraquo consistem em 17 estudos que abrangem as vaacuterias aacutereas de

investigaccedilatildeo da Antiguidade A partir das fontes biacuteblicas propotildee‑se uma estruturaccedilatildeo de

categorias e uma organizaccedilatildeo de semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento

da ideia de laquoimpeacuterioraquo Para o caso egiacutepcio foca‑se a problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria

egiacutepcia e a terminologia utilizada para a definir Para o universo dos impeacuterios antigos da

Mesopotacircmia trata‑se a emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise

da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammurabi em

dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio

feniacuteciosiro‑palestinense recorre‑se a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico‑religiosas

elementos para o estudo das realidades poliacuteticas e apresenta‑se uma reflexatildeo sobre

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas

estatildeo representadas por estudos sobre contextos de violecircncia acerca de Jeremias e do

Impeacuterio Neobabiloacutenico sobre Naboacutenido e ainda sobre os diferentes comportamentos

dos reis da regiatildeo relativamente ao culto de Marduk Podemos tambeacutem ler textos sobre a

teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta relativamente aos Persas e acerca das rainhas

na Peacutersia Antiga De igual modo sobre o periacuteodo heleniacutestico reflete‑se sobre o papel e a

importacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera

do poder Nos uacuteltimos quatro estudos propotildee‑se uma genealogia conceptual para a ideia

de imperium no mundo romano atraveacutes da sua historiografia sugerindo‑se ainda uma ideia

de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio

58

Arqu

eolo

gias

de

Impeacute

rio

Coimbra

Del

fim

leatilde

o J

oseacute

Au

gu

sto

RA

mo

s N

uN

o s

imotilde

es R

oD

Rig

ues

(co

oRD

s)Delfim Leatildeo Joseacute Augusto RamosNuno Simotildees Rodrigues (coords)

Arqueologias de Impeacuterio

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

OBRA PUBLICADA COM A COORDENACcedilAtildeO CIENTIacuteFICA

HVMANITAS SVPPLEMENTVM bull ESTUDOS MONOGRAacuteFICOSISSN 2182-8814

Apresentaccedilatildeo esta seacuterie destina-se a publicar estudos de fundo sobre um leque variado de

temas e perspetivas de abordagem (literatura cultura histoacuteria antiga arqueologia histoacuteria

da arte filosofia liacutengua e linguiacutestica) mantendo embora como denominador comum os

Estudos Claacutessicos e sua projeccedilatildeo na Idade Meacutedia Renascimento e receccedilatildeo na atualidade

Breve nota curricular sobre os autores do volume

Delfim F Leatildeo eacute Professor Catedraacutetico do Instituto de Estudos Claacutessicos e investigador do Centro

de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra As suas principais aacutereas de

interesse cientiacutefico satildeo a histoacuteria antiga o direito e a teorizaccedilatildeo poliacutetica dos Gregos a pragmaacutetica

teatral e a escrita romanesca antiga Tem-se dedicado igualmente agrave aacuterea das Humanidades

Digitais

Joseacute Augusto Martins Ramos eacute Professor Emeacuterito da FLUL licenciado em Teologia (Instituto

Catoacutelico de Toulouse 1969) Ciecircncias Biacuteblicas e Orientais (Instituto Biacuteblico de Roma 1972)

doutorado em Histoacuteria Antiga (Universidade de Lisboa 1989) Aacutereas de trabalho Hebraico

Acaacutedico Ugariacutetico Histoacuteria da Antiguidade Preacute-Claacutessica e Histoacuteria das Culturas da Antiguidade

Preacute-Claacutessica Histoacuteria Comparada das Religiotildees Preacute-Claacutessicas Literaturas Preacute-Claacutessicas Histoacuteria

do Cristianismo Antigo tradutor e coordenador cientiacutefico desde 1972 ateacute ao presente em

vaacuterios projetos e modelos diferentes de traduccedilatildeo da Biacuteblia em colaboraccedilatildeo com a Sociedade

Biacuteblica a Difusora Biacuteblica e a Conferecircncia Episcopal Portuguesa Aleacutem do trabalho de traduccedilatildeo e

coordenaccedilatildeo as suas numerosas publicaccedilotildees inscrevem-se na variedade de temaacuteticas referidas

Nuno Simotildees Rodrigues eacute Doutor em Letras especialidade de Histoacuteria da Antiguidade Claacutessica

Professor da Universidade de Lisboa e investigador dos Centros de Histoacuteria e de Estudos Claacutessicos

da ULisboa e de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da UCoimbra Tem-se dedicado ao estudo da

cultura grega (mitologia e religiatildeo) da sociedade e poliacutetica romanas do fim da Repuacuteblica e iniacutecio

do Principado e da receccedilatildeo de temas claacutessicos no cinema Publicou laquoIudaei in Vrbe Os Judeus em

Roma do tempo de Pompeio ao tempo dos Flaacuteviosraquo (2007) e laquoMitos e Lendas da Roma Antigaraquo

(2ordf ed 2010)

Estas laquoArqueologias de Impeacuterioraquo consistem em 17 estudos que abrangem as vaacuterias aacutereas de

investigaccedilatildeo da Antiguidade A partir das fontes biacuteblicas propotildee-se uma estruturaccedilatildeo de

categorias e uma organizaccedilatildeo de semacircnticas como possiacuteveis caminhos para o entendimento

da ideia de laquoimpeacuterioraquo Para o caso egiacutepcio foca-se a problemaacutetica da periodizaccedilatildeo da Histoacuteria

egiacutepcia e a terminologia utilizada para a definir Para o universo dos impeacuterios antigos da

Mesopotacircmia trata-se a emergecircncia da hegemonia paleobabiloacutenica atraveacutes da anaacutelise

da ideologia subjacente agraves poliacuteticas sociais e militares levadas a cabo por Hammurabi em

dois momentos cruciais da histoacuteria da Babiloacutenia Para o espaccedilo da Anatoacutelia e do territoacuterio

feniacuteciosiro-palestinense recorre-se a um meacutetodo que colhe nas narrativas miacutetico-religiosas

elementos para o estudo das realidades poliacuteticas e apresenta-se uma reflexatildeo sobre

Imperialismo no mundo colonial feniacutecio As civilizaccedilotildees e sociedades neomesopotacircmicas

estatildeo representadas por estudos sobre contextos de violecircncia acerca de Jeremias e do

Impeacuterio Neobabiloacutenico sobre Naboacutenido e ainda sobre os diferentes comportamentos

dos reis da regiatildeo relativamente ao culto de Marduk Podemos tambeacutem ler textos sobre a

teorizaccedilatildeo poliacutetica que Heroacutedoto apresenta relativamente aos Persas e acerca das rainhas

na Peacutersia Antiga De igual modo sobre o periacuteodo heleniacutestico reflete-se sobre o papel e a

importacircncia da mulher na sociedade heleniacutestica especialmente no que diz respeito agrave esfera

do poder Nos uacuteltimos quatro estudos propotildee-se uma genealogia conceptual para a ideia

de imperium no mundo romano atraveacutes da sua historiografia sugerindo-se ainda uma ideia

de globalizaccedilatildeo para o mundo romano tardio

  • Arqueologias de Impeacuterio
    • Sumaacuterio
    • ApresentaccedilatildeoDe Imperio ndash De Imperiis
    • Mitologias Teologias e Taxonomias da Histoacuteriaseguindo a ideia biacuteblica de impeacuterio(Mythologies Theologies and Taxonomies of History through the biblical idea of empire)
    • Os Impeacuterios da Histoacuteria do Antigo Egito em torno do conceito de laquoImpeacuterioraquo(Empires in the History of Ancient Egypt on conceptual validity of laquoImpeacuterioraquo)
    • Comeccedilar de novoa laquorepeticcedilatildeo do nascimentoraquo e a transformaccedilatildeo poliacutetica do Egito na viragem para o I Mileacutenio(Starting anew the laquorepetition of birthraquo and Egyptrsquos political transformation on the brink of the 1st Millenium)
    • Hammu-rabi e o iniacutecio da sua ascensatildeo ateacute agrave hegemonia a ordem poliacutetica e a legitimaccedilatildeo divina(Hammu-rabi and the beginning of his hegemonic ascent political order and divine legitimation)
    • lsquoRei das Quatro RegiotildeesrsquoSargatildeo de Akkad e o modelo imperial na Mesopotacircmia(lsquoKing of the Four Quarters Sargon of Akkad and the imperial model in Mesopotamia)
    • A hurritizaccedilatildeo das conceccedilotildees mitoloacutegicas de poder no impeacuterio hitita(The hurritisation of mythological concepts of power in the Hittite Empire)
    • Imperialismo no mundo colonial feniacutecio(Imperialism in the Phoenician colonial world)
    • Decapitaccedilatildeo e exibiccedilatildeo do inimigo como discurso e exerciacutecio de poder no impeacuterio neoassiacuterio(Decapitation and exhibition of the enemy as discourse and exercise of power in the neo-Assyrian empire)
    • Beber do Nilo ou do Eufrates O papel (do livro) de Jeremias na legitimaccedilatildeo do imperium neobabiloacutenico em Judaacute (To drink from the Nile or the Euphrates On the role of (the book of )Jeremiah in legitimising the Neo-Babilonic imperium over Judah)
    • Naboacutenido e o final do Impeacuterio Neobabiloacutenico(Nabonidus and the end of the Neobabilonian Empire)
    • A queda da Babiloacutenia em 539 aC Naboacutenido e Ciro duas atitudes divergentes face ao culto do deus Marduk(The fall of Babylon in 539 BC Nabonidus and Cyrus two different approaches to the cult of god Marduk)
    • Monarcas persas nas Histoacuterias de Heroacutedoto lei e liberdade fundamentos da ideologia monaacuterquica(Persian Kings in Herodotusrsquo Histories Law and Freedom roots of the monarchic ideology)
    • Ser rainha na Peacutersia antiga(To be a queen in Ancient Persia)
    • Peri Basilissas Em torno da importacircncia poliacutetica de cinco rainhas heleniacutesticas(Peri Basilissas Regarding the political importance of five Hellenistic queens)
    • O Imperium da origem ao Principado1(Imperium from origin to Principate)
    • A construccedilatildeo do impeacuterio na Hispacircnia contrastes nas narrativas da conquista romana do Ocidente(Building the empire in Hispania contrasts amongst the narratives on the Roman conquest of the West)
    • Um olhar sobre o poder imperial em Suetoacutenio(A look over imperial power in Suetonius)
    • Peregrinationes ad loca sancta o estranho percurso de Melacircnia-a-Antiga num Mediterracircneo globalizado(Peregrinationes ad loca sancta the strange route of Melania-the-Elder in a globalised Mediterranean)
    • Iacutendice Teoniacutemico
    • Iacutendice Antroponiacutemico
    • Iacutendice Toponiacutemico e Etnoniacutemico
    • Iacutendice de Fontes Antigas
Page 3: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 4: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 5: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 6: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 7: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 8: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 9: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 10: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 11: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 12: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 13: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 14: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 15: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 16: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 17: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 18: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 19: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 20: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 21: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 22: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 23: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 24: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 25: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 26: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 27: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 28: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 29: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 30: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 31: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 32: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 33: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 34: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 35: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 36: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 37: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 38: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 39: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 40: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 41: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 42: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 43: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 44: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 45: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 46: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 47: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 48: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 49: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 50: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 51: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 52: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 53: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 54: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 55: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 56: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 57: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 58: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 59: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 60: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 61: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 62: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 63: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 64: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 65: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 66: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 67: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 68: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 69: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 70: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 71: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 72: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 73: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 74: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 75: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 76: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 77: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 78: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 79: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 80: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 81: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 82: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 83: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 84: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 85: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 86: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 87: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 88: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 89: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 90: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 91: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 92: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 93: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 94: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 95: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 96: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 97: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 98: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 99: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 100: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 101: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 102: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 103: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 104: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 105: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 106: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 107: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 108: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 109: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 110: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 111: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 112: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 113: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 114: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 115: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 116: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 117: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 118: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 119: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 120: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 121: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 122: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 123: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 124: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 125: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 126: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 127: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 128: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 129: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 130: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 131: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 132: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 133: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 134: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 135: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 136: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 137: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 138: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 139: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 140: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 141: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 142: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 143: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 144: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 145: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 146: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 147: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 148: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 149: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 150: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 151: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 152: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 153: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 154: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 155: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 156: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 157: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 158: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 159: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 160: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 161: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 162: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 163: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 164: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 165: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 166: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 167: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 168: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 169: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 170: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 171: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 172: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 173: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 174: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 175: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 176: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 177: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 178: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 179: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 180: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 181: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 182: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 183: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 184: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 185: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 186: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 187: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 188: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 189: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 190: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 191: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 192: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 193: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 194: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 195: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 196: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 197: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 198: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 199: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 200: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 201: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 202: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 203: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 204: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 205: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 206: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 207: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 208: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 209: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 210: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 211: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 212: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 213: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 214: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 215: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 216: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 217: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 218: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 219: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 220: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 221: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 222: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 223: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 224: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 225: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 226: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 227: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 228: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 229: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 230: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 231: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 232: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 233: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 234: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 235: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 236: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 237: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 238: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 239: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 240: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 241: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 242: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 243: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 244: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 245: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 246: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 247: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 248: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 249: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 250: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 251: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 252: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 253: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 254: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 255: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 256: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 257: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 258: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 259: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 260: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 261: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 262: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 263: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 264: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 265: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 266: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 267: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 268: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 269: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 270: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 271: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 272: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 273: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 274: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 275: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 276: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 277: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 278: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 279: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 280: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 281: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 282: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 283: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 284: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 285: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 286: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 287: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 288: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 289: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 290: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 291: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 292: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 293: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 294: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 295: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 296: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 297: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 298: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 299: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 300: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 301: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 302: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 303: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 304: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 305: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 306: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 307: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 308: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 309: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 310: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 311: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 312: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 313: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 314: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 315: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 316: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 317: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 318: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 319: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 320: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 321: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 322: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 323: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 324: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 325: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 326: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 327: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 328: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 329: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 330: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 331: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 332: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 333: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 334: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 335: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 336: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 337: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 338: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 339: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 340: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 341: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 342: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 343: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 344: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 345: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 346: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 347: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 348: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 349: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 350: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 351: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 352: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 353: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 354: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 355: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 356: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 357: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 358: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 359: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 360: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 361: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 362: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 363: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 364: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 365: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 366: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 367: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 368: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 369: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 370: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 371: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 372: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 373: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 374: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 375: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 376: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 377: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 378: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 379: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 380: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 381: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 382: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 383: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 384: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 385: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 386: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar
Page 387: Arqueologias de Império - Universidade de Coimbra · 2019. 1. 28. · HVMANITAS SVPPLEMENTVM • ESTUDOS MONOGRÁFICOS ISSN: 2182-8814 Apresentação: esta série destina-se a publicar