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O mundo popular cantado e perscrutado: vozes e visões da cidade de São Paulo
nas canções de Adoniran Barbosa e Billy Blanco.
Alexandre Felipe Fiuza
“A cidade não pára, a cidade só cresceO de cima sobe e o debaixo desce”.
(A Cidade, canção de Chico Science, 1994).
“Ó meu São Paulo!Ó minha uiara de cabelo vermelho!Ó cidade dos homens que acordam
mais cedo no mundo” (Café Expresso, em Martim Cererê, poema de Cassiano Ricardo, 1928)
Abordar uma temática como a canção popular no Estado de São Paulo parece
uma tarefa pretensiosa e extensa demais para um capítulo de livro. Optar por um
cancioneiro que teve a cidade de São Paulo por assunto é também um desafio
intransponível diante das milhares de canções compostas e da diversidade de gêneros
executados na metrópole ao longo do século XX, daí a necessidade de um recorte.
Tal diversidade musical retratou muito bem as diferentes zonas de ocupação da
cidade por distintos grupos e períodos. Contudo, esta representação musical ultrapassou
as fronteiras e também foi influenciada por diferentes sonoridades do estado de São
Paulo, contribuindo para a construção de uma imagem simbólica de um tipo paulista e
não apenas paulistano. Assim, os limites entre interior e capital no campo da música
popular são muito mais complexos do que os limites espaciais. O território da música e
da cultura é muito mais intricado do que as divisões administrativas e políticas. Houve,
e ainda há, uma troca freqüente entre os gêneros musicais produzidos em todo o Estado
de São Paulo. Para além disso, as influências musicais entre diferentes regiões do país e
do mundo1 também dão um grau maior de complexidade às tentativas de elaboração de
um mapa musical paulista.2
Portanto, estas reflexões são delimitadas no modo como a cidade de São Paulo é
vista por dois compositores: pelo paulista João Rubinato (1910-1982), nome do popular
compositor Adoniran Barbosa, e pelo paraense Willian Blanco Abrunhosa Trindade, ou
Billy Blanco, nascido em 1924. Contrapor a produção musical de Adoniran Barbosa ao
cancioneiro presente na sinfonia popular Paulistana, o retrato de uma cidade3, de Billy
Blanco, explicita inicialmente dois tempos retratados. Enquanto em Billy a história de
São Paulo é seu leitmotiv, em Adoniran a contemporaneidade é o motor de sua
inspiração poética e musical e o tempo que lhe é inerente é “a noção de tempo afetivo
em contraposição à de tempo linear, evolutivo, como que para deter a pressa da cidade,
e torná-la menos arredia a veneração do seu admirador”. 4
À primeira vista, Paulistana reproduziria em suas quinze canções unicamente a
velha fórmula enaltecedora da “grande São Paulo”, a exemplo de uma centena de
canções que ressaltaram e contribuíram na representação de uma São Paulo muito cara à
elite econômica e política de diferentes momentos da história paulista. Este conjunto de
representações pode ser entendido como uma das estratégias de legitimação e conquista
de poder. Ideologia fragmentada a partir do final do século XIX, quando da ascensão da
cultura cafeeira, e que desembocou na década de 1930 como “ideologia da
paulistanidade, como parcela da ideologia da classe dominante com características
regionais, [que] se expressa desde a ciência – destacando aí a produção historiográfica
paulista – até o folclore, passando pelo senso comum”. 5 Na constituição deste ideário
reproduzido/produzido pela oligarquia paulista, as festas cívicas e a música popular
também deram significado à construção de uma determinada memória.
Todavia, esta peça musical não se resume a uma ode ao paulista. O compositor
narra São Paulo a partir da chegada dos portugueses até a ambientação da movimentada
cidade do final da década de 1960. Tais canções de Paulistana fazem emergir um tema
2
comum às comemorações do IV Centenário celebrado em 1954 e cantado por inúmeros
intérpretes de diferentes gêneros musicais. Assim, apesar de ter sido composta entre o
início da década de 1960 e 1974, ano de sua gravação, a sinfonia estabelece uma relação
significativa com o clima comemorativo do IV Centenário, muito embora o compositor
já não vivesse na cidade naquele período. Billy Blanco estudou Engenharia em São
Paulo entre 1946 e 1948, quando então se transferiu para o Rio de Janeiro, onde
concluiu seu curso de Arquitetura. Paulistana, segundo seu autor, foi composta para sua
esposa, a paulista Ruth Egydio de Sousa Aranha. O músico chegou a compor outras
suítes homenageando também o Rio de Janeiro (Sinfonia do Rio de Janeiro – 1954, em
parceria com Tom Jobim), Belém (Guajará: Suíte do Arco-Íris – 1993) e trabalha
atualmente numa homenagem ao Estado de Alagoas.
Baseado na antiga e ideológica fórmula de relacionar o paulistano ao período
colonial, Billy traz na canção Louvação de Anchieta, interpretada por Pery Ribeiro, uma
cronologia que dá à ocupação o caráter de marco zero civilizacional. O mar é o canal
para que esta história se inicie e para que seja cantada e decantada pelo homem novo,
como no trecho: “Tem canção por todo lado/ Louvado seja Anchieta/ Pra sempre seja
louvado”. Por outro lado, tal canção não se resume a tal louvação, uma vez que enfatiza
a importância da música para o homem e como ela se traduz na necessidade humana de
uma trilha sonora cotidiana: “Navegante tem cantiga/ Que aprendeu no mar um dia/
Qualquer rota que ele siga/ Se não canta ele assobia”.
Como não poderia deixar de ser, a cronologia composta por Billy aponta “as
raízes do Brasil”, ressaltando que esta contribuição que vem do mar não é a única na
constituição do paulista, como comprova a história símbolo da índia e da canção
homônima Bartira:
3
Cabelo cor da noite, pele de alvoradaCacique entregou ao branco, a filha amadaRaízes de Brasil, chegaram até aquiAbençoado o colo dessa mãe antigaPor 400 anos feitos de cantiga, naquele doce embaloDa canção TupiNa tez de uma paulista em cheiro de florestaA cor de jambo é a índia, que ninguém contestaDe uma altivez que o Império nunca viraÉ a tradição, é a raça, é a nossa origemAs coisas da história de São Paulo exigemA honra que se faça ao nome de Bartira, Bartira.
Esta simbiose entre o elemento colonizador (o português) e o nativo é
reproduzida também musicalmente. A canção traz um ritmo diferenciado, com um
arranjo que alterna uma musicalidade européia, num solo ao piano e numa sonoridade
mais orquestrada, em contraponto a uma tessitura mais percussiva que remete a uma
sonoridade atribuída aos grupos indígenas, com inúmeros instrumentos como o
chocalho, guizos, tambores (que não são exatamente indígenas). Isso produz uma
simbiose que, de certa maneira, representa literária e musicalmente as tensões do
encontro entre estes povos. Parte desta “estratégia musical” advém também da
arquitetura elaborada pelo maestro (ou “mestre-de-obras”, como diria o encarte do
disco) Chiquinho de Moraes, além da contribuição do produtor Aloysio de Oliveira.
Tal contato entre culturas indígenas e européias produziu resultados distintos
destas mesmas matrizes. Nesse sentido, é possível uma aproximação com as reflexões
de Sérgio Buarque de Holanda sobre as trocas culturais entre europeus e indígenas: “A
soma de elementos tão díspares gerou muitas vezes produtos imprevistos e que em vão
procuraríamos na cultura dos invasores ou na dos vários grupos indígenas”. 6
Nesta passagem o autor complexifica, já na década de 1950, as questões
relacionadas aos contatos entre europeus e indígenas, e sem desprezar o genocídio e o
etnocentrismo, assevera sobre a troca de conhecimentos e de culturas, além da produção
de novos hábitos e de tradições advindas deste contato conflituoso.
4
Na canção em apreço, esta mesma complexidade é perceptível. Partindo da
mesma premissa, não há como enquadrá-la como mais um dos arautos da ideologia da
paulistanidade, simplesmente por ter evocado valores caros a esta mesma representação,
pois seria extremamente reducionista tal conclusão. Não unicamente como licença
poética do compositor, a história oficial também é questionada nas canções que
compõem a Paulistana e na própria estrutura musical de Bartira, interpretada por
Cláudia. Por fim, as críticas a esta construção histórica não estavam disponíveis para
que o compositor incorporasse outras leituras, que nos são contemporâneas, bem como,
quando da gravação em disco, o Brasil vivia o auge da repressão e das ações da
Censura.
Bartira é também escolhida como motivo por Billy Blanco dada a representação
construída em torno da romanceada biografia da personagem, em que toda uma gênese
do paulista encontra sua matriz ideal. Filha do cacique Tibiriçá, da tribo Guaianá, ao se
casar com o português João Ramalho durante o início da colonização em São Paulo, ela
simbolizou a miscigenação e a origem do povo paulista. Esta “mãe de todos os
brasileiros”, “mãe da Nação” ou como diria a letra da canção, essa “mãe antiga”,
batizada pelo padre Manuel da Nóbrega, representou a celebração de um início de
colonização resolvido maritalmente, com a construção de uma narrativa em que Bartira
aparece como a “mãe devotada” e como símbolo para as mulheres. No ano do IV
Centenário, a feminista, professora e escritora Adalzira Bittencourt (1904-1976), natural
de Bragança Paulista, lança o livro A Mulher paulista na História, em que Bartira é
evocada: “é a mulher que deve descerrar as cortinas do pórtico da História da Mulher
Paulista, pois que seu sangue vem passando de geração em geração pelas veias da gente
de nossa terra, formando os bandeirantes que alargaram as fronteiras da Pátria (...)”. A
exemplo de outras obras, a autora prossegue fazendo uma ponte entre tempos distintos
5
ao falar do “sangue bandeirante”, que seria o “sangue que ainda hoje circula nas veias
dos estadistas, dos agricultores, dos industriais, dos poetas, dos operários, e da
juventude gloriosa de São Paulo!” 7
Portanto, tal biografia acresce ao marco fundador da raça uma cronologia que
interliga o passado colonial ao presente da São Paulo da década de 1950 em que
figuram políticos, poetas, burguesia e trabalhadores, em cuja veia corre o sangue
bandeirante. A letra da canção reforça todos estes valores como a raça, a gênese, as
raízes do povo paulista. Por outro lado, o autor vê que Bartira é relegada por uma
memória oficial, a favor de uma história em que se ressaltam os feitos masculinos. O
compositor não poderia agir de outro modo, ao compor em homenagem à esposa, vê em
Bartira o símbolo da mulher paulista. Também o próprio Billy explica a razão da
homenagem: “(...) pouco se fala da índia-madre. A história canta seu bandeirante; o
jesuíta seu grande padre; então, paulista quatrocentista deve esse tempo que ninguém
tira à filha amada tupiniquim que foi chamada Índia Bartira”.8
Na seqüência, temos a ainda mais percussiva Monções, interpretada por Pery
Ribeiro. Neste, digamos, carimbó-épico9, temos uma outra composição que realiza a
fusão de valores indígenas e europeus. A tensão é bem maior nas cordas e nos metais,
onde uma percussão de tambores e de guizos reproduz a epopéia bandeirante, os riscos
da empresa, o inesperado presente nas trilhas terrestres das bandeiras e nas rotas
fluviais, “rio acima”, das monções. Não obstante, refere-se a história tradicional e
oficial do bandeirante como o desbravador e responsável pela unidade nacional:
Era tudo, era o nada rio acimaQue o paulista no peito ia vencerPra fazer mais Brasil do que existiaJá um tempo era pouco pra perderReunindo oração e despedida na partida da horda triunfalCaçador da esmeralda perseguidaFoi fazendo a unidade nacionalBandeiras, monções.
6
Aqui o autor remete também a uma construção cara à ideologia da
paulistanidade, ou seja, a mitificação dos bandeirantes e o esvaziamento dos motivos
destas entradas no território. Se o autor enfatiza a busca das esmeraldas, na história
oficial o empreendimento comercial de exploração de pedras preciosas e apresamento
de indígenas dá lugar a uma missão evangelizadora de expansão da fé católica e das
fronteiras “pra fazer mais o Brasil do que existia”. Esta “missão cristã” povoa também
outras canções presentes em Paulistana, como nos trechos: “louvado seja Anchieta”
(Louvação de Anchieta); “abençoado o colo desta mãe antiga” (Bartira); “na reza do
paulista, trabalho é Padre-Nosso/ é a prece de quem luta e quer vencer” (Tema de São
Paulo); ou ainda na segunda parte da própria canção Monções:
Já se dava por glória ao que se iaPorque mal se sabia se voltavaE a benção levada já serviaDe unção para quem por lá ficavaNas monções quem seguia, na verdadeJá partia cheirando à santidadeQuem não via esmeralda ou não morriaPovoava cidade mais cidadeBandeiras, monções.
A epopéia bandeirante é também aludida em outras canções e de diferentes
compositores, como em O caçador de esmeralda, do mineiro João Bosco e do carioca
Aldir Blanc (em parceria com o letrista Cláudio Tolomei), onde o amor num dia de sol
entre Fernão e Esmeralda pode ser descrito através do passado, em que Fernão volta ao
período colonial na pessoa do bandeirante Fernão Dias (1608-1681).10 Já no título desta
canção aparece a citação literal de "O Caçador de Esmeraldas - Episódio da epopéia
sertanista no XVIIº século", de 1888, do poeta Olavo Bilac. Esta poesia épica inspirou
outras poesias, filmes11 e canções como Águas de Março, de Tom Jobim e Sonhador das
Esmeraldas, samba-enredo da hoje Império Serrano, vencedora do Carnaval de 1956, de
7
Mano Décio da Viola e de Silas de Oliveira12. Remete ainda a um tempo épico, a
exemplo da poesia de Bilac e de Monções. Nestas canções há uma "transversal do
tempo", como diria a dupla Bosco/Blanc em canção homônima, na medida em que os
dois tempos distintos, da segunda metade do século XX e do período colonial, são
retratados concomitantemente já que o bandeirante não serve tão e unicamente como
recurso poético.
Esta “transversal do tempo” também é recorrente em outras canções de
Paulistana. Mesmo quando o compositor retrata a “São Paulo jovem” na canção
homônima, com suas motos, badalações, com a mini-saia e short da paulistana que
passa, remete ironicamente ao passado colonial: “Bartira e João Ramalho nunca
imaginaram/ Que a tanga e a miçanga vinham outra vez”. Em O Céu de São Paulo,
interpretada por Claudette Soares, o céu cinzento da cidade já industrializada é
comparado a uma “guerra de chaminés”, que produz um céu que “não é da garoa/ é véu
de fumaça que passa”. Contudo, se o sol transpassa a cortina de fumaça ou não, isso não
retira o paulistano da sua correria: “é que o bandeirante/ não perde seu tempo, olhando
pro alto”. Novamente o compositor remete ao passado ao trazer duas palavras de
estranhamento: “guerra” e “bandeirante”. Nesta canção, Billy também introduz a
preocupação com a poluição e aponta que “o sol verdadeiro está no asfalto/ na terra, no
homem, na produção”.
Na seqüência da canção Monções, vem uma das canções mais reconhecidas pelo
público paulista: Tema de São Paulo. Apesar da obra Paulistana não ter feito muito
sucesso junto ao público, a canção que tem por tema São Paulo foi usada, junto com
Amanhecendo e O tempo e a hora, como prefixo pela rádio Joven Pan no programa
Jornal da Manhã durante mais de vinte e cinco anos. Entretanto, esta rádio paulista não
foi a única, uma vez que outras rádios do país também utilizaram trechos da canção
8
como prefixo musical. Como é típico da arrecadação dos direitos autorais no Brasil, o
compositor nunca recebeu nada pelo uso diário de sua obra, segundo o próprio Billy
Blanco: “Eles usam alguns segundos e tiram antes que seja necessário o pagamento de
direitos, um truquezinho”. 13
Tal uso de trechos de Paulistana mantém-se na atualidade. Sua execução
comercial e governamental ainda é freqüente, como se observou no ano de 2005, na
utilização de um trecho instrumental de Tema de São Paulo pelo Governo do Estado de
São Paulo, quando do anúncio da inauguração de novas estações de Metrô, entre outros
projetos. Ao ouvir Tema de São Paulo 40 anos após sua composição, seu texto soa até
irônico:
São Paulo que amanhece trabalhandoSão Paulo, que não sabe adormecerPorque durante a noite, paulista vai pensandoNas coisas que de dia vai fazerSão Paulo, todo frio quando amanheceCorrendo no seu tanto que fazerNa reza do paulista, trabalho é Padre NossoÉ a prece de quem luta e quer vencer.
Acima, temos um dos maiores mitos em torno do paulista, ou seja, o trabalho e
sua ética característica. A canção é toda orquestrada, onde se destacam os metais e as
cordas, contando com um coro que dá uma atmosfera de coletividade. A escolha do coro
como executante não é aleatória. Ao tratar da poesia de Neruda, Alfredo Bosi define: “o
coro atua, necessariamente, como um modo de existência plural. São as classes, os
estratos, os grupos de uma formação histórica que se dizem no tu, no vós, no nós de
todo poema abertamente político”.14
Na seqüência temos uma outra composição que também reforça esta imagem do
paulista que vai dormir pensando no trabalho do dia seguinte, intitulada Capital do
tempo, cuja interpretação coube a Elza Soares. Desta vez, são trazidos à cena os povos
9
que construíram a metrópole: “bastante italiano, sírio, japonês/ além do africano, índio e
português (...) paulista é quem vem e fica/ plantando família e chão/ fazendo a terra
mais rica/ dinheiro e calo na mão”. Contudo, a riqueza produzida por estes
trabalhadores tem um outro endereço, como atesta a tensa composição O Dinheiro:
Dinheiro, mola do mundo, que põe a gente na tonaQue leva a gente ao fundoSim, senhor, sim, senhor,Que faz a paz e a guerra, que trouxe a lua pra TerraNo mais aumenta a barriga do comendadorDinheiro, juras e juros, que ergue todos os murosPra ele próprio depois derrubar, derrubar, derrubarÉ a voz que fala mais forte, razão de vida e de morteTambém, só compra o que pode comprar.
1 Como atesta o Programa O Cancioneiro da Imigração, em que Anna Maria Kiffer analisa as manifestações musicais de quinze povos que vivem em São Paulo. Disponível em: <http://www.radio.usp.br/especial.php?id=2>. Acesso em: 23 mai. 2005.2 O programa radiofônico Piratininga: do Pau Brasil à Paulicéia Desvairada, realizado pelo pesquisador musical Omar Jubran para a Rádio USP que, a partir de inúmeras canções e excertos da literatura que têm a cidade por tema, traçou um rico e bem construído panorama da cidade cantada e escrita. Disponível em: <http://www.radio.usp.br/especial.php?id=7>. Acesso em: 23 mai. 2005.3 BLANCO, Billy. Paulistana: Retrato de uma Cidade. Evento/Odeon. SE-11.00, 1974. Relançada em CD em 1996, pela EMI, nº. 837823 2. Curiosamente, quase todo o elenco do disco foi composto por cariocas. Em 2005, quando das comemorações do aniversário da cidade de São Paulo, a Banda Sinfônica Jovem do Estado de São Paulo apresentou a peça em plena Avenida Paulista.4 LENHARO, Alcir. Luzes da Cidade. Óculum - Revista universitária de arquitetura, arte e cultura. Campinas: PUC, nº. 1, pp. 50-55, ago. 1985, p. 50.5 CERRI, Luis Fernando. Non ducor, duco: a Ideologia da Paulistanidade e a Escola. Revista Brasileira de História, v.18, n.36, 1998, p. 02.6 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio/ Departamento de Cultura da Guanabara, 1975, p. 91.7 BITTENCOURT, Adalzira. A Mulher paulista na História. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1954, p.17.8 Depoimento presente no encarte do disco e do CD Paulistana – Retrato de uma cidade.9 Aqui temos uma fusão do tradicional carimbó, uma dança de roda do Pará, com um discurso literário e musical grandiloqüente, ou seja, ressaltam-se os feitos de uma ocupação heróica, típica de uma epopéia.10 FIUZA, Alexandre. Entre cantos e chibatas: a pobreza em rima rica nas canções de João Bosco e Aldir Blanc. Campinas: Faculdade de Educação, 2001. (Dissertação de Mestrado).11 Por exemplo, em 1933 o italiano Vittorio Capellaro dirige O Caçador de Diamantes e em 1918 O Garimpeiro. Mais informações em: EMÍLIO, Paulo. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra: Embrafilme, 1980.12 Ver: NOVA História da MPB. Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Abril Cultural, 1977. 33 rpm, stereo, nº. HMPB-21, p. 09.13 Billy Blanco – 80 anos de talento. In: <http://www.socinpro.org.br/socnot12-04.htm>. Disponível em 23 de mai. 2005. Ver também entrevista com Billy Blanco junto a própria rádio Joven Pan em 24 de janeiro de 2000. Disponível em: <http://jovempan.uol.com.br/jpamnew/destaques/memoria>. Acesso em: 19 mai. 2005. 14 BOSI, Alfredo. Poesia de Resistência. In: O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1977, p. 182.
10
Nesta obra, interpretada pelo sambista carioca Nadinho da Ilha, Billy compõe
uma São Paulo mais próxima daquela composta em prosa, verso e melodia por
Adoniran Barbosa. O dinheiro que é responsável pelo crescimento da cidade também
financia a destruição da antiga arquitetura da cidade. É também o capital que “enche a
barriga do comendador”, figura ímpar para a personificação da burguesia paulista.
Em Amanhecendo, a imagem da cidade como a capital do trabalho é igualmente
retratada. O tempo exíguo para os que vivem na metrópole apressada é abordado em sua
relação com o dinheiro e com o progresso da cidade: “de Metrô chego primeiro/ se
tempo é dinheiro/ melhor vou faturar”. Nesse sentido, o ideário de 1954 é representado
na medida em que o progresso é retratado na correria da cidade: “não correm de correm
para/ para São Paulo crescer” (grifos nossos). Neste trecho, o progresso é sugerido em
toda sua carga de positividade, ou seja, a imagem de uma marcha, avanço, evolução.
Em O tempo e a hora esta concepção de progresso como movimento inexorável
é novamente aludida. Aqui, numa interpretação de Cláudia, Pery Ribeiro e coro, há
igualmente uma fusão de ritmos, particularmente entre a bossa-nova e o pop. O
andamento do ritmo representa musicalmente o tema do tempo: “Vambora, vambora/
olha a hora, vambora, vambora”. O trabalho é positivado em contraponto aos problemas
inerentes ao cotidiano: “tristeza basta a guerra/ e o adeus no amor”. O eu lírico reforça a
necessidade da adaptação ao ritmo da cidade, mas lembra a dimensão individual neste
contexto: “notícia ganha o mundo/ e a gente não é nada”. Curiosamente, uma passagem
desta canção pode responder às diferentes visões da cidade: “o que vale é a versão/
pouco interessa o fato”.
A produção musical de Billy Blanco, por vezes pautada num ótimo exercício de
fino humor, sugere que as canções que enaltecem São Paulo em Paulistana tenham sido
compostas em tom de ironia ao abordarem temas caros à epopéia bandeirante, como o
11
trabalho, o capital, a pressa, o centro do poder. Nesse sentido, como está claro no título,
a idéia do “retrato” é bem plausível. Contudo, tal ironia não é perceptível em toda a
obra, mas em alguns momentos, além disso, parte da Paulistana foi utilizada pelos
meios de comunicação e pelos governos em sua discursividade mais explícita, cujo
poder de persuasão é ainda maior quando combinada a determinado contexto imagético
ou discursivo.
Em Paulistana, o compositor também aborda outros temas, como o camelô em
Viva o Camelô. Este tema já foi antes explorado em outra composição sua intitulada
Camelot, em que este comerciante das ruas é sugerido como inspiração a certos
políticos: “aconselho então a muito deputado/ que ganha calado/ escutar o camelot com
atenção/ o distinto aprenderá a falar de fato/ quando cassarem o mandato/ já tem uma
profissão: de camelot”. Com Pro Esporte, bossa-nova interpretada por Elza Soares, o
autor enfatiza a importância de São Paulo nas mais diferentes modalidades esportivas,
afinal: “pro esporte, pro esporte é a solução/ pro esporte, pro esporte contra a poluição
(...) só em São Paulo que é a terra do depressa/ a São Silvestre poderia acontecer”.
A agitação e a modernidade da cidade são exploradas ainda em São Paulo
Jovem, Coisas da Noite e em Rua Augusta. Nesta última, Billy traz os locais em que o
chá, o uísque e o “chopps” são consumidos em espaços de sociabilidade como “pizzaria,
buate, restaurante, até casa lotérica”. Na última canção desta sinfonia está presente
Grande São Paulo, uma ode às cidades que compõem a região metropolitana, como
Santo Amaro, Santo André, Guarulhos, além de bairros paulistanos como o Brás e a
Vila Maria. Mais orquestrada do que as três canções que lhe antecedem, conclui com o
refrão de Tema de São Paulo, da “São Paulo que amanhece trabalhando”.
Em que medida tais canções podem ser contrapostas ao cancioneiro de
Adoniran? Certamente que em algumas destas composições a idéia de contraposição é
12
passível de análise, porém há também uma complementaridade nas versões do que seria
a cidade. Esta suíte ou sinfonia popular que é Paulistana: o retrato de uma cidade
resulta de um grande exercício criativo, refletindo também uma experiência estética
muito fértil do início da década de 1970, muito embora sua temática fosse
contextualmente anterior.
O objeto deste texto está circunscrito às décadas de 1950 e 1960, contudo, faz-se
necessário outra vez se reportar ao ano de 1974. A exemplo de Paulistana lançada em
1974, este foi também o ano da gravação do primeiro LP (long play) de Adoniran
Barbosa. Em particular, a censura às canções que compunham o disco, será desta vez o
objeto de análise. Numa pesquisa realizada junto ao Arquivo da Censura em Brasília e
no Rio de Janeiro, encontramos alguns pareceres de canções de Adoniran, algumas
delas compostas ao longo da década de 1950, mas que só seriam gravadas em LP em
1974 e 197515. Uma densa bibliografia16 explora o fato das canções de Adoniran terem
sido vetadas devido ao linguajar “ítalo-caipira” 17 utilizado pelo compositor ao elaborar
seus personagens. Todavia, no trabalho de Ayrton Mugnaini Jr., Adoniran: dá licença
contar, é destacado que a censura da canção Despejo na Favela, em 1969, teve mesmo
um cunho político.
Nos pareceres que encontramos nos Arquivos da Censura, temos uma versão
complementar dos trabalhos que abordaram este caso de veto à obra de Adoniran. Não
eram apenas os erros gramaticais que geraram os cortes. No Arquivo Nacional/ Rio de
15 BARBOSA, Adoniran. Adoniran Barbosa. EMI-Odeon, 1974. 33 rpm, stereo, nº SMOFB-3839; e Adoniran Barbosa. Odeon, 1975. 33 rpm, stereo, nº SMOB-3877.16 Aliás, a bibliografia que analisa a obra de Adoniran é das mais extensas entre as que abordam os compositores brasileiros. São inúmeras dissertações, artigos, reportagens e memórias dos campos da História, Música, Literatura, Jornalismo e Ciências Sociais. Portanto, não caberia aqui neste breve trabalho uma fortuna crítica que abarcasse esta mesma produção. Ver ainda: NOVA História da Música Popular Brasileira. Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 33 rpm, stereo, nº HMPB-49.17 Que tem sua origem muito anterior ao trabalho de Adoniran, como nos primeiros programas de humor no rádio em São Paulo, ou nos textos de “Bananére, ou melhor, o engenheiro Alexandre Marcondes Machado (1892-1933), [que] foi o criador do modo ítalo-paulista de falar”. In: MOURA, Flávio, NIGRI, André. Adoniran: se o senhor não ta lembrado. São Paulo: Boitempo, 2002, p. 25.
13
Janeiro, há duas cópias de letras de Adoniran, uma delas é Saudosa Maloca, enviada
pela empresa Discos CBS S/A, cujo parecer de 12 de outubro de 197118 liberou a
canção. Dois meses antes, em letra também enviada pela CBS, a canção Despejo na
Favela recebe o seguinte parecer: “À consideração superior. Protesto a decisão
governamental. Rio, 11.08.71” 19. Logo, como é característico dos pareceres que se
encontram no arquivo do Rio de Janeiro, não há um processo, com as devidas
justificativas, sendo estas encontradas prioritariamente no Arquivo Nacional/ Brasília.
No entanto, as duas canções foram gravadas pelo grupo de samba Titulares do Ritmo 20,
naquele mesmo ano.
Em março de 1974, desta vez foi a gravadora Odeon que tentou gravar algumas
canções de Adoniran Barbosa para compor seu primeiro LP e, com base nos vetos das
canções junto ao escritório regional da Censura na antiga Guanabara, remeteu à direção
de Censura Federal um recurso para liberar as letras: O Casamento do Moacir, Despejo
na Favela, Já fui uma brasa, Tiro ao Álvaro e Um Samba no Bixiga. De acordo com o
parecer dos três primeiros censores que avaliaram o recurso, “a letra musical ‘Despejo
na Favela’ deverá ter seu veto mantido, porque infringe o disposto no Art. 41, alínea d),
do Regulamento aprovado pelo Dec. Nº. 20493/46”. 21 Trocando em miúdos, com base
no Decreto de 1946, que criou o Serviço de Censura de Diversões Públicas, ligado ao
Ministério da Justiça, em particular, no artigo 41, alínea d, o veto se justifica: “Será
negada a autorização sempre que a representação, exibição ou transmissão
radiotelefônica: (...) d) for capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a
ordem pública, as autoridades constituídas e seus agentes”.
18 Arquivo Nacional/ Rio de Janeiro, TN2.3.8763, nº. 8501, datado de 12/10/1971.19 Idem, TN2.3.8685, nº. 8523, datado de 11/08/1971.20 TITULARES do Ritmo. Titulares dos Troféus, CBS, 10104197, 1971. Ver a fonte desta discografia em: MUGNAINI JR., Ayrton. Adoniran: dá licença de contar... São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 233.21 Parecer nº. 13849/74, Seção Censura Prévia, de 04.09.1975, Fundo DCDP - Divisão de Censura e Diversões Públicas, Arquivo Nacional/ DF.
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A canção Despejo na Favela já havia sido gravada em 1969 por Nerino Silva e,
em 1971, pelo Titulares do Ritmo. Entretanto, desta vez, a canção de Adoniran, Despejo
na Favela é alçada a um perigoso meio de incitação ao poder:
Quando o oficial de justiça chegouLá na favelaE contra o seu desejoEntregou pra seu NarcisoUm aviso, uma ordem de despejoAssinada "Seu Doutor"Assim dizia a petição:"Dentro de dez dias quero a favela vaziaE os barracos todos no chão"É uma ordem superiorô, ô, ô, ô, meu senhorÉ uma ordem superiorNão tem nada não, seu doutorNão tem nada nãoAmanhã mesmo vou deixar meu barracão
Não tem nada nãoVou sair daquiPra não ouvir o ronco do tratorPra mim não tem problemaEm qualquer canto eu me arrumoDe qualquer jeito eu me ajeitoDepois, o que eu tenho é tão poucoMinha mudança é tão pequenaQue cabe no bolso de trásMas essa gente aíComo é que faz?ô, ô, ô, ô, meu senhorEssa gente aíComo é que faz?
Numa das páginas do processo consta a letra na íntegra, em que as censoras do
escritório da Guanabara redigiram à mão a seguinte justificativa: “O final da letra dá
idéia de protesto contra a ordem judicial e a condição social de Narciso na favela. Dessa
maneira opinamos pela interdição da mesma. 22/12/73.” Nesta mesma cópia, as
censoras grifam a última parte da letra, apesar de não discorrerem sobre a mesma.
Segundo Ayrton Mugnaini Jr., este não seria o primeiro veto junto à obra de Adoniran:
“Seu maxixe ‘Vai-da-Valsa’, de 1950, foi sumariamente vetado na época, só chegando
ao disco meio século depois, na interpretação de Passoca”. O autor lembra também que:
“‘Despejo na Favela’, de 1969, foi alvo de implicância dos militares, especialmente
devidos aos versos: ‘Minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás, mas essa
gente aí, hein? Cumé que faz?”. 22
Com a proibição definitiva de Despejo na Favela em 1974, ela só viria a ser
gravada em 1980, no LP Adoniran e Convidados, em que o compositor canta esta faixa
15
ao lado de Gonzaguinha, numa escolha propositada do intérprete na medida em que traz
uma forte carga de crítica social. Num dos primeiros trabalhos sobre Adoniran escrito
por um historiador e pouco citado por muitos, no artigo intitulado Luzes da Cidade,
Alcir Lenharo afirma sobre a canção:
A utilização dos termos “senhor/doutor” para designar o executante de “uma ordem superior” não é empregada aleatoriamente; constituem expressões que advêm da linguagem do mundo colonial, e que retratam a superioridade incontestável do branco sobre o escravo. Neste samba, “senhor/ doutor” personalizam a ação devastadora do capital, destruidor do espaço fraternal da favela.23
No tocante ao veto à canção Casamento do Moacir, do mesmo modo as censoras
da Guanabara anotam suas interpretações junto à letra de Adoniran em parceria com
Osvaldo Moles: “VETADO – O péssimo gosto impede a liberação da letra, tendo em
conta os preceitos legais contidos no Dec. 20.493 de 46”. Para completar, corrigem
unicamente o trecho “a Turma da Favela convidaram-nos” ao escreverem “convidou-
nos”. Já no parecer emitido em Brasília os censores confirmam o veto “às letras
musicais ‘Um Samba no Bixiga’ e ‘Casamento do Moacir’, considerado o art. 4 º da Lei
nº 5.536/68, porque ambas letras são vazadas em linguagem deseducativa”. Contudo, a
Lei nº. 5.536, de 21 de Novembro de 1968, que “Dispõe sobre a censura de obras
teatrais e cinematográficas, cria o Conselho Superior de Censura, e dá outras
providências”, em nenhum momento trata da censura de letras musicais. É também
nesta lei que é instituída a obrigatoriedade de formação superior para os novos técnicos
de Censura.
22 MUGNAINI JR., op. cit. , p.124.23 LENHARO, op. cit., p. 51. Ver também a análise destes espaços de sociabilidade em: MATOS, Maria Izilda Santos de. História e Música: pensando a cidade como territórios de Adoniran Barbosa. História: Questões & Debates, Curitiba, n.31, pp. 31-48, 1999.
16
Assim, mesmo baseado no aparato jurídico criado pela ditadura, o corte era
questionável, pois a única passagem da lei que tangencia a justificativa utilizada para o
veto diz respeito unicamente às obras teatrais e cinematográficas: “Art. 4º Os órgãos de
censura deverão apreciar a obra em seu contexto geral levando-lhe em conta o valor
artístico, cultural e educativo, sem isolar cenas, trechos ou frases, ficando-lhe vedadas
recomendações críticas sobre as obras censuradas”.
O parecer que proíbe Um samba no Bixiga também traz as mesmas anotações
que as anteriores, qual seja: “VETADO – A falta de gosto impede a liberação da letra”.
Afinal, por que uma canção como Um Samba no Bixiga (gravada em 1956 pelos
Demônios da Garoa e em 1964, por Portinho e sua Orquestra), composta no início da
década de 1960 e apresentada no Fino da Bossa em 1965, foi objeto de censura em
1974? Por um lado, tal veto esbarra na subjetividade do censor que, embora tenha uma
série de preceitos legais a observar, pode construir uma linha argumentativa pessoal
para vetar o objeto analisado. Além disso, o país vivia uma outra fase dentro da ditadura
e isso gerou uma complexificação dos órgãos de Censura e um maior controle da
produção artística.
A “benevolência” dos censores fez com que a gravadora negociasse com a
Censura a liberação da canção Já fui uma brasa, parceria de Adoniran com Marcos
César, como afirma o Parecer nº 13849/74: “A letra ‘Já fui uma brasa’ é passível de
LIBERAÇÃO, o que propomos, se cortadas as duas últimas linhas do trecho falado.
(art.41, ‘a’), comb. Arts. 43 e 53 do Reg.”. No veto da Guanabara, a “linguagem
educativa” e repetitiva das censoras falava novamente na “falta de gosto” e grafaram
desta vez a passagem “porque em baixo, se assoprar/ pode ter muita lenha pra queimar”.
Como as censoras entenderam que o buraco era mais embaixo, veio o veto e os
17
compositores foram obrigados a fazer uma pequena mudança nos versos finais de Já fui
uma brasa:
Eu também um dia fui uma brasaE acendi muita lenha no fogãoE hoje o que é que eu sou?Quem sabe de mim é meu violãoMas lembro que o rádio que hoje toca iê-iê-iê o dia inteiro,Tocava saudosa malocaEu gosto dos meninos destes tal de iê-iê-iê, porque com eles, canta a voz do povoE eu que já fui uma brasa,Se assoprarem posso acender de novo
(declamado):É negrão... eu ia passando, o broto olhou pra mim e disse: é uma cinza, mora?Sim, mas se assoprarem debaixo desta cinza tem muita lenha pra queimar...
Aqui, Adoniran faz uma crítica à forma sazonal como alguns gêneros musicais
se sucedem nos meios de comunicação. Em particular, aponta como seu “samba antigo”
é esquecido frente ao que desponta como moderno, no caso, representado pela Jovem
Guarda. Esta canção revela também uma outra faceta da biografia do compositor, ou
seja, o caráter cíclico de seu sucesso numa diversa carreira no rádio, televisão, cinema e
música. Para muitos, João Rubinato é lembrado como o Charutinho, personagem do
programa radiofônico História das Malocas, baseado em sua canção Saudosa Maloca, e
criado pelo produtor, roteirista, seu parceiro e grande incentivador Osvaldo Moles
(1913-1967). O programa é um dos maiores sucessos da história do rádio: “esta
radiopeça estreou em novembro de 1955. Durante mais de dez anos (...) tornando-se
uma das maiores audiências da Record”.24
24 ROCHA, Francisco. Adoniran Barbosa: O Poeta da Cidade. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002, p. 95.
18
Segundo Maurício do Carmo: “Foi justamente o antibandeirante maloqueiro que
Adoniran criou com sua personagem Charutinho, no programa radiofônico da Record
História das Malocas (...)”. O autor lembra ainda a origem do típico visual de Adoniran:
“A personagem que conhecemos, com chapéu, gravata borboleta e humor finório
começou ali” 25.
Contudo, João Rubinato foi muitos. Foi ator em inúmeros filmes como no
premiado O Cangaceiro (1953); teve parcerias inusitadas com dois grandes poetas
brasileiros: Vinícius de Moraes (1930-1980), por intermédio de Aracy de Almeida
(1914-1988) e duas composições com Hilda Hilst (1930-2004), escritas para Adoniran
quando do encontro de ambos no Bar do Hotel Jaraguá.26 Teve contato com curiosos
compositores, como Peteleco. Diferente de Chico Buarque que, para driblar a Censura,
utilizou os pseudônimos Julinho da Adelaide e Leonel Paiva, Adoniran deu autoria a
algumas de suas canções ao seu cachorro Peteleco, desta vez para driblar as sociedades
representativas de classe. Outra composição que teve o nome de seu intérprete alterado
pelo mesmo motivo foi Samba do Arnesto, quando da inversão do nome de Nicola
(Caporrino) para “Alocin”.
Seus contatos foram os mais diversos, por exemplo, foi o compositor e
divulgador da música caipira em São Paulo, Raul Torres (1906-1970), o primeiro a
gravar uma música sua. Em 1935, Adoniran foi premiado no concurso de marchas em
São Paulo, com Dona Boa, parceria com J. Aimberê (1904-1944) e, apesar do
compositor considerá-la muito ruim, foi escolhida por um júri especializado, que contou
até mesmo com a participação de Camargo Guarnieri (1907-1993). Com Trem das Onze
teve uma canção com alcance internacional, mas antes disso foi, ironicamente, sucesso
25 CARMO, Maurício do. A Leitura da Modernidade Paulistana em Adoniran Barbosa. Disponível em: <http://www.estacio.br/graduacao/letras/trabalhos/docente/mauricio_adoniran.asp>. Acesso em: 30 jun. 2005.26 MUGNAINI JR., op. cit., p.118.
19
no Rio de Janeiro em 1965, quando recebeu um prêmio durante o Carnaval do Quarto
Centenário.
Voltando ao caso da Censura, no parecer da Guanabara, a canção Tiro ao
Álvaro, mais uma parceria de Adoniran com Osvaldo Moles, foi vetada com a mesma
justificativa da anterior. Em Brasília se cunhou a seguinte decisão: “Recomendamos a
LIBERAÇÃO da letra ‘Tiro ao Álvaro’, desde que corrigidas as palavras ‘tauba’ (para
TÁBUA), ‘artomove’ (para AUTOMÓVEL) e ‘revorve’ (para REVÓLVE)”.
Senduvidamente, como diria o Professor Pancrácio, personagem de Adoniran no filme
Candinho 27, esta breve passagem da Censura brasileira é a prova de que não houve
obscurantismo cultural durante a ditadura militar, afinal, o bom gosto e a língua
portuguesa foram preservados pelos nossos distintos e prestativos censores. Assim, a
despeito de ter sido gravada em 1960, por Adoniran, e em 1966, no disco Os
Maracatins, gravação feita já no país sob a batuta dos militares, foi vetada desta vez.
Apesar desta possibilidade de se alterar a letra de Tiro ao Álvaro para sua
gravação, a canção não foi incluída no disco de Adoniran de 1974, o que somente foi
feito em 1980, num belo dueto com Elis Regina, no disco Adoniran e Convidados. Esta
gravação contribuiu para que uma outra geração conhecesse a obra do compositor.
Segundo Ayrton Mugnaini Jr., a canção Samba do Arnesto também teria sido
vetada no mesmo período, visto que todas estas canções fariam parte do primeiro LP
individual de Adoniran, que até então só havia gravado compactos simples e duplos.
Apesar de não termos encontrado em Brasília tal canção vetada, afirma o autor que:
“Ficaram de fora ‘Samba do Arnesto’, devido à imoralidade dos erros de português, e
‘Um Samba no Bixiga’, lançado nos anos 1950 pelos Demônios, desta vez proibido só
por mencionar as sacrossantas palavras ‘polícia’ e ‘sargento’”.28 Já em 1985, o
27 Idem. Adoniran atuou em 18 filmes, como em Candinho, P&B, 95 min., 1953, dirigido por Abílio Pereira de Almeida.
20
inaugurador trabalho de Valter Krausche sobre Adoniran trazia esta mesma versão em
relação à Samba do Arnesto: “foi proibido por um decreto federal que não permitia o
uso ‘errado’ do vernáculo no rádio, na TV, etc.”. 29
O sotaque ítalo-paulista presente nas composições de Adoniran foi considerado
algo impróprio para o Brasil novo dos militares pós-1964. Nesse sentido, depreende-se
que o veto não é unicamente “lingüístico”, mas também de ordem política na medida
em que a linguagem utilizada pelos personagens encerra em si mesma uma dualidade.
Como diria Alcir Lenharo: “O sentido da transgressão se amplia quando a fala ‘errada’
visa diretamente atacar não somente a fala do instituído e sim os seus próprios
constituidores”. 30
Hoje pode soar irônico que o “péssimo gosto” e “a linguagem deseducativa”
sejam medidas para proibir qualquer que seja a obra artística, ainda mais pelo fato de ser
comum encontrarmos correções de censores com variados e elementares erros
ortográficos. Porém, não há nada engraçado em perceber que o já difícil trabalho do
compositor popular teve que esbarrar nos mecanismos do Estado autoritário de então.
Considerada uma das principais estruturas do edifício da nacionalidade, a
diversidade lingüística foi, ao longo dos séculos XIX e XX, vista como empecilho à
construção das nacionalidades. A cultura dominante se impôs, inclusive
simbolicamente, como depositária legítima de uma cultura nacional ou natural. Por
exclusão, objetivou naturalizar a idéia de que as culturas minoritárias eram ilegítimas:
“como no caso da pressão sobre os falantes de dialetos para julgarem o próprio discurso
incorreto”. 31 Para além disso, há ainda o preconceito em relação às variações
lingüísticas, aliás, a exemplo do caso aqui em apreço. Notadamente, no Brasil, como
diria Possenti, a variedade lingüística é o reflexo da variedade social. Nesse sentido, as
28 Ibidem, p.132.29 KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa: pelas ruas da cidade. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.79.30 LENHARO, op. cit., p. 53.
21
marcas sociais impressas nas falas ou imprimem o status, no caso das elites, ou o
estigma, no caso da fala das classes populares.32
Outro dado é que, quando da tentativa de gravação destas canções de Adoniran,
o Brasil vivia uma forte censura, que não era unicamente avessa ao discurso político.
Falar de um cotidiano de desigualdade social era também se contrapor ao discurso do
milagre econômico e do suposto desenvolvimento social trazido pelo Brasil dos
militares. No entanto, essa diversidade não era combatida pela população:
“Se o cosmopolitismo de São Paulo também revelava na diversidade das línguas e nos estranhos modos de misturar as falas, espanta-nos saber que o cidadão paulistano não se impressionava mais diante dessa diversidade, tratando-a como um fato corriqueiro, presente no dia-a-dia da cidade”. 33
A relação entre as canções de Adoniran e o cotidiano das classes populares foi
novamente percebida pela ditadura militar, desta vez no final da década de 1970.
Embora não tivesse uma militância política, Adoniran foi fichado no DEOPS –
Departamento Estadual de Ordem Política e Social, do Estado de São Paulo. Segundo
consta em quatro resumidas fichas, ele teria participado de atos públicos na cidade de
São Paulo: “03.77 – Fez parte dos shows programados p/ Fac. de Ciências Sociais da
USP”; “03/78 – S/Q. S/ movimento estudantil e setores eclesiásticos”; “23/03/79 – Inf.
327-B – Ref. part. de festa na Casa da Universitária” e, com a mesma informação
anterior: “23/03/79 – Rel. nº. 1009 – Ref. part. de festa de despedida na casa
Universitária”.
Ao abordar um dos documentos a que se remetem estas informações mais gerais,
chegamos a um relatório do DOPS/SP, de 12 de março de 1978, intitulado “Movimento
31 BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: UNESP, 2002, p. 123.32 POSSENTI, Sírio. Sobre o ensino de português na escola. In: O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2001.33 MORAES, José Geraldo Vinci de. A cidade de São Paulo: cultura e música popular no ar. História. São Paulo. nº. 17/8, 1998/1999, p. 27.
22
Custo de Vida” 34, em que o agente, após discorrer sobre o histórico deste movimento,
analisa o programa musical do ato público realizado no Pátio do Colégio
Arquidiocesano, na Vila Mariana. Neste espetáculo, diz o relatório: “constou da
apresentação de grupos musicais, que executaram músicas cantadas pelos assistentes,
tais como ‘Lavrador’ de Geraldo Vandré, ‘Saudosa maloca’ de Adoniran Barbosa (...)”.
Não há uma afirmação de que Adoniran tenha participado do ato, contudo era também
de praxe no DOPS a abertura de fichas para pessoas citadas em outras situações. Em
outros momentos, não tão freqüentes, a criação de fichas também surgia da ignorância
de quem as fazia, como ao elaborarem fichas de pessoas já mortas há décadas.
Aqui podemos perceber como a canção Saudosa Maloca, grande sucesso
radiofônico, foi colocada sob suspeita ao ser inserida num outro contexto, no caso, no
movimento contra a carestia. Esta é uma característica do cancioneiro de Adoniran, pois
expõe preocupações inerentes a amplas camadas da sociedade brasileira: o problema da
habitação, da fome, da exploração, da “força da grana que ergue e destrói coisas belas”
(como diria Caetano Veloso em Sampa). Porém, Adoniran não foi o único a fazê-lo.
São inúmeros os compositores que, entre as décadas de 1950 e 1960,
contribuíram na configuração de um diverso cancioneiro paulistano. Até mesmo no que
se denomina unicamente como “samba” haveria uma riqueza rítmica e temática
significativa. Somente neste campo, diferentes linhas do samba são perceptíveis na
produção de Adoniran Barbosa, Geraldo Filme, Paulo Vanzolini e Germano Mathias.
Estes compositores e intérpretes são também responsáveis, senão pela criação, pela
divulgação de um samba diferente do que se produziu no Rio de Janeiro e na Bahia.
Diferente também é a construção de uma memória dos espaços de difusão e de
produção da canção popular. A maioria dos trabalhos sobre a boêmia e sua relação com
34 Documento 50-C-0-6862, citado na ficha de Adoniran Barbosa, Arquivo do DEOPS, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
23
a música popular dão conta deste universo no Rio de Janeiro. A cidade de São Paulo foi,
de certa maneira, esquecida não apenas pela historiografia, mas também por outras
produções de cunho jornalístico e memorialístico. Esta lacuna também contribuiu na
elaboração de uma imagem da cidade de São Paulo pouco afeita aos prazeres noturnos
dos cafés, bares, restaurantes e boates da cidade. Afinal, o paulista dormia cedo e, o
pior, “pensando nas coisas que no outro dia ia fazer”, ou seja, trabalhar. Portanto, muito
diferente da imagem que se construiu de um Rio de Janeiro afeito à cultura, às artes e à
boêmia. Esta visão tem sido questionada em relação às décadas de 1950 e 1960, por
exemplo, pelo jornalista Hélvio Borelli, em seu recente livro Noites Paulistanas:
história e revelações musicais das décadas 50/60, através de uma São Paulo que
aparece muito mais efervescente do que se imaginava.
Um dos mais importantes bares paulistas foi o Jogral. Inaugurado em 1964, pelo
compositor Luís Carlos Paraná (1932-1970), este bar foi o endereço preferido de
inúmeros jornalistas, artistas e músicos locais e de passagem pela cidade. A proposta do
lugar, segundo o publicitário Marcus Pereira (morto em 1981), acionista simbólico com
1% do controle do Jogral, era trazer canções brasileiras “especialmente de samba e de
gêneros ‘esquecidos’ ou ‘menosprezados’ como o choro e a música caipira [cuja]
principal atração da casa era o próprio Luís Carlos Paraná, tendo no repertório
composições suas e de Paulo Vanzolini”.35 Certamente, a experiência no Jogral foi
decisiva para que Marcus Pereira viesse a inaugurar em 1967 uma seqüência de discos e
a posterior criação da sua gravadora Marcus Pereira. Este foi um empreendimento ímpar
na história da indústria fonográfica nacional e um inovador projeto de divulgação e
gravação de canções populares, a partir de uma determinada visão do que seria o mapa
musical do Brasil.
35 SAUTCHUK, João Miguel. O Brasil em Discos: Nação, Povo e Música na Produção da Gravadora Marcus Pereira. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/ Universidade de Brasília, 2005. (Dissertação de Mestrado), p. 26.
24
Em relação ao cancioneiro de Adoniran, surgem rememorações pontuadas por
personagens não muito presentes nas canções populares. É exposta a história de gente
comum, como aquela classe lembrada na década de 1950 pelo livro Quarto de Despejo,
da favelada Carolina Maria de Jesus: “A rigor, no livro de Carolina encontra-se boa
parte de uma cultura urbana que, tanto naqueles anos cinqüenta como em nossos dias,
amplia-se cada vez mais (...) é a cultura da angústia e da tragédia humana”.36
A mineira Carolina Maria de Jesus37 viveu uma verdadeira epopéia: de favelada
à (re)conhecida escritora. Em seu livro Quarto de Despejo, descreve toda a tragédia de
mãe, pobre, favelada e desempregada. A obra é ainda um relato contemporâneo, remete
às agruras daqueles que vivem nas favelas, nas ruas, em condições desumanas por toda
a periferia. A modernidade paulista tem seu contraponto em inúmeros trechos desta
obra, como no natal de 1959: “eu fui fazer compras, porque amanhã é dia de ano.
Comprei arroz, sabão, querosene e açúcar”.38 Era um tempo em que não era necessário
ter saudade do Lampião de Gás, retratado na canção de Zica Bergami, pois era ainda a
realidade de inúmeros lares pobres de então.
O querosene comprado para iluminar a casa remete também a algumas canções
de Adoniran, como em Acende o candieiro: “alumeia o terreiro, ó nega/ vai avisar o
pessoal/ que hoje vai ter ensaio geral/ vai depressa maria/ antes que fique tarde/ daqui a
pouco escurece (....) e passar pelo armazém/ trazer um pacote de vela/ e um litro de
querozene (...)”. Numa entrevista de outro ícone da canção paulistana, Paulo Vanzolini,
autor de clássicos como Ronda, Volta por Cima e Praça Clóvis, entre outras, o
compositor assevera que Adoniran compôs uma imagem ímpar do que seria a periferia:
36 CALDAS, Waldenyr. Luz neon: canção e cultura na cidade. São Paulo: SESC/ Stúdio Nobel, 1995, p. 111.37 Apesar de pouco conhecidas, Carolina também compôs algumas canções, como Vedete da Favela, Rá Ré Rí Ró Rua e Marcha do Pinguço. Tais marchinhas foram recentemente interpretadas pela cantora Verônica Ferriari no programa televisivo Sr. Brasil, apresentado por Rolando Boldrin, na TV Cultura, exibido em 11 de outubro de 2005.38 JESUS. Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Círculo do Livro, 1990, p. 178.
25
“‘Inês saiu pra comprar pavio pro lampião’. Numa cidade como São Paulo, alguém sai
pra comprar pavio por lampião. Quer dizer, você vê o poder de síntese que tem um
negócio desses?” 39
Carolina de Jesus exerceu ainda uma crítica ao seu cotidiano e aos políticos,
como na irônica passagem: “Eu não gosto do Kubitschek. O homem que tem um nome
esquisito que o povo sabe falar, mas não sabe escrever”. 40 Com a publicação e a boa
aceitação do público pôde comprar uma casa, ser convidada para palestras, ser recebida
por celebridades. Porém, perde tudo ao não conseguir a mesma vendagem nos livros
que se seguiram, vindo a falecer na pobreza. A essência de sua obra pode ser entendida
em mais uma de suas frases célebres: “Eu não escrevo como quem manda flores”. 41
Essa permanência em condições financeiras difíceis foi também o destino de
muitas gerações de compositores populares no Brasil. Inúmeros relatos de abandono se
repetem na história da música popular brasileira. São ex-cantores e cantoras do rádio
que vivem em subúrbios, em asilos, em hospitais, em esquecimento. Algumas
campanhas chegam a ser feitas para o pagamento de despesas hospitalares destes
antigos astros e estrelas do rádio. No samba, a história é mais recorrente ainda. Além de
muitos deles serem reconhecidos tardiamente pela crítica e pelo público, enfrentam as
mesmas péssimas condições de vida a que são submetidos os moradores dos subúrbios.
Por fim, a cidade de São Paulo, que em inúmeros aspectos pouco se diferencia
de inúmeros centros urbanos, foi retratada distintamente pelos dois compositores. Suas
composições, se não são “retratos” da cidade, são visões de uma São Paulo que nasce e
renasce a cada dia, em que a modernidade e o atraso são como irmãos siameses, que não
se aceitam, mas que têm na sua origem a explicação de uma existência comum e
39 In: JUBRAN, Omar. Piratininga: do Pau Brasil à Paulicéia Desvairada, Rádio USP, parte IV. Disponível em: <http://www.radio.usp.br/especial.php?id=7>. Acesso em: 23 mai. 2005.40 JESUS, op. cit., p.70.41 Idem, p.182.
26
perversa. Esta condição histórica impõe uma coexistência conflituosa e contraditória do
moderno com o arcaico, da riqueza com a pobreza, do condomínio de luxo ao lado das
favelas, do camelódromo frente aos shoppings.
É a São Paulo dos contrastes que reúne as pequenas e as grandes tragédias
humanas, mas que também viu nascer a altivez humana e a alegria, refletidas, por
exemplo, nos aspectos positivos cantados por Billy Blanco e Adoniran Barbosa. A
representação da São Paulo ideologizada, bandeirante, locomotiva do país ainda
reverbera na atualidade. Contudo, ao se falar na cidade não há como não se reportar a
Adoniran, a força de sua poética imprimiu à metrópole seus olhares e ficou gravada na
memória das ruas. Este compositor popular soube muito bem traduzir a dualidade da
tristeza e da alegria paulistana em suas canções, como se percebe na sua fala que
antecede a gravação de Bom dia Tristeza42: “A tristeza é um bichinho, que pra ruer tá
sozinho, e como rói a bandida, parece rato em queijo parmesão”.
Notas:
42 Parceria com Vinícius de Moraes presente no disco Adoniran Barbosa e Convidados. EMI-Odeon, 1980. 33 rpm, stereo, nº 31C 064422868D. (Relançado em CD com o título Adoniran Barbosa, pela EMI, 2002, nº. 583582 2).
27