17
MIA COUTO E A CULTURA MOÇAMBICANA: a simbologia crítica na obra A Varanda do Frangipani ANA PAULA CAVALCANTI VIEIRA 1 1 – INTRODUÇÃO A realidade africana foi, por muito tempo, ignorada ou tratada com descaso pelo mundo ocidental. A história da África diversas vezes foi estudada apenas como um elemento da história de outros países e sua cultura e crenças, consideradas sob a ótica do Ocidente, eram esquecidas ou reputadas como fantasias sem valor. Percebe-se uma crítica constante, reveladora de que a desvalorização da cultura africana diante da europeia, ou mesmo da americana, está também presente entre os próprios africanos, que, por vários fatores, tem-se esquecido de suas raízes, assimilando o “modo de vida branco” e tomando-o como superior. Este artigo, no ensejo de juntar-se à gama de estudos que têm expandido o conhecimento da cultura africana, volta-se para a literatura moçambicana – através de seu representante Mia Couto –, para tratar da desvalorização das tradições africanas por parte de seus nativos e da necessidade de resgate da identidade cultural por parte das etnias que compõem Moçambique. Por intermédio do livro A varanda do frangipani (1996), o autor faz uso de alguns elementos simbólicos para conclamar seus conterrâneos ao resgate e à manutenção do patrimônio cultural de Moçambique, na busca da consolidação de uma identidade nacional em vias de construção. Alguns destes elementos, assim como seus contextos histórico e cultural, são o objeto de discussão deste trabalho. 2 – MOÇAMBIQUE: HISTÓRIA E CULTURA Para entender a relação entre os fatos históricos e a cultura moçambicana, aplicando-a à Literatura, trabalhar-se-á com a noção de cultura apresentada pelo autor moçambicano Luis Bernardo Honwana: ________________ 1 Este artigo é fruto da monografia “A Varanda Do Frangipani: simbologia crítica de Mia Couto sobre a cultura moçambicana”, defendida em 2008, sob a orientação da Profa. Dra. Márcia Manir Miguel Feitosa.

Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

MIA COUTO E A CULTURA MOÇAMBICANA: a simbologia crítica na obra A Varanda do Frangipani

ANA PAULA CAVALCANTI VIEIRA 1

1 – INTRODUÇÃO

A realidade africana foi, por muito tempo, ignorada ou tratada com descaso pelo

mundo ocidental. A história da África diversas vezes foi estudada apenas como um elemento da

história de outros países e sua cultura e crenças, consideradas sob a ótica do Ocidente, eram

esquecidas ou reputadas como fantasias sem valor. Percebe-se uma crítica constante, reveladora

de que a desvalorização da cultura africana diante da europeia, ou mesmo da americana, está

também presente entre os próprios africanos, que, por vários fatores, tem-se esquecido de suas

raízes, assimilando o “modo de vida branco” e tomando-o como superior.

Este artigo, no ensejo de juntar-se à gama de estudos que têm expandido o

conhecimento da cultura africana, volta-se para a literatura moçambicana – através de seu

representante Mia Couto –, para tratar da desvalorização das tradições africanas por parte de seus

nativos e da necessidade de resgate da identidade cultural por parte das etnias que compõem

Moçambique. Por intermédio do livro A varanda do frangipani (1996), o autor faz uso de alguns

elementos simbólicos para conclamar seus conterrâneos ao resgate e à manutenção do patrimônio

cultural de Moçambique, na busca da consolidação de uma identidade nacional em vias de

construção. Alguns destes elementos, assim como seus contextos histórico e cultural, são o objeto

de discussão deste trabalho.

2 – MOÇAMBIQUE: HISTÓRIA E CULTURA

Para entender a relação entre os fatos históricos e a cultura moçambicana, aplicando-a

à Literatura, trabalhar-se-á com a noção de cultura apresentada pelo autor moçambicano Luis

Bernardo Honwana:

________________

1 Este artigo é fruto da monografia “A Varanda Do Frangipani: simbologia crítica de Mia Couto sobre a cultura moçambicana”, defendida em 2008, sob a orientação da Profa. Dra. Márcia Manir Miguel Feitosa.

Page 2: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

Cultura como base comum do ser e estar de uma comunidade e, por isso, o chão onde vão ancorar todas as criações e projecções humanas – incluindo esta forma particular que é a literatura. (HONWANA, 2006, p. 18)

Estudar a literatura em Moçambique envolve uma observação de sua formação

histórica e, consequentemente, cultural. Portanto, o entendimento da cultura como “base comum”

e “âncora das criações humanas”, aplicada à situação atual de Moçambique, passa pelo período

de colonização portuguesa e seus efeitos na sociedade moçambicana, já que o processo de

colonização carrega em si, intrínseca e necessariamente, a dominação ideológica e cultural.

A estratégia utilizada pelos colonizadores era arrancar do povo dominado sua

identidade cultural e subjugá-lo aos padrões da metrópole. O meio encontrado por Portugal para

conseguir fazer isso em Moçambique foi disseminando a ideia de que a cultura africana era

inferior, levando os colonizados a desistirem de suas raízes e buscarem abrigo nos padrões

portugueses que, em tese, lhe garantiriam status ou acesso a um mundo “superior”.

Como parte dessa estratégia, então, pregava-se o ideal de igualdade entre os

colonizados e os colonizadores, para que estes fossem convencidos de que poderiam tornar-se

como aqueles se renunciassem ao seu patrimônio cultural. O que, se via, no entanto, era ser esse

um argumento falacioso, com o intuito único de estabelecer a dominação, perpetuando as

diferenças, já que o colonizado nunca seria efetivamente reconhecido como igual pelo

colonizador.

Essa política, chamada “política de assimilação”, garantia que atividades criativas

como a literatura fossem reduzidas – já que a cultura metropolitana estava em vias de ser

assimilada – e direcionada à disseminação da superioridade do colonizador em meio aos poucos

autóctones alfabetizados – os “assimilados” – que, em sua maioria, faziam parte das elites.

Como um dos maiores símbolos culturais, as línguas existentes em Moçambique

sofreram os efeitos da assimilação, pois a maior e mais forte ferramenta adotada pela metrópole

foi a imposição da língua portuguesa. Uma língua carrega consigo grande parte da cultura de seu

povo, já que, por exemplo, a maneira de pensar de um povo pode se evidenciar na estrutura

lógica e sintática de suas construções linguísticas; e as ideias e pontos de conexão entre elas se

mostram na construção do léxico e nos campos semânticos. A intenção latente em se privar um

povo de sua própria língua é a de suprimir o passado, desconstruir as tradições e roubar o

principal meio de autoafirmação.

Page 3: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

Com elas [as línguas], desaparece a memória de factos, experiências, tradições, sistemas de conhecimento e valores, e até de criações como a literatura oral – de que as línguas são o repositório e o veículo. O desaparecimento de uma língua é a morte da cultura de que ela é matriz e, ao mesmo tempo, o testemunho mais visível e permanente. (HONWANA, 2006, p. 19)

De fato,“a empresa colonial levou muita coisa, mas deixou outras. Trata-se pois de

aproveitar a herança, conquistar seu uso.” (CHAVES, 2004. p. 152). A colonização roubou da

população muito de sua cultura, mas disponibilizou a cultura colonial, principalmente sua língua,

para ser utilizada e aproveitada. A língua portuguesa torna-se, pois, instrumento de registro de um

povo tradicionalmente oral – como o africano – e uma porta de acesso ao mundo ocidental, que

agora pode ouvir as vozes antes limitadas e restritas à compreensão local. Nesse contexto, a partir

da possibilidade de domínio da língua portuguesa e seu uso para a manifestação de opiniões

críticas apontadas pelos intelectuais, inicia-se uma busca intensa pela identidade nacional, por um

conjunto de valores e símbolos que expressem a essência do país.

Como sinal de subversão à dominação colonial, passa-se a defender um retorno às

origens, às tradições a que foram levados a renunciar, aos valores e crenças existentes em

Moçambique antes da interferência portuguesa. Dessa forma, apesar de Moçambique já ser um

país independente desde 1975, o movimento de revalorização da tradição moçambicana é uma

tentativa de libertação real do domínio português, retomando as rédeas para a reconstrução de um

Moçambique autêntico e coerente.

3 - A LITERATURA EM MOÇAMBIQUE

Com uma história marcada por séculos de exploração e, após a independência

conquistada em uma violenta guerra civil, Moçambique vê-se capaz de produzir uma literatura

consciente e responsável por mobilizar a sociedade em direção ao seu crescimento como nação.

O surgimento da literatura se dá, então, como o desenvolvimento de uma concepção

de linguagem até então ausente da realidade moçambicana – a escrita - , uma vez que o país era

antes tradicionalmente oral, e se estabelece como um instrumento de luta em favor da ânsia de

reestruturação e independência que cresce em Moçambique. Opta-se, então, pela poesia, em

decorrência de sua proximidade com a oralidade pelo fato de, nas tradições orais, a poesia

Page 4: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

representar um meio de perpetuação devido ao seu poder de facilitar a memorização. A métrica, o

ritmo e a rima contribuem para enriquecer e diversificar, ao mesmo tempo em que facilitam o

registro na memória.

Nas culturas ágrafas, o poder mnemônico da poesia é que enriquece a literatura com suas possibilidades de permanência e transformação. O patrimônio cultural é ao fim o que se mantém tanto na modalidade oral quanto na modalidade escrita da linguagem, e isso, pelo fio interminável da memória. (MAQUÊA, 2005, p. 178)

A partir dessa literatura nascente, Moçambique passa a ter histórias próprias, contadas

e registradas sob o ponto de vista africano e não mais da Metrópole. Começa a existir uma

possibilidade concreta de expansão da “moçambicanidade” e de espaços para discussões sobre o

presente e o futuro do país: “Instrumento de afirmação da nacionalidade, a literatura será também

um meio de conhecer o país, de mergulhar num mundo de histórias não contadas, ou mal

contadas, inclusive pela literatura colonial.” (CHAVES, 2004, p. 154).

Essa literatura, nascida após a independência, configura uma forma de afirmação

diante do ex-colonizador, já que faz uso do instrumento principal de dominação – a língua – para

desligar-se do domínio colonial e afirmar-se enquanto nação. Institui-se, então, o desafio de

subverter a ordem colonial e criar um espaço para que os moçambicanos se expressem, se

revelem e registrem suas raízes. Diante desse desafio, a língua portuguesa é o meio de acesso da

tradição moçambicana – oral – ao registro escrito.

O desenvolvimento dessa literatura não se dá, todavia, de forma simples. Antes, o

escritor se depara com uma complexa reflexão: suas responsabilidades de escritor e a relação

entre a literatura e essa utopia vibrante e ainda imprecisa que é a nacionalidade. José Luis Cabaço

(2004) defende que, confrontados com esse dilema, os escritores seguem três caminhos: a)

produzir uma literatura colonial, eurocêntrica, alienada e descritiva de uma realidade política e

cultural que não buscou compreender. Tais escritores vão-se junto com a sociedade colonial; b)

basear-se na própria experiência europeizada, buscando referências que consideram universais,

mesmo se circunscritas à cultura ocidental. Não louvam o colonialismo, mas, se não são

aclamados, recordam com nostalgia os tempos em que sua manifestação anticolonialista era parte

de uma sociedade que entendiam; ou c) tentar retratar a terra e os homens de que se descobriram

parte, para com eles interagirem como escritores e como cidadãos socialmente ativos,

Page 5: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

reconstituindo a História por meio da escrita.

Tomando como referência o terceiro tipo de escritor pensado por Cabaço (2004),

instala-se na composição literária o retrato de uma cultura diversificada, pluralizada pelas vozes

moçambicanas, que não podem ser resumidas em um estereótipo, como se fez nos tempos de

colonialismo, mas que, em suas diferenças, compõem a unidade do povo de Moçambique.

3.1 - Escrita x Oralidade

O dilema originado do confronto entre a oralidade – que carrega em si as tradições

africanas – e a escrita – modalidade de expressão associada à violência cultural que significou a

colonização – permeia toda a formação literária moçambicana, pois a escrita surge como parte de

um contexto de transformações trágicas. Para entender melhor as diferenças entre a escrita e a

oralidade, José Luis Cabaço explica:

A literatura(...) é uma arte que, situada fora do universo da sociedade oral, traz em si elementos que, com maior ou menor intensidade, exprimem superioridade. O seu encontro com a tradição oral é complexo. A oratura não é só a palavra falada. O contador de estórias é tão mais artista quanto mais rica forem as expressões, os gestos, as interjeições, as entoações da voz e os silêncios. (CABAÇO, 2004, p. 68)

Fernanda Cavacas resume muito bem o confronto entre oralidade e escrita em

Moçambique, lembrando que essa dualidade é agravada pela divergência entre as línguas, ou

seja, além das diferenças intrínsecas entre o oral e o escrito, em Moçambique são expressões de

línguas distintas, o que complica ainda mais a transposição da tradição oral – em línguas

africanas, com sistemas semânticos, lógicos e de valores característicos – para a representação

escrita –, realizada em língua portuguesa. Como se vê:

Entretanto, a importância da oralidade africana faz-se sentir ainda mais no caso da literatura, porque muitas vezes a(s) língua(s) natural(is) sobre que se criam os sistemas modelizantes oral e escrito é(são) diferente(s). Acresce a razão política – por vezes de aceitação difícil – de ser à (antiga) língua do colonizador que é dada a função de traduzir emoções, conflitos e aspirações, numa lógica de construção de um projecto de identidade nacional. (CAVACAS, 2006, p. 69)

Page 6: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

Esse conflito, portanto, precisa ser analisado sob o ponto de vista de que as duas

vertentes englobam conceitos como tradição/modernidade que não podem mais ser entendidos

como substantivos específicos da colônia e da metrópole. Para que Moçambique se estabeleça no

mundo atual, precisa ser capaz de promover o diálogo entre os dois conceitos, mantendo traços da

tradição no desenvolvimento da modernidade.

A partir da constatação desses dilemas, os escritores moçambicanos procuram

soluções, iniciando a literatura nacional. Com suas produções permeadas de poesia – em virtude

de sua aproximação da oralidade –, produzem primeiramente contos, pois parecem ter um vínculo

maior com as narrativas orais que compunham as tradições. A literatura, então, evolui, passando

a fazer uso do romance, adaptando-o aos moldes exigidos pelo contexto moçambicano.

Uma das maneiras encontradas pelos autores africanos de inserir a oralidade no

romance é tratando a língua falada como um traço da cultura, o que torna possível transportá-la,

tal como é falada, para a escrita, num processo dinâmico.

Observada, pois, a interação entre oralidade e escrita, torna-se possível articular

tradição e modernidade nas linhas produzidas, de maneira a defender, incentivar e propagar a

identidade plural de Moçambique, que se constrói a cada frase e se estabelece a cada novo

diálogo entre o antigo e o novo.

3.2 - Mia Couto

Dentro do contexto de construção da literatura moçambicana, nasce António Emílio

Leite Couto – Mia Couto –, um autor filho de portugueses, natural da Beira, capital da província

de Sofala. Um moçambicano consciente e empenhado em construir uma literatura própria de

Moçambique, para extrair das dificuldades e dos infortúnios do país o caminho para um futuro

consciente, mas esperançoso.

A linguagem característica, as palavras criadas por Mia Couto, todas as

especificidades de sua produção escrita têm sido vistas como parte de uma construção literária

feita para revelar, trazer às vistas a Moçambique existente. Não se encontra, em meio às palavras

de Mia Couto, uma visão distorcida pelas emoções ou pelas crenças em nenhum sentido. Não há

um embate entre bem e mal. O que se observa é um poder de análise crítica e consciente da

realidade de seu país e uma proposta de avanço baseada na compreensão dos limites e

Page 7: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

possibilidades de Moçambique. Assim, é possível detectar uma ideia de conciliação entre

tradição e modernidade que pode ser explicada pelo contexto de conflito entre as etnias de seu

país e ao mesmo tempo fortalecimento da modernidade em que se insere a sua produção.

A composição de sua obra é feita a partir de figuras representativas do povo de

Moçambique, que importam consigo suas marcas, suas linguagens. Faz uso de formas de

expressão diferentes, “experiências estéticas criativas e temáticas alternativas ao império cultural

estabelecido pelo Ocidente” (MAQUÊA, 2005. p. 169), compondo um mosaico das

características étnicas e culturais do país.

A escrita de Mia Couto assemelha-se à do brasileiro Guimarães Rosa e à do angolano

Luandino Vieira, criando palavras e expressões, importadas da oralidade ou do contexto de

espontaneidade da fala para preencher a escrita. Por isso é capaz de reescrever Moçambique de

forma nova e criativa, revigorando sua literatura por meio de trocadilhos e jogos poéticos feitos

ao longo do texto, de maneira a transportar para sua obra traços da oralidade do povo

moçambicano.

Essa marcação da fala popular na produção literária é o resultado de uma apropriação

efetiva da língua portuguesa pelo autor, que apresenta ao leitor uma “língua moçambicanizada,

imbuída de culturas várias, força de coesão e de construção de uma matriz cultural

moçambicana.” (CAVACAS, 2006, p. 57). Essa “língua moçambicanizada” resulta da ousadia do

escritor que não hesita em esquecer as imposições normativas da gramática portuguesa trazida

pelos colonizadores a fim de alcançar efeitos poéticos originais. Mas essa característica não pode

ser interpretada como um processo de criação meramente linguístico ou estilístico. Envolve muito

mais intenções e isto se evidencia no fato de construir tramas bem elaboradas, ricas em sentidos

e, principalmente, em ideologias e representações simbólicas da visão crítica que se pretende

despertar no leitor. Assim, mais do que uma mera criação linguística, “sua escrita insere na

estrutura lingüística o conflito existente entre a língua portuguesa e a visão de mundo das culturas

moçambicanas, bem como a tipologia discursiva das línguas étnicas” (ALBERGARIA;

SANTOS, 2006, p. 96), enchendo o lirismo de sua obra de uma profunda consciência social.

Percebe-se que a literatura de Mia Couto entrelaça problemas passados e presentes,

no intuito de construir um Moçambique dinâmico e capaz de se reconhecer enquanto nação: “E é

o que faz, numa luta entre a nostalgia de um mundo distante e a fé empenhada na cultura do seu

mundo da infância, entre um passado a que não renuncia e o presente que quer diferente e que ele

Page 8: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

próprio também vai moldando.” (CAVACAS, 2006, p. 65).

Assim, Mia Couto busca resgatar o passado, não como fonte pura da identidade

moçambicana, mas como base para a consolidação do que é e está se tornando o país.

4 - A VARANDA DO FRANGIPANI: SIMBOLOGIA CRÍTICA

A produção de Mia Couto pode ser observada como uma interação entre prosa e

poesia, o que contribui para se entender a presença de símbolos em sua obra, já que “a poesia só

se realiza pela transitividade simbólica do discurso, ou seja, pela sensibilidade criadora que

apenas se consuma quando atinge a emoção da leitura.” (SECCO, 2006, p. 73)

As personagens criadas por Couto são, geralmente, complexas. Retratam seres

humanos com dualidades e contradições, visto que ele retrata, através de suas personagens, um

país cheio de dualismos e oposições. “Engendram fraquezas e determinações, sensibilidades e

incertezas mediante uma história interrompida. É no recorte do descontínuo e de fugidias

temporalidades que tais forças se espreitam.” (MAQUÊA, 2005, p. 172)

Muitas de suas narrativas são povoadas pelo insólito, advindo das tradições

moçambicanas, como maneira de atingir o real que se impõe como verdade e questionar os ideais

de racionalidade europeia. Assim, pela fantasia, a memória das tradições é ativada, conduzindo o

romance pelas tramas construídas de forma a reavivar o que se perdeu ao longo dos anos.

Em se tratando especificamente do livro A varanda do frangipani, a história se passa

em um Moçambique pós-Guerra Civil, desestruturado econômica e culturalmente, no qual os

valores da modernidade, impostos pelo poder vigente, se chocam com os valores culturais

tradicionais.

Com base no fato de que “o discurso literário de Mia Couto tece uma rede intertextual

e simbólica com os mitos e as crenças dos povos moçambicanos.” (SECCO, 2006, p. 72),

algumas das considerações feitas por Mia Couto sobre a cultura moçambicana através de

elementos simbólicos serão trabalhadas a seguir.

Mia Couto apresenta, em sua obra A varanda do frangipani (1996), dois

protagonistas: Izidine Naíta (inspetor de polícia) e Ermelindo Mucanga (xipoco – fantasma – que

encarna temporariamente no corpo do inspetor). Não há interação direta entre os dois até o último

capítulo, mas percebe-se um contraste de visões, em que o fantasma é um elemento

Page 9: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

representativo das crenças africanas e o inspetor é o retrato do africano sem tradições, sem

vínculo com sua origem. Não é, portanto, por acaso o fato de os dois só se encontrarem no último

capítulo. O xipoco encarna no corpo do inspetor, permanece nele, sabe muitas coisas, mas não

influencia nem aconselha seu “hospedeiro”. Izidine Naíta é descrito como “gente sem história,

gente que existe por imitação” (COUTO, 2007, p. 57). O inspetor é uma representação do

esquecimento e empobrecimento cultural em Moçambique e, ao longo do livro, ele é confrontado

diretamente através das histórias e invenções dos velhos do asilo e através das críticas da

enfermeira do local, Marta Gimo.

Acompanhando as duas personagens, Mia Couto povoa o livro de símbolos, que

carregam em si sentidos subjacentes, indispensáveis na construção do conflito que perpassa não

só a história das personagens, mas a de cada moçambicano. É possível identificar alguns

símbolos de grande força na obra, dos quais três foram escolhidos para uma análise mais detida: a

Fortaleza de São Nicolau, onde transcorre a história, e as personagens Nãozinha e Marta Gimo.

4.1 - Fortaleza de São Nicolau: prisão e refúgio

Na obra em questão, o espaço escolhido é o campo. Como em outras obras, em A

varanda do frangipani, Mia Couto constrói a história em um cenário que é “lugar de mistérios e

de acontecimentos extraordinários ainda que em situação de abandono e decadência” (FEITOSA,

2007).

A primeira apresentação da fortaleza se dá através de uma resumida narração de sua

história, levando o leitor a construir uma imagem a partir dos fatos que se passaram nela. O

trecho em que consta tal descrição está logo no primeiro capítulo e diz:

A árvore do frangipani ocupa uma varanda de uma fortaleza colonial. Aquela varanda já assistiu a muita história. Por aquele terraço escoaram escravos, marfins e panos. Naquela pedra deflagraram canhões lusitanos sobre navios holandeses. Nos fins do tempo colonial, se entendeu construir uma prisão para encerrar os revolucionários que combatiam contra os portugueses. Depois da Independência ali se improvisou um asilo para velhos. Com os terceiro-idosos, o lugar definhou. Veio a guerra, abrindo pastos para mortes. Mas os tiros ficaram longe do forte. Terminada a guerra, o asilo restava como herança de ninguém. Ali se descoloriam os tempos, tudo engomado a silêncios e ausências. (COUTO, 2007, p. 11)

Page 10: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

Como a sofrer com os restos da guerra, além da destruição, a fortaleza é cercada por

um campo minado, que a isola do mundo.

Durante os longos anos da guerra, o asilo esteve isolado do resto do país. O lugar cortara relações com o universo. As rochas, junto à praia, dificultavam o acesso por mar. As minas, do lado interior, fechavam o cerco. Apenas pelo ar se alcançava São Nicolau. (COUTO, 2007, p. 20)

A decadência da fortaleza fica ainda mais evidente na seguinte descrição: “Vista do

alto, a fortaleza é, antes, uma fraqueleza. Se notam os escombros com costelas descaindo sobre o

barranco, frente à praia rochosa. Esse monumento que os colonos queriam eternizar em belezas

estava agora definhando.” (COUTO, 2007, p. 20). O trocadilho fortaleza/fraqueleza denuncia a

imagem contraditória transmitida pela construção.

Analisando, inicialmente, a simbologia evocada pela figura da fortaleza, tem-se um

forte como “o símbolo do refúgio interior do homem, da caverna do coração, do lugar

privilegiado de comunicação entre a alma e a Divindade” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007,

p. 448). Tal simbologia revela a importância do local em que a história acontece enquanto

guardião das raízes religiosas de Moçambique. Isso leva à ideia de que o cenário em que se

desenvolve a história é, em essência, um ambiente não só de refúgio contra os males e perigos

externos, como também um espaço que propicie a relação transcendental do ser humano com o

divino. A permanência das personagens na fortaleza implica uma aproximação com elementos

que vão além da realidade e conduzem num caminho de volta às tradições e crenças

moçambicanas.

Há, contudo, um contraponto entre a figura da fortaleza (mesmo em escombros) e

o que ela se tornou: um asilo. A transformação pode ser entendida, inicialmente, como uma

fragilização do que antes era um refúgio e um abrigo, símbolo de força e segurança, já que um

asilo pode até representar um abrigo, mas não impõe a força e segurança de um forte. Um asilo é

um refúgio de idosos e essa realidade pode transmitir uma imagem associada às limitações da

velhice e à morte.

Em contrapartida, a transformação do forte em asilo pode representar um

engrandecimento, pois a velhice traz consigo a experiência e isso torna-se símbolo de sabedoria.

Os velhos que moram no asilo já viveram muitas coisas, viram o país passar por diversas

situações, conhecem as mudanças ocorridas e permanecem como derradeiros conhecedores das

Page 11: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

crenças e ideias antigas. Assim, o refúgio da fortaleza transforma-se em um asilo, que abriga e

protege “o antigamente”. Mas essa proteção, embora seja boa por conservar as tradições a salvo

das transformações do mundo externo ao asilo, acaba por ter um efeito negativo, pois a segurança

vem do isolamento, que diminui o poder de ação externa, mas de semelhante modo impede que

“o antigamente” chegue ao mundo e tenha poder de influência e atuação. Portanto, o asilo o

mantém seguro, mas o isola do mundo e, por isso, acaba por condená-lo à extinção.

A morte é razão do confronto do inspetor com as tradições. O inspetor chega ao asilo

para investigar um crime de homicídio e depara-se com a afirmação de Marta Gimo de que o

crime real que acontece ali é o crime contra o “antigamente”, que condena as tradições

moçambicanas, que deveriam ser o bom fundamento para a construção da identidade atual, ao

fim. Além disso, ao longo da narrativa, percebe-se que as personagens estão todas envolvidas de

alguma forma com a morte. O inspetor está investigando um assassinato e, embora não saiba, sua

morte está sendo tramada. Ernestina e Marta Gimo sofreram as marcas da morte pelos filhos que

perderam. E os velhos, com o passar dos dias, se identificam com a morte e anseiam por ela. Tal

abordagem da morte e sua inclusão no fio condutor da trama podem ser interpretadas, além de

extinção das tradições, como um “rito de passagem”, baseando-se no fato de que “Todas as

iniciações atravessam uma fase de morte, antes de abrir o acesso a uma vida nova.”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 621)

Neste aspecto, a morte tão presente na fortaleza pode ser entendida como um

instrumento de aproximação entre o homem e a sabedoria divina. Isto fica evidente na escolha do

narrador – que é um “xipoco” (fantasma) e, portanto, já passou pela experiência da morte – cujo

conselheiro é um “halakavuma” (ou pangolim = mamífero coberto de escamas) que, conforme a

crença moçambicana, habita os céus, descendo à terra para transmitir aos chefes tradicionais as

novidades sobre o futuro. Dessa forma, a fortaleza, que é tida como “um depósito de morte”

(COUTO, 2007, p. 135), ganha a atribuição nobre de lugar de revelação, pois os mortos que

abriga são um caminho de contato com um representante dos céus (“halakavuma”).

Tais evidências comprovam a importância da fortaleza na defesa das tradições e, mais

do que isso, no retrato da dualidade e dos conflitos naturais da sociedade moçambicana.

4.2 - Nãozinha: a feiticeira que vira água

Page 12: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

Um segundo símbolo a ser analisado é a personagem Nãozinha. Uma das habitantes

do asilo, é uma espécie de líder dos velhos. Rotulada de feiticeira, cercada de crenças e rituais e

detentora de grande poder místico, Nãozinha pode ser vista como o maior símbolo da resistência

à morte das tradições dentro do livro. É tida pelos outros velhos como feiticeira e é a

representante maior das crenças moçambicanas. Está presente em diversos momentos da

narrativa, e sua atuação se configura sempre permeada de religiosidade. Embora ela afirme que

seus poderes nascem da mentira (COUTO, 2007, p. 78), sua intervenção sobrenatural marca

momentos cruciais da história, servindo como conselheira e mesmo salvadora dos moradores do

asilo, ao livrá-los, através de feitiçaria, das armas contrabandeadas, guardadas em segredo na

fortaleza.

A presença de acontecimentos insólitos nas cenas que envolvem a feiticeira pode ser

avaliada, à luz do pensamento de Vera Maquêa, como um instrumento que entrelaça a poesia e as

tradições africanas, enriquecendo a narrativa.

Todos os acontecimentos insólitos criam imagens de concentrada poesia e de incontida busca de superação de uma condição de existência. É como se uma solução simples pudesse ser dada à transformação da vida. A matéria se torna fluida, se desmaterializa, descorporifica. Poder-se-ia ler como a presença do surreal, não fosse a consciência mítica que essas imagens carregam da cultura africana, indiciando uma coordenação narrativa cujo propósito se revela ser a própria arquitetura da realidade e sua representação poética. (MAQUÊA, 2005, p. 180)

É interessante notar que o efeito defendido por Vera Maquêa chega a ser literal na

narrativa, pois a personagem, através da qual os “acontecimentos insólitos” se realizam –

Nãozinha –, todas as noites transforma-se em água. “A matéria se torna fluida, se desmaterializa,

descorporifica” e só se refaz pela manhã. Nãozinha é, então, apresentada como “mulher-água”.

Ela afirma: “Para dizer a verdade, eu só me sinto feliz quando me vou aguando. Nesse estado em

que me durmo estou dispensada de sonhar: a água não tem passado. Para o rio tudo é hoje, onda

de passar sem nunca ter passado.” (COUTO, 2007, p. 81).

Mais uma vez a morte se faz presente, agora de maneira figurada, como símbolo de

renovação e rito de passagem que tornam Nãozinha mais forte e capaz de carregar consigo as

tradições. Por esse entendimento, a feiticeira, a representante mais forte e ardorosa dos

fundamentos religiosos, das crenças moçambicanas que estão se perdendo no tempo, renova-se a

Page 13: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

cada noite, por intermédio das águas, fortalecendo-se para o dia seguinte.

Da mesma forma, enquanto o ritual diário da personagem de transformar-se em água

representa uma espécie de morte, o voltar no dia seguinte traz uma significação simbólica da

água que nos faz entendê-la como fonte de vida (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 15).

Como um dos elementos vitais para a sobrevivência humana, a água é essencial e

indispensável à preservação da vida. Analisar a representação simbólica da personagem Nãozinha

como guardiã ou mesmo personificação das tradições moçambicanas é entender a tradição como

essência, fonte em que todos os africanos devem beber se quiserem alimentar e perpetuar sua

identidade. Essa perpetuação é um processo dinâmico, que implica renovação a cada gole. No

entanto, a personagem traz também, mais uma vez, ao livro uma relação das lembranças e do

passado com a morte, mostrando a denúncia do autor do passado esquecido de seu país.

É, também, digno de atenção o fato de que Nãozinha, apesar de personificar a cultura

africana, seus ritos, crenças e religiões, revela, através de alguns gestos e palavras, uma espécie

de ceticismo. Isso pode ser visto em momentos quando: a) diz que não é feiticeira, mas se

aproveita disso para não apanhar; b) afirma que seus poderes nascem da mentira; c) teme por

Salufo Tuco e, por isso, pede ajuda a Ernestina, afirmando não ser feiticeira e não poder protegê-

lo; d) depois de benzer o inspetor, joga a lata fora com um gesto de indiferença.

Em sua confissão, Marta Gimo diz que “Nãozinha se inventou de feiticeira. Tanto que

acabou por duvidar de seus poderes.” (COUTO, 2007, p. 124). No entanto, a negação de seu

status de feiticeira não muda a sua postura de defesa das crenças. Ela busca que os outros

acreditem em seus poderes e os estimula a guardarem e a respeitarem as tradições.

Apesar de reconhecer sua humanidade, Nãozinha constitui-se instrumento de

revelações ao longo de todo o livro, demonstrando mais um aspecto de conexão simbólica com a

água, ao mostrar-se “um símbolo de pureza passiva. Ela é um meio e um lugar de revelação”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 21)

A “falsa” feiticeira, tão frágil e pequena que passeava pelo campo minado e, de tão

leve, não disparava as bombas, reflete na verdade a força e a ligação entre o passado e o presente,

entre um povo e sua identidade. Nãozinha é a representação de uma tradição aparentemente frágil

e desacreditada por si mesma, mas ainda assim importante para os seus, renovada a cada dia para

inspirar e estabelecer a confiança dos que nela se fiam.

Page 14: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

4.3 - Marta Gimo: um convite às origens

Marta foi criada como “assimilada”. A ela foi imposta a educação da colônia. Ela

representa alguém nascido distante das tradições – o que se evidencia pela profissão ocidental de

enfermeira e pelo fato de descender de uma família que há muito já perdera seus nomes africanos.

Ela, como outros moçambicanos, era uma estrangeira em sua própria terra, alheia aos seus

costumes e a suas origens. Ao chegar ao asilo, Marta estava ferida pelas experiências vividas num

campo de reeducação, mas encontrou no asilo um refúgio, um lugar em que podia exercer sua

profissão, ajudar os outros, numa tentativa de se recuperar dos próprios sofrimentos. Através da

fala de Marta, Mia Couto traz à luz críticas sobre a guerra, sobre a corrupção e sobre a

necessidade de se retomar antigos valores para a construção do presente. No início de sua

“confissão”, Marta afirma que “os velhos foram expulsos de nós mesmos”. As histórias, os

valores, as crenças passadas de geração em geração estavam sendo negligenciados, esquecidos,

expulsos da vida de cada um.

Marta, então, figura no livro como a voz que traduz a linguagem dos antigos,

confrontando Izidine Naíta que, “mesmo sendo preto, é lá da cidade. Não sabe, nem respeita.”

(COUTO, 2007, p. 77). Ela o acusa de ser estranho às tradições de sua própria terra, dizendo:

“Você tem medo deles (...) esses velhos são o passado que você recalca no fundo da sua cabeça.

Esses velhos lhe fazem lembrar de onde veio” (COUTO, 2007, p. 74). Marta tem autoridade para

cumprir tal papel, por ter passado de estrangeira à participante de sua própria cultura.

Ao criticar o inspetor por não ser capaz de compreender o que dizem os velhos em

suas confissões, Marta propõe que essas vozes, antigas portadoras da superioridade da tradição,

sejam ouvidas em resposta à destruição gerada pela guerra, em resposta às distorções sociais

advindas do processo de colonização, sendo este “um gesto de defesa da identidade possível”

(CHAVES, 2004, p. 150).

Sendo capaz de perceber os males de um país distante de uma identidade própria e a

necessidade de reconstrução do que se havia perdido, surge uma compreensão de que a tradição

deve ser parte da identidade moçambicana, numa relação dinâmica com a modernidade atual.

Diante desse entendimento, Marta recupera os sentimentos mutilados pela guerra,

reconstruindo seus ideais pela união de seus valores modernos no contato com os velhos do asilo,

representantes do “antigamente”. Ela reconhece os danos da guerra que, segundo ela, tiram do

Page 15: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

mundo o “ciclo dos tempos” e instauram o “ciclo do sangue”, dividindo o mundo em antes e

depois da guerra. No entanto a personagem encontra no refúgio representado pelo asilo um novo

ciclo: o “ciclo dos sonhos”:

A guerra engole os mortos e devora os sobreviventes. Eu não queria ser um resto dessa violência. Ao menos, aqui na fortaleza, os velhos intentavam outra ordem na minha vivência. Eles me davam o ciclo dos sonhos. Seus pequenos delírios eram os novos muros da minha fortaleza (COUTO, 2007, p. 121-122)

Surgem, portanto, da fraqueza do asilo, os muros de uma nova fortaleza, que protege

a cultura e a essência de uma identidade através da consciência e convivência com as origens

culturais de sua terra.

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Literatura, enquanto instrumento de manifestação cultural, exerce um papel

importantíssimo na afirmação e construção da identidade de um país. Em Moçambique, a

produção literária tem se estabelecido como um dos principais instrumentos de conscientização

dos cidadãos da necessidade de resgate e preservação das tradições para a consolidação de uma

“moçambicanidade” que lhes garanta a consubstanciação de uma identidade nacional.

Os estudos de obras literárias, como A varanda do frangipani, mostram-se, portanto,

de elevada importância para a compreensão do fenômeno de afirmação cultural pelo qual

Moçambique tem passado desde o período da sua independência.

Assim, entende-se a relevância da análise dos símbolos presentes no livro, à medida

que contribui para o entendimento da situação cultural em Moçambique, bem como dos dilemas

suscitados ao longo da discussão hodierna atinente à construção do futuro do país.

Concluiu-se, outrossim, que A varanda do frangipani compõe, juntamente com outras

obras de intelectuais moçambicanos, um meio de denúncia da situação vivida por seus

compatriotas, visando à defesa da construção daquilo que possa vir a ser a identidade de seu país,

já que, diante de todo o arcabouço teórico-argumentativo apresentado neste trabalho, percebeu-se

que a obra analisada faz uso de elementos simbólicos representativos da realidade cultural

regional, em contraposição aos valores extramoçambicanos.

Page 16: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

Desta feita, faz-se a relação antitética fortaleza X fraqueleza, mostrando-se a

fragilidade do antigamente, representado pelos idosos do asilo que a fortaleza abriga, e, em

contrapartida, sua importância enquanto fundamento para a construção de uma identidade

cultural do país. Couto conota um Moçambique em busca da sua moçambicanidade, visando a

preencher o lapso entre o enfraquecimento do antigamente e a valorização das tradições culturais

na contemporaneidade, como arrimo de um futuro nacional peculiar mais forte ainda, ou seja,

com a sua identidade firmada e consolidada.

De semelhante modo, a personagem Nãozinha ratifica a oposição entre a fragilidade

provocada pelo tempo e a força advinda da manutenção das crenças e tradições de seus

antepassados. Percebeu-se, então, o retrato criado por Couto de um Moçambique passível de

encontrar forças e proteção em suas raízes e tradições. Não se percebeu, no entanto, ao longo da

análise realizada, uma defesa das crenças enquanto verdades, dogmas religiosos inquestionáveis.

O que se depreendeu foi a valorização da capacidade de, enquanto cidadãos conscientes, serem

capazes de resgatar os traços culturais, os princípios sociais que compunham a identidade e os

valores de um povo e que podem ter se perdido na tentativa vã de se adequar aos moldes externos

impostos por meio da colonização, em função do discurso falacioso de superioridade cultural do

colonizador.

Assim, uma maneira sugestiva de reconhecer o antigamente, sem deixar de

vislumbrar o prospectivo, é o que muito bem está representado pela personagem Marta Gimo, na

qual as transformações impostas pela colonização não a impediram de reconhecer a importância

do passado, fazendo-o fundamental instrumento para a construção de um futuro fincado nos fatos

que compõem a história da sociedade moçambicana, mas sempre com os olhos voltados para as

mudanças que o amanhã certamente trará consigo.

Enfim, Mia Couto expõe em defesa do caráter peculiar, nacional, radical do povo

Moçambicano, que deve lutar na busca incessante e constante por sua moçambicanidade, fazendo

do passado trágico e de dominação o alicerce a partir do qual deverá ser construída uma

Moçambique forte, firme e sólida no que tange às suas marcas culturais, ou seja, o modo de

pensar, agir e sentir de seu povo; marca que o identifique como tal e apenas como tal, mostrando

que o reconhecimento do passado é fundamental para construção do futuro.

REFERÊNCIAS

Page 17: Artigo de Ana Paula Vieira definitivo

ALBERGARIA, Enilce Rocha; SANTOS, Rejane Granato. As imagens literárias na escrita de Mia Couto e a pintura expressionista alemã. In: Via Atlântica. n. 9. São Paulo: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, USP, 2006. p. 85-98.

CABAÇO, José Luís. A questão da diferença na literatura moçambicana. In: Via Atlântica. n. 7. São Paulo: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, USP, 2004. p. 61-69.

CAVACAS, Fernanda. Mia Couto: a palavra oral de sabor quotidiano/palavra escrita de saber literário. In: CHAVES, Rita; MACÊDO, Tania (orgs.). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006. p. 57-73.

CHAVES, Rita. O passado presente na literatura africana. In: Via Atlântica. n. 7. São Paulo: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, USP, 2004. p. 147-162.

CHEVALIER, Jean ; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução Vera da Costa e Silva et al. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.

COUTO, Mia. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

FEITOSA, Márcia Manir Miguel. O espaço da imaginação ou a imaginação do espaço em Um rio chamado tempo, Uma casa chamada terra, de Mia Couto. Revista eletrônica Labirintos. Disponível em: <http://www.uefs.br/nep/labirintos/edicoes/02_2007/03_artigo_de_marcia_manir_miguel_feitosa.pdf>. Acesso em: 01 junho 2010.

HONWANA, Luis Bernardo. Literatura e o conceito de africanidade. In: CHAVES, Rita; MACÊDO, Tania (orgs.). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006. p. 17-25.

MAQUÊA, Vera. Três romances de Mia Couto: horizontes moçambicanos. In: MARTIN, Vima Lia (org.). Diálogos críticos: literatura e sociedade nos países de língua portuguesa. São Paulo: Arte & Ciência, 2005. p. 167-183)

SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. Mia Couto: o outro lado das palavras e dos sonhos. In: Via Atlântica. n. 9. São Paulo: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, USP, 2006. p. 71-84.