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A configuração humana é falha quando o assunto é reconhecimento das virtudes e da obra de uma pessoaDaniel Freire Raimundo. Nome popular. Comum a milhares de brasileiros. Do traço nominal presente em nossa população, emergiu um Raimundo que sintetizava a fibra, pureza, obstinação e magnitude de um profissional brasileiro posto em escala decrescente de valorização e que está atrelado a uma profissão ilustre e fundamental em nossa constituição social. Esse Raimundo era ficcional, porém, parecia possuir vida própria no real, tamanha representatividade alcançada. Na figura dele, nas mensagens transmitidas, encontrávamos traços louváveis presentes na composição daqueles seres humanos eminentemente devotados na humildade e no propósito do bem coletivo. E justamente nessa característica tão incomum de ser benfeitor, bem como, de amar a esmerada e árdua tarefa de propiciar conhecimento ao outro, é que ele conseguia transpor-se da dimensão puramente fantasiosa. Raimundo era dentre tantos outros personagens uma primorosa concepção de um artista estelar que com sua sapiência, técnica apuradíssima e intensidade criativa, conquistou o seu lugar de titular no seleto time dos gênios. Não pretensos gênios, e sim, aqueles gênios de verdade que vêm a surgir, um, há cada mil anos. Raimundo Nonato, criatura do criador, Chico Anysio. Lamentavelmente, Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho, nos deixou e foi brilhar em outros planos. Foram 80 anos de intensa vivência pessoal e cerca de 65 de atuação profissional irretocável. Criador de 209 personagens incrivelmente distintos na caracterização física e vocal, era autêntico, indiscutivelmente. Não existia nenhum personagem que se parecesse com um outro e viesse nos dar a impressão de desejo, obsessão, do autor de criar, para alimentar o seu ego, alcançando através do quantitativo algum tipo relacional de recordes. Chico buscou qualidade durante a sua vida inteira. Desses 209 personagens criados, nenhum outro teve importância social tão acentuada quanto Raimundo Nonato, o professor. Chico teve a sagacidade de criar nos anos 50 inicialmente para o Rádio esse personagem que viria a representar tão bem o arquétipo do profissional que é juntamente com os pais - o grande responsável em ensinar, abrir o pensamento, desenvolver o senso crítico e realinhar o mundo através do mergulho nos problemas sociais, formando assim cidadãos responsáveis e participativos. Esses são os Professores, com “P” maiúsculo. Sim, os verdadeiros professores. Porque, infelizmente, existem alguns que não exercem nem a metade do que deveriam ter como obrigação profissional. Envolvidos por uma mentalidade medíocre, na qual se compreende o magistério aquém do que ele se constitui em sua essência, dão as costas ao exercício substancial da profissão. Seguem somente um rito, um planejamento mortoque não tem

Artigo chico

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Page 1: Artigo chico

“A configuração humana é

falha quando o assunto é

reconhecimento das

virtudes e da obra de uma

pessoa”

Daniel Freire

Raimundo. Nome popular. Comum a

milhares de brasileiros. Do traço

nominal presente em nossa população,

emergiu um Raimundo que sintetizava a

fibra, pureza, obstinação e magnitude de

um profissional brasileiro posto em

escala decrescente de valorização e que

está atrelado a uma profissão ilustre e

fundamental em nossa constituição

social.

Esse Raimundo era ficcional, porém,

parecia possuir vida própria no real,

tamanha representatividade alcançada.

Na figura dele, nas mensagens

transmitidas, encontrávamos traços

louváveis presentes na composição

daqueles seres humanos eminentemente

devotados na humildade e no propósito

do bem coletivo. E justamente nessa

característica – tão incomum – de ser

benfeitor, bem como, de amar a

esmerada e árdua tarefa

de propiciar

conhecimento ao outro, é

que ele conseguia

transpor-se da dimensão

puramente fantasiosa.

Raimundo era – dentre

tantos outros

personagens – uma primorosa

concepção de um artista estelar que com

sua sapiência, técnica apuradíssima e

intensidade criativa, conquistou o seu

lugar de titular no seleto time dos

gênios. Não pretensos gênios, e sim,

aqueles gênios de verdade que vêm a

surgir, um, há cada mil anos.

Raimundo Nonato, criatura do

criador, Chico Anysio.

Lamentavelmente, Francisco Anysio de

Oliveira Paula Filho, nos deixou e foi

brilhar em outros planos. Foram 80 anos

de intensa vivência pessoal e cerca de

65 de atuação profissional irretocável.

Criador de 209 personagens

incrivelmente distintos na

caracterização física e vocal, era

autêntico, indiscutivelmente. Não

existia nenhum personagem que se

parecesse com um outro e viesse nos

dar a impressão de desejo, obsessão, do

autor de criar, para alimentar o seu ego,

alcançando através do quantitativo

algum tipo relacional de recordes. Chico

buscou qualidade durante a sua vida

inteira.

Desses 209 personagens criados,

nenhum outro teve importância social

tão acentuada quanto Raimundo

Nonato, “o professor”. Chico teve a

sagacidade de criar nos anos 50 –

inicialmente para o Rádio – esse

personagem que viria a representar tão

bem o arquétipo do profissional que é –

juntamente com os pais

- o grande responsável

em ensinar, abrir o

pensamento,

desenvolver o senso

crítico e realinhar o

mundo através do

mergulho nos

problemas sociais, formando assim

cidadãos responsáveis e participativos.

Esses são os Professores, com “P”

maiúsculo. Sim, os verdadeiros

professores. Porque, infelizmente,

existem alguns que não exercem nem a

metade do que deveriam ter como

obrigação profissional. Envolvidos por

uma mentalidade medíocre, na qual se

compreende o magistério aquém do que

ele se constitui em sua essência, dão as

costas ao exercício substancial da

profissão. Seguem somente um rito, um

planejamento “morto” que não tem

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inovações e que se estabelece como

corroído pelo sistema e inócuo de

capacidade de transformar. Aos

diferenciados – quando deveriam ser

comuns - professores é que direciono

essas linhas e por intermédio do

personagem inesquecível do Chico

Anysio – perfeito defensor da classe –

expresso toda a minha admiração.

Pelas salas de aula do ensino

fundamental e médio – penso eu que a

condição de professor universitário é

um pouco melhor – em qualquer parte

do Brasil, espalham seu amor pelo

ofício numa emocionante e comovente

entrega e focam, nessa dedicação

ilimitada, a sua conduta. E pensar que

enquanto esses seres louváveis atuam,

rombos milionários espocam por todos

os cantos do país e políticos, que se

assemelham a vermes, metem no bolso

o dinheiro que deveria ser destinado a

Educação. O bordão “E o salário...”,

numa referência aos contracheques

esvaziados dos professores, deu voz à

classe e caiu no gosto popular.

Raimundo Nonato parecia

alguém muito próximo a todos nós.

Nele reconhecíamos aqueles bons

professores que tivemos. Utilizei a

figura do personagem Raimundo

Nonato para enaltecer essa classe

profissional e, em especial, reverenciar

àquele que foi professor das artes. Não

foi só mais um artista. Chico Anysio foi

o maior artista brasileiro do século XX

– e um dos maiores do mundo. A

configuração humana é falha quando o

assunto é reconhecimento das virtudes e

da obra de uma pessoa. Precisa que uma

figura saia de cena, deixe essa vida,

para que somente muito depois possa ter

o seu valor aferido. Na verdade o tempo

é que trata de “pôr os pontos nos is”. A

posteridade então se encarregará, ao

revisitar a obra desse gênio, de, em

êxtase, aplaudir e enaltecer, como

deveria ter sido feito bem mais vezes

por nós, Chico Anysio.

Além das centenas de

personagens criados, é importante

destacar que Chico Anysio

desempenhou muito bem a capacidade

de ser amigo. Durante toda a sua

caminhada se preocupou com o outro.

Socorria cada comediante esquecido e

sem a luz dos holofotes – alguns

passando pesadas privações – com a

mesma desenvoltura que tinha para criar

personagens. Trouxe à baila na sua

Escolinha do Professor Raimundo

nomes como os saudosos Antônio

Carlos, Walter D’Ávila, Grande Otelo,

Costinha, Rogério Cardoso, Rony

Cócegas. Tinha acentuado faro artístico

e impulsionou as carreiras de talentos

como Cláudia Jimenez, Tom

Cavalcante, Heloisa Périssé, Ingrid

Guimarães, Fafy Siqueira, entre outros,

que hoje nos excitam o sorriso. Era um

ser iluminado que se alegrava mais em

ser “escada” – fazer o outro se destacar

– do que se colocar como o centro da

cena cômica. O professor Raimundo foi

um claro exemplo disso. Levantava uma

situação para que um outro personagem

viesse a brilhar e tinha com isso a

intenção de dar visibilidade ao

companheiro de cena.

No final de sua vida, esquecido e

posto na geladeira pelos executivos da

emissora à qual ele ajudou a se

consolidar, e por uns 40 anos emprestou

o seu talento, Chico visivelmente se

mostrava triste em ter sido preterido na

grade de programação pelos humoristas

mais jovens. O formato televisivo já não

mais o comportava, era isso que se

deduzia passar na cabeça dos diretores

globais. Pensamento tosco, pequeno,

porque o talento independe de idade e

Chico exalou talento até o último dia de

sua vida.

"O artista não exprime as suas

emoções. O seu mister não é esse.

Exprime, das suas emoções, aquelas que

são comuns aos outros homens."

Seguindo a esta frase de Fernando

Pessoa, Chico soube dar fluidez aos

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sentimentos emanados do povo

brasileiro.

Você foi dez, foi mil, Chico. Eu,

esse – humilde - aluno da vida se

compraz imensamente em ter te visto

em cena, em ter percebido a sua rica

construção, e por ter em mente a

compreensão de quão vultosa foi a sua

contribuição para a cultura desse país,

me alegro. Agradecendo do fundo do

coração, reafirmo que muito aprendi

contigo, com seus personagens e, com

enorme carinho, guardo para sempre na

minha galeria de heróis o personagem

que só ótimas lembranças deixou.

Raimundo Nonato, o abençoado

professor!