Arruda O Seculo de Braudel

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/18/2019 Arruda O Seculo de Braudel

    1/7

     

    José Jobson de Andrade Arruda 

    Finalmente em 1980, passados trintalongos anos desde a primeira edição fran-cesa em 1949, o público da língua por-tuguesa passou a ter acesso ao clássi-co de Fernand Braudel, O  Mediterrâneoe o mundo mediterrânico na época deFilipe II (Lisboa — São Paulo, Publi-cações Dom Quixote e Livraria MartinsFontes, 1980).

    O tema: o Mediterrâneo 

    Braudel tinha uma relação apaixona-da com seu objeto de estudo, o Mediter-râneo. Reconhecia que o inconvenientede empreendimentos demasiadamentevastos é que acabamos por nos perderneles. Mas, confessava, por vezes, per-dia-se com prazer. Isto é o que se podechamar uma verdadeira interação comseu objeto de estudo!

    Não foi de imediato porém que vislum-brou o seu objeto. Como confidencioua seu mestre Lucien Febvre numa carta,pretendia estudar a política mediterrâ-nea de Filipe II — justo a Febvre, umespecialista na política de Filipe II emrelação ao Franco-Condado ¹ — procuran-do interessá-lo na sua empreitada. Emsua resposta Febvre demonstrava um realencantamento com o tema, mas no finaldo texto inquiria: "Filipe II e o Me-diterrâneo, belo objeto. Mas por que nãoo Mediterrâneo e Filipe II? Um outrogrande tema ainda? Pois, entre essesdois protagonistas, Filipe e o Mar Inte-rior, as importâncias não são iguais..."

    Definindo-se pelo Mediterrâneo comoo fulcro de sua análise, Braudel iniciouuma vastíssima pesquisa em arquivos ebibliotecas do mundo mediterrânico. Ti-nha nas mãos não apenas um objeto,como tantas vezes o fora nas mãos de

    ¹ FEBVRE, Lucien, Philippe  II et Ia Franche-Comté. Paris,Champion, 1912. 

    O objeto"Mediterrâneo":um caso de amor. 

    ABRIL DE 1984  37

  • 8/18/2019 Arruda O Seculo de Braudel

    2/7

    O SÉCULO DE BRAUDEL 

    O método:poeira deestrelas.

    2 Prefácio da Primeira Edição,p. 22. 

    ³ FEBVRE, Lucien, "HaciaOtra Historia" in, Comba-

    tes por la Historia, trad.esp., Editora Ariel, Barce-lona, 1974, p. 239. 

    4  BRAUDEL, Fernand,  La Méditerranêe et le Monde Méditerranêen a l'Époqu e dePhil ippe I I , 2. ª edição,Armand Colin, Paris, 1966,p. 721. 

    outros estudiosos. Pela primeira vez ummar ou, se preferirmos, um complexo demares, era promovido à categoria de dig-nidade e personagem histórica principal."Uma personagem complexa, embaraço-sa, excepcional, que escapa às nossas me-

    didas e definições", segundo o próprioBraudel, pois, "o Mediterrâneo nem se-quer é um mar, e sim um 'complexo demares', de mares pejados de ilhas, cor-tados por penínsulas, cercados por cos-tas rendilhadas; a sua vida está ligada àterra, a sua poesia é predominantemen-te rústica, os seus marinheiros são cam-poneses nas horas vagas; é o mar dosolivais e das vinhas, tanto como dos es-guios barcos a remo ou dos redondosnavios dos mercadores, e a sua histórianão pode ser separada do mundo terres-tre que o envolve, tal como a argila nãoo pode ser do artesão que a modela".2 

    Enfim, uma grande personagem, quedurante séculos foi o centro da civiliza-ção ocidental, condição que ainda man-tém no século XVI (apesar das descon-fianças em contrário), segundo compro-varam as pesquisas de Braudel, que nãoo encontra em decadência imediata. En-contra-o em franca ascensão.

    O resultado foi uma obra equilibradano seu conjunto, extremamente bem ilus-trada com portulanos, mapas, cartas, grá-ficos. Tapeçarias usadas com sensibilida-de histórica. Um estilo claro e despojado,sem declarações grandiloqüentes nempresunçosas profissões de fé.3  Denso dehistória e leve de estilo, que revela comnitidez cristalina qual halo resplandes-cente das telas iluminadas pela geniali-dade do artista. História ou literatura?Ambas as coisas. É um livro que adentraos sentidos e plasma a alma do leitor.

    O método: a dialética da duração  

    Braudel considerava que não existe ahistória perfeita e acabada. Mesmo suasconclusões, aquelas às quais chegara emseu estudo sobre o Mediterrâneo, deve-

    riam ser analisadas, discutidas, refeitas,pois somente nestes termos poderia avan-çar o conhecimento histórico. Para ele,as questões de enquadramento eram asmais cruciais, pois delas derivam todasas demais, na medida em que "delimi-tar é definir, analisar, reconstruir e, nes-te caso concreto, escolher e mesmo ado-tar uma filosofia da história".

    Em última instância, Braudel realizarano seu  Mediterrâneo o projeto de histó-ria preconizado pelos grandes mestresdos  Annales, especialmente Marc Bloche Lucien Febvre, aos quais sucedeu nadireção da revista. Segundo ele próprio

    dizia, sua dívida para com os  Annalesera imensa e pretendia saldá-la publica-mente. Entende-se, pois, a saudação quelhe fez Febvre em 1949. Atribui aolivro uma concepção nova de História.Uma verdadeira revolução. Uma históriaque se desenrola em vários planos incli-nados e superpostos, perpetuamente emcomunicação mas distintos. O limite ló-gico e necessário de uma decomposiçãodo Homem na sua unidade abstrata. Tra-ta-se de um "cortejo de personagens",como dizia Braudel.

    Era a primeira vez que um historiadorousava, nas suas reflexões, romper com

    a mais antiga e venerável das tradições:substituiu a ordem cronológica por umaordem metodológica, uma ordem dinâ-mica e genética ao mesmo tempo, bus-cando o mútuo esclarecimento dos trêsplanos em que se desenrola a ação. Umaordem que vai do mais profundo e domais constante ao mais superficial e efê-mero, pois a história "não pode ser so-mente os grandes planos inclinados, suasrealidades coletivas lentas a atar e desa-tar suas narrações. A história é tambémesta poeira de atos, de vidas individuaisligadas umas às outras — às vezes uminstante liberado, como se as grandescorrentes se rompessem". E Fernand

    Braudel conclui: "A história é a imagemda vida sob todas as suas formas. Elanão tem escolha".4  Trata-se de uma his-tória mais viva, mais pensada, mais efi-caz, e mais adaptada aos destinos domundo atual.

    Assim como o espaço, o Mediterrâ-neo, o tempo, a duração foi eleita à con-dição de personagem histórico. ParaBraudel a história se desenrola em trêsníveis concomitantes, mas diferentes.São três planos escalonados ou, o quese poderia distinguir no tempo da histó-ria, um tempo geográfico, um tempo so-cial e um tempo individual.

    A longa duração 

    Em termos do próprio Braudel, suaobra divide-se em três partes, cada umadas quais pretende ser uma tentativa deexplicação de conjunto.

    38 NOVOS ESTUDOS N.º 4 

  • 8/18/2019 Arruda O Seculo de Braudel

    3/7

    Na primeira parte — são 395 pági-nas — delineia-se uma história quaseimóvel, a história das relações entre ohomem e o meio que o rodeia, uma his-tória de lentas transformações, um eter-no recomeçar. A preponderância daquiloque permanece, que tende a uma duraçãosecular.

    A preponderância das linhas de forçadetectadas neste tempo, levou o próprioBraudel a denominar seu método porgeo-história. Não se verifica, porém, umaanálise acadêmica de geógrafo que mo-rosamente prepara o terreno para o tra-balho do historiador, deixando a basegeográfica como um mero "pano de fun-do". Ela fundamenta a explicação no seu"clima" humano.

    Ficamos impressionados com a riquezade detalhes. Detalhes que podem setransformar numa grande explicação.Dá-nos a impressão de conhecer palmoa palmo todas as montanhas que descre-

    veu, de tal maneira as faz reviver diantede nossos olhos, espicaçando nossa ima-ginação por meio de sua explicação má-gica. A montanha é uma fábrica de ho-mens para serviços de terceiros. Talvezisto se explique pela gama de recursosque possui e pelo fato de que as planí-cies eram geralmente áreas infectadas, deáguas estagnadas, geradoras de molés-tias como a malária. As montanhas fo-ram ocupadas primeiramente pelos ho-mens. As planícies ficaram por último.Existe entre elas, pois, uma contradi-ção de tempo histórico. Braudel mostraque um ou dois séculos são necessários

    para que uma planície nasça para a vidaativa, vença as águas selvagens e crie umsistema de estradas e canais. Mais tem-po ainda é necessário para que a regiãobaixa absorva os excedentes populacio-nais das regiões altas, onde iniciou-se umprocesso migratório. No século XVI, porexemplo, a montanha mediterrânea su-perpovoada explode em busca de liber-tação, confundindo-se esta guerra impre-vista com a guerra social, larvar e inter-minável à qual se tem aplicado o termobanditismo. A estas oscilações entre ohomem e o meio tem-se que acrescentaras flutuações econômicas, bastante len-tas, porém menos reduzidas. Todos esses

    movimentos sobrepõem-se regulando avida complexa dos homens, que somentepodem sobreviver se respeitarem estesfluxos e refluxos. O Mediterrâneo não éum mar. É uma sucessão de planícies lí-quidas que se comunicam entre si. Asilhas são mais numerosas do que se su-

    põe. Algumas são continentes em minia-tura. Pequenas ou grandes, todas elas seintegram num meio humano coerente,pois todas estão sujeitas a pressões aná-logas, por se situarem diante da mesmahistória geral do mar e responsáveis pelapermanente oscilação, muitas vezes bru-tal, entre os pólos opostos da moder-

    nidade e do arcaísmo. Possuem uma vi-da frugal, precária, permanentementeameaçada. Por estarem situadas nas maisimportantes rotas marítimas são afeta-das por todas as grandes convulsões que,normalmente, têm reflexos no rumo dasua evolução ulterior. Contudo, o pro-cesso mais comum de relacionamento dasilhas com o mundo é o da imigração.Todas as montanhas (e de resto muitasdas ilhas do Mediterrâneo são monta-nhas) são exportadoras de homens. Exis-tem porém, ilhas que não correspondema esta descrição clássica. São, pelo con-trário, verdadeiros mundos isolados, qua-

    se semi-ilhas, como a Grécia e outras re-giões que, cercadas por muralhas terres-tres, apenas no mar encontram uma saída.

    Ao pensar-se o Mediterrâneo é neces-sário rejeitar a definição geográfica clás-sica, vulgar e estreita, segundo a qualo Mediterrâneo vai do limite Norte daoliveira até o das grandes palmeiras doSul. Ora, segundo os dados da história,o Mediterrâneo é uma massa compactaque extravasa com regularidade dos seuslimites. O Mediterrâneo tem a todo mo-mento as dimensões que lhe dão os ho-mens, a cujos destinos se encontra ligado.

    A esse mundo espesso, compacto e maldelimitado, só se pode reconhecer a uni-dade de ser um encontro dos homens,uma liga de histórias. No coração destebloco humano atua uma poderosa uni-dade física, um clima unificador das pai-sagens e dos gêneros de vida. Por todolado se encontra, filha do clima e dahistória, a mesma trindade: o trigo, aoliveira, a vinha, ou seja, a mesma civi-lização agrária, a mesma vitória dos ho-mens sobre o meio físico.O Mediterrâneo só tem unidade pelomovimento dos homens, as ligações queimplica, as rotas que o conduzem. De1550 a 1600, nenhuma grande revolu-ção técnica revela-se, à primeira vista,

    nos transportes marítimos ou terrestres:os mesmos barcos de antes, os mesmoscomboios de bestas de carga, as mes-mas viaturas imperfeitas, os mesmos iti-nerários, as mesmas mercadorias trans-portadas. Pode concluir-se, com certeza,que se verificou durante a segunda me-

     

    Mediterrâneo,

    homem e meio

    ABRIL DE 1984  39

  • 8/18/2019 Arruda O Seculo de Braudel

    4/7

    O SÉCULO DE BRAUDEL 

    5  FEBVRE, Lucien, "HaciaOtra Historia", art. cit., p.238. 

    Mediterrâneo:

    o métododo homem.

    tade do século XVI, um aumento do trá-fego terrestre, até mesmo uma reabilita-ção de rotas abandonadas. Por outro la-do, não parece ter havido diminuição nafreqüência das rotas marítimas. Tendo,pois, havido um acréscimo geral.

    As cidades do Mediterrâneo aumen-tam de população, seu corpo cresce, su-peram crises e dificuldades; no entanto,todas as cidades assistem a restrições àsua liberdade em face da ampliação dosestados territoriais, que crescem aindamais depressa do que elas e as subjugam,anunciando uma nova idade da política eda economia. As cidades são motores, gi-ram, animam-se, estafam-se, recomeçamnovamente. A linha do destino prenun-cia o recuo que se acentuará no séculoXVII. Avanço iluminado, poder-se-ia di-zer dos motores urbanos de 1500 a 1600;mas, muito tempo antes do novo século,o acelerador está preso: avarias, boatossuspeitos multiplicam-se, se tudo aindaavança.

    A geografia historicamente decompos-ta por Braudel permite-nos captar a di-versidade e também a unidade mas, prin-cipalmente, a coesão da paisagem huma-na. Quando fala das montanhas mostra-nos este mundo de homens fortes, fami-liares, secretos, que vivem à margem dascorrentes comuns. Ao falar das planícieslíquidas revela como elas criam uma ci-vilização de conjunto. Das ilhas, estesmundos ameaçados, atormentados semcessar pela fome, sitiados pelos corsá-rios, o mundo da retaguarda, arcaico,

    guardião da economia primitiva e síntesedas grandes correntes das civilizações eque sabem viver em família, os arquipé-lagos. Assim, penínsulas, montanhas, pla-nícies, espaços líquidos, ilhas, clima, cor-rentes de tráfico, cidades, são vocábulosde geógrafo, mas Braudel não o é. É, istosim, um insigne historiador. O meio queele descreve não é um meio intemporal.É um meio mediterrâneo composto pe-los agrupamentos humanos da segundametade do século XVI. O meio no qual,durante esta segunda metade do século,evoluem os grupos de homens que mol-dam e são moldados pela natureza. Reali-

    za-se aí, de forma cristalina, a total in-teração homem-natureza.Braudel estudou, portanto, em primei-

    ro lugar as forças permanentes que ope-ram sobre as vontades humanas — quepesam sobre elas sem que possam se darconta — que as direcionam em múltiplossentidos. Um tipo de análise que jamaisfora tentado até então, que magicamente

    transforma a palavra Mediterrâneo nu-ma força diretora, canalizadora, que ace-lera e freia o jogo das forças humanas.5 

    A média duração 

    Sobre esta história imóvel, Braudeldistingue uma outra história caracteriza-da por um ritmo lento, cujo movimentooscila entre dez, vinte, cinqüenta anos.Esta é a história que ele gostaria de de-nominar a história social, a história dosgrupos e agrupamentos humanos. Trata-se de uma história lentamente ritmada.Economia, sociedade, civilização, o pró-prio subtítulo da revista  Annales depoisde 1945.

    Nas 393 páginas que se seguem, Brau-del começa por definir os instrumentosde medida da economia do século XVI.Conclui que a medida conjuntural do es-paço, peculiar ao século XVI, tem di-mensões quase permanentes. A idéia deprecisão nestas medidas deve ser aban-donada em favor de uma ordem de gran-deza relativa. Neste plano, o Mediterrâ-neo do século XVI, grosso modo, possuisempre dimensões equivalentes às doImpério Romano. Aos olhos dos contem-porâneos, portanto, o Mediterrâneo ti-nha dimensões aparentemente mais am-plas do que se nos apresenta hoje em dia.O espaço superdimensionado colocavaquestões graves para os impérios do sé-culo XVI. O Império Espanhol era, na

    época, um empreendimento colossal detransportes por mar e por terra, exigin-do constantes deslocamentos de tropas,transmissão quotidiana de ordens e de no-tícias. A política de Filipe II exige estasligações, precisa destes exércitos em mo-vimento, destas transferências de metaispreciosos, circulação de letras de câmbio.São coisas essenciais que explicam umaboa parte das atitudes políticas de Fili-pe II e a importância que a França ti-nha para ele. É uma luta constante con-tra o espaço. Não raro inglória. O Im-pério Espanhol, mal situado, dada a suadispersão européia e mundial, empregou

    aí o máximo de suas forças, organizan-do-se melhor do que qualquer outro paraestas tarefas vitais de transporte e co-municações. Não há, pois, dúvidas deque o combate contra o tempo no Impé-rio Espanhol foi um duro combate, oque evidencia a medida do século XVI.No quadro da economia o espaço ur-bano tem um papel decisivo. As praças

    40 NOVOS ESTUDOS N.º 4 

  • 8/18/2019 Arruda O Seculo de Braudel

    5/7

    mercantis são os motores essenciais davida econômica. Quebram a hostilidadedo espaço, lançam as grandes circulaçõesque, à velocidade permitida pela época,triunfam custe o que custar sobre asdistâncias.

    O Mediterrâneo, de fato, estava se-meado de zonas de economia semifecha-

    da, mundos estreitos ou amplos organi-zados para eles mesmos — com suasinumeráveis medidas locais, seus hábitos,seus dialetos. O número dessas autar-quias econômicas é impressionante.

    Era um mundo que não comportavamais de sessenta ou setenta milhões dehomens. O ritmo do crescimento demo-gráfico acelerou-se subitamente no séculoXVI. Seria possível dizer, talvez, quea população dobrou entre 1500 e 1600,um aumento de 100%. Seus problemasde imigração foram sensivelmente agra-vados. Talvez, se o Mediterrâneo nãofosse aberto para todos os lados e, es-

    pecialmente, para o Oeste e para o Atlân-tico, teria resolvido sozinho seus gravesproblemas de excedente populacional,repartindo-os através de seu espaço.

    O trigo por si só determina a esma-gadora superioridade da produção agrí-cola sobre todas as outras. A agriculturaé a primeira indústria do mar interior.Um balanço industrial levar-nos-ia aconsiderar que, dos 60 a 70 milhões dehomens, cerca de 3 milhões dedicavam-se ao artesanato e dele viviam, incluindona categoria artesanato um amplo espec-tro de atividades humanas produtivas.Dominando na atividade manufatureirao sistema verlag, pelo qual o mercadorou comanditário, o verlager, adiantavaao artesão a matéria-prima para que elea transformasse, em troca de um saláriopreviamente fixado. Este sistema produ-tivo mostrou-se extremamente persisten-te e capaz de resistir às situações maisadversas. O universo do trabalho arte-sanal é bastante mesclado. Raramentesão originários da própria região, caracte-rizando-se numa mão-de-obra itinerante,o que se explica por sua especialização.

    O volume das transações mercantisque passam pelo mercado é reduzido. Asformas elementares — troca, autoconsu-mo — ultrapassam de longe as opera-

    ções de mercado, o que torna praticamen-te impossível medir o ritmo da acumula-ção e dos rendimentos. O comércio alonga distância exige lucros extremamen-te diferenciados, mas o volume dos ne-gócios de trigo tem muito maior impor-tância do que a pimenta, se bem que

    seja esta a produzir os lucros mais ele-vados, emergindo aí, o "alto" capitalis-mo que somente entra em ação quandotem a expectativa de vultosos lucros. NoMediterrâneo não vemos com clarezaestas altas esferas do capitalismo.

    Os estados são os maiores empreen-dimentos do século. Firmam-se cada vez

    mais pelo seu papel de grandes coletorese redistribuidores de rendimentos, apo-derando-se, por meio de impostos, davenda dos cargos, das rendas, dos con-fiscos e de uma enorme parte dos diver-sos produtos nacionais.

    Falando dos metais preciosos e daeconomia monetária, Braudel diz que seas evidentes tentativas de revolução so-cial fracassaram, sequer se formularamclaramente, foi devido a uma relativa-mente intensa pauperização. Uma tipo-logia dos salários, bastante precária, le-varia a considerar que abaixo de vinteducados de salário mensal um homem

    é miserável; acima de vinte, até quaren-ta ducados é dito "pequeno"; de quaren-ta a cento e cinqüenta ducados é "razoá-vel". Em suma, muitos pobres, muitosmiseráveis, um vasto 'proletariado' aoqual a história aos poucos concede o seulugar. Um 'proletariado' que pesa cadavez mais à medida que o século se aca-ba. Alimentará pilhagens persistentes,verdadeira revolução social, longa, inú-til. A miséria geral resolverá o conflito,atirará impiedosamente pobres e deser-dados para o plano zero da vida.

    Da página 509 em diante, desenrola-se o movimento dos metais preciosos,das moedas e dos preços, onde apareceminúmeros gráficos e organogramas elabo-rados por Braudel e Spooner para a Cam-bridge Economic History of Europe,acrescentados ao livro após a segundaedição.6  Da página 593 até o final dotexto, analisa aspectos do comércio edo transporte, interessando-se sobretu-do por uma descrição de conjunto, naqual observa a crise da pimenta, a crisedo trigo e a invasão do Mediterrâneo pe-los navios do Atlântico, implicando numvasto círculo de ligações que envolvemo Mediterrâneo, o Atlântico, o canal daMancha, o Mar do Norte e o Báltico,Braudel atesta a permanência, durante

    todo o século XVI, da rota Ormuz e Ale-po para o tráfico de especiarias. Analisaas datas definitivas do comércio do extre-mo oriente com o Mediterrâneo, alçan-do muito além do ano de 1600, a tãodecantada crise — que muitos historia-dores atribuíam ao início do século XVI

    6   BRAUDEL, Fernand, eSPOONER, Frank, "Prices inEurope from 1450 to 1750",in, the Cambridge Economic His to ry of Eu rop e, vol. IV.The Economy of ExpandingEurope in the Sixteenth andSevenleenth Century, E.E.Rich e CH. Wilson editores,Cambridge University Press,1967, pp. 378-486. 

    ABRIL DE 1984  41

  • 8/18/2019 Arruda O Seculo de Braudel

    6/7

    O SÉCULO DE BRAUDEL 

    É história acurta duração? 

    7 Prefácio da Primeira Edição,p. 25. 

    8 FEBVRE, Lucien, ibid.,p. 239. 

    » BRAUDEL, Fernand, O me-diterrâneo..., p. 399. 10  BRAUDEL, Fernand, "A

    longa duração", in, Históriae Ciências Sociais, trad. port.,Editorial Presença, 1972, p.7-70. 11  BRAUDEL, Fernand, "His-tória e Sociologia", in, Es-critos sobre a História, trad.port., Editora Perspectiva,São Paulo, 1978, p. 98. 

    — da cidade de Veneza, quando a velharainha do Mediterrâneo teria sido des-tronada pelo Rei Oceano.

    Nesta segunda parte, portanto, Brau-del põe em relevo as forças particulares,animadas por uma certa constância —

    forças impessoais e coletivas — mas,desta vez, fechadas e localizadas, queatuam no Mediterrâneo durante umaépoca, a duração da vida de Filipe II.

    A curta duração 

    Eis, então, o último tempo. O tempocurto, fugaz, breve, contingente. É a his-tória tradicional, que não dá a dimensãodo homem mas do indivíduo. Uma histó-ria da superfície, das "vagas levantadaspelos poderosos movimentos das marés,uma história com oscilações breves, rá-

    pidas, nervosas. Ultra-sensível por defi-nição, o menor movimento ativa todosos instrumentos de medida. Com todasestas características, é de todas a maisapaixonante, a mais rica em humanida-de e, também, a mais perigosa".7 

    Tradicionalmente colocada em primei-ro lugar, foi, nesta obra, relegada ao úl-timo plano, o terceiro, a justo título. Éum mundo perigoso para o historiador.Um mundo cujos perigos poderemosexorcizar, se tivermos previamente estu-dado as grandes correntes subjacentes,freqüentemente silenciosas, nas quais osentido só se revela se trabalharmos com

    amplos períodos de tempo. Os aconteci-mentos espetaculares não passam muitasvezes de instantes, de manifestações dosgrandes destinos e, somente neles, encon-tram explicação cabal. São o arfar res-piratório das massas oceânicas.

    Aqui aparece a guerra como pontoculminante das linhas de força que aela conduzem, nela se cristalizam e, aomesmo tempo, dão-lhe compreensão. Éo tempo rápido dos tratados, da políticacontraditória, uma seqüência de atos in-dividuais, de destinos, de acidentes. Aguerra entre espanhóis e turcos, o con-fronto político e físico entre a Espanha

    dos Habsburgo e o Império Turco-Oto-mano, que se enfrentam pela suprema-cia no Mediterrâneo, tendo por clímaxa batalha de Lepanto. Supremo aconteci-mento. Antológica descrição de Braudel.

    Segue-se a trégua hispano-turca, os in-cidentes europeus, os acontecimentosmarítimos. Desfilam as grandes perso-nagens, cinzeladas por Braudel: Carlo

    V, Filipe II, Pio V, D. João, Farnesio,Granvelle. Esculturas debuxadas queBraudel apenas reverencia de passagem,e somente após ter estabelecido solida-mente suas bases nas duas primeiras uni-dades, reduzindo os acontecimentos às

    suas justas proporções. De fato, os acon-tecimentos, sob o efeito imanente dasforças profundas da longa duração, in-fluenciados e dirigidos pelas forças está-veis da média duração, bordam sobre asestruturas e ao acaso, as mais surpreen-dentes variações.8 

    Recuperaçõeshistórico-metodológicas 

    De fato, no dizer do próprio Braudel,este livro responde a propósitos contra-ditórios. "Interessa-se por estruturas so-ciais, portanto, por mecanismos de lentautilização. Interessa-se, também, peloseu movimento. E mistura, finalmente,aquilo a que o nosso calão chama estru-tura e conjuntura, o imóvel e o que semove, a lentidão e o excesso de velo-cidade".9 

    Num texto teoricizante de 195810

    Braudel recolocava a questão das rela-ções temporais, afirmando que, para ele,nada havia de mais importante, no cen-tro da realidade social, do que a viva eíntima oposição, infinitamente repetida,entre o instante e o tempo lento no es-paço. A duração social, esses tempos

    múltiplos e contraditórios da vida doshomens, são a substância do passado.  Ahistória é a dialética da duração.11 

    Efetivamente, esta dialética está tãovisceralmente integrada nas articulaçõesmentais de Braudel que o próprio títuloda obra em questão revela as durações,consciente ou inconscientemente. O Me-diterrâneo é a longa duração. A época,cuja extensão se convencionou estipularem torno de quarenta anos, é a médiaduração. Filipe II, o contingente, o ime-diato, o tempo curto.

    Extremamente concentrado na dialéti-ca da duração, Braudel, conscientemen-

    te, negligenciou a dialética das relaçõessociais posta pelo marxismo. Dizemosde forma consciente porque, no já cita-do artigo sobre a "Longa Duração", dizque o gênio de Marx provinha do fatode ter sido ele o primeiro a elaborar mo-delos a partir da longa duração histó-rica. Teve a força criadora da análisemais poderosa do século passado, mas

    42 NOVOS ESTUDOS N.º 4 

  • 8/18/2019 Arruda O Seculo de Braudel

    7/7

    permaneceu limitado porque os mode-los foram imobilizados em sua singele-za, concedendo-lhes um valor de lei, deexplicação prévia, automática, aplicávela todos os lugares e a todas as socieda-des. Para ele, pelo contrário, caso as aná-lises fossem devolvidas às águas mutá-veis do tempo, o seu sustentáculo mani-

    festar-se-ia, porque é sólido e muito bemconstruído.12 Está bem claro. Seu método foi imo-

    bilizado por seus seguidores. Não pelopróprio Marx, que fez suas análises car-regadas de uma profunda historicidade.Nem por todos os seus marxistas, ape-nas os mais esquemáticos, diga-se de pas-sagem.

    História dialética da duração. Histó-ria dialética das relações sociais. Cami-nhos diversos, em larga medida antagôni-cos, no afã de superar o imediatismo, oempirismo, a preponderância do objeto.Vê-se, pois, na postura teórica de Brau-

    del, a tentativa de ultrapassar as mani-festações mais imediatas e captar, quemsabe, o que os marxistas denominariamde as últimas determinações. São, nofundo, variadas formas de aproximaçãodo objeto. Diferentes níveis de acerca-mento e enfoque. Um faz-se pela dura-ção, pelo elo tempo-espaço e o outropelas relações sociais de produção. In-teressante notar que Braudel não pen-sa sua postura metodológica como a últi-ma palavra. O juízo final. Considera-asomente uma das possibilidades da lin-guagem comum em vias de uma confron-tação das ciências sociais.

    A lamentar-se apenas, que, em seuviés interpretativo, não se desse o tra-balho de refinar os instrumentos de com-preensão do processo de produção, assimcomo fez em relação ao equipamento in-dispensável à mensuração do tempo. Defato, seguindo as pegadas de LucienFebvre que define, primeiramente, autensilhagem mental do século XVI an-tes de interrogar-se sobre a religião deRabelais13 , Braudel não se questionousobre o sentido da expressão capitalis-mo, que utiliza da forma mais vaga pos-sível. Fala em capitalismo ágil, grandecapitalismo, enorme capitalismo, alto ca-pitalismo, capitalismo mesclado, capita-

    lismo nórdico. Quando tenta precisarmelhor o sentido do seu capitalismo,identifica-o ao lucro, à acumulação decapital, o que transforma o capitalismonuma longuíssima duração, pois seria en-contrável na mais remota antigüidade,onde quer que, pela primeira vez, uma

    atividade econômica tivesse sido condu-zida com o definido propósito de propi-ciar lucro. Apesar de ter produzido pos-teriormente uma obra notável sobre avida material dos séculos XVI a XVIII,o conceito de Braudel sobre o capitalis-mo não sofreu alterações estruturais,permanecendo preso nos limites determi-

    nados na obra em questão.14

     Questões fundamentais? Talvez. Mas

    que em nada empanam o brilho da obrade Fernand Braudel. Assim como se falano Tawney's Century, para referir-se aodomínio que este mestre da historiogra-fia inglesa exerceu sobre a produção his-tórica relativa à segunda metade do sé-culo XVI, na Inglaterra, nada mais justodo que se falar no Siècle de Braudel,quando pensamos no conjunto da proble-mática histórica do mundo mediterrâneoque ele criou, ou recriou.

    Nenhum trabalho de história da nos-sa época fez tanto pela alteração da pers-

    pectiva, não somente da história do Me-diterrâneo, mas e, sobretudo, da tarefado historiador. Nestes termos, um livrosem paralelo. H.G. Koenigsberger obser-vou, com propriedade, que nenhum estu-dioso sério de história poderia passarsem uma cópia desse livro de FernandBraudel. Ou, diríamos, ao menos sem aleitura de uma centena de suas belas pá-ginas, não importa quais.

    Se me fosse perguntado qual o conse-lho que daria aos jovens estudiosos dehistória a propósito deste livro, reprisa-ria, fazendo minhas as palavras de Lu-cien Febvre ao anunciar ao mundo o li-vro de Fernand Braudel: "Eu gostariade dizer, sobretudo, aos jovens: leiam,releiam, meditem sobre este belo livro.Longamente. Façam dele um companhei-ro. O que vocês aprenderão sobre ascoisas, novas para vocês, sobre o mundodo século XVI é incalculável. Mas o quevocês aprenderão sobre os homens emsi, sobre a sua história e sobre a própriaHistória, sua verdadeira natureza, seumétodo e seu objeto — vocês jamais po-deriam imaginar.

    Este não é um livro que instrui. Éum livro que engrandece".

    José Jobson de Andrade Arruda é professor do Departa-mento de História da USP. 

    Novos Estudos Cebrap, São Paulo,v. 2, 4, p. 37-43, abril 84 

    12   BRAUDEL, Fernand, "Alonga duração", art. cit., p.66. 

    13 FEBVRE, Lucien, O Pro-blema da Descrença no Sé-culo XVI. A Religião de Ra-belais. Trad. port., Lisboa,Editorial Início, s.d. 

    14  BRAUDEL, Fernand, Civi-lization Matérielle et Capita-lism, Paris, Armand Colin,1967. Esta mesma obra apa-rece como o primeiro volumede um conjunto de três sobo título geral Civilisation Matérielle, Economic et Capi-talisme, Paris, Armand Colin,1980. O primeiro volume foi

    traduzido para o portuguêse integra a Coleção Rumos do Mundo, volume X, Civilizaçãomaterial e Capitalismo, tra-dução de Maria AntonietaMagalhães Godinho, EdiçõesCosmos, Lisboa, 1970. À pá-gina 479 explicita sua visãode capitalismo, uma espéciede terceiro andar imbuído deum relativo movimento, quese assenta sobre "estruturaspouco flexíveis, as da vidamaterial e, não menos, as davida econômica ordinária". 

    Braudel,demiurgo doMediterrâneo 

    ABRIL DE 1984  43