Arte e Mercado Itau

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    Arte e mercado

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    Xavier Greffe

    ARTE E MERCADO

    TraduoAna Goldberger

    OS LIVROS DO OBSERVATRIO

    O Observatrio Ita Cultural dedica-se ao estudo e divulgao dos temas de poltica cultural,hoje um domnio central das polticas pblicas. Consumo cultural, prticas culturais, economiacultural, gesto da cultura, cultura e educao, cultura e cidade, leis de incentivo, direitos culturais,turismo e cultura: tpicos como esses impem-se cada vez mais ateno de pesquisadores egestores do setor pblico e privado. OS LIVROS DO OBSERVATRIO formam uma coleo voltadapara a divulgao dos dados obtidos pelo Observatrio sobre o cenrio cultural e das conclusesde debates e ciclos de palestras e conferncias que tratam de investigar essa complexa trama doimaginrio. As publicaes resultantes no se limitaro a abordar, porm, o universo restrito dosdados, nmeros, grficos, leis, normas, agendas. Para discutir, rever, formular, aplicar a polticacultural necessrio entender o que a cultura hoje, como se apresenta a dinmica cultural emseus variados modos e significados. Assim, aquela primeira vertente de publicaes que se podemdizer mais tcnicas ser acompanhada por uma outra, assinada por especialistas de diferentesreas, que se volta para a discusso mais ampla daquilo que agora constitui a cultura em seusdiferentes aspectos antropolgicos, sociolgicos ou poticos e estticos. Sem essa dimenso, agesto cultural um exerccio quase sempre de fico. O contexto prtico e terico do campocultural alterou-se profundamente nas ltimas dcadas e aquilo que foi um dia consideradoclssico e inquestionvel corre agora o risco de revelar-se pesada ncora. Esta coleo buscamapear a nova sensibilidade em cultura.

    Teixeira Coelho

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    Coleo Os Livros do ObservatrioDirigida por Teixeira Coelho

    Copyright 2013Ita Cultural

    Copyright desta edioEditora Iluminuras Ltda.

    CapaMichaella Pivetti

    Foto da capaImagem extrada do site www.flickr.com/people/ryanready

    Agradecimentos ao fotgrafo Ryan (Toronto, Canad)

    Preparao de textoJane Pessoa

    RevisoBruno Silva D'Abruzzo

    2013EDITORA ILUMINURAS LTDA.

    Rua Incio Pereira da Rocha, 389 - 05432-011 - So Paulo - SP - BrasilTel./Fax: 55 11 3031-6161

    [email protected]

    SUMRIO

    APRESENTAOAUTONOMIA, SU STENTABILI DADE E FUTU RO DA ARTE, 11

    Teixeira Coelho

    ARTE E MERCADO

    INTRODUO, 19

    1. A INVENO DA ARTE, 25ANTESDASEPARAOENTREARTESANATOEBELAS-ARTES, 25

    A arte rupestre, 26A Antiguidade, 35A Idade Mdia, 37

    ASBASESDAAUTONOMIADOSARTISTAS: A RENASCENA, 41A lenta transformao do ateli e o comeo da diferenciao, 42Uma acelerao na transformao do status: os artistas contra a

    contradio de artesos na Espanha do Sculo de Ouro, 46Uma nova figura: o pintor da corte, 51

    A GRANDEDIVISO, 52Do ateli academia, 53Para uma oposio maior entre artista e arteso, 58O surgimento da crtica de arte, 62O nascimento da esttica, 64

    A APOTEOSEDAARTE, 68Uma mudana de ordem econmica: artista, obra e mercado, 69O arteso em segundo plano, 69A independncia da arte, 73O triunfo do esteticismo, 74

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    G831a

    Greffe, XavierArte e mercado / Xavier Greffe ; [organizao Teixeira Coelho] ; traduo Ana

    Goldberger. - 1. ed. - So Paulo : I luminuras : Ita Cultural, 2013.366 p. : il. ; 23 cm.

    Traduo de: Artistes et marchsInclui ndiceISBN 978-85-7321-414-7 (Iluminuras)ISBN 978-85-7979-041-6 (Ita Cultural)

    1. Crtica de arte. 2. Ar te e sociedade. I. Coelho, Teixeira, 1944-.II. Instituto Ita Cultural. III. Ttulo.13-02629 CDD: 709.05 CDU: 7.036

    02/07/2013 03/07/2013

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    PARAUMAREDEFINIODAARTE?, 84A revoluo Duchamp, 84Para um eclipse da arte?, 90O que uma obra de ar te?, 93

    2. A M SORTE DOS ARTISTAS EM UMA ECONOMIA DE M ERCADO, 97ALGUMASOBSERVAESHISTRICAS, 98

    Pintores, escritores, profissionais do teatro e msicos, 98Remunerao das obras ou dos artistas?, 109O artista em uma economia de mercado, 111

    O PAINELECONMICODEINSTRUMENTOSDOSARTISTAS, 113Uma tendncia geral: a sub-remunerao, 114

    Algumas variveis que fazem diferena, 123Da renda carreira, 137

    O MERCADODEARTEUMMERCADO?, 140A importncia do pblico e dos locais de encontro, 144Quem faz a oferta est realmente oferecendo alguma coisa?, 148Os preos sero preos reais?, 153Os mercados primrio e secundrio sero mercados reais?, 162A vale um mercado?, 167

    O mundo da arte contempornea: mercado ou sistema?, 170O aparecimento da crise do mercado de arte contempornea, 171O sistema de arte: uma grade para anlise mais pertinente que o

    mercado?, 175A mistura explosiva: conceito e instalao, 179

    3. A LEGITIMAO DA ARTE PELA ECONOMIA, 189O USODAARTEPARAHUMANIZARAECONOMIA, 190

    Arts & Crafts, 190A Art Nouveau e a Escola de Nancy, 200O movimento da Arte em Tudo, 209O movimento esttico americano, 212A Bauhaus, 214

    A UTILIZAODAARTEPARAMELHORARAQUALIDADEDEPRODUTOSESERVIOS, 219A decorao: do processo reabilitao, 219O design, 222Os produtos culturais, 225A superao da dicotomia entre belas-artes e artes decorativas: uma

    lio japonesa, 229

    O REENCANTAMENTODOSLOCAISDECONSUMO, 235O USODAARTEPARAREFORARAIMAGEMDASEMPRESAS, 237

    A desobrigao financeira dos Estados, 238A mudana de atitude dos conselhos de administrao, 240Do conservadorismo ao neoconservadorismo, 242As polticas culturais das empresas, 243

    4. A LEGITIMAO DA ARTE PELO SOCIAL, 259UMADISCUSSODEVERTENTESMUITASVEZESCONTRADITRIAS :

    JEAN-JACQUESROUSSEAU, 262ASTESESDAARTEBOAPARATODOS, 266

    A arte faz bem, 267

    As artes contra a mdia, 271As artes como elixir, 273

    A ABORDAGEMPELOSVALORESEXTRNSECOS, 276Os valores educacionais, 277Os valores sociais, 279

    OSVALORESSOCIAISDAARTESOUMAOPORTUNIDADEPARAOSARTISTAS?, 292A tese do elo faltante, 293O valor instrumental da arte inclui a participao dos artistas? O

    exemplo da musicoterapia, 297A difcil colocao dos valores sociais: o caso do meio prisional, 303

    DOSOCIALAOPOLTICO, 306

    5. A LEGITIMAO DA ARTE PELO TERRITRIO, 311ASPOLTICASCULTURAISASERVIODACIDADE, 312

    Os casamentos alternativos entre estratgia urbana e cultura, 314Os distritos culturais, 316

    As cidades das artes, 320ASVARIADASREPERCUSSESDOTURISMOCULTURAL, 321

    Os monumentos, 321Os museus, 323Os festivais, 324Os mercados de arte, 327

    A ATRATIVIDADECULTURAL: UMCONCEITOPARAMANEJARCOMCAUTELA, 328A perspectiva tradicional: atrair os deslocamentos, 328Uma perspectiva renovada: atrair uma classe de criadores?, 329

    QUALOLUGARDOSARTISTASNODESENVOLVIMENTOLOCAL?, 333A motivao dos consumidores, 334

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    O ciclo de vida de um bem cultural, 335A imerso na cultura de massa, 336

    CONCLUSO, 337

    ANEXOS

    Bibliografia, 343Alguns dados numricos, 347Crditos das imagens, 349

    ndice onomstico, 351ndice de assuntos, 357

    H uma dcada a palavra e a ideia de mercado vm sendo demonizadasno Brasil quando relacionadas arte e cultura, e quase somente a essas duas.Nada mais oportuno, portanto, do que um volume que discuta as relaesentre arte e mercado assinado por um pesquisador sem laos com o prpriomercado ou com aquilo que hoje se lhe ope, o Estado (nem sempre por seuprprio nimo, quase sempre por intermdio dos partidos polticos que comele querem confundir-se).

    Este um livro ao mesmo tempo de histria da arte e de histria daeconomia da arte, tendo por trao distintivo e foco central uma preocupaocom o presente, com este momento que vivemos. Assim que ele se interrogasobre a redefinio possvel da arte diante das novas condies de produo,sobre a oposio entre artista e arteso ou sobre o aparecimento da crticade arte. Mas o faz na medida em que as respostas possveis contribuem paraesclarecer o contexto econmico da criao artstica e no apenas os aspectosfilosficos ou estticos da arte. Nessa perspectiva, interessa ao autor entenderpor que so os artistas remunerados em patamar inferior mdia dos ganhosprofissionais, em particular aqueles que se dedicam s artes visuais, apesar daexistncia das grandes estrelas de vendas milionrias. E, ainda, saber se issoser alterado.

    No roteiro traado pelo livro, fundamental entender o processo de

    conquista da autonomia da arte e dos artistas frente ao poder absolutistada Igreja e do Estado, dois grandes mantenedores da arte ocidental, e o queacontece com essa autonomia quando os clientes autoritrios ou absolutistasde ontem so substitudos por essa entidade difusa quase sempre maldesignada (e mal entendida) pela palavra pblico.

    Questes cruciais surgem ao longo desse caminho: aquilo que se chamamercado realmente um mercado assim como essa palavra entendida emeconomia? Os preos da arte so de fato preos? Para diz-lo de outro modo,e de modo ainda mais relevante, os valores da arte so adequadamente bemexpressos pelo dinheiro? Claro que uma pergunta como essa encontra tambm

    APRESENTAOAUTONOMIA, SUSTENTABILIDADE E FUTURO DA ARTE

    Teixeira Coelho

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    exemplo, arte feia e incmoda como a pintura de Lucian Freud na qual sev pessoas obesas ou feias e desnudas ou, simplesmente, pessoas como elasso e no como o metro harmnico grego dizia que deviam ser. Nesse caso, omercado no funciona como um mercado: funciona como um censor do gostoque considerajustoe bom, assumindo uma perspectiva platnica sem o saber(o que bom belo e verdadeiro; o que verdadeiro belo e bom; o que belo bom e verdadeiro).

    Hoje, surgem outros processos de legitimao e valorizao da arte,portanto do artista. O sculo XXI viu a ascenso do processo de vinculaoda arte (e da cultura) ao mrito social que possa ter. O Frum Universal daCultura de Barcelona em 2004 fez dessa vinculao um caso exemplar que sequis depois repetir: a arte e a cultura como fatores da paz entre as naes, os

    povos, as etnias, os credos, as classes sociais. Em suma, a arte e a cultura comoa grande panaceia universal. As iniciativas do bem se multiplicaram, comtoda as violaes nesse processo implicadas (se a cultura mais facilmente dobem, a grande arte quase nunca ou pode ser do bem: no direi que ela do mal porque isso seria adotar a mesma linguagem carcomida visvel naexpresso do bem; mas est claro que a grande arte com frequncia aquelaque incomoda, que faz pensar, que destri no apenas a base da arte comoas bases da sociedade instituda; no sem razo o nazismo de Hitler chamouessa arte de degenerada). O artista passa a saber, ento, que ter de torcersuficientemente sua arte para que ela possa ser vista como do bem e comotal remunerada no s pelas empresas, com dinheiro pblico dos incentivos oucom dinheiro prprio, como pelo Estado (com dinheiro de todos).

    E outros processos de legitimao e valorizao da arte aparecem todos osdias. Se a grande tnica da economia, em processo de conteno do comrcio eda indstria, hoje dada pelo domnio dos servios (restaurantes, hotis, lazerdiversificado), a arte chamada para vender atraes locais. O artista passa a

    ser fator de desenvolvimento nacional, regional ou municipal. O artista mortoe que virou glria local ou o artista vivo que produz para esse mercado. O queganha exatamente o artista com todos esses novos mercados que se abrem? Ecomo se garante a sustentabilidade da arte tal como o ocidente se acostumoua v-la (pelo menos da boca para fora, isto , cinicamente), ainda que de mododistorcido em virtude da passagem de tempo? Talvez um novo conceito de arteesteja surgindo enquanto governos e empresas continuam presos a antigosentendimentos do mesmo fenmeno.

    Novas equaes esto surgindo, e novas alternativas ao mercado, assimcomo o mercado foi uma alternativa Igreja e ao Estado. Quando este livro foi

    elaborado e publicado, originariamente em 2007, a prtica do crowdfunding financiamento pela multido annima era simplesmente ignorada ouno passava de outra utopia. Hoje, cineastas conseguem levantar fundos paraseus filmes atravs da convocao pela Internet: contribuam para a realizaode meu filme, cujo roteiro podem ver no arquivo anexo ou que podem avaliarpor minha produo anterior ou por minhas intenes; prometo-lhes em trocatantos ingressos grtis ou, talvez, nada lhes prometo: colaborem se gostaremda ideia e pela ideia em si mesma. A noo de mercado, baseado no conceitode troca mediada pela moeda, explode em fragmentos corrosivos. Resta saberse resolver a velha equao que busca colocar num mesmo patamar o valorda obra, a realidade da obra e a remunerao do artista.

    Um livro como este ainda raro e oferece elementos preciosos no

    apenas para o entendimento da dinmica da cultura no campo da arte comopara a formulao de polticas para a arte (quase escrevo polticas culturaispara a arte, uma contradio nos termos sem que a maioria se d conta dofato). Ao mesmo tempo, deixa implcitas perguntas espinhosas e largamenteperturbadoras (as nicas que merecem ser formuladas): nos tempos docrowdfundinge das mobilizaes espontneas e instantneas que os prpriosinteressados se fazem (os flash mobs), e que no entanto alguns governos jquerem controlar e absurdamente estimular, ainda cabe formular polticaspara a arte fora dos mercados, tanto quanto polticas para os mercados?

    maio de 2013

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    ARTE E MERCADO

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    Os meios artsticos no gostam nem um pouco da economia. A ideia deque lgicas econmicas possam lanar luz sobre a realizao de atividadesartsticas ou, pior, sobre as escolhas estticas, lhes parece perigosa eenganosa. Disciplina com conhecidas conotaes imperialistas, a economiano pode deixar de impor arte sua prpria lgica. Disciplina h temposorganizada em torno da anlise dos mercados, ela pode relativizar ou atmesmo destruir as vrias normatizaes que se desenvolvem no campodas atividades artsticas.

    As atividades artsticas tm, entretanto, uma dimenso econmica.Como toda atividade humana, a atividade artstica precisa de recursos, ea maneira como estes so obtidos influencia tanto o modo de expressodos artistas quanto suas carreiras. Essa uma constante na histria daarte, mesmo que, em geral, ela se destaque apenas quando h crisescujas motivaes de ordem esttica colidem de frente com as restrieseconmicas. Mas tambm h perodos em que o lugar destinado satividades artsticas se baseia em fundamentos econmicos slidosque garantem sua sustentabilidade. Essas constataes logo podemser descartadas para dar lugar a uma observao mais geral: os regimeseconmicos da arte refletem a maneira especfica como ela reconhecidana sociedade e, por sua vez, delimitam as oportunidades e as restries aos

    artistas.Esse lugar que a arte ocupa , portanto, mutvel. Larry Shiner1

    demonstrou muito bem que a arte, enquanto instncia livre de consideraesreligiosas ou polticas, uma inveno recente. Com efeito, em muitassociedades, a arte no se manifestou como uma atividade especfica,que encontra nela mesma sua razo de ser, mas, antes, como auxiliar deoutras funes, beneficiando-se, ento, de suas bases econmicas. Osconhecimentos que atualmente esto disponveis sobre a arte rupestredestacam o papel dos xams como vetores daquilo que hoje chamamos

    1L. Shiner, The Invention of Art(Chicago: The University of C hicago Press, 2001).

    INTRODUO

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    de arte, mas que tinha um papel diferente naqueles tempos. Em muitascivilizaes antigas e medievais, a arte uma dimenso da religio e financiada a partir de uma economia organizada em torno dos templos,das igrejas ou dos monastrios. Esse relativo reconhecimento da arte noquer dizer que antes no existissem competncias artsticas, mas que elaspodiam, ento, apoiar-se nos recursos dessas outras instncias.

    Assim, quando a arte reivindica sua autonomia, as competnciasartsticas so levadas a procurar outras bases econmicas. invenomoderna da arte corresponde a necessidade de uma nova arquiteturaeconmica da arte, e da pertinncia desta ltima ir depender a viabilidadedo sistema e da condio artstica. Como essa autonomizao da arte sedesenvolve simultaneamente com a economia de mercado, no sentido

    moderno desse termo, a condio artstica deve definir relaes toestveis quanto possvel com o mercado, isto , um sistema de alocaoonde as lgicas interligadas de fungibilidade e de equivalncia tornem--se centrais. Podem desenvolver-se lgicas artsticas independentes daslgicas econmicas, mas pode-se apostar que as restries econmicasiro, logo, fazer-se sentir.

    Na economia de mercado, os artistas podem ter dificuldades paramobilizar os recursos financeiros de que precisam, a ponto de que afigura do starving artist(o artista que passa fome) sirva, para alguns, comovalidao artstica. Mas vale mais ser superstar do que starving artist,e se no puderem s-lo, os artistas podem ser levados a mobilizar suascompetncias em prol de outras funes, sendo ento objeto de um maiorreconhecimento econmico por parte da sociedade. Assim, assistiremos estetizao da produo, ao reencantamento de locais de consumo, sutilizaes ldicas, educativas ou sociais da ar te. Hoje essas manifestaesso cada vez mais numerosas, mas ningum garante que os artistas

    encontrem nelas, de fato, seus interesses. Os artistas frequentementeveem suas competncias diludas dentro de conjuntos que eles no maiscontrolam e que, portanto, nem sempre lhes trazem os recursos esperados.Assim, a autonomizao da arte na sociedade, e depois suas tentativas demoderao atravs de uma refuncionalizao das competncias e dasatividades artsticas, trouxeram luz a m sorte econmica da maioria dosartistas.

    Este livro pretende ilustrar a ascenso paralela da inveno da arte eda economia de mercado, a fatalidade que da resultou para muitos artistase, depois, como as tentativas de relegitimao da arte pela sociedade no

    Artemisia Gentileschi,Autorretrato em Alegoria da pintura. The Royal Collection.

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    A terceira direo a dos locais de consumo e, especialmente, dascidades. As artes e a cultura so hoje evocadas como principaisdeterminantes da qualidade de vida e da atrao exercida peloslugares, abrindo, assim, aos artistas, um campo de ao considervel.Mas tambm aqui as lgicas que envolvem a mobilizao dascompetncias artsticas impem a estas sua prpria fora e podemcausar a deformao e a subjugao das competncias artsticas(captulo 5).

    Destacar as dificuldades ou fatalidades de que so objeto os artistasno deve levar a vises maniquestas, como aquela que dominou avida artstica de certos pases durante os ltimos decnios, em que sesupe que a interveno do Estado garanta a criatividade e a felicidade

    dos artistas, novo dicionrio de ideias preconcebidas. Com muitafrequncia, sistemas desse tipo s conseguiram produzir o clientelismo,a procura de rendimentos e a manuteno da posio adquiridapelos felizes escolhidos. Por outro lado, essa interpretao enfatiza anecessidade de melhores sistemas de informao, de formao e degesto das competncias artsticas. Hoje, mais do que nunca, o artista o empresrio de seu prprio talento: assumir essa funo ainda, semdvida, o melhor meio de aproveitar as oportunidades que se oferecemde fato a ele, sem fazer disso uma armadilha. Sem contrapor a arte emtudo arte pela arte, uma abordagem econmica cautelosa s podeprovocar a abertura dessa discusso (concluso).

    Mesmo que este livro tome emprestadas muitas evolues histricastradicionalmente assumidas pela histria da arte, ele no pretende, emabsoluto, ser uma histria da arte, nem mesmo uma histria econmica daarte.

    Ao analisar, h uns dez anos, as condies do emprego em arteou artstico,2 ficamos chocado com os discursos falaciosos e eufricossobre o esperado crescimento desse emprego, especialmente na Frana.Ento tentou-se explicar os mal-entendidos,3 ressaltando o carterintrinsecamente arriscado das atividades artsticas em uma economia demercado. Esses questionamentos no parecem ter perdido nada de suapertinncia. Tratamos, neste livro, de ampliar a perspectiva, associandoquestes to fundamentais muitas vezes deixadas na sombra: quaisso os efeitos da ruptura entre artesanato e arte, ruptura ignorada pelos2X. Greffe, Lemploi culturel lge du numrique(Paris: Anthropos, 1999).3X. Greffe,Arts et artistes au miroir de lconomie(Paris: Unesco/Economica, 2003).

    levaram, como era esperado, a proteger os artistas da fragilidade de suasituao econmica e profissional.

    De incio ser mostrado em que a arte uma inveno recente,criando seus prprios critrios de validao e dispositivos institucionais(captulo 1).

    Em uma economia de mercado, essa autonomizao da arte funcionacom dificuldade, pois preciso que ela encontre uma demandasolvente, cujo uso abusivo de expresses como pblicoou mercado deartecria mais uma iluso do que uma realidade. Um sistema de arte organizado para tentar filtrar as presses do mercado, benefician-do-se dele ao mesmo tempo, mas sua fragilidade muito grande,

    conforme, alis, comprovado pelo mercado de arte contempornea(captulo 2).

    Os recursos que os artistas no conseguem, ou no conseguem mais,encontrar mediante o consumo final do valor esttico, eles procuramatravs da mobilizao de valores extrnsecos a suas prpriascompetncias. Uma primeira direo ser a da economia, na qual aao artstica pode melhorar a qualidade dos objetos da vida cotidiana.Essa discusso muito mais antiga do que parece. Do Ar ts & Crafts aodesign, passando pelas escolas da Art Nouveau, ela sempre existiu.Tanto sob suas formas antigas quanto sob as contemporneas, elarevela as dificuldades ou mesmo os impasses dessa soluo. O poderde compra a ser mobilizado para pagar produtos com qualidadesartsticas marcantes no to importante quanto se espera. Autilizao das competncias artsticas nesses processos pode levar sua banalizao. Os produtores que se arriscam nisso tm de enfrentaros imitadores (captulo 3).

    A segunda direo, a do social, pode levar aos mesmos impasses.Novamente, a, a discusso antiga, e as teses da arte boa para todose para tudo, que serve para tudo e que serve a todos, para a sadee a educao, bem como para a integrao social, so permanentes,no sem desenvolver ambiguidades e mal-entendidos. Entretanto,essa refuncionalizao nem sempre traz proveito aos artistas. Aexpanso dos mercados, tais como os da animao sociocultural ouda musicoterapia, traz benefcios, em primeiro lugar, s competnciasno artsticas, sendo que as competncias artsticas so ali banalizadase limitadas (captulo 4).

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    Hoje grande a confuso sobre saber o que uma obra de arte equais so seus limites. As obras de arte nascem como tal ou tornam-seassim porque um diretor assim decidiu ou porque casas especializadas,chamadas de instituies artsticas, as apresentaram como tal? Essa questo

    assumiu, recentemente, uma importncia considervel nas discussessobre a arte contempornea, mas ela muito mais antiga do que parece.De fato, foi durante os sculos XVII e XVIII, no momento em que se efetuavaa grande diviso entre artesanato e arte, que a noo de obra de arte surgiuclaramente sob essa forma.1

    Que a obra faa parte da arsou da techne, ela , de qualquer modo,produto de uma aptido humana. Mas apenas no sculo XVIII que a noode beleza, ou mesmo de gnio, impe-se alm da noo de aptido oude capacidade. Vrias diferenas se sobrepem nessa poca: arte/artesa-nato; artista/arteso; aptido/genialidade; esttica/utilidade ou lazer; highculture/low culture; patrocnio/mercado. E mesmo em outras civilizaes, aidentificao da arte como campo especfico recente, at ambgua, comono Japo.

    ANTESDASEPARAOENTREARTESANATOEBELAS-ARTES

    A proposta aqui no oferecer uma histria econmica da arte, mas ver,atravs de alguns temas especficos, como o que , afinal, considerado obrade arte pode ser inserido na vida de uma sociedade e nela desempenharum papel; enquanto o lugar dos artistas tender, aqui, a refletir o papelatribudo a sua atividade.

    1L. Shiner, The Invention of Art(Chicago: The University of C hicago Press, 2001), pp. 19-21.

    1. A INVENO DA ARTEsistemas no europeus? Os mercados artsticos so abertos ou funcionamcomo sistemas quase fechados, produzindo e distribuindo principalmenterendimentos? Qual a direo da corrente contempornea de valorizaodos bens culturais: da criao de obras de arte para as indstrias culturaisou das demandas da mdia para os artistas? Os artistas podem extrair osrecursos de que precisam para viver dos valores intrnsecos cultura oueles devem planejar encontr-los pelo vis de seus valores extrnsecos?

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    A arte rupestre

    No Paleoltico superior aparecem muitas pinturas rupestres, pelomenos no que diz respeito Europa, pois essas obras parecem j existir emoutros continentes, principalmente na frica. Por arte rupestre, entende-seaqui as imagens pintadas ou gravadas nas grutas e nas cavernas, o que noexclui que, no mesmo perodo, surjam tambm objetos, ento chamadospelos especialistas de arte por tvel ou mvel. Como consequncia, desen-volveu-se toda uma indstria intelectual sobre o nascimento da arte, cujoponto de partida parece ter sido dado em 1902 pelo clebre artigo de mileCartailhac: Mea Culpa dun sceptique. Ainda hoje so discutidas as razesdo surgimento da arte rupestre, e vrias hipteses se confrontam para

    ilustrar de modo mais geral o que podem significar as prticas artsticas(ou o que nos parecem como tais) em uma sociedade. Isso tanto verdadequanto os dados que, aqui, continuam sendo frgeis e sujeitos a novasinvestigaes, como aquelas que acompanharam a explorao da gruta deChauvet.2Assim, v-se, 30 mil anos antes de nossa era, surgir desenhos queat ento ningum imaginava que pudessem atingir tal sofisticao: tcnicado sfumato, relevo etc., ainda mais que certos desenhos ou representaesdatados de 15 mil anos antes de nossa era no a demonstram.

    Uma hiptese simples sugere que a arte apareceu de repente porqueos homens dessa poca estariam interessados nela e teriam, desse modo,expressado necessidades estticas ignoradas at ento. Ainda assim seriapreciso explicar por que naquele tempo. Uma explicao dessas pareceda ordem do milagre, tomando no contrap as teorias materialistas daevoluo desenvolvidas luz dos trabalhos de Darwin e Wallace. A viagemde Darwin s ilhas Galpagos teria feito com que ele entrevisse os possveisprocessos da evoluo das espcies. Mas foi apenas vinte anos depois,

    especialmente aps a correspondncia com Alfred Russel Wallace, quechegou mesma concluso em seu ensaio escrito a partir da anlise dasilhas Molucas On the Tendencies of Varieties to Depart Indefinitely fromthe Original Type (1858) , que Darwin publicou, com a colaborao deWallace, uma srie de textos sobre a evoluo das espcies endereados Sociedade Lineana de Londres. Essa contribuio foi pouco comentada emseu tempo, o que no foi o caso de sua obra surgida um ano depois: On theOrigin of Species by Means of Natural Selection(1859).3

    2 D. Lewis-Williams, The Mind in the Cave: Consciousness and the Origins of Art (Londres: Thames andHuston, 2002).

    3C. Darwin, On the Origin of Species by Means of Natural Selection(Harmondsworth: Penguin, 1859).

    Gruta de Chauvet. Galeria do Cacto. Urso da caverna voltado para aesquerda: traado vermelho realado com sombras.

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    De fato, a arte rupestre era conhecida desde o sculo XVII, poisnaquela poca as pinturas tinham sido identificadas, porm rejeitadas.No se imaginava, naquele momento, que esses signos pudessem fazerparte dos gneros artsticos reconhecidos ento. A perspectiva muda nasegunda metade do sculo XIX. Nos anos 1860, douard Lartet encontra nagruta Massat, em Arige, uma srie de objetos decorados, especialmentearcos esculpidos ou outras esculturas que pareciam no ter nenhum valorutilitrio, como, por exemplo, cabeas de urso de marfim. Mas o valor dessesobjetos estava longe de ser reconhecido; alguns os viam, antes, comofsseis. Entretanto, com base nesses exemplos apresentados na ExposioUniversal de Paris em 1878, Don Marcelino Sanz de Sautuola, dono deuma gruta situada ao norte da Espanha, em Altamira, procura, por seu

    turno, objetos em sua propriedade. Com efeito, ele e a filha encontraramprincipalmente representaes de bises que se encaixavam perfeitamentenas formas do teto de sua gruta, bises de que se sabe que Picasso teriadito: Nenhum de ns poderia t-los pintado. Don Marcelino publicou umlevantamento de suas descobertas de objetos e pinturas em um ensaio de1880: Breves apuntes sobre algunos objetos prehistricos de la provincia deSantander. O valor dessas pinturas no foi reconhecido, pois elas em nadacorrespondiam imagem de atraso ou de primitivismo atribuda quelapoca. Pior, esses bises foram considerados, por muitas pessoas, comopinturas fraudulentas, feitas para chamar a ateno. Desse modo, Cartailhacinterveio para denunciar a fraude, mas, vinte anos mais tarde, ele voltouatrs quanto a seu primeiro julgamento para reconhecer que se tratavade pinturas de grande valor artstico.4Sua mudana de opinio aconteceubem rpido, j que, no comeo do sculo XX, foi explorada uma srie degrutas que apresentavam composies da mesma natureza, comeandopela explorao da gruta de La Mouthe, em Dordonha.

    A explicao pelo esteticismo

    Naquele momento, portanto, comeou a verdadeira discusso sobre osignificado da decorao rupestre. Como j foi observado, uma boa partedas explicaes girava, ento, em torno da ideia de que um sentimentoartstico teria aparecido de repente. Essa anlise transcendental, alm deexcluir toda explicao baseada na evoluo dos povos e de seus meios

    4D. Lewis-Williams, op. cit., pp. 32-3.

    de comunicao, acima de tudo vinha transpor para 15 mil anos antes denossa era as discusses que surgiram na Europa sob o romantismo. J em1864, Lartet e Christy externaram a ideia de que a abundncia de animaisno Paleoltico superior tornou a caa mais produtiva e, desse modo, deixoumais tempo livre para os homens daquela poca, tempo que eles podiamconverter em lazer utilizado para decorar suas moradias.5Essa arte rupestretornava-se, assim, a expresso de prticas individuais, procurando nelasmesmas a evaso, o prazer etc. douard Piette retomou essa ideia maistarde, aplicando-a arte do mobilirio e utilizando palavras como expressoartstica, cultura da beleza etc.6

    Contudo, muitas observaes opem-se a essa interpretao. Muitasdessas decoraes eram feitas em lugares onde, hoje, sabe-se que ningum

    ia. Nas sociedades nas quais as condies materiais eram bem mais penosasdo que no Paleoltico superior (os bushmenda Austrlia), existiam essasmanifestaes artsticas, o que tornava muito duvidosa a hiptese dotempo livre. Os indcios de que essas populaes tinham prticas religiosaslevaram a considerar uma ligao entre estas e as prticas artsticas. Enfim,uma ltima crtica podia ser encontrada no fato de que pensar dessa maneiralevava a aplicao de um conceito moderno, o da arte, a perodos que noparecem ter conhecido essas questes. Gombrich ressaltava esse aspectoindiretamente quando escrevia no que isso, alis, deixasse de levantaroutros problemas : No existe realmente Arte, mas apenas artistas.7

    A explicao pela magia

    Em seu artigo de 1903: LArt et la magie: propos de peintures et desgravures de lge du renne, Salomon Reinach atribui o surgimento dessas

    manifestaes artsticas s necessidades da magia. Os homens dessa poca,essencialmente caadores e criadores, faziam desenhos de animais porqueessas representaes tinham como resultado, a seus olhos, a multiplicaodas espcies animais em questo. Essa ideia lhe havia sido dada peloestudo dos aborgenes da Austrlia e tinha relao com o princpio dostotens. Mais tarde, ele ir modificar sua hiptese: o desenho no levava amultiplicar as espcies, mas a dar mais poder queles que as caavam. Essa

    5Ibid., p. 42.6Ibid., p. 38.7There is really no such thing as Art. There are only artists . E.H. Gombrich, The Story of Art (Londres:

    Phaidon, 1950).

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    ideia estava ligada ao fato de que certo nmero de desenhos associava osanimais s armas ou s armadilhas usadas para ca-los. Essa explicaode tipo mgico respondia pelo menos a um dos obstculos encontradosna explicao esttica: como toda prtica mgica, ela devia estar oculta,da o fato desses desenhos estarem situados, na maior parte das vezes, emlugares inacessveis a um grande nmero de pessoas.

    As explicaes estruturalistas

    Ao contrrio das interpretaes precedentes, temos as explicaes dotipo estrutural ou estruturalista. Max Raphael, Annette Laming Emperaire e

    Andr Leroi-Gourhan desempenharam nisso um papel essencial.8

    Para Max Raphael, que introduziu uma perspectiva marxista nainterpretao da arte rupestre, a negao da qualidade artstica da arterupestre do Paleoltico superior provm de que ela no se inscreve em umesquema linear que levaria a ver, nos bons resultados do sculo XX, um piceartstico.9Os povos do Paleoltico tinham uma sociedade organizada, e asmensagens transmitidas pelas pinturas faziam parte de sua superestrutura,refletindo as condies da infraestrutura. Nesse contexto, as imagens deanimais muitas vezes organizadas na forma de oposies, ou mesmo delutas, descrevem os antagonismos que atuavam nas condies societaise econmicas da produo (assim, em Combarelles, os cavalos opem-seclaramente aos bises e aos touros, enquanto, em Lascaux, so os cavalose os touros selvagens). Para traduzir essas oposies, os animais sorepresentados como grupos em conflito. Por outro lado, outros grupos deanimais descrevem relaes de aliana. Portanto, o que alguns consideramcomo desordem das pinturas no passa da traduo de antagonismos.

    Raphael vai mesmo alm dessa abordagem de tipo marxista, afirmandoque, em Altamira, os desenhos permitem indicar uma oposio entrehomens e mulheres.

    Annette Laming Emperaire logo se interessou por Lascaux, sobre oqual ela publicou uma obra em 1959.10 Ela descartou as explicaes do

    8M. Raphael, Prehistoric Cave Paintings(Nova York: Pantheon Books, 1945); A. Laming Emperaire, Lascaux:Paintings and Engravings (Harmondsworth: Penguin, 1959); A. Leroi-Gourhan, Interprtationesthtique et religieuse des figures et symboles dans la Prhistoire (Archives de Sciences Sociales desReligions, 1976); G. Curtis, The Cave Painters: Probing the Mysteries of the Worlds First Artists (NovaYork: Alfred A. Knopf, 2006).

    9M. Raphael, op. cit.10A. Laming Emperaire, op. cit.

    tipo mgico ou transcendental e insistiu na importncia das associaes deimagens que caracterizam as composies de Lascaux. Ela considera que o reconhecimento dos cls que serve de fundamento s imagens, o que aliga aos trabalhos de Max Raphael.

    Para Leroi-Gourhan, o agrupamento das imagens permitia compreendero papel e a natureza da arte rupestre.11Retomando as ideias de Lvi-Strauss,ele considerava que os povos do Paleoltico tinham uma estrutura mentalcomparvel nossa, e que essa estrutura funcionava, muitas vezes, no modode oposio binria (homens/mulheres, humano/divino, homem-cavalo/mulher-biso12etc.). Considerando as imagens fornecidas por 66 grutas, eleobservou que os animais podiam ser agrupados em quatro categorias. Aprimeira reunia os pequenos herbvoros, a quem ele atribua smbolos de

    masculinidade, e a segunda, os grandes herbvoros, aos quais ele atribua ossmbolos de feminilidade. Os outros dois grupos situavam-se margem dosprecedentes e reuniam espcies perifricas ou perigosas. Alm disso, eleanalisava os signos associados a essas imagens. De novo, a predominavamdois grupos de signos, o dos signos estreitos (flechas, ganchos etc.) e o dossignos largos (tringulos, ovais etc.), nos quais ele via a caracterizao dosrgos genitais masculinos e femininos. Muitas combinaes pareciamento possveis, seu conjunto correspondendo lngua no sentidoestruturalista. Na entrada das grutas, encontram-se as imagens e os signosmasculinos, no centro, imagens e signos masculinos e femininos, e naszonas mais afastadas, os animais perigosos. Assim, os cervos esto naentrada, mas os cavalos, touros selvagens e bises, no centro das grutas: Ospovos do Paleoltico representaram, nas grutas, as duas grandes categorias decriaturas, os smbolos de masculinidade e de feminilidade correspondentes e ossmbolos de morte necessrios aos caadores. Na parte central dessas grutas,esse sistema se manifesta sob a forma de smbolos masculinos colocados em

    torno das figuras femininas, enquanto, nas outras partes do santurio, s seencontram representaes masculinas.13 Esse mitograma que serve delinguagem tambm pode mudar de sentido de uma gruta a outra, emboraLeroi-Gourhan tenha sempre ficado firme quanto a seu alcance.

    Esse carter um tanto automtico teve papel importante namarginalizao de sua obra, como outros trabalhos do tipo estruturalista.Alm disso, a produo do mitograma no explicava por que ele surgia

    11 A. Leroi-Gourhan, The Dawn of European Art: An Introduction to Paleolitic Art Planning (Cambridge:Cambridge University Press, 1982).

    12G. Curtis, op. cit., pp. 154-64.13A. Leroi-Gourhan, The Dawn of European Art, pp. 71-2.

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    precisamente nessa poca e no em outra. Enfim, pode-se perguntarse essa abordagem no levaria a determinar demais o contedo e osentido de certas imagens. Seja como for, os estruturalistas chegaram aanalisar de maneira sria essas representaes, no se deixando levar porinterpretaes do tipo romntico ou misterioso.

    A explicao xamanista

    Para Daniel Lewis-Williams, o surgimento de imagens correspondea um determinado estado de evoluo do crebro, aquele que permiteadquirir o sentido da memria e, portanto, da interpretao dos sinais

    produzidos e vistos. Segundo ele, esse surgimento tambm se conjugacom o aparecimento de uma linguagem que permita tais capacidades.14

    Para demonstrar isso, ele parte da anlise da transio entre oPaleoltico e o perodo que o precede, chamado de idade do Neandertal ouPaleoltico intermedirio. Hoje vrias explicaes so propostas para essatransio, comeando pelo aquecimento climtico. Ora, antes j haviamocorrido esses aquecimentos, que no acarretaram as mesmas implicaes.Outra manifestao da transio relaciona-se ao desenvolvimento dastrocas e, especialmente, circulao de novos meios, como as conchas.Outra manifestao ainda reside no fato de que muitos objetos soento melhor trabalhados, adotando principalmente formas de animaisou de conchas, sendo que alguns deles parecem ter sido produzidos emverdadeiras oficinas. De modo mais geral, constata-se, em todos os camposidentificveis da vida dos homens, certa sofisticao nos procedimentos enos objetos. Suas referncias tornam-se externas ao meio onde as coisasso realizadas, e as trocas parecem intensificar-se.

    Alm dessa resposta limitada, a explicao apresentada muitas vezesreside na evoluo de uma autonomia dos homens. Essa explicao contrariada pelo fato de que, em certos espaos, veremos que durantemuito tempo coexistiram os homens do Neandertal com os do Paleolticosuperior, o que mostra que as transformaes podem tambm serdevidas a fenmenos de aculturao de uns com os outros. Onde existiaa contiguidade, o homem de Neandertal podia aprender com o Homosapiens e ajustar-se com o tempo aos modelos assim observados. Noentanto, isso nem sempre verdadeiro. Desse modo, constata-se que os

    14D. Lewis-Williams, op. cit., pp. 69-101.

    neandertalianos podem decorar objetos como fazem os chamados gruposdo Paleoltico superior ou Homo sapiens, mas eles no produzem imagensrupestres como estes. A anlise de duas comunidades que se conheciam, oschatelperronianos e os aurignacianos, mostra que tanto aqueles como estessabiam decorar os objetos, mas apenas estes ltimos produziam imagens.Uma oposio comparvel manifestava-se na organizao dos funerais: osdos aurignacianos revelavam-se mais elaborados e simblicos do que osdos chatelperronianos. Aqui podem ser apresentadas duas explicaes. Aprimeira baseia-se na complexidade da sociedade deles. S uma sociedadeonde as diferenas sociais no fossem somente baseadas na idade ouno sexo podia desenvolver formas de expresso e prticas complexas. Asegunda baseia-se no grau de conscincia (que no tem nada a ver com o

    grau de inteligncia): a produo de imagens implica a capacidade de selembrar, de reconhecer e de interpretar. O imaginrio mental era diferente.Alm disso, a aptido para o imaginrio pode estar ligada a sociedades cujaorganizao se torna complexa, e onde surge uma distribuio de papisentre seus diferentes membros. Eles no so mais apenas caadores, sotambm artesos, comerciantes e xams.

    Assim, a produo de imagens no nem um pouco o resultado doaquecimento climtico, do melhor rendimento da caa ou de um gostoinato pelo esttico, mas, antes, de uma crescente complexidade social: A arte e os ritos podem contribuir para a coeso social, porm marcando aespecificidade dos grupos e criando as condies de tenses sociais. No foia cooperao, mas, sim, a oposio social que produziu uma espiral sempremaior de mudanas sociais e tecnolgicas[.. .].15

    Ainda assim preciso poder atribuir um sentido s imagens. Aoreconhecer essa hiptese, admite-se que as imagens sero pesquisadasenquanto tal, tanto quanto as vises ou as alucinaes. Todos os fenmenos

    entpticos que se situam entre a viso e a interpretao so, doravante,pesquisados por eles mesmos. Para Lewis-Williams, essa mudana dasrepresentaes vai introduzir o fenmeno do xamanismo: atravs de suasexperincias visuais ou somticas, certas pessoas podem suscitar novasrepresentaes e aceder a realidades alternativas.16Supe-se, ento, queelas esto em contato com foras sobrenaturais, que elas podem curaros doentes, controlar os movimentos dos animais, mudar o tempo etc.Confia-se em sua imaginao guiada para chegar a esses resultados. Em

    15Ibid., pp. 95-6.16J. Clottes e D. Lewis-Williams, Les Chamans de la prhistoire: texte intgral, polmique et rponses(Paris:

    Seuil, 1996).

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    tal contexto, as imagens vo representar o caminho das sensaes queelas tm de percorrer para alcanar outras realidades e trazer de l seusprprios poderes especficos. Da a necessidade de representar essasimagens e no apenas senti-las dentro de si mesmo. Da o fato de que essasimagens no so necessariamente a representao exata de animais, masaquela que lhes dada a partir de abordagens do tipo entptico, o quemarginaliza qualquer preocupao de tipo realista. Da o fato de que essasimagens esto separadas de qualquer paisagem ou entorno (com algumasraras excees, em geral representadas por linhas horizontais). Conformemuitos j disseram, so imagens flutuantes (na maioria das situaes, oscascos no so representados).17Mas essas imagens sero revistas e nadaimpede, ento, que elementos mais realistas intervenham na reformulao

    dessas imagens mentais. As prprias formas das grutas sero utilizadaspara a representao de imagens, o que leva os animais representados ase tornarem at mesmo elementos da gruta. O rochedo no nada mais doque uma membrana atrs da qual os espritos dos animais repousam. 18Oque a escurido impede pode at ser compensado pelo toque.

    Esse carter entptico das imagens explica um dos problemas-chaveda arte rupestre. Muitas vezes ela est situada em zonas onde poucoshomens ou mulheres podem entrar, e onde certamente elas no podemser observadas sem um mnimo de luz. Aqui, preciso ter cautela, pois aorganizao das grutas relacionadas a essas imagens pode mudar. No casode Lascaux, h muitos espaos sucessivos, e a grande sala com certezapermitia que se reunisse certo nmero de pessoas; os espaos ulterioressendo, ento, acessveis a raros indivduos isolados, no caso, aqueles queexerciam a funo de xam. Por outro lado, em uma gruta como Gabillou,o grupo s podia reunir-se na entrada, e s os xams podiam entrar nelae fazer seus experimentos a partir de imagens que j se encontravam l.

    Segundo Lewis-Williams, essa diferena no acesso era acompanhada poruma discriminao na prpria produo das imagens, o que tambmparece ser demonstrado pela pluralidade de autores: as imagens pblicasso produzidas publicamente, aquelas encontradas no fundo das grutas ounos vestbulos so, com certeza, produzidas por outros artistas, sem que sepossa chegar a afirmar que elas so feitas por apenas um deles.

    Resta um fenmeno a ser explicado que, sem dvida, no deixa deesclarecer os precedentes e de iniciar uma discusso que vai prosseguirmilhares de anos depois. A partir de certo momento, dificilmente17Quando o caso, como em Lascaux, os animais parecem mais estar suspensos do que sobre a terra.18J. Clottes e D. Lewis-Williams, op. cit., pp. 213-4.

    identificvel, surgem imagens de humanos ao lado ou no lugar de imagensde animais. Alm disso, essas imagens humanas frequentemente estoatravessadas por linhas horizontais, o que justifica as expresses de homensferidos ou mortos empregadas frequentemente para descrev-las. Ora,parece possvel que sejam os prprios xams que assim se representam,testemunhando as provaes que eles mesmos se impem para alcanaroutras realidades. Como explicar essa interveno? Talvez pelo fato de queos produtores dessas imagens queriam mostrar que, a partir de ento, elesdesempenham um papel ativo e que so eles os criadores. Esse modo de seafirmar corresponde tambm vontade de manifestar um poder prprioante a sociedade e, assim, enfatizar a ligao entre a criao e a hierarquiasocial.19

    Se esses resultados, que hoje permanecem contestados quanto aosignificado exato do papel do artista, foram produzidos assim, porquese desistiu de uma abordagem etnolgica, em que se compara essa arterupestre aos gneros artsticos das sociedades reconhecidas, atualmente,como as menos desenvolvidas. Parte-se aqui de uma abordagemantropolgica, como comprova a interpretao da parede das cavernascomo uma membrana separando um mundo visvel e um mundo invisvel esobre a qual as mos vm apoiar-se, tanto negativa quanto positivamente.

    A Antiguidade

    Na Grcia antiga, as obras que classificamos como obras de arte noso tomadas como tal ou como existindo em separado de outras criaeshumanas. Com a mitologia, elas esto ligadas a um cerimonial poltico--religioso. Carpinteiros, sapateiros e poetas eram, ento, includos em uma

    mesma atividade, e os nicos que mereciam um tratamento parte eramaqueles que imitavam.

    Pouco a pouco, foi introduzida uma diferena entre as atividadesliberais e as vulgares ou servis, baseada no uso da energia fsica. Na primeiracategoria, encontravam-se: gramtica, retrica, dialtica, matemtica(aritmtica, astronomia, geometria e msica). Outro deslocamento ocorreutambm na noo de arteso. Para Aristteles, havia duas capacidades: aprimeira consistia em saber seguir um raciocnio; a segunda, em dar provasde certa inteligncia ou intuio (capacidade reconhecida por Homero no19Na gruta de Chauvet, uma das mais antigas cavernas conhecidas, uma mo caracterizada por um

    defeito fsico aparece vrias vezes isolada ou ao lado de um desenho. Com certeza no por acaso.

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    caador). Essa diferenciao, que estar na base daquela ulterior entre oartista e o arteso, era tnue, e a perspectiva da mistura das duas aptidesprevalecia sobre a especializao a que elas poderiam ter originado.

    Da mesma maneira, no existia nenhuma separao entre a beleza ea funo. O termo beleza era aplicado indiferentemente, fosse qual fosse ograu de funcionalidade das coisas, e traduzia um sentimento de satisfao.O que era belo correspondia expectativa posta em um objeto ou em umdiscurso, inclusive no plano moral.

    Essas reflexes sobre a classificao das artes revelavam, emcompensao, as etapas que se devia percorrer para fazer surgir a artecomo instncia autnoma.20 Quando aparece o termo arte, o inversodo que ele se tornar a seguir. Trata-se de ressaltar a existncia de um

    mtodo adequado, e seguido de modo rigoroso, para atingir os resultadosdesejados. Para Aristteles, uma permanente disposio para produziras coisas de maneira racional. Para Galeno, um sistema de regras gerais.Para Plato, um trabalho irracional no arte. 21 , assim, um conceitoextremamente amplo que engloba tanto as cincias quanto o artesanato.Uma nica categoria era ento reconhecida como no ar tstica, a da poesia,e outra, a da msica, era objeto de discusses. A ideia aqui era que noexistia nenhuma regra a seguir, a no ser a prpria inspirao daqueles quese dedicavam a ela. Percebe-se, ento, qual foi o desafio para se chegar noo de arte tal como entendida no sentido moderno: fazer com quefossem includas nela essas disciplinas que dependiam de inspirao e que,ento, estavam excludas; e excluir dela disciplinas que dependiam dasregras.

    Voltando classificao, os seguintes elementos podem ser lembrados.Para os sofistas, as artes devem ser divididas em duas categorias: a de artesque tm valor graas utilidade que elas criam; a de ar tes que so executadas

    em nome do prazer que elas do. Para Plato, deve-se distinguir entre asartes produtivas as que produzem coisas reais, como a arquitetura eas que imitam as coisas e que aparecem em segundo lugar em relao sprimeiras.

    Os pensadores latinos contriburam com o debate, fazendo distinoentre as artes liberais e as artes vulgares, distino que seria, em seguida,objeto de muita contestao. A ideia era de que aquelas se baseavam emuma atividade intelectual, enquanto estas se baseavam em uma atividadefsica; as duas, portanto, sendo compatveis com a noo generalizada de20W. Tatarkiewicz, History of Aesthetics(Paris: The Hague-Mouton, 1970), v. 1.21Ibid., p. 80.

    arte como atividade racional. Muitos autores latinos intervieram nessadiscusso (Quintiliano, Ccero etc.), mas o mais importante foi Plotino,que definiu cinco categorias de atividades artsticas: a que produz objetosfsicos; a que ajuda a dominar elementos naturais (medicina); a que imitaa natureza (pintura); a que melhora a ao do homem (retrica e poltica);e a que depende de uma atividade intelectual pura (geometria). Essaprogresso vai das atividades materiais s puramente intelectuais. Mas emmomento algum surge uma categoria como a das belas-artes.

    A Idade Mdia

    Mais uma vez a expresso arte utilizada, no melhor dos casos, emsentidos que em nada correspondem acepo moderna. Ainda no podeser vista nenhuma separao entre arte e artesanato, nem mesmo entreas prprias artes. Pode-se encontrar uma classificao entre as chamadasartes liberais e as chamadas artes mecnicas. Na primeira categoria, podemser identificados o trivium (gramtica, retrica, lgica) e o quadrivium(aritmtica, geometria, astronomia, msica). Na segunda categoria, estoas denominadas artes servis (tecelagem, manufatura de armas, comrcio,navegao, caa etc.). O artista , ento, um fazedor de arte: ele faz, mas sDeus cria. Portanto, a ideia herdada da Antiguidade continua a preponderar:a arte um habitusda razo prtica, e Toms de Aquino a define, ento,como uma consequncia da razo (recta ordinario rationis). Uma ligeiraevoluo acontece com a diviso entre arte mecnica (que auxilia a vidamaterial dos homens), arte agrcola, arte martima, arte mdica e arteteatral. Entretanto, alguns artesos ficaram mais conhecidos do que outros,seja porque dirigiam atelis, seja porque tinham atingido certo grau de

    excelncia. Assim, Dante reconhecido como poeta porque ele alcanacertos cnones da beleza e ultrapassa o estado do suor. O mesmo acontececom a noo de beleza: o termo muito vago e corresponde adequaodo objeto a sua funo. Alm disso, a f religiosa leva a reservar a noode beleza para Deus. Uma evoluo importante se esboa, contudo, com ofuncionamento do ateli.

    Durante muito tempo, os ofcios que tinham uma dimenso artsticaorganizaram-se, a exemplo de outros, dentro do quadro de corporaes.Assim como outros trabalhadores manuais, os artistas so reunidos ematelis, onde produzem e vendem, eles mesmos, o produto de suas

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    atividades. O fato de se tornar um artista no , necessariamente, resultadode uma vocao, mas, antes, da escolha dos pais que faz seus filhos, naidade de onze ou doze anos, tornarem-se aprendizes. Drer reconhece issoem seu Livro do pintor, ao escrever que quem vai exercer uma atividadeartstica precisa ter, no mnimo, aptides naturais.22A atividade do pintor,do ourives, do escultor e do gravador uma atividade artesanal como asoutras, exigindo um aprendizado comparvel. Assim, a estrutura do atelide arte muitas vezes hereditria. Como prova, basta observar que osprimeiros pintores ou escultores conhecidos muitas vezes eram apontadoscomo filhos de pintores ou escultores. Aqueles que entram no ateli sem serdiretamente da famlia tm vnculos com conhecidos prximos, em geralligados por atividades complementares, o que torna difcil a integrao de

    quem vive no campo.23Em compensao, so raros os que vm dos meiossuperiores. Uma posio social elevada parece ser incompatvel com acondio de artista, e ser preciso esperar Brunelleschi (filho de tabelio) e,em menor nvel, Leonardo da Vinci (filho natural de um tabelio) para queisso comece a mudar.

    Esses atelis funcionam como verdadeiras empresas, no sentido de queproduzem seus prprios insumos. Pincis e cores, vernizes e equipamentospara polimento so produzidos ou feitos nos atelis. S as matrias-primasso compradas fora. O artista um tcnico, antes mesmo de ser artista, e preciso que saiba fazer de tudo, de uma ponta outra da cadeia. evidenteque existe certa diviso do trabalho. Os mais jovens so confinados atarefas preparatrias elementares. Aos poucos, eles passam a trabalhosmenores, depois a realizar partes menos importantes da obra. Por fim, elesintervm no corpo, mas ainda sob a responsabilidade do mestre do atelie de desenhos fornecidos por este.

    Esses atelis ou essas botteghe frequentemente produzem obras do

    mesmo tipo: bas para noivos, painis de parturientes, corantes, vitrais etc.As obras so compradas por burgueses ou prncipes, porm, muitas vezes,tomando por base produtos que poderiam ser classificados como quase desrie, quer porque j foram criados tendo em conta os mercados potenciais,quer porque foram encomendados tendo em vista obras existentes, comvariaes. O ateli comercializa e, por isso, est o mais prximo possvelde seus clientes. Os atelis que inovam, fazem isso, ento, a partir deproblemas tcnicos ou de procedimentos. Eles chamam a ateno dos

    22A. Drer, Lettres et crits thoriques. Traits des proportions. Apresentao de P. Vaisse (Paris: Hermann,1964), p. 162.

    23Giotto logo iria constituir uma exceo notvel.

    clientes mais ricos e fazem obras por encomenda. O trabalho de perspectiva,tanto em matria de paisagem quanto de personagens, e a subordinaodo espao a configuraes geomtricas desempenham, aqui, um papelimportantssimo. Assim, elementos tericos so introduzidos na vida dosatelis ao lado de elementos prticos. Aos poucos, os trabalhadores dessesatelis se tornam estudiosos, ou at mesmo eruditos, e alguns comeam,alis, a ter livros ou mesmo bibliotecas inteiras.

    Outra evoluo que se esboa na Idade Mdia, e que merece serressaltada, modifica a hierarquia entre certas manifestaes artesanais. Defato, ela norteia o que ser os cnones da pintura durante vrios sculos. NaIdade Mdia, duas tradies partilham a representao: aquela herdada dacultura grega baseada na imitao das formas, seja qual for sua natureza;

    e aquela herdada da Bblia, para quem as representaes humanas spodem ser excepcionais e reservadas unicamente para os santos. Almdisso, na tradio bblica, o ouro, as prolas e as pedras preciosas sorecomendados como principais materiais de decorao.24 Tambm oartesanato da ourivesaria, do mobilirio etc. s recorria excepcionalmentea essas representaes. Por isso, essas formas de artesanato prevaleciamamplamente sobre a pintura. Os santos mais representativos dos artesose artistas eram, alis, santos ourives (so loi de Noyon e so Dunstan deCanterbury).25

    Entretanto, essa situao mudou no sculo XII, quando o mercadopara artesanato foi ampliado com a urbanizao e a retomada dodesenvolvimento econmico. Seguiu-se uma maior variedade decompradores e de encomendas, bem como de lugares para onde essasdecoraes eram destinadas. Os pintores e os escultores, ento, ganharammaior importncia, e multiplicaram-se as representaes de figuras. Ondedominava a arte dos ourives, a ponto de muitas vezes os pintores imitarem

    o esmaltado cloisonn, as referncias dos pintores e dos escultores iriamprevalecer, levando os ourives a incorporarem suas referncias. Essaevoluo levou muito tempo, e no decorrer do sculo XII surgiu o primeirotratado que punha em evidncia essa importncia das artes visuais, Dediversibus artibus. Essa substituio no impediu a ascendncia da habilidadetcnica, da qual os ourives eram a melhor ilustrao. A arte do vitral, alis,conseguiu incorporar essas duas tradies, a que tomava a dianteira e aque continuava a trabalhar de maneira mais restrita: Considerando uma

    24Gnesis 2,11-12.25T.A. Hslop, How Strange the Change from Major to Minor: Hierarchies and the Medieval Art .In: P.

    Dormer (org.), The Culture of Crafts(Manchester: Manchester University Press, 1997), p. 56.

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    mudana, de uma organizao minuciosa de tema para uma representao,o vitral o mais bem empregado para mostrar como uma arte maior tornou--se menor, continuando importante.26 A arte do vitral representava, nomnimo, uma sntese entre as duas formas de expresso artstica, e oscontemporneos, alis, chamavam de pedras preciosas as diversas cores quepodiam ser vistas nos vitrais, atestando, assim, a importncia da tradio detrabalhar com pedrarias. As nervuras dos vitrais comprovam, desse modo, apermanncia da capacidade dos ourives, mas, dessa vez, posta a servio dafigurao. Tambm a arte do vitral evoluiu. Decerto por razes econmicasligadas ao custo dos materiais, bem como do trabalho artesanal, os vitraistornaram-se cada vez mais simples, substituindo com representaes maishomogneas os jogos de luz que a ourivesaria tinha conseguido absorver.

    A dimenso narrativa prevalecia sobre a dimenso mgica. evidente queisso s poderia acontecer a custo de uma marginalizao e mesmo dodesaparecimento de tcnicas e capacidades.

    Deve-se, enfim, ressaltar que, nessa poca, ningum diferenciava entreo lugar das mulheres e dos homens no campo artstico, e ainda se estlonge do tempo em que o lugar da mulher ser mais o de objeto do quede autor da criao artstica.27Essencialmente atravs dos conventos e dasabadias, um determinado nmero de mulheres, muitas vezes de origemnobre, tinham acesso educao e ao que hoje seria chamado de prticasartsticas. difcil identificar o autor de obras em geral no assinadas, masera sabido que diversos escritos, iluminuras e imagens eram produzidospor mulheres, especialmente na Alemanha, Inglaterra, Borgonha eEspanha. E quando as obras podem ser identificadas, encontram-se asconsiderveis, como o Hortus deliciariumde Herrad, abadessa da abadiade Hohenburg, perto de Estrasburgo. Esse conjunto de mais de duzentaspginas de pergaminho e seiscentas miniaturas ainda mais notvel

    porque compreende numerosas representaes de mulheres visandofazer entender a histria da humanidade.28Mas, embora a religio servissecomo alavanca para essa presena, o papel das mulheres estendia-se pelasociedade civil, e as guildas da poca incluam muitas mulheres, mesmo quelhes fosse impossvel herdar os atelis ou empreendimentos comerciais deseus maridos, depois de sua morte. Muitas representaes, como a que ficaacima da porta norte da catedral de Chartres, mostram que nenhum ofcioera, ento, de fato ou de direito reservado aos homens.

    26Ibid., p. 60.27W. Chadwick, Women, Art and Society(Londres: Thames and Hudson, 2007), pp. 43-5.28Ibid., p. 57.

    ASBASESDAAUTONOMIADOSARTISTAS: ARENASCENA

    Com a Renascena as mudanas surgidas no perodo medieval vocomear a firmar-se, mesmo que os que so chamados de artistas aindasejam tratados, essencialmente, como artesos. Com ela, tambm se v quesurgem as primeiras classificaes que prefiguram as noes modernas daarte.

    Um primeiro deslocamento diz respeito ao nascimento da esttica.As obras podem ser consideradas em si mesmas, independentementedo papel que elas possam ter na satisfao de necessidades concretas. a protoesttica, e um msico como Galilei (o pai de Galileu) a defendeu,insistindo na felicidade que a msica deveria criar.29A obra reconhecida

    por ela mesma. A contribuio mais importante vem, sem dvida, dopensamento de Bacon.30Este reconheceu, de fato, uma categoria especficada atividade artstica, a que se baseava na imaginao e no mais na razoou na imitao. Pode-se, ento, fazer uma distino entre arte, cincia eartesanato, abrangendo o trptico imaginao, razo, imitao. Mas Bacons colocava na imaginao a poesia, deixando a msica, por exemplo,para a atividade cientfica, tendo em conta seu tratamento como produtoderivado das matemticas.31

    Um segundo deslocamento incide sobre a noo de artista. Surgembiografias de artistas, como, por exemplo, a de Bellini. A obra de Vasaridescreve, alis, os artistas da Academia florentina no mesmo nvel dosartesos que atingiram grande fama, mas ainda no como seres parte.32Os artistas oferecem autorretratos deles mesmos, tal como Drer,que se pinta como Cristo. Enfim, surge a noo de artista da corte: esteno mais um arteso, e se desloca como quer, sem ter de respeitaras normas das guildas locais. Alguns so pagos independentemente

    de suas obras. Eles adquirem um status semelhante aos dos criados,e o comeo do patrocnio ou mecenato. Qualidades especficas so,assim, atribudas ao arteso-artista: ressalta-se sua capacidade de juzo,portanto de inveno (um termo tcnico que traduz a capacidade deselecionar ou de cortar), e mesmo de imaginao (termo diferente deinveno e que ressalta a capacidade de inspirao e das qualidadesnaturais).

    29L. Shiner, op. cit., p. 73.30Ibid., pp. 83-4.31W. Tatarkiewicz, op. cit., p. 89.32G. Vasari, Les Vies des meilleurs peintres, sculpteurs et architectes (Paris: Berger-Levrault, 1985).

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    Um terceiro deslocamento acontece na noo de arte, pois surge anoo de humanidades no lugar da de trivium: tira-se a lgica e inclui-se apoesia, a histria e a filosofia moral.

    A lenta transformao do ateli e o comeo da diferenciao

    Com a Renascena, os contornos do ateli vo mudar lenta massensivelmente. Sem dvida, a descrio feita por Banxandall das condiesde trabalho dos artistas ainda artesos continua sendo a mais geral.33Semdvida, a corporao ou a guilda continua sendo o ambiente social ondea atividade artstica desenvolvida. Mas est ocorrendo um determinado

    nmero de transformaes, cujo primeiro efeito ser o de criar diferenasrelevantes entre artesos.

    No momento em que os atelis alcanam certa importncia, pode-seencontrar uma diviso do trabalho bem ntida. Alguns, alis, iro atingirum tamanho muitas vezes desmesurado, como o de Rafael ou o de Tilman,em Wrzburg. Aos poucos, essa diviso vai ganhando flexibilidade antea necessidade de criar grandes retbulos ou grandes afrescos. Melhorainda, alguns atelis vo tornar-se verdadeiros holdings, como a botteghade Ticiano em Veneza: ele detm interesses em toda uma srie de outrosatelis que trabalham em campos conexos, como a madeira. A mesmabottegha vai ainda mais longe, inovando no campo comercial. Ticianorecebe estagirios estrangeiros em quem ele v futuros representantes, eutiliza os gravadores para reproduzir, total ou parcialmente, suas obras e,com isso, gozar dos benefcios de sua marca. Enfim, ele encontra em PietroAretino, chamado de O Aretino, um verdadeiro assessor de imprensa, poiso papel deste escrever para a Europa inteira, a fim de tornar conhecidos

    os recursos e oportunidades oferecidos pelo ateli. Isso toma tempo, e defato instaurada uma verdadeira concorrncia entre os atelis, como, nessecaso, entre o ateli de Ticiano e o de Tintoreto. Assim, o artista famosoassume os contornos de administrador, e por trs das grandes obras e dosgrandes mestres da Renascena, surge uma agressividade frequentementeesquecida.

    Os atelis, a seguir, passam a dedicar cada vez menos tempo ao ensinoe recrutam de imediato artesos j firmados. Cada vez mais a formao feita fora desses locais, e os aspirantes a artistas aprendem a copiar,33 M. Banxandall, Lil du Quattrocento: lusage de la peinture dans lItalie de la Renaissance (Paris:

    Gallimard, 1972).

    premissa do esprito das academias ou das escolas. Alis, v-se surgir, emmeados do sculo XVI, em Florena, a Academia do Desenho (Academiadel disegno), fundada por Vasari em 1563, e em Roma, a Academia de SoLucas. Tanto uma como a outra organizam-se para fazer com que o estudoseja o componente fundamental da formao do artista. Alm disso, aosubstituir a formao prtica dos atelis pela formao atravs do estudo,ampliam-se as competncias dos futuros artistas. Eles aprendem escritasvariadas, lnguas e at mesmo tcnicas. Assim dotados, os artistas passama se considerar inteiramente como atores do humanismo e no mais comoadjuvantes da filosofia. As obras dos pintores mostram, nessa poca, queeles se situam no mesmo nvel de outros pensadores ou filsofos, como aEscola de Atenas, onde Rafael representa Plato e Herclito com os traos

    de pintores romanos contemporneos. Por seu lado, Vasari acrescenta smusas conhecidas uma dcima musa em sua Alegoria da pintura.

    A partir de ento, aristocracia e artistas consideram-se como quaseiguais, o que, evidentemente, altera a natureza dos contratos e dasencomendas. carta de Lippi (ver abaixo) pode-se agora contrapor a dopoeta Caro a Vasari: Quanto ao assunto, deixo-o em suas mos [...]lembran-do-me que os pintores realizam suas prprias ideias e seus prprios projetoscom mais amor e dedicao que os projetos dos outros.34

    Transformados em autores no lugar em que eles tinham sidoconsiderados executantes, os pintores impem suas escolhas, tanto emmatria de tcnica quanto de tema. Em relao tcnica, o exemplo maisilustre a recusa de Michelangelo de decorar a Capela Sistina com pinturaa leo, e sua vontade de fazer ali afrescos, brao de ferro que imobilizouos trabalhos por vrios meses, enquanto o papa tinha a maior pressa.Em relao aos temas, Michelangelo no teve o mesmo sucesso, pois,depois de sua morte, alguns de seus personagens foram modificados

    por Daniel da Voltera. De fato, as coisas no foram to simples por duasrazes. A autonomia dos temas , primeiro, freada por uma causa exterior,a Contrarreforma, que levou o Conclio de Trento (1545-64) a editarnormas muito estritas sobre a matria. Assim, a clebre tela de Veroneseque devia representar a Ceia foi rebatizada como Banquete na casa de Levi,tanto o nmero, a variedade e as atitudes dos personagens ultrapassamas representaes tradicionalmente aceitas da ltima refeio de Cristo.Convocado perante um tribunal para dar explicaes, Veronese, ento,resolveu mudar o ttulo de seu quadro.34 G. Vasari, Vie de Michel-Ange. In: Les Vies des meilleurs peintres, sculpteurs et architectes , op. cit.,

    v. IX, p. 216.

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    Em segundo lugar, subsistem muitos conflitos entre os artistas eos que encomendam as obras, especialmente quanto demora, agoradependendo da vontade do criador, j que antes os prazos eram fixadosimperativamente nos contratos. Embora desde ento os artistas possamimpor-se, em alguns casos eles encontram limites a essa vontade de seproteger. Os que encomendam querem saber para que serviro seusrecursos, e se sua glria ou fama no acabaro enfraquecidas. Assim, oconflito situa-se no nvel da possibilidade, para os que encomendam,de poder acompanhar a execuo da obra e, portanto, de poder intervirantes que seja muito tarde. Os artistas, ento, tentam opor-se a isso aomanter, tanto quanto possvel, segredo sobre sua obra, mas nem sempreconseguiam: no se diz que Jlio II se disfarou de operrio para saber o

    que Michelangelo pintava na Capela Sistina.35

    Isso em nada interfere nos recursos econmicos da atividade. Emboracerto nmero deles seja convidado a trabalhar em obras excepcionais a decorao das residncias dos prncipes , eles o so a partir deprotocolos muitas vezes preparados minuciosamente pelo prncipe e seuscolaboradores. Isabella dEste fornece a Mantegna um esquema narrativoe alegrico minucioso dos temas a serem representados nas paredes dostudioloque ela lhe pede para decorar, e o contrato ir refletir a densidadedos temas, das cores etc.36A originalidade do artista se situa, portanto, naexecuo, no estilo, na pesquisa de perspectivas etc. s aos poucos queo pintor passar da condio de executante para a de criador. Um exemploque se pode citar aqui o de Botticelli, que, em A natividade mstica, traduzum desejo original do pintor, como, alis, ele mesmo menciona em umcanto superior do quadro: Eu, Sandro, executei este quadro no final do ano1500 em uma Itlia atormentada pelas atribulaes [...] inspirando-me nocaptulo XI do Apocalipse de So Joo, que relata o dcimo infortnio, ou seja,

    a soltura do diabo, que durou trs anos e meio para que fosse acorrentado [...]como neste quadro.37

    Mas, nesse tempo de valas comuns, os artistas continuam sendoconsiderados bons copistas pelos estudiosos que cercam os prncipes. Oartista fica totalmente submisso boa vontade de quem faz a encomenda,e, alis, ele se queixa disso, conforme comprova a celebrrima carta deFilippo Lippi a Giovanni di Cosimo de Medici: nela, ele afirma ter respeitadoas instrues deste e, escrupulosamente, seus pedidos. Assim, ele se

    35P. Burke, La Renaissance en Italie: art, culture et societ (Paris: Hazan, 1991), p. 81.36Ibid., p. 75.37E.H. Gombrich, Symbolic Images(Londres/Nova York: Phaidon, 1972), pp. 31-81.

    espanta por ter sido injustamente criticado pelo representante de Giovanni,que o havia acusado de trapacear quanto quantidade de ouro necessriapara a execuo do quadro. Alm disso, ele suplica que possa terminar aobra em boas condies e que Giovanni concorde em lhe entregar, na datacombinada, sessenta florins, isto incluindo os materiais, o ouro, a douraoe a pintura.38De modo geral, as clusulas includas no contrato so muitoprecisas, e elas pretendem prevenir qualquer dificuldade que possasurgir na produo da obra. Algumas clusulas so gerais, mas outras soevidentemente especficas, seja para definir o estilo a ser utilizado, seja paraconcluir a quantidade de materiais preciosos, como os lpis-lazlis. umverdadeiro contrato de negcios.

    Nesse contexto, o lugar das mulheres artistas ia permitir diversas

    interpretaes. Depois do clebre artigo de Linda Nochlin publicado em1960 (Por que no houve mulheres artistas?),39admite-se que o sistemade guildas, ofcios e corporaes levou, progressivamente, exclusodas mulheres de toda atividade profissional, lanando-as em um papelpuramente privado. De fato, a nova constituio das cidades levou essasestruturas intermedirias a tornar-se, no mnimo, tanto lugar de atividadecomunitria quanto expresso de grupos de produtores. As mulheres,ento, foram consideradas as protagonistas da vida familiar, e elas foramrelegadas a atividades pouco qualificadas no momento mesmo em que ademanda por profissionais no parava de aumentar em muitos campos[...]atividades ligadas s da criao artstica.40Por volta de 1400, ou seja,algumas dcadas depois de sua criao, a Confraria de So Lucas emFlorena no contava com nenhuma presena feminina no momento emque se tornou o centro da organizao artstica dessa cidade. Essa divisode papis, traduzindo uma separao importante entre espao pblicoe espao privado, no iria parar de se aprofundar, e multiplicaram-se os

    tratados que confinavam o papel das mulheres na maternidade e noscuidados do lar.

    Entretanto, isso no impediu que algumas mulheres vissem seutalento artstico reconhecido e seguissem uma carreira comparvel dosartistas homens. O exemplo tradicionalmente dado de Marietta Robusti,a filha de Tintoreto. Mas preciso sublinhar que ela logo se emancipou doateli familiar, e que tambm ela se beneficiou de uma organizao, a de

    38M. Banxandall, op. cit., pp. 13-4.39L. Nochlin, Why Have There Been No Great Women Artists. In: Hess e Baker, Art and Sexual Politics

    apud W. Chadwick, op. cit., p. 67.40W. Chadwick, op. cit., p. 69.

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    Veneza, mais flexvel que a de Florena.41Outro exemplo mais tardio foi ode Sofonisba Anguissola, que foi convidada a pintar pelo rei da Espanha, eviveu da venda de suas obras a nobres, bem como a burgueses.

    Uma acelerao na transformao do status: os artistas contra acondio de artesos na Espanha do Sculo de Ouro

    Alm das transformaes dos atelis, v-se que os prprios artistasvoltam a questionar a condio que lhes conferida, ou melhor, imposta.Na Espanha do Sculo de Ouro, as discusses relacionavam-se ao fato desaber se a pintura devia ou no ser considerada uma arte liberal. Era uma

    discusso importante, pois responder positivamente a essa questo fariacom que os pintores escapassem do pesado imposto sobre as vendas(alcabala), ao qual estavam sujeitas as atividades mecnicas, e eles, assim,poderiam reunir-se s honras e dignidade.42Como, portanto, a pinturapodia sair do artesanato para alcanar o status de atividade liberal, ou seja,arte? Como o artista podia impor a referncia de lugar de criao ali, noateli, onde ele estava confinado?

    No comeo, a alcabala era um imposto que todos os espanhisdeviam pagar por ocasio da venda de um terreno.43 Institudo em 1342pelo rei Afonso XIII perante as cortesde Burgos para financiar as guerrasde reconquista contra os mouros, esse imposto foi ampliado e tornou-sepermanente depois de terminado o conflito. Valendo um vigsimo do preode venda, ele referia-se venda de qualquer objeto material e no apenas venda de terras. Dessa forma, os artesos que produziam quadros deviamentregar ao tesouro 5% do preo da venda. Mas quem vendia serviosimateriais no estava sujeito a isso, sendo que outras isenes eram muito

    raras, como as concedidas aos ourives e aos prateiros. Os reis catlicos,que tinham elevado o imposto a 10%, voltaram atrs concedendo muitasisenes. A iseno principal favorecia, de fato, queles que vendiam seusprodutos para a casa real. A prpria iseno dos ourives e prateiros eraparcial: ela incidia sobre o valor de seu trabalho, mas no sobre o valor domaterial que eles tinham trabalhado, portanto esse valor estava sujeito aoimposto no momento da venda.

    41Ibid., pp. 20-1.42J. Gallego, El pintor de artesanato a artista (Granada: Universidade de Granada/Assembleia Legislativa

    de Granada, 1995).43Glossrio de palavras em espanhol e portugus derivadas do rabe (Dozy e Engelmann).

    Ora, muitos artesos consideravam que a venda de um quadro nopodia assemelhar-se simples venda de um bem, mas sim locao,durante certo tempo, de um talento artesanal. Muitos processos foraminiciados para que essa diferena fosse reconhecida, mas nenhum tribunaldeu ganho de causa aos artesos-pintores. As necessidades financeiraslevavam os que arrecadavam o imposto a s poder considerar o aumentoda base de clculo e, com certeza, no sua reduo. No decorrer dessedebate, os artistas levantaram muitos argumentos, alguns nada evidentes.Um pintor-arteso apresentou o argumento de que Deus tinha pintadoo mundo conforme sua imagem... sem pagar nada. Outro pintor-artesolembrou o fato de que o evangelista so Lucas tinha sido pintor, o quedeveria conferir especial dignidade a essa atividade. Um terceiro chamou

    a ateno para a grandeza que convinha conferir pintura, pois santaVernica tinha contribudo para pintar o rosto de Cristo.44

    Alis, na mesma poca, a ideia da nobreza da pintura surgia em todaa Europa, o que permitia que pintores de vrios pases reivindicassem umstatus que os afastava das condies artesanais a que eles eram remetidossem cessar.

    Assim, em Vie des meilleurs peintres, sculpteurs et architectes, Vasarimostrava, primeiro, que a pintura tem a mesma dignidade da escultura,pois ambas eram filhas do desenho, mas tambm que os pintores vinhamsendo reconhecidos com um nmero crescente de honrarias. Eles recebiamsepulturas magnficas, enquanto os escritores, como Lope de Vega, iamacabar em uma vala comum. Alguns reis iam cabeceira de pintoresdoentes, como Francisco I junto a Leonardo da Vinci. Alguns papas lhesofereciam as funes de cardeal, como Jlio II com Rafael. Leonardo da Vinci,em seu tratado da pintura de 1561, alis, ir atribuir a esta o carter de umainveno sutil que, partindo de inspiraes filosficas, podia analisar todo

    tipo de formas.45Na Espanha, a pintura comeava, ento, a ser consideradano s como uma descrio, mas como o olhar de Deus sobre as coisas.A pintura torna-se, dessa forma, um pensamento que auxilia as mos ouque auxiliado por elas, e para completar essa mudana de status, algunspropunham ver, na poesia, uma pintura cega, o que elevava a pintura aonvel da arte incontestvel que era a poesia.

    Para reconhecer a nobreza da arte, preciso ver que ela , de fato, aparte relacionada mo e ao esprito: Tais artes so liberais onde a reflexoprevalece sobre o trabalho do corpo e das mos [...] elas so, ao contrrio,44J. Gallego, op. cit., pp. 31-52.45R. Alberti, Trattato della nobilit della pittura (Roma, 1585).

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    mecnicas onde as mos e o corpo assumem um papel mais importanteque a reflexo.46Assim, nos sculos XVI e XVII, Ticiano, Velsquez e Murilosempre se representavam em suas obras com o pincel na mo, mas jamaisenquanto pintavam, apenas enquanto pensavam na obra, dando provas,portanto, de que a execuo menos importante que a concepo. Antesos pintores representavam-se como uma personagem no meio de outras,como Botticelli em sua A adorao dos magos. Alm disso, o crescentereconhecimento dos pintores por parte dos prncipes e dos bispos comprovao lugar especfico da pintura, como o gesto de Carlos V apanhando o pincelque Ticiano deixara cair.

    Mas a discusso vai aprofundar-se. A pintura deve ser includa nasatividades liberais e, portanto, ser isenta do pagamento da alcabala,

    porque os que a praticam so homens livres e porque as pinturas tm umpapel educativo, enquanto outras obras s tm o papel de propaganda ouapologia.47Alm disso, essa especificidade baseia-se em uma prtica dapoca: ao contrrio daqueles que vendem, os pintores no so obrigados,ento, a manter abertos seus estabelecimentos.

    Entretanto, a situao social dos pintores no Sculo de Ouro deixamuito a desejar. O pintor comea como aprendiz, ainda muito jovem, comoVelsquez, aos onze anos. Ele ento objeto de um contrato de servioscomo em outros estabelecimentos, onde tudo regulamentado, mas comvariaes conforme a pessoa contratada. Ele tem de fazer tudo que lhe pedido, e como contrapartida a pintura lhe ensinada como uma tcnicadentre outras; ele pode ser tratado se sua doena durar mais de quinze dias.Depois de alguns anos, ele torna-se membro da Confraria de So Lucascom a condio de passar em um exame; exame este que, se reprovado,impediria para sempre sua carreira de pintor. Uma vez aceito, ele recebea permisso de manter aberto um estabelecimento. Quando recebe uma

    encomenda, deve sempre apresentar um desenho esboando a obra queser executada. O pintor recebe o preo depois da entrega da obra, sem nemmesmo t-lo fixado: muitas vezes, ao menos para os pintores de Sevilha,o comprador ou o negociante uma pessoa que leva a obra em questopara a Amrica, e s ali a vende. Com frequncia, vo se passar anos antes

    46Juan de Butron, Discursos apologticos en que se defiende la ingenuidad del arte de la pintura (Madri,1626): Conforme a la verdad aquellas artes se dicen propiamente liberales, honrosas y dignas dehombres librs en cuyo ejercicio prevale el entendimiento al trabajo de las manos y del cuerpo... y por elcontrario aquellas son verdaderamente mecnicas donde las manos y el cuerpo tienen mayor parte enel trabajo que el entendimiento.

    47Sneca: Caterum unum studium vere liberale est, quod liberum facit, hoc est sapientiae, sublime, fortemagnanimum. Cartas a Luclio, livro XI.

    que o pintor receba o valor correspondente, como o caso de Pacheco,que enviou 25 obras religiosas em 1614, para receber o valor apenas em1627.48Murillo, at uma idade avanada, vende suas pinturas nas feiras. Poroutro lado, os pintores recebem muito poucas encomendas dos reis e dascortes, ao menos no que se refere Espanha. Alm disso, pode-se constatarque o rendimento mdio dos pintores , ento, inferior ao dos alfaiates.49Oreconhecimento do carter especial da pintura vir mais de outros meiosartsticos ou religiosos do que das cortes principescas e de seus reis. Isso irmudar progressivamente, tanto que, ao termo dessa evoluo, os pintores,como Rubens, tornam-se no s prximos do poder real, mas tambmrepresentantes deste.

    Um dos primeirssimos a reivindicar uma condio diferente do

    arteso foi El Greco, por ocasio de trs processos contra, sucessivamente,a prefeitura de Toledo, a parquia de So Tom de Toledo e o hospitalde Illescas pelo clebre retbulo. Os litgios eram resultado da tentativade El Greco de gerir sua obra segundo a maneira aprendida na Itlia:quando feita a encomenda, ele recebia um adiantamento, e o preo erafixado na concluso da obra encomendada, com base em uma avaliaoda quantidade e da qualidade do trabalho feito. Ora, no havia acordono incio desses trs processos, e El Greco pedia por volta de quatrovezes o preo imaginado por quem encomendou. Da os conflitos e asapelaes, no comeo, perante as autoridades ou as cortes com finalidadeeclesistica. Os que se opunham ao preo elevado sempre denunciavama no fidelidade dos desenhos ao texto dos evangelhos ou aos costumesaceitos, e requeriam correes, o que El Greco sempre recusava. Ele sempreacabava elevando o preo, embora em proporo varivel, o que levou osoutros pintores da Espanha a ver, nos processos de El Greco, um sinal deemancipao de sua arte.

    Assim, El Greco havia pintado Expolio para a sacristia da catedralde Toledo, encomendada pela prefeitura.50 Dois assuntos estavam emquesto: El Greco exigia quatro vezes o valor oferecido pela prefeitura; estaexigia que certas figuras fossem eliminadas, especialmente os rostos demulheres. Outra discrdia girou em torno da pintura O enterro do conde deOrgaz, sendo o conflito provocado, ento, pela roupagem e pelas armasrepresentadas. Os conflitos foram resolvidos com dificuldade depois de

    48F. Pacheco (1649), Arte de la pintura, su antigedad y bellezas(Madri: Instituto de Valencia de Don Juan,1956).

    49Ibid., p. 86.50J. Gallego, op. cit., pp. 99-114.

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    muitas transaes e apelaes, o que comprovava que o pintor no eraexatamente um arteso como os outros.

    Em 1626, surgiu outra disputa entre Carducho e a secretaria dasfinanas (Real Consejo de Hacienda), que exigia que o pintor pagassea alcabala sobre todas as suas obras51 (Velsquez havia ficado isento).O processo dizia respeito, de fato, a uma srie de pintores, muitos delestrabalhando, ento, para a casa real. Esses pintores eram representados porum advogado, Lucas de Avila Quintillana, que baseou sua argumentaono fato de que a pintura era nobre, os pintores, livres, e que, enfim, elesgozavam de homenagens prestadas pela corte. Essa nobreza da pintura erareforada pelo fato de que ela seria de essncia divina ou de que ela levariaat Deus.

    A primeira resposta do tribunal tinha sido que nenhuma isenoestava prevista, fossem quais fossem as imagens propostas. O advogadorefutou a argumentao, considerando que as obras religiosas no caso,as imagens devocionais no podiam, em caso algum, estar sujeitas aoimposto. Alm disso, ele insistia no fato de que o imposto era pago pelatela e no pelo homem, enquanto o valor da obra estava incorporadoao da pessoa, o que criava um desequilbrio a ser considerado. Esseargumento central era prova da existncia de uma qualidade intangvel,a verdadeira origem do valor. No processo, alis, a analogia havia sidofeita com o livro, que, justamente, gozava de iseno. O advogado tinhaat mesmo pleiteado uma similaridade com os medicamentos farma-cuticos, justamente isentos desses gravames, pois a mistura doscomponentes dependia do talento do preparador. Enfim, para reforara argumentao, havia sido entendido que o pintor iria concordar empagar os direitos sobre os temas profanos, mas no sobre as pinturas detemas religiosos.

    Carducho e os demais pintores finalmente conseguiram, em 1633, umasentena que determinava que eles no precisavam mais pagar o impostosobre as obras que lhes haviam sido encomendadas, mas eles continuariama pag-lo sobre aquelas que eles executavam por iniciativa prpria, e quedepois eram vendidas.52Depois da apelao, a deciso final se ampliariaainda mais para impedir o princpio de uma iseno geral. O argumentoutilizado no ser a nobreza da pintura, mas, mais indiretamente, o fato de

    51V. Carducho, Dilogos de la pintura, su defensa, origen, esencia, definicin, modos y diferencias... Siguensea los dilogos, informaciones y pareceres en favor del arte, escritas por varones insignes en todas letras (Madri: Arquivos Reales, 1633).

    52Era a tese do ut facias: se a pessoa empresta seu talento, ela no pode ser taxada.

    que se tratava de um emprstimo de servios, no assimilvel ou reduzidoa uma simples transao material.

    O processo de Carducho no regulamentou definitivamente oproblema. Um argumento havia desempenhado um papel importante,ao mesmo tempo que mantinha a confuso: o fato de que a pintura era,agora, praticada pelos nobres, que estavam tradicionalmente isentos daalcabala. Um processo sobre o caso do nobre Juan Carreno de Miranda,que tinha abraado a carreira de pintor contra a vontade dos pais, iriamudar a perspectiva, pois ficava difcil recusar aos pintores plebeus oque era dado aos pintores nobres.53 No final desse perodo, Palominodar uma viso sinttica das considerveis transformaes de que tinhasido objeto a pintura. Em seu Museo pictrico y escala ptica (1715), ele

    vai diferenar as cincias das artes: as cincias so resultado do raciocniopela demonstrao, e as artes, da sensibilidade para as coisas reais. As artesliberais so, portanto, aquelas onde o lado especulativo predomina sobreo lado fsico, ao contrrio das artes mecnicas, e, entre essas artes liberais,a pintura tornou-se, talvez, a mais nobre das artes, pois integra todas asfontes possveis da nobreza: natural, civil, teolgica e poltica.54

    Uma nova figura: o pintor da corte

    Ao contrrio de uma crena popular, logo depois da formaodas primeiras especializaes, surgiu um status de quase-artista, o delicenciados. Na Frana, desde 1399, os artistas da corte eram isentos dosimpostos devidos pelas corporaes, alm de no serem submetidos tutela delas. Instituda por Carlos VI, essa prtica seria seguida pelos Valois, eat se chegou a ver algumas cortes criarem seus prprios licenciados. Alis,

    essa possibilidade seria ampliada, pois, em Paris, o abade de Saint-Germain-des-Prs fazia com que o conjunto dos pintores flamengos gozasse dessasvantagens.55

    Certos atelis e artistas, portanto, no funcionavam no modotradicional. Esses artistas ficavam permanentemente ligados aos prncipes,sistema que iria estender-se por vrios sculos. Eles assumiam atividadesantes feitas pelos atelis monsticos, e alguns reis comeavam a ter, pertodeles, um mestre pintor ou magister pictor. Prximo desse tipo, mas entre

    53J. Gallego, op. cit., p. 159.54Ibid., p. 177.55T. Crow, La Peinture et son public Paris au XVIIIesicle(Paris: Macula, 2000), p. 32.

  • 8/10/2019 Arte e Mercado Itau

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    estes e o ateli, est o fornecedor da corte, artista que continua a morar nacidade mas trabalha para a corte e dela obtm os benefcios.

    O artista da corte no nem um pouco mais independente do queaquele que trabalha sob contrato, pelo menos no comeo. Ele trabalha paraa glria do prncipe, e em geral no imagina que a fama deste possa um diavir a depender dele. As coisas vo evoluir, e ainda que os msicos continuempor muito tempo no mesmo nvel de alfaiates e cozinheiros, os pintores irogozar de outro status, como comprova o fato de que alguns deles recebemum ttulo de nobreza. Eles so sustentados, recebem uma r