Artigo Juvenal - Bento XVI e o Iluminismo

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Sntese - Rev. de FilosofiaV.

39 N. 124 (2012): 279-290

BENTO XVI E O ILUMINISMO(Benedict XVI and the Enlightenment)

Juvenal Savian Filho*

Resumo: Trata-se, neste artigo, de investigar a anlise filosfica do Iluminismo feita por Bento XVI. Para tanto, tomar-se-o como base textos redigidos no apenas em seu pontificado, mas tambm no perodo de seu magistrio anterior. Pe-se em destaque a estratgia argumentativa do pontfice ao criticar a pretensa autolimitao da razo imposta por ela mesma em algumas formas hegemnicas do pensamento contemporneo. A partir da, extraem-se concluses em duas frentes: as interpelaes que a tradio crist pode fazer herana iluminista e, na contrapartida, as interpelaes que a herana iluminista tambm pode fazer aos continuadores do anncio cristo. Palavras-chave: Iluminismo, Bento XVI, valor da razo, autolimitao da razo. Abstract: This paper aims to investigate Benedict XVIs philosophical analysis of the Enlightenment. To do so, some texts written during his pontificate and previous academic teaching will serve as a basis. The emphasis is laid on the argumentative strategy employed by the pope to criticize the self-imposed limitation of reason observed in hegemonic forms of contemporary thought. A two-fold conclusion can be drawn from there: what interpellations can the Christian tradition make to the enlightenment heritage and, inversely, what interpellations can the enlightenment heritage make to the followers of the Christian faith. Keyowrds: Enlightenment, Benedict XVI, value of reason, self-imposed limitation of reason.

* Professor da graduao e ps-graduao em filosofia da Universidade Federal de So Paulo, Campus Guarulhos. Artigo submetido a avaliao no dia 04.10.2011 e aprovado para publicao no dia 24.11.2011.

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ara os que se aproximam do pensamento de Bento XVI, logo se evidenciam suas inmeras referncias ao Iluminismo. Um caso tpi co, sem dvida, o discurso por ele pronunciado aos representantes das cincias reunidos na Universidade de Ratisbona, em 12 de setembro de 2006.1 Mas, se examinarmos os textos por ele publicados ao longo de seu magistrio, veremos menes tanto ou mais explcitas a esse movimento filosfico, como o caso, por exemplo, dos artigos reunidos em seu livro Os princpios da teologia catlica Esquema e materiais.2 No presente estudo, visamos elucidar, em linhas gerais, a abordagem do Iluminismo feita por Bento XVI. Pretendemos faz-lo em dois momentos: 1) um estudo da anlise feita por Bento XVI do Iluminismo em contraponto com dados vindos da tradio crist; 2) um estudo da anlise feita por Bento XVI da tradio crist em contraponto com o Iluminismo.

Definio de IluminismoNa historiografia ocidental, convencionou-se chamar de Iluminismo ao perodo situado entre fins do sculo XVII e incios do sculo XVIII, com trmino no resultado final das Guerras Napolenicas (1804-1815). Tambm conhecido como Sculo das Luzes, esse perodo foi caracterizado por uma srie de tradies, advindas da filosofia, da religio, do direito e das mais variadas reas do saber, unidas a partir do ncleo de um iderio comum. Esse ncleo era constitudo pela crena no progresso e na perfectibilidade humana, alm da afirmao do conhecimento racional como via de superao dos paradigmas metafsicos. Na linha de Immanuel Kant, o Iluminismo (Aufklrung) libertador do ser humano; torna-o livre pelo uso da razo, liberando-o daquilo que Kant denominou de tutela. Implica, portanto, a afirmao da possibilidade de um mundo melhor, resultante no mais da ao da graa divina ou de algo que a valha, mas pela capacidade racional de desenvolvimento das faculdades humanas. Como consequncia direta, o Iluminismo insistia no engajamento poltico que objetivava a melhoria da vida, e no exagerado dizer que esse movimento influenciou o destino da humanidade, sobretudo pela elaborao da noo de Estado-nao.3Cf. F, razo e universidade: recordaes e reflexes Discurso do papa aos representantes das cincias. Universidade de Ratisbona, 12 de setembro de 2006 (texto encontrado em www.vatican.va). 2 Cf. a traduo francesa: RATZINGER, J. Les principes de la thologie catholique Esquisse et matriaux. Trad. de Dom J. Maltier. Paris: Tqui, 1982. 3 Cf. BARRETO, V. P. & CULLETON, A. Dicionrio de filosofia poltica. So Leopoldo: Unisinos, 2010, p. 271-273.1

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perfeitamente emblemtico desse movimento o texto de Kant intitulado Resposta pergunta: Que Esclarecimento (Aufklrung)?, de 1783. J na abertura, diz Kant:Esclarecimento a sada do homem de sua menoridade, da qual ele prprio culpado. A menoridade a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direo de outro indivduo. O homem o prprio culpado dessa menoridade se a causa dela no se encontra na falta de entendimento, mas na falta de deciso e coragem de servir-se de si mesmo sem a direo de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu prprio entendimento, tal o lema do esclarecimento.4

No texto kantiano, o termo esclarecimento (Aufklrung) designa uma atividade humana, a atividade do conhecimento e pensamento livres. nesse sentido que esse texto emblemtico do movimento que levou o mesmo nome ou correlatos dele na Europa: Aufklrung, na Alemanha; Enlightenment, na Inglaterra; Illuminismo, na Itlia; Sicle des Lumires, na Frana; Ilustracin, na Espanha. Kant insiste que, para obter esse esclarecimento ou essa iluminao nada mais se exige do que a liberdade, e a mais inofensiva das formas de liberdade, qual seja, a de fazer um uso pblico da razo individual em todas as questes. No entanto, dizia Kant,Ouo, agora, porm, exclamar de todos os lados: no raciocineis! O oficial diz: no raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: no raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: no raciocineis, mas crede! 5

Essas personagens, certamente caricaturadas aqui, encarnavam aquilo que o Iluminismo pretendia combater, ou seja, a atitude de no reflexo livre, mas uma reflexo tutelada, exercida sob o mando de uma autoridade. Assim, sob tutela, o indivduo no exerceria sua capacidade mais especfica, que o uso livre da razo; ele apenas aceitaria aquilo que j havia sido pensado por outros. Historicamente, essas caricaturas reforaram a desconfiana que o pensamento moderno e contemporneo desenvolveu com relao a toda forma de pensamento exercido em continuidade com alguma instituio ou autoridade, como, por exemplo, o poder poltico ou o magistrio eclesistico. Chegou-se a defender, por exemplo, a anarquia em termos polticos, ou a f subjetiva, em termos religiosos. Quem nunca ouviu falar da obsolescncia da democracia? Ou do velho ditado: Jesus sim, mas Igreja no? O apelo liberdade (que no deixa de ser um valor sem dvida alguma inegocivel)KANT, I. Resposta pergunta: Que Esclarecimento (Aufklrung)?. In: ________. Textos seletos. Trad. de Raimundo Vier e Floriano de Sousa Fernandes. Petrpolis: Vozes, 2005, p. 63-64. 5 Idem, p. 65.4

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e os limites que os costumes humanos revelam com o passar do tempo (o que natural, dado que esto inseridos na histria) levam a desconfiar das instituies, da autoridade e das tradies. Chega-se, em outras palavras, a um questionamento dos fundamentos dos costumes. Se o ser humano livre, ele tem o direito e o dever para com ele mesmo de analisar as razes de tudo aquilo que se lhe apresenta. Essa , sem dvida, uma das heranas do Iluminismo. Ocorre que, em termos filosficos, e, mais especificamente, gnosiolgicos, essa insistncia iluminista na necessidade de tudo avaliar crtica e autonomamente levou, na contemporaneidade, a formas de pensamento que defendem uma autolimitao da razo. Isso quer dizer que a razo humana essa capacidade de perscrutar o funcionamento da Natureza, descobrindo um sentido imanente a ela e exprimindo-o pela linguagem restringiu o seu campo de investigao ao terreno do que observvel, excluindo da possibilidade de investigao cientfica tudo aquilo que no se submete ao controle da experincia. Assim, em nome da autonomia da razo, relega-se para o campo do irracional tudo o que no pode ser verificado em termos empricos. A prpria razo, portanto, definiria racionalmente seus limites e as fronteiras do irracional. justamente diante dessa tendncia contempornea que podemos evocar a posio de Bento XVI com relao ao Iluminismo e compreenso deste com base em elementos vindos da tradio crist.

O Iluminismo em contraponto com a tradio crist segundo Bento XVIEm seu nada ingnuo discurso de 2006, aos representantes das cincias, na Universidade de Ratisbona, Bento XVI agradece pelas grandiosas possibilidades que o desenvolvimento moderno do esprito iluminista ou esclarecido (Aufklrung) abriu ao ser humano. Alm disso, em sua conferncia de 2000, na Universidade de Paris I, Sorbonne,6 discutindo com autores que6 Cf. Conferncia na Sorbonne, a 27 de novembro de 1999, intitulada Vrit du christianisme? (Colloque 2000 ans aprs quoi?). H uma traduo brasileira: Cristianismo. A vitria da inteligncia sobre o mundo das religies. In: Revista 30 Dias. Ano 2000, n.1, p. 33-44. Servimonos, aqui, da edio francesa Le christianisme La vraie religion?, que consta como parte II (p. 171-195) do captulo 4, intitulado Vrit du christianisme?, publicado em RATZINGER, J. Foi, vrit, tolrance Le christianisme et la rencontre des religions. Trad. de Maria Linnig e Joachim Bouflet. Paris: Parole et Silence, 2005, p. 145-224. Esse livro foi traduzido e publicado no Brasil (F, verdade e tolerncia. Trad. de Sivar Hoeppner Ferreira. So Paulo: Instituto Raimundo Llio, 2007), mas preferimos utilizar a verso francesa, pois, infelizmente, h problemas tcnicos na traduo brasileira.

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defendem uma autolimitao da razo (entre outros, nominalmente, Karl Popper) e, portanto, correndo o risco de ceder tentao de defender uma razo heternoma, obediente a uma verdade exterior (radicalmente antimoderna) , o ento cardeal defende a autonomia da mesma, e denuncia o que, no seu dizer, seria a contradio das racionalidades contemporneas: para afirmar uma autolimitao da razo, constroem-se modelos hermenuticos em que no se fala do irracional seno a partir das medidas da razo, ou seja, racionalmente (resolvendo problemas, elaborando mtodos etc.), o que termina por restabelecer, na prtica, o primado da razo contestado por ela mesma. Como se pode prever, a crtica de Bento XVI pretensa autolimitao contempornea da razo servir-lhe- para defender a autonomia da mesma razo. Isso se pode ilustrar por sua insistncia nos impasses criados pela doutrina evolucionista, no propriamente quando ela se comporta como teoria cientfica, mas quando ela pretende apresentar-se como uma teoria universal de todo o real. Para identificar-se o impasse fundamental, bastaria considerar essa hiptese, ou seja, a de o evolucionismo poder constituir-se numa teoria de todo o real. Se a resposta a essa possibilidade for afirmativa, ento toda questo sobre a origem e a natureza das coisas, ou mesmo a questo de Deus, no sero mais lcitas nem necessrias, pois, alm de serem pr-crticas, elas sero tambm irrelevantes para as racionalidades contemporneas. Com isso, ter-se- provado, ao mesmo tempo, a autolimitao da razo, pois ela ter delimitado seu territrio de investigao, que chegaria at os fundamentos do real, obtidos cientificamente, relegando todo outro tipo de pesquisa (sobre a natureza das coisas, por exemplo, ou a questo de Deus etc.) para alm das fronteiras do racional; em outros termos, ao irracional, zona nebulosa onde no poderia operar a razo, embora ela possa suspeitar de sua existncia. Se, porm, a resposta for negativa, ter-se- como garantido que falsa a pretensa autolimitao da razo, o que permitir dizer que ela pode continuar sua investigao para alm dos limites estabelecidos, embora certamente no em termos cientficos ou tecnicistas, mas em termos filosficos, teolgicos etc. A estratgia, portanto, do ento cardeal Ratzinger consistir em tentar inviabilizar a resposta afirmativa, e, para tanto, ele sonda a possibilidade de que haja uma forma de superar o campo da pura pesquisa cientficonatural, pois, se essa possibilidade efetivar-se, constatar-se- que as racionalidades contemporneas, a includo o evolucionismo positivista, desprezando-a, no podem pretender-se como um discurso completo sobre o real. Ele analisa, assim, a tese segundo a qual a vida, tal como ns a conhecemos, consiste de corpos fsicos, ou melhor, de processos e estruturas que resolvem problemas, de modo que as diversas espcies, por seleo natural, teriam simplesmente aprendido, isto , teriam aprendido o dinamismo da vida, por um mtodo de reproduo mais variao, que se incorpora pelo seu prprio exerccio, numa regresso infinita. No283

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dizer de Ratzinger, uma afirmao desse gnero seria absurda, pois, pretendendo responder, cientificamente, ao problema de conhecer o dinamismo mais profundo da vida, ela significa, j de sada, a superao do campo da pura pesquisa cientfico-natural; remete, afinal, ao campo do no-observvel, tocando numa alternativa que no se pode resolver simplesmente no mbito das cincias naturais, e, no fundo, nem mesmo no da filosofia. Em outros termos, as cincias pretendem compor um discurso cientfico sobre algo que, segundo os prprios critrios das cincias, escapa ao domnio do controle cientfico-tcnico, pois que no objeto de verificao emprica (como o caso do fundamento do dinamismo da vida). No limite, trata-se de saber se h algo racional no princpio de todas as coisas e no seu fundamento: o real nasceu por acaso ou por necessidade? Se por acaso, a razo seria um produto casual marginal do irracional, e, portanto, algo insignificante no oceano do irracional; se por necessidade, continuaria vlida aquela que a convico fundamental do cristianismo: no princpio era o Logos, a fora criadora de algo como uma razo. Evidentemente, Bento XVI no poderia defender que a razo se submeta f, dizendo simplesmente que esta pode oferecer uma resposta sobre o fundamento das coisas, pois isso significaria um atentado autonomia da razo. Mas pode sustentar que a prpria razo entre no domnio da f, pois, diante de um impasse (como o de a razo pretender dar uma resposta tcnica para uma questo que transcende os limites da tcnica), a f pode ser razovel aos olhos da mesma razo. Mas, mais do que isso, a prpria razo pode interessar-se pelo problema do fundamento das coisas e encontrar, j em si mesma, a abertura para sua transcendncia. Para falar do impasse acima mencionado, Bento XVI recorre gratuidade (no sentido de falta de justificativa ou mesmo de ausncia de crtica) com que a razo, no mundo contemporneo, renuncia quela prioridade do racional sobre o irracional, ou ao Logos, como princpio primeiro, em favor do nada. Isso porque boa parte das racionalidades contemporneas prefere dizer que, dada a explicao emprica, todo o restante de questes irracional. Do ponto de vista da prpria razo, essa renncia quase sempre infundada, porque os modelos hermenuticos que se criam demonstram, como se disse acima, que a razo no pode pensar o irracional seno sua medida, ou seja, racionalmente (haja vista a linguagem da resoluo de problemas, da elaborao de mtodos etc.), o que, no limite, termina por defender o primado contestado da razo. Se assim, porque a razo no pode continuar sua pesquisa para alm dos seus pretensos limites cientfico-tcnicos, ou mesmo filosficos? No haver mais nada de racional l onde algumas das racionalidades contemporneas dizem no ser mais o territrio da razo? Diante desse impasse, o cristianismo no poderia aceitar a razoabilidade do refgio no irracional, ao menos com os argumentos oferecidos at hoje284

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pela histria do pensamento, preferindo continuar com sua opo em favor do primado da razo, o que faria dela, ainda hoje, racionalidade, pois que comporta uma resposta de sentido s perguntas que transcendem o mbito da pesquisa cientfica e no se deixam calar no corao de todos os humanos. Refutando cticos como Richard Rorty, por exemplo, a experincia do pensamento, para o cristianismo, implicaria um discurso sobre a verdade, porque esta se mostra ao menos na forma da certeza da prpria experincia do pensamento. No se trata de ter a coragem de abrir mo de um absoluto, porque a sombra do absoluto sempre rondar a atividade humana de conhecimento (seja na forma da dvida, do mtodo, do perspectivismo, do inconsciente, do Estado etc.); trata-se, sim, de ter a coragem de assumir que talvez haja um princpio primeiro, na tentativa de inteligi-lo. Dessa perspectiva, o ethos da cientificidade seria dado por uma vontade indeclinvel de obedincia verdade, o que coincide com uma das decises essenciais do esprito cristo.7 Assim, com sua opo em favor do primado da razo (No princpio era o Logos), o cristianismo permaneceria hoje como o testemunho da necessidade de um alargamento do nosso conceito de razo e de seu uso, no se reduzindo aos limites que ela se autodecretou, mas assumindo a necessidade de transcend-los, sob o risco de, no o fazendo, tambm no ser capaz de abordar o fenmeno humano no conjunto da sua complexidade. Essa necessidade nasceria do prprio exerccio da razo; portanto, de sua autonomia, e no de uma inspirao externa. Assim, se h uma crtica de Bento XVI modernidade, essa crtica no se refere ao livre uso da razo ou a algo como o Sapere aude! kantiano. Ao contrrio, defendendo uma fidelidade extrema razo e ao seu primado que Bento XVI chama a modernidade a um reajuste. Mas isso no ser fiel modernidade iluminista? Nesse contexto, a questo de Deus no seria algo pertencente a uma subcultura; ao contrrio, diante do fracasso da poltica, da economia e das artes como meio de obteno da felicidade, essa questo se ergue, no cenrio contemporneo, como possibilidade de realizao humana plena. Tomar isso a srio, tal como fizeram, por exemplo, j os judeus da Septuaginta, em sua simbiose com a cultura grega, seria, nas palavras de Bento XVI, uma forma autntica de Aufklrung. No reconhec-lo seria correr o risco de se elaborar um pensamento profundamente reacionrio, de volta ao passado pr-crtico, ao passo que, ao contrrio, aceitando a estrutura racional da matria e a correspondncia entre o nosso esprito e as estruturas racionais operativas na natureza como um dado de fato, sobre o qual se baseia o seu percurso metdico, a razo pode, sim, aceitar que tambm se pergunte sobre o porqu de este dado de fato existir, confiando a busca de resposta a outros nveis e outros modos do pensar no s cincias naturais, mas filosofia e teologia. Para a filosofia e, de7

Cf. F, razo e universidade: recordaes e reflexes, op. cit., p. 7.

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maneira diferente, para a teologia, a escuta das grandes experincias e convices das tradies religiosas da humanidade pode constituir uma fonte de conhecimento; recus-la significaria, nas palavras de Bento XVI, uma inaceitvel reduo da nossa capacidade de escutar e responder.

A tradio crist em contraponto com o Iluminismo segundo Bento XVI justamente a nfase de Bento XVI na capacidade humana de escutar e responder que nos permite tratar do modo como ele mesmo aborda a tradio crist em contraponto com o Iluminismo. Antes de tudo, preciso dizer que o reconhecimento e a valorizao dados pelo prprio Bento XVI ao Iluminismo, tal como vimos acima, uma prova de que, para ele, a herana iluminista no pode ser desprezada. Alis, em seu texto Verdade, tolerncia, liberdade, ele diz explicitamente que no devemos esvaziar a herana do Iluminismo. Ele assim se pronuncia ao evocar a imagem que o filsofo polons Andrzei Szczypiorski empregava para ilustrar as iluses que tambm nasceram do Iluminismo, sobretudo aquelas ligadas ideia de progresso da humanidade. Szczypiorski fazia um diagnstico pessimista, dizendo que, depois de dois sculos de funcionamento til e sem problemas, a mquina a vapor do Iluminismo parou sob o nosso nariz; o vapor s faz espalhar-se no ar. Bento XVI, em resposta, diz, em primeiro lugar, que preciso lembrar que o trabalho dessa mquina no se realizou sem problemas; bastaria lembrarmo-nos das duas guerras mundiais e das ditaduras do ltimo sculo. Entretanto, diz ele:(...) eu gostaria de acrescentar que no precisamos de modo algum esvaziar a herana do Iluminismo como tal e em bloco para explicar o emperramento da mquina a vapor. O que precisamos corrigir o seu curso (...).8

Como vemos, Bento XVI no trata do Iluminismo em bloco e defende mesmo a legitimidade de sua herana. Falando de modo geral a respeito da razo, Bento XVI opera um contraponto entre as tradies religiosas e ela. No texto A f entre razo e sentimento, inserido por ele no captulo Verdade do cristianismo da obra F, verdade e tolerncia, ele chega a falar no somente de uma patologia da razo, mas tambm de uma patologia da religio. A patologia da razo seria um fechamento da razo em si mesma, produzindo uma cincia perigosa para a vida na medida em que ela se dessolidariza da concepo de conjunto da ordem habitual do ser humano e se reconhece como nica medida de suas prprias8

RATZINGER, J. Vrit, tolrance, libert. In: _________. Foi, vrit, tolrance, op. cit., p. 273.

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possibilidades. Na contrapartida, a patologia da religio tambm seria um fechamento da religio em si mesma, sem dilogo com a razo, sem interrogar-se razoavelmente sobre as coisas essenciais da vida, sua origem e seu fim, sobre o que se pode e o que se deve, deixando um sentimento separado da razo dominar essas questes. Diz ele explicitamente:A desintegrao do homem que segue da conduz do mesmo modo patologia da religio e patologia da cincia. H, hoje em dia, em nmero crescente, formas patolgicas da religio, nas quais a religio se recusa a assumir sua responsabilidade diante da razo.9

Certamente o contraponto que Bento XVI fizera entre o Iluminismo e a tradio crist, tal como vimos acima, contribui para a compreenso do sentido que ele atribui razo. Agora, denunciando as patologias da religio, ele defende que esta no se desvincule do trabalho racional e de suas exigncias. Refletindo especificamente sobre a tradio crist, Bento XVI vai ainda alm e a contrape diretamente ao Iluminismo, expresso mais aguda da autonomia da razo. Em sua obra Os princpios da teologia catlica Esquema e materiais, o ento cardeal Ratzinger afirma que a f crist aberta cultura esclarecida e, na busca do encontro com ela, percorre uma parte de seu caminho em comum com o Iluminismo. O contexto em que ele faz esse contraponto da f crist com o Iluminismo dado pela anlise de um paradoxo: de um lado, o cristianismo insiste na simplicidade da f; de outro, no se pode negar o carter racional da f. Com efeito, identificar-se-ia, na Igreja, uma nostalgia do passado, que associaria a f com a simplicidade e a no necessidade da atividade racional.10 Entre vrios exemplos, Bento XVI menciona a Imitao de Cristo, que, na aurora dos tempos modernos, protestava contra o empobrecimento da f na forma de uma teologia que se tornava pura erudio. Seu autor tomava a opo decidida pelo cristianismo dos simples. Indo um pouco para trs no tempo, encontra-se o exemplo de So Francisco de Assis, que se autodenominava com insistncia simples e ignorante; sem conhecimento e ignorante. Mas as razes de tal atitude podem ser encontradas j nos Evangelhos, como, por exemplo, no elogio dos simples feito por Jesus: Eu te louvo, Pai, Senhor do cu e da terra, pois escondeste essas coisas aos sbios e aos entendidos e as revelaste aos pequenos (Mt 11, 25). Por outro lado, como diz Bento XVI, quem considera a profunda reflexo teolgica das cartas paulinas e do Evangelho de Joo no pode escapar convico de que h, a, algo mais. Instala-se, ento, o paradoxo: como conciliar, em9

RATZINGER, J. La foi entre raison et sentiment. In: _________. Foi, vrit, tolrance, op. cit., p. 166. 10 Cf. RATZINGER, J. Les principes de la thologie catholique, op. cit., p. 375ss.

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Paulo, por exemplo, o desprezo pela sabedoria dos gregos e seu prprio combate referente ao contedo da f, esforo esse que seria impensvel sem a herana das sabedorias hebraica e grega? Como essas duas realidades caminham juntas na histria da f: a referncia constante aos simples e o desenvolvimento sempre crescente do conhecimento teolgico? Como vemos, Bento XVI vai raiz da relao entre a tradio crist e a postura intelectual-racional. Quer dizer, ele localiza na prpria fonte da f, como so os documentos bblicos, a necessidade de uma vinculao entre o ato de f, com seus contedos afetivos, e a atividade racional, com suas exigncias de coerncia lgica, no absurdidade, dilogo com as elaboraes conceituais do contexto histrico em que ela se insere etc. Muito antes do Iluminismo dos sculos XVII-XVIII, esse encontro deu-se j na era apostlica. E mesmo antes, pois, como lembra Bento XVI, Israel representou um papel iluminador diante do mundo antigo, instalado comodamente em suas religies mticas. Os profetas criticam os deuses, as sacralidades dos povos e denunciam as hipocrisias. Israel pretende, numa palavra, destruir representaes que no so conformes verdade e que, por conseguinte, frustram o homem e tolhem sua liberdade. A f no Deus criador nico, que fez o mundo por sua palavra, no pode suportar a piedosa aparncia dos mitos. E Bento XVI chama a essa atitude de Iluminismo (Aufklrung),11 dizendo que ela reconhece o direito reivindicado pela razo de no admitir outros limites seno aqueles de sua origem na vontade e na palavra criadora de Deus. Igualmente, a f crist, desde suas origens, sente-se chamada a ir ao encontro dos homens. Ela destinada a todos, porque Deus quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (1Tm 2, 4). A f, portanto, implica a orientao para os outros, e, indo ao encontro do outro, eu me questiono necessariamente a mim mesmo. Transformando a palavra em resposta, eu me instruo na f de modo mais profundo e novo. Essa caridade implicada na f aponta tambm para o seu carter racional: a caridade que vem da f deve ser uma caridade compreensiva, que no d somente po ao prximo, mas que lhe ensina a ver. A f, portanto, mostra-se no como um ato cego, uma confiana sem contedo, mas como uma abertura dos olhos, abertura do homem verdade. Dessa perspectiva, a f crist mais otimista e mais radical do que o mundo cultural, no apenas da Antiguidade, mas tambm dos tempos modernos, porque na Modernidade a questo da verdade considerada como algo de quase indecente, estranho cincia e cultura (pode-se considerar o carter correto, coerente dos sistemas, mas a verdade permanece escondida). Em seu servio missionrio, a f crist viveu um verdadeiro drama em suas origens, afinal, por seu contedo, ela foi considerada como um ataque contra o mundo da religio em geral do mundo antigo, uma aliada do11

Cf. idem, p. 380.

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Iluminismo (Aufklrung) que destrua, ao mesmo tempo, a religio e os fundamentos do mundo. por isso que os cristos eram acusados e condenados por atesmo. De fato, os progressos da razo haviam, j fazia bastante tempo, desvalorizado e arruinado os fundamentos religiosos antigos. A desagregao espiritual estava em curso e somente uma religio nova, resistente perante esses progressos da razo, podia oferecer um rearranjo da prtica religiosa. Essa religio foi o cristianismo, aquela que tomou forma no encontro com Deus em Jesus Cristo e que sobreviveu ao mundo antigo. Como diz Bento XVI,O que caracteriza, ento, a f crist entre todas as religies que ela pe o homem no caminho da verdade, ela lhe d um apoio no em seus costumes, mas na verdade, e que ela reivindica assim, para ela mesma, o apangio da razo. Ela infiel a si mesma se ela se esconde diante da razo. Combater a ignorncia e afastar a hipocrisia fazem parte de suas tarefas. A busca da cultura lhe imposta a partir de dentro.12

Evidentemente, Bento XVI no pretende dizer que s pode ser um cristo adulto aquele que desenvolver sua razo terica. Ao contrrio, o cristianismo sempre defendeu a dignidade de todos os seres humanos, de modo que um homem simples, dotado do senso dos valores supremos, pode ser infinitamente mais cultivado do que um tecnocrata experimentado. Mas isso no impede de afirmar a vocao iluminista da f crist. Disso tudo podemos depreender que, diante do Iluminismo histrico, aquele caracterstico da Modernidade, o cristianismo chamado, antes de tudo, a dialogar e a levar adiante sua misso de eruditio,13 de refinamento do homem em sua vocao abertura e profundidade. Desse ponto de vista, no amedronta o lema Iluminista, cristalizado pelo texto kantiano com seu Sapere aude! A liberdade do exerccio racional do indivduo um dom inegocivel e a partir dela que o indivduo deve entrar no mundo da f. Alis, o prprio Kant distinguia entre um uso pblico e um uso privado da razo. O uso pblico seria aquele que qualquer homem, enquanto sbio, faz da razo diante do grande pblico do mundo letrado. O uso privado seria aquele que o sbio pode fazer de sua razo em um cargo pblico ou funo a ele confiado.14 Assim, no uso privado, ocupando uma funo ou cargo, o sbio deve obedecer, mas, justamente enquanto sbio, no age contrariamente ao dever de cidado se expe publicamente suas ideias contra a inconvenincia ou a injustia de imposies feitas a esse cargo. Esse uso da liberdade individual, exercida na comunidade com os semelhantes, certamente vai ao encontro da posio de Bento XVI. A questo12 13 14

Idem, p. 381. Cf. idem, p. 383. Cf. KANT, I. Resposta pergunta..., op. cit., p. 66.

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que Bento XVI levanta, no entanto, a de saber como unir justia e liberdade. Diz ele:A liberdade do homem uma liberdade partilhada, uma liberdade no sercom de outras liberdades que se limitam mutuamente, apoiando-se assim mutuamente. Ela deve medir-se pelo que sou, pelo que somos; do contrrio, ela se suprime a si mesma. Chegamos assim a uma correo de sua imagem superficial, aquela que domina hoje: se a liberdade humana no pode consistir seno num ordenamento de um ser-com de liberdades, isso quer dizer que essa ordem, o justo, no sua anttese, mas sua condio, um de seus elementos constitutivos: a ausncia do justo a ausncia de liberdade. Com certeza, saber isso levanta outra questo: qual o justo conforme liberdade? Como estabelecer o direito para que ele seja o direito da liberdade? Pois existem seguramente direitos aparentes que so direitos de escravos; eles no dizem o que justo, mas so uma forma regularizada de injustia.15

Encontrar esse justo , sem dvida, a maior questo da histria da liberdade. E a principal vocao do cristianismo, que pretende iluminar a cultura. Numa palavra, podemos dizer que conatural ao cristianismo ir ao encontro da cultura, para compreend-la e dialogar com ela. No, porm, como se o cristianismo deixasse a cultura falar, para, no fim das contas, ele a condenar e impor-lhe a sua verdade. Trata-se, antes de tudo, da vocao do cristianismo para a tentativa de compreender a cultura, com suas razes e seus anseios, a fim de que aquilo que ela apresenta leve o prprio cristianismo a um melhor autoconhecimento e possibilidade de ajustar seu anncio busca do homem letrado, iluminando-lhe a existncia. Os textos de Bento XVI revelam essa preocupao, e, num tom explcito de servio inteligncia humana, ele no manifesta nenhum medo nem nenhuma arrogncia, mas a caridade de ir ao encontro do homem, mantendo-se fiel natureza crist de buscar a luz e de oferec-la a todos.

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RATZINGER, J. Libert-vrit. In: _______. Foi, vrit, tolrance, op. cit., p. 265-266.

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Sntese, Belo Horizonte, v. 39, n. 124, 2012