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ARTE, FILOSOFIA E GOVERNO
O Desafio do Filsofo Governante na Repblica de Plato
Luiz Maurcio Bentim da Rocha Menezes
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-
Graduao Lgica e Metafsica (Filosofia), Instituto de
Filosofia e Cincias Sociais, da Universidade Federal do
Rio Janeiro, como parte dos requisitos necessrios
obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.
Orientador: Carolina de Melo Bomfim Arajo
Rio de Janeiro
2017
CIP - Catalogao na Publicao
Elaborado pelo Sistema de Gerao Automtica da UFRJ com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).
M541aMenezes, Luiz Maurcio Bentim da Rocha Arte, Filosofia e Governo: O Desafio do FilsofoGovernante na Repblica de Plato / Luiz MaurcioBentim da Rocha Menezes. -- Rio de Janeiro, 2017. 143 f.
Orientador: Carolina de Melo Bomfim Arajo. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Riode Janeiro, Instituto de Filosofia e CinciasSociais, Programa de Ps-Graduao em Lgica eMetafsica, 2017.
1. Filosofia Antiga. 2. Filosofia Poltica. 3.Repblica de Plato. 4. Filsofo Governante. 5. Artedo Governo. I. Arajo, Carolina de Melo Bomfim,orient. II. Ttulo.
Luiz Maurcio Bentim da Rocha Menezes
ARTE, FILOSOFIA E GOVERNO: O Desafio do Filsofo
Governante na Repblica de Plato
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao Lgica e Metafsica (Filosofia), Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Filosofia
Aprovada em 18 de dezembro de 2017
_______________________________ Prof. Dr. Carolina de Melo Bomfim Arajo, Orientador (UFRJ) _______________________________ Prof. Dr. Francisco Gonzalez (uOttawa) _______________________________ Prof. Dr. Admar Almeida da Costa (UFRRJ) _______________________________ Prof. Dr. Alice Bitencourt Haddad (UFRRJ) _______________________________ Prof. Dr. Paulo Butti de Lima (UNIBA)
Para Zuza, nenns e famlia
AGRADECIMENTOS
Agradeo aos meus pais Adyr e Gloria Regina, por toda a dedicao e ajuda que me
deram. Minha av Alda, minha irm Ana Luiza (Nalu), meu padrinho Srgio, minha
madrinha Suzana, minha dindastra Denise, ao meu afilhado Rodrigo e Tia Maria, por
estarem sempre do meu lado. Aos meus falecidos avs: Jos Bentim, Jos Menezes e Maria
Helena Menezes, que sempre prezaram pelo meu bem.
Aos meus sempre amigos:
Thiaguito - companheiro de bebidas.
Heder - pelos mais longos anos de amizade.
Andrezitos - pelas altas aventuras que passamos juntos. Valeu, meu amigo!
Marcelo e Marcela amigos que guardo da minha passagem pelo Colgio Pedro II.
Icaro - pelos voos.
Rmulo - pela percusso e batera. Senhor do tempo.
Iscrates - pela oratria.
Scrates, pois, mesmo ignorante, me ensinou a buscar.
Daniel Pin - companheiro Munchkin e Shadow Storm: a amizade longa.
Gabriel Chati - pela amizade, conversas polticas e troca de ideias. Conhecer-te foi,
para mim, fundamental.
Paulo Malafaia, entre discusses, a amizade sempre s cresce: grande amigo.
Reginaldo Farias, companheiro de discusses fsicas e metafsicas. Meu mais novo e
grande amigo.
Aos amigos Danillo Leite, Guilherme Ceclio, Renata e Antonio Janunzi,
companheiros de Filosofia.
Ao meu amigo Fbio (Leo) Cndido, cujas conversas foram muito importantes para
que eu fizesse filosofia.
Ao enigmtico amigo, Fernando Maia.
Aos professores do Colegiado de Filosofia da UEAP.
Ao meu amigo Cesar de Alencar, que no para de me perseguir.
Ao professor Oswaldo Munteal. Amigo e Mestre; e a V(ernica).
Thamiris Oliveira pelo Amor.
Um especial agradecimento professora Carolina Arajo, orientadora e amiga para os
momentos de dvida e dificuldade deste trabalho. Acredito que todas as discusses que
tivemos sobre a tese foram frutferas para a sua finalizao.
Aos professores da banca Francisco Gonzalez, Paulo Butti de Lima, Admar Almeida
da Costa, Alice Bitencourt Haddad, Maria das Graas Augusto e Luisa Buarque de Holanda.
s secretrias do PPGLM, Cristina, Cristiane e Rosana, pelo suporte e ajuda.
Aos colegas do PPGLM no doutorado e mestrado.
Ao PRAGMA e ao PPGLM pelo apoio.
Ao nobre Argos.
s saltitantes Thelminha e Luse. Salvar vocs foi a melhor coisa que j fiz na vida.
minha querida e amada Zuza. Nosso amor s nosso.
Agradeo ao inesquecvel Antonio pelas risadas, diverso e carinho.
Maria Kal Elizabeth, companheira, amada e amiga: com ela constru uma famlia
limitvl. Agradeo por toda ajuda, amor e amizade.
H tambm uma felicidade metafsica
em sustentar o absurdo do mundo.
- Albert Camus (O Mito de Ssifo)
RESUMO
MENEZES, Luiz Maurcio Bentim da Rocha. Arte, filosofia e governo: o desafio do filsofo governante na Repblica de Plato. Rio de Janeiro, 2017. Tese (Doutorado em Filosofia) Instituto de Filosofia e Cincia Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
O trabalho procura compreender a arte do governo descrita na Repblica de Plato e o
argumento que, segundo a justia, atribui ao filsofo o governo da cidade (plis). Trasmaco
ser o primeiro a atribuir uma tchne ao governo, entendendo que a justia deve estar
subordinada ao krtos do governante. Dessa forma, a justia consiste no cumprimento do
justo pelos governados em benefcio do governante. A concepo de Glucon da justia se faz
por um artifcio. O governo se constitui por um contrato que determina o legal e o justo. A
partir desse contrato, o governante pode controlar a justia dos governados de modo que ele
mesmo no precise do contrato participar. A fim de reforar o discurso de Trasmaco,
Glucon ir propor a Scrates um desafio em que este ter que provar que a justia melhor
do que a injustia. Ou seja, tarefa de Scrates demonstrar que a justia sempre superior
injustia em qualquer situao contrafactual, trazendo sempre benefcios quele que pratica a
justia. A dificuldade para se responder o desafio proposto por Glucon, se encontra em um
caso na Repblica em que o cumprimento da justia parece no trazer benefcios ao agente,
mas uma pena. Esse o caso do filsofo governante e sua coao (annke) para governar.
Para isso, deve-se entender o motivo pelo qual o filsofo coagido a governar, no sendo,
portanto, uma questo de escolha, mas de algo cuja recusa lhe impossvel devido justia. A
soluo de Scrates para responder ao desafio da justia parte das definies de justia
poltica, fazer cada cidado a sua funo, e a justia psquica, a harmonia entre as partes da
alma. Nosso argumento demonstra que a prpria justia presente na alma do filsofo
determinante para a realizao da justia na cidade, de modo que o governo do filsofo se
justifica na necessidade de se concretizar a justia na Kallpolis e permitir o bom governo.
Palavras-Chave: Filosofia. Filosofia Antiga. Filosofia Poltica. Repblica de Plato. Filsofo
Governante. Arte do Governo.
ABSTRACT
MENEZES, Luiz Maurcio Bentim da Rocha. Arte, filosofia e governo: o desafio do filsofo governante na Repblica de Plato. Rio de Janeiro, 2017. Tese (Doutorado em Filosofia) Instituto de Filosofia e Cincia Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
The work aims to understand the art of government as described in Plato`s Republic
and the argument which, according to justice, assigns the philosopher with the governance of
the city (polis). Thrasymachus will be the first to assign techne to governance understanding
that justice must be subject to the ruler`s kratos. Thus, justice consists in the fulfilment of
justice by the governed to the benefit of the ruler. Glaucon`s concept of justice is made of an
artifice. Government is constituted by a contract which determines what is legal and just.
After which the ruler may control the justice of the governed, even though he does not need to
tk t i th tt himlf gig th ifmt f hymhu h
Glaucon will propose to Socrates a challenge in which the latter will have to prove that justice
is always better than injusticthtitittktmttthtjutiilwy
superior to injustice against all odds, enabling benefits to whomever practises it. The
iffiultytwluhllgliithRepublic where the
fulfilment of justice appears not to bring benefits to its agent, but a penalty. This is the case of
the philosopher ruler and his compulsion (ananke) to rule. Therefore, one must understand the
reason why the philosopher is compelled to rule, that not being a matter of choice, but
mthigwhful i imilu t juti itlftluti tw th
challenge of justice starts from the definitions of political justice, based on each citizen
performing its own task, and the psychic justice, on the harmony within the parts of the soul.
u gumt hw tht th juti whih i t i th hilh ul itlf i
tmit f th litif th ity juti, tht thhilh gvmt i
justified in the necessityfmtilitifjutiithKllili,thullwigth
good government.
Key-words: hilhy, it hilhy, litil hilhy, lt Republic,
Philosopher Ruler, Art of Government.
SUMRIO
1 INTRODUO ................................................................................................................................................ 11
2 JUSTIA, BEM E GOVERNO EM TRASMACO ...................................................................................... 16
2.1 Justia e governados ........................................................................................................................................ 17
2.2 Governo e epistme ......................................................................................................................................... 22
2.3 Injustia e aret ................................................................................................................................................ 24
2.4 Arte e benefcio ............................................................................................................................................... 29
2.5 Arte e injustia ................................................................................................................................................. 34
2.6 Governo de si e dos outros .............................................................................................................................. 42
2.7 Retomando Trasmaco ..................................................................................................................................... 49
3 O DESAFIO DE GLUCON E O GOVERNO DO FILSOFO ................................................................. 52
3.1 O Desafio de Glucon ..................................................................................................................................... 53
3.2 O governo do filsofo: o problema .................................................................................................................. 61
3.3 O governo do filsofo: status quaestionis ........................................................................................................ 70
3.4 Apora .............................................................................................................................................................. 88
4 FILOSOFIA E GOVERNO ............................................................................................................................. 90
4.1 Cidade e Alma ................................................................................................................................................. 91
4.2 Terceira onda ................................................................................................................................................... 96
4.3 A Natureza Filosfica .................................................................................................................................... 105
4.3.1 O ros filosfico ......................................................................................................................................... 105
4.3.2 A Nau do Estado ......................................................................................................................................... 107
4.3.3 A corrupo da filosofia ............................................................................................................................. 110
4.3.4 A diviso da annke.................................................................................................................................... 112
4.4 Retorno Caverna: o Filsofo Governante ................................................................................................... 114
4.5 Felicidade do Filsofo ................................................................................................................................... 117
5 CONCLUSO ................................................................................................................................................ 127
REFERNCIAS ................................................................................................................................................ 129
1 INTRODUO
Ao tomarmos como objeto de nosso estudo a Repblica de Plato1, entendemos que
essa uma obra j vastamente estudada desde o seu surgimento no sc. IV a.C. Vegetti nos
i,mii,ufilfilt pela mesma forma textual em
que representado no pode ser reduzido a um sistema unvoco de significados2. Nosso
propsito, portanto, no exaurir suas possibilidades interpretativas, mas contribuir, no limite
de nossas foras, para a contnua investigao da obra em questo. Para tanto, optamos por
investigar a arte do governo e sua correlao com a justia e o bem.
Pensar a arte do governo na Repblica, implica em entender os pressupostos descritos
por Scrates sobre a fundao da cidade no discurso e o seu desenvolvimento na ordem da
phsis, de modo que se possa conciliar o que se produz no discurso (lgos) com a funo
(rgon) da arte do governo. m,ltltimumtiti
tti3 e no conceitualmente separada. O governo em Plato abrange, alm da poltica,
as dimenses tica, psicolgica e metafsica, constituindo um todo uno e no segmentado.
Pensando sobre isso, Scrates, junto aos seus interlocutores, ter como tarefa principal da
nova cidade a educao dos guardies e dar uma direo ao governo da cidade. Nisso, o ponto
mais alto, e tambm mais difcil, ser a relao entre filosofia e governo. Para a realizao da
Kallpolis4 a filosofia se torna parte necessria, assim como o seu governante deve ser filsofo
educado da melhor maneira pela cidade.
Ser nesse momento que a poltica ir cruzar caminho com um projeto metafsico, que
se relaciona diretamente com o longo caminho citado no Livro IV e iniciado no Livro VI5.
Dessa maneira, se faz necessrio um conhecimento da ideia ou forma6 do bem para que se
possa agir com sabedoria [ ]7, sendo esse conhecimento reservado aos
1 Para a traduo, utilizaremos o texto de Maria Helena da Rocha Pereira, A Repblica (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2001). Tomaremos esta traduo como base para nosso trabalho, utilizando tradues u julgmimifi livi Rep. indicando-se em seguida a numerao. Para o original grego em todo o trabalho, utilizaremos o texto estabelecido por S. R. Slings, Platonis Rempvblicam (Oxford: Oxford University Press, 2003). 2 VEGETTI, M. Um Paradigma no Cu: Plato Poltico de Aristteles ao Sculo XX. So Paulo: Annablume, 2010, p. 263. Grifos nossos. 3 WALLACH, J. R. The Platonic Political Art. Pennsylvania: Pennsylvania University Press; University Park, 2001, p. 31. 4 Para nos referirmos cidade justa estabelecida na Repblica, usaremos a palavra grega Kallpolis transliterada e sem itlico em toda tese. 5 Cf. Rep., 435d; 504b. 6 Usaremos indistintamente ambas as palavras (ideia e forma), nesse trabalho, para significar os termos gregos
e . 7 Rep., 517b-c.
12
filsofos os quais se impor a guarda da cidade [ ], por
serem os mais instrudos nos meios de bem administrar a plis [
] e que possuem outras honras e uma vida melhor que a vida poltica [
]8. O filsofo por no desejar o governo para si,
ser considerado o mais apto a governar. Isso se deve ao conhecimento que ele tem das
formas e sua capacidade de aplic-las na cidade, o que faz do filsofo aquele que concilia
teoria e prtica. O governo do filsofo, portanto, se justifica na necessidade de se concretizar
a justia na cidade, sendo o filsofo o maior expoente desta. Ao investigarmos em nosso
trabalho a arte do governo, queremos demonstrar a relao necessria que se faz entre
governo, filosofia, justia e bem. Entendido isso, dividiremos a tese em cinco sees, sendo a
primeira esta introduo e a ltima a concluso do trabalho. As outras trs sees centrais se
dividem em captulos que visam analisar a arte do governo e o problema do filsofo
governante na tentativa de esclarecer a relao proposta entre governo, filosofia, justia e
bem.
No primeiro captulo, iremos, primeiramente, tratar do embate entre Scrates e
Trasmaco em torno da justia e do governo. A defesa de Trasmaco de uma tchne do
governo que tem, no seu saber prprio, a sua infalibilidade o prenncio de que o governo
tambm participa de um tipo de epistme especfica que lhe d o estatuto de arte. Ser atravs
das colocaes de Trasmaco que, primeiramente, se far a relao entre justia, cidade e
governo e, tambm, teremos o estabelecimento de uma arte do governo, arte essa que
determinaria o justo dentro da cidade. Aquele que detm a arte do governo ser considerado o
mais forte dentro da cidade, de maneira que o krtos imprescindvel para a distino do
justo e do injusto. Os justos so aqueles que obedecem, i.e., os governados; e os injustos so
aqueles que tentam de alguma maneira tirar vantagem para si mesmo. Dentre os injustos, um
se destaca mais dos que os demais, sendo este o completamente injusto, i.e., o tirano. A
derrocada de Trasmaco se dar na sua defesa da injustia como a regra de vida que se deve
seguir, tomando o tirano como o mais feliz dos homens.
O ponto alto t tul t m um ti
f lti u e que permitir a consolidao do governo injusto, o que ser
fortemente questionado por Scrates. Esse questionamento ocasionar uma investigao mais
acurada pelo conceito de governo, de modo que possa abranger todas as questes envolvidas
no fazer poltico e nas coisas da cidade. Trasmaco, portanto, ir nos apresentar um realismo
8 Rep., 521b7-10.
13
poltico em que o governo a representao da convenincia do governante, de maneira que a
determinao da justia se faz para o benefcio do prprio governante em detrimento dos
governados.
O argumento de Trasmaco ser retomado no Livro II pelos irmos Glucon e
Adimanto que, no intuito de ouvirem Scrates fazer um genuno elogio justia, defendero a
injustia e a dxa da justia. Em nosso segundo captulo, partiremos do desafio maior
proposto por Glucon de que h uma noo da maioria das pessoas (pollo) sobre a natureza
humana como sendo voltada para a pleonexa9, ou seja, uma natureza que visa seu prprio
interesse e tem no ato de cometer injustia um bem. Isto leva a uma concepo da justia
como sendo penosa e no agradvel, o que faz com que eles tomem a vida do injusto como
sendo mais feliz do que a do justo10. A aparncia se torna a chave para a manuteno do
governo e ele ir enfatizar isso quando diz uuumijutijusto sem
]11, dessa forma, Glucon apresenta um artificialismo
poltico atravs de um contrato que ir determinar o legal e o justo. O injusto de Glucon tem
conhecimento como um demiurgo e isso que lhe d o aparato da reputao (dxa) de justia.
O desafio proposto por Glucon a Scrates faz com que este tenha que provar que a
justia melhor do que a injustia. Ou seja, tarefa de Scrates demonstrar que a justia
sempre superior injustia em qualquer situao contrafactual, trazendo sempre benefcios
quele que pratica a justia. Se a justia deve ser sempre superior, no poderia haver um caso
de exceo, nem por hiptese. H, no entanto, um caso na Repblica em que o cumprimento
da justia parece no trazer benefcios ao agente, mas uma pena. Esse o caso do filsofo
governante e a coao para governar. Para que possamos entender em que consiste a ordem
dessa coao teremos que averiguar em que consiste o termo e porque nesse caso
temos como melhor significado a coao ou tambm compulso.
o objetivo desse segundo captulo expor o problema, relacionando com o Desafio de
Glucon, e propor um caminho possvel para a soluo do caso do filsofo governante. A
resposta ao filuumigmi cujo real significado pouco
9 Segundo LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Greek-English Lexicon (2 ed.). New York: Harper & Brothers, 1883, p. 1224; a palavra pode significar ganncia, apego, arrogncia, vantagem, abundncia. De acordo com CHANTRAINE, P. Dictionnaire tymologique de La Langue Grecque. Histoire de Mots, tome III. Paris: ditions Klincksieck, 1979, p. 913; a palavra pertence a famlia de () , que compe gi, u tm mi u ut m - , - , - , etc., cf. s.u. . Pelo significado amplo da palavra e por ser pea chave para se entender o tipo de desejo dos pollo, preferimos pela sua tlitltuuutilimlv,mtlh,tijtmiuut 10 Os argumentos aqui expostos fazem parte dos discursos de Glucon (357a-362c) e Adimanto (362d-367e) no Livro II da Repblica. 11 Rep., 361a5.
14
se conseguiu desvendar. Seria ento possvel ser justo e, com isso, trazer sempre benefcios
para o seu agente? Poderia a justia ser sempre superior injustia em qualquer situao
contrafactual? Enfim, vale a pena ser justo? O desafio , portanto, a chave para uma adequada
e consistente resposta de Scrates sobre a beleza e o valor da justia em si mesma.
Abrimos o terceiro captulo com a resposta de Scrates ao desafio. Na tentativa de
responder os irmos Glucon e Adimando, Scrates dar incio a fundao da cidade no
discurso [ ]12. Ser pela cidade que Scrates iniciar a
investigao sobre a justia para depois se centrar na justia na alma, propondo a existncia
de uma analogia entre cidade e alma. A discusso segue pela introduo da terceira onda e a
relao entre filosofia e poltica, em que os governantes devem ser ou se tornar filsofos. Ser
aqui que o problema da coao do filsofo ao governo se faz presente como a arquitetura que
possibilitar a realizao da Kallpolis, o que implicaria em tornar a relao lgos-rgon
inerentes a arte do governo. Como poderemos perceber na leitura da tese, no Livro I,
Trasmaco e Scrates concordariam sobre a existncia de uma arte do governo que teria uma
epistme especfica para caracterizar o governo13. J no Livro II, Glucon tomar outro
caminho na tentativa de defender o governo injusto: ir atrelar a este a dxa. A aparncia ser
o que permite ao governante injusto controlar a cidade como um todo. Mas ser atravs da
gnese do filsofo governante, no Livro V, que se tem a possibilidade da execuo da politea
descrita no discurso, de maneira que o filsofo governante se torna uma figura arquitetnica
para a possibilidade da Kallpolis.
Alm disso, preciso levar em considerao a formao do filsofo e que implicao
isso tem dentro da Kallpolis, pois o seu governo deve ser por annke, porque assim
determina e fora a sua natureza filosfica pelo bom governo da plis. Ou seja, da ordem da
phsis a exigncia ao filsofo para que ele governe a cidade. No entanto, a phsis no
condio suficiente para que existam filsofos, mas precisa-se de educao para realizar a
formao adequada para a filosofia.
O smbolo utilizado por Plato para caracterizar essa volta para a cidade ser a
Caverna. O retorno para a Caverna ser um dos mais difceis momentos da exegese da
Repblica, pois leva em conta todas as dificuldades apresentadas nos demais captulos da
tese: o Desafio de Glucon, a coao do filsofo para governar, a relao entre filosofia e
poltica, e o problema da relao entre justia e bem. Em suma, o filsofo no deseja retornar
a Caverna para governar, pois tem uma vida melhor fora do governo. Isso distinguiria o
12 Rep., 369c. 13 Rep., 340e1-341a4.
15
filsofo dos demais governantes das cidades atuais que desejam governar. Ser esse
diferencial do filsofo em relao aos demais governantes que tornar o governo do filsofo o
melhor possvel, pois somente pelo enfrentamento dos afazeres polticos e de sua forosa
descida para a Caverna que o filsofo poder se tornar realmente completo.
2 JUSTIA, BEM E GOVERNO EM TRASMACO
A discusso entre Trasmaco e Scrates no Livro I da Repblica de Plato d vigor
questo da justia iniciada com Cfalo. Este captulo tem por princpio mostrar como
Trasmaco sustenta que governo se ope justia e ao bem alheio. Segundo ele entende, a
justia no capaz de produzir um benefcio quele que a exerce, de maneira que todo ato de
justia um bem alheio, mas nunca ao seu agente. Sendo assim, o motivo pelo qual os
governantes desejam governar para a sua prpria vantagem e no para o benefcio dos
governados, de modo que a justia utilizada pelo governante para fazer com que os
governados faam o que vantajoso ao governante, mas no a si mesmos.
A posio de Trasmaco um divisor de guas para as questes sobre a justia. Ser
atravs do seu posicionamento que a justia ser trazida para a ordem do governo, de modo
que o que ele tenta demonstrar que esfera da justia est relacionada esfera da poltica. O
lgos de Trasmaco possui severas dificuldades de interpretao, o que levanta forte
divergncia entre os comentadores sobre o que realmente ele estaria querendo dizer. Ao tratar
da justia, trs sero as principais teses por ele apresentadas. Coloc-las-emos por inteiro para
fins de esclarecimentos futuros.
(1) afirmo que a justia no outra coisa seno a convenincia do mais forte.1 (T) Cada governo estabelece as leis de acordo com a sua convenincia.2 (T3) , ,
de fato, a justia e o justo [so] um bem alheio, que consiste na convenincia do mais forte e do governante, e que prprio de quem obedece e serve ter prejuzo.3
Alguns comentadores alegam que a primeira tese a real posio de Trasmaco, pois
ele estaria preocupado apenas com a poltica, e quando ele fala sobre o mais forte, ele quer
dizer, de fato, o governante4. Outros pensam que a sua posio real est na terceira tese5. H
1 Rep., 338c2-3. 2 Rep., 338e1-2. 3 Rep., 343c3-5. 4 Para uma lista extensa destes, ver NICHOLSON, 1974. 5 K,htifhymhuiltuliDurham University Journal, v. 9, p.19-27, 1947, reimpresso in CLASSEN, C. J. (ed.). Sophistik. Wege der Forschung, band 187, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1976, p. 545-563 (citaes seguem a ltima paginao); NICHOLSON, 1974; ANNAS, J. An Introduction to Platos Republic, Oxford, 1981.
17
iummumlglit()tiuiujuti
ii li6. Muitos trabalhos foram desenvolvidos nos ltimos anos sobre a
relevncia dos argumentos de Trasmaco para a Repblica, alguns defendem a total
inconsistncia de seus argumentos7, outros defendem a inconsistncia devido a uma
manipulao de Plato sobre o personagem Trasmaco8 e, por fim, h aqueles que defendem a
consistncia dos argumentos mediante alguns ajustes9.
Na primeira parte deste captulo, faremos um detalhado estudo dos argumentos com o
intuito de verificar se h um problema nas teses apresentadas por Trasmaco e qual seria, de
fato, sua concepo sobre a justia e a injustia. Sem a pretenso de exaurir o problema, nosso
trabalho visa tornar mais clara a discusso e se possvel falarmos em uma tese realista da
justia em Trasmaco e quais seriam as consequncias dessa tese para o governo. Para
entendermos isso, preciso antes identifiultmift,ut,jut
ijut, ti vuli utili l m u gumt Em nossa
anlise, entendemos que Trasmaco defende a jutimmlhiuitgt
coeso entre todas as teses apresentadas por Trasmaco. Em segundo lugar, nos propomos a
investigar a tchne em Trasmaco, verificando se a arte do governante injusto proposta por ele
vlida para o argumento e que tipo de governo seria formado por essa tchne. Por ltimo,
iremos analisar o problema posto por Scrates sobre a cidade de homens bons, concluindo
com os tipos de governo defendidos nos posicionamentos de Scrates e de Trasmaco.
2.1 Justia e governados
Desde a interpretao de Kerferd, muito se tem discutido com relao ao papel de
Trasmaco no dilogo e sobre a maneira como este apresenta a justia. Um primeiro ponto a
ser tratado dentro desta discusso se todas as teses defendidas por Trasmaco constituem 6 I,hymhufiitifJuti iltuli Phronesis, v. 7, n.2, p. 110-120, 1962. Contra esta posio, ver, KERFERD, G. B. Thrasymachus and Justice: a Reply. Phronesis, v.9, n. 1, p. 12-16, 1964; HADGOPOULOS, J. Thrasymachus and Legalism. Phronesis, v. 18, n. 3, p. 204-208, 1973. 7 Entre outros, ANNAS, op. cit.; ALLAN, D. J. Plato: Republic book I. London, 1940; KLOSKO, G. hymhitikhggiuliIPolity, v. 17, n. 1, p. 5-29, 1984; EVERSON, S. The Incoherence of Thrasymachus. Oxford Studies in Ancient Philosophy, v. 16, p. 99-131, 1998. 8 I,ltiultifhymachus. Phoenix, v. 21, n. 1, p. 27-39, 1967; MAGUIRE, J. P. Thrasymachus --- or Plato? Phronesis, v. 16, n. 2, p. 142-163, 1971. 9 Muitos so os autores que tem se dedicado nos ltimos anos a defender uma consistncia no argumento entre os mais importantes podemos citar KERFERD (1947; 1964); HOURANI (1962); SPARSHOTT, F. E. Socrates and Thrasymachus. The Monist, v. 50, n. 3, p. 421-459, 1966; HENDERSON, T. Y. In Defense of Thrasymachus. American Philosophical Quarterly, v. 7, n. 3, p. 218-,1I(1),KtRefutation of Thrasymachus and Treatment of Virtue. Philosophy & Rhetoric, v. 7, n. 1, p. 25-46, 1974; REEVE, C. D. C. Socrates meets Thrasymachus. Archiv fr Geschichte der Philosophie, v. 6-7, n. 3, p. 246-265, 1985; BOTER, G. J. Thrasymachus and . Mnemosyne, v. 39, fasc. 3-4, p. 261-281, 1986; CHAPPELL, T. D. J. The Virtues of Thrasymachus. Phronesis, v. 18, n. 1, p. 1-17, 1993. REEVE, C. D. C. luhllghymhimOxford Studies in Ancient Philosophy, v. 34, p. 69-103, 2008.
18
definies com valores universais. Para Hourani, uma definio proposta primeiramente
como uma hiptese atravs da linguagem corrente e testada por esta linguagem. Ao tratar de
(T1), Hourani pensa que Trasmaco no est tentando estabelecer a uma definio, mas uma
proposio sinttica, pois parcialmente emprica. A verdadeira definio seria uma
ifi t, u i juti li10. Kerferd no concorda com este
posicionamento dizendo que
ultgututfmuxltfgutsobre o significado da palavra ou sobre o uso lingustico ele est estabelecendo questes sobre algo que considerado como uma coisa. Por conseguinte, juzos sintticos transmitindo informaes factuais so exatamente o que ele procura em tais casos.11
Nichol i u juti m um m lhi tm tti uivl
juti,utviimiftmtvlimi
forte tem vantagem12tt,tttu jutiummlhif
tomada como uma caracterizao universal, ela significar que no somente quem justo
procura o bem do outro como tambm seu prprio prejuzo13, o que parece um contrassenso.
O problema de se tomar as teses defendidas por Trasmaco como definies com valor
universal cair na inconsistncia desde o comeo. Por isso, Boter no ir tomar nenhuma das
teses de Trasmaco como definies14. No pelas mesmas razes de Kerferd e Nicholson,
entendemos que somente (T3) tem caractersticas de definio. Para compreender o que
estamos dizendo, vamos fazer aqui uma pequena exposio da proposta de Kerferd.
Em seu artigo publicado em 1947, Kerferd ir coletar as principais posies, atribudas
pelos comentadores, ao discurso de Trasmaco. Seriam estas:15
I. Obrigao moral no tem existncia real, mas uma iluso na mente dos homens
(niilismo tico).
II. Obrigao moral no tem existncia parte de decretos legais (legalismo). 10 HOURANI, op. cit., p. 112. 11 KERFERD, 1964, p. 13. 12 NICHOLSON, op. cit., p. 224. 13 BOTER, op. cit., p. 265. 14 Ii, mih itt, u fi u nenhuma das afirmaes de Trasmaco ser considerada como uma definio, i. e., a proposio que descreve a essncia da coisa definida e que vlida sobre todas as circunstncias e uluumivtmm,Jhymhuand Definition. Oxford Studies in Ancient Philosophy, v. 18, 2000, p. 106- ih vi i u um i-nos o que, em realidade, a justia parece ser, observando e descrevendo a ti il hm juti f i l u lt, u v, ti m um fiiformal, mas pelas contundentes e esclarecedoras subversivas generalizaes sobre o funcionamento da justia na sociedade. No h a mnima razo para converter estas generalizaes em definies formais e depois queixar-u,imtm,ltim(if) 15 KERFERD (1947/1976), p. 545-6.
19
III. Obrigao moral tem existncia real independente e surge da natureza do homem
(direito natural).
IV. Os homens sempre perseguem o que eles pensam ser seu prprio interesse e
devem faz-lo a partir de sua prpria natureza (egosmo psicolgico).
A nica destas posies aceitas por Kerferd a (III). Para refutar as outras posies e
justificar a terceira, ele ir propor que a justia como sendo a convenincia do mais forte no
pode ser tomada como definio, mas somente a justia como sendo um bem alheio,
entendendo que esta seria a real posio de Trasmaco16. Dessa forma, Kerferd prope que a
defesa de Trasmaco da injustia coloca esta como uma obrigao moral para ele, assim como
a justia uma obrigao moral para Scrates. Com isso, Kerferd refuta a posio (I)17.
A identidade entre dkaion e nmimon, entendendo nisso uma concepo da justia
como observncia das leis, estaria profundamente enraizada na cultura grega18. No entanto, o
posicionamento de Trasmaco sobre a justia no pode unicamente ser defendido como
iili,i,imf,ugtlitftiit como soluo
para seu argumento. Clitofonte sugere aos demais que a lei feita pelo mais forte (governante)
o que ele julga ser sua convenincia e esta deve ser seguida pelos mais fracos
(governados)19. No entanto, tal considerao no aceita pelo prprio Trasmaco20, pois se ele
assim aceitasse, estaria admitindo ao governante aquilo que no realmente til para ele. A
recusa de Trasmaco sugesto de Clitofonte d base para a refutao de Kerferd posio do
legalismo (II) defendida por Hourani21.
Quanto posio (IV), Kerferd a refuta dizendo que, em sua defesa da injustia,
Trasmaco recomenda que os homens ajam pelos seus prprios interesses, no entanto, os
governados, ao contrrio, agem ingenuamente porque no buscam o prprio interesse, mas
fazem o interesse do governante. Isso no condiz com o egosmo psicolgico que defende que
os homens perseguem sempre o prprio interesse22.
Refutadas as posies (I), (II) e (IV), Kerferd ir advogar a favor da posio (III),
inserindo no argumento de Trasmaco a teoria do direito natural. Segundo Kerferd, Trasmaco
tomaria m g gl juti m lhi23 e defenderia um ideal moral de
16 Ibid., p. 560. 17 Ibid., p. 561. 18 VEGETTI, M. Trasimaco. In: VEGETTI, M. (ed.). Platone. La Repubblica, v. I. Napoli: Bibliopolis, 1998, p. 241. Em XENOFONTE, Memorveis, IV.4; Scrates atesta a relao da justia com a lei. 19 Rep., 340a-b. 20 Rep., 340c. 21 KERFERD (1947/1976), p. 561 e KERFERD (1964). 22 KERFERD (1947/1976), p. 562. 23 Ibid., p. 559.
20
injustia que se ope justia24. Apesar de no usar a terminologia que ope lei natureza,
Trasmaco tomaria a injustia como uma aret e, com isso, faria da injustia a realizao da
natureza dos homens25. Voltaremos a esse ponto mais a frente em nosso trabalho para uma
melhor anlise da proposta final de Kerferd.
A inconsistncia das teses se d ao tomarmos a relao entre governante e governados.
Se a justia um bem alheio e a convenincia do mais forte, temos de um lado os governados
praticando o que melhor para o governante, pois este, lm ut, tambm o
miftlufargumentos, pelo ponto de vista dos governados, estarem
de acordo. No entanto, ao tomarmos o ponto de vista do governante poderamos ter uma
inconsistncia, pois, caso o governante praticasse a justia teria que fazer necessariamente um
bem para si mesmo visando a convenincia do mais forte e no um bem alheio como estava
estabelecido em (T3), portanto, nesse caso, a justia se confunde com a definio de injustia
que a busca da prpria vantagem. Este o principal problema para que os argumentos de
Trasmaco possam concordar entre si. Como poderemos ver mais adiante nesse captulo, a
relao de fora (krtos) entre governantes e governados ir determinar tipos de virtudes
diferentes para cada um, isto , a justia para os governados e a injustia para os governantes.
Henderson ir tentar resolver este problema da seguinte maneira: a ao justa a
vantagem do mais forte porque o mais forte algum que sempre tem a oportunidade para
explorar as aes justas dos outros26. Para explicar o seu pensamento ele ir definir no que
consiste, segundo o seu entendimento, mais forte, injusto e governante. O mais forte seria
sempre um homem injusto; homens injustos so aqueles que cometem aes injustas; o
governante algum que sempre faz leis que so vantajosas para ele, no sendo definido nem
como justo nem como injusto27. Para Henderson, caso um governante seja justo no poder
ser considerado um homem forte, pois somente os governantes injustos so homens fortes28.
Dessa forma, a ao justa a convenincia do mais forte, sendo o mais forte, por definio,
aquele que tira vantagem de todas as oportunidades que o possam beneficiar. A justia um
bem alheio, de modo que as aes justas do a oportunidade de homens injustos enganarem
um homem justo. Injustia seria a prpria vantagem, no sentido de que as aes injustas tiram
vtgmutmitt, jutiviimift
24 Ii, 1 ] m ijuti um ig ml m t ti m u tjutiumigml 25 Ibid., p. 562. 26 HENDERSON, op. cit., p. 220. 27 Ibid., p. 220-221. 28 Ibid., p. 221.
21
implica que se o mais forte agir justamente isto seja para sua prpria convenincia29. No
entanto, a interpretao de Henderson foge ao texto e para que possamos melhor esclarecer
isto citamos a seguinte passagem:
, ,
, , , ,
, , ,
, ,
Ora, em cada plis, no o governo que detm a fora? Exatamente. Certamente que cada governo estabelece as leis de acordo com a sua convenincia: a democracia, leis democrticas; a tirania, leis tirnicas; e os outros, da mesma maneira. Uma vez promulgadas essas leis para os governados, fazem saber que justo aquilo que lhes convm, e castigam os transgressores, a ttulo de que violaram a lei e cometeram uma injustia. Aqui tens, meu excelente, aquilo que eu quero dizer, ao afirmar que h um s modelo de justia em todas pleis a convenincia do governo estabelecido. Ora estes que detm a fora. De onde resulta, para quem pensar corretamente, que a justia a mesma em toda parte: a convenincia do mais forte.30
Ao falar da justia, Trasmaco parece estar preocupado em demonstrar como esta se
ttiti ]lutltgv
[ ] ititutttmmmumi
gvutm u,tli,tttuimf
mtmm31. O que Trasmaco parece estar estabelecendo uma classificao dos
homens a partir do krtos, dividindo-os em aqueles que tem krtos, i. e., governantes, e
aqueles que no tem krtos, i. e., governados. Em nenhum momento da posterior discusso
entre Scrates e Trasmaco estes discutem quem seria, de fato, o mais forte, pois parece
acordado entre eles, desde o que foi dito em 338d9-10, que o mais forte aquele que exerce o
poder na cidade atravs do governo constitudo, e este s pode ser o governante. Portanto, ao
contrrio do que diz Henderson, o mais forte sempre o governante. No decorrer da
discusso, Scrates tentar provar que, ao contrrio do que diz Trasmaco, a justia no a
convenincia do mais forte e que o governante deve visar a convenincia do governado, mas
no tentar inverter a relao de fora estabelecida pelos dois, como podemos ver pela
passagem demonstrada acima. Segundo Bordes, 29 Ibid., p. 221. 30 Rep., 338d9-339a4. 31 Tomaremos estes termos como sinnimos neste trabalho sempre que estivermos falando de questes relativas ao governo. Isso inclui a relao governante e governado.
22
No entanto, se ele [Trasmaco] procede assim, precisamente porque aos seus olhos a arkh desempenha, nos trs regimes, um papel semelhante ao mi ftnessas condies, o relato entre as leis e a arkh tambm a mesma nos trs casos: as leis so interesse. Elas dependem, desse modo, totalmente da soberania e esta nos apresentada por Trasmaco como um fato de evidncia indiscutvel. Portanto, no h necessidade de se demandar qual pode ser o melhor regime possvel, pelo menos em absoluto: a escolha do melhor regime funo do interesse de cada cidado e do lugar onde se situa no corpo poltico32.
A relao entre lei e governo uma das caractersticas da justia apresentada por
Trasmaco, e a determinao do justo depende da soberania estabelecida no governo. Ser
papel do governante, portanto, o estabelecimento das leis que determinem o justo. Eis o
realismo poltico de Trasmaco, pois no importa qual o tipo de governo que seja estabelecido
na cidade, a justia a mesma em toda parte ]33, de modo
que justia e governo esto sempre correlacionados pela mesma relao de poder, de acordo
com Trasmaco, o que faria do krtos um fator fundamental para o governo, assim como para
a distino entre governantes e governados.
2.2 Governo e epistme
Exposta esta concepo geral de justia, Scrates ir questionar Trasmaco sobre a
possibilidade de o governante errar. Se na formulao das leis o governante errar, essas no
vo ser sempre o mais vantajoso ao governante, mas tambm o contrrio, o desvantajoso34.
Clitofonte ir i u vii mi ft l m] ti u
mais forte supe ser a sua convenincia. isso que deve fazer o mais fraco, e foi isso que ele
tumjut , ,
,
]35. Ao recusar a sugesto de Clitofonte de que o governante faz leis que ele pensa
m fi l, m i gut t u hm mi ft
ul u g, mmt m u g
;]36. a partir da crtica de Scrates que Trasmaco vai
apresentar mais um elemento necessrio para a definio do mais forte: ele no deve errar.
Mas como pode o governante no errar? Para melhor entendermos isto, Trasmaco trar o
governo para o mesmo campo das artes demirgicas e tomar o governante como um
32 BORDES, J. Politeia dans la pense grecque jusqua Aristote. Paris: Les Belles Lettres, 1982, p. 250. 33 Rep., 339a3. 34 Rep., 339c-e. 35 Rep., 340b6-8. 36 Rep., 340c6-7.
23
demiurgo, ou seja, o artfice mximo da sua arte. Desse modo, Trasmaco fala com rigor
]u
, ,
, , ,
, , ,
nenhum artfice se engana. Efetivamente, s quando o seu saber o abandona que quem erra se engana e nisso no um artfice. Por consequncia, artfice, sbio ou governante algum se engana, enquanto estiver nessa funo, mas toda a gente dir que o mdico errou, ou que o governante errou. Tal a acepo em que deves tomar a minha resposta de h pouco. Precisando os fatos o mais possvel: o governante, na medida em que est no governo, no se engana; se no se engana, promulga a lei que melhor para ele, e essa que deve ser cumprida pelos governados. De maneira que, tal como declarei no incio, afirmo que a justia consiste em fazer o que conveniente para o mais forte.37
Em seu comentrio Repblica, Adam vai dizer que Trasmaco, na passagem aqui
citada, deixa os fatos para tratar de um tipo de idealismo, pois toma o governante como
infalvel38. Guthrie diz haver uma falha no argumento, pois ao tentar demonstrar o governante
real, Trasmaco acaba por formular um governante ideal ao introduzir o sentido estrito de que
o governante no erra39. Para Harrison, o argumento est sem um propsito adequado e
representa uma das provas da manipulao de Plato sobre o personagem Trasmaco40.
Acreditamos que a passagem no est propriamente tratando de um idealismo ou qualquer
tipo de manipulao de Plato para fins futuros, mas que Trasmaco est estritamente
separando a funo do artfice quando est a exercer a sua arte. Dessa maneira, o mdico
tomado na funo de exercer a medicina no assim chamado quando erra, mas por ser
aquele que designado para tratar do corpo. O homem que toma por vezes a funo de
mdico pode por vezes errar em seus afazeres comuns, mas no quando est exercendo a
medicina. Portanto, a definio de mdico no pode ser tomada pelo erro, mas pela funo e
utilidade especfica da arte. Da mesma forma, Trasmaco est a falar do governante como
aquele que no exerccio de sua funo faz leis que so melhores para l
], de acordo com a sua convenincia, beneficiando assim o seu prprio interesse.
Dessa forma, Trasmaco teria adicionado um importante elemento para a fundamentao do
37 Rep., 340e1-341a4. 38 ADAM, J. The Republic of Plato, v. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 33. 39 GUTHRIE, W. K. C. Os Sofistas. So Paulo: Paulus, 2007 (1995, 1 ed.), p. 92. 40 HARRISON, op. cit., p. 31.
24
poder dentro da plis, isto , ele teria adicionado conhecimento ao poder poltico como outra
iimift41.
Scrates ir se aproveitar do rigor de Trasmaco para uma definio de governante
como um artfice para introduzir o argumento da tchne. Entendendo que o sentido rigoroso
da arte do governo deve ter o mesmo sentido geral das demais artes existentes, Scrates ir
proceder por uma analogia com a tchne aproximando o governo da definio de arte. Desse
modo, Scrates demonstra a Trasmaco que toda arte completa [ ]42 e
,mutgvmmimulumtm
]43. Feito isso, Scrates relaciona os
sentidos de tchne, krtos e arkh, demonstrando que no fundamento geral de toda arte, a arte
governa o artfice para que ele possa proporcionar o vantajoso ao mais fraco e no ao mais
forte44.
No entanto, para Trasmaco, conhecimento (epistme) passa a ser uma das condies
para se ter o krtos, o que significa dizer que miulugvtumi
ft,mmtuumumtchne para governar. Dessa forma, Trasmaco est
agora a tratar diretamente da tchne e sua relao com a epistme. Nisso podemos retomar a
passagem 338d9-339a4 para um reexame da mesma. Se no qualquer governante que pode
governar, mas somente aqueles que possuem a arte do governo, ento tambm podemos dizer
que as leis feitas por estes so infalveis, pois so feitas por artfices no exerccio mximo de
sua arte. Para Trasmaco, com a insero da arte do governo na discusso, associa tchne,
epistme e arkh como determinantes para a relao entre justia e cidade, fundamentais para
a sua concepo de realismo poltico. Dessa forma, ao contrrio do que Clitofonte sugere, o
governante no faz leis que supe serem convenientes e teis para ele, mas faz leis que so
realmente convenientes e teis para si mesmo (o mais forte), e que cabe aos governados o
cumprimento dessas leis.
2.3 Injustia e aret
Temos j definidos o mais forte e o governante, precisamos verificar agora quem o
injusto segundo Trasmaco. Para isso, colocamos sua prpria definio de injustia. So duas
as teses apresentadas:
41 SANTAS, G. Understanding Platos Republic. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p. 21. 42 Rep., 341d12. 43 Rep., 342c7-8. 44 Rep., 342c-d.
25
(T4) , , ,
, a injustia o contrrio, e quem comanda os verdadeiramente ingnuos e justos; e os governados fazem o que conveniente para o mais forte e, servindo-o, tornam-no feliz, mas de modo algum a si mesmos.45 (T) A injustia a prpria vantagem e convenincia.46
O injusto definido por critrio de comparao com o justo. Sendo o justo ingnuo,
ele sempre ser enganado pelo injusto nas relaes que estabelecerem entre eles, e nisso
mvixmlituijuttmmmi ]
justo sempre menos [ ]47. baseado nestes dois conceitos que Boter ir
apresentar a posio de Trasmaco m u tig gu l f, m
tacitamente assume que a essncia da justia ,t ,umii
utggu tm, iluilt48ttuut
m mi ft, j li u iv gvt um il mi
ftuttmtijutimiui,itigui-se do injusto
privado49. Abaixo colocamos em resumo seu raciocnio:50
1) A base da justia itigifiue qualquer um segue esta regra. Leis so
designadas para manter esta
2) A maioria das pessoas, no entanto, poderia preferir ter mais do que podem ter; se
lgumfmuimtmi ],ultimitulgumt
menos [ ]
3) Numa sociedade onde as leis so observadas como , ulu um u
u v vit ui tt gi m i ] como usando a
vili ].
4) Se algum que est na posio de governante deseja ter mais do que pode, ele faz
iilv itit li jutiuft ijuti(
governante) chamado de justia (obedincia das leis). O governante que melhor est apto
para isto o tirano.
45 Rep., 343c5-d1. 46 Rep., 344c8-9 47 Cf. Rep., 343d3-343e7. 48 BOTER, op. cit., p. 266-7. Tambm assume a mesma posio MAGUIRE, op. cit., p. 152-3. 49 BOTER, op. cit., p. 267. 50 BOTER, op. cit., p. 273-4.
26
5) Em todos os casos onde o justo tem que negociar com um injusto, seja um
governante ou uma pessoa privada, o justo se d pior; em todos os casos, no entanto, fazer a
justia traz o bem do outro e a desvantagem do justo.
6) O governante e o injusto privado diferenciam-se somente em grau, seus objetivos
mm uigifiiftgvtumufi
li,ijutivg .
De acordo com essa interpretao, temos a justia como um bem alheio que, se for
seguida por todos da cidade, trar benefcio para todos. Boter faz uma distino entre justia
essencial ( ) juti fml (ii li) jutiugvvm
obedecer a justia formal51, o governante ele mesmo est fora deste tipo de justia. No
entanto, a essncia da justia a mesma para qualquer um, incluindo o governante, sendo ela 52. Em oposio a Boter, podemos dizer que um benefcio alheio no garante que todos
os cidados de uma mesma plis sejam beneficiados por este, j que, dar ao outro um
benefcio no indica uma distribuio igualitria do mesmo benefcio a todos os cidados. Em
imilug,titififittutm
mi ftu jut fmm uma a outra, no h nenhuma relao de
fora (no sentido de krtos) entre elas, no sendo possvel a identificao no outro de um
mift ]mmmtmgvt,titt,m
umilmift,imiftutuml,m
um governante se distinguiria em fora dos governados quando pratica a justia.
Colocamos a seguir nossos argumentos da maneira como entendemos o longo discurso
que Trasmaco faz na passagem 343b-344c, com o intuito de explicitar a nossa resposta:
(i) A justia e o justo so, na realidade, um bem alheio, convenincia do mais forte e
de quem governa [ ,
],i. e., o governante. (343c3-4)
(ii) A justia o prejuzo prprio de quem obedece e de quem serve, i. e., os
governados. (343c4-5)
(iii) A injustia comanda os verdadeiros ingnuos e os justos [
](-7)
(iv) A ijutiivtgmvii
](-9)
51 Cf. Rep., 338e3-4. 52 BOTER, op. cit., p. 274-5.
27
(v) Os governados trabalham para a convenincia do verdadeiro mais forte
] fm flii ] l vi-o, mas de nenhuma
maneira a deles prprios. (343c7-d1)
(vi) Um indivduo particular no pode ser nunca o mais forte (Cf. Polidamas, 338c8-
1)mtulutm ]imift,t
que est no governo de uma cidade (Cf. 338d9).
(vii) Em toda parte o homem justo tem menos do que o homem injusto [
] (343d2-3)
(viii)ljutijuttiivugimmt
do ,mhumlui ,i,mi
mais fortes enquanto indivduos particulares. (343d3-e1)
Se observarmos bem o que est dito em (i), podemos verificar que essa a primeira
vmumutilitm gu entendemos o termo foi utilizado
umfiigljutim,mli ],ummlhi
im,tululuvlvjutitumtitjutm
viimiftumparticularidade dessa definio geral que inclui apenas a
ltgvtgvmvifium(i)humuilui
miftgvtmumilfiijutii
Enquanto a definio geral de justia dita em (i) como sendo um bem alheio, a definio
geral de injustia consiste no que dito em (iv) como sendo a busca da prpria vantagem,
pois se aplica a todos os tipos de injustos e no somente aqueles que esto no governo. Se
incluirmos em (i) o que dito em (iii), perceberemos que quem comanda [ ]jut
injustia. Isto constitui uma particularidade da injustia na formao de um governo.
Analisando o que dito em (ii), temos que os governados, que so aqueles que cumprem o
que determinado pela lei, sempre tm prejuzo com isso. Somando (ii) a (v), percebemos
u h um vi mi ft ] ul t gv t
subordinados. Dessa forma, se entendermos que h somente um verdadeiramente forte, no
podemos aceitar que outro, seno o governante injusto, tenha o krtos.
Ao examinarmos (vii), veremos mais um caso particular da definio geral da justia
que inclui toda a relao entre indivduos. Somando isto ao que dito em (viii), podemos
entender que a relao entre justo e injusto entre indivduos no se d da mesma maneira que
entre governante e governados. Enquanto nesta h o krtos do governante determinando o que
deve ser feito pelo governado, naquela h uma relao que gira em t
28
krtos tem uma relao direta com a soberania53 e no pode ser entendido
fora do governo no mbito do homem comum e particular. O que Trasmaco parece aqui
demonstrar com seus argumentos est relacionado ao que ele entende por
54,ulu,gui,tmmii ]gi
pela pleonexa, i. e., o tirano, como iremos ver adiante. a partir deste homem, que exerce a
injustia no pice da sua capacidade, que Trasmaco pretende discernir o quanto mais
vantajoso para o particular ser injusto do que justo55. Colocamos abaixo um quadro
explicativo da nossa interpretao:
(a) Definio geral:
. Justia bem alheio (T3).
. Injustia prpria vantagem (T5).
(b) Governo:
. Justia convenincia do mais forte (T1) e obedincia s leis (T2).
. Injustia comanda os justos e os ingnuos (T4).
Em resumo, a definio de Trasmaco sobre a justia e a injustia pode ser extrada
dessa passagem. A justia como um bem alheio e a injustia como sendo a prpria vantagem
se adequam a todas as relaes de justia e injustia expostas no argumento de Trasmaco.
Com relao aos indivduos, aqueles que fazem o justo promovem o bem do outro, aqueles
que fazem o injusto, devido pleonexa, promovem o seu prprio bem. Com relao ao
governo, como o prprio Trasmaco afirma: hummljutimtpleis a
convenincia do governo estabelecido. Ora estes que detm a fora.56. De fato, havamos
concordado que todo gvimiftumplis. Se entendermos que o
governo, ao possuir o krtos, faz leis para a sua prpria convenincia, podemos dizer que
cumprir a lei beneficiar o governante em exerccio. Desse modo, quem detm o poder
tambm detm todos os benefcios do governo e isso valeria para todos os tipos de governo
sejam eles tirnicos, democrticos ou oligrquicos57. Como bem aponta Kerferd, a teoria de
Trasmaco no necessariamente subversiva58. Em uma democracia, por exemplo, fazer o
bem alheio fazer o bem a todos os cidados que tm representao direta na democracia,
53 BORDES, op. cit., p. 238. 54 Rep., 344a1. 55 Rep. 344a2-3. 56 Rep., 338e6-339a2. 57 Cf. Rep. 338d6-7. 58 KERFERD, (1947/1976), p. 563.
29
tmiftmumligui,fivilguu
Entretanto, se nos lembrarmos do que foi dito na passagem 340c-341a, o governo no
iufiitugvtjmi ftii
governante que ele tenha conhecimento, pois, sem este, ele no est livre do erro e, dessa
forma, no pode ser considerado o mais forte.
2.4 Arte e benefcio
Trasmaco entende que o governo deve ser mantido por uma tchne prpria que
capacitaria o governante a bem administrar a cidade e a recolher para si todos os mistho.
Dessa forma, ir fazer a analogia do governante com um pastor e os governados como
ovelhas, de maneira que o interesse do governante em governar retirar o mximo proveito
dos governados59. A figura do pastor-governante uma figura clssica da antiguidade60 e
pode ser uma referncia direta aos grandes reis que possuam grandes domnios sobre o seu
poder. Para Trasmaco, ser atravs do conhecimento de sua arte que um governante pode ser
considerado como sendo um verdadeiro governante [ ]61 e tirar para si
todos os benefcios que levam a felicidade. Citemos como ele ir introduzi-lo:
, , , . ,
, , . ,
[...] ,
, . Mas a maneira mais fcil de aprenderes se chegares a mais completa injustia, aquela que d o mximo de felicidade ao injusto, e a maior das desditas aos que foram vtimas de injustias, e no querem cometer atos desses. Trata-se da tirania, que arrebata os bens alheios s ocultas e pela violncia, quer sejam sagrados ou profanos, particulares ou pblicos, e isso no aos poucos, mas de uma s vez. Se algum cometer qualquer destas partes da injustia no estando oculto, castigado e recebe as maiores injrias. [...] Mas se este, alm de se apropriar dos bens dos cidados, faz deles escravos e os torna seus servos, em vez destes eptetos injuriosos, qualificado de feliz e bem-aventurado, no s pelos seus concidados, mas por todos os demais que souberem que ele cometeu essa injustia completa. que aqueles que criticam a injustia no a criticam por recearem pratic-la, mas por temerem sofr-la.62
59 Rep., 343b. 60 Cf. LIMA, P. B. gymiiliimi limmgitlll iflilitiantica. In: PANI, M. (a cura di). Epigrafia e territorio. Politica e societ. Bari: Edipuglia: 2007, p. 273-289. 61 Cf. Rep., 343b5. 62 Rep., 344a4-c4.
30
O tirano visto como o verdadeiro governante na viso de Trasmaco, pois permite a
esse tipo de governante se preocupar unicamente com o prprio benefcio, podendo agir
livremente com a injustia. Com a introduo do tirano como paradigma do governante
injusto, j podemos analisar melhor o raciocnio de Trasmaco sobre a funo da justia no
governo. O tirano seria, na viso de Trasmaco aquele que melhor conciliaria as teses
propostas, pois (i) manda na cidade e, portanto, o mais forte, (ii) sendo o governante faz as
leis da maneira como lhe aprouver, (iii) obriga aos governados o cumprimento da justia, (iv)
age livremente em benefcio prprio63.
Scrates retomar tchne para demonstrar que Trasmaco, depois de ter dado a
definio do verdadeiro mdico, no julgou necessrio guardar rigorosamente a do
verdadeiro pastor [
]64, de maneira que se deve manter o rigor
guardado anteriormente da definio de tchne. Desse modo, Scrates ir introduzir a
seguinte argumentao:
[...] , ; [...]
, , . ,
, , ; ; [...]
; , .
, .
, . . [...]
, , , , , ,
, , .
, ; , .
, ; .
- [...]diz-me: no afirmamos ns sempre que cada uma das artes se diferencia das outras pelo fato de ter uma potncia especfica? [...] - Diferenciam-se por isso, sim.
63 Klosko (1984, p. 11) e Everson (1998, p. 116-7) argumentam que h uma inconsistncia existente nos argumentos de Trasmaco devido incompatibilidade de (T3) com as leis feitas pelo governante, pois, no caso do tirano, aquele que faz as leis seria o mesmo que as infringiria. Tais consideraes nada mais so do que uma reafirmao de uma definio legalista em Trasmaco, pois reduziria a justia a questes de obedincia s leis somente. Chappell (2000, p.101-107), em resposta, ir dizer que no h evidncia de que Trasmaco espera que a justia e a injustia possam ser definidas somente em termos de obedientes a lei e seus opostos. 64 Rep., 345c2-4.
31
- E no verdade que cada uma das artes nos proporciona qualquer utilidade especfica, e no comum, como a da medicina, a sade, a do piloto, a segurana de navegao, e assim por diante? - Exatamente. - Portanto, tambm a arte dos lucros tem o seu salrio? Pois esse o efeito que lhe peculiar. [...] Acaso no concordamos que h uma utilidade peculiar a cada arte? - Seja. - Se h uma utilidade de que gozam todos os artfices em comum, manifesto que devem empregar alguma faculdade adicional, comum a todos, e da derivarem a utilidade. - Assim parece. - Ora, ns afirmamos que a utilidade dos artfices, quando ganham um salrio, lhes advm de empregarem uma faculdade adicional arte dos lucros. [...] Por conseguinte, no da sua prpria arte que advm a cada um esta utilidade, que a obteno de um salrio; mas devemos examinar a questo com rigor: a medicina produz a sade, a arte dos lucros, o salrio, e a do arquiteto, uma casa; ao passo que a arte dos lucros, que a acompanha, d o salrio. E as outras todas, igualmente, produz cada uma o seu efeito e so teis quele a quem se aplicam. Se, porm, no se lhe juntar um salrio, possvel o artfice auferir alguma utilidade da sua arte? - No me parece. - Mas acaso ele no til, quando trabalha de graa? - Com certeza, assim o creio.65
Na tentativa de refutar Trasmaco em seu argumento, Scrates, em resumo, defende
que cada arte se diferencia por uma dnamis especfica que produz uma utilidade. Esta
utilidade [ ]vitittugtugt
possa se beneficiar preciso atribuir junto de cada arte uma segunda arte que a arte dos
lu ] u u um li ] u i m-lo pelo servio.
pesar dos mistho serem teis quele que exerce sua arte, inegvel que o exerccio da sua
arte continua sendo til para outros, mesmo que o artfice no receba nada por isto66. Podemos
dizer assim, que os mistho e a ophela so referentes a pessoas diferentes, um o que pratica
a arte e recebe os mistho por sua prtica, e o outro aquele que recebe a ophela prpria da arte
em questo. Para que Trasmaco possa manter o seu argumento de que a justia a
convenincia do mais forte, ele deve conseguir provar a possibilidade de uma tchne que vise
a sua prpria vantagem. Somente assim ele poderia defender a existncia de um governante
que aja em seu prprio benefcio. Trasmaco assim entende o exemplo do pastor que cuida das
ovelhas visando tirar delas o seu prprio benefcio67. Por analogia, o governante agiria como
um pastor e retiraria o seu benefcio dos governados.
De acordo com hik,t u it lgi m tchne] para refutar
Trasmaco, um professor profissional para quem a justia uma tchne e em benefcio do
65 Rep., 346a1-e2. Grifos e modificaes na traduo so nossos. 66 Rep., 346a1-e2. 67 Rep., 345c-d.
32
gvt68, mas para o prprio Scrates a justia no uma tchne,isimilar
a tchne em seu relacionamento com o semelhante e o dessemelhante. Disto no se segue
necessariamente que a justia como conhecimento seja uma tchne69. Roochnik sugere que o
sentido de Plato utilizar a analogia com a tchne em suas obras exortativo e refutativo, no
sendo o propsito da analogia estabelecer um modelo terico do conhecimento moral70. Por
um lado, concordamos com Roochnik que Scrates no concebe a justia como uma tchne,
por outro lado, discordamos que Trasmaco pense ser a justia uma tchne. Segundo
entendemos, ambos concordam que o governo uma tchne que deve ser exercida pelo
governante, e por isso que podemos falar em uma tchne do governante. O tratamento que
cada um d tchne com relao justia , no entanto, distinto. Trasmaco faz com que a
arte do governo produza justia, pois os governados devem ser justos cumprindo as
determinaes do governante. Ao contrrio, no argumento de Scrates, se o governante tem
que ser justo, ento h uma arte do governo que exercida pela presena da justia, no sendo
esta o seu produto. Ambos incluem a justia na tchne do governo, mas de maneira distinta.
Isso, como veremos mais frente, ocasionar em tipos de governos diferentes.
Se passarmos anlise da misthotik, podemos perceber que ela difere das outras
tchnai exemplificadas por Scrates, pois no se enquadra na definio de tchne dada, j que
visa a vantagem do artfice que dela se utiliza71. A argumentao de Scrates prope uma
reconstruo da prpria tchne fora da sua funo econmico-social72. Dessa forma, ele
admite um misths ao artfice adquirido atravs da misthotik no exerccio da sua prpria
tchne. Tal misths deve ser entendido no somente como dinheiro, mas no sentido amplo de
m u utili sua arte para a convenincia do seu objeto. No
exemplo do pastor73, Scrates vai dizer que aquele que exercer verdadeiramente a sua funo
querer cuidar do bem-estar das ovelhas, em vista do melhor para elas. No entanto, a
separao socrtica em duas artes distintas, a do ganho e a do pastor, estranha, pois no
68 ROOCHNIK, D. Of Art and Wisdom. Platos Understanding of Tchne. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press; University Park, 1996, p. 144. 69 Ii,1tmm1jutiumtihimt,himtxmlifi tchne disto no se segue que justia um tipo de tchne 70 IK,tufth-analogy. Journal of the History of Philosophy, v. 24, n. 3, 1986, p. 303. IK,1, 1 aret assumida como sendo conhecimento, e se tchne o modelo do conhecimento moral, uma inaceitvel consequncia nominalmente, aret no conhecimento se sucede. Como um resultado, no territrio platnico, tchne imtummlhimtml 71 Cf. VEGETTI, op. cit., p. 248 et seq. 72 CAMPESE, S. Misthotike. In: VEGETTI, M. (ed.). Platone. La Repubblica, v. I, Napoli: Bibliopolis, 2010, p. 259. 73 Rep., 345c-d.
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admite que haja uma recompensa consequente da arte do pastor, mas entende que a
recompensa s vir de uma segunda arte, i. e., a misthotik. Segundo Roochnik,
Esta tchne dos lucros estranha. Primeiro, ela pode ser comum com todas as tchnai nas quais salrios so pagos e, dessa maneira, no pode ter seu prprio mimlmlu,tluuulmhtodas as outras artes e direciona suas aes. Ela , portanto, uma arte uitti74lm,mutlv,lumtgumMas isso no bastante certo. A arte dos lucros certamente no direciona a ao das outras tchnai. Ganhos so um subproduto das outras tchnai, e para ganh-los um artfice no precisa nem saber nem praticar alguma outra coisa alm da sua prpria tchne. Como esta no requer nenhum conhecimento especial, na verdade, nenhum conhecimento de todo, como a arte dos lucros pode ser concebida como uma tchne?75
hik, gui lm, vi ut i u gh
simplesmente um subproduto de uma tchne imim76. Mas isso nada mais do
que fugir do problema posto por Scrates. A existncia de uma arte que visa o prprio
benefcio, como a misthotik, mesmo que uma exceo regra, no nos permite falar em uma
definio geral de tchne que envolva sempre e necessariamente o benefcio do paciente
prprio da arte. Mesmo se atribussemos a misthotik como sendo executada pelo beneficiado
da tchne principal, como no caso do paciente que paga o mdico, ainda assim no
resolveramos o problema da misthotik, pois ela continuaria a ser uma arte sem uma epistme
especfica, podendo ser utilizada por todos indistintamente. Isso abre a possibilidade para uma
outra maneira de interpretar o pastor: o fim de sua arte no est em cuidar em si das ovelhas,
mas o cuidar das ovelhas meio para um objetivo maior que a sua prpria recompensa.
justamente com base nisso que Trasmaco defende o seu governante-pastor: este, assim como
o pastor, cuida e governa os governados com o fim ltimo de se beneficiar com os mistho.77
Dessa forma, o governante injusto de Trasmaco utilizar como meio tudo aquilo que tiver
como fim o seu prprio benefcio, no estando os mistho de forma alguma separados da
prpria arte de governar.
Penner defende que ao elevar o discurso a um estatuto epistmico do governante que
no erra, Trasmaco cria automaticamente uma cincia do governo78. Como cincia79, a arte
74 BLOOM, A. The Republic of Plato. New York: Basic Books, 1968, p. 333. 75 ROOCHNIK (1996), p. 143. 76 Ibid., p. 145. 77 fK(11),tgv,jt imitgv,mjtltimitgvt 78 PENNER, T. Thrasymachus and the Ruler. Skepsis, v. 20, 2009, p. 206-7. 79 Penner parece utilizar a lviimmmuutilimlvt,fi-se dessa forma ao termo grego tchne que, no Livro I da Repblica, aparece associado epistme.
34
do governante deve seguir uma definio precisa, no podendo fazer meno a casos
particulares80. Analisando se possvel se falar de um governante que rena os mistho em
seu prprio benefcio, Penner discorda desta possibilidade, pois haveria uma cincia hbrida,
enquanto, pelo argumento de Scrates, a arte dos lucros uma arte parte que se adiciona
outra arte81. Mesmo que haja uma cincia geral de ganhar os prprios benefcios ao governar
tirando vantagem dos governados, h ainda uma incoerncia82, sendo esta, que no h cincia
do completamente injusto, pois, de acordo com Penner, a injustia depende da justia83.
Mas o tirano aquele que no apenas visa seu prprio benefcio como aquele que
controla a justia dos governados. Nesse caso, o que Trasmaco est a dizer que a justia
est subordinada injustia do governante, no o contrrio, como pretendemos demonstrar.
Dessa forma, o tirano no seria o completo injusto porque infringe todas as leis, como
defendem as teorias legalistas. Ele seria o completamente injusto, primeiro, porque ele age em
benefcio prprio quando assim deseja; segundo, o governante e, portanto, aquele que
determina o justo; e terceiro, faz as leis em sua prpria convenincia e, por isso, aquele que
recebe todos os benefcios dos governados quando estes cumprem seus atos com justia, pois
domina-os com seu poder84. O governante de Trasmaco muito engenhoso, pois ele, como
detentor do krtos, se livra de qualquer infrao da lei.
A questo que nos fica se Trasmaco consegue defender o seu modelo de governante,
garantindo neste a felicidade e a bem-aventurana do tirano. Para isso, ele deve ser capaz de
defender a sua concepo de governo, que consiste na arte de governar pela injustia,
demonstrando a sua possibilidade epistmica, para o pleno desenvolvimento de uma tchne da
injustia.
2.5 Arte e injustia
A maneira pela qual Scrates e Trasmaco entendem a tchne do governante leva a
tipos de governo diferentes. H entre os dois uma clara disputa entre quem , de fato, o
verdadeiro governante: o justo (defendido por Scrates) ou o injusto (defendido por
Trasmaco). Tal disputa deve ser tambm resolvida no campo epistmico, pois Trasmaco
80 Ibid., p. 209. 81 Ibid., p. 208. 82 Ibid., p. 210. 83 Ibid., p. 213. 84 Cf. KERFERD (11),mti,juti(ulhmtvitgv)equivale a procurar o interesse do mais forte como sendo um interesse alheio, enquanto a injustia, que normalmente possvel para o governante somente, proveit vtj immV, 1, jutiitvtmift,it,uiiijutimlmtumtlmi
35
pretende demonstrar a possibilidade do governo injusto na cidade. Ou seja, a sua concepo
de governo envolve a defesa de uma epistme tcnica que possibilite o krtos do governo
injusto, cujo paradigma seria a tirania. Para Trasmaco a epistme condio necessria para
se ter o krtos e, desse modo, aquele que conseguir demonstrar qual , de fato, o verdadeiro
governante, estar tambm provando que tipo de governante o verdadeiro detentor da arte
do governo, podendo hm mi ft mi t fm
totalmente aceitas e a concluso obtida for de que o governante enquanto artfice visa a
convenincia/utilidade do governado, ento, este governante s pode ser justo85. Tomado
desta maneira, o tirano de Trasmaco no seria considerado um verdadeiro governante, pois
este age em seu prprio benefcio. Trasmaco, assim, s poderia apontar uma prtica que
ocorre nos governos, uma tese descritiva da justia e da injustia, mas no poderia defender o
governante injusto como verdadeiro governante. Para manter sua tese do governo injusto,
Trasmaco deveria negar as premissas de Scrates e defender que o governo beneficia
unicamente o governante.
Chappell em seu artigo86 defende que h apenas uma tese descritiva em Trasmaco e
no uma tese prescritiva. Para isso, tentar provar que Trasmaco no utiliza os termos vcio e
virtude nem para a justia nem para a injustia. A injustia seria a caracterstica do homem
virtuoso e excelente, mas sem ser ela mesma o carter principal que faz dele um homem
virtuoso87. Concordamos com Chappell que h uma tese descritiva em Trasmaco, entretanto,
o que no aceitamos que no haja distino entre vcio e virtude nos argumentos defendidos
por Trasmaco. Ser exatamente a distino entre vcio e virtude que Trasmaco ir fazer com
relao a justia e a injustia, dando a cada uma delas um valor correspondente. Dessa forma,
o que defendemos que, alm de ter uma tese descritiva, Trasmaco tem uma tese prescritiva
sobre a injustia.
Isso fica claro quando ele se refere ao governante como artfice que no erra no
xiufu,mtmmximfiii ]88. Se
tomarmos o sbio ligado ao argumento da infalibilidade do artfice, teremos um argumento de
85 Cf. Rep., 341c-343a. 86 CHAPPELL, 199,uiigumtumtmumtitivjuti,mmt tm um t itiv juti Y, t futti f hymhu ISANTAS, G. The Blackwell Guide to Platos Republic. Malden: Blackwell Publishing, 2006, p. 45; concorda m hll t u m t, ft, u um lug mum um tradicional de justia, famosamente estabelecida pelo antigo poeta Hesodo em uma de suas obras centrais da tradio moral grega, Os Trabalhos e os Dias 87 CHAPPELL, 1993, p. 9. 88 Rep., 340e5.
36
conhecimento [ ]89. Dessa forma, o artfice tem um saber que o impede de errar e se
ele erra em algum momento, porque este saber o abandonou, no devendo ser chamado
artfice aquele que se encontra nesta situao. A nica maneira de manter o argumento de
Trasmaco coerente seria a recusa dele da definio do governante como um artfice que visa
a utilidade do governado, mantendo assim que o governante um tipo especial de artfice que
visa sua prpria utilidade90. Esta seria a soluo para manter o verdadeiro governante como
sendo o mais injusto dos homens. Para fazer isto, Trasmaco ter de defender a injustia como
excelncia [ ]ijutmi ]uf,uiia claramente
que h, nos argumentos apresentados por Trasmaco, uma tese prescritiva. Com o intuito de
esclarecer este ponto, Scrates ir prosseguir com Trasmaco a discusso em torno do melhor
tipo de vida: se a injusta ou a justa91.
Para Trasmaco a juti um ulim igui 92] e a
ijutiui ]93, t ]mt
hm ] m mltmt ijut, m f
submeterem sua autoridade as pleis94. Ao tratar do homem com dnamis para ser
completamente injusto, Trasmaco est a falar novamente do tirano95. este que simboliza
seu verdadeiro governante, nico capaz da mais completa injustia96. Como ele deixa bem
claro, os outros tiijutitvit,utt
vlfltut,mimuiluhufim [
, , , ,
]97. Entendemos, dessa maneira, a partir da prpria colocao de Trasmaco (acima
citada), que ao falarmos de injusto estaremos falando agora do completamente injusto, i. e., o
tirano. De acordo com Trasmaco, somente este tipo de injusto, capaz da mais completa
injustia, pode ser elevado ao estatuto de phrnimos e agaths. 89 Rep., 340e3. 90 Alguns estudiosos da passagem defendem que nem toda arte tem como fim o benefcio do seu objeto. Cf. I,it,,Jh(A. and M. Phil. 24 e 22) nota que Scrates est certo ao afirmar que o propsito de uma arte como tal no beneficiar o praticante, ainda que com ela ganhe a vida, mas errado em admitir que o propsito de todas as artes beneficiar outros para os quais elas so exercidas. Um caador exerce sua arte pela carne de caa, mas no em benefcio dela, um danarino por seu prprio corpo, que pode distender ufilfi,it,tttu 91 Rep., 347e et seq. 92 Segundo GUADIN, C. hi ltii I Revue Philosophique de La France et de ltranger,t11,,11,1utililv mvitt,ml,gtivjutiulilltiti 93 Rep., 348d. 94 Rep., 348d. 95 Cf. Rep., 344a1 96 O homem capaz, no caso citado, aquele que tem dnamis suficiente para realizar a mais completa injustia. Esse, como apontamos na nota anterior, s pode ser o tirano. 97 Rep., 348d7-9.
37
O que precisa ficar claro aqui a diviso da injustia feita por Trasmaco. De um lado
temos a injustia comum, do outro temos a completa injustia. O fator determinante para essa
distino ser o krtos, de modo que aquele que detm o krtos, ocupando o lugar de
governante, pode realizar completamente a injustia. Ambas seriam vantajosas e procurariam
tirar o mximo proveito de suas aes, mas somente a ltima, a completa injustia, leva
felicidade. Duas passagens parecem suportar est interpretao. Coloc-las-emos uma seguida
da outra para fins explicativos:
1. ,
. , ,
Se algum cometer qualquer destas partes da injustia no estando oculto, castigado e recebe as maiores injrias. Efetivamente, a quem cometer qualquer desses malefcios isoladamente, chama-se sacrlego, comerciante de escravos, gatuno, espoliador, ladro. Mas se este, alm de se apropriar dos bens dos cidados, faz deles escravos e os torna seus servos, em vez destes eptetos injuriosos, qualificado de feliz e bem-aventurado, no s pelos seus concidados, mas por todos os demais que souberem que ele cometeu essa injustia completa.98 2. , , ;
, , , . , , , ,
. Acaso te parecem ser sensatos e bons os injustos, Trasmaco? Sem dvida, os que so capazes de ser completamente injustos, com fora para submeterem cidades sua autoridade. Julgas talvez que me refiro aos que tiram as bolsas de dinheiro. que tambm isso proveitoso, se passar despercebido. Mas no vale a pena falar do assunto, mas sim daquilo de que h pouco fiz meno.99
A definio geral de injustia diz que se deve procurar a prpria vantagem com o
intuito de se ter sempre mais do que o outro. No entanto, h modos diferentes para se
conseguir agir dessa forma. Ambas as passagens citadas sustentam uma diviso entre o injusto
comum e o completamente injusto. O injusto comum deve agir ocultamente e se for pego ser
penalizado por isso, no podendo realizar o seu desejo se no estiver oculto lei. O
completamente injusto possui o krtos e determina a lei, de modo que no precisa se ocultar a
lei, mas a utiliza para realizar o seu prprio fim injusto, i. e., a sua prpria vantagem. A
distino no incoerente, apenas hierarquiza a injustia, fazendo do tirano o nico realmente
feliz ao realizar a injustia, pois pode realiz-la plenamente. Isso nos faz ir contra a posio
98 Rep., 344b1-c3. 99 Rep., 348d3-9.
38
(III) de Kerferd, que defende a injustia inerente natureza humana100. Primeiramente, no h
nada que indique que h em Trasmaco um desejo de injustia em todos os homens. O que
existe so homens injustos que agem por pleonexa. Depois, entre esses homens injustos,
somente uma classe restrita capaz de atingir a injustia plenamente, so estes os tiranos.
Quando Trasmaco aproxima a injustia da excelncia, est tratando apenas da completa
injustia, que capaz de tornar felizes os homens que conseguem alcan-la. Nisso,
Trasmaco dar injustia todos os atributos normalmente dados justia, sendo bela e forte
],immtlxlii
]101. Podemos afirmar isto pela concordncia de Trasmaco pergunta de Scrates
sobre a excelncia da injustia, mumftiAdivihtuv
] em 349a4. Dados estes pressupostos de Trasmaco, os quais Scrates pretende
investigar, eles iro concordar que
()jutux ]utjut,mmt
injusto; e o injusto quer ter mais que todos [ ]ulumu
o justo no quer exceder o seu semelhante, mas o seu oposto, ao passo que o injusto quer
exceder tanto o seu semelhante como o seu oposto102.
(B) Cada um deles tem a qualidade ulmum
]103.
(C) O artfice bom naquilo que sensato, e o no-artfice mau naquilo em que
ignorante [ , , , ]104.
(D) Em geral, todo artfice no pretende exceder seu semelhante, mas sim seu oposto,
isto , o no-artfice; e o no-artfice pretende exceder tanto o artfice como o no-artfice.
Ivltihimtuigi
]105.
(E) Aquele que conhece sbio [ ]im
]hmmumiuxulhmlht,mim
100 K(11),lm]utmilgiululi e natureza, mas sua equao da injustia como virtude (aret) demonstra que ele considera a injustia como um cumprimento da natureza dos homens. Consequentemente, ele deve ser corretamente inserido entre os ttiiittulGrifos meus. 101 Rep., 348e-349a. 102 Rep., 349b-d. 103 Rep., 349d. 104 Rep., 349e. 105 Rep., 349e-350a.
39
que diverso; o homem que no conhece [ ] mu igt
]uxulhmlhtuti106.
(F) O justo se assemelha ao homem sbio e bom, e o injusto ao mau e ignorante.
Como ambos concordaram que cada um tem as qualidades do que se assemelha, logo, o justo
revela-se como bom e sbio, e o injusto como ignorante e mau107.
O argumento posto acima correlaciona tchne e epistme para distinguir o justo do
injusto. Ao aproximar o justo do sbio e do bom, Scrates se aproveitar disso para dizer que
ele e Trasmaco concordaram que juti vitu i
]108. Podemos aceitar isto se aproximarmos o bom do
ristos e assim teramos uma relao da justia com a aret109. Pelo que podemos entender do
argumento, entre a justia e a injustia, aquela que receber os melhores atributos ser
classificada como aret e sopha110. Tais atributos so os mesmos atribudos aos artfices no
exerccio de sua arte, sendo estes: phrnimos, agaths, epistmon e sophs111. No entanto,
Trasmaco claramente discorda do encaminhamento dado por Scrates ao argumento, quando
diz em seguida
, , , ,
, , ,
, , , , , - [...] mas no me agrada o que acabas de afirmar, e tenho o que contestar. Entretanto, sei muito bem que se eu tomar a palavra dirs que fao arenga. Deixe-me, pois, falar vontade, ou, se desejas interrogar, interroga; e eu dir-te-ei, como s velhinhas que esto a contar mitos, seja, e farei com a cabea que sim ou que no. - Mas nunca observei contra a tua prpria opinio. - De maneira a poder agradar-te retorquiu , uma vez que no consentes que eu fale.112
Trasmaco parece ter se tornado dcil a Scrates, no estando mais disposto a
argumentar contra este, j que Scrates no permite que ele fale sua maneira. Apesar disso,
Trasmaco se encontra visivelmente contrariado, de maneira que poderamos supor que ele
no concorda com Scrates. Apesar dele no responder a Scrates como gostaria de
106 Rep., 350b. 107 Rep., 350c. 108 Cf. Rep., 350d4-5. 109 A palavra ristos possui o mesmo radical de aret conforme demonstra JAEGER, W. Paidia. A Formao do Homem Grego. So Paulo: Martins Fontes, p. 26-8. 110 Rep., 349a. 111 Rep., 349e-350b. 112 Rep., 350d8-e6.
40
responder113, temos elementos suficientes no discurso de Trasmaco para tentar defend-lo.
importante notar que a cena dramtica claramente demonstra a insatisfao de Trasmaco ao
ter de responder Scrates e no poder falar como ele bem quiser. Quando Scrates pede que
mtiii,lmig-
t,umvutuufl114. visvel nessa parte que Trasmaco mantm o
compromisso de manter um lgos comum aos dois, mas ele mesmo se sente contrariado de
continuar nesses termos de pergunta e resposta e, em protesto, evita contrariar Scrates.
O que pretendemos fazer nessa parte de nosso trabalho dar uma resposta possvel
para tornar coerente a posio de Trasmaco frente posio de Scrates. Isso implica em
tornar mais clara a posio de Trasmaco frente aos argumentos de Scrates e faz-lo falar
quando preferiu calar. Nosso intuito verificar a forma dos argumentos de Trasmaco, apesar
da sua iminente refutao. Da maneira como vemos, a estrutura apresenta um problema no
resolvido na discusso.
O fato de um artfice dominar sua arte e, por isso, ser sbio, no est relacionado ao
fato dele ser justo. As justificativas de Trasmaco e de Scrates no partem do mesmo
princpio para explicar porque o justo no quer exceder o justo. Enquanto aquele diz que o
justo no excede jut,iifi,mg, nem de carter simples
, , ]115, o que nos parece uma disposio de carter
inerente quele que justo116, Scrates ir defender que o justo no querer exceder o justo
porque conhecedor da sua arte. Dessa forma, todo o conhecedor [ ] j
exceder o no conhecedor [ ],uttjxmttt, o