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1 Terapia de casal e mudanças na conjugalidade Nuno Craveiro Psicólogo e Terapeuta Familiar, [email protected] Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, Portugal Ana Paula Relvas Psicóloga e Terapeuta Familiar, [email protected] Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, Portugal Resumo: O presente texto reflecte sobre as mudanças na conjugalidade e sobre do papel da terapia de casal na procura de novas referências normativas e significados para a vida conjugal. São apresentados dois casos clínicos que servem de ponto de partida para reflectir sobre dúvidas associadas à utilização de um modelo específico de terapia de casal enquanto instrumento de procura de significados para a conjugalidade potenciadores de um aumento da qualidade conjugal. Palavras-chave: casal; terapia de casal; mudanças na conjugalidade. Abstract: This paper proposes a reflection on conjugality transformations connected with couple’s therapy and its development towards the search for new meanings and rules in couple’s relationship. The authors discuss two clinical cases as a basis to analyse the couple’s therapy model t hat they usually adopt in their clinical work. Key-words: couple; couple’s therapy; conjugality changes Introdução Na nossa abordagem terapêutica ao casal, seguimos o modelo de terapia de casal de José Gameiro (2002,2007), ainda que influenciados pelas visões de autores como Mony Elkaïm (1990) e Phillipe Caillé (1991). Fomos, ainda, influenciados por diversos aspectos do modelo de terapia familiar sistémica do NUSIAF 1 , que adopta uma postura de segunda ordem, num processo terapêutico que tem com base a sessão (entrevista interpessoal conjunta), uma metodologia sistémico-circular e 1 Núcleo de Seguimento Infantil e de Acção Familiar da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra.

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Terapia de casal e mudanças na conjugalidade

Nuno Craveiro Psicólogo e Terapeuta Familiar, [email protected] Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, Portugal Ana Paula Relvas Psicóloga e Terapeuta Familiar, [email protected] Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de

Coimbra e Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, Portugal Resumo: O presente texto reflecte sobre as mudanças na conjugalidade e sobre do papel da terapia de casal na procura de novas referências normativas e significados para a vida conjugal. São apresentados dois casos clínicos que servem de ponto de partida para reflectir sobre dúvidas associadas à utilização de um modelo específico de terapia de casal enquanto instrumento de procura de significados para a conjugalidade potenciadores de um aumento da qualidade conjugal. Palavras-chave: casal; terapia de casal; mudanças na conjugalidade.

Abstract:

This paper proposes a reflection on conjugality transformations connected with couple’s therapy and its development towards the search for new meanings and rules in couple’s relationship. The authors discuss two clinical cases as a basis to analyse the couple’s therapy model that they usually adopt in their clinical work.

Key-words: couple; couple’s therapy; conjugality changes Introdução

Na nossa abordagem terapêutica ao casal, seguimos o modelo de terapia de casal de José Gameiro (2002,2007), ainda que influenciados pelas visões de autores como Mony Elkaïm (1990) e Phillipe Caillé (1991). Fomos, ainda, influenciados por diversos aspectos do modelo de terapia familiar sistémica do NUSIAF1, que adopta uma postura de segunda ordem, num processo terapêutico que tem com base a sessão (entrevista interpessoal conjunta), uma metodologia sistémico-circular e

1 Núcleo de Seguimento Infantil e de Acção Familiar da Faculdade de Psicologia e de Ciências da

Educação da Universidade de Coimbra.

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o objectivo de alcançar a mudança visando o bem-estar grupal e individual (Relvas, 1999). Os processos terapêuticos são sempre realizados em co-terapia e, por norma, com terapeutas observadores atrás do espelho. Ao longo das próximas páginas iremos reflectir, partindo de dois casos clínicos, sobre duas questões principais, que estão relacionadas entre si. Em primeiro lugar, e de uma maneira mais geral, é nosso objectivo perceber se a terapia de casal, enquanto corpo teórico-empírico e abordagem psicoterapêutica, tem conseguido acompanhar o processo de mudança no casal e se lhe oferece um contexto de procura de significados para a própria conjugalidade potenciadores de um aumento da qualidade conjugal. Em segundo lugar, procuramos analisar até que ponto o modelo de terapia de casal que temos vindo a adoptar se revela suficientemente flexível para se adaptar a diferentes realidades

conjugais. Terapia de casal e namoro Pontualmente, ainda que de forma mais frequente, surgem pedidos de terapia de casal por parte de casais de namorados, o que nos suscita muitas dúvidas relativamente à viabilidade de levar a cabo um processo terapêutico no contexto de uma relação cujo absoluto do casal2 ainda se encontra numa fase embrionária da sua afirmação. A consolidação de processos, como a diferenciação relativamente às famílias de origem e a construção de um equilíbrio entre conjugalidade e individualidade, burilado pela coabitação, ainda não é clara. Também não o é, por vezes, o desejo de construção de um projecto familiar. Será legítimo levar a cabo uma terapia de casal neste contexto? Rute e Pedro são um jovem casal de namorados. O Pedro tem 21 anos, encontra-se a concluir o 12º ano, ao mesmo tempo que trabalha na empresa do pai e é jogador “semi-profissional” de Basquetebol. A Rute tem 20 anos e frequenta o ensino superior num Curso de Gestão de Empresas. Conheceram-se e começaram a namorar há cerca de dois anos. Vivem, separadamente, em casa dos pais. A Rute contacta telefonicamente pedindo uma terapia de casal. Sente-se muito angustiada, porque tem tido fortes discussões com o Pedro, as quais terminam com situações de violência física cruzada. A equipa começa por questionar-se acerca da adequação de levar a cabo um processo de terapia de casal com dois namorados que não 2 Modelo de organização com uma função predominantemente reflexiva de manter o casal consciente de si; para Caillé a responsabilidade dos terapeutas na terapia limita-se à revelação do absoluto do casal enquanto modelo de organização conjugal, sendo os membros do casal os únicos com a capacidade de avaliar e, eventualmente, mudar esse modelo organizador que estrutura a relação (Caillé, 1991).

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coabitam. Em situações anteriores, reflectindo sobre casos semelhantes em contexto de supervisão, tinha-se concluído que não seria possível

realizar uma terapia de casal neste contexto, uma vez que não existe coabitação e não poderemos falar ainda de um casal. Relvas (1996) descreve o casal dizendo que este “surge quando dois indivíduos se comprometem numa relação que pretendem que se prolongue no tempo (…) falar de casamento neste contexto significa que dois indivíduos deram início ao ciclo vital do casal e, logicamente, da família, não sendo necessário a sua «legalização»” (Relvas, 1996, p. 51). Reforça, ainda, que o aspecto central em questão é os membros do casal assumirem o desejo de viverem juntos, da criação de um lar e de um modelo relacional próprio, o que se refere “a um processo mais do que um momento” (idem, ibidem).

A mesma autora aborda a problemática da prevenção primária das toxicodependências tendo como referência as tarefas desenvolvimentais inerentes ao ciclo vital da família. As conclusões a que chega são passíveis de um alargamento lógico à prevenção de outras manifestações psicopatológicas e à promoção da saúde mental em geral. Segundo Relvas (2001) “as abordagens preventivas, devem, então, ser desenhadas com o objectivo de melhorar as competências familiares nesses momentos particulares; elas devem ser abordagens de empowerment” (Relvas, 2001, p. 98). Estas abordagens devem direccionar-se no sentido de ajudar as famílias a cumprir as tarefas desenvolvimentais inerentes à fase do ciclo vital que atravessam (crises normativas), ou as tarefas associadas à adaptação a acontecimentos inesperados (crises não normativas). As principais dificuldades sentidas pelas famílias em cada fase do ciclo vital podem ser consideradas como factores de risco e as suas competências e potencialidades podem ser encaradas como factores de protecção. Na mesma linha de outros autores, considera que, do ponto de vista da prevenção familiar, esta deve começar, o mais precocemente possível, isto é, na fase de formação do casal (idem). O conceito de casal acima apresentado e algumas reflexões a respeito da promoção da saúde mental em termos globais, para além da vontade de ajudar os dois jovens a encontrar alternativas para um conflito gerador de fortes angústias e mal-estar, levou a que se decidisse agendar uma primeira sessão de avaliação para iniciar um processo dentro das linhas orientadoras do modelo de terapia de casal de Gameiro (2002, 2007). Flexibilizaram-se e adaptaram-se alguns procedimentos, particularmente, na condução das entrevistas individuais, nas quais se procurou ter uma noção clara dos projectos individuais e conjugais futuros de cada um dos parceiros.

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Nas sessões de avaliação ficou claro que o casal atravessa um

momento de grande tensão emocional. A Rute vive presa entre o amor que sente pelo Pedro e os enormes ciúmes que a levam a controlá-lo e a pedir-lhe que abdique de sair com outras pessoas, particularmente com os amigos do basquetebol. O Pedro sente-se perdido: tem uma grande vontade de conviver com os amigos (algo que considera central na sua maneira de ser), mas tenta tranquilizar a Rute relativamente à sua fidelidade, abdicando de todos os contactos sociais (saídas, jantares, etc.), para além dos estritamente necessários para estar integrado na sua equipa. Qualquer situação dúbia do quotidiano que possa inspirar desconfiança na Rute gera conflitos – um ciclo de “perguntas de controlo” seguidas de dúvidas de ambos a respeito da possibilidade do namoro continuar –,

que provocam um aumento crescente de tensão emocional e de agressividade que culmina com agressões físicas mútuas. Apesar do cansaço inerente à repetição destas interacções circulares, ambos manifestam um desejo claro de encontrar alternativas para a relação e de construir um projecto conjugal comum. É estabelecido um contrato terapêutico centrado, precisamente nesses objectivos. Ao longo das sessões foi possível constatar que a Rute tem uma visão fortemente negativa do sexo masculino, inspirada pelas relações extraconjugais que o seu próprio pai foi mantendo ao longo do casamento. Tem também uma relação muito próxima com a mãe, de quem foi sendo confidente desde o início da sua adolescência. Não gosta da família do Pedro, com quem se recusa a conviver e sente desconforto por se encontrar a estudar no ensino superior enquanto o

Pedro trabalha e não tem ambições académicas; teme sentir-se envergonhada perante famílias de outra condição socio-económica. A Rute tem uma visão depreciativa dos seus próprios atributos físicos e psicológicos; não se acha bonita e sente-se ameaçada pelas outras mulheres. O Pedro tem uma boa relação com os seus pais e com a família da Rute, sentindo desconforto por esta não querer conviver com os seus pais. Vive os ciúmes da namorada com dificuldade, alternando entre uma postura de total submissão, abdicando da sua vida social, e momentos em que se torna agressivo e retalia, proibindo a Rute de sair com as suas amigas. Sente-se injustiçado porque a Rute passa a semana fora a estudar na companhia de muitos colegas que nem conhece. Apesar disso, não sente qualquer ciúme. Por seu turno, a Rute

gostaria que o Pedro fosse um pouco mais ciumento.

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Os terapeutas formularam a hipótese de que o programa oficial3 da Rute – “quero que vivas só para mim” –, está em contradição com o seu

mapa-mundo – “não és suficientemente bom/os homens não são de confiança”. Por seu turno, o Pedro terá como programa oficial – “não posso viver só para ti” –, em contradição com o seu mapa mundo – “devemos fazer tudo pelas mulheres”. Segundo esta hipótese, o programa oficial da Rute e o mapa-mundo do Pedro estão, também, em contradição entre si, pelo que o casal vive “emparedado” entre múltiplos paradoxos. Ao longo do processo, foram-se desafiando os paradoxos que, de acordo com a hipótese dos terapeutas, pareciam estar a bloquear a vida do casal. Verificaram-se mudanças positivas em termos de metacomunicação sobre os problemas, resoluções alternativas para conflitos e equilíbrio entre as esferas da individualidade da

conjugalidade. As situações de violência cessaram. Os conflitos diminuíram de frequência, intensidade e tornaram-se menos ameaçadores para a relação. Ambos encontraram no outro suporte para os desafios individuais (no curso superior; no basquetebol). Os ciúmes diminuíram e começaram a acontecer saídas sociais mais frequentes (a sós e a dois). O processo entrou em follow-up com o acordo de todos. No primeiro follow-up (passados 3 meses) os ganhos na qualidade da vida conjugal mantinham-se. No segundo follow-up (passados 6 meses) a Rute desmarcou a sessão e deixou recado de que o casal se tinha separado. Este processo surge com alguma frequência nas nossas discussões e nos nossos pensamentos a respeito da terapia, para começar, porque o seu desfecho foi dúbio e inspira diversas hipóteses (que não tivemos oportunidade de clarificar) a respeito do que terá levado o casal a separar-se e do papel que o processo terapêutico terá tido na relação. Sentimos que conseguimos ajudar este casal a encontrar um maior bem-estar (pessoal e conjugal) e a adquirir “ferramentas” úteis para o processo (permanente) de negociação e de construção de um modelo de conjugalidade. Foi possível diminuir alguns dos factores de risco presentes na sua relação, mas, no final do processo, sentimos que

3 Elkaïm (1990) propõe um modelo de terapia de casal assente nos conceitos de programa oficial (P.O.), as exigências explícitas de cada um dos cônjuges e de mapa-mundo (M.M.), o mapa que cada um construiu no passado e que tenta utilizar no presente. Segundo o autor, o conflito conjugal ocorre quando o P.O. e o M.M. de cada um dos cônjuges se encontram em contradição e, também, quando o P.O. de um dos cônjuges se encontra em contradição com o M.M. do outro. Desta situação de dupla contradição resulta um ciclo vicioso, sendo o objectivo da terapia quebrá-lo. O papel dos terapeutas é dificultado pelo facto do conflito trazer para os parceiros a mais valia de não se terem de confrontar com a contradição existente entre os seus próprios P.O. e M.M..

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nunca conseguimos criar condições para abordar outros aspectos críticos da conjugalidade, como a relação com as famílias de origem e a tensão gerada pela percepção de diferentes estatutos inerentes à condição social de cada um (por exemplo em termos de habilitações académicas). Acreditámos, contudo, na capacidade auto-organizativa do sistema e na possibilidade das competências entretanto activadas permitirem à Rute e ao Pedro encontrar alternativas relacionais quando, no futuro, essas questões vierem a entrar na ordem do dia do casal. A maioria das pessoas, na actualidade, vive diversas “experiências” conjugais (diferentes namoros, com diferentes graus de intimidade, de compromisso e de envolvimento emocional), no caminho para a construção de uma relação conjugal mais duradoura. A sucessão de experiências de enamoramento e de rompimento relacional não deixa de ser determinante, entre muitos outros factores, para a construção de um

mapa mundo que se transporta para aquela relação com um nível mais profundo de envolvimento e compromisso, na qual as pessoas encontram espaço para o desenvolvimento individual e de um “nós”. Questionamo-nos se a realização de uma terapia de casal no contexto de um namoro, independentemente dos eventuais ganhos a curto e médio prazo em termos de equilíbrio emocional dos parceiros, qualidade conjugal e bem-estar, não poderá empurrar duas pessoas para a luta obstinada por uma relação que, simplesmente, não está destinada a acontecer, por não permitir dar expressão ao crescimento individual de cada uma. Esta questão remete-nos para o difícil estabelecimento dos limites do que é um casal, e, particularmente, do que é a linha de fronteira a partir da qual não estão reunidas condições para poder ser realizada uma terapia de casal. Neste caso concreto faz-nos algum sentido recuperar o que Caillé postula a este respeito, que “se um casal pede consulta, existe nesse casal, a priori a até que provem o contrário, sob forma de um avatar4 a descobrir, um traço da paixão fundamental da relação” (Caillé, 2001), ou o que Almeida e Costa, afirma numa síntese clara e concisa a respeito dos tipos de pedido – “quando um par de indivíduos marca uma consulta com um pedido prévio como por exemplo: «problemas de casal»; «falta de comunicação»; «crime de infidelidade»; e outros igualmente abstractos, classifico o pedido deste duo como um pedido para se falar acerca do casal” (Gameiro, 2007, p. 101). Para concluir esta primeira questão. A nossa posição é a de que, por princípio, fará sentido aceitar os pedidos de terapia de casal num contexto de namoro, procedendo às devidas adaptações no protocolo

4 Para Caillé (2001) é impossível identificar os sinais da paixão isolando-os de todas as contingências, mas é legítimo investigar a forma pela qual a paixão está presente no casal, ou seja, o avatar da paixão do casal.

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terapêutico, nomeadamente, no que se refere a um aprofundamento da exploração dos projectos individuais e conjugais futuros. Entre outras mais-valias, há a possibilidade de uma intervenção precoce ao nível dos factores de risco associados a esta fase do ciclo vital. Não deixa, contudo, de ser um contexto de intervenção específico, sobre o qual importaria aprofundar o conhecimento. A decisão dos terapeutas a respeito da indicação

A premissa de que as sessões de avaliação da terapia de casal se destinam a uma tomada de decisão, da única e exclusiva responsabilidade dos terapeutas, a respeito da indicação para terapia, constitui um aspecto central no modelo de terapia de casal de José Gameiro (2002, 2007) que seguimos5. Contudo, este será o aspecto em torno do qual gravitam as nossas principais dúvidas e dificuldades. As

dúvidas surgem em todos os processos, sendo, contudo, maiores, naqueles em que se identificam contra-indicações para a terapia6. As dificuldades acentuam-se nos casais em que se identificam relações extraconjugais concomitantes, mantidas em segredo por um dos cônjuges. Mário e Sofia são professores, em escolas diferentes e estão casados há 21 anos. Têm carreiras de sucesso, em que combinam a docência com cargos de direcção. Construíram casa própria e uma vida com um certo conforto do ponto de vista económico. Não têm filhos, em consequência de um problema de esterilidade de Mário. Sofia faz um pedido de terapia de casal, referindo que, há vários anos, têm atravessado problemas na relação – Mário mantém relações

extraconjugais sucessivas (mais pontuais ou mais duradouras). Pensaram diversas vezes no divórcio e chegaram mesmo a ter períodos

5 O protocolo terapêutico desenvolvido por Gameiro (2002, 2007) é composto por: duas entrevistas iniciais, a segunda com dois tempos (com cada elemento da casal em separado e com ambos para decidir a indicação para terapia de casal, ou seja, a sua continuidade, e enviar um trabalho de casa); duas a três entrevistas seguintes, centradas individualmente mas com o casal, e três a quatro entrevistas, numa fase final, centrada na negociação conjugal. O grande objectivo da terapia de casal é trabalhar os sentimentos que se vivem na conjugalidade, permitindo a sua expressão com uma maior liberdade do que aquela que é permitida pelo conflito conjugal (Gameiro, 2007). 6 De acordo com Gameiro (2007), existem diversas contra-indicações para a terapia de casal, as

quais são determinantes para a tomada de decisão dos terapeutas a respeito da indicação para terapia, nomeadamente: a) inexistência de um mínimo de afinidades e de interesses comuns, ou de um desejo real de renegociação da relação no sentido da continuidade; b) a manifestação de um claro desejo de separação por parte de ambos os cônjuges; c) a existência de relações extraconjugais ou outro segredo que um dos cônjuges deseje manter (o que poderá ser aferido nas entrevistas individuais); d) a intenção clara e voluntária de um dos parceiros de utilizar a terapia como instrumento de perturbação do equilíbrio psíquico do outro; e) existência de um quadro psicopatológico por parte de um dos cônjuges; e f) vinda para o processo terapêutico por arrastamento ou por culpabilidade.

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breves de separação. Neste momento, Sofia sente-se confusa e ambivalente relativamente à continuidade da relação.

Na primeira sessão de avaliação deparamo-nos com um casal com um ar cansado e abatido, como se o peso do mundo fosse carregado sobre os seus ombros. Mário sobressai por, apesar de tudo, parecer manter alguma jovialidade. Sofia é uma mulher bonita com um ar profundamente triste; tem dificuldade em encarar o marido e emociona-se muito durante a sessão. Neste momento, e há 3 meses, o casal vive em casas separadas. Esta separação ocorreu após Sofia ter descoberto “mais um caso” do marido. Sofia partilha com os terapeutas que, desde os 14 anos de casamento, Mário mantém diversos relacionamentos com outras mulheres. Mário confirma-o, com um à-vontade que, de certa forma, surpreendeu os terapeutas, reconhecendo a sua manifesta dificuldade em “lidar com a

monogamia”. Estes relacionamentos extraconjugais foram sendo tolerados por Sofia, ainda que com algum sofrimento. Contudo, o último desses relacionamentos foi diferente; Mário envolveu-se com uma ex-aluna, Joana, a quem estava a orientar uma tese de mestrado. Tratando-se de alguém muito mais jovem e conhecida, Sofia não conseguiu evitar sentir-se humilhada, tendo pedido a separação. Durante a sessão, Sofia vai fazendo diversas acusações ao marido, relativamente às suas infidelidades e à sua total ausência de consciência do sofrimento que elas provocam. Mário não rejeita as acusações, referindo, apenas, que tem consciência de que magoa a esposa e que, apesar de a amar, não consegue viver sem “ter outras mulheres”.

Perante este impasse, os terapeutas questionam se, para o casal, seria possível continuar a relação aceitando a manutenção das relações extraconjugais de Mário. Sofia rejeitou firmemente esta hipótese e Mário concorda que a esposa nunca o aceitaria. A sugestão de uma terapia de casal partiu de Mário e foi aceite por Sofia com a condição da relação que esteve na origem da separação terminasse. Perante uma história tão “incomum” (pelo menos no plano da experiência dos terapeutas), em que se vislumbrava a possibilidade de algumas contra-indicações para o processo terapêutico (o casal não coabitava; não era clara a inexistência de relações extraconjugais no momento presente; desconhecia-se a disponibilidade dos cônjuges para investir na relação), os terapeutas sentiram a necessidade de ouvir individualmente cada elemento no decurso da primeira sessão e sem aprofundar muito mais a história do casal.

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No espaço individual de Mário, este reitera a sua total incapacidade de se manter fiel a uma única mulher (parece, pelo comportamento não

verbal, procurar no terapeuta masculino uma aliança que lhe permita sentir-se validado neste sentimento). Na Joana, encontrou alguém jovem, activo, interessante e atraente que lhe fez redescobrir aspectos da sua vida que se encontravam adormecidos. Porém, considera já não ter energia para acompanhar as saídas e as actividades de lazer de uma jovem de 20 anos; sente-se cansado e começa a valorizar os prazeres de um bom livro à frente da lareira. Neste momento Mário mantém a relação extraconjugal, apesar de ter assegurado Sofia do contrário, porque a Joana é “muito insistente” tendo, várias vezes, ignorado as suas tentativas de rompimento. Quer voltar para a esposa porque está cansado das suas viagens para o

emprego, uma vez que a casa que arrendou fica a uma hora de caminho do local onde trabalha, enquanto na casa que construíram é possível ir a pé para a escola. Para além disso, sente-se profundamente incapaz de dar resposta a todas as tarefas domésticas para as quais nunca teve jeito – sente falta do conforto de viver no seu espaço. O espaço individual com Mário permite identificar um segredo em torno da continuidade da relação extraconjugal, parecendo muito ambivalente no desejo de a terminar. Parece, também, ter construído uma visão da “necessidade de ter outras mulheres” como um traço incontornável da sua personalidade. No que se refere à disponibilidade para investir na relação, os terapeutas sentem grandes dúvidas. Nabarro e Ivanir (in Andolfi, 2002), no seu modelo de terapia dos casais de meia-idade em crise devido a uma relação extraconjugal, postulam a existência de quatro níveis de escolha/compromisso relativamente à continuidade da relação conjugal:

1. Escolha da família em detrimento da terceira pessoa; o cônjuge envolvido concorda permanecer em casa ou voltar para casa, o que não significa que esteja renunciando à relação extra-conjugal e que a interrompa material ou emocionalmente;

2. Escolha do casamento em detrimento da terceira pessoa; nível em que há uma decisão e compromisso favorável ao casamento e uma renúncia à terceira pessoa;

3. Escolha do relacionamento conjugal; em que cada cônjuge reconhece as qualidades do relacionamento que mantêm e o desejo de não perder dimensões positivas do casamento;

4. Escolha do cônjuge na sua totalidade; compromisso verdadeiro e completo com o relacionamento, o cônjuge e a terapia, com um

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reconhecimento, por parte do cônjuge envolvido, da essencialidade de terminar o relacionamento conjugal (p. 39-40).

O primeiro destes quatro níveis é considerado como “muito primário” em termos de escolha e de empenho. Mário parece enquadrar-se neste nível – quer voltar para casa, sem que, contudo, sejam claros o desejo de investir na relação com a esposa e a intenção de terminar o relacionamento com Joana. Verifica-se uma grande centração da sua escolha nos aspectos práticos do quotidiano familiar (tarefas domésticas), surgindo pouco conteúdo de natureza mais afectiva. Os terapeutas sentem que há “poucos ovos para fazer omeletas”. Na entrevista individual com Sofia esta transmite o seu profundo desespero perante a humilhação de que se sente vítima. Ficou

surpreendida com a naturalidade com que o marido, na primeira parte da sessão, falou sobre a sua “incapacidade de ser fiel”. Sente-se confusa e tem muitas dúvidas relativamente à sua motivação para continuar com o casamento; sente-se “cansada e sem forças”, mas, apesar de tudo, gosta do marido e das coisas que construíram (a casa, o “estilo de vida”). Os terapeutas questionam-na se mantém algum relacionamento extraconjugal, ao que Sofia responde que não. Contudo, no passado, e na sequência da descoberta de três das traições do marido, envolveu-se, ela própria, em três relacionamentos, que, contudo, foram breves e não tiveram significado para si. Sentia-se zangada e revoltada, pelo que estes foram uma forma de lidar com esses sentimentos. Mantém estes relacionamentos passados em segredo relativamente ao marido.

Sofia sente-se disposta a receber o marido de volta em casa, mas não tem a certeza se este terminou a sua relação com Joana. Da entrevista com Sofia, os terapeutas retêm a existência de mais segredos envolvendo relações extraconjugais, ainda que não concomitantes. A ambivalência de Sofia é notória; parece ter alguma disponibilidade para investir na relação, mas faz depender a sua decisão do rompimento da relação de Mário com Joana. Os terapeutas sentem-se divididos entre o desejo de ajudar duas pessoas em sofrimento a encontrar alternativas para uma relação e a constatação de várias contra-indicações para o processo terapêutico, sendo a mais evidente a de que Sofia concordou estar presente na condição de Mário ter terminado o relacionamento com Joana. Teríamos, então, um processo alicerçado num segredo que comprometeria, indelevelmente, a neutralidade dos terapeutas.

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Surge, assim, a decisão de comunicar ao casal a ausência de indicação para terapia. Os terapeutas, comunicam, com um ar sério, a sua decisão de não dar continuidade ao processo, por não existir indicação para terapia de casal, recordando a explicação introdutória no início da sessão. Mário esboça um sorriso e acena positivamente com a cabeça. Sofia mostra um ar atónito e pergunta aos terapeutas se o que lhes estão a comunicar é que “não há condições para uma terapia” ou que “não há condições para o casal continuar”. Os terapeutas, apanhados de surpresa pela pergunta, repetem a decisão nos mesmos termos. Sofia insiste, desta vez, questionando as razões da decisão, ao que os terapeutas respondem recordando as condições inicialmente apresentadas – “foi uma decisão nossa”.

Antes de se despedirem cordialmente e de agradecerem aos terapeutas, Sofia dirige algumas palavras duras a Mário, que os terapeutas não compreendem na totalidade, mas pelas quais esta parece transmitir ao marido o seu desagrado por este não ter respeitado a sua condição para vir à terapia – ter terminado a relação com Joana. Mário e Sofia abandonam a sala e os terapeutas não voltam a ter notícias do casal. Esta sessão inspirou-nos muitas dúvidas e reflexões. Reflectimos sobre o pressuposto inerente ao modelo de terapia de casal adoptado – os terapeutas, informados pela identificação de um conjunto de contra-indicações terapêuticas, tomam uma decisão unilateral que não é co-construída e negociada com os clientes. É inquestionável a utilidade deste pressuposto para contornar situações comprometedoras da neutralidade terapêutica, mas este constitui um aspecto do modelo de terapia de casal de Gameiro que é difícil de enquadrar numa concepção de intervenção sistémica de segunda ordem. Nas terapias de segunda ordem, o terapeuta deixa de ser visto como um observador neutro e exterior ao sistema terapêutico, passando a ser perspectivado como observador participante na realidade em construção. É criado um sistema terapêutico em que família e terapeutas se perturbam mutuamente e co-evoluem (Relvas, 1999, p. 37). O terapeuta é visto como um catalizador de mudança, não tendo capacidade de controlo ou de previsibilidade, sendo privilegiada uma vertente estética e semântica em detrimento de uma vertente pragmática (idem, ibidem). No que se refere à avaliação, numa abordagem de segunda ordem, esta baseia-se na “recursividade das perturbações cliente-terapeuta” (Relvas, 1999, p. 38), em detrimento da valorização prévia de qualquer teoria

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sobre o funcionamento familiar; “não há famílias «boas» ou «más»: a família é o que é e só através da activação das suas competências pode surgir a mudança desejada” (idem, ibidem). De facto, a comunicação da decisão de não indicação para terapia, não constitui um juízo a respeito das potencialidades do casal para construir alternativas para uma relação insatisfatória e dolorosa para ambos. Ela constitui, se assim o poderemos dizer, a constatação de que o modelo de terapia de casal que utilizamos terá uma probabilidade acrescida de insucesso (de não contribuir para a solução do problema, ou de o agravar) face à história e à dinâmica conjugal que o casal partilhou ao longo das duas sessões de avaliação. Isto é, trata-se de um “mau casal” para o modelo terapêutico e, simultaneamente, um “mau modelo terapêutico” para o casal. No entanto, o caso de Mário e Sofia ilustra aquilo que nos parece ser a

mensagem que, inadvertidamente, poderemos estar a transmitir aos cônjuges. Quando um casal procura ajuda terapêutica, fá-lo, na larga maioria das vezes, munido da legítima convicção de que os terapeutas poderão ajudar a “salvar a relação”. Quando dois terapeutas (investidos da autoridade que a construção social do seu papel lhes confere) comunicam a um casal que “não existe indicação para terapia”, o casal poderá confundir esta mensagem com uma outra: “não há solução para o problema conjugal”; ou “a relação deveria terminar”. Poderemos sempre argumentar que cada casal e, particularmente, cada elemento do casal, retirará um significado particular da experiência das sessões de avaliação e que, se o significado é o de que não há solução para o problema conjugal, provavelmente, algo na sua história pessoal, na sua postura perante a relação e no próprio absoluto do casal, levou a que existisse essa ressonância. Contudo, consideramos que a decisão a respeito da indicação ou não para terapia, é aquele aspecto do modelo de terapia de casal que utilizamos que tem maior potencial de criar ainda mais ruído numa relação que já se encontra sob forte tensão. No caso de Mário e Sofia, a comunicação da decisão dos terapeutas poderá ter criado maior tensão conjugal, porque parece ter-se encaixado no segredo que, simultaneamente, comprometia a neutralidade dos terapeutas e aliava o casal em torno da terapia. Face a um final que nos causou algum desconforto, uma vez que sentimos que poderíamos ter ajudado Mário e Sofia a encontrarem um novo equilíbrio na sua vida, temos vindo a reflectir e a pesquisar alternativas para a abordagem que efectuámos. Nesse processo de “luto” dos terapeutas, deparámo-nos com o modelo de terapia dos casais de meia-idade em crise devido a uma relação extraconjugal de Nabarro e Ivanir (in Andolfi, 2002), que parece encerrar algum potencial

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numa abordagem específica a estes casais. Este modelo assenta em quatro pressupostos:

1. Uma relação extraconjugal é uma experiência a vários níveis e um evento genuinamente sistémico que requer uma abordagem sistémica, tendo em consideração as suas implicações sistémicas nos triângulos que envolvem o casal, a terceira pessoa, o subsistema filial, a família alargada e outros sistemas (social e profissional, p.ex);

2. A terapia de uma crise relativa a uma relação extraconjugal deve ser integrada, isto é, deve integrar a compreensão do contexto sistémico que favoreceu a relação, considerando o ciclo vital do indivíduo e da família e as dinâmicas multigeracionais (envolvendo diferentes actores nas sessões);

3. A crise relativa à relação extraconjugal pode tornar-se uma

oportunidade de desenvolvimento; 4. A consciência da posição do terapeuta é essencial (p. 36-37).

Relativamente a este último pressuposto, as autoras referem que os terapeutas devem permanecer conscientes dos seus próprios valores e necessidades e da forma como estes se reificam na abordagem e nas escolhas orientadoras do próprio processo terapêutico. O sucesso da terapia está dependente de uma atitude de não julgar a relação extraconjugal. Contudo, salientam que “com isso não queremos dizer que se deva permanecer neutro diante de comportamentos decididamente destrutivos e irresponsáveis e que podem acompanhar a relação extraconjugal, ou que esta deva permanecer secreta (Nabarro e Ivanir in Andolfi, 2002, 37).7 Trata-se de um modelo assente em algumas ideias chave a respeito do “terreno fértil” para as crises extraconjugais, as quais abordam aspectos essenciais da dinâmica conjugal e que evolui ao longo de diversas etapas, inspirado pelos pressupostos supramencionados. A principal potencialidade deste modelo parece residir na sua especificidade e no facto de não partir do pressuposto de que o objectivo da terapia será o de dar continuidade à relação, enfatizando, pelo contrário, a necessidade de ajudar o casal a alcançar uma escolha consistente a respeito do rumo a dar ao casamento e à terapia. Relativamente a Mário e Sofia, impossibilitados de remediar as opções terapêuticas tomadas, resta-nos acreditar, mais uma vez, na capacidade auto-organizativa do sistema e esperar que a tensão criada possa ter sido utilizada como uma oportunidade de crescimento conjugal e/ou individual. 7 O Sublinhado é nosso.

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5. Conclusões Vivemos numa época em que, fruto das mudanças sociais das últimas décadas, o território da conjugalidade se encontra num acentuado processo de mudança. O casal, enquanto espaço relacional cada vez mais orientado para a concretização de projectos individuais, assume contornos difusos. Homens e mulheres lançam-se ao desafio de construir um modelo relacional tendo como referência, simultaneamente, modelos normativos de conjugalidade institucionais e modelos modernos que enfatizam o bem-estar, a privacidade, a igualdade de papéis, a reflexividade e a comunicação (Aboim, 2004). É neste contexto de mudança que a terapia de casal cresce e se consolida. Ela é, simultaneamente, um sinal da privatização da vida conjugal (e da própria procura de soluções para os conflitos conjugais) e

um contexto de apoio à construção de novos modelos relacionais. Apesar de, enquanto terapeutas, adoptarmos uma definição de casal ancorada no desejo de duas pessoas viverem juntas, criarem um lar e um modelo relacional próprio, parece-nos que, nos modelos de terapia e na nossa prática clínica, não deixa de estar presente um conceito mais “legalizado” de casal assente nos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência dos cônjuges. No que se refere à primeira questão orientadora da nossa reflexão – se a terapia de casal enquanto corpo teórico-empírico e abordagem psicoterapêutica tem conseguido acompanhar o processo de mudança do casal –, parece-nos que existe um movimento crescente dos modelos terapêuticos no sentido de valorizar mais cada casal naquilo que ele tem de único, o que, de facto, proporciona um contexto de procura de significados para a própria conjugalidade potenciadores de um aumento da qualidade conjugal. Em termos da questão mais específica relacionada com a flexibilidade do modelo de terapia de casal que temos vindo a utilizar, será importante começar por concluir que o modelo de Gameiro é um modelo rico, com uma forte fundamentação prática, flexível e com a grande vantagem de ter sido desenvolvido no contexto da realidade cultural portuguesa (tendo consideração as suas especificidades). Existem, no entanto, aspectos que nos levantam dúvidas, do ponto de vista prático e no plano da sua sustentação teórica numa abordagem sistémica de segunda ordem. Em primeiro lugar, essas dúvidas centram-se na utilização da terapia de casal em contextos relacionais específicos, como o namoro sem coabitação, questão tem como base uma necessidade de clarificar os limites daquilo que a podemos chamar “um casal”. A definição de casal que Relvas (1996) nos apresenta, na qual nos revemos, parece-nos suficientemente clara e suficientemente

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lata para nos permitir uma postura flexível relativamente à utilização da terapia de casal quando somos confrontados com um “contexto limite” (isto é, quando nos questionamos se, de facto, poderemos estar perante um par conjugal) e quando existe um pedido claro para falar sobre a relação. Em segundo lugar, a decisão a respeito da indicação para terapia, “da única e exclusiva responsabilidade dos terapeutas”, fundamentada na existência/inexistência de um conjunto de contra-indicações, parece-nos o aspecto do modelo de terapia de casal que utilizamos mais difícil de encaixar num posicionamento de segunda ordem, numa lógica de co-construção de um processo terapêutico e de novas visões do mundo. A proposta de Caillé (1991) de uma fase de negociação prévia8, para “sintonizar” os terapeutas e os cônjuges com os objectivos da terapia, parece-nos interessante para contornar as eventuais “limitações” de um

processo alicerçado numa decisão exclusiva dos terapeutas a respeito da existência ou inexistência de indicação. Para além disso, e finalmente, parece-nos importante ter sempre presente o pressuposto de que, qualquer pedido de casal, independentemente das características das duas pessoas que o efectuam e da própria relação, constitui um mote para terapeutas e clientes procurarem o avatar específico que constitui a forma como esse casal reifica o seu amor. Referências

Aboim, S. (2004). As orientações normativas da conjugalidade. In Wall,

K. (Coord.), Famílias no Portugal contemporâneo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais/ICS.

Caillé, P. (1991). Un et Un font trois. Le couple révélé à lui-même. Paris : ESF Éditeur.

Caillé, P. (2001). Le destin des couples: Avatars et métamorphoses de la passion [versão electrónica]. Thérapie Familiale, (22): 361-369.

Elkaïm, M. (1990). Se você me ama, não me ame: Abordagem sistémica em psicoterapia familiar e conjugal. São Paulo: Papirus Editora.

Gameiro, J. (2002). Terapia de Casal. Psychologica, (31): 43-48. Gameiro, J. (2007). Entre marido e mulher: Terapia de casal. Lisboa:

Trilhos Editora.

8 O protocolo invariável de Caillé (1991) é composto por 10 sessões e é precedido por uma fase de negociação (sem duração previsível) que tem como grande (e incontornável) objectivo situar a terapia, para terapeutas e casal, no planeta Beta (no qual existem os terapeutas questionadores), experiência que, por si só e segundo o autor, em alguns casais, é suficiente para permitir aos cônjuges cumprir o grande objectivo da terapia – revelar o modelo de organização do casal.

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Nabarro, R. B.; Ivanir, S. (2002). A terapia dos casais de meia-idade em crise devido a uma relação extraconjugal. In Andolfi (Coord.), A

crise do casal: Uma perspectiva sistémico-relacional. Porto Alegre: Artemed Editora.

Relvas, A. P. (1996). O Ciclo Vital da Família. Perspectiva Sistémica. Porto: Edições Afrontamento.

Relvas, A. P. (1999). Conversas Com Famílias. Discursos e Perspectivas em Terapia Familiar. Porto: Edições Afrontamento.

Relvas, A. P. (Coord.) (2001). Family: The challenge of prevention of drug use. Valencia: Martin Impressores, S.L.;