Artigo - Narração No Direito

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Artigo sobre Narração no Direito. Apresenta de forma clara e precisa os elementos linguísticos aplicados ao Direito.

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  • A NARRAO E A DESCRIO: UMA ANLISE DO POSITIVISMO E

    DO PS-POSITIVISMO A PARTIR DA LITERATURA

    Rogrio Monteiro Barbosa

    RESUMO

    O presente artigo pretende mostrar como a Literatura pode auxiliar na compreenso do

    Direito. A partir de uma anlise da narrao e da descrio literria, pretende-se demonstrar

    como o Positivismo Jurdico, por querer descrever o Direito, o reduz a uma dimenso

    meramente ftica. Por sua vez, o Ps-Positivismo, ao incrementar a narrativa em sua

    metodologia, consegue resultados mais satisfatrios na compreenso do fenmeno jurdico.

    Alguns aspectos sero destacados, tais como o tempo, o espao e posio de observador ou

    participante. Este na narrao, aquele na descrio, tanto na Literatura como no Direito. Na

    descrio, todos os objetos so nivelados e possuem a mesma importncia. H uma

    ontologizao do mundo e o ser humano sofre um processo de naturalizao que o faz

    perder sua complexidade. J na narrao, com a prpria narrativa que o mundo ganha

    sentido. Alm disso, existe um processo seletivo que impede tanto a naturalizao do

    homem, como o nivelamento do cenrio por onde corre o fio condutor da histria. Entende-

    se que no Positivismo, ao se pretender uma anlise neutra e externa ao Direito, o cientista

    descreve um objeto que, devido complexidade de seus processos legitimatrios, no pode

    ser apenas descrito, mas deve, principalmente, ser narrado. Para se conhecer o Direito

    preciso estar presente, participar de sua trama, dialogar com os outros envolvidos. preciso

    adotar a postura interna de um narrador. Como um mero observador, no se pode falar nada

    a respeito das atuais e complexas exigncias de legitimao do Direito, to importantes em

    sociedades plurais e que levam a democracia a srio.

    PALAVRAS CHAVES

    Mestrando em Teoria do Direito pela PUC Minas, bolsista pela CAPES e Diretor Executivo do IHJ/MG.

    5018

  • POSITIVISMO, PS-POSITIVISMO; NARRAO; DESCRIO.

    ABSTRACT

    The present paper intendes to show how Literature can help to understand Law. Based on

    analysis of literary narrative and description, it intends to demonstrate how Juridical

    Positivism, as it tries to describe Law, reduces it to a merely factual dimension. On the

    other hand, Pos-Positivism, as it adds narrative to its methodology, achieves more juridical

    phenomenon. Some aspects will be outstanding, such as the time, the space and the position

    of the observer or participant. The former in narrative, the latter in description, both in

    Literature and in Law. In a description, all the objetcs are levelled and equally important.

    There is an ontologization of the world, and the human being undergoes a naturalization

    process, which makes him lose his complexity. In a narrative, however, it is with the

    narrative itself that the world begins to make sense. Besides, there is a selective process

    which prevents both the naturalization of man and the levelling of the scenery along which

    the conducting thread of history runs. It is understood that in Positivism, when a neutral

    analysis which is also external to Law, is intended, the scientist describes an object which,

    due to the complexity of its legitimating processes, cannot be only described but must

    chiefly be narrated. To know Law it is necessary to be present, to participate in its

    strutcture, to discuss it with the other people involved. It is necessary to adopt the inner

    posture of a narrator. As a mere observer, nothing can be said about the complex present-

    day demands for the legitimation of Law, which are so important in plural societies where

    democracy is taken seriously.

    KEY-WORDS

    POSITIVISM; POST-POSITIVISM; NARRATIVE, DESCRIPTION.

    Introduo

    Em sua famosa Aula, proferida no Colgio de Frana, Barthes, ao analisar os

    lugares do poder, encontra-o, em suas multifrias expresses, inscrito na linguagem ou,

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  • mais precisamente, como diz, na lngua (BARTHES, 2004, p. 12). Aps dizer que a lngua

    fascista e considerar ser problemtica a liberdade (subtrao ao poder e no submisso de

    ningum ao mesmo), dada a instransponibilidade da linguagem, dir que s nos resta

    trapacear a e com a lngua (2004, p. 16). Segundo o semilogo, tal tarefa de rebeldia que

    permite algum tipo de escape do poder abarcador que a lngua possui cabe Literatura.

    Para ele, combater a ideologia e o poder que esto sempre presentes na lngua, s pode ser

    feito em seu prprio interior, atravs da Literatura.

    Com o advento da Modernidade e o desencantamento do mundo, o saber cientfico

    passou a ocupar um importante papel. Inegavelmente, propiciou uma melhoria das

    condies de vida (assim como colocou a vida do planeta em risco). Por outro lado, em

    razo de sua superespecializao alcanada e de seu persistente carter disciplinar, tornou-

    se um saber fetichizado e arrogante. Mas como Barthes nos diz, na Literatura esse problema

    no existe, j que ela, alm de poder abranger todos os saberes, no os fetichiza e ainda

    ocupa um lugar transversal entre as cincias (BARTHES, 2004, p. 18). Alm disso, se por

    um lado, a cincia pretende-se universal, por outro, a vida particular. Do mesmo modo, se

    a cincia grosseira, a vida sutil, e para corrigir essa distncia que a Literatura nos

    importa (BARTHES, 2004, p. 19).

    Barthes tambm comenta a tendncia atual de aproximao entre cincia e

    Literatura para defender uma necessria distncia1 entre ambas, na anlise da linguagem,

    que o seu objetivo (BARTHES, 2004, p. 20)

    O que pretendo fazer neste trabalho buscar uma aproximao entre elas. Trouxe o

    pensamento de Barthes com a inteno de demonstrar a relevncia que a Literatura pode ter

    para lidarmos com a cincia. Em nosso caso, especificamente com a cincia do Direito.

    Atravs de uma anlise do modo descritivo e narrativo da Literatura, traarei um paralelo

    com o Positivismo e o Ps-Positivismo. Deste modo, a Literatura ser usada para

    compreender o Direito, mas, ao mesmo tempo, procurarei demonstrar como ambos

    1 No visa, porm, a colocar cientistas de um lado e escritores de outro. Convida-nos a uma

    festa, pois, onde houver escritura pode haver sabor: saber e sabor tm, em latim, a mesma etimologia

    (BARTHES, 2004, p. 21)

    5020

  • possuem proximidades e semelhanas. Afinidades que se evidenciam na prpria

    possibilidade de comparao. No caso do texto a seguir, comparao entre a descrio e o

    Positivismo por um lado e narrao e o Ps-Positivismo por outro.

    O que descrever e o que narrar?

    H questes complexas que distinguem descrio e narrao e que sero analisadas.

    Antecipadamente, pode-se dizer que h trs aspectos que so absolutamente relevantes

    nesta distino: o tempo, o espao e a perspectiva, interna ou externa, de quem narra ou

    descreve, respectivamente. Estes aspectos que sero usados na comparao que ser feita

    com o Positivismo e o Ps-Positivismo.

    Antes de envolver a narrao e a descrio em uma polmica que, de certa forma,

    coloca uma contra a outra, ou uma sobre a outra, e antes, tambm, de entrela-las, vejamos

    o que se pode falar desses dois modos de se contar estrias e histrias. A respeito da

    narrao, Reis e Lopes, considerando-na um termo extremamente polissmico, entendem

    que de tantos possveis significados, o mais aceito no campo da narratologia o que define

    narrao como um processo de enunciao2 narrativa (REIS; LOPES, 2002, p. 247).

    Grard Genette, mesmo considerando os riscos de uma definio que pode parecer querer

    simplificar e naturalizar a narrativa define-a, em seu uso mais corrente, como a

    representao de um acontecimento ou de uma srie de acontecimentos, reais ou fictcios,

    por meio da linguagem, e mais particularmente da linguagem escrita (GENETTE, 1972, p.

    257). No se pode deixar de mencionar que em toda narrao h um narrador que no se

    2 Para Barthes, o que caracteriza certos discursos da cincia o enunciado, objeto da

    lingstica e produto de uma ausncia de um enunciador (2004, p. 20). J a enunciao, tpica da Literatura,

    expe o lugar e a energia do sujeito, qui sua falta (que no sua ausncia), visa o prprio real da

    linguagem (BARTHES, 2004, p. 20). Com a enunciao narrativa que podemos trapacear a e com a

    lngua, pois ela reconhece toda a riqueza que a lngua possui, todas as suas possibilidades de rodeios, de

    desvios de efeitos, repercusses, etc (2004, p 20)

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  • confunde com o autor emprico da narrativa3. Outro ponto importante e que ser aqui

    considerado o elemento temporal. Quando comear a tratar da relao entre narrao e

    descrio, a funo do tempo ficar mais bem compreendida para o propsito do presente

    texto. Por hora, vale evidenciar a flexibilidade temporal que h entre o narrador e o que

    narrado. Aquele podendo estar antes ou depois deste, ou lhe ser simultneo. Quanto ao

    espao, este pode ajudar a definir se a narrativa realista ou no realista (REUTER, 2002,

    p. 52). Mas o que mais interessa acerca do espao, ser posteriormente analisado: sua

    relao com o narrador.

    Em sua etimologia descrever (de-scribere) significa escrever segundo um modelo

    (REIS; LOPES, 2002, p. 94). Sendo assim, na descrio pressupe-se um mundo que nos

    dado e que pode ser representado atravs da escrita. Segundo os mesmos autores, descreve-

    se sempre o cenrio diegtico (2002, p.93). descrio, caberia a tarefa de constatar os

    elementos e fragmentos que so narrados. Assim, objetos, pessoas, o tempo, etc. Enfim,

    possui, a descrio, uma funo de ancilla narrationis (REIS; LOPES, 2002, p. 93). Para

    Genette, podemos falar de funes diegticas da descrio. Segundo ele, essas so duas.

    Primeira, uma funo decorativa, ornamental, como uma escultura presente em um edifcio

    (1971, 266). A segunda funo, mais complexa e sofisticada, diz respeito ao seu aspecto

    simblico e explicativo. Assim, as descries do cenrio, do ornamento do que ancilar,

    revelam e justificam a psicologia dos personagens, dos quais so ao mesmo tempo signo,

    causa e efeito (GENETTE, 1971, p. 266.), tendo a primeira predominado no perodo

    clssico e a segunda na atualidade. Em ambas as funes, sobressai a questo da fixidez da

    realidade e uma naturalizao da relao causal.

    A relao entre a narrao e a descrio

    3 Eco faz uma interessante anlise sobre essa confuso entre a voz que narra e a voz do autor

    em Seis passeios pelos bosques da fico (Eco, 2004). Muitos leitores, realmente, confundem as duas vozes.

    Interessante porque parece que se em alguns casos o autor emprico pode tencionar esta confuso, levando

    certos leitores a um embarao, por outro, tal intento exigiria, no mnimo, uma boa dose de boa vontade e

    imaginao dos leitores, como por exemplo, em Os sofrimentos do jovem Werther (GOETHE, 2007) e em

    Memrias pstumas de Bras Cubas (ASSIS, 1993).

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  • Como fora mencionado, h trs possibilidades de cotejo entre a descrio e a

    narrao. Uma opositiva, uma hierrquica e uma de interdependncia. Comecemos pela

    ltima4.

    Em toda narrao h um fio condutor. H sempre um sentido atribudo trama.

    Pode ser que ele se apresente desde o incio ou apenas no final, assim como pode aparecer

    no desenvolver da narrativa. Seja como for, sempre aparecem os elementos que no fazem

    parte desse fio, mas que nem por isso, so inteis. Podem ser mais ou menos decorativos,

    mais ou menos significativos, mas alguma relevncia eles revelam. Dificilmente, o prprio

    fio condutor seria inteligvel se no houvesse nenhuma descrio do cenrio. sobretudo

    na interao contnua e fecunda com os eventos diegticos que a descrio se justifica,

    ganhando um papel de relevo na construo e na compreenso global da histria (REIS;

    LOPES, 2002, p.94). Sua funo ancilar da narrao aparece, assim, como uma funo

    imprescindvel5. Seria possvel descrever estados mentais, cadeiras, condies econmicas,

    caractersticas fsicas de pessoas e no narrar nada, isolando-os no espao e

    descontextualizando-os temporalmente, ainda que tais descries no fizessem muito

    sentido e no possussem nenhum valor artstico. Podemos dizer, por exemplo, o carro

    azul. Descrevemos sem narrar. Por outro lado, o contrrio seria invivel. No possvel

    narrar, criar um fio condutor, sem um mnimo de descrio. Esse tambm o

    entendimento de Genette: A descrio poderia ser concebida independentemente da

    narrao, mas de fato no se a encontra por assim dizer nunca em estado livre; a narrao,

    por sua vez, no pode existir sem descrio (GENETTE, 1971, p. 265). Ou seja, h sempre

    4 Genette nos fala que esta oposio um dos aspectos mais caractersticos de nossa

    conscincia literria. E embora no seja recente, sua agudizao um fenmeno que se inicia no sculo XIX.

    De qualquer modo, trata-se de assunto que mereceria ser mais bem pesquisado. (GENETTE, 1971, p. 264) 5 Para Genette, possvel, inclusive, dizer que a descrio mais indispensvel do que a

    narrao, pois, se considerarmos, como ainda veremos, que o tempo fundamental apenas na narrao e que o

    espao mais importante na descrio, podemos dizer que os objetos podem existir sem movimento, mas

    no o movimento sem objetos (GENETTE, 1971, p. 265)

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  • uma relao complementar entre as duas formas de expresso. Sendo que, principalmente,

    do lado da narrao, a complementao se faz necessria.

    Todavia, se a narrao no pode existir sem a descrio, esta dependncia no lhe

    retira a prerrogativa de lhe ser superior. No pelo fato de no se poder narrar sem se

    referir ou contar com determinados objetos e personagens que a descrio se eleva

    condio de superioridade. Pelo contrrio. Por maior que seja sua importncia, sempre lhe

    atribudo o papel de ancilla narrationis. Como diz Genette,

    a descrio uma escrava sempre necessria, mas sempre submissa, jamais emancipada. Existem gneros narrativos, como a epopia, o conto, a novela, o romance, em que a descrio pode ocupar um lugar muito grande, e mesmo materialmente o maior, sem cessar de ser, como vocao, um simples auxiliar da narrativa. No existem, ao contrrio, gneros descritivos, e imagina-se mal, fora do domnio didtico (ou de fices semididticas como as de Jules Verne), uma obra em que a narrativa se comportaria como auxiliar da descrio (GENETTE, p. 265)

    Portanto, embora inarredvel de qualquer narrao, a descrio ocupa sempre um

    papel hierarquicamente inferior. Mas, se assim, qual o motivo dos argumentos de

    Genette? Por que ser que a descrio considerada mais pobre e menos interessante do

    que a narrao?

    Vimos como se d o entrelaamento. Expusemos, tambm, como uma se sobrepe

    outra. Agora, consideraremos a relao opositiva que existe entre elas e que pode desvelar

    as razes da superioridade da narrao.

    Afinal, o que h na narrao que a torna mais elaborada, mais sutil, mais capaz de

    contemplar e compreender a complexidade da vida? Como e por que os elementos j

    citados fazem com que a narrao possa, desde o perodo clssico at hoje, permanecer

    como a melhor maneira de se contar histrias?

    Primeiro argumento a favor da narrao: a temporalidade. Na descrio, o curso

    temporal no se faz necessrio. No precisamos de nenhuma sucesso temporal para

    descrever qualquer realidade. Se fssemos capazes, poderamos descrever todo o real como

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  • em um processo fotogrfico6. Estaticamente, os objetos imveis seriam descritos sem

    maiores problemas. Diferentemente da dinmica do fio condutor da narrao, na descrio

    o tempo no corre. Alis, ele pode at mesmo inexistir. E a j aparece uma questo

    extraordinria, pois, nada, ou quase nada, poder nos ser mais espetacular, ainda que

    tragicamente, do que o correr do tempo. Nossa finitude, a mais explicitadora dimenso

    temporal de nossa vida, no nos deixa que nos desliguemos do fio do tempo. Pelo menos

    no deveria. E, alm disso, nunca demais lembrar, tempus fugit. Dissociar a Literatura da

    temporalidade do viver fazer perder esta subjacente condio humana que nos impulsiona

    para a vida. Vejamos o que diz Genette a respeito do tempo na descrio e na narrativa:

    A narrao liga-se a aes ou acontecimentos considerados como processos puros, e por isso mesmo pe acento sobre o aspecto temporal e dramtico da narrativa; a descrio ao contrrio, uma vez que se demora sobre objetos e seres considerados em sua simultaneidade, e encara os processos eles mesmos como espetculos, parece suspender o curso do tempo e contribui para espalhar a narrativa no espao [...] Duas atitudes antitticas diante do mundo e da existncia, uma mais ativa, a outra mais contemplativa7 (GENETTE, 1971, p. 267)

    Sendo assim, mais do que um aspecto metodolgico h uma importante diviso de

    posturas adotadas pelo narrar e pelo descrever.

    Se pelo lado da descrio, os fatos e as personagens so atomizados e funcionam

    como episdios, como quadros que se colocam uns ao lado dos outros, mas que se mantm

    isolados, do ponto de vista artstico, tal como os quadros de um museu (LUKCS, 1965,p.

    70), pelo lado da

    verdadeira arte narrativa, a srie temporal dos acontecimentos recriada artisticamente e tornadas sensveis por meios bastante complexos. o prprio escritor que, na sua narrao precisa mover-se com a maior desenvoltura entre passado e presente, para que o leitor possa ter uma percepo clara do autntico encadeamento dos acontecimentos picos, do modo pelo qual estes acontecimentos derivam uns dos outros (LUKCS, 1965, p. 69)

    6 No pretendo, aqui, discutir o tempo na fotografia. Em outra oportunidade o farei. No

    desconheo quo complexa esta discusso. Entretanto, falo como leigo, que v na foto a captao esttica da

    realidade. A respeito do assunto tempo e fotografia, ver: LISSOVSKY, O tempo e a originalidade da

    fotografia moderna. In: DOCTORS (Org). O tento dos tempos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. 7 Mais adiante, veremos o papel que Lukcs atribui prxis.

    5025

  • Assim, por meio desse expediente artstico, o fio condutor da narrativa vai

    construindo um sentido na sucesso temporal. No se trata, portanto, de mero acmulo de

    quadros temporais.

    Intrinsecamente correlacionada com o aspecto temporal, surge a questo espacial.

    Aps analisar a descrio e a narrao em alguns especficos romances, Lukcs introduz

    uma importante anlise acerca da posio que adotamos frente aos diferentes textos que nos

    so oferecidos pela narrao e pela descrio. Enquanto leitores, em face de uma narrao,

    participamos. J em face de uma descrio, observamos. (LUKCS, 1965, p. 50) Para ele,

    esta diferena no involuntria nem inocente. Diz respeito ao posicionamento dos autores

    dos respectivos e distintos romances frente aos problemas da sociedade, da vida, etc

    (LUKCS, 1965, p. 50). Em suas anlises, o elemento catalisador das diferentes posturas

    o surgimento do capitalismo.

    A alternativa participar ou observar corresponde ento a duas posies socialmente necessrias, assumidas pelos escritores em dois sucessivos perodos do capitalismo. A alternativa narrar ou descrever corresponde aos dois mtodos fundamentais prprios destes dois perodos (LUKCS, 1965, p. 53)

    Os momentos aos quais Lukcs se refere so o surgimento e a consolidao do

    capitalismo. Na primeira fase, houve muita contestao e certo ativismo intelectual. J na

    segunda, uma certa resignao e passividade.

    No interessa, aqui, verificar os condicionantes sociais que podem atuar sobre o

    escritor. Alis, como j foi falado, pouco nos importa o autor emprico8. No obstante, o

    instrumental terico de Lukcs ser aproveitado.

    Na descrio, h uma naturalizao da vida humana, assim como uma cristalizao

    dos processos sociais, j que tudo descrito sem movimento. Entretanto, o que h na vida

    , exatamente, movimento. Na descrio, o que se nos oferece apenas a posio de

    observadores, a mesma de quem a planejou. E observamos do lado de fora. Somos

    expectadores daquele cenrio esttico. Mas e os conflitos? E o fluxo dos dramas, das

    inconstncias? Do lado de fora, no podemos conhec-los e muito menos reconhec-los.

    8 Ver nota 3.

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  • Tanto a dimenso social da vida, como a individual, s adquirem sentido dentro de certas

    prticas. O que fora? O que bom? Perguntas como estas, obtm respostas unicamente

    na prxis (LUKCS, 1965, p. 58). Assim como a personalidade das personagens s se

    desenvolve na ao9 (LUKCS, 1965, p. 58)

    E a prxis no um projeto que se esgota, que tenha um fim determinado. Ela a

    prpria vida. E s acaba quando esta tambm acaba. Por isso, a viso retrospectiva do

    narrador importante, ainda que ele a omita. De qualquer maneira ele conhece o incio e o

    fim. Percorre, percorrer ou percorreu o caminho. J o observador da descrio fixa-se em

    apenas um instante. Dele exigida a contemporaneidade da ao (LUKCS, 1965, p. 63).

    Para ele, no possvel conhecer o sentido do fio condutor. Tudo se passa como se fosse

    episdico. Sua prpria vida no pode fazer sentido. Ela tambm uma soma de partculas

    de fatos.

    Alm disso, o observador precisa estar ali, presente no momento exato, pois, caso

    contrrio, j lhe ter escapado o que ele pode conhecer e compreender. Eis o que diz

    Lukcs: a descrio torna presente todas as coisas. Contam-se, narram-se acontecimentos

    transcorridos; mas s se descreve aquilo que se v (LUKCS, 1965, p. 65). J na narrao

    no se exige que o narrador seja contemporneo dos fatos (LUKCS, 1965, p. 64). Pelo

    contrrio, sem uma certa distncia, o progresso do tempo e a seleo dos fatos considerados

    importantes lhe seriam impossveis. Ademais, podemos ver e descrever tudo? Temos a

    capacidade de, contemplando todo o mundo externo, detalhadamente, descrev-lo? Todo o

    real cognoscvel?10 Como a resposta a estas perguntas negativa, na tentativa de tudo

    descrever, ou se renuncia seletividade ou fica na superficialidade do que descrito

    (LUKCS, 1965, p. 66.) Correlato a este fato, Lukcs aponta outro aspecto muito

    interessante e problemtico na descrio: a busca pela preciso tcnica e pela verdade

    objetiva (LUKCS, 1965, p. 72). Por essa busca pela verdade, na incessante tentativa de

    alguns escritores em descrever em pormenores toda a realidade com a qual esto lidando, 9 Ainda que possamos discordar do tipo de ao pressuposta pelo autor, concordamos com

    ele com relao a importncia da prxis. 10 Para ficarmos em apenas um exemplo, quantas pginas gastaramos para descrever o canto

    direito de uma praa singela em um pequeno bairro de uma grande cidade? E para esta cidade?

    5027

  • acaba se obtendo o resultado inverso. A respeito disso, vale reproduzir o pensamento do

    autor e que muito elucidativo:

    O mtodo da observao e da descrio surge com o intento de tornar cientfica a Literatura, transformando-a numa cincia natural aplicada, em uma sociologia. Porm os momentos sociais registrados pela observao e representados pela descrio so to pobres, dbeis e esquemticos, que podem sempre, com rapidez e com facilidade, fazer com que se descambe para o extremo oposto ao do objetivismo: um subjetivismo integral11 (LUKCS, 1965, p. 76)

    Em outras palavras, nessa tentativa de se colocar de forma adstrita realidade, e ao

    perder toda a fora relacional que s se encontra na prxis, o descritor isola-se. Posiciona-se

    de forma monolgica com o mundo. Nessa busca pela objetividade, ele renuncia a qualquer

    relao intersubjetiva. Para ele, no h o outro, a no ser que se considere o outro qualquer

    objeto que ele apresente, como cavalos, carros, ventos, sonhos, mos. Em seu processo de

    naturalizao do cenrio, a vida aparece como uma dade incomunicvel: o mundo e o

    observador. Este no participa daquele. No o escuta e com ele no fala. Apenas o

    descreve, como se deve fazer com rochas. Mas o faz tambm com o homem.

    Mas o que tudo isso pode ter a ver com o Direito?

    J falei anteriormente que a relao que proporia entre o Direito e a Literatura teria

    como pontos comparativos, a descrio e o Positivismo de um lado e a narrao e o Ps-

    Positivismo de outro. J aduzi algumas explicaes acerca da Literatura. Vejamos, agora, a

    questo jurdica.

    O Positivismo Jurdico12

    11 No parece difcil de se pressupor que j h, aqui, uma importante ponte com a cincia do

    Direito. 12 Por entender que o Positivismo Jurdico j bastante conhecido dos potenciais leitores

    deste texto, dispensarei explic-lo, a no ser no que, muito particularmente, interessar para o que estou

    expondo.

    5028

  • Em seu clssico livro sobre o Positivismo Jurdico, Norberto Bobbio (1999)

    caracteriza o Positivismo em sete pontos. O primeiro diz respeito ao modo de abordar o

    Direito, que dever ser encarado como um fato. O Direito considerado como um conjunto

    de fatos, de fenmenos ou de dados sociais em tudo anlogos queles do mundo natural; o

    jurista, portanto, deve estudar o Direito do mesmo modo que o cientista estuda a realidade

    natural (BOBBIO, 1999, p. 131). No ponto seis13, que o do mtodo da cincia do

    Direito, diz o consagrado jurista:

    O Positivismo Jurdico sustenta a teoria da interpretao mecanicista, que na atividade do jurista faz prevalecer o elemento declarativo sobre o produtivo ou criativo do Direito (empregando uma imagem moderna, poderamos dizer que o juspositivismo considera o jurista uma espcie de rob ou de calculadora eletrnica) (BOBBIO, 1999, p. 133).

    Para um dos mais importantes tericos do Direito do sculo XX, talvez o mais,

    Hans Kelsen, o papel da cincia do Direito sempre realizado do lado de fora do Direito.

    Segundo ele, a cincia jurdica tem por misso conhecer - de fora, por assim dizer - o

    Direito e descrev-lo com base em seu conhecimento (KELSEN, 2003, p. 81). Cabendo s

    autoridades jurdicas, produzi-lo. Estas por sua vez, no descrevem, mas prescrevem o que

    cincia caber descrever. E a se estabelece uma distino entre a possibilidade de

    veracidade das proposies jurdicas da cincia do Direito e a validade das normas que so

    prescritas pelos rgos jurdicos. (KELSEN, 2003, p. 82)

    Um outro autor positivista que merece ser mencionado Norbert Hoerster. Em seu

    livro En defensa del positivismo juridico, o autor nos fala que por trs do conceito genrico

    de Positivismo Jurdico, cinco teses fundamentam-no. A tese da lei, da neutralidade, da

    subsuno, do subjetivismo e do legalismo. Segundo ele, apenas a segunda e a quarta,

    efetivamente, so caractersticas do Positivismo (HOERSTER, 1992, p. 11) A tese da

    neutralidade exige que o Direito no tenha nenhum contedo pr-definido, podendo,

    13 Os outros pontos so os seguintes: 2) teoria da coatividade do Direito; 3) teoria da

    legislao como fonte principal do Direito; 4) teoria da norma jurdica; 5) (teoria do ordenamento jurdico

    como um sistema coerente e completo e o ponto7) teoria da obedincia absoluta da lei. (BOBBIO, 1999,

    p.131 133)

    5029

  • inclusive, ter qualquer um. Para Hoerster, no h dvida que em todo ato legiferante h

    questes de valores. Entretanto, para conhecer esse Direito, h que faz-lo apenas

    formalmente, ou seja, para descrever o Direito, o cientista tem de se abster de qualquer

    juzo de valor sobre o mesmo. Seja no caso de uma norma geral, ainda no aplicada, seja no

    caso de uma norma individual. (HOERSTER, 1992, p. 14). Para o autor, a tese da

    neutralidade garante que o Direito seja mais bem descrito, j que prescindindo de

    valoraes, o cientista pode melhor conhecer seu objeto e, assim, descrev-lo.

    E aqui j podemos correlacionar o Direito com a Literatura. Como foi visto, h

    srios problemas com o mtodo literrio da descrio. Um deles, apontado por Lukcs

    que ao se pretender garantir o objetivismo do mundo descrito, na verdade, o que se

    consegue mergulhar o observador num solipsismo inevitvel. Do lado de fora do mundo

    em que vive, apenas ele est presente. No mximo, existiriam outros observadores como

    ele. Mas a j teramos outros mundos. Ou seja, o pretenso objetivismo desgua num

    subjetivismo. E com o Direito? Um dos problemas da descrio proposta pelos

    jurispositivistas exatamente esse: ao visar a uma cincia descritiva do Direito, que

    asseguraria uma compreenso imparcial e objetiva do mesmo, o que acontece exatamente

    o contrrio. O jurista tambm cai em um inevitvel subjetivismo. Com isso, no se pode

    nem mesmo falar-se no Direito descrito, mas em tantos quantos forem os seus

    observadores. Outro problema do Positivismo Jurdico correlato ao que acontece nas

    descries literrias o processo de naturalizao operada sobre o Direito. Assim como se

    quis fazer da Literatura uma cincia natural aplicada, o Positivismo pretende-se uma

    cincia dos fatos, isenta de valoraes. E por querer ser neutra, imparcial e impermevel

    ao binmio justo/injusto (GALUPPO, 2005, p. 199) a cincia dos positivistas reduz o

    Direito a uma dimenso meramente ftica. Na busca pelo verdadeiro Direito, desconhece a

    complexidade do fenmeno jurdico. Ignora que, mesmo a norma, que ele pretende

    descrever como um fato das cincias naturais, o resultado de um interminvel processo de

    reconhecimento por parte de seus autores e destinatrios.

    Deste modo, duas premissas do Positivismo foram recusadas. A da posio de

    observador e a do enquadramento ftico do mundo jurdico. Ambas, tpicas do mtodo

    descritivo.

    5030

  • O Ps-Positivismo

    Agora se torna importante apresentar o Ps-Positivismo como uma resposta

    exeqvel ao juspositivismo, mas que no prescinda de suas conquistas e no caia em

    nenhum tipo de jusnaturalismo (GALUPPO, 2005, p. 202). Posteriormente, procurarei

    correlacionar o Ps-Positivismo com a narrao.

    Marcelo Galuppo, contrapondo o Ps-Positivismo ao Positivismo, caracteriza-o por

    trs pontos essenciais. Em primeiro lugar, enquanto o Positivismo pensado pela categoria

    de sistemas, o Ps-Positivismo opta pelo pensamento problemtico14 (GALUPPO, 2005, p.

    202). Em segundo lugar, no Ps-Positivismo, no existe a busca pela verdade nos mesmos

    moldes que h no Positivismo. Por reconhecer que no se pode aplicar a metodologia das

    cincias naturais ao Direito e por no ser possvel descobrir a verdade no mundo

    intersubjetivo que o mundo do Direito, a epistemologia jurdica inerente ao Ps-

    Positivismo recusa o conceito de verdade como conceito central do conhecimento jurdico

    (GALUPPO, 2005, p. 203). Alm disso, citando Habermas, Galuppo nos diz que h uma

    fundamental diferena entre o mundo objetivo e o intersubjetivo. Aquele, passvel de se ser

    conhecido pelo critrio da verdade. J este, necessariamente, por sua correo normativa15.

    A diferena entre a verdade e a correo normativa no sem importncia e implica, dentre outras conseqncias, a negao suposta pretenso do Positivismo de reduzir todos os mundos e seus enunciados ao mundo objetivo da cincia e aos enunciados sobre a verdade como sendo o nico mundo e nicos enunciados que fazem sentido, pretendendo assim, reduzir todo o conhecimento vlido ao conhecimento objetivo das cincias naturais (GALUPPO, 2005, p. 203)

    14 Esta caracterstica, por no se correlacionar diretamente com tema geral do texto, no ser

    aqui analisada. 15 Segundo Habermas, em nossos atos de fala, levantamos trs pretenses de validade: 1)

    verdade; 2) correo normativa e 3) veracidade. Na primeira, o falante comunica um enunciado

    proposicional verdadeiro. Na segunda, comunica a emisso de normas corretas para que sejam reconhecidas

    como tais por falantes e ouvintes. E por fim, o falante tem que querer comunicar algo de modo veraz, ou seja,

    suas intenes tm que ser verazes (HABERMAS 1994, p. 300).

    5031

  • Sendo assim, um dos pontos centrais do Positivismo contestado. No podemos

    olvidar esta fundamental diferena entre os tipos de enunciados. Se com relao ao mundo

    das cincias da natureza so possveis enunciados que se pretendem verazes, com relao

    ao Direito, essa pretenso, que era a de Kelsen, Hoerster, Bobbio e outros positivistas,

    mostra-se inadequada, j que quanto ao mundo intersubjetivo, o critrio de validao no

    o da verdade do enunciado, mas o da correo normativa. Resumindo, a epistemologia

    ps-positivista substitui a busca pela verdade no conhecimento jurdico pela busca pela

    correo normativa na aplicao adequada de normas jurdicas a um determinado contexto

    (GALUPPO, 2005, p. 204)

    Por tudo que tem sido falado, a ltima caracterstica apresentada por Galuppo no

    poderia ser outra, seno a recusa da descrio como mtodo do Ps-Positivismo

    (GALUPPO, 2005, p. 205). Ora, se os enunciados tpicos das cincias naturais so

    inadequados para o Direito, cuja pretenso de validade, conforme foi falado o de correo

    normativa, que por sua vez s pode ser atestado pelos falantes e ouvintes envolvidos com a

    mesma, ou seja, apenas pelos participantes e nunca pelos meros observadores, a descrio

    uma maneira imprpria para a epistemologia jurdica.

    Ao final do artigo que aqui tem sido citado, Marcelo Galuppo assim o conclui:

    O Ps-Positivismo recusa ao Direito o estatuto de uma cincia. Nosso saber no cientfico. No precisa s-lo. Sobretudo no pode s-lo, se estiver a servio da emancipao. Como indicava Viehweg, talvez devssemos pensar como pensavam os romanos: no em uma Cincia do Direito, mas em uma juris prudentia (GALUPPO, 2005, p. 205)

    A narrao no Direito

    Se Galuppo estiver certo, se o Direito no for uma cincia, poderamos pens-lo

    como uma narrativa? Para responder a esta questo gostaria de considerar o que Barthes

    tem a nos dizer: Primeiro, inumerveis so as narrativas do mundo (BARTHES, 1971, p.

    18). Embora no fale sobre narrativas jurdicas, no h nada em seu argumento que nos

    faa pensar o contrrio. Vejamos: a narrativa

    5032

  • est presente no mito, na lenda, na fbula, no conto, na novela, na epopia, na histria, na tragdia, no drama, na comdia, na pantomima, na pintura [...], no vitral, no cinema, nas histrias em quadrinhos, no fait divers, na conversao. Alm disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa est presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa comea com a prpria idia de humanidade; no h em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos tem suas narrativas, e freqentemente estas narrativas so apreciadas em comum por homens de cultura diferente, e mesmo oposta (BARTHES, 1971, p. 18)

    Se a narrativa to importante, se est presente em todas as sociedades e em todos

    os tempos, se to multifria, tendo mltiplas formas e substancias, no estaria ela tambm

    presente no Direito?

    At agora, pelo que foi exposto e pela crtica que foi feita ao Positivismo, entendeu-

    se que a descrio no um mtodo apropriado para o Direito. Ser que a narrao o ?

    Ser ento que o Direito deve ser narrado, j que no pode ser descrito?

    Ronald Dworkin, em um dos textos mais importantes para a corrente Direito e

    Literatura, De que maneira o Direito se assemelha Literatura (2005) desenvolve a sua

    metfora do romance em cadeia como uma forma de se analisar o Direito. Imagina que um

    nmero de romancistas ficaria incumbido de escrever um livro. Atravs de um jogo de

    dados, estabeleceria-se a ordem de cada um. O primeiro comea o romance com as

    informaes que possui, quais sejam, a tarefa de iniciar uma obra e que posteriormente ser

    entregue a outro para que este a continue. A partir do segundo, cada romancista, alm de se

    responsabilizar pela criao de seu captulo, precisar interpretar o anterior para que o

    romance tenha uma certa integridade. Ou seja, para que cada captulo esteja integrado aos

    demais e a obra no se torne, por exemplo, um livro de contos (DWORKIN, 2005, p. 237).

    Para Dworkin, h uma similitude entre essa metfora e o Direito. Segundo ele,

    especialmente em face de casos em que no h lei que claramente possa solucion-lo, os

    juzes so obrigados a verificar qual princpio ou regra fundamentaram as decises de

    juzes no passado em casos semelhantes. Nesses casos, os juzes agem como os autores do

    romance em cadeia. Interpreta o que j foi feito para saber decidir no presente. O juiz deve

    interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a

    incumbncia que tem em mos e no partir em alguma nova direo (DWORKIN, 2005,

    p. 238). Para Dworkin, assim como a interpretao literria pode nos revelar qual a

    5033

  • melhor obra de arte (hiptese esttica), no Direito tambm possvel buscar-se uma

    interpretao que seja a mais adequada. Para isso, ele deve se valer da histria jurdica em

    que est inserido e no inventar uma melhor16 (DWORKIN, 2005, p. 240). H muitos

    aspectos envolvidos nessa teoria da interpretao de Dworkin que, por no termos como

    aprofund-las no momento, no sero analisadas. Importa ressaltar, porm, que esse

    procedimento hermenutico por ele proposto no poderia ser descrito como verdadeiro ou

    falso, assim como no caberia simplesmente julg-lo com puros juzos axiolgicos. Com

    suas palavras,

    h uma alternativa melhor: as proposies de Direito no so meras descries da histria jurdica, de maneira inequvoca, nem so simplesmente valorativas, em algum sentido dissociado da histria jurdica. So interpretativas da Histria jurdica, que combina elementos tanto da descrio quanto da valorao, sendo, porm, diferente de ambas (DWORKIN, 2005, p. 219).

    Realmente, no se trata de descrever nem de valorar. Entendo que se trata

    exatamente de um caso de narrao. A teoria de Dworkin um bom exemplo da

    permeabilidade do Direito narrativa. O juiz, ao buscar compreender o que se passou com

    as decises passadas para decidir no presente, participa de uma trama que se liga por um fio

    condutor que no pode ser descrito, mas apenas narrado. Em artigo que procura relacionar o

    Direito e a Literatura, Chueiri tambm afirma que a narrativa a maneira mais adequada

    para se compreender o Direito.

    Reafirmo a convico de que no h como compreender o Direito descritivamente, a exemplo do que sempre defendeu o Positivismo Jurdico, mas h que compreend-lo narrativa e prescritivamente, na medida em que a narrativa um terreno intermedirio entre os pontos de vista descritivo e prescritivo acerca da ao. Assim, a teoria narrativa pode, genuinamente, mediar entre descrever e prescrever, na medida em que alarga o campo da ao (da prtica) e antecipa

    16 Para uma melhor compreenso do que vem a ser a resposta correta em Dworkin, ver:

    PEDRON, Flvio Quinaud. Sobre a semelhana entre interpretao jurdica e interpretao literria em

    Ronald Dworkin. In.: Revista da Faculdade Mineira de Direito. v. 8, n. 5, p 119-139, 1 semestre de 2005.

    Ver, tambm, OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. RONALD DWORKIN: De que maneira o Direito se

    assemelha Literatura?. In.: Revista da Faculdade Mineira de Direito. V. 10, n. 19, p 87-103, 1 semestre de

    2007. Assim como DWORKIN, Ronald. Uma questo de princpio. So Paulo: Martins Fontes, 2005.

    5034

  • consideraes ticas na prpria estrutura do ato de narrar (CHUEIRI, 2007, p. 120)

    As colocaes de Chueiri so muito interessantes porque situam um aspecto que

    precisa ser destacado. Vimos como a descrio imprescindvel narrao, na medida em

    que no possvel narrar sem a presena do cenrio. Obviamente que o Direito pode

    tambm ser descrito. Entretanto, seu conhecimento impossvel externamente e no se

    reduz descrio. Alm disso, as exigncias de legitimidade tpicas do Direito impedem

    que sua narrativa seja livre da dimenso deontolgica do mesmo. Deste modo, a narrativa

    jurdica que carrega intrinsecamente uma questo de legitimidade no pode desconsiderar o

    efeito ilocucionrio da linguagem jurdica. Ao contrapor a teoria do Direito contado

    (Direito e Literatura) com teoria do Direito analisado (Kelsen, Hoester, Bobbio), Ost faz

    um comentrio que refora, exatamente, essa dimenso pragmtica da narrativa jurdica:

    A teoria clssica do Direito analisado estabelece as regras que ela estuda; essencialmente, normas de conduta que declinam as diversas modalidades da imperatividade: obrigao, permisso, proibio. J a teoria do Direito contado, instruda da teoria dos atos de linguagem (Searle, Austin), sublinha antes a importncia das regras constitutivas, que no se limitam a regular comportamentos j existentes (trafegar direita, parar ao sinal vermelho), mas constituem literalmente os comportamentos por ela visados, do mesmo modo que as regras do jogo de xadrez, explica Searle, criam, por assim dizer, a possibilidade mesma de jogar (OST, 2004, p. 43).

    Portanto, a prpria reviso na Teoria do Direito, operada pelo giro lingstico

    pragmtico, ressalta a impossibilidade de o Direito ser apenas descrito e a necessidade dele

    ser narrado.

    Concluso

    Estudar o Direito a partir de uma metodologia interdisciplinar que o correlaciona

    com a Literatura tem inmeras vantagens. Uma delas, pretendida aqui, foi a de focalizar a

    Literatura no Direito. Partindo de uma anlise da narrao e da descrio literria, procurei

    fazer uma crtica aos mtodos reducionistas do Positivismo. Ao analisar a descrio no

    Direito, verificou-se sua insuficincia e inadequao epistemologia jurdica. Por toda a

    5035

  • sua complexidade e por toda a trama argumentativa que lhe inerente, o Direito mais

    uma das tantas narrativas que existem. Pois, como diz Barthes, a narrativa est a, como a

    vida (BARTHES, 1971, p. 18). A narrativa est a, no Direito.

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