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AURORA ano IV número 6 AGOSTO DE 2010________________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora 71 NOTAS SOBRE O CONCEITO DE INDIVÍDUO NA TEORIA SOCIAL CONTEMPORÂNEA: Um percurso a partir das obras de Stuart Hall, Norbert Elias, Richard Sennett e Zygmunt Bauman RODOLFO ARRUDA i Resumo: O artigo investiga o modo como alguns autores da Teoria Social contemporânea (Stuart Hall, Norbert Elias, Richard Sennett e Zygmunt Bauman) desenvolveram diversas críticas à noção de Indivíduo pertencente ao pensamento social clássico. Em comum, estes pensadores consideraram necessário reformular o arcabouço teórico legado pela Sociologia Moderna, julgando que muitos dos instrumentais teóricos utilizados por ela não são mais capazes de captar a complexidade e a multiplicidade dos processos de individualização que ocorrem na época contemporânea. Com base numa leitura aberta destas diversas críticas levantadas por estes autores, o artigo busca demonstrar que o conjunto destas objeções pode ser visto como uma nova forma de representar a noção de Indivíduo, que atribui poderes, funções e expectativas a estes novos sujeitos muito diferentes daquelas apresentadas pelo pensamento clássico. Após apresentação deste novo quadro conceitual concedido à categoria de Indivíduo no mundo contemporâneo, o artigo se encerra colocando para a discussão quais os novos problemas e os desafios contidos no surgimento deste novo modelo. Palavras-chave: Teoria Social Contemporânea, Indivíduo, Identidade e Vida Líquida. Abstract:: The paper investigates how some authors of contemporary Social Theory (Stuart Hall, Norbert Elias, Richard Sennett and Zygmunt Bauman) developed several criticisms of the notion of Individual belonging to the classic Social Thought. In common, these thinkers consider it necessary to reformulate the theoretical legacy of the Modern Sociology, believing that many of the theoretical frameworks used by it are no longer able to capture the complexity and multiplicity of individualization processes occurring in the contemporary era. Based on an open reading of these various criticisms raised by these authors, the paper demonstrates that all these objections can be seen as a new way to represent the notion of individual, which gives powers, functions and expectations of these new Individual very different from those presented by classical thought. After presentation of this new conceptual framework given to the category of Individual in the contemporary world, the article concludes by putting to discuss what new problems and challenges contained in the emergence of this new model. Key Words: Contemporary Social Theory, Individual, Identity, Liquid Life. Líquido-moderna é uma sociedade em que as condições sob as quais agem os seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo. Zygmunt Bauman – Vida Líquida INTRODUÇÃO este artigo, nosso objetivo é constituir um quadro panorâmico dos contornos do Indivíduo contemporâneo a partir da investigação das figuras oferecidas nas pesquisas e análises de alguns autores significativos da Teoria Social 1 atual. Partimos da suposição de 1 Utilizamos o termo Teoria Social (a exemplo de muitos autores, de diferentes tradições teóricas – britânica e americana, sobretudo – tais como Anthony Giddens, Ulrich Beck, Jeffrey Alexander, Richard Sennett, Axel Honneth, Zygmunt Bauman, entre outros) que se caracteriza, acima de tudo, pela reflexão meta-teórica sobre o pensamento sociológico moderno e suas categorias, e também por um tipo de debate interdisciplinar que reabre fronteiras entre disciplinas N

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    NOTAS SOBRE O CONCEITO DE INDIVDUO NA

    TEORIA SOCIAL CONTEMPORNEA:

    Um percurso a partir das obras de Stuart Hall, Norbert Elias, Richard Sennett e Zygmunt Bauman

    RODOLFO ARRUDAi

    Resumo: O artigo investiga o modo como alguns autores da Teoria Social contempornea (Stuart Hall, Norbert Elias, Richard Sennett e Zygmunt Bauman) desenvolveram diversas crticas noo de Indivduo pertencente ao pensamento social clssico. Em comum, estes pensadores consideraram necessrio reformular o arcabouo terico legado pela Sociologia Moderna, julgando que muitos dos instrumentais tericos utilizados por ela no so mais capazes de captar a complexidade e a multiplicidade dos processos de individualizao que ocorrem na poca contempornea. Com base numa leitura aberta destas diversas crticas levantadas por estes autores, o artigo busca demonstrar que o conjunto destas objees pode ser visto como uma nova forma de representar a noo de Indivduo, que atribui poderes, funes e expectativas a estes novos sujeitos muito diferentes daquelas apresentadas pelo pensamento clssico. Aps apresentao deste novo quadro conceitual concedido categoria de Indivduo no mundo contemporneo, o artigo se encerra colocando para a discusso quais os novos problemas e os desafios contidos no surgimento deste novo modelo. Palavras-chave: Teoria Social Contempornea, Indivduo, Identidade e Vida Lquida. Abstract:: The paper investigates how some authors of contemporary Social Theory (Stuart Hall, Norbert Elias, Richard Sennett and Zygmunt Bauman) developed several criticisms of the notion of Individual belonging to the classic Social Thought. In common, these thinkers consider it necessary to reformulate the theoretical legacy of the Modern Sociology, believing that many of the theoretical frameworks used by it are no longer able to capture the complexity and multiplicity of individualization processes occurring in the contemporary era. Based on an open reading of these various criticisms raised by these authors, the paper demonstrates that all these objections can be seen as a new way to represent the notion of individual, which gives powers, functions and expectations of these new Individual very different from those presented by classical thought. After presentation of this new conceptual framework given to the category of Individual in the contemporary world, the article concludes by putting to discuss what new problems and challenges contained in the emergence of this new model. Key Words: Contemporary Social Theory, Individual, Identity, Liquid Life.

    Lquido-moderna uma sociedade em que as condies sob as quais agem os seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessrio para a consolidao, em hbitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida lquida, assim como a sociedade lquido-moderna, no pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo. Zygmunt Bauman Vida Lquida

    INTRODUO

    este artigo, nosso objetivo constituir um quadro panormico dos contornos do Indivduo contemporneo a partir da investigao das figuras oferecidas nas

    pesquisas e anlises de alguns autores significativos da Teoria Social1 atual. Partimos da suposio de 1 Utilizamos o termo Teoria Social (a exemplo de muitos autores, de diferentes tradies tericas britnica e americana, sobretudo tais como Anthony Giddens, Ulrich Beck, Jeffrey Alexander, Richard Sennett, Axel Honneth, Zygmunt Bauman, entre outros) que se caracteriza, acima de tudo, pela reflexo meta-terica sobre o pensamento sociolgico moderno e suas categorias, e tambm por um tipo de debate interdisciplinar que reabre fronteiras entre disciplinas

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    que h um nmero grande de representaes sobre os papis, os poderes, atribuies e expectativas quanto ao papel dos indivduos no mundo contemporneo e de que no existe consenso nas Cincias Sociais sobre que tipo de modelo mais apropriado para uma melhor compreenso dos problemas e desafios apresentados pelo contexto hodierno. Diante disso, o intuito do artigo no elucidar a questo ou propor uma linha interpretativa para o problema, mas aproveitar a multiplicidade de trajetrias analticas proporcionada pela sociologia contempornea e tentar esboar um quadro de como esses debates constroem um quadro-terico2 sobre a noo de Indivduo contemporneo.

    Uma pergunta que poderia caracterizar de modo mais simples o nosso objetivo, poderia ser disposta de modo informal: Como a Sociologia contempornea tem representado o Indivduo, no contexto desses novos problemas apresentados pelo mundo Ps-moderno3?, ou, de modo semelhante, Qual a figura de Indivduo podemos visualizar aps realizarmos uma investigao, no interior das obras e das anlises de alguns autores da Teoria Social ? As perguntas convergem para uma curiosidade comum: Qual a imagem de Indivduo que nos oferecem alguns dos autores mais destacados da sociologia contempornea?, Trata-se de uma viso otimista, que atribui uma gama de responsabilidades e poderes, tais como a autonomia e o poder emancipatrio de reformular as relaes sociais problemticas atuais4, ou, uma viso mais

    tradicionais como Sociologia, Antropologia, Psicanlise e Economia, buscando expandir o referencial terico e metodolgico do pensamento social contemporneo. Muitas vezes a Teoria Social representada como uma especialidade dentro da Sociologia, mas esta forma de represent-la no pode desconsiderar o fato de que a Teoria Social se coloca acima dos cnones da disciplina, justamente para poder realizar essa auto-crtica aos prprios limites disciplinares. Mais detalhes in Alexander (1987). 2 O termo quadro-terico aqui empregado no possu nenhum valor conceitual. apenas um termo aqui criado para representar uma espcie de mosaico conceitual, algo como utilizar diversas representaes e conceitos sobre um mesmo assunto, para elaborar uma imagem modelo ao final dos diversos materiais utilizados. 3 Certamente, a discusso aqui apresentada pode ser vista como uma retomada de um debate que marcou de modo significativo a imaginao sociolgica nos anos 1980-1990, que foi o confronto entre os defensores da corrente chamada de Ps-modernidade e os autores que criticavam a ausncia de critrios e evidncia conceitual do termo. Considera-se que a resoluo deste conflito foi muito mais uma trgua entre os contendores do que propriamente uma definio para um dos dois lados, tal como uma nova sntese poderia sugerir. Diante deste impasse e das impresses pejorativas que o termo atraa, muitos tentaram uma reformulao e melhor detalhamento, como so os casos de Giddens, modernidade tardia, e, Bauman, modernidade lquida, entre outros. Neste texto ns consideramos que existem diferenas entre as acepes, mas nos manteremos fixados na questo do conceito de Indivduo contemporneo deixando essas diferenas para uma discusso posterior. 4 Neste sentido, possvel considerar o posicionamento de autores do mesmo perodo que adotaram uma abordagem oposta, considerando o contexto recente no como uma ruptura e uma desestruturao do projeto da Modernidade, mas sim como um projeto inacabado, no qual possvel, com algumas reelaboraes retomar o seu desenvolvimento. Tal o exemplo de Habermas, quando enfatiza a importncia da emancipao e do reconhecimento para o sujeito contemporneo.

    ctica, que aponta para a reduo das possibilidades dos sujeitos de tomarem ao efetiva dentro de suas determinaes, devido a uma reformulao de suas dimenses e seu processo constitutivo?

    Este artigo expe o resultado de um conjunto de leituras de alguns autores contemporneos da Teoria Social, no qual o foco de investigao recai sobre os instrumentos tericos utilizados pelos pesquisadores para representar o papel e a atuao dos agentes individuais no interior das explicaes e interpretaes de carter sociolgico.

    A inteno de realizar essa leitura panormica que investiga o instrumental terico nas anlises sociolgicas contemporneas parte de algumas percepes acerca dos problemas enfrentados no campo investigativo destas reas.

    Um primeiro plano a ser identificado o fato de que nos debates tericos das Cincias Humanas, categorias tais como Indivduo, e suas noes correlatas, Identidade, Subjetividade, Intimidade, etc., encontram-se em situao de constante indefinio e discusso quanto a sua verdadeira extenso e acerca de seus possveis poderes explicativos (ALEXANDER, 1997). As Cincias Humanas, como um conceito amplo que incorpora diversas correntes tericas, so vistas como uma disciplina que no possui uma unificao de modelos investigativos a respeito das categorias principais que constituem a anlise dos fenmenos sociais e sua conseqente explicao. Sob este aspecto, a prpria Cincia Social representa essa caracterstica como um distintivo da disciplina, que no negativo, mas que essa constante busca por mtodos e por rigor conceitual da prpria natureza crtica desta rea de conhecimento e importante para a sua renovao. Embora seja admitida essa coexistncia (vista, muitas vezes, como apontado acima, como um elemento positivo) de modelos interpretativos, isto, por sua vez, no inviabiliza as motivaes de alguns pensadores de discutirem em profundidade esses modelos e de buscarem snteses e um mapeamento das linhas tericas. Essa busca de uma sntese provisria acerca dos modelos tericos de representao do Indivduo na poca contempornea no pode ser desvinculada das transformaes histricas e sociais que pautam o contexto atual. Ao lado da discusso metodolgica que envolve os autores, coerente admitir que esses debates tambm esto pautados na tentativa de compreender como as mudanas sociais produzem novos modelos de individualidade e desestruturam modelos de representao antigos que no teriam mais poder explicativo na sociologia.

    Consideramos que essa dimenso extremamente vlida e importante neste debate, mas por questes de escolha temtica deste artigo, preferimos deixar essa problemtica provisoriamente ausente.

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    Sob este aspecto, o levantamento destes modelos tericos tambm pode ser entendido como anlises que tentam articular como as diversas transformaes do mundo contemporneo esto forjando novos processos de constituio dos sujeitos e novas dimenses de representao dos Indivduos. Para as dimenses que este artigo comporta, na execuo desta proposta, traamos um pequeno encadeamento terico em que possvel visualizar uma interpretao atual destas reformulaes. Como no realizamos aqui uma investigao profunda da constituio e de desenvolvimento da noo de Indivduo no pensamento social, ns utilizamos um conjunto de referncias distintas e heterogneas de alguns autores (sobretudo os trs primeiros sugeridos, Hall, Elias e Sennett), como um caminho possvel para se abordar a questo; apenas como mais uma forma de elaborar a problemtica do sujeito no contexto presente. Para dar incio ao problema das diversas representaes de Indivduo no interior das teorias sociolgicas clssicas, utilizamos as anlises realizadas por Stuart Hall (2005) na obra A identidade Cultural na ps-modernidade. Essa contribuio levemente pontuada por alguns elementos de Jeffrey Alexander (1997) acerca da Teoria Social e o constante debate terico-metodolgico que a caracteriza, juntamente com a possibilidade de confluncia terica de referenciais heterogneos. Com as noes metodolgicas explicitadas, o artigo segue com uma abordagem seletiva de autores que propem um quadro-terico acerca das dimenses deste possvel novo indivduo contemporneo.

    Tal elaborao se inicia com Norbert Elias, que mostra como a representao do Indivduo como uma entidade autnoma reside numa equivocada dicotomia indivduo versus sociedade, que no da conta de captar a especificidade das individualidades atuais e que se caracteriza pela sobrevalorizao da identidade-eu. Em sentido complementar, Richard Sennett contribui para o debate resgatando o modo pelo qual se desenvolveu esse inchamento da esfera da intimidade. Na obra, O declnio do Homem Pblico, Sennett (1988) demonstra como a depreciao da ao dos indivduos na esfera pblica promoveu a liquidao da Cultura Pblica e contribuiu, juntamente com o avano das experincias da alienao e do consumo, para a expanso da esfera da intimidade e um conjunto de problemas a ela relacionados. O quadro-terico da investigao pretendida neste artigo se completa com as metforas da Modernidade Lquida e da Vida Lquida oferecidas por Zygmunt Bauman. Essas imagens, de acordo com a trajetria aqui empreendida, oferecem as idias-chave para a elaborao de um modelo de

    representao do Indivduo na poca contempornea. Esse modelo, como se ver mais adiante, postula um Indivduo fragmentado que possui, dentre suas principais caractersticas, a quase impossibilidade de se constituir em bases estruturais/institucionais e referncias culturais/valorativas slidas e confiveis. O SUJEITO MODERNO E OS MODOS TRADICIONAIS DE REPRESENTAO DO INDIVDUO

    Para contextualizar o tipo de discusso que pretendemos realizar neste artigo, tomamos como ponto de apoio algumas anlises realizadas por Hall (2005), o qual, por meio de um trabalho que discute a questo da Identidade na ps-modernidade, oferece alguns modelos de representao do Indivduo, utilizados em pocas distintas.

    Estes modelos extrados da anlise de Hall (2005) contribuem para marcar essa reconfigurao dos novos contornos do Indivduo contemporneo. a partir deste contraste de modelos de representao que julgamos ser possvel visualizar as especificidades do quadro-terico contemporneo que se pretende elaborar com a pesquisa dos autores atuais. Hall (2005) chama a ateno para trs modos, aos quais o autor se refere: 1) o sujeito do Iluminismo; 2) o sujeito Sociolgico, e, 3) o sujeito ps-moderno. Para uma breve exposio do significado destes modelos, possvel considerar: 1) No primeiro caso, o sujeito do Iluminismo se baseia numa concepo abstrata de indivduo centrado, unificado e dotado de capacidades de razo, de conscincia e de ao, cujo centro consistia num ncleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo contnuo ou idntico a ele ao longo da existncia do indivduo (HALL, 2005). 2) Em seguida, na noo de sujeito sociolgico, j possvel visualizar uma representao do indivduo mais complexa, no qual esse sujeito j no mais autnomo, abstrato e essencializado. No modelo sociolgico, o indivduo representado como resultante de um processo complexo de interao entre o eu e a sociedade, numa interao intensa que articula espao interior (subjetivo, ntimo, da conscincia individual) com o espao pblico dos papis sociais, das representaes e atribuies recprocas que se realizam em situao de interao (HALL, 2005). 3) Das figuras apresentadas, no causa estranheza o fato de que os modelos Iluminista e o sociolgico tradicional tenham sofrido crticas

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    contundentes e reformulaes, com o objetivo de superar a superficialidade de suas projees.

    Argumenta-se, entretanto, que so exatamente essas coisas que agora esto mudando. O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estvel, est se tornando fragmentado; composto no de uma nica, mas de vrias identidades, algumas vezes contraditrias ou no-resolvidas. Correspondentemente, as identidades que compunham as paisagens sociais l fora e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as necessidades objetivas da cultura, esto entrando em colapso, como resultado de mudanas estruturais e institucionais. O prprio processo de identificao, atravs do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisrio, varivel e problemtico. (HALL, 2005, pg. 12)

    neste terceiro eixo, a saber, a idia de sujeito ps-moderno, que se realiza a nossa investigao. Hall (2005), de acordo com nossa anlise, oferece uma contextualizao bastante sugestiva quando enfatiza o aspecto fragmentrio, incerto e voltil em que o debate sobre a identidade e a individualidade elaborado. Desta forma, o debate sobre o Indivduo no contexto atual se d no apenas influenciado pela abordagem sociolgica (que postula a idia central de Processo de constituio e Interao), mas no se pode perder mais a dimenso de que mesmo essas categorias devem ser repensadas em vista das rpidas mudanas estruturais pelas quais as sociedades e seus membros esto submetidos. Ao passo que Hall (2005) nos fornece essa orientao metodolgica fundamental, sua anlise tambm se abre para mostrar como essa representao em movimento do indivduo contemporneo no to simples quanto parece.

    Tentar mapear a historia da noo de sujeito moderno um exerccio extremamente difcil. A idia de que as identidades eram plenamente unificadas e coerentes e que a agora se tornaram totalmente deslocadas uma forma altamente simplista de contar a histria do sujeito moderno. (...) agora um lugar-comum dizer que a poca moderna fez surgir uma forma nova e decisiva de individualismo, no centro da qual erigiu-se uma nova concepo de sujeito individual e sua identidade. Isto no significa que nos tempos pr-modernos as pessoas no eram indivduos mas que a individualidade era tanto vivida quanto conceptualizada de forma diferente. (HALL, 2005, pg.13).

    Como demonstra Hall (2005), analisar esses diferentes processos de individualizao, que se sobrepem ao longo de contextos e pocas distintas, o caminho mais vivel para uma observao mais acurada sobre as caractersticas singulares de nosso contexto, que demarcam esse sujeito ps-moderno.

    Neste sentido, julgamos que a anlise de Norbert Elias (1988) pode nos oferecer alguns

    conceitos e idias que do uma dimenso mais clara de como se operou essa transformao de um sujeito sociolgico tradicional aquele legado pelo pensamento clssico , para uma representao mais complexa e dinmica, do Indivduo contemporneo, as quais possibilitaram um campo novo de problematizaes para a Teoria Social. NORBERT ELIAS E A SOCIEDADE DOS INDIVDUOS

    A partir dos elementos acerca dessa nova percepo do indivduo contemporneo levantada por Stuart Hall no tpico anterior, possvel realizar um aprofundamento destas questes com a ajuda das anlises de Norbert Elias.

    Um dos pontos centrais que marcam os debates contemporneos sobre a questo da individualidade se encontra no trabalho do socilogo alemo Norbert Elias (1897 1990). Duas obras-chave apresentam reflexes centrais sobre o debate da relao Indivduo versus Sociedade que possuem influncia em grande parte dos debates da Teoria Social Contempornea: O Processo Civilizador (volumes I e II) e, A Sociedade dos Indivduos. Destas importantes obras, devido ao contorno mais breve deste artigo, nos interessa o livro publicado postumamente, A sociedade dos indivduos. Nele Elias (1988) desenvolve no plano terico-metodolgico a concepo de relao indivduo versus sociedade ao mesmo tempo detalhando suas teses metodolgicas que perpassam as anlises do O Processo Civilizador, e refutando veementemente um modelo restrito muito comum na sociologia de relacionar estas duas entidades. Como Elias (1988) pondera, a separao estanque das entidades indivduo e sociedade gera distores analticas no campo das investigaes das Cincias Humanas. O modelo, portanto, deve ser reformulado.

    Tomemos como exemplo a famlia de conceitos que tem no centro o conceito de indivduo. Atualmente a funo primordial do termo indivduo consiste em expressar a idia de que todo ser humano do mundo ou deve ser uma entidade autnoma, e ao mesmo tempo, de que cada ser humano , em certos aspectos, diferente de todos os demais, e talvez deva s-lo. Na utilizao desse termo, fato e postulado no tm uma linha divisria clara. caracterstico da estrutura das sociedades mais desenvolvidas de nossa poca que as diferenas entre as pessoas, identidade-eu, sejam mais altamente valorizadas do que aquilo que elas tm em comum, sua identidade-ns. A primeira suplanta a segunda. Teremos mais a dizer a esse respeito posteriormente, mas esse tipo de balana ns-eu, sua clara inclinao para a identidade-eu, no nada evidente. Em estgios anteriores do desenvolvimento, era bastante comum a identidade-ns ter precedncia sobre a identidade-eu. A maneira acrtica como o termo indivduo usado na

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    conversao nas sociedades mais desenvolvidas de nossa poca para expressar a primazia da identidade-eu pode levar-nos a presumir, equivocadamente, que a nfase seja a mesma nas sociedades em todos os estgios de desenvolvimento e que tenham existido conceitos equivalentes em todas as pocas e lnguas. Esse no o caso. (ELIAS, 1994, pg. 130).

    Como possvel inferir pelo argumento acima apresentado, no apenas a relao estanque deve ser evitada, mas necessrio um redimensionamento dos poderes concedidos na representao do Indivduo, com os quais as Cincias Sociais articulam. Bauman (2001) descreve uma passagem em que a interpretao desta reformulao reforada.

    A apresentao dos membros como indivduos a marca registrada da sociedade moderna. Essa apresentao, porm, no foi uma pea de um ato: uma atividade reencenada diariamente. A sociedade moderna existe em sua atividade incessante de individualizao, assim como as atividades dos indivduos consistem na reformulao e renegociao dirias da rede de entrelaamentos chamada sociedade. Nenhum dos dois parceiros fica parado por muito tempo. E assim o significado da individualizao muda, assumindo sempre novas formas medida que os resultados acumulados de sua histria passada solapam as regras herdadas, estabelecem novos preceitos comportamentais e fazem surgir novos prmios no jogo. A individualizao agora significa uma coisa muito diferente do que significava h cem anos e do que implicava nos primeiros tempos da era moderna os tempos da exaltada emancipao do homem da trama estreita da dependncia da vigilncia e da imposio comunitria. (BAUMAN, 2001, pg. 40).

    Acima de tudo, nossa suposio que esta reelaborao metodolgica postula um sujeito diferente no debate contemporneo, a qual, por sua vez, influencia a constituio de um quadro-terico diferenciado acerca do Indivduo contemporneo. Para o quadro que pretendemos elaborar neste artigo, que se apia nas imagens de Bauman (2001) consideramos que o autor polons investe nesta rica pista de Elias (1988).

    O ttulo dado por Norbert Elias a seu ltimo livro, publicado postumamente, A Sociedade dos Indivduos, capta com perfeio a essncia do problema que assombra a teoria social desde o seu comeo. Rompendo com uma tradio estabelecida desde Hobbes e forjada novamente por Stuart Mill, Spencer e a ortodoxia liberal na doxa (o quadro no examinado de toda cognio adicional) de nosso sculo, Elias substituiu o e e o versus pelo de e, assim, deslocou o discurso do imaginrio das duas foras, travadas numa batalha mortal mas infindvel entre liberdade e dominao, para uma concepo recproca: a sociedade dando forma individualidade de seus membros, e os indivduos formando a sociedade a partir de suas aes na vida, enquanto seguem estratgias plausveis e factveis na rede

    socialmente tecida de suas dependncias. (BAUMAN, 2001, pg. 39).

    Uma vez que as categorias de indivduo e sociedade esto reconfiguradas e pautadas pelo olhar de Elias, possvel apontar alguns elementos que reestruturaram esse processo, sem, agora, sofrer o risco de sugerir interpretaes equivocadas sobre a gnese da reconfigurao desta balana. o que fica mais claro no tpico seguinte, quando Sennett (1987) levanta alguns elementos para mostrar como a cultura pblica foi desvalorizada neste processo, apontando outra caracterstica deste novo sujeito contemporneo. RICHARD SENNETT E O DECLNIO DO HOMEM PBLICO Num livro que contribui significativamente para o debate sobre a identidade na poca contempornea, Richard Sennett desenvolve em sua abordagem pistas fundamentais para a compreenso de como essa balana eu-ns (Elias, 1994) foi desequilibrada substancialmente em favor dos elementos da vida privada. Sennett reconstri em seu livro, O Declnio do Homem Pblico, o modo como se constitui o domnio da cultura pblica por meio das necessidades de interao que o recente meio urbano impunha a indivduos de diferentes regies e com referncias culturais distintas. Essa capacidade de se relacionar com os novos desconhecidos da cidade constitui um elemento primordial na noo de civilidade, que seria a capacidade de se comportar a partir de papis sociais pr-definidos, sobretudo a capacidade de construir relaes sociais menos volteis que no dependessem de vnculos personalssimos. Tal modelo, segundo Sennett, obteve xito at aproximadamente o final do sculo XIX, a partir do flego obtido pela Revoluo Francesa, encontrando desenvolvimento em algumas regies da Europa. Porm, em paralelo, desde o avano impulsionado pela Revoluo Industrial, processos em direo contrria a vida pblica tambm se desenvolviam. Na esfera histrico-cultural, as aes da vida pblica passam a ter um desgaste crescente e o crescimento da esfera intimista da sociedade passa a exercer uma influncia cada vez maior. Esta viso contribuiu significativamente para o que Sennett (1987) chama de personalizao das relaes sociais, a saber, uma entrada de elementos pessoais no Espao Pblico. Sobretudo, uma crescente necessidade de articular elementos de valores personalssimos e da esfera privada em articulao com as aes pblicas.

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    Este redimensionamento gera limites bastante restritivos quanto ao desenvolvimento de aes polticas e participao no Espao Pblico desta nova sociedade que se estabelece. Como as relaes sociais esto agora avaliadas por esses elementos da esfera privada dos valores personalssimos, os Indivduos perdem a expectativa de ao na Esfera Pblica, que se reduz, ento, a um local cada vez mais impessoal, e hostil, no qual no h mais nenhuma relao social a ser constituda. Para finalizar a sua interpretao sobre essa reconfigurao, Sennett se refere a este desdobramento recente como as Tiranias da Intimidade. Estas tiranias se evidenciam no momento em ns, enquanto indivduos membros das sociedades contemporneas, perdemos cada vez mais a capacidade de agirmos desvinculados de nossos valores e processos formativos singulares e perdemos a capacidade de abarcar a singularidade do outro, o qual se encontra tambm inflado pelo mesmo processo.

    O mito hoje predominante que os males da sociedade podem ser todos entendidos como males da impessoalidade, da alienao e da frieza. A soma desses trs constitui uma ideologia da intimidade: relacionamentos sociais de qualquer tipo so reais, crveis e autnticos, quanto mais prximos estiverem das preocupaes interiores psicolgicas de cada pessoa. Esta ideologia transmuta categorias polticas em categorias psicolgicas. (SENNETT, 1988, pg. 317).

    no contexto desta sociedade que sobrecarrega os elementos e as expectativas na esfera da vida privada dos Indivduos, que Bauman ir acrescentar novos elementos, criando um quadro-terico acerca do sujeito contemporneo mais detalhado. ZYGMUNT BAUMAN E A METFORA DA VIDA LQUIDA Tomando parte neste debate sobre as transformaes do Indivduo no mundo ps-moderno, Zygmunt Bauman tm publicado uma seqncia produtiva de obras em tom ensastico que exploram em profundidade boa parte dos trabalhos mais significativos da Teoria Social. Obras como Modernidade e Holocausto, Europa, Modernidade e Ambivalncia, juntamente com Globalizao: as conseqncias humanas, e O Mal-estar da Ps-Modernidade, em todas elas o autor tem explorado de forma criativa as produes mais significativas de diversos matizes das Cincias Sociais, de modo a fornecer ricos insights sobre o contexto contemporneo. Em grande medida, Bauman se filia a uma vertente de pensadores crticos acerca dos limites e

    contradies do processo civilizatrio. Ressaltam-se diferentes matizes tericos como Norbert Elias, Hannah Arendt, Theodor Adorno, Sigmund Freud, que muitas vezes compem o pano de fundo dos ensaios de Bauman, os quais, por sua vez, dialogam com produes atuais e autores de recente destaque na Teoria Social, tal como Anthony Giddens, Pierre Bourdieu, Michel Foucault e Jrgen Habermas. Os temas tratados em grande parte de sua produo intelectual no apresentam grande inovao em relao aos debates caractersticos dos autores associados questo da ps-modernidade, tais como David Harvey, Jean-Franois Lyotard e Anthony Giddens, mas a sua forma ensastica e criativa de fundir e rediscutir os resultados do conjunto destas pesquisas, ir distinguir Bauman como um autor que nos oferece questes pertinentes e originais para o nosso contexto. O mundo fragmentado pode ser percebido em suas manifestaes mais concretas das transformaes dos meios de produo, do mercado financeiro, e da revoluo tecnolgica que impulsionou a circulao de mercadorias, mo-de-obra e informao em velocidades cada vez maiores e mais eficientes. Bauman (2001) seguindo a pista aberta desde Marx, discute como:

    Diferentemente da sociedade moderna anterior, que chamo de modernidade slida, que tambm tratava sempre de desmontar a realidade herdada, a de agora no o faz com uma perspectiva de longa durao, com a inteno de torn-la melhor e novamente slida. Tudo est agora sendo permanentemente desmontado mas sem perspectiva de alguma permanncia. Tudo temporrio. por isso que sugeri a metfora da liquidez para caracterizar o estado da sociedade moderna: como os lquidos, ela caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma. Nossas instituies, quadros de referncia, estilos de vida, crenas e convices mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hbitos e verdades auto-evidentes. Sem dvida a vida moderna foi desde o incio desenraizadora, derretia os slidos e profanava os sagrados, como os jovens Marx e Engels notaram. Mas enquanto no passado isso era feito para ser novamente re-enraizado, agora todas as coisas empregos, relacionamentos, know-hows etc. tendem a permanecer em fluxo, volteis, desreguladas, flexveis. A nossa uma era, portanto, que se caracteriza no tanto por quebrar as rotinas e subverter as tradies, mas por evitar que padres de conduta se congelem em rotinas e tradies. (BAUMAN, 2001, 158).

    Um dos pontos centrais que marcam essa idia de Vida Lquida justamente a impossibilidade da criao de projetos e da instituio de modelos de vida e de ao no contexto atual. Esta situao tambm muito discutida na obra de Bauman (2001) naquilo que o autor chama de uma reformulao na estrutura de uma dicotomia muito comum: a relao entre Liberdade e

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    Segurana. Desde Freud em Mal-estar na Civilizao, o modelo de anlise que fundamentava grande parte das anlises das Cincias Humanas postulava os perigos da penetrao do Estado e das Esferas Pblicas na dimenso da vida privada, na intimidade, na privacidade e no processo de formao dos Indivduos. Esse grande receio da dominao totalitria, segundo Bauman (2001) pode ser visualizado nas duas grandes imagens de 1984 de George Orwell e de Admirvel Mundo Novo de Aldous Huxley. Porm, o modelo de sociedade contemporneo, caracterizado pela globalizao, inverteu a lgica deste receio. A questo do controle estatal da economia e dos processos formativos dos indivduos deu lugar a uma tendncia de descentralizao, desregulamentao, flexibilizao e precarizao de todos os processos constitutivos que moldavam as sociedades ocidentais no breve perodo do ps-guerra em diante. Esses elementos canalizaram na noo de Liberdade todos os anseios e promessas de realizao deste novo modelo de Indivduo, o qual encontrou na liberdade do consumo e a desresponsabilizao pelo outro as maiores evidncias da realizao deste novo processo. Todavia, a partir desta anlise que Bauman estrutura as caractersticas da Vida Lquida, que nos fornecem pistas interessantes sobre o nosso contexto. Essa nfase da Liberdade que desregulamentou e retirou as responsabilidades estatais que estruturavam as relaes e os vnculos sociais e produtivos, so as mesmas que agora esto diretamente ligados s sensaes de incerteza e insegurana que caracterizam a nossa impresso atual. O sentimento de incerteza cresce na medida em que a nossa sensao de seres humanos descartveis se torna cada vez mais disseminada com as transformaes dramticas pelas quais o mundo do trabalho vem se estruturando. A sensao de insegurana, que muitas vezes restrita impropriamente a questes de violncia e criminalidade, se espraia para todas as esferas dos relacionamentos humanos, dado o carter frgil e descartvel dos vnculos sociais que estruturam esse novo processo de individualizao.

    o que fica evidente em um dos seus livros, Amor Lquido, em que Bauman, a despeito de avanar numa rea no privilegiada dos socilogos, a esfera da afetividade, discute como at mesmo os laos afetivos se enquadram nessa lgica da descartabilidade e flexibilidade. De forma interessante, Bauman fecha o quadro mostrando como esses novos medos e preocupaes se estruturam de modo a consolidar situaes de ambivalncia no processo de formao dos Indivduos. no momento em que agimos de

    forma flexvel e descartvel no plano das relaes afetivas que a segurana no relacionamento se torna algo valioso e ao mesmo tempo utpico nos vnculos amorosos. De modo semelhante, com o advento da eliminao da ao poltica na sua acepo tradicional de nosso raio de ao cotidiano, que a noo de comunidade e as suas variaes de comunitarismo se insinuam como formas possveis de poltica, ainda que no fundo saibamos que no passam de aes pr-polticas. Ao longo de sua obra, Bauman parece conciliar duas abordagens aparentemente excludentes, a macro anlise que caracteriza seu debate com a Teoria Sociolgica e as suas anlise mais especificas, quando oferece exemplos de vidas cotidianas, apoiado numa espcie de sociologia da vivncia. curioso como esse estilo sociolgico denota um trao original do autor polons e gera um conjunto grande de dvidas a respeito de se saber, afinal, qual a caracterstica de seu oficio sociolgico. Desta forma, admissvel, seguindo a tendncia de recentes intrpretes da obra de Bauman5, que em nenhuma parte de sua obra possvel encontrar uma passagem textual ou uma preocupao em que o socilogo da modernidade lquida se dedique a elucidar e clarificar as suas bases e premissas tericas, que sustentam suas anlises especificas. Ainda que Bauman no apresente tais esclarecimentos, alguns elementos so recorrentes e podem orientar a leitura posterior das obras do autor: 1) sua concordncia com a abordagem de Norbert Elias, ou seja, sua tentativa de re-qualificar (ou mesmo, superar) a dicotomia indivduo X sociedade, o que tambm significa a tentativa de constituio de uma noo nova que supera o pensamento sociolgico clssico; 2) sua nfase em reinvestir os elementos subjetivos e emocionais no debate da Teoria Social, que se caracteriza com a adoo de Freud, e, 3) um aparente resqucio da influncia marxista, a respeito do processo de desumanizao do homem, com um olhar para a destruio dos vnculos sociais que se operam na passagem do modelo moderno, para um modelo posterior (ps, lquido, tardia, etc.), temperado com influncias de Hannah Arendt e Michel Foucault acerca dos novos conceitos de humanidade e modelos de Homem desenvolvidos pela Biopoltica. Embora em alguns momentos Bauman (2001) deixe antever pequenas brechas positivas dos

    5 Como exemplo desses autores, podemos citar as obras Peter Beilharz Zygmunt Bauman: the dialectics of Modernity, e The Bauman Reader, Michael H. Jacobsen e Poul Poder The Sociology of Zygmunt Bauman: challenges and critique, e Keith Tester, The Social Thought of Zygmunt Bauman, dentre outros. No geral, essas obras, por enquanto, possuem pouca penetrao no ambiente acadmico nacional e por enquanto no possuem traduo em nosso pas.

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    diagnsticos que caracterizam nossa poca contempornea, , acima de tudo, a precarizao, a fragmentao e o esgaramento dos laos sociais que perpassam, ao que parece, o conjunto de suas anlises. CONSIDERAES FINAIS

    O debate acima exposto, embora tenha como nfase central a reconstruo terica de alguns modelos de representao do Indivduo na Teoria Social, ao final de sua enumerao, compem um painel um tanto quanto ctico a respeito das possibilidades e capacidades que os Indivduos possuem neste processo de transformarem as condies sociais e de tomarem parte conscientemente na conduo deste processo que caracteriza as dimenses problemticas da ps-modernidade.

    No fundo, como a nossa exposio tentou demonstrar, esse modelo plural e fragmentado de individualidade apresentado a partir dos autores contemporneos conseqncia muito mais de um processo que rediscute e trabalha de forma crtica os conceitos legados pelo pensamento social clssico, do que to somente uma crtica pessimista oriunda de uma anlise de conjuntura de nosso presente recente.

    importante considerar tambm, que essa compreenso mais acurada dos processos constitutivos do sujeito contemporneo (os diferentes modelos, plurais e multifacetados) so instrumentos importantes para futuras anlises sociolgicas, independente das temticas abordadas, justamente porque so problemas comuns que todas as abordagens do pensamento social so obrigadas a se posicionar.

    Ao final do mosaico que se apia na sugestiva metfora da Vida Lquida de Bauman, consideramos que o olhar ctico que a imagem nos oferece no deve ser lido como uma viso pessimista ou fatalista do contexto atual. Neste sentido, necessrio admitir que a anlise de Bauman no se preocupa em investigar as possibilidades histricas de constituio de novos sujeitos ou atores sociais que podem surgir a partir das mudanas, mas acreditamos, sobretudo, que

    essa considerao no desmerece o olhar crtico do pensamento sugerido pelo pensador polons. Ao que tudo indica, a criatividade de suas metforas, e a riqueza dos insights, elaboram um importante diagnstico sobre nossa condio e acerca dos problemas atuais, a partir dos quais podemos propor, em momento posterior, alternativas e respostas. REFERNCIAS ALEXANDER, Jeffrey. O novo movimento terico. R.B.C.S. n 4 vol 2 jun de 1987. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Lquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. ______________. Amor Lquido: sobre a fragilidade dos laos humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2004. ______________. Vida Lquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivduos. Reviso Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Jahar, 1994. ____________, Scotson, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relaes de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Jahar, 2000. GIDDENS, Anthony. As transformaes da intimidade: sexualidade amor e erotismo nas sociedades modernas. So Paulo: Editora Unesp, 1993. _______________, A vida em uma sociedade ps-tradicional. In: Beck, Ulrich et all. Modernizao Reflexiva: poltica, tradio e esttica na ordem social moderna. So Paulo: Editora Unesp, 1997. pgs 43-77. HALL, Stuart. A identidade Cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro, Dp&a Editora, 2005. SENNETT, Richard. O declnio do homem pblico: as tiranias da intimidade. So Paulo: Companhia das Letras, 1988.

    i Doutorando em Cincias Sociais pela Unesp-Marilia.