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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
CENTRO DE ARTES CEART
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARTES VISUAIS
WAGNER JONASSON DA COSTA LIMA
ARTHUR OMAR E O EFEITO CINEMA NA ARTE CONTEMPORNEA
FLORIANPOLIS - SC
2011
WAGNER JONASSON DA COSTA LIMA
ARTHUR OMAR E O EFEITO CINEMA NA ARTE CONTEMPORNEA
Dissertao de mestrado elaborada junto ao
Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais
do Centro de Artes da Universidade do Estado
de Santa Catarina para obteno do ttulo de
Mestre em Artes Visuais.
Orientador: Prof. Dr. Rosngela Miranda
Cherem
FLORIANPOLIS - SC
2011
Ficha elaborada pela Biblioteca Central da UDESC
L732a Lima, Wagner Jonasson da Costa
Arthur Omar e o efeito cinema na arte contempornea / Wagner Jonasson
da Costa Lima -- 2011.
121 f. : il.; 30 cm
Inclui bibliografia
Orientadora: Profa. Dra. Rosngela Miranda Cherem
Dissertao (mestrado) Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Mestrado em Artes Visuais, Florianpolis, 2011.
1.Cinema 2. Artes estudo e ensino 2. Arte contempornea I. Cherem, Rosngela Miranda - II. Omar, Arthur III. Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestrado em Artes Visuais IV. Ttulo
CDD: 700 20 ed.
WAGNER JONASSON DA COSTA LIMA
ARTHUR OMAR E O EFEITO CINEMA NA ARTE CONTEMPORNEA
Dissertao de mestrado elaborada junto ao Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais do
Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para a
obteno do ttulo de Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa de Teoria e Histria das
Artes Visuais.
Banca examinadora:
Orientador: _________________________________________________________________
Prof. Dr. Rosngela Miranda Cherem
UDESC
Membro: ___________________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Felipe Guimares Soares
UFSC
Membro: ___________________________________________________________________
Prof. Dr. Sandra Makowiecky
UDESC
Florianpolis, 29 de agosto de 2011.
minha famlia: meus pais Jane e Valmiqui e meus irmos Thienes e Cassio.
AGRADECIMENTOS
Agradeo minha orientadora Prof. Dr. Rosngela Miranda Cherem, pelo
acompanhamento srio em momento to necessrio.
A todos os professores do Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais, responsveis
igualmente pelo amadurecimento da presente pesquisa.
Ao programa de Ps-Graduao em Artes Visuais e UDESC por investir e acreditar
nesta pesquisa.
Ao programa da bolsa Promop, por ter auxiliado esta pesquisa a partir do segundo ano
acadmico.
Sou grato igualmente ao Prof. Dr. Luiz Felipe Guimares Soares e Prof. Dr. Sandra
Makowiecky, que aceitaram compor a Banca e assim contribuir para a realizao desta
pesquisa com respeitveis consideraes.
A Mrcia e Doroti, secretrias do programa, sempre dispostas a esclarecer todas as
dvidas.
Agradeo ainda turma ingressante em 2009 e aos amigos pelas discusses
fervorosas, pelas relaes construdas e to valorizadas, em especial Aline Krger, Amanda
Cifuente, Ana Lucia Moraes, Carolina Votto e Elisa Dassoler.
E, por fim, agradeo e dedico novamente esta conquista aos meus pais, Jane e
Valmiqui, pelo amor incondicional e constante apoio.
RESUMO
LIMA, Wagner Jonasson da Costa. Arthur Omar e o efeito cinema na arte contempornea.
2011. 121 f. Dissertao (Mestrado em Artes Visuais, Linha de Pesquisa em Teoria e Histria
da Arte) Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais (PPGAV) do Centro de Artes (CEART) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianpolis, 2011.
A presente pesquisa tem por objetivo analisar a relao entre cinema e arte contempornea
abordando determinados momentos da produo artstica e terica de Arthur Omar. O incio
de sua trajetria artstica marcado pelo movimento de ruptura com o cinema documentrio
tradicional, perodo em que o artista vai introduzir a noo de antidocumentrio no contexto
da produo audiovisual brasileira. A partir desse momento realiza um percurso que vai do
cinema s artes plsticas, passando pelo vdeo, fotografia e instalaes de vdeo. Realiza ainda
em 2006 a exposio Zooprismas: Cincia Cognitiva dos Corpos Gloriosos, constituda por
imagens videogrficas e fotogrficas em variadas possibilidades de exposio e projeo. So
trabalhos concebidos a partir da suavizao das fronteiras que separam fotografia, cinema,
vdeo e artes visuais. Pensar sobre os dispositivos imagticos torna-se desta maneira tarefa
fundamental para uma reflexo sobre a experincia artstica na atualidade. Para tanto, a
pesquisa dialoga com a noo de efeito cinema, procedimento de cineastas/artistas que ora
utilizam diretamente o material flmico em sua produo, ora inventam formas de
apresentao que fazem pensar ou se inspiram em efeitos ou formas cinematogrficas.
Palavras-chave: Arthur Omar. Cinema. Arte Contempornea.
ABSTRACT
This present research aims to analyze the relationship between cinema and contemporary art
by using certain moments of artistic and theoretical production of Arthur Omar. The
beginning of his artistic trajectory is marked by rupture with traditional documentary
filmmaking, period when he will introduce the notion of antidocumentrio in the context of
the Brazilian audiovisual production. From that moment on, he takes a path that goes from
cinema to visual arts, passing through video, photography e video installations. In 2006, he
performs the exposition Zooprismas: Cincia Cognitiva dos Corpos Gloriosos containing
video and photographic images in many ways of displaying and projecting. These are works
designed from the softening of the boundaries that separate photography, cinema, video e
visual arts. Think about the pictorial devices becomes fundamental for a reflection on the
artistic experience nowadays. Therefore, the research dialogues with the notion of cinema
effect, procedure of filmmakers / artists whosometimes use the film material directly in
production, sometimes invent forms of presentation that make you think or are inspired by
effects or cinematic forms.
Keywords: Arthur Omar. Cinema. Contemporary Art.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Arthur Omar, Congo, 1972 .............................................................................. 26
Figura 2 - Arthur Omar, Congo, 1972 .............................................................................. 26
Figura 3 - Arthur Omar, Congo, 1972 .............................................................................. 27
Figura 4 - Arthur Omar, Congo, 1972 .............................................................................. 31
Figura 5 - Fernand Lger, Ballet Mecnique, 1924 .......................................................... 33
Figura 6 - Grupo Dziga Vertov, Le Vent D'est, 1969 ....................................................... 34
Figura 7 - Robert Rauschenberg, Lincoln, 1958 ............................................................... 35
Figura 8 - Arthur Omar, Triste Trpico, 1974 .................................................................. 38
Figura 9 - Arthur Omar, ttulo original do filme Triste Trpico, 1974 ............................ 39
Figura 10 - Max Ernst, La femme 100 ttes, 1929 ............................................................ 42
Figura 11 - Arthur Omar, Triste Trpico, 1974 ................................................................ 43
Figura 12 - Nam June Paik, Global Groove, 1973 ........................................................... 53
Figura 13 - Abel Gance, Napoleon, 1927 ......................................................................... 53
Figura 14 - Arthur Omar, O Nervo de Prata, 1987 .......................................................... 57
Figura 15 - Arthur Omar, O Nervo de Prata, 1987 .......................................................... 59
Figura 16 - Arthur Omar, O Nervo de Prata, 1987 .......................................................... 60
Figura 17 - Arthur Omar, O Nervo de Prata, 1987 .......................................................... 61
Figura 18 - Arthur Omar, O Nervo de Prata, 1987 .......................................................... 64
Figura 19 - Arthur Omar, O Nervo de Prata, 1987 .......................................................... 64
Figura 20 - Arthur Omar, Inferno, 1994 ........................................................................... 69
Figura 21 - Gary Hill, Crux, 1983-87 ............................................................................... 70
Figura 22 - Arthur Omar, Fluxus, 2001 ............................................................................ 74
Figura 23 - tienne-Jules Marey, Voo de pssaro (estudo), 1886 ................................... 80
Figura 24 - Arthur Omar, Zootrpio, 2006 ....................................................................... 81
Figura 25 - Arthur Omar, Vocs, 1979 ............................................................................. 84
Figura 26 - Arthur Omar, La verit e Balada para os Sete Sims, 2006 ............................ 86
Figura 27 - Douglas Gordon, 24 Hour Psycho, 1993 ....................................................... 97
Figura 28 - Wolfgang Laib, Pierre de Lait, 1977 ............................................................. 98
Figura 29 - El Lissitzky, International Film and Photo Exhibition, 1929 ....................... 100
Figura 30 - Chantal Akerman, DEst, 1995 ...................................................................... 102
Figura 31 - El Greco, Vista y Plano de Toledo, 1610 ....................................................... 103
Figura 32 - Arthur Omar, Pele Mecnica, 2006 ............................................................... 106
Figura 33 - Hlio Oiticica, CC5 Hendix War, 1973 ......................................................... 108
Figura 34 - Rosngela Renn, Experincia de Cinema, 2004 .......................................... 108
SUMRIO
INTRODUO .............................................................................................................. 10
1 O ANTIDOCUMENTRIO E O OBJETO FLMICO ...................................... 16
1.1 O antidocumentrio: o real dentro do cinema e o cinema dentro do real ............... 16
1.2 Um filme em branco: Congo e o quadro ................................................................. 24
1.3 Galxia de imagens descontnuas: Triste Trpico e a montagem ........................... 36
2 O CINEMA ELETRNICO E OS ESTADOS DA IMAGEM ......................... 47
2.1 Passagem do cinema para o vdeo: as questes do artista ....................................... 47
2.2 O Nervo de Prata: entre o cinema e as artes plsticas ............................................ 55
2.3 Inferno e Fluxus: a instalao de vdeo e a montagem de atraes ........................ 66
3 ZOOPRISMAS E O EFEITO CINEMA .............................................................. 78
3.1 O pr-cinema e ps-cinema em Zooprismas ........................................................... 78
3.2 A situao cinema e as variaes do dispositivo .................................................... 89
3.3 O dispositivo cinematogrfico e o ambiente expositivo ......................................... 99
CONSIDERAES FINAIS ......................................................................................... 111
REFERNCIAS ............................................................................................................. 115
10
INTRODUO
Atualmente encontra-se frequentemente a presena de uma situao cinematogrfica
em espaos distintos ao da sala de cinema. O pblico defronta-se, em museus e galerias, com
uma tendncia nos modos de exibio de obras de arte audiovisuais, em que o chamado cubo
branco tradicional transforma-se em caixa preta, e o espao de exposio torna-se espao de
projeo. Artistas contemporneos apresentam em suas obras princpios criativos e estticos
que remetem aos da prtica cinematogrfica e aos seus modos de expresso. Dentre eles
destaca-se a presena de Arthur Omar no contexto da arte brasileira e suas propostas que
visam a problematizar as lgicas convencionais de funcionamento de dispositivos como a
fotografia, o vdeo e o cinema.
Arthur Omar de Noronha Squeff nasceu na cidade de Poos de Caldas em 1948, no
estado de Minas Gerais. Embora sua formao universitria seja na rea das Cincias Sociais,
nunca se dedicou profisso, identificando-se com a prtica artstica desde muito cedo. Na
infncia o artista mantm contato constante com a msica, incentivado pela me, professora
de piano. Desde a adolescncia participava de fotoclubes e sales de fotografia, nos quais
conquista diversos prmios. Tambm se envolve com a literatura e, aos dezesseis anos, tinha
como objetivo ser escritor. Sua inteno na poca era reunir a imagem e a escrita em uma
mesma tcnica artstica. Lanaria em 1973, com ilustraes suas, o livro de poesia O asno
ris. No perodo, no entanto, j havia participado do curso de cinema oferecido pelo Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), realizando em seguida seu primeiro filme.
Em entrevista, o artista afirma que o cinema representava para ele a reunio entre essas
diversas reas, como um prolongamento de suas atividades anteriores. Nesse sentido, verifica-
se uma tendncia de ampliao dos meios expressivos de que se servia. Pode-se apontar ainda
a gradativa transformao que Omar opera no dispositivo do cinema em suas dimenses
discursivas, tecnolgicas e arquitetnicas, em um contato cada vez mais estreito com as
prticas artsticas contemporneas. Com o intuito de dimensionar este dilogo, as questes
que conduzem esta pesquisa so: Como se d a relao entre cinema, vdeo e artes visuais na
sua produo artstica? Como essa relao manifesta-se no seu pensamento terico-
conceitual? Como se configura no trabalho do artista a convergncia entre o dispositivo
cinematogrfico e o ambiente expositivo da arte contempornea?
A presente pesquisa tem por objetivo analisar a relao entre cinema e arte
contempornea abordando determinados momentos da produo artstica e terica de Arthur
11
Omar. Seu trabalho abrange cinema, fotografia, msica, vdeo e reflexo terica. O incio de
sua trajetria artstica marcado pelo movimento de ruptura com o cinema documentrio
tradicional, perodo em que o artista vai introduzir a noo de antidocumentrio no contexto
da produo audiovisual brasileira. A partir desse momento realiza um percurso que vai do
cinema s artes plsticas, passando pelo vdeo, fotografia e instalaes de vdeo. Realiza
ainda, em 2006, a exposio Zooprismas: Cincia Cognitiva dos Corpos Gloriosos,
constituda por imagens videogrficas e fotogrficas em variadas possibilidades de exposio
e projeo.
O crescente uso de dispositivos audiovisuais na arte contempornea vem colocando
em questo premissas fundamentais tanto da produo artstica quanto do audiovisual.
Caracterizada pelo hibridismo, a produo de Arthur Omar marcada pela miscigenao de
prticas e conceitos que apontam para a reestruturao das relaes entre observadores e
imagens. So obras concebidas a partir da suavizao das fronteiras que separam fotografia,
cinema e vdeo. Nesse processo os dispositivos so colocados em evidncia. Logo, pensar
sobre os dispositivos imagticos torna-se tarefa fundamental para uma reflexo sobre a
experincia artstica na atualidade.
Adota-se como metodologia o levantamento de conjunto de materiais relacionados ao
objeto e ao tema da pesquisa, contidos em livros, peridicos, teses e dissertaes, fitas de
vdeo e DVDs, alm de material disponvel online. Constitui-se da a procura das
singularidades do trabalho do artista, com base em descries e cotejos com outras prticas
artsticas. Assim o desenvolvimento da pesquisa se d no corpo a corpo com as sequncias de
filmes e vdeos, com os textos do artista e imagens de seus trabalhos. Esse tipo de anlise visa
a identificar o movimento que se instaura em um detalhe de determinado filme ou vdeo,
igualmente o movimento que exprime o todo de um filme/vdeo ou trabalho e, em seguida, a
correspondncia entre os dois.
O primeiro captulo visa a compreender como se d a relao entre cinema e as
prticas artsticas contemporneas no incio da trajetria artstica de Arthur Omar, abordando
em um primeiro momento o ensaio O antidocumentrio, provisoriamente1 (1978). Discute a
necessidade de Omar de trabalhar na desarticulao do documentrio tradicional, em relao
ao contexto da arte brasileira das dcadas de 1960 e 1970. Verificam-se no perodo novas
estratgias de trabalho, uma preocupao voltada para a criao e busca de novos suportes e,
principalmente, para o deliberado rompimento com a noo de suporte. A obra artstica como
1 A solicitao dos servios do Programa de Comutao Bibliogrfica (COMUT) permitiu a obteno de cpia
do texto publicado na Revista de Cultura Vozes.
12
objeto nico, acabado e autnomo, posta em questionamento, assim como os limites
territoriais de cada arte.
Considera, em seguida, o seu filme Congo2 (1972), junto s noes de quadro flmico
e quadro pictrico e os desdobramentos que o ltimo vai sofrer na pintura moderna. Nesse
sentido, o terico francs Gilles Deleuze aponta para a emergncia da imagem audiovisual no
cinema moderno, em que a imagem mantm novas relaes com seus elementos pticos e
sonoros, fazendo dela algo da ordem do diagrama. Em sua formulao, Deleuze faz referncia
ao crtico de arte norte-americano Leo Steinberg, para quem a pintura moderna se define
menos pelo espao plano puramente ptico que pelo abandono do privilgio da postura
vertical. O modelo da janela foi substitudo por um plano opaco, horizontal ou inclinvel,
sobre o qual os dados se inscrevem.
O captulo aborda ainda o filme Triste Trpico3 (1974), por meio do pensamento de
Walter Benjamin acerca dos procedimentos alegricos. Nesse perodo, os filmes de Omar so
construdos em funo da anulao de um modelo de cinema documentrio como em um ato
crtico. A tcnica imagtica da alegoria implica tambm um aspecto crtico por meio do
despedaamento, da disperso e o acmulo de fragmentos. Considerando a reemergncia da
alegoria na arte contempornea, o crtico de arte Craig Owens demonstra que o imaginrio
alegrico um imaginrio apropriado, em que o alegorista no inventa as imagens, mas as
confisca. Dessa maneira, a alegoria concebida tanto como uma atitude quanto uma tcnica,
uma percepo quanto um procedimento.
O segundo captulo procura identificar na prtica videogrfica de Arthur Omar a
passagem e o dilogo entre cinema, o vdeo e as artes visuais, abordando de incio o seu
ensaio Cinema, Vdeo e tecnologias digitais: as questes do artista4 (1993). Sero
consideradas as reflexes de Omar acerca das mudanas trazidas pela prtica videogrfica e
pelas novas tecnologias digitais. No ensaio o artista pondera sobre como os modos de criao
videogrfica ajudaram a desenvolver uma linguagem particular que pertence a lgicas
diferentes e pe em jogo questes de ordem muito diversa que as do cinema. No entanto, o
vdeo hoje aparece como potencializador do cinema, e vice-versa. Assim, uma linha de
continuidade entre cinema e vdeo pode ser destacada, principalmente se pensarmos em
processos e procedimentos em vez de suportes.
2 Para esta pesquisa examinou-se uma cpia do filme disponibilizada pelo site Ubu Web, que rene um grande
acervo de arte de vanguarda na internet. 3 Para esta pesquisa examinou-se uma cpia do filme em vdeo, disponvel no acervo da Cinemateca Brasileira
de So Paulo. Posteriormente examinou-se outra cpia disponibilizada no site Cinema of the world. 4 A solicitao dos servios do Programa de Comutao Bibliogrfica (COMUT) permitiu a obteno de cpia
do texto, publicado na Revista USP (Dossi Cinema Brasileiro).
13
Em um segundo momento, esse captulo considera o vdeo O Nervo de Prata5 (1987),
realizado em colaborao com o artista plstico Tunga. Observa-se que o vdeo resume a
prtica videogrfica desenvolvida por Omar no perodo, quando se opera um intenso dilogo
entre o cinema, o vdeo e as artes plsticas. A produo de Omar nessa rea aponta para uma
possvel linha de continuidade entre cinema e vdeo, dado que alguns cineastas iro transferir
seu capital esttico para o novo meio, levando para o vdeo as experimentaes consolidadas
no cinema. O terico Philippe Dubois (2004) sugere, dentre os vrios ngulos possveis para
abordar as relaes entre o cinema e o vdeo, a abordagem por meio de determinados efeitos
de manipulao da imagem.
Discute-se igualmente a relao entre as instalaes Inferno6 (1994) e Fluxus
7 (2001) e
a montagem de atraes, noo utilizada pelo cineasta Serguei Eisenstein para defender um
novo espetculo teatral baseado na combinao de elementos heterogneos livremente
associados, que mobilizariam o espectador por meio do choque. Estabelecem-se tambm
paralelos entre as mdias contemporneas que nasceram a partir dos meios audiovisuais
eletrnicos e o perodo inicial do cinema, o cinema de atraes, termo utilizado pelo
historiador do cinema Tom Gunning (2000) em relao ao cinema anterior a 1906. Para Anne-
Marie Duguet (2009), foi por meio das experimentaes relativas aos dispositivos que o vdeo
contribui de maneira mais viva para o desenvolvimento de novas concepes da obra de arte
contempornea, em que a percepo da obra e sua experincia pelo espectador constituem a
questo dominante.
O terceiro captulo tem por objetivo avaliar a relao entre o dispositivo
cinematogrfico e o ambiente expositivo da arte contempornea, no caso especfico da
exposio Zooprismas, abordando seu memorial descritivo e sua fortuna crtica, ambos
disponveis online. Considera-se aqui que esse endereo eletrnico, o site da exposio
Zooprismas, tambm trabalhado por efeitos cinematogrficos, devido s novas conexes e
movimentos que se estabelecem por meio de fotografias e textos documentais. Assim,
inicialmente analisa-se como as noes de pr-cinema e ps-cinema contribuem, na
concepo da exposio Zooprismas, para questionar a variedade inumervel de cinemas
possveis em relao ao prprio cinema.
Tambm aborda as interrogaes dirigidas ao que acontece na sala escura do cinema,
5 Para esta pesquisa examinou-se a fita de vdeo da coleo Arte na Escola, disponvel no acervo da biblioteca da
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). 6 Para esta pesquisa examinou-se a imagem disponvel no site do projeto Arte/Cidade.
7 Examinou-se a imagem disponvel na exposio online dos trabalhos dos vencedores da 8. edio do Prmio
Sergio Motta de Arte e Tecnologia.
14
que Hugo Mauerhofer (2008) chama de situao cinema. O texto de 1949 do psiclogo
alemo antecipa algumas premissas do dispositivo como conceito, que surge nos anos 1970
entre os tericos franceses Jean-Louis Baudry e Christian Metz, para definir a disposio
particular que caracteriza a condio do espectador de cinema. Alguns tericos do cinema
contemporneo, em grande parte inspirados pela obra de Foucault e Deleuze, cada um a seu
modo, problematizam a questo do dispositivo. Em sentido semelhante, Philippe Dubois
analisar o efeito cinema como forma de comentar a hibridizao entre o cinema e as artes
plsticas.
Em seguida, o captulo trata das novas formulaes do fazer cinematogrfico e de
questes apresentadas pelo transporte do cinema para o ambiente expositivo da arte
contempornea. Considera-se tambm o deslocamento do dispositivo cinematogrfico, agora
atravessado pela imagem eletrnica e numrica, permitindo um deslizamento para dentro dos
museus e galerias. Nesse terreno, sublinha Dubois (2009), trata-se de ver como e em que o
cinema trabalha o prprio conceito de exposio. Verifica-se tambm na exposio
Zooprismas o rompimento com os limites territoriais de cada arte e seus variados suportes.
Nesse caso, a criao visual e suas maneiras de expor se expressa cada vez mais em conjuntos
complexos, difceis de categorizar, pois as identidades e as especificidades no constituem
mais marcas estveis para a percepo e a compreenso daquilo que se v.
Para a reflexo sobre o cinema adota-se aqui como interlocuo os livros Cinema I: a
imagem-movimento (1985) e Cinema II: a imagem tempo (2005), de Gilles Deleuze. O
filsofo mostra-se um crtico da semiologia do cinema, disciplina que aplica s imagens
modelos da linguagem (DELEUZE, 2005, p. 38). Para o autor, no cinema a narrao no
passa de uma conseqncia das prprias imagens aparentes e de suas combinaes, jamais
sendo um dado (DELEUZE, 2005, p. 39). Nesse sentido, Deleuze desenvolve uma teoria do
cinema que prope uma mudana em nossa concepo da imagem cinematogrfica.
Seguindo o filsofo Henri Bergson, Deleuze equipara o conjunto infinito de todas as
imagens aos incessantes movimentos da matria em um mundo de variao universal,
ondulao universal e de vibrao universal. Deleuze sente-se atrado por Bergson como um
filsofo do devir, para o qual o ser e a matria jamais so estveis. Na concepo bergsoniana
de Deleuze, matria e movimento esto impregnados de conscincia como matria em si. Para
esse autor, Matria e memria (1896), de Bergson, antecipou as temporalidades mltiplas e as
duraes superpostas do prprio cinema. O que interessa a Deleuze no so as imagens de
algo, mas as imagens captadas no fluxo de tempo heraclitiano, o cinema como acontecimento
e no como representao.
15
Phillippe Dubois, no seu livro Cinema, vdeo, Godard (2004) e nos ensaios
Movimentos improvveis: um efeito cinema na arte contempornea (2003), Sobre o efeito
cinema nas instalaes contemporneas de fotografia e vdeo (2009) e Um efeito cinema
na arte contempornea (2009), aborda as relaes cada vez mais estreitas entre o cinema e a
arte contempornea. De acordo com Dubois (2003), o movimento seria, no campo das
imagens e da viso, o operador mais revelador de todo o processo de colocar em dvida o
visvel. O cinema, desse modo, representou um papel tanto histrico quanto esttico nessa
relao com as imagens. Foi ele que deu movimento s imagens, impregnando-nos da
cinematicidade do visvel.
Segundo Dubois (2003), no decorrer de sua histria e de suas formas, o vdeo e o
chamado cinema experimental8 contriburam para a progressiva introduo da imagem-
movimento no ambiente expositivo das artes visuais. Ambos levam consigo o cinema como
potncia e como dispositivo (o movimento, a luz, a projeo, a imaterialidade). Para o autor,
se no o prprio cinema, deveramos falar em um efeito cinema na arte contempornea.
Notam-se assim procedimentos de artistas-cineastas que ora utilizam diretamente o material
flmico em sua obra, ora inventam formas de apresentao que fazem pensar, ou inspiram-se
em efeitos ou formas cinematogrficas, incitando com certa energia o ritual clssico da
recepo do filme em uma sala.
8 Segundo Aumont (2006), o termo se imps, em detrimento de vrias denominaes anteriores: cinema puro,
cinema abstrato, cinema marginal, entre outros. A expresso designa um tipo de filme que responde a todos os
seguintes critrios ou parte deles: ele no realizado no sistema industrial; no distribudo nos circuitos
comerciais, no visa distrao, nem, necessariamente, rentabilidade; majoritariamente no narrativo;
trabalha questionando, desconstruindo ou evitando a figurao.
16
1 O ANTIDOCUMENTRIO E O OBJETO FLMICO
1.1 O antidocumentrio: o real dentro do cinema e o cinema dentro do real
O envolvimento de Arthur Omar com o cinema deriva em grande parte de sua
experincia com a fotografia. O artista tem se dedicado prtica fotogrfica desde os treze
anos de idade e inicia suas atividades na rea no Fotoclube ABAF (Associao Brasileira de
Arte Fotogrfica) do Rio de Janeiro. Dedica-se na poca ao estudo dos processos fotogrficos:
os truques, os efeitos especiais, as iluses de tica, a fotomontagem, os limites de cada
material (OMAR, 2003, p. 16). Na ocasio servia-se do livro Fotomontagem e arte, de
Francisco Aszmann9 (1907-1988), considerado como fonte de frmulas e esttica (OMAR,
2003, p. 16). Em entrevista pesquisadora Guiomar Ramos, o artista afirma que toda essa
atividade foi fundamental na sua formao visual, aproximando-o de discusses
desenvolvidas no domnio das artes plsticas:
Eu, inclusive, no me considero cineasta, eu no me identifico com os cineastas, com
as preocupaes dos cineastas. Eu fao fotografia desde os 13, 14 anos de idade, tirei
diversos prmios inclusive internacionais. Eram sales de fotografia, aqueles que todo
mundo mandava, acho que hoje em dia nem existem mais esses sales. Essas
experincias foram decisivas para a minha formao visual. [...] eu tinha uma
preocupao de fazer fotografia enquanto arte mesmo, artes plsticas, a gente
organizava discusses sobre composio [...] (OMAR, 2009b).
Em 1971, Omar participa do curso oferecido pela Cinemateca do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ). Realiza ento os curtas-metragens Serafim Ponte
Grande (1971, 35 mm, 10 min) e Sumidades carnavalescas (1971, 35 mm, 10 min): Meu
primeiro contato com a montagem, por imerso total, quase afogamento (OMAR, 2000, p.
14). Os cursos oferecidos na Cinemateca foram de grande importncia na formao de
cineastas e tcnicos do cinema brasileiro. De 1966 a 1974 a instituio contava com um
estdio de som e moviolas, utilizados em diversas produes cinematogrficas. Filmes de
destaque dentro da cinematografia nacional foram montados na Cinemateca, entre eles esto
9 Fotgrafo, escritor e pintor. Aszmann ensinou fotografia em vrios fotoclubes do Rio de Janeiro, alguns dos
quais ele ajudou a fundar, como a Associao Brasileira de Arte Fotogrfica (ABAF) (1950-52) e a Associao
Carioca de Fotografia (a partir de 1953).
17
Macunama (1969), de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), O Bravo Guerreiro (1969),
de Gustavo Dahl (1938-2011), O Anjo Nasceu (1969), de Jlio Bressane (1946) e Na Boca da
Noite (1970), de Walter Lima Jnior (1938).
Cabe aqui salientar que foi tambm no MAM/RJ que ocorreram importantes mostras
de artes visuais, como Opinio 65 (1965), Opinio 66 (1966), Nova Objetividade Brasileira
(1967) e o Salo da Bssola (1969), entre outros eventos. Essas exibies sediadas no museu
carioca marcariam a produo artstica brasileira na passagem entre as dcadas de 1960 e
1970. o momento em que artistas, crticos e historiadores de arte refletiam sobre o papel do
mercado de arte, das instituies artsticas e a ascenso da indstria cultural, no cenrio
brasileiro durante a ditadura militar. O perodo assinalado pelas transformaes substanciais
na prtica artstica, por meio da experimentao de novos suportes e procedimentos: o
acabamento precipitado, o descuido formal, a fragilidade, assim como o uso de suportes como
a fotografia, o super-8, o vdeo, o xerox, as colagens (JAREMTCHUK, 2011).
No contexto da produo cinematogrfica brasileira do incio da dcada de 1960,
desponta um gnero denominado por Jean-Claude Bernardet de modelo sociolgico
(BERNARDET, 1985, p. 7). Esse modelo marcado pelo compromisso de expresso e
transformao da problemtica social e tem seu apogeu entre os anos de 1964 e 1965.
Adotando a sociologia como instrumento de anlise, a maior parte dessa produo evolui para
o registro das tradies artsticas e populares brasileiras. Caracteriza-se igualmente pelo
discurso flmico fortemente encadeado, sem interstcios, que no se coloca como artifcio ou
elaborao particular. margem dessa produo surgem documentrios preocupados tanto
com problemas sociais quanto com as pesquisas formais, dispostos assim a questionar tais
parmetros. Bernardet inclui nessa tendncia o filme Congo (1972, 35 mm, 11 min), de
Arthur Omar.
Verifica-se assim que o incio da trajetria artstica de Omar marcado pelo
movimento de ruptura com o cinema documentrio acadmico (OMAR, 1978, p. 8). Essa
contestao estende-se no ensaio intitulado O antidocumentrio, provisoriamente (1978),
escrito para a Revista de Cultura Vozes 10
. O cineasta baliza sua oposio em relao a esse
modelo de cinema, qualificando-o como subproduto da fico narrativa, sem conter em si
qualquer aparato formal e esttico que lhe permita cumprir com independncia seu hipottico
programa mnimo: documentar (OMAR, 1978, p. 6). Assim, de maneira programtica, como
10
A Revista de Cultura Vozes surge em 1907, em Petrpolis, publicada pela Editora Vozes, com periodicidade
de dez nmeros/ano. Ao longo da dcada de 1970, a revista destaca-se pela discusso de vrios movimentos
literrios e culturais: o Concretismo, o Poema/Processo, o Neoconcretismo, ou ainda, consideraes sobre o
cenrio poltico, como a ditadura e a censura no regime militar.
18
num manifesto, considera-se o surgimento de espcies de anti-documentrios (OMAR,
1978, p. 8) como contrapartida produo documentria do perodo.
Nos primeiros pargrafos do texto, Omar descreve a histria do cinema como
inteiramente abalizada pela forma do filme narrativo de fico e disposta a desempenhar
uma funo social especfica: o espetculo. Segundo o cineasta, a partir da inveno da
cmera de filmar, o cinema poderia ter sido utilizado para outros fins, tcnicos e cientficos.
No entanto, os grandes investimentos necessrios sua prtica acabaram por fix-lo como
espetculo pblico, recuperando e expandindo o teatro e o romance (OMAR, 1978, p. 6).
Assim, de incio, Omar aborda rapidamente a histria tcnica do cinema, ou seja, a histria de
sua produtividade industrial. Logo em seguida parece compartilhar de posies tericas das
vanguardas cinematogrficas da dcada de 1920.
Para o pintor e cineasta Fernand Lger (1881-1955), a histria do cinema das
vanguardas considerada como uma reao direta contra os filmes de roteiro e estrelas
(LGER, 1989, p. 158). O intuito de Lger, assim como o de outros cineastas e tericos do
perodo, como Jean Epstein (1897-1953), de libertar-se dos elementos que no so
puramente cinematogrficos. Apesar da distino entre opinies e projetos, suas concepes
tm em comum o fato de sustentarem que a especificidade do cinema e a sua revelao como
arte no passa pela importao dos modelos do teatro e da literatura, mas antes se encontra na
explorao de efeitos visuais potencializados pelo movimento.
O ensaio de Omar parece, em um primeiro momento, colocar-se sob o esprito das
vanguardas histricas ao censurar o vnculo do cinema com o teatro e o romance. Sua crtica
volta-se em seguida para o documentrio e a sua carncia de linguagem autnoma. O artista
sugere que as conquistas formais do filme narrativo de fico foram incorporadas ao
documentrio e se cristalizaram no que se pode ver hoje como uma frmula acabada. Desse
modo, o que o cinema da fico trabalha como sendo o real (mesmo que fosse um real
fictcio) o mesmo que o documentrio reapresenta como sendo fico (mesmo que seja uma
fico real). A crena, em ambos os casos, seria a mesma, ou seja, de um continuum
fotografvel que pode ser dado viso, uma verdade que se apreende imediatamente
(OMAR, 1978, p. 6):
O cinema de fico aperfeioou com grande esforo uma srie de dispositivos
estticos visando a tornar mais real o que ele queria apresentar como a realidade, e o
documentrio, cujo desenvolvimento foi mera absoro desses dispositivos, acaba
apresentando a sua realidade documental como se fosse fico. (OMAR, 1978, p. 6).
19
Mais recentemente, no livro A Imagem-Tempo (2005), Gilles Deleuze tambm aborda
os embates gerados, desde a dcada de 1920, entre o cinema documentrio e o cinema de
fico. O terico francs distingue as formas que muito cedo recusavam a fico, chamando
tais formas de Cinema de Realidade e cujos propsitos eram, ora fazer ver objetivamente
meios, situaes e personagens reais, ora mostrar subjetivamente as maneiras de ver dos
prprios personagens, a maneira pela qual eles viam sua situao, seu meio, seus problemas
(DELEUZE, 2005, p. 181). Essas preocupaes so geradas nos polos documentrio ou
etnogrfico e investigao ou reportagem, inspirando obras como as do cineasta Robert
Flaherty (1884-1951), no primeiro caso, e as de John Grierson (1898-1972) e Richard
Leacock (1921-2011), no segundo.
Conforme a descrio de Deleuze, recusando-se fico, o cinema descobriria novos
caminhos, ele conservava e sublimava um ideal de verdades que dependia da prpria fico
cinematogrfica (DELEUZE, 2005, p. 182). Era fundamental recusar as fices
preestabelecidas, porm, ao abandonar a fico em favor do real, mantinha-se um modelo de
verdade que supunha a fico e dela decorria. Deleuze afirma que era na fico que a
veracidade da narrativa continuava a se fundar. Quando se aplicava o modelo de verdade ao
real, muita coisa mudava, pois a cmera dirigia-se a um real preexistente. Porm, em outro
sentido, nada tinha mudado nas condies de narrativa. A ruptura dar-se-ia futuramente no
entre a fico e a realidade, mas no novo modo de narrativa que as afeta.
Retornando ao ensaio de Omar, verifica-se que a associao do filme narrativo de
fico e do filme documentrio se d tambm porque ambos se oferecem como espetculo.
Para o cineasta, a funo-espetculo pressupe um tipo de sujeito que a contempla e uma
funo objetivamente situada dentro da trama social, uma instituio, determinando uma
situao em que o espectador se coloca frente ao documentrio na passividade de um olho
indiferente. Omar alega que o segredo do filme documentrio seria dar seu objeto como
espetculo, provocando uma iluso de conhecimento no espectador que acredita que o
documentrio lhe permite o domnio mximo de um objeto, o conhecimento (OMAR, 1978,
p. 6-7).
A condenao do cinema como espetculo tambm est presente no primeiro
manifesto do Grupo Kinoks (1922), liderado pelo cineasta russo Dziga Vertov (1896-1954):
No h, a nosso ver, nenhuma relao entra a hipocrisia e a concupiscncia dos mercadores e
o verdadeiro kinokismo (VERTOV, 2008, p. 247). Vertov rejeitava o cine-drama que,
para ele, sempre estivera associado burguesia da Rssia pr-revolucionria mediante um
cinema definido exatamente pelos seus padres hegemnicos clssicos, excessivamente
20
teatrais e narrativos, calcado na interpretao dos atores. A esse respeito importante salientar
que, aps a Revoluo Bolchevique, nenhum artista russo do perodo de 1917-21 ficou
margem dos acontecimentos polticos. Muitos deles aceitaram tarefas institucionais e outros
modificaram sua prtica em funo da transformao social (VIEIRA, 2011).
Esse engajamento unnime dos artistas de vanguarda na revoluo foi acompanhado
da formao de uma nova arte social-tcnica, o Construtivismo Russo. O procedimento
construtivista opera, fundamentalmente, sobre a dimenso social das prticas artsticas. A
pintura de cavalete e a escultura decorativa passaram a ser vistas como produtos de
sociedades individualistas e burguesas. De acordo com o crtico e pesquisador de cinema Joo
Luiz Vieira (2011), Vertov corporifica um desejo de desenvolver os princpios do
Construtivismo em todos os nveis de expresso cinematogrfica, do formal e tcnico ao
social e ideolgico. O cineasta elabora todo um projeto de filmes calcado no desenvolvimento
de estratgias especficas de filmagem que insistiria, sobretudo, na materialidade concreta do
cinema, por meio de uma organizao extrema dos recursos cinematogrficos e da posio-
chave desempenhada nesse projeto pela montagem.
Cabe aqui salientar que na dcada de 1960 vemos a recuperao da teoria de Vertov na
parceria entre o cineasta Jean-Luc Godard (1930) e Jean-Pierre Gorin (1943), membro da
Nova Esquerda jovem da Frana. De acordo com Ulman (2005), depois dos acontecimentos
de maio de 1968 na Frana, Godard deu as costas indstria do cinema e passou a realizar
filmes que refletissem um novo comprometimento poltico e desenvolvessem uma nova
prtica. Com a assistncia de Gorin, Godard produziu Um filme como os outros (1968), Sons
Britnicos (1968), Pravda (1969) e Vento do Leste (1969). Esses filmes comearam a ser
assinados pelo Grupo Diziga Vertov, nome escolhido como homenagem ao mestre do cinema
sovitico e sua exposio dos fundamentos materiais e formais do filme. Os filmes do grupo
surgiram de uma troca constante de ideias entre seus membros, visando a uma rejeio
noo de autoria.
Verifica-se tambm no j citado ensaio de Omar uma crtica voltada para a prtica de
realizao do documentrio, visando a contribuir na constituio de um cinema que discute
suas prprias condies de produo. Para Omar, o documentrio sempre uma abordagem
exterior, pressupondo a dicotomia entre sujeito e objeto, cada qual de um lado da linha, sem
se tocarem. Logo, s se documenta aquilo de que no se participa. O cineasta assinala que
um objeto s se torna objeto de documentrio no momento em que o sujeito se reconhece
isolado desse objeto. Uma vez isolado, surge a pretenso de conhecer. Dessa maneira, Omar
adverte que falta o mtodo que transforme essa relao do filme com seu objeto real numa
21
relao de fecundao (OMAR, 1978, p. 7).
A partir dessas consideraes podem-se aproximar as proposies do cineasta das
poticas artsticas no Brasil da dcada de 1970. O que interessava aos artistas era pensar o
prprio agir artstico como uma poltica, reconhecendo a sua capacidade de reflexo sobre a
realidade sociocultural do Pas. A noo de antiarte, ento vigente no contexto da arte
brasileira, expunha as contradies do sistema artstico e tentava question-las a partir de
transformaes profundas nos prprios processos da arte. Dessa maneira, as prticas artsticas
do perodo infiltram questes polticas que mexem com o sentido do objeto de arte, sua
circulao e seu comrcio.
O Dadasmo - que abrange um diverso leque de atividades e formas literria e artstica,
as quais tiveram lugar em vrias cidades europeias entre 1916 e 1923, contribuiu
enormemente para o desenvolvimento das prticas artsticas contemporneas, ao promover a
noo de antiarte. Caracterizado pela contestao absoluta de todos os valores, a comear
pelo conceito de arte, suas aes desmistificadoras incorporavam o acaso e o nonsense no
combate a valores cannicos e institucionalizados. Rejeitavam assim todas as experincias
formais e tcnicas tradicionais da histria da arte. Conforme Hans Richter (1888-1976),
integrante do grupo Dad de Zurique, o que diferenciava o Dadasmo de outros movimentos
artsticos era uma nova tica artstica, a partir da qual posteriormente, de maneira, na
verdade, inesperada, nasceram novas formas de expresso (RICHTER, 1993, p. 3).
Artistas brasileiros passam a intervir, no final da dcada de 1960, diretamente na
esfera pblica, em aes efmeras que se identificavam com a noo de antiarte. Desse modo,
Artur Barrio (1945) estabelece o aspecto iconoclasta de sua produo a partir do trabalho
intitulado Trouxas ensanguentadas, espalhadas pela cidade do Rio de Janeiro (1969) e Belo
Horizonte (1970). De aspecto sujo e mrbido - contendo carne, ossos e sangue - as trouxas de
Barrio foram espalhadas em diversos pontos das cidades, provocando alarme e interveno
policial. Nesse momento o artista comeava a jogar a arte s ruas, ao lixo e aos esgotos,
disseminando a ideia da antiescultura e do antiobjeto (CANONGIA, 2005, p. 84). A partir
da, Barrio seguiria com outras investidas contra a tradio, o circuito comercial e
institucional de arte, em favor da desmaterializao do objeto artstico.
O crtico e ensasta Francisco Elinaldo Teixeira aponta, nesse sentido, para a dimenso
desconstrutivista do ttulo do ensaio de Arthur Omar e para o teor construtivista de suas
proposies (TEIXEIRA, 2004, p. 30). Assim, veremos que Omar recorta no que ele chama
de documentrio mdio acadmico, duas solues estticas: a de uma direita esttica,
crtica, em que uma personalidade de autor se marque como viso pessoal do mundo, e a de
22
uma esquerda esttica, identificada com a vanguarda experimental, cuja limitao
bordejar o continente do filme clssico, fustigando-lhe os flancos. Entretanto, afirma Omar,
linhas de fora da novidade se encontram transversalmente nessas experincias e geralmente
nunca so desenvolvidas uma vez lanadas. Seria o caso, ento, de se extrair desses lampejos
uma teoria sistemtica que orientasse uma nova prtica (OMAR, 1978, p. 8):
Constatando um beco sem sada, uma inevitabilidade de se jogar com as formas
existentes, pois fora delas no existe coisa alguma, seria preciso regrar
metodicamente o trabalho de desarticulao da linguagem do documentrio, ou
melhor, de redistribuio dos elementos presentes no documentrio tradicional cuja
frmula no permite realizar certos tipos de pesquisa. Sem recusar o lado fotogrfico
de captao, mas fiscalizando-o rigorosamente, poderiam surgir, num perodo de
transio, espcies de anti-documentrios, que se relacionariam com seu tema de
modo mais fluido e constituiriam objetos em aberto para o espectador manipular e
refletir. O antidocumentrio procuraria se deixar fecundar pelo tema, construindo-se
numa combinao livre de seus elementos. (OMAR, 1978, p. 8).
Prope-se, desse modo, o filme no como objeto esttico acabado, mas como objetos
em aberto para o espectador manipular e refletir (OMAR, 1978, p. 8), aproximando o
cineasta da concepo para uma vanguarda brasileira contida no projeto da Nova objetividade
de Hlio Oiticica (1937-1980). Nesse projeto, explicitado nos textos Situao da Vanguarda
no Brasil (1966) e Esquema Geral da Nova Objetividade (1967), Oiticica procura traar os
princpios das atividades artsticas renovadoras em desenvolvimento no Rio de Janeiro e em
So Paulo. A nfase nas atividades recai na participao e na produo coletiva. Essas
necessidades, atribudas por Oiticica vanguarda brasileira, cifram a antiarte como prtica
requerida para a definio de uma posio crtica tipicamente brasileira.
O programa artstico de Hlio Oiticica fundaria, no final da dcada de 1960, a antiarte
ambiental, cujo principal objetivo o de dar ao pblico a chance de deixar de ser pblico
espectador, de fora, para participante na atividade criadora. o comeo de uma expresso
coletiva (OITICICA, 1986, p. 82). O pesquisador Celso Favaretto (1992), afirma que o
ambiental em Oiticica o resultado do combate ao ilusionismo na pintura e do projeto de
transformar o quadro de cavalete. Para o autor, o artista alia duas tendncias da arte moderna:
a construtivista e sua proposta de reorganizao do espao urbano, como tambm da nova
realidade plstica, assim como o ato de transformao esttica promovido pelo ready-made de
Marcel Duchamp (1887-1968). Ambos atualizados em referncia tanto aos desenvolvimentos
internacionais como vanguarda brasileira.
De maneira semelhante, Arthur Omar afirmaria, no seu ensaio de 1978, que um filme
23
um objeto cultural (OMAR, 1978, p. 14), que deve ter como questo central sua prpria
existncia como objeto. Segundo o cineasta, a questo do real dentro do cinema a questo
do cinema dentro do real (OMAR, 1978, p. 18). Nesse sentido Favaretto (2008) aponta que o
imaginrio da revoluo mobiliza o sentido poltico da vanguarda a partir dos anos de 1960.
Enquanto pretendem liberar suas atividades do ilusionismo, os artistas intervm nos debates
do tempo, fazendo das propostas estticas propostas de interveno cultural. A transmutao
da arte implicava a transmutao da vida. A posio crtica e a atuao cultural, requeridas
pelo momento, faziam coincidir o poltico, a renovao da sensibilidade e a participao
social.
Segundo Canongia (2005), dentre vrias investidas contra a tradio, contra o circuito
comercial e institucional da arte realizadas no perodo, talvez a ao 4 dias 4 noites (1970), de
Artur Barrio, tenha sido a mais radical. Durante quatro dias e quatro noites, o artista
perambulou a esmo pela cidade, sob o efeito da cannabis sativa e sem se alimentar, fazendo
das privaes e da droga uma experincia extremada para o corpo e a mente. Obra sem objeto,
sem causa e sem registro, a ao valia por si, portando apenas um efeito invisvel e intangvel,
privado de matria e finalidade. Confinado condio de vivncia individual, 4 dias 4 noites
tornou-se o ponto crtico e limite a que Barrio chegou em direo negao do objeto e
viso da arte como estado legtimo de pura latncia.
Cabe aqui apontar que muitos dos personagens elaborados pelo cinema dito
marginal (RAMOS, 1987, p. 35) tambm perambulam sem destino pela cidade, deslocados
no espao e na sociedade oficial. Em filmes como O Bandido da Luz Vermelha (1968), de
Rogrio Sganzerla, e O Anjo nasceu (1969), de Julio Bressane, personagens marginais erram
no vazio, mediante uma ao desprovida de coerncia ou propsito. Errando sem destino, sem
causa e sem objetivos pelo mundo, suas aes so, geralmente, direcionadas pelo
experimentar, pelo curtir determinadas experincias que lhe so colocadas por um destino
gratuito e inexplicvel. Essas perambulaes ocorrem em favelas e depsitos de lixo, cenrios
prediletos do Cinema Marginal para ambientar a ao.
A produo de cinema que se realizou sob o nome de Cinema Marginal teve seu auge
no incio da dcada de 1970. O incio da formao do grupo se d historicamente no momento
que uma parte do Cinema Novo brasileiro abandona propostas mais radicais de
questionamento da narrativa cinematogrfica e caminha em direo conquista de mercado.
J os filmes do Cinema Marginal aparecem desvinculados do esquema industrial. Seria
interessante lembrarmos aqui todo um discurso prprio dos cineastas marginais favorvel ao
filme sujo. O deboche e o avacalho atingem a a tessitura da imagem, e a prpria pelcula
24
atingida: negativos riscados, pontas de montagem aparecendo, erros de continuidade,
descuido na produo, etc. (RAMOS, 1987).
Apesar de no estar veiculado diretamente ao grupo do Cinema Marginal, nota-se
tambm no ensaio O antidocumentrio, provisoriamente, de Arthur Omar, a justificao de
um cinema que incorpora em si um discurso sobre suas condies materiais e sociais de
produo. A crtica ao documentrio acadmico realizada por meio de uma ostensiva
defesa da manipulao do material sonoro e visual. Nessa manipulao est localizado o
trabalho produtivo essencial. A aposta de Omar est concentrada no rendimento poltico
imediato de sua batalha contra o ilusionismo no cinema documental, muito prximo das
noes vigentes no ambiente artstico brasileiro na dcada de 1970. Essas manifestaes
seriam desnormatizantes, pois questionam as significaes correntes e interferem nas
expectativas, sendo, portanto, prticas reflexivas.
1.2 Um filme em branco: Congo e o quadro
O ensaio de Arthur Omar, O antidocumentrio, provisoriamente, fruto da realizao
de seu filme Congo11: Curiosamente, meu primeiro filme, de 1972, se chamou Congo. Eu
pesquisava sobre Congos e Moambiques, me apaixonei pelo Congo, o pas, terra mtica da
rainha Ginga (OMAR, 2010). O artista refere-se aqui Rainha Ginga de Angola, figura
dramtica da histria africana do sculo XVII, defensora da autonomia do seu reinado contra
os colonizadores portugueses. A personagem tambm est presente na festa popular da
Congada, desfile ou procisso que rene elementos das tradies tribais de Angola e do
Congo, assim como influncias ibricas. Animada por danas, cantos e msica, a procisso
acabava numa igreja onde, com a presena de uma corte e seus vassalos, acontecia a
cerimnia de coroao do Rei Congo e da Rainha Ginga de Angola.
Segundo Bernardet (1985), a temtica de Congo, no perodo em que foi produzido,
mostrava-se atual. Era relativamente intensa a produo de documentrios que procuravam
registrar aspectos tradicionais da cultura das zonas rurais que o avano do capitalismo fazia
desaparecer. Esses documentrios acreditavam plenamente na possibilidade de filmar,
11
Para esta pesquisa examinou-se uma cpia do filme disponibilizada pelo site UbuWeb. Criado pelo poeta
Kenneth Goldsmith, em 1996, o site rene um grande acervo de arte de vanguarda na internet. De James
Joyce lendo trechos do seu livro Finnegans Wake a um longa-metragem dirigido pelo msico John Cage, o
UbuWeb possui um conjunto de milhares de vdeos, udios e textos que dificilmente podem ser encontrados
em outro lugar.
25
registrar, documentar estas manifestaes culturais (BERNARDET, 1985, p. 94). O curta-
metragem de Omar, no entanto, acaba por deixar de acreditar no cinema documentrio como
reproduo do real. Como reao ao documentrio sociolgico, busca assumir o cinema como
discurso e exacerb-lo enquanto tal. Visa igualmente a quebrar o fluxo da montagem
audiovisual e a desenvolver procedimentos baseados no fragmento e na justaposio.
A respeito da recepo do filme, relata o cineasta: Um dia, em plena Cinemateca do
MAM, numa das poucas exibies pblicas de Congo, algum gritou da plateia: - Isso no
cinema! Logo se estabeleceu uma diviso do pblico. Gritos, palmas, vaias (OMAR, 2000,
p. 16). A surpresa, desaprovao ou entusiasmo dos espectadores parece uma reao s
particularidades de Congo: no curta-metragem no h imagem em que vemos o auto popular
da Congada, ou seja, o desfile, as danas e cantos. O filme constitudo em grande parte por
letreiros: pequenos textos, enumeraes ou palavras soltas, em letras pretas sobre fundo
branco. Alm dos letreiros, tambm exibe imagens do que parece ser um ambiente rural;
imagens de fotografias fixas; pginas de livros e a tela totalmente preta ou branca.
Dentre os letreiros (fig. 1), os que podemos associar mais acertadamente congada
referem-se histria da Rainha Ginga. Alguns so compostos tambm de enumeraes que
apresentam elementos da festa popular, como seus personagens e vestimentas. Alm dos
letreiros referentes congada, h outros que no pertencem necessariamente ao tema do filme,
tais como, Kinoglaz, em letras que ocupam quase toda a tela, possivelmente uma referncia
ao Cine-Olho (Kinoglaz) do cineasta russo Dziga Vertov. O crtico Jean-Claude Bernardet
(1985) sugere que os letreiros que compem o filme de Omar apresentam uma oposio entre
o universo cultural da congada e o do cineasta.
26
Figura 1 (A, B, C, D, E, F) - Arthur Omar, Congo, 35 mm, 11 min, 1972. Acervo Cinemateca Brasileira de So
Paulo
Fonte: Disponvel em: . Acesso em: 5 jan. 2011
De difcil contextualizao, algumas das imagens (fig. 2) que compem o filme
sugerem um ambiente rural: uma bica de gua cercada pela vegetao; engrenagens
depositadas no cho; um ptio amplo e vazio cercado de casas; um monte de feno na soleira
de uma porta, para citar algumas. Outros momentos exibem imagens de animais domsticos:
vacas que se deslocam vagarosamente; porcos; galinhas; o coito de cachorros. J a presena
do homem rara: nota-se a figura de um rapaz de chapu de palha; meninos que andam por
galpo velho. Dentre as imagens, temos ainda fotos filmadas e inseridas em diversos pontos
do filme: uma escultura de braos abertos e estendidos para o alto empunhando uma cruz; um
grupo de negros diante de uma casa; crianas que olham diretamente para a objetiva da
cmera. Em meio s inseres so filmadas tambm pginas de livros mostrando partituras.
Figura 2 (A, B, C, D, E, F) - Arthur Omar, Congo, 35 mm, 11 min, 1972. Acervo Cinemateca Brasileira de So
Paulo
Fonte: Disponvel em: . Acesso em: 5 jan. 2011
27
A abertura de Congo, nos seus primeiros minutos, parece caracterizar o todo do filme.
Logo no incio a palavra congo surge acompanhada da tela inteiramente branca, ambas
alternando-se rapidamente. Seguem-se ainda imagens das mais diversas origens, letreiros
sobre a congada e, aps apresentao dos crditos do filme, um letreiro apresenta a frase Um
filme em branco (fig. 3), seguido imediatamente da tela em branco. Arthur Omar declara que
a frase adquire carter programtico, encerra toda a plataforma estrutural do filme, rege-lhe a
composio (OMAR, 1978, p. 9). Sugere-se aqui que a frase, alm da presena da tela
inteiramente branca ou preta, parece evocar a pintura monocromtica no mbito do cinema.
Cabe lembrar o quadro Quadrado branco sobre fundo branco (1918), do pintor russo Kasimir
Malevich (1878-1935).
Figura 3 - Arthur Omar, Congo, 35 mm, 11 min, 1972. Acervo Cinemateca Brasileira de
So Paulo
Fonte: Disponvel em: . Acesso em: 5
jan. 2011
No cinema, segundo Deleuze (1985), o enquadramento refere-se determinao de um
sistema artificialmente fechado que compreende tudo o que est dentro da imagem: cenrios,
personagens, objetos de cena. Assim, o quadro flmico constitui um conjunto que tem um
grande nmero de elementos que entram, eles prprios, em subconjuntos. Rejeitando a leitura
semiolgica, Deleuze afirma que o quadro anlogo a um sistema informtico, mais do que
lingustico. Seus elementos constituem dados comunicados aos espectadores, ora muito
numerosos, ora em nmero reduzido. Desse modo, o quadro , segundo o terico francs,
inseparvel de duas tendncias: saturao ou rarefao.
28
A tela larga do cinema e a profundidade de campo permitiram a multiplicao de
dados independentes. Deleuze sugere, como exemplo, quando uma cena secundria aparece
na frente enquanto a principal se passa ao fundo no mesmo quadro. Em contrapartida,
imagens rarefeitas so produzidas, ou quando a tnica colocada sobre um nico objeto, ou
quando o conjunto esvaziado de certos subconjuntos, por exemplo, em imagens de
paisagens desertas ou interiores evacuados. O mximo de rarefao pode ser atingido com o
conjunto vazio, quando a tela fica inteiramente preta ou branca. Segundo o terico, no cinema
moderno, por vezes, o quadro passa a valer como superfcie opaca de informao, ora
perturbada pela saturao, ora reduzida ao conjunto vazio, tela branca ou preta.
Nesse sentido, ao analisar Congo, Bernardet aponta para a fascinao da pgina em
branco, que atravessa todo o filme. O crtico enumera assim as diversas tonalidades desta
fascinao: Branca a tela sobre a qual aparecem as letras pretas dos letreiros. Branco o
saber que (no) apreende a cultura negra. Branca a tela onde no aparece a congada sonegada
e/ou irrepresentvel. Bernardet indica ainda: Branco o silncio ao qual pode ser levado o
discurso que, por se condensar mais e mais, por se tornar cada vez mais sinttico e compacto,
por se entregar e se recusar, pode se reduzir a nada (BERNARDET, 1985, p. 101-102).
nesse sentido que seria possvel traar correspondncias entre o discurso sinttico e
compacto de Congo e a economia de meios na pintura, defendida por Kazimir Malevich
mediante a busca sistemtica pelo zero da forma.
Malevich defende em seus escritos a negao contnua da imitao automtica e
mecnica da natureza. Desta maneira, a arte chega representao no-objetiva, ao
Suprematismo. Chega a um deserto, no qual nada alm do sentimento pode ser reconhecido
(MALEVICH, 1996, p. 347). A investigao de Malevich, segundo Favaretto (1992), a
tentativa de determinao das estruturas visuais mnimas capazes de configurar o movimento
germinal da arte. As estruturas mnimas no representam sequer a si mesmas, mas atuam
como estmulos conceituais capazes de suscitar no observador a interrogao sobre a natureza
da arte. Dentre as suas pinturas, uma das mais notrias Quadrado preto sobre fundo branco
(1915), pintura na qual o artista veio a basear sua autoimagem profissional; ao mesmo tempo
tornou-se tambm um cone da modernidade artstica radical.
O quadrado preto parecia, para Malevich, o smbolo potencialmente vigoroso tanto de
uma tbula rasa cultural como de um ponto de origem absoluto, do qual poderia ser derivada
uma nova cultura esttica. O pintor russo foi, assim, um dos primeiros e mais potentes
geradores daquele sonho utpico que veio a possuir o Movimento Moderno Europeu mais
amplo da dcada de 1920: a ideia de que os problemas da existncia social moderna s
29
poderiam ser resolvidos se o planejamento fosse conduzido numa base esttica. A partir de
1917, Malevich produz uma srie de pinturas "branco sobre branco", compostas de motivos
branco-azulados frios sobre bases branco-cremosas quentes, tendendo os primeiros a apagar-
se nas margens e a dissolver-se nos ltimos. O efeito a compresso do espao figurativo
potencial do Suprematismo numa gama ainda mais estreita que a de trabalhos anteriores.
As prticas e debates suscitados por Malevich teriam importncia fundamental para o
ambiente artstico brasileiro12
e, particularmente, para a trajetria de Hlio Oiticica. Segundo
Favaretto (1992), o artista chega rapidamente experincia limite do monocromatismo na
pintura, que surge da necessidade de anular o quadro ilusionista, de produzir outro espao
esttico, eliminando os resduos de profundidade visual. Logo, o quadro se transmuta em
coisa. (FAVARETTO, 1992, p. 19). O estado de inveno, que passa a ser o cerne de sua
obra a partir de meados de 1970, associado ao branco sobre branco de Malevich. Para
Oiticica, branco no branco a procura do novo, da mobilidade da arte rumo a um estado
inaugural, que negue premissas estticas passadas (BRAGA, 2011).
O filme Congo aproxima-se do branco sobre branco de Malevich uma vez que
tambm visa a questionar os esquemas de arte vigentes. Muitas dessas posies so
explicitadas no ensaio O antidocumentrio, provisoriamente, de Omar, que assim escreve:
um filme em branco porque, no lugar onde o filme tradicional mostra, ele censura, o vazio
surge na tela, e as palavras conceptualizam uma imagem possvel ou pretensa (OMAR, 1978,
p. 9). Para Guiomar Ramos (2004), a base inicial da inventividade do cinema de Omar
construda a partir da assimilao do documentrio tradicional. Nessa absoro toda a ordem e
subordinao se desfazem. Elementos como voz off, voz over, imagens de fundo e de frente,
msica e rudos passam a ter o mesmo espao dentro da construo flmica.
O artista realiza no seu cinema uma insistente troca de lugares dos elementos
utilizados no documentrio padro. A contnua experimentao com esses elementos acaba
por criar um novo espao flmico, e esse processo vai ser desenvolvido por toda a sua
filmografia. Em Congo, por exemplo, a voz over masculina, grave e solene prpria do
documentrio padro transforma-se na voz de uma menina de nove anos que fala um texto
de Mrio de Andrade sobre a congada ou textos que seriam uma fonte de pesquisa e,
portanto, estariam invisveis dentro do filme, tomam conta da tela. (RAMOS, 2004, p. 125):
12
Nas dcadas de 1950 e 1960 os movimentos Concretista e Neoconcretista permitiram a assimilao dos
resultados das inovaes da linguagem visual desenvolvidas desde o Cubismo, na Europa, sobretudo por Piet
Mondrian e Kazimir Malevich, assim como pela vanguarda russa, os artistas do Stijl holands, o grupo da
Bauhaus, e posteriormente aprofundadas em certas direes por Max Bill e a escola sua e o grupo de Ulm.
30
O antidocumentrio no arbitrrio, ele parte da linguagem do documentrio, de uma
certa proposta e a inverte [...] O antidocumentrio seria, em princpio, um tipo de
filme que teria uma conscincia muito grande no mbito da ao do documentrio,
procurando re-hierarquizar os elementos numa combinao nova, onde as coisas que
no eram importantes passam a ser dominantes. (OMAR, 2009a).
Segundo Anette Michelson (1996), encontra-se um projeto anlogo ao Suprematismo
de Malevich na produo do cineasta vienense Peter Kubelka. Isso se d especialmente no
filme Arnulf Rainer (1958-1960), composto inteiramente de fotogramas brancos e de
fotogramas pretos, de fotogramas de som e de fotogramas de silncio. Para Kubelka, Arnulf
Rainer o filme que est mais prximo da essncia do cinema, porque emprega os elementos
que constituem o cinema em sua forma mais radical e mais pura, ou seja, luz e ausncia de
luz, som e ausncia de som, e seu desenrolar no tempo. O cineasta chega a pendurar na parede
a pelcula de seus filmes, frequentemente expostos dessa maneira em galerias de arte,
revelando assim outra maneira de exibi-los (KUBELKA apud ADRIANO; VOROBOW,
2002).
Peter Kubelka o inventor do chamado cinema mtrico representado por uma trilogia
composta pelos filmes Adebar (1956-1957), Schwechater (1957-1958) e Arnulf Rainer. O
cinema mtrico pauta-se sobre dois princpios bsicos: o cinema no movimento ( a
projeo de imagens estticas num determinado ritmo de impulsos de luz) e o cinema se faz
na articulao entre cada fotograma individual ( entre os fotogramas, entre imagem e som,
que o cinema se manifesta). Pela forma elementar e mnima de organizar a construo
material sob a gide geral de regras precisas, os filmes mtricos antecipam o cinema
estrutural, que surgiu no final da dcada de 1960. Os recursos do cinema estrutural tornam a
especificidade e a materialidade do filme to evidentes quanto extremos (KUBELKA apud
ADRIANO; VOROBOW, 2002).
Apesar da proximidade com o cinema estrutural, Congo trabalha com materiais
imagticos mais heterogneos em sua pesquisa acerca dos procedimentos flmicos. No curta-
metragem de Omar, a rarefao do quadro no se manifesta somente na tela branca ou preta,
mas tambm na explorao dos tempos mortos da banalidade cotidiana, de paisagens
desumanizadas, de exteriores desertos e interiores sem seus ocupantes (fig. 4). Notam-se
assim imagens de engrenagens abandonadas e cercadas de vegetao que cresce; de um
imenso ptio retangular, limitado ao fundo e pelos lados por casas de alvenaria; da parte alta
das paredes de uma sala sem ocupantes. So espaos vazios que enquadram uma zona morta.
31
Esses espaos no so mais este ou aquele espao determinado, tornaram-se um espao
qualquer.
Figura 4 (A, B, C, D) - Arthur Omar, Congo, 35 mm, 11 min, 1972. Acervo Cinemateca Brasileira de So Paulo
Disponvel em: . Acesso em: 5 jan. 2011
Segundo Deleuze (1985), o espao qualquer um espao apreendido como puro lugar
do possvel. Esse espao pode ser construdo por meio do conflito entre a sombra e a luz,
como no Expressionismo Alemo. Outro procedimento da alternncia entre o branco e o
preto, promovendo a tonalidade cinza como uma indiscernibilidade, caso da Abstrao Lrica
do cinema francs. Finalmente, ele pode ser promovido por meio da cor atmosfrica que d
qualidade comum a objetos distintos, como no cinema de Michelangelo Antonioni (1912-
2007). Dessa maneira, Deleuze define o espao qualquer como um conjunto amorfo de que se
eliminou o que se passava e agia nele prprio. O espao qualquer conserva uma nica e
mesma natureza: ele no tem mais coordenadas, um puro potencial.
32
Podemos assistir aps a Segunda Guerra Mundial a uma proliferao de tais espaos
no cinema, tanto em cenrios como em exteriores, sob diversas influncias. A primeira,
independente do cinema, era a situao do ps-guerra, com suas cidades demolidas ou em
reconstruo e, mesmo onde a guerra no tinha passado, os seus vastos lugares abandonados.
A outra influncia, mais interior ao cinema, vinha de uma crise da imagem-ao: os
personagens se encontravam cada vez menos em situaes sensrio-motoras motivadoras e
cada vez mais num estado de perambulao que definia situaes ticas e sonoras puras. A
ascenso de situaes puramente ticas e sonoras no cinema moderno, para Deleuze (2005),
to importante quanto a conquista de um espao puramente tico na pintura ocorrida com o
Impressionismo.
A proliferao dos espaos quaisquer, sugere ainda Deleuze (1985), talvez tenha uma
de suas origens no chamado cinema experimental, que rompe com a narrao das aes e com
a percepo de lugares determinados. Esse cinema tende a um espao desembaraado de suas
coordenadas humanas. Um exemplo o filme La rgion centrale (1971), de Michael Snow
(1929). Para realiz-lo, o cineasta canadense utilizou uma mquina em que a cmara
colocada sobre um brao articulado, adaptado a um eixo central, que pode tanto varrer a
totalidade do espao ambiente quanto filmar continuamente em todas as direes e girar sobre
si prpria. Essa mquina deixada sozinha no centro de uma vasta paisagem selvagem, na
qual no h presena humana. No filme de Snow temos assim um espao sem referncia no
qual se intercambiam o solo e o cu, a horizontal e a vertical.
O espao sem coordenadas humanas de Congo, alm de presente em paisagens
desumanizadas e interiores evacuados, tambm se realiza na saturao do quadro, por meio da
presena constante dos letreiros. De acordo com os crditos do filme, tais letreiros exibem
fragmentos das pesquisas do escritor Mrio de Andrade e dos antroplogos Arthur Ramos e
Cmara Cascudo. Como dito anteriormente, esses textos, que seriam uma fonte de pesquisa e
estariam invisveis dentro do filme, tomam conta da tela. Em Congo, segundo Bernardet
(1985), a relao de letreiros constitui uma avalanche de informaes atomizadas. As
palavras, desgarradas, acabam desenhando em nossa cabea um certo universo cultural
referente congada, mas a dificuldade em concaten-las as transforma em uma espcie de
cenografia conceitual, uma cenografia de palavras (BERNARDET, 1985, p. 98).
Segundo Albera (2002), o cinema mudo preocupou-se bastante em fazer desaparecer
os letreiros da sequncia de imagens dos filmes. A problemtica de uma lngua s de imagens
dominava amplamente os debates, levando certos cineastas a prescindir totalmente de letreiros
ou a esforar-se para inseri-los ao longo do filme da maneira mais imperceptvel possvel. No
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entanto, ao recuperar os letreiros, alguns cineastas repetiam o gesto dos pintores cubistas que
negavam a ilusria profundidade da tela imitando ou colando letras de imprensa que
evocavam a ausncia de relevo. Assim Fernand Lger, em seu filme Ballet Mecnique (1924)
(fig. 5), explora plasticamente a frase On a vol um collier de perles de 5 millons e Marcel
Duchamp, em Anmic Cinma (1926), exclui de seu filme toda a figurao, mostrando apenas
um texto para ser lido, o qual explora e nega, alternadamente, ao sabor de um movimento em
espiral.
Figura 5 (A, B, C) - Fernand Lger, Ballet Mecnique, 35 mm, 19 min, 1924
Fonte: Disponvel em: . Acesso em: 6 mar. 2010
Os cineastas russos, principalmente Dziga Vertov e Sergei Eisenstein (1898-1948),
fazem grande uso de tal integrao do verbal em seus filmes, assim como lhe concedero uma
funo complexa, ao fazer dela um meio de montagem e de ligao entre fragmentos
filmados, e at mesmo o motor de certas sequncias. Ao reivindicar o letreiro, os cineastas
russos de vanguarda respondem, antes de tudo, ao slogan, ao cartaz, fala ou escritura
socializada na revoluo. Essa atitude encontra-se com a dos pintores e artistas grficos
construtivistas, que, abandonando o quadro de cavalete, ganharam o territrio do grafismo, da
publicidade e da propaganda: livros, jornais, cartazes, logotipos e tabuletas. importante
notar que a tipografia foi um dos campos em que o trabalho dos construtivistas foi mais
fundamental (ALBERA, 2002).
Notam-se tambm no corpo dos filmes e vdeos de Jean-Luc Godard vrias figuras de
presentificao do texto nas e pelas imagens, tanto para serem lidas como para serem vistas,
pois mesmo no texto escrito Godard mostra-se atento dimenso visual. Em seus filmes
militantes e polticos do perodo do grupo Dziga Vertov, temos um trabalho de palimpsesto
cinegrfico (DUBOIS, 2004, p. 271). As duas figuras dominantes desses filmes so a
colagem e o grafite, ambas exibidas diretamente como puras superfcies sem profundidade
(fig. 6). Aqui a questo unicamente de cartolina e lpis, de imagens fixas emprestadas,
34
refilmadas, agenciadas segundo uma ordem muito construda (fotos, desenhos, grficos) e de
textos manuscritos acrescentados s imagens, construindo frases e discursos, figuras.
Figura 6 (A, B) - Grupo Dziga Vertov, Le Vent D'est, 35 mm, 100 min, 1969
Fonte: Disponvel em: . Acesso em: 19 abr. 2011
Em Congo, Arthur Omar apropria-se de descries, enumeraes e informaes de
textos antropolgicos, que exibidos frontalmente em letreiros tambm afirmam a ausncia de
profundidade da imagem flmica. Ecoa assim o gesto dos cineastas que negavam a
profundidade da tela, apresentando letras de imprensa que evocavam ausncia de relevo.
Segundo Deleuze (2005), o cinema moderno reintroduziria os letreiros, recorrendo tambm a
outro meio do cinema mudo, as injees de elementos de escrita na imagem visual. No
entanto, para o terico francs, no cinema mudo estamos diante de dois tipos de imagens, uma
vista, e outra lida, os letreiros, ou diante de dois elementos da imagem, enquanto no cinema
moderno a imagem visual que deve ser lida inteiramente.
Nesse sentido, Deleuze (2005) aponta ainda para a emergncia no cinema moderno da
imagem audiovisual, onde o que conta a fissura entre as imagens, entre o sonoro e o visual.
A imagem torna-se capaz de apreender os mecanismos do pensamento, ao mesmo tempo em
que a cmera assume diversas funes proposicionais, o que faz da imagem algo legvel, mais
ainda que visvel. A legilibilidade da imagem no implica uma linguagem, mas algo da ordem
do diagrama. Essa nova imagem desestabiliza o nosso mundo ptico, que est condicionado
em parte pela estatura vertical. Deleuze tambm sublinha que com o surgimento das novas
imagens eletrnicas e numricas, a organizao do espao perde o privilgio da vertical em
favor de um espao onidirecional.
Nesse caso, Deleuze faz meno s formulaes do crtico e historiador da arte Leo
35
Steinberg em relao pintura moderna, para definir a originalidade da imagem audiovisual.
Para Steinberg (2008), desde o Renascimento um axioma permaneceu vlido ao longo dos
sculos: a concepo da pintura como representao de um mundo, uma espcie de espao do
mundo que percebido no plano do quadro e que corresponde postura humana ereta. Desse
modo, o topo do quadro corresponde altura de nossas cabeas erguidas, e a borda inferior
tende ao local onde pomos os ps. Para o crtico, um quadro que remete ao mundo natural
evoca dados sensveis que so experimentados na postura ereta. Assim, o plano de um quadro
renascentista afirma a verticalidade como sua condio essencial. Essa concepo do plano do
quadro resiste s mais drsticas mudanas de estilo.
Entretanto, para Steinberg (2008), algo aconteceu na pintura por volta de 1950, mais
claramente no trabalho de artistas como Robert Rauschenberg (1925-2008) (fig.7) e Jean
Dubuffet (1901-1985). Ainda podemos pendurar os seus quadros, porm da mesma maneira
que afixamos mapas e projetos arquitetnicos. Eles no dependem mais de uma relao com a
posio ereta do homem, eles evocam opacos flatbeds horizontais. De acordo com o crtico, o
plano flatbed da pintura faz aluso a superfcies duras, como tampos de mesa, pisos de ateli,
diagramas ou quadros de aviso, ou seja, qualquer superfcie receptora em que objetos so
espalhados, em que informaes podem ser recebidas, impressas ou estampadas. Logo, essas
pinturas insistem em uma orientao radicalmente nova, em que uma superfcie pintada o
anlogo de processos operacionais.
Figura 7- Robert Rauschenberg, Lincoln, tcnica mista sobre madeira, 43,2 x 53 cm, 1958.
Acervo The Art Institute of Chicago
Fonte: Disponvel em: < http://www.artic.edu/aic/collections/artwork/artist/931>. Acesso em: 20 set. 2010
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O que Steinberg aqui tem em mente o modo como a imagem interpela o espectador,
considerando a guinada do plano do quadro da vertical para a horizontal como expressiva de
uma mudana radical da temtica da arte, a mudana da natureza para a cultura. Assim, no
trabalho de Rauschenberg, Pintura branca com nmeros, de 1949, enigmticos meandros de
linhas e nmeros, alto e baixo esto sutilmente confundidos quanto oposio entre figura e
fundo. J no incio da dcada de 1950, o artista usaria papel jornal para imprimar as suas telas,
de modo que sua primeira pincelada surgisse sobre um mapa cinza de palavras. Na dcada de
1960, ele trabalharia com transparncias fotogrficas, que interferiam umas nas outras,
eliminando as sugestes de espao em funo de uma espcie de rudo ptico. Logo, o que
Steinberg chama de flatbed mais uma distino de superfcie, entendida como uma mudana
no seio da pintura que alterou a relao entre artista e imagem, imagem e espectador.
No filme Congo, de Arthur Omar, possvel notar igualmente afinidades com tudo
que raso, como o palimpsesto, a prova de impresso, o diagrama. O cinema de Omar cria
outra cenografia, eliminado os efeitos de profundidade e tornando a imagem pura superfcie.
O espao confunde suas direes, suas orientaes e perde qualquer primazia do eixo vertical
que poderia determin-las. E a tela tende a tornar-se uma superfcie opaca que recebe
informaes. Como na pintura de Kazimir Malevich, afirma sua prpria existncia como
objeto e, ao mesmo tempo, oferece-se como enigma. O artista visa a elaborar assim um estado
permanente de tenso, uma expectativa constante, por meio de situaes indefinidas que
provocam o estranhamento.
1.3 Galxia de imagens descontnuas: Triste Trpico e a montagem
No longa-metragem Triste Trpico13
(1974, 35 mm, 1h15min), Arthur Omar d
continuidade s experincias realizadas em Congo, exacerbando procedimentos como a
fragmentao, a justaposio e a ambiguidade. O artista levou dois anos para realizar o filme,
e grande parte do material utilizado foi filmado em pelcula de 16 milmetros e posteriormente
ampliado para 35 milmetros. Em depoimento ao jornal Opinio, na poca do lanamento do
filme, Omar vai referir-se a Triste Trpico como um filme essencialmente de mesa de
13
A Cinemateca produziu uma cpia nova do filme em 1997, dentro do seu programa de restaurao do cinema
brasileiro. Para esta pesquisa examinou-se uma cpia do filme em vdeo, disponvel no acervo da Cinemateca
Brasileira de So Paulo. Posteriormente examinou-se outra cpia disponibilizada no site Cinema of the
world.
37
montagem, sublinhando a importncia do procedimento na sua realizao (MURAO, 1974).
Assim o filme tratado pelo cineasta, em sinopse presente no catlogo da exposio A lgica
do xtase14, como galxia de imagens descontnuas (OMAR, 2000, p. 200).
O crtico Ismail Xavier (2001) indica que o longa-metragem de Omar conduzido por
uma montagem que dispe voz e imagem em descompasso, aproximando-o de procedimentos
do cinema moderno: a no sincronia, a independncia entre as bandas de imagem e de som
que expem matrias que se estranham falam da crise do sujeito e provocam o choque numa
direo conceitual ou potica. Aqui, Omar dialoga com Jean-Luc Godard, notadamente em
seu filme One Plus One (1969), e tambm com as experincias do cinema brasileiro de
Glauber Rocha (1939-1981), Jlio Bressane e Leon Hirszman (1937-1987). No entanto,
radicaliza o estranhamento de som e imagem, reservando lugar para que um esprito ldico
possa estimular a imaginao pelo confronto peculiar das imagens com uma voz narrativa.
Em Triste Trpico, uma voz em off 15
narra a biografia de um mdico brasileiro, o Dr.
Arthur Alves Nogueira, filho de abastado desembargador, que aos vinte anos viaja
Europa para estudar medicina na Sourbone. Retornando ao Pas, o mdico instala-se na
regio cafeeira do litoral, conhecida como Zona do Escorpio, e acaba aos poucos por
assimilar os costumes e tradies locais de tal modo que, nas festas municipais, Dr. Arthur
era obrigado a comer carne humana dos inimigos. Sente-se feliz nesse ambiente, no entanto,
foras desconhecidas comearam a sabotar sua vida sentimental. O mdico passa a sofrer de
sintomas estranhos, tais como perturbaes visuais. Em seguida, abandona ptria e
residncia para pregar sob os climas nocivos da Zona Trrida, liderando um movimento de
insurreio da populao nativa para, finalmente, morrer assassinado (TRISTE, 1974).
Durante todo o longa-metragem temos a presena constante da voz do ator Othon
Bastos, em tom grave e solene prpria do documentrio tradicional. Apesar da aparente
preciso, seu teor extremamente dbio. A pesquisadora Guiomar Ramos (2002) ressalta que
o contedo da narrao estabelecido a partir da reunio de fragmentos de textos de viajantes,
historiadores e literatos. Ramos identifica, por exemplo, passagens de textos do antroplogo
suo Alfred Mtraux (1902-1963) e do escritor brasileiro Euclides da Cunha (1866-1909),
alternadas a outros contedos sem o menor sentido e que constroem o percurso do
protagonista. Soma-se a esse material uma grande variedade de expresses sonoras como
cantos ou falas indgenas, cantos gregorianos ou vozes falando em latim, melodias sintticas,
14
Primeira retrospectiva completa de cinema e vdeo de Arthur Omar realizada no Brasil. No catlogo o artista
faz uma releitura visual de sua obra, acompanhada de reflexes a respeito do seu processo de criao. 15
A voz in a voz de qualquer elemento que se encontre dentro do campo visual. Por exemplo, o dilogo dos
atores em cena. A voz off proferida por algum fora do campo visual em questo.
38
msicas latinas e do carnaval de rua.
A voz narradora acompanhada igualmente de uma enormidade de materiais
imagticos das mais diversas origens (fig. 8): letreiros, fotografias de poca e do prprio
cineasta, anncios antigos, pginas de velhos almanaques de farmcia, gravuras do sculo
XVII, filmes amadores, trechos de filmes de fico e imagens do carnaval. Dentre as imagens
mais frequentes destaca-se um filme de famlia da dcada de 1930, que exibe passeios de
automveis, ruas tranqilas, uma criana que empurra um carrinho de beb, entre outras
imagens. H tambm a constante presena do carnaval de rua do Rio de Janeiro, filmado por
Omar em 1972. Sobressaem-se ainda as inseres constantes das pginas de um antigo
almanaque de farmcia16
, o Almanaque Capivarol.
Figura 8 (A, B, C) - Arthur Omar, Triste Trpico, 35 mm, 1h15min, 1974. Acervo Cinemateca Brasileira de So
Paulo
Fonte: Disponvel em: . Acesso
em: 5 jun. 2011
Logo na abertura de Triste Trpico, apresentada uma imagem do ttulo do filme:
sobre o T da palavra Trpico vemos um cristo crucificado; prximo do ltimo temos
dois canos de armas de fogo e, por fim, atrs de todo o ttulo encontra-se um sol e seus raios
entre nuvens volumosas (fig. 9). Dessa maneira, de incio, somos apresentados ao que parece
ser um emblema, ou seja, uma montagem de imagem visual e signo lingustico. Segundo
Walter Benjamin (1984), os livros de emblemas do Barroco, seu aspecto grfico e literrio,
so os documentos autnticos relativos nova concepo alegrica das coisas introduzidas no
perodo moderno. A nosso ver o emblema apresentado em Triste Trpico exibe igualmente
uma concepo alegrica que vai interferir na construo e composio de todo o filme.
16
Segundo Gomes (2006), os almanaques de farmcia, editados no Brasil desde o sculo XIX, foram
publicaes que durante dcadas promoveram e popularizaram as drogas medicinais e os artigos cosmticos
que competiam em nosso mercado de sade. Milhes de exemplares dessas publicaes foram editados e
distribudos por todo o Pas, instalando-se como hbito de leitura.
39
Figura 9 - Arthur Omar, ttulo original do filme Triste Trpico, 1974
Fonte: OMAR, Arthur. A lgica do xtase. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do
Brasil, 2000
No seu livro Origem do Drama Barroco Alemo, Walter Benjamin procura
demonstrar que a alegoria no uma simples tcnica de ilustrao, mas uma forma de
expresso. Para Benjamin (1984), o emblema barroco era central para a viso barroca da
natureza como representao alegrica da histria. Na Europa do sculo XVII, despedaada