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pp. 325-336 Revista Filosóca de Coimbra — n. o 40 (2011) ARTE E LINGUAGEM COMO DUAS FORMAS SIMBÓLICAS NAS OBRAS PÓSTUMAS DE ERNST CASSIRER CHRISTIAN MÖCKEL 1 Resumo: Neste artigo, a conexão estrutural que Ernst Cassirer estabelece entre arte e linguagem é elaborada com base nos seus escritos póstumos. Cassi- rer concebe arte e linguagem como dois modos de pregnância simbólica, isto é, como duas formas simbólicas nas quais a essência da pregnância e da formação simbólica se manifesta. A semelhança estrutural destes dois fenómenos culturais é revelada, por um lado, pelo seu cruzamento indissolúvel com a percepção, sendo atribuído à percepção sensível, por princípio, um carácter de pregância simbólica e valor simbólico. Por outro lado, esta similaridade é provada pelas deformações patológicas que envolvem a perda da capacidade de simbolização nos níveis da percepção, linguagem e realização estética. O artigo termina com a questão de saber até que ponto Cassirer atribui um estatuto privilegiado à forma simbólica da linguagem. Palavras-chave: arte, conexão interna, estruturas de significado/ordem de significado, forma simbólica, formação simbólica/configuração de símbolos, fun- ção de expressão/de representação, indestrutibilidade, linguagem, obra de cultura, patologia de linguagem, percepção, pregnância Abstract: In this paper, the structural connection which Ernst Cassirer es- tablishes between art and language is elaborated on the basis of his posthumous writings. Cassirer conceives art and language as two ways of symbolic preg- nance, that is, as two symbolic forms in which the essence of pregnance and of symbolic formation manifests itself. The structural similarity of these two cultural phenomena is revealed, on the one hand, by their indissoluble entangle- ment with perception, sensuous perception being attributed on principle with the 1 Humboldt-Universität, Berlin.

Arte_e_linguagem Em Cassirer (Christian Möckel)

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    pp. 325-336Revista Filosfi ca de Coimbra n.o 40 (2011)

    ARTE E LINGUAGEM COMO DUAS FORMAS SIMBLICAS NAS OBRAS PSTUMAS DE ERNST CASSIRER

    CHRISTIAN MCKEL1

    Resumo: Neste artigo, a conexo estrutural que Ernst Cassirer estabelece entre arte e linguagem elaborada com base nos seus escritos pstumos. Cassi-rer concebe arte e linguagem como dois modos de pregnncia simblica, isto , como duas formas simblicas nas quais a essncia da pregnncia e da formao simblica se manifesta. A semelhana estrutural destes dois fenmenos culturais revelada, por um lado, pelo seu cruzamento indissolvel com a percepo, sendo atribudo percepo sensvel, por princpio, um carcter de pregncia simblica e valor simblico. Por outro lado, esta similaridade provada pelas deformaes patolgicas que envolvem a perda da capacidade de simbolizao nos nveis da percepo, linguagem e realizao esttica. O artigo termina com a questo de saber at que ponto Cassirer atribui um estatuto privilegiado forma simblica da linguagem.

    Palavras-chave: arte, conexo interna, estruturas de significado/ordem de significado, forma simblica, formao simblica/configurao de smbolos, fun-o de expresso/de representao, indestrutibilidade, linguagem, obra de cultura, patologia de linguagem, percepo, pregnncia

    Abstract: In this paper, the structural connection which Ernst Cassirer es-tablishes between art and language is elaborated on the basis of his posthumous writings. Cassirer conceives art and language as two ways of symbolic preg-nance, that is, as two symbolic forms in which the essence of pregnance and of symbolic formation manifests itself. The structural similarity of these two cultural phenomena is revealed, on the one hand, by their indissoluble entangle-ment with perception, sensuous perception being attributed on principle with the

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    characteristic of symbolic pregnancy and symbolic value. On the other hand, this similarity is proven by pathologic deformations which entail the loss of the ability to symbolize on the levels of perception, language and aesthetic achieve-ment. The paper ends with the question about the degree to which Cassirer gives a privileged status to the symbolic form of language.

    Keywords: Art, Internal connection, structures of meaning / order of signifi-cance, symbolical form,, simbolical formation, configuration of symbols, function of expression / representation, indestructibility, language, work culture, language pathology, awareness, meaningfulness.

    I. Observaes introdutrias

    Para esta apresentao das observaes de Ernst Cassirer sobre a Arte e a Linguagem como formas simblicas foi estabelecido um objectivo bas-tante limitado: no se falar de ambas as formas culturais Arte e Linguagem como tais, ou da sua relao entre si na filosofia das formas simblicas, mas falar-se- exclusivamente das observaes que lhes foram dedicadas nos textos pstumos (ECN/TPEC), em primeiro lugar nos textos que preparei ao longo dos ltimos quatro anos para a edio como volume 4 dos ECN/TPEC. Claro que desta maneira se faz um pouco de publicidade a este vo-lume verdadeiramente interessante e informativo que recentemente saiu na Editora Felix Meiner de Hamburg.2 Neste Volume 4 das Obras Pstumas so recolhidos os seguintes quatro textos: Presentao e Representao, Pregnncia, Ideao simblica (ambos dos anos 1926/27), Da Influn-cia da Linguagem Formao cientfica dos Conceitos (1936), Fenmeno de expresso e Crculo de Viena (1936). Alm disso, o volume contm os trs manuscritos previstos para conferncias: O Conceito da Forma como um Problema da Filosofia (1924), Linguagem, Pensamento e Percepo (1927) e O Problema do Smbolo (1932). Os nicos apontamentos de uma lio universitria de Cassirer, tomados por um ento estudante, fecham o volume 4: Problemas fundamentais da Filosofia da Linguagem (Univer-sidade de Hamburgo, Semestre de Vero, 1922). J nas lies tinha Cassirer estabelecido a tarefa sistemtica de observar a particularidade da linguagem no conjunto das formas espirituais. Era necessrio determinar a forma da

    2 Ernst Cassirer: ber symbolische Prgnanz, Ausdrucksphnomen und Wiener Kreis, Hrsg. von Christian Mckel. (Nachgelassene Manuskripte und Texte. Hrsg. von Klaus Christian Khnke, John M. Krois und Oswald Schwemmer. Bd. 4) Hamburg 2011.

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    linguagem como tal e distingui-la das outras formas espirituais3. J nesta lio ele considera a linguagem e a arte como duas reas principais e de-cisivas da cultura, da configurao (Gestaltung) espiritual que percorrem de uma maneira diferente trs fases da expresso: a expresso perceptiva, in-tuitiva e abstractiva4, assim como as fases da expresso mmica, analgica e simblica5.

    Nas Obras Pstumas de Cassirer, saindo regularmente desde 1995, no encontramos um filsofo completamente diferente daquele que conhece-mos a partir das suas publicaes em vida (1874-1945). A nova edio de Hamburgo das Obras Completas (ECW/OCEC) contm 25 volumes e um volume de registo. Contudo, encontramos nas Obras Pstumas muito mais do que aquilo que se pode compreender nas obras publicadas, um filsofo que se interessa pelos novos desenvolvimentos na filosofia con-tempornea, que discute muito mais com eles e que se tenta posicionar muito mais frente a eles. Por exemplo, relativamente s novas disciplinas da antropologia filosfica e da filosofia da cultura, ou relativamente s correntes da filosofia da vida, do positivismo lgico ou do estruturalismo lingustico. Alm disso, encontramos nas Obras Pstumas um Cassirer que, em primeiro lugar, nos anos 30 do sculo XX, est a procurar esta-belecer produtivamente novas vises para aprofundar os fundamentos da sua filosofia e, para realizar este objectivo, esboa uma teoria dos fe-nmenos de base, uma metafsica das formas simblicas e uma teoria dos fenmenos de expresso. E, finalmente, os textos pstumos testemu-nham os enormes esforos realizados na rea da filosofia das cincias com o objectivo fundamentar a cincia da cultura e a histria como tipos autnomos de cincia. Tudo isso com a pretenso de garantir que elas se pudessem encontrar ao mesmo nvel que as cincias da natureza, no perdendo neste encontro, ao mesmo tempo, a sua especificidade.

    Antes de comear a desenvolver o prprio tema da apresentao, devem ser apresentadas mais duas curtas observaes e uma explicao.

    Primeiro, tem de se mencionar o facto de que Cassirer, por um lado, dedicou linguagem como forma simblica no s as Lies de 1922 (ECN/IPEC 4) e o primeiro volume da sua clebre Filosofia das Formas Simblicas (1923), mas tambm uma srie de artigos e conferncias; por outro lado, o de que ele nunca dedicou arte tanta reflexo sistemtica, embora a achasse, deste o incio da sua actividade filosfica, uma forma simblica importante. Encontramos o desenvolvimento mais sistemtico

    3 Grundprobleme der Sprachphilosophie. In: ber symbolische Prgnanz, Ausdruck-sphnomen und Wiener Kreis. (ECN4), 246.

    4 Grundprobleme der Sprachphilosophie. In: ECN4, 247. 5 Grundprobleme der Sprachphilosophie. In: ECN4, 251.

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    da arte como forma simblica na obra An Essay on Man (1944), no ca-ptulo IX.

    Segundo, Cassirer nunca coloca a questo de saber o que so a linguagem e a arte em si, na sua essncia. Ele interessava-se sempre pela funo, pelo papel de objectivao e de atribuio de um significado na formao do mundo da cultura, que inclui tambm as cincias da natu-reza. E aqui ele interroga-as tanto pela sua funo geral comum a todas as formas simblicas, enquanto meios do homem para poder libertar-se passo a passo do carcter primitivo de imediatez da vida, como pela funo especfica de cada uma das formas simblicas actuando como mediao lingustica ou esttica.

    No fim das observaes introdutrias, deve-se mencionar e explicar algumas caractersticas do conceito filosfico de forma simblica. neste conceito que Cassirer baseia, desde os seus anos de Hamburgo (1919- -1933), a totalidade da sua filosofia, entendida por ele tambm como uma concepo de formas, como uma morfologia da cultura. Em primeiro lugar, a forma concebida como determinada estrutura de significado e de ordem do mundo da cultura. nesta estrutura que certos fenmenos singulares (por exemplo, os fenmenos lingusticos) adquirem o seu significado compreensvel, manifestvel. Ao mesmo tempo, os fenmenos de significado singulares, que sempre possuem tambm uma dimenso sensvel, representam um dos sistemas espirituais e culturais de ordem e, desta maneira, a significao encarnada, incorporada nela. Esta dupla relao e a incorporao do significado no sensvel tambm chamada por Cassirer a pregnncia (Prgnanz) simblica6. Todos os fenmenos culturais cumprem uma funo representativa em que consiste o seu ca-rcter simblico, intermedirio7. Cada estrutura de significado, cada forma possui um princpio prprio de estrutura, de forma, um princpio especfico interno que determina, na cultura, o significado especfico (lingustico, mtico) de cada uma das estruturas, de cada uma das formas simblicas. Ao mesmo tempo, todas as formas espirituais e culturais desempenham uma funo nica, universal de construo ou formao racional do mundo da cultura, da construo da conscincia de um mundo de cultura.

    nestas estruturas de significado, nestas formas simblicas, que o homem produz e cria, em funo daquilo que cada uma delas motiva no mundo, respectivamente como mundo lingustico, esttico ou tcnico, e continua a criar novos aspectos neste mundo. As formas da cultura, para serem disponveis ao homem durante a sua actividade criadora, devem ser descobertas ou inventadas pelo homem, devem objectivar-se, incorpo-

    6 Ernst Cassirer: Praegnanz, symbolische Ideation. In: ECN4, 51.7 Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 38.

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    rar-se nas suas obras e nas relaes de vida. Cassirer designa as formas da cultura tambm como meios simblicos, na medida em que elas formam um tipo de mundo intermdio entre o ser orgnico-vital (a imediatez da vida) e o mundo das ideias fora do tempo (funes espirituais); como mundo intermdio, elas fundam o mundo humano da cultura8.

    Alm disso, Cassirer concebe as formas como formas vivas, vividas. Isso atravessa a relao paradoxal da inrcia, da rigidez, da eternidade (identidade) da forma, por um lado, e da sua mobilidade, mutabilidade, por outro. As formas, permanecendo relativamente iguais, do luz, de cada vez, a uma figura nova, numa metamorfose. De acordo com este conceito dinmico da forma, as formas tornam-se permanentemente lquidas sem se dilurem neste lquido9. Forma viva, vivida, tambm significa seguir Goethe e Hegel no facto de um surgimento ideal passar por graus estruturais e imanentes (expresso/percepo representao/intuio significao/pensamento), o que testemunha uma alterao de forma (metamorfose). Tanto os graus das formas como as mltiplas formas nas vrias ordens de significado formam uma totalidade das formas estudadas pela filosofia de modo analtico-contemplativo e de modo histrico-contemplativo.

    II. Linguagem, Arte e Percepo

    Um tema que se repete regularmente nas Obras Pstumas o pensar sobre o papel que desempenha a linguagem na determinao de significa-do da percepo sensvel. Nos anos de 1926/27, Cassirer ope s teorias sensualistas e positivistas a sua prpria teoria do valor de smbolo da percepo sensvel10. Ele v uma posio anloga na fenomenologia de Husserl. A percepo enche-se passo a passo do contedo de significa-do, quer dizer ela significa algo. Neste contexto, fala da linguagem, da gramtica, do logos do mundo perceptivo ele mesmo11. Com estas expresses, quer sublinhar o facto de que o valor de signos da percepo

    8 Ernst Cassirer: Philosophie der symbolischen Formen. Dritter Teil: Phnomenologie der Erkenntnis. In: Gesammelte Werke. Hamburger Ausgabe. Hrsg. von Birgit Recki. Band 13 (ECW13). Hamburg 2002, 319.

    9 Ernst Cassirer: Beilage Form. In: Geschichte. Mythos. Hrsg. von Klaus Christian Khnke, Herbert Kopp-Oberstebrink und Rdiger Kramme. (Nachgelassene Manuskripte und Texte. Bd. 3) Hamburg 2002, (ECN3, 223f.

    10 Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 3.11 Neste sentido amplo ou metafrico, Cassirer fala do facto de as cincias ou as reas

    particulares da cultura terem cada uma a sua prpria linguagem. neste contexto que ele re-jeita categoricamente o discurso de uma linguagem universal das cincias (Leibniz, Carnap). - Ernst Cassirer: Ausdrucksphaenomen und Wiener Kreis. In: ECN4, 154, 157, 186, 205.

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    aumenta permanentemente em relao ao valor de contedo sensvel, acabando por finalmente o ultrapassar. Desta maneira, surge para ns somente o mundo perceptivo consciente12. Nele podemos encontrar e indicar o fenmeno originrio da representao, ou seja, podemos j perceber que atingimos uma conexo de significao ou de significado13. E, no final, l-se no manuscrito: Nesta forma da determinao signifi-cativa da percepo tambm a linguagem [...] tem a parte sumamente importante na interpretao das percepes (da sua fixao, distino como tal e tal) no a podemos esquecer [a linguagem]14.

    Como na sua palestra em Londres sobre a conexo entre a linguagem, o pensamento e a percepo (1927)15, assim tambm na sua conferncia em Lund (Sucia, 1936), sobre a influncia da linguagem na formao de con-ceitos cientficos, Cassirer repete a sua tese das relaes estreitas [...] que existem entre a estrutura do mundo lingustico e a do mundo perceptivo16. Ele sublinha de novo a interrelao permanente entre a estrutura de lin-guagem e a estrutura de percepo17. Pelas estreitas relaes funcionais entre o mundo lingustico e o mundo perceptivo, a ltima a estrutura de percepo sofre alteraes estruturais [...] pela linguagem, em primeiro lugar, quando surge a conscincia de smbolos [simblica]18. Do mesmo modo, tal como a forma de linguagem participa na formao da cons-cincia perceptiva, assim o modo da percepo [...], por seu lado, volta a actuar no acto lingustico e sobre o desenvolvimento da linguagem. Como prova destas relaes funcionais estreitas, Cassirer apresenta certos conhecimentos da patologia de linguagem. Esta cincia mostrava que as alteraes patolgicas ou a perda completa da linguagem nunca acontecem s para si, mas [...] influenciam e mudam decisivamente todo o mundo das representaes e das percepes19. A patologia de linguagem mostra de que modo e at que ponto o mundo da percepo depende do mdium da linguagem, e influenciado por ele20.

    12 Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 3.13 Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 5.14 Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 6.15 Ernst Cassirer: ber Sprache, Denken und Wahrnehmung. In: ECN4, 287f.16 Ernst Cassirer: Vom Einfluss der Sprache auf die naturwissenschaftliche Begriffs-

    bildung. In: ECN4, 110.17 Ernst Cassirer: Vom Einfluss der Sprache auf die naturwissenschaftliche Begriffs-

    bildung. In: ECN4, 112. 18 Ernst Cassirer: Vom Einfluss der Sprache auf die naturwissenschaftliche Begriffs-

    bildung. In: ECN4, 122. 19 Ernst Cassirer: Vom Einfluss der Sprache auf die naturwissenschaftliche Begriffs-

    bildung. In: ECN4, 112. 20 Es scheint, da der innere Konnex beider Welten erst dort in voller Klarheit und

    mit besonderem Nachdruck zu Tage tritt, wo, durch besondere krankhafte Bedingungen,

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    A percepo, possuindo atravs do seu crescimento fora de si prpria um valor de expresso, refere-se a uma totalidade de significado que se representa nela e que representado por ela21. A prpria percepo mos-tra-se como formada simbolicamente, embora no seja e no possa ser uma forma simblica prpria. Cassirer caracteriza, neste texto, o carcter de ser formada simbolicamente da percepo, quer dizer o seu valor de smbolo, como um fenmeno originrio da pregnncia (Prgnanz) de significado22. O conceito da pregnncia significa, neste contexto, a unidade da figura (Gestalt), do princpio sinttico que penetra qualquer singular. Deste modo, o singular no s representa o conjunto, mas significativamente o conjunto23.

    Esta pregnncia simblica da percepo mostra-se, segundo Cassirer, mais claramente nos fenmenos estticos. Contudo, podemos e temos de transferi-la dos fenmenos estticos para o todo, para a totalidade do significado, [quer dizer, para qualquer ordem de significado C.M.]. As-sim, cada som [singular] duma melodia percebido por ns existe como tal, compreensvel como um som significativo s no conjunto desta melodia; ele no existe fisicamente como som singular de uma ou outra intensidade ou qualidade. Ele mostra-se como mergulhado [...] no mar da melodia, na sua dinmica, na sua rtmica, no seu flutuar24. Ou: Temos a impresso que no podermos tirar duma obra de arte verdadeira qualquer momento singular sem, desta maneira, destruir a totalidade esttica, sem destruir a unidade da atmosfera que transportada, representada pela obra esttica singular25.

    das Band zwischen beiden sich zu lockern beginnt. Erst dann wird ganz deutlich, wie viel die Welt der Perzeption selbst dem Medium der Sprache verdankt wie sehr jede Strung oder Beeintrchtigung der geistigen Vermittlung, die die Sprache darstellt und herstellt, die unmittelbare Gestalt unserer Wirklichkeit, der theoretischen sowohl wie der praktischen, angreift. Ernst Cassirer: ber Sprache, Denken und Wahrnehmung. In: ECN4, 291f.

    21 Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 7.22 Ernst Cassirer: Praegnanz, symbolische Ideation. In: ECN4, 51f. 23 Ernst Cassirer: Praegnanz, symbolische Ideation. In: ECN4, 78. 24 Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 8. 25 Ernst Cassirer: Praegnanz, symbolische Ideation. In: ECN4, 79. Wir haben den

    Eindruck da wir aus einem echten Kunstwerk kein Moment herausnehmen knnen, ohne das Ganze zu zerstren -- / Das Einzelne ist hier der Trger jener Einheit der Stimmung, die durch das Ganze geht -- / jede nderung irgend eines Einzelzugs eines Gemldes, oder einer Symphonie, vermag diese Einheit der Stimmung, der spezifisch sthetischen Sicht, aus der gerade dieses Kunstwerk geboren wurde, zu vernichten. (ECN4, 79) Na pregnncia die Welt der Tne, Farben, Gestalten hat sich loslst von dieser ganzen wirk-lichen und wirkenden Welt, um nur noch in ihrer eigenen Ebene zu schwingen, in ihrer

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    O fenmeno originrio da pregnncia (relevncia) esttica torna-se tambm particularmente apreensvel se acontece a sua perda causada por perturbaes patolgicas: a doena da Amusia, quando se pode ouvir sons mas j no se pode ouvir a melodia, isto , quando j no se os pode reunir numa unidade intuitiva (ECN4, 71). Neste caso, a pregnn-cia como reunificao simblico-intuitiva foi perdida26. No entanto, Cassirer est certo de que cada forma possui o carcter da pregnncia: alm da pregnncia esttica, fala de uma pregnncia espacial, temporal, geomtrica, e de uma pregnncia perceptiva27.

    Ele acrescenta ainda que o enquadramento da percepo, no crculo de significao do esttico executado pela pregnncia, assim como na esfera do [...] significado mtico, teortico ou religioso, j o produto de uma abstraco: Originariamente, todos estes crculos se encontram como no diferenciados uns nos outros. Cada percepo possui originariamente, ao mesmo tempo, um carcter terico, religioso, mtico, esttico. Para nos esclarecermos este significado originrio da percepo temos de anular [reflexivamente - C.M.] todas estas separaes posteriores28 (ECN4, 8).

    Cassirer interpreta a percepo esttica como a manifestao de uma conexo de vida e de um conjunto de vida29. O artista trata cores e sons como manifestao de uma vida interior, ele vive neles, ele vive na atmosfera de uma vitalidade que caracteriza a percepo. Contudo, em cada percepo que ainda no passou pelo processo de separao abstracti-va, seramos ao mesmo tempo artistas. Tomando em conta isso, Cassirer fala aqui da indestrutibilidade do esttico, tal como fala em outro lugar da indestrutibilidade do mtico no homem30. Ambos, o mtico e o esttico, so para ele concebidos como caracteres permanentes de cada percepo

    eigentmlichen Stimmung erfat zu werden. (ECN4, 79) Im echten Kunstwerk herrscht eben jene Determination alles Besonderen, Einzelnen durch die Einheit des sthetischen Sinnes des Ganzen -- / hier soll schlechthin nichts zufllig sein, sondern irgendwie mit dem Ganzen verwoben sein -- / insbesondere auch die Erlebnismomente, die in das Kunstwerk eingehen -- [...] -- das Verwobensein -- / oder in einem lyrischen, einem musika-lischen Kunstwerk -- / alles ist wie eingetaucht in die Einheit des Sinnes, der spezifischen, ganz-individuellen Stimmung, die ber dem Ganzen liegt -- / Nichts lt sich herauslsen, ohne diese Einheit der Stimmung zu gefhrden, unter Umstnden ganz zu zerstren -- [...] /und andrerseits gengt jedes noch so flchtige Element, jeder Worthauch, jeder Klang, jedes flchtige Licht, um das Ganze dieser Stimmung wieder in uns hervorzuzaubern -- / eben darin besteht ja die eigentmliche Magie des Kunstwerks. (ECN4, 82f.)

    26 Ernst Cassirer: Praegnanz, symbolische Ideation. In: ECN4, 71. 27 Ernst Cassirer: Praegnanz, symbolische Ideation. In: ECN4, 79. 28 Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 8.29 Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 9. 30 Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 9.

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    completa, de cada percepo integral em si. Desta maneira, ele explica e interpreta o esttico, assim como o mtico, o que at agora no suscitava nenhum interesse, no s como direco original de significado, mas tam-bm como direco original ineliminvel da percepo humana do mundo e do si-mesmo31. A indicao da grande trade espirirual formada pelo mito, pela linguagem e pela arte32, que se encontra em outros textos no analisados por ns aqui, leva-nos a um outro e ltimo tema: a linguagem e a arte como formas simblicas.

    III. Linguagem e arte como formas simblicas

    Em qualquer desempenhar da percepo j se realiza, segundo Cassi-rer, a arqui-funo do indicar e do significar que garantem percepo um valor de smbolo, de expresso, de funo. Era sobre esta arqui-funo que se baseava tambm toda a configurao propriamente simblica (na linguagem, na arte, no mito, na teoria)33. De acordo com esta ideia, Cas-sirer distingue o nvel mais baixo da configurao (formao de smbo-los), que forma a conscincia perceptiva, das formas espirituais mais elevadas do smbolo, das formas constitutivas do significado34.

    Salienta-se que na filosofia das formas simblicas algumas formas so privilegiadas: assim, o mito como forma primeira de cultura, original e como que a origem de todas outras formas secundrias; e, relacionadas com ele, por um lado, a arte e a linguagem, por outro lado, a tcnica (o meio, o instrumento).35 Em ambas as direces de argumentao, Cas-sirer est interessado no facto da emancipao do homem das relaes de vida mgico-mticas, prtico-imediatas. Ele nem sempre explica clara e profundamente a conexo entre estas duas passagens fundamentais de significados e de formas.

    Interessa-nos aqui somente a chamada trade das formas simblicas (ECN1), que sugere que a arte e a linguagem devem ser concebidas como

    31 Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 10. 32 Ernst Cassirer: Zur Metaphysik der symbolischen Formen. Hrsg. von John M. Krois.

    (Nachgelassene Manuskripte und Texte. Bd. 1) Hamburg 1995 (ECN1), 87f.33Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 11.34 Ernst Cassirer: Praesentation und Repraesentation. In: ECN4, 45.35 O actuar tcnico (technisches Wirken), aparentemente ligado pura utilidade, ist

    das Grundmittel, kraft dessen sich der Mensch in der Technik mit dem Sein der Natur verbindet und kraft dessen er sich an dasselbe zu binden scheint, der eigentliche Anfang zur Selbstbefreiung des Geistes. Denn im Werkzeug ist an die Stelle des unmittelbaren Ergreifens der Objekte ein mittelbarer Bezug auf sie getreten. -- Ernst Cassirer: Zur Metaphysik der symbolischen Formen. In: ECN1, 39f.

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    as formas espirituais propiamente primrias. Assim, a configurao estti-ca, tambm depois da sua libertao da magia da palavra e da magia de imagem da viso mgico-mtica do mundo, continua a permanecer ligada ao mundo da linguagem como que por traos secretos e finos. Cassirer explica esta combinao das formas esttica e lingustica, mais uma vez, da seguinte maneira: S na linguagem, assim como na arte construtiva, tem lugar a elevao do homem do nvel da percepo sensvel ao n-vel do olhar propriamente ideal. Ambas so os rgos que, no seu uso, mutuamente se pertencem e que actuam conjuntamente para a aquisio de uma imagem intuitiva do mundo [...]36. A imagem intuitiva do mun-do j se baseia, ao contrrio da imagem somente perceptiva do mundo e da sua funo expressiva, na funo espiritual representativa (percepo sensitiva intuio emprica pensamento abstracto).

    Na palestra O Problema do Smbolo, apresentada em Zurique (1932), Cassirer sublinha mais uma vez o peso essencial das formas simblicas da linguagem e da arte no surgimento do homem como tal, como ser cultural. Fora das suas mediaes, quer dizer, no absoluto e no no figu-rado, no se pode falar de uma existncia cultural37. O balano relativo linguagem, j o conhecemos: sem a linguagem no h nenhuma intuio emprica do mundo, nenhum mundo de objectos no qual se executa a vida quotidiana do homem. Os estudos modernos da patologia da linguagem38 confirmavam o facto da conexo essencial e necessria entre a funo fundamental da linguagem e a funo da representao objectiva39. De acordo com isso, a forma simblica da linguagem mostra-se como um meio da configurao de objectos; mais ainda, ela , em certo sentido, o meio, o instrumento mais importante para adquirir e para formar um mundo objectivo puro40. As perturbaes patolgicas estudadas por Kurt Goldstein e Adhmar Gelb41 Goldstein era primo de Cassirer do provas indirectas desta conexo42. Por outros palavras, as pertur-baes da linguagem atingem reas nas quais a palavra enquanto tal no participa43.

    36 Ernst Cassirer: Zur Metaphysik der symbolischen Formen. In: ECN1, 78. 37 Ernst Cassirer: Vortrag: Symbolproblem. In: ECN4, 88.38 Ernst Cassirer: Vortrag: Symbolproblem. In: ECN4, 93.39 Ernst Cassirer: Vortrag: Symbolproblem. In: ECN4, 94f.40 Ernst Cassirer: Vortrag: Symbolproblem. In: ECN4, 95. 41 Cassirer an Kurt Goldstein, 5. Januar 1925. In: Ausgewhlter wissenschaftlicher

    Briefwechsel. Hrsg. von John M. Krois. (Nachgelassene Manuskripte und Texte. Bd. 18) Hamburg 2008 (ECN18), 69-72.

    42 Ernst Cassirer: Vortrag: Symbolproblem. In: ECN4, 98f.43 Ernst Cassirer: Praegnanz, symbolische Ideation. In: ECN4, 68. A participao

    essencial da linguagem na formao simblica de um mundo intuitivo de objectos ex-

  • 335Arte e linguagem como duas formas simblicas

    pp. 325-336Revista Filosfi ca de Coimbra n.o 40 (2011)

    Um papel anlogo ao da linguagem na formao e configurao do mundo desempenhava tambm a configurao (Gestaltung) artstica, a forma esttica. Nas consideraes de Goethe, por exemplo, a poesia fun-ciona como uma forma simblica, mostra-se como um medium simblico, no qual a refraco do raio de luz (metfora da ptica) a nica maneira na qual o ser das coisas e o prprio ser do homem em geral possam ser tornados visveis para ele44. Compreende-se que Cassirer fale de uma maneira afirmativa desta consideraes em que Goethe atribui forma esttica uma pretenso epistemolgica. Ele remete, como prova disso, ao conceito esttico central de mimesis, de imitao (Aristteles). Contudo, ele acha que o verdadeiro significado deste conceito se exprime muito melhor atravs da noo de representao do que pelo conceito de imi-tao45. A configurao artstica no nos afasta, por isso, da verdade e da essncia; [...] pelo contrrio, s ela nos abre esta verdade e a torna compreensvel para o nosso olhar interno.

    Aqui, acrescenta a tese muito importante, neste contexto, de que o parentesco profundo que existe entre o mundo da arte e o mundo da lingua-gem se nos manifesta nesta particularidade caracterstica da configurao artstica. Cada grande obra de arte realmente no se contenta por exprimir um ser simplesmente-a-presente, conhecido de antemo, mas, pelo contr-rio, d uma nova fisionomia ao mundo como um todo46. Tal quer dizer que Cassirer insiste na conexo interna e sistemtica [...] entre o problema bsico da esttica e os problemas da filosofia da linguagem47.

    Cassirer pressupe que at ao seu tempo esta importante conexo no era compreendida com verdadeira clareza48. A excepo era apenas o ento conhecido esttico alemo Konrad Fiedler. Este tentava aplicar ao mundo artstico de formas a chamada viragem copernicana de Kant, segundo a qual o objecto do conhecimento se forma no incio, reen-

    prime-se, finalmente, no seguinte facto: die Einheit des Namens dient zum Kristallisati-onspunkt fr die Mannigfaltigkeit der Vorstellungen: die an sich heterogenen Phnomene werden dadurch homogen und gleichartig, da sie sich auf einen gemeinsamen Mittelpunkt beziehen. Und kraft dieser Beziehung erst werden sie nun auch als Erscheinungen ein und desselben Gegenstandes und als seine Abschattungen gedeutet. Wo die Kraft der Nennfunktion, auf Grund pathologischer Strungen, erlahmt -- da scheint alsbald auch das Band der gegenstndlichen Einheit sich wieder zu lockern. An Stelle dieser Einheit tritt die Vereinzelung; an Stelle der kategorialen Ordnung und Geschlossenheit tritt die bunte, aber beziehungslose Flle. (ECN4, 98)

    44 Ernst Cassirer: Vortrag: Symbolproblem. In: ECN4, 102. 45 Ernst Cassirer: Vortrag: Symbolproblem. In: ECN4, 99f.46 Ernst Cassirer: Vortrag: Symbolproblem. In: ECN4, 101 s. 47 Ernst Cassirer: Praegnanz, symbolische Ideation. In: ECN4, 78. 48 Ernst Cassirer: Zur Metaphysik der symbolischen Formen. In: ECN1, 78.

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    Revista Filosfi ca de Coimbra n.o 40 (2011)pp. 325-336

    Christian Mckel

    viando para o mundo da configurao artstica. E, nesta via, Fiedler encontra a linguagem que se apresenta quase como um intermedirio entre a forma terica e a forma esttica.49. Ele, Fiedler, atinge e nomeia, de uma maneira impressionante, o fio espiritual, [...] ligando a linguagem com a arte plstica e fundando entre elas algo como uma unio. No entanto, Cassirer v-se obrigado a limitar o mrito de Fiedler: a unio dele baseia-se exclusivamente na funo de expresso, e no na funo de representao, sendo que a linguagem e a arte actuam como meios fundamentais da objectivao, da elevao da conscincia ao grau (nvel) da intuio objectiva. Para se poder realizar esta elevao, o pensa-mento lingustico discursivo e a actividade intuitiva do olhar artstico e da configurao artstica tm de se juntar e [...] tecer conjuntamente o vestido da realidade50.

    Contudo, ao estudar todos estes textos parece que Cassirer destina, em primeiro lugar, uma funo especfica e elevada linguagem na totalida-de das formas simblicas. Neste sentido, indicou e sublinhou, nas suas lies sobre a filosofia da linguagem, no semestre de Vero de 1922, que o homem exercita a sua capacidade de configurao na esfera (na forma do mundo) lgica, mtica, artstica ou lingustica; contudo, s a forma lingustica est em condies de participar em todas elas, quer dizer, em todas as formas de configurao51. E no fim da sua palestra lida em Londres, em 1927, sobre a relao entre a linguagem, o pensamento e a percepo, apresenta uma questo alternativa: ou se pode distinguir uma funo bsica comum do esprito que poderamos assinalar como funo simblica como tal e a linguagem seria apenas uma forma especfica e particular dela [...], ou, pelo contrrio, todo o comportamento simb-lico recua para a linguagem como base primordial, como condio da sua possibilidade52. Por outras palavras, a linguagem , no processo de simbolizao, ou o primeiro ou o segundo, ou a causa ou a aco. Embora Cassirer, nesta palestra, no d uma resposta a esta questo, ele provavel-mente favoreceria a primeira resposta possvel. No entanto, no se pode excluir com certeza tambm a segunda resposta possvel, na medida em que esta posio no fica completamente fora do seu pensamento.

    49 Ernst Cassirer: Zur Metaphysik der symbolischen Formen. In: ECN1, 79. 50 Ernst Cassirer: Zur Metaphysik der symbolischen Formen. In: ECN1, 81. 51 Ernst Cassirer: Grundprobleme der Sprachphilosophie. In: ECN4, 262.52 Ernst Cassirer: ber Sprache, Denken und Wahrnehmung. In: ECN4, 310.