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467 ARTE CONCEITUAL, O ATO CRIATIVO E O ATO PEDAGÓGICO: (ANTI) MODELOS E POSSIBILIDADES DE APROXIMAÇÃO Silfarlem Junior de Oliveira - UFES RESUMO O artigo problematiza, a partir da arte conceitual, o ensino da arte como anti-modelo formal, bem como entende a própria ação pedagógica, no campo ampliado, como uma performance artística. Investiga, então, as possibilidades no ensino da Arte Contemporânea através das características da produção-recepção rebatidas na relação entre professor e aluno e propõe o Ato Pedagógico tomando como paralelo a relação autor-espectador proposta por Marcel Duchamp no Ato Criador. Apresenta, por fim, indícios sobre as ampliações e mudanças na arte moderna e seus desdobramentos na arte contemporânea, estabelecendo um estudo sobre as características tanto da produção artística quanto das abordagens pedagógicas aplicadas ao ensino da arte. Palavras-chave: coautoria; arte conceitual; ensino da arte; ato criativo; ato pedagógico. ABSTRACT Through questions raised by conceptual art, this article discusses art education as a formal anti-model, as well as understands the pedagogical action itself, in the expanded field, as an artistic performance. It investigates the possibilities of the teaching of contemporary arts through characteristics of production-reception reflected upon the relationship between teacher and student and proposes the Pedagogical Act taking as parallel the relationship author-spectator proposed by Marcel Duchamp in the Creative Act. At last, it presents the traces of the historical expansions and changes within Modern Art and its developments in contemporary arts, establishing a study about the characteristics both of the artistic production and of the pedagogical approaches applied to the education of art. Keywords: co-authorship; conceptual art; art education; creative act; pedagogical act. “Houve uma discussão em Nova York, em 1968, sobre a ideia de tempo. Assinado: Ian Wilson”. 1 Segundo Anne Cauquelin, não podemos avaliar a produção artística contemporânea baseada em parâmetros de um sistema antigo, como se esta operação fosse a mesma do passado. No estado da arte atual, o estudo da prática artística fundamentada no conhecimento do métier (modelo acadêmico clássico) ou no estudo do meio (modelo acadêmico moderno) não faz mais sentido se não estiverem sendo pensados em conjunto com o ambiente de sua apresentação, isto é, seu contexto artístico e extra-artístico.

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ARTE CONCEITUAL, O ATO CRIATIVO E O ATO PEDAGÓGICO: (ANTI) MODELOS E POSSIBILIDADES DE APROXIMAÇÃO

Silfarlem Junior de Oliveira - UFES

RESUMO O artigo problematiza, a partir da arte conceitual, o ensino da arte como anti-modelo formal, bem como entende a própria ação pedagógica, no campo ampliado, como uma performance artística. Investiga, então, as possibilidades no ensino da Arte Contemporânea através das características da produção-recepção rebatidas na relação entre professor e aluno e propõe o Ato Pedagógico tomando como paralelo a relação autor-espectador proposta por Marcel Duchamp no Ato Criador. Apresenta, por fim, indícios sobre as ampliações e mudanças na arte moderna e seus desdobramentos na arte contemporânea, estabelecendo um estudo sobre as características tanto da produção artística quanto das abordagens pedagógicas aplicadas ao ensino da arte. Palavras-chave: coautoria; arte conceitual; ensino da arte; ato criativo; ato pedagógico. ABSTRACT Through questions raised by conceptual art, this article discusses art education as a formal anti-model, as well as understands the pedagogical action itself, in the expanded field, as an artistic performance. It investigates the possibilities of the teaching of contemporary arts through characteristics of production-reception reflected upon the relationship between teacher and student and proposes the Pedagogical Act taking as parallel the relationship author-spectator proposed by Marcel Duchamp in the Creative Act. At last, it presents the traces of the historical expansions and changes within Modern Art and its developments in contemporary arts, establishing a study about the characteristics both of the artistic production and of the pedagogical approaches applied to the education of art. Keywords: co-authorship; conceptual art; art education; creative act; pedagogical act.

“Houve uma discussão em Nova York, em 1968, sobre a ideia de tempo. Assinado: Ian Wilson”.1

Segundo Anne Cauquelin, não podemos avaliar a produção artística contemporânea

baseada em parâmetros de um sistema antigo, como se esta operação fosse a

mesma do passado. No estado da arte atual, o estudo da prática artística

fundamentada no conhecimento do métier (modelo acadêmico clássico) ou no

estudo do meio (modelo acadêmico moderno) não faz mais sentido se não estiverem

sendo pensados em conjunto com o ambiente de sua apresentação, isto é, seu

contexto artístico e extra-artístico.

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Na arte contemporânea notamos um campo ampliado de situações e aproximações,

onde a arte deixou de se preocupar apenas com questões visuais e estético-formais.

Esta mesma questão, relativa à ampliação dos limites da arte na

contemporaneidade, quando rebatida sobre o ensino, nos faz crer que se a arte não

está restrita ao campo da visão (óptico) e nem ao campo formal (estético), os

critérios de produção e logo de aprendizagem também não são os mesmo do ensino

da arte anterior.

Modelos da arte e do ensino

Se antes do advento impressionista o ensino das Belas Artes valorizava

principalmente no aluno a faculdade de observar e copiar os grandes mestres

(baseada no talento), na arte moderna, o que está em jogo é a capacidade de

exprimir sua individualidade através da criação do novo. Sendo assim, o aluno

deveria primar pela busca imaginativa liberando sua capacidade de invenção

artística. “Criatividade”, segundo Thierry De Duve, “[...] era o nome moderno

atribuído à combinação de faculdades inatas da percepção e da imaginação”.2

Para tanto, teorias como da Gestalt forneciam um vocabulário básico para a

compreensão perceptiva da forma artística, e este (vocabulário visual) seria a única

coisa passível de ser adquirida ao longo dos estudos, já que sua criatividade (do

aluno e do artista) não deveria ser “domesticada”.

Do ponto de vista da relação professor-aluno, no ensino moderno, em oposição ao

ensino tradicional, o professor deixa de ser o “mestre” e o aluno deixa de ser o

“discípulo”. Se, antes, a figura do mestre em sala de aula representava a ditadura

do ensino, onde o aluno era como um frasco a ser preenchido pelas experiências do

professor (ensino bancário3), agora, com o “mito da criatividade” moderna, ele, o

aluno, deixando de ser “discípulo”, se torna uma espécie de tirano, já que o

professor, em tese, não teria mais o que ensinar; suas experiências pareceriam

pouco importantes frente à capacidade ilimitada da subjetividade do aluno. No

primeiro momento, a mudança do ensino tradicional para o ensino moderno pareceu

vantajosa, e de fato foi; acontece que nos dias de hoje teorias da “livre expressão”

ou “espontaneísmo”4 não são mais suficientes, como talvez tampouco tenham sido

no passado. É necessário considerarmos hoje, segundo Lucimar Frange, as

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competências tanto do aluno quanto do professor como capazes de gerar

hipóteses5. Nesse sentido, devemos pensar um ensino que equacione estes dois

lados da relação entre professor e aluno.

Anti-modelo conceitual: possibilidades de aproximação entre o ensino e a arte

Buscando equacionar a questão da transmissão, bem como a relação entre

objetividade do conhecimento e subjetividade da criação, nos apoiaremos no texto

“O ato criador”6 do artista Marcel Duchamp.

Para Duchamp, a relação entre objetividade e subjetividade pode ser demonstrada

através do que ele chama de coeficiente artístico. Utilizando suas palavras: “[...] o

‘coeficiente artístico’ pessoal é como que uma relação aritmética entre o que

permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não

intencionalmente”7. É do conflito, segundo ele, entre o ato intencionado e a

realização, entre o intuído e o realizado, que percebemos o quanto são conscientes

e inconscientes, ao mesmo tempo, nossas ações. A partir do conflito entre

objetividade e subjetividade, o ato criador proporciona a possibilidade simultânea da

obra aberta onde o espectador completa o sentido da proposição. Percebemos por

meio dessa manobra que o fazer artístico é esvaziado de sua condição fetichista

tanto técnica8 quanto puramente imaginativa (como diria Duchamp, “mediúnica” 9).

Em palavras de Thierry De Duve:

Diante de um readymade, não existe mais qualquer diferença técnica entre fazer e apreciar arte. Uma vez apagada essa diferença, o artista abriu mão de qualquer privilégio técnico em relação ao leigo. A profissão de artista foi esvaziada de todo seu métier, e, se o acesso a ela não é limitado por alguma barreira – seja institucional, social ou financeira –, deduz-se que qualquer um pode ser artista se assim o desejar. 10

Seguindo nessa linha, o artista e professor alemão Joseph Beuys, partindo dessas

premissas levantadas por Duchamp, define a função do ensino da arte como aquela

que deve transformar toda a sociedade no que ele chamava de “Escultura social”

como conceito ampliado tanto da escultura quanto da arte. Só assim a arte deixaria

de ser exclusividade de alguns poucos pintores, escultores e músicos.

Através desse conceito, todos os espectadores, e não apenas os produtores

(artistas), participam ativamente atribuindo sentido ao contexto artístico,

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independentemente de saberem pintar quadros ou fazer esculturas, etc. Arte

social11, para Beuys, é o que se deveria aprender nas universidades, e era o que

indicava em suas aulas como condição fundamental para se pensar a capacidade

humana criativa no campo ampliado, englobando as atividades do campo da arte

diluído na vida. Cito Beuys:

Tal escola não precisaria mostrar ao artista como se manuseia tecnicamente uma gravura ou como pintar quadros, pois produzir quadros ou gravuras não é o problema principal. O que ela teria que ensinar é como se pode interferir no processo com a arte social. [...] O papel da arte é – e não há outro principio capaz a não ser este – colocar o problema principal de nossa sociedade, o conceito de criatividade, no centro das atenções12.

Beuys, nesse ponto, está de acordo com a teoria de Duchamp que, ao apresentar

seus objetos “já prontos”, readymades, desloca a prática artística para fora da

instância puramente técnica de produção de objeto. O que também, ampliadamente,

permite pensarmos o próprio trabalho do professor como um “trabalho” de arte,

onde, por meio da relação entre professor e aluno, se desenvolve similarmente uma

relação autor e espectador na qual todos estão colocados como participantes ativos

do ato criador.

Para o artista e professor Beuys, sua prática artística pedagógica está vinculada ao

seu projeto de arte, que, por sua vez, está vinculado à vida em todos os seus

aspectos. Seu trabalho como professor é considerado por ele como parte integrante

do seu próprio trabalho em arte, assim como sua militância sócio-pedagógica. Em

entrevista a Enéas Valle ele afirma:

A arte social interfere nos aspectos da vida, primeiramente a partir do conceito, mas, depois, isso tem de ser aplicado também na prática. Passou a época em que os artistas estavam confinados ao ateliê para pintar quadros ou fazer esculturas. [...] toda a sociedade tem de ser transformada numa obra de arte. 13

É difícil falar de ensino e arte e não falar de Beuys, ainda mais aqui onde é

articulada uma relação entre professor-aluno e autor-espectador. Seu trabalho como

professor e suas teorias aproximam a arte tanto da esfera pública quanto da prática

pedagógica. Beuys foi professor e em 1974 junto com Heinrich Böll fundou a

Universidade Internacional Livre na Alemanha. Sua prática artística e seu trabalho

como professor buscavam encontrar uma aproximação entre o cenário político-social

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e a arte. Além de reconhecer, por meio do readymade de Duchamp, que “todos

somos artistas” (todos temos um potencial criador e não apenas alguns poucos

eleitos), Beuys afirmou também que ser professor era sua “maior obra de arte”.14

Outro “projeto educativo”, em alguns aspectos bastante similar à proposta de Beuys

no que diz respeito à aspiração de romper com as convenções bem como de expor

os distintos níveis de institucionalização do objeto artístico, é “A educação do não-

artista”15 de Allan Kaprow.

Delineando uma perspectiva diferente daquela adotada por Beuys de transformar

toda sociedade em uma obra de arte, o artista Allan Kaprow aspirava, ao contrário,

que os artistas deixassem de fazer arte e se dedicassem às atividades do cotidiano.

Ou seja, sair dos espaços fechados e programados da arte em direção aos espaços

abertos e não programados da vida mesmo. Em realidade, tanto Beuys quanto

Kaprow pretendiam que a arte se fundisse com a vida; enquanto o primeiro buscava

expandir a criatividade a todos os homens e mulheres, e a todos os âmbitos da vida,

o segundo buscava uma “reeducação” da arte e do artista no sentido que o artista

deveria desaprender, ao invés de aprender, a fazer arte produzindo assim uma não-

arte.

O ato tradicional da produção artística, para Kaprow, encontrava-se carregado de

excessivas convenções e por isso mesmo deveríamos aprender a operar fora

desses padrões, como por exemplo: “senha número 1 (não-arte)” se referiria aos

partidários da não-arte como “aqueles que constantemente decidem operar fora do

domínio das convenções da arte.[...]”; já “senha número 2 (antiarte)” seria

“introduzida no mundo das artes para desestabilizar valores convencionais e

provocar respostas estéticas positivas e/ou respostas éticas”; e por último, “a senha

número 3 (arte Arte)” levaria “[...] a arte a sério. Ela presume, não importa o quão

disfarçadamente, uma certa raridade espiritual, um ofício superior.”16

Kaprow define desse modo a dialética entre Arte e não-arte, gerada entre os

distintos níveis de assimilação e institucionalização do objeto artístico, a partir das

senhas que dão acesso da não-arte à antiarte e da antiarte à arte Arte (com

maiúscula). Seu projeto “reeducativo” pretende retardar o processo de

institucionalização da produção e recepção da arte, mesmo que (o próprio Kaprow

472

reconhece) mais cedo ou mais tarde essas ações, por mais distantes que estejam

do campo artístico, sejam assimiladas como arte Arte.

Nesse sentido, tanto Beuys como Kaprow percebem na “educação criativa” uma

potência de transformação dos indivíduos, sendo o ato comunicativo por si mesmo

uma ação agudamente política. Em sentido amplo, as distintas audiências e

oralidades recobram o sentido de coletividade nas produções, experiências e

manifestações artísticas.

Diálogos sobre arte como arte: ato criativo e ato pedagógico

Se nas Belas Artes o artista era o “gênio” – o único detentor das faculdades

artísticas (fantasia, talento17), não dividindo esse conhecimento sequer com o

público (o que lhe dava certo privilégio) –, o professor de Belas Artes agia de modo

similar: era aquele que possuía o conhecimento e o aluno apenas executava o que

ele determinava como necessário para sua aprendizagem. Nesse caso, não era

levado em consideração pelo professor, ou muito pouco, qualquer tipo de

conhecimento da parte do aluno. Na arte moderna, com o mito da criatividade, as

coisas se invertem e agora parece ser o aluno quem não tem nada a aprender com

o professor, desconsiderando qualquer tipo de conhecimento a ser adquirido: o que

vale é sua capacidade “criativa”. O artista, nessa perspectiva, tampouco se

interessava pela possibilidade de estabelecer um diálogo de proposições artísticas:

expressar seus sentimentos era o mais importante.

Assim como no Ato Criador de Duchamp a relação entre artista, obra de arte e

espectador muda, no ensino da arte esta mesma relação deve ser repensada. O

artista não é o único propositor; o professor não é o único que detém conhecimento;

o espectador é participante do trabalho de arte, do mesmo modo que o aluno não é

receptor passivo e sim participante. Cito Duchamp:

[...], o ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador. 18

O ato pedagógico não é elaborado unicamente pelo professor: existe do outro lado o

aluno que, consciente ou inconscientemente, através de sua participação, contribui

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com as aulas, acrescentando ao processo de transmissão, suas experiências. Com

o ato pedagógico o professor propõe e o aluno completa. Na ação didática, isso é

possível num ambiente que privilegia o encontro entre posições diferentes, onde

nem sempre há concordância. O diálogo prevê o conflito. Segundo Isabel da Cunha:

“produzir conhecimentos significa colocar os sujeitos da aprendizagem numa

perspectiva de indagação que leve ao estudo e a reflexão”.19

O modelo de ensino produzido pelos mestres no contexto da antiga academia de

Belas Artes gerava alunos que acreditavam no talento e na habilidade. A

metodologia de ensino se dava por meio de cópias dos grandes mestres, ou da

natureza, demandadas ao aluno, adestrando, por exemplo, suas mãos para a

pintura. Pouco tempo sobrava para a reflexão sobre os aspectos da arte, como

também para o diálogo entre professor e aluno. O ensino é uma forma de

intervenção no mundo, como também o é a produção artística, não se restringido

apenas à absorção de conteúdos que são bem ou mal ensinados. O professor

quando se limita, em sua prática pedagógica, a transmitir conteúdos, segundo Paulo

Freire, só contribuí para a “reprodução da ideologia dominante” 20 impedindo a

contradição e a participação do aluno.

O outro lado dessa mesma moeda seria a crença modernista na singularidade das

subjetividades, onde o professor não permitiria ser copiado (como no antigo ensino

acadêmico) e o aluno teria que apresentar sinais de sua criatividade sem muita

ajuda do professor. Assim, nesse tipo de ensino, era tido como evidência de

aprendizado a não transmissão de referências para o aluno, como se isso fosse

possível, o que, aparentemente, proporcionava uma liberdade de expressão e

espontaneidade ao fazer artístico.

Entretanto, para Charles Harrison, o sistema crítico teórico moderno cobrava sim

dos alunos, e futuros artistas, que produzissem objetos para serem julgados

segundo uma lógica própria ao limite moderno: “ruptura com o anterior sem romper

com o sistema geral da apreciação do gosto, do olhar, da aferição dos valores

estéticos e do estilo que tal forma possa corresponder”. 21

Um exemplo de correspondência entre o ensino da arte e o corpo teórico moderno

se passa na escola inglesa St. Martin’s School of Arts, em 1960, onde um dos

474

estudantes introduziu um problema – para os moldes de ensino e de escolha dos

professores/artistas dessa escola – ao expor um trabalho que metade estava

presente e a outra metade “ausente”.

O emblemático trabalho do então estudante Richard Long, apresentado em St.

Martin’s, não poderia ser julgado pela lógica modernista, segundo o professor e

artista Anthony Caro, porque o mesmo não estava completamente presente para ser

apreciado em relação às suas características estéticas formais. Long colocou um

arranjo com galhos no salão da faculdade e explicou que aquilo era a metade da

escultura composta de duas partes separadas, e que a outra parte estava no topo do

Ben Nevis, uma montanha na Escócia.

O que Long fez foi problematizar a situação de apresentação dos objetos artísticos

para fora de uma lógica formalista até então vigente. A outra parte da escultura

apresentada por ele a Caro estava ali presente pelo discurso (pela fala dele sobre a

parte ausente), que indicava o lugar onde a outra parte se encontrava.

Nesse mesmo viés, outro exemplo potente que nos ajuda pensar o desdobramento

do discurso da arte não apenas como teoria sobre arte, mas como arte, são as

práticas coletivas do grupo conceitual anglo-saxão Art & Language22. Esse grupo

considerava seus encontros como uma prática artística, através dos diálogos

estabelecidos entre seus integrantes e participantes. E levando em consideração

que alguns de seus membros eram professores, também uma oportunidade de criar

uma participação ativa com os alunos e com o público em geral. Se for certo, como

afirmam os integrantes do grupo, que quase tudo que sabemos das obras de arte

sabemos a partir de publicações e conversas sobre arte, desde uma conferencia,

passando pelas aulas, até às conversas informais de um individuo qualquer com

outro, seria correto então dizer que estas ações “pedagógicas” levadas a cabo pelo

grupo anglo-saxão procuravam deshierarquizar23 e repensar as distintas funções dos

diversos agentes da arte. Como afirma Peter Osborne “a associação Art & Language

estava vinculada a educação artística e buscava criar uma comunidade artística

alternativa como parte de uma política socialista mais ampla”. 24

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Fig. 1: Walter Marchetti, Zaj es como un bar (cartão de visita), 1966.

Nesse sentido, os diálogos sobre arte – seja entre professores e alunos,

conferencistas e ouvintes, ou entre duas pessoas quaisquer que de alguma maneira

tocam no problema da arte – constituem um modo de manifestação da arte. Ou seja,

não são apenas diálogos sobre arte, mas sobretudo diálogos como arte. Nessa

perspectiva, podemos entender o labor artístico de modo ampliado, não restringido a

uma única direção de fabricação de objetos. Tanto o professor como o teórico, como

todos aqueles que de alguma forma acessam a arte, mesmo que seja em uma

conversa despretensiosa e informal, estão contribuindo por meio de seus atos

comunicativos com a criação artística. 25

Voltando então ao ato pedagógico, o processo de aprendizagem entre professor e

aluno concretiza uma possibilidade, aqui indicada, de por em movimento a dinâmica

entre valores estabelecidos e valores contestados, acrescentando nessa relação à

possibilidade dupla de transmissão da tradição e, por conseguinte, sua reflexão e

superação. Entendendo superação não como negação, mas como complementação:

o professor e o aluno promovem um diálogo possível pela reflexão crítica onde

valores determinados são contrapostos a outros valores indeterminados.

Somos condicionados e condicionantes, disso não podemos duvidar, mas existe

uma diferença entre sermos condicionados e sermos conscientes do inacabado.

Para Paulo Freire essa á a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser

determinado26: ao mesmo tempo em que somos condicionados, determinados

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historicamente, escapamos a essas determinações quando tomamos consciência do

inacabado, daquilo que escapa às determinações históricas e pessoais.

Quanto a isso, tomamos emprestado o coeficiente artístico de Duchamp para definir

o “coeficiente pedagógico”. Relembrando, o coeficiente artístico é a relação

aritmética entre o que permanece inexpresso, embora intencionado, e o que é

expresso e não intencionado. No ato pedagógico o professor propõe uma ação e o

aluno participa completando essa ação; nem o professor tem consciência (controle)

de tudo que é comunicado (expresso e não intencionado) como também não o tem

sobre o que não foi dito (inexpresso embora intencionado). Assim, por essa mesma

lógica, o aluno atua sobre o “coeficiente pedagógico” completando o ensino com sua

ação.

O professor, mesmo preparado para lidar com as demandas distintas em sala de

aula, não saberá responder a todos as questões. Sabemos que é de grande

importância para a prática pedagógica preparar os conteúdos que serão

comunicados em sala de aula, mas o ensino acontece de fato quando é criado entre

professores e alunos um ambiente de diálogo que possibilita a

transmissão/superação de conteúdos apresentados. Segundo Gilles Deleuze, “criar

foi sempre coisa distinta de comunicar” e “o importante talvez venha a ser criar

vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle”27. A

participação do público-aluno e do o autor-professor se dá entre vacúolos de

comunicação. O diálogo proposto não é como a comunicação instantânea,

transparente, como um túnel direto entre eu e o outro, sem objeções (vacúolos)

dando passagem para o proposto e o executado, entre a intenção e a recepção,

entre professor e aluno.

Neste sentindo, ao invés da prática pedagógica se constituir apenas como uma

orientação didática, ela se constituí ao mesmo tempo como desorientação didática28,

engendrando lapsos de consciência que permitem um processo de subjetivação que

escapa tanto aos saberes constituídos como aos poderes dominantes. Mesmo que,

de acordo com Deleuze, se em seguida “[...] eles engendram novos poderes ou

tornam a integrar novos saberes”.29 Logo, como nos descreve Freire, “[...] ensinar

não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a

sua construção”.30

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1 Obra/certificado de uma das conversações do artista conceitual Ian Wilson, em: KLEINMEULMAN, Chantal, Ian Wilson: los debates. Barcelona: Museu D’Art Contemporani de Barcelona, 2008. 2 DE DUVE, Thierry. “Quando a forma se transformou em atitude – e além”. In: FERREIRA, Glória; VENÂNCIO FILHO, Paulo (ed.). Arte & Ensaios, n. 10. Rio de Janeiro: Mestrado em História da Arte/Escola de Belas Artes, UFRJ, 2003, p. 94. 3 Para Paulo Freire o ensino do tipo bancário é aquele autoritário, impede que o professor e o aluno sejam sujeitos do ensino. O aluno pode até absorver conteúdos que são transmitidos pelo professor sem, no entanto, se torna sujeito consciente do seu condicionamento. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (coleção leitura), p.25. 4 FRANGE, Lucimar B. P. “Arte e seu ensino, uma questão ou várias questões?”. In: BARBOSA, Ana Mae (org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2003, p. 36. 5 Ibid., p. 36. 6 DUCHAMP, Marcel. “O Ato Criador”. In: BATTCOK, Gregory (org.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva. 1975, p. 75 - 83 7 Ibid., p.73. 8 Cumprir esse requisito parece ser uma condição geral de qualquer produção mais do que uma qualidade que determina sua competência. Entretanto, ainda hoje, em muitos casos, a pertinência de um trabalho artístico é medida ou pelo grau de habilidade técnica demonstrado ou ainda, pelo viés modernista, pelo uso expressivo formalista (individualizado) das condições internas à cada meio. 9 Não que o artista tenha total domínio sobre o que faz, saiba objetivamente descrever ou tenha todas as respostas sobre seu trabalho. No entanto, também é impensável supor que ele não saiba absolutamente nada sobre seu trabalho e que esse seja apenas fruto de sua subjetividade inexplicável. 10 DE DUVE, Thierry. “Kant depois de Duchamp”. In: FERREIRA, Glória, VENÂNCIO FILHO, Paulo. (ed.). Arte & Ensaios, n. 5. Rio de Janeiro: Mestrado em História da Arte/Escola de Belas Artes, UFRJ, 1998, p. 128. 11 BEUYS, Joseph apud VALLE, Enéas. “Entrevista com Joseph Beuys”, In: VALLE, Enéas. Catálogo Tempo - cor. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes Galeria do Século XXI, 2002, p. 16. 12 Ibid., p.17. 13 Ibid., p. 16. 14 BEUYS, Joseph apud LIPPARD, Lucy R. Seis años: la desmaterialización del objeto artístico de 1966 a 1972. Madrid: Akal, 2004, p. 21. 15 The Education of the Un-Artist, Parte I," Art News”, fevereiro de 1971; Parte II Art News, maio 1972; e Parte III “Art in America”, Janeiro-fevereiro de 1974. Em 2007 foi publicado em espanhol livro reunindo as três partes da “educação do não- artista”: Allan KAPROW, La educación del des-artista, Madrid: Árdora Ediciones, 2007. 16 KAPROW, Allan. “A educação do não-artista, parte I”. In: GERALDO, Sheila C. (ed.). Concinnitas: Revista do Instituto de Artes da UERJ, n. 4. Rio de janeiro: UERJ, 2003, p.216-219. 17 Sobre as características do gênio artístico: “Quanto ao poder geral da criação artística, uma vez ele admitido, logo se deve ver na imaginação a faculdade artística mais importante”. HEGEL, F. G. W. Estética a ideia e o ideal. São Paulo: nova cultura, 2000, p. 274. 18 DUCHAMP, op. cit., p. 83. 19 CUNHA, Maria I. “A relação professor aluno”. In: VEIGA, Ilma (cord.). Repensando a didática. Campinas: Papirus, 1994, p. 154. 20 FREIRE, op. cit., p. 98. 21 HARRISON, Charles. “O ensino da arte conceitual”. In: FERREIRA, Glória, VENANCIO FILHO, Paulo. (ed.). Arte & Ensaios, n. 10. Rio de Janeiro: Mestrado em História da Arte/Escola de Belas Artes, UFRJ, 2003, p. 118. 22 Sobre suas teorias, encontros e publicações consultar: ATKINSON, Terry, et al. (eds.). Art-Language: The Journal of Conceptual Art. Coventry: Art & Language Press, mayo de 1969. 23 Significa para o grupo derrubar as fronteiras que separam “o estético do contingente, o empírico do teórico, o individual do coletivo, a alta arte da cultura popular e a arte da linguagem.” HARRISON, Charles. “Objeto de arte y obra de arte” In: BUCHLOH, Benjamin H. D., et al. Arte Conceptual: una perspectiva. Madrid: Fundación Cajas de Pensiones,1990, p. 28. 24 OSBORNE, Peter (ed.). Arte Conceptual. Londres: Phaidon, 2006, p.34. 25Todos esses encontros são possibilidades de diálogos entre “propositores” e “participantes” que ratificam o ato criativo como um ato coletivo. 26 FREIRE, op. cit., pp. 53. 27 DELEUZE, Gilles. Conversações. Gilles Deleuze; tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.34. 1992, p. 217. 28 CALDAS JR, Waltercio. Manual da ciência popular. Prefácio do catálogo, Texto de Paulo Venâncio Filho. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. 29 DELEUZE, op. cit., p. 218. 30 FREIRE, op. cit., p.22.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Art & Language Press, mayo de 1969. CALDAS JR, Waltercio. Manual da ciência popular. Prefácio do catálogo, Texto de Paulo

Venâncio Filho. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. CUNHA, Maria I. “A relação professor aluno”. In: VEIGA, Ilma (cord.). Repensando a

didática. Campinas: Papirus, 1994. DE DUVE, Thierry. “Quando a forma se transformou em atitude – e além”. In: FERREIRA,

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Nacional de Belas Artes Galeria do Século XXI, 2002. Silfarlem Junior de Oliveira Artista-pesquisador. Em 2011 trabalhou como professor substituto da Universidade Federal do Espírito Santo. Possui graduação em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (2006). Possui “Diploma de Estudios Avanzados” (2009) em Arte Conceitual pela UCLM/Espanha. Atualmente é aluno do Mestrado em artes PPGA/UFES e Participa do grupo de pesquisa PLACE com linha de pesquisa em conceitualismo.