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7/30/2019 Artigo O Espectador Emancipado
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O ESPECTADOR EMANCIPADO
Artigo de Jacques Rancire
Traduo de Daniele Avila
Jacques Rancire, nascido em 1940 na Arglia, professor
emrito de esttica e poltica na Universidade de Paris VIII, onde
lecionou de 1969 a 2000. autor, entre outras obras, de Os nomes
da Histria, Polticas da escrita, O desentendimento, A partilha do
sensvel e o Mestre ignorante.
A nota na revista ArtForum de maro de 2007, onde este texto
foi publicado, diz: "O espectador emancipado foi apresentado
originalmente, em ingls, na abertura da Quinta Academia
Internacional de Artes de Vero, em Frankfurt, no dia 20 de agosto
de 2004. O texto se apresenta aqui de uma forma levemente
revisada.
"Eu chamei esta conversa de "O espectador emancipado". A
meu ver, um ttulo sempre um desafio. Ele apresenta o pressupostode que uma expresso faz sentido, de que h uma conexo entre
termos separados, o que tambm significa entre conceitos, problemas
e teorias que primeira vista no parecem ter qualquer relao
direta entre si. De um modo, este ttulo expressa o quanto fiquei
perplexo quando Mrten Spngberg me convidou para dar a palestra
que deve ser a "linha diretriz" desta escola. Ele disse que queria que
eu iniciasse esta reflexo coletiva sobre "a condio do espectador"
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porque ele ficara impressionado com o meu livro O mestre ignorante
[(Le Mitre ignorant (1987)]. Eu comecei a me perguntar que
conexo poderia haver entre a causa e o efeito. Esta uma escola
que rene pessoas envolvidas no mundo da arte, do teatro e daperformance para pensar a questo da condio do espectador hoje
em dia. O mestre ignorante foi uma reflexo sobre a teoria excntrica
e o destino estranho de Joseph Jacotot, um professor francs que, no
incio do sculo XIX, agitou o mundo acadmico ao afirmar que uma
pessoa ignorante poderia ensinar a outra pessoa ignorante o que ela
mesma no conhecia, proclamando a igualdade de inteligncias e
exigindo a emancipao intelectual no lugar da sabedoria recebida noque diz respeito educao das classes mais baixas. Sua teoria caiu
no esquecimento em meados do sculo XIX. Achei necessrio
reaviv-la nos anos 1980 para instigar o debate sobre a educao e
suas balizas polticas. Mas que uso pode ser feito, no dilogo artstico
contemporneo, de um homem cujo universo artstico poderia ser
resumido a nomes como Demstenes, Racine e Poussin?
Pensando bem, me ocorreu que a prpria distncia, a falta de
qualquer relao bvia entre a teoria de Jacotot e a questo da
condio do espectador hoje em dia pode ser promissora. Ela poderia
proporcionar uma oportunidade para estabelecer uma distncia
radical entre o que se pode pensar e os pressupostos tericos e
polticos que ainda sustentam, mesmo sob um disfarce ps-moderno,
a maior parte das discusses sobre teatro, espetculo e a condio doespectador. Eu fiquei com a impresso que de fato era possvel que
esta relao fizesse sentido, contanto que tentssemos reconstituir a
rede de pressupostos que colocam a questo da condio do
espectador numa interseo estratgica na discusso da relao entre
arte e poltica e tentssemos esboar o principal padro de
pensamento que por muito tempo emoldurou as questes polticas
em torno do teatro e do espetculo (e eu uso estes termos aqui num
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sentido bem generalizado - para incluir a dana, a performance e
todos os tipos de espetculos desempenhados por corpos atuantes
diante de um pblico coletivo).
Os numerosos debates e polmicas que tm levantado a
questo sobre o teatro ao longo da nossa histria podem ter suas
origens em uma contradio muito simples. Vamos cham-la de
paradoxo do espectador, um paradoxo que pode se provar mais
crucial do que o famoso paradoxo do ator e que pode ser resumido
nos termos mais simples. No existe teatro sem espectadores
(mesmo que seja apenas um, nico e escondido, como na
representao ficcional de Le fils naturel (1757) feita por Diderot).
Mas a condio do espectador uma coisa ruim. Ser um espectador
significa olhar para um espetculo. E olhar uma coisa ruim, por
duas razes. Primeiro, olhar considerado o oposto de conhecer.
Olhar significa estar diante de uma aparncia sem conhecer as
condies que produziram aquela aparncia ou a realidade que est
por trs dela. Segundo, olhar considerado o oposto de agir. Aqueleque olha para o espetculo permanece imvel na sua cadeira,
desprovido de qualquer poder de interveno. Ser um espectador
significa ser passivo. O espectador est separado da capacidade de
conhecer, assim como ele est separado da possibilidade de agir.
A partir deste diagnstico possvel tirar duas concluses
opostas. A primeira que o teatro em geral uma coisa ruim, queele o palco da iluso e da passividade, que deve ser posto de lado
em favor daquilo que ele probe: conhecimento e ao - a ao de
conhecer e a ao conduzida pelo conhecimento. Plato chegou a
esta concluso h muito tempo: o teatro o lugar em que pessoas
ignorantes so convidadas para assistir pessoas que sofrem. O que
acontece no palco um pathos, a manifestao de uma doena, a
doena do desejo e da dor, que no nada alm da autodiviso dosujeito causada pela falta de conhecimento. A "ao" do teatro no
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nada alm da transmisso dessa doena atravs de outra doena, a
doena da viso emprica que olha para as sombras. O teatro a
transmisso da ignorncia que torna as pessoas doentes atravs do
meio da ignorncia que a iluso de tica. Portanto, uma boacomunidade aquela que no permite a mediao do teatro, uma
comunidade cujas virtudes coletivas so diretamente incorporadas
nas atitudes vivas dos seus participantes.
Esta parece ser a concluso mais lgica para o problema. Ns
sabemos, no entanto, que esta no a concluso a que se tem
chegado com maior freqncia. A mais comum a seguinte: o teatro
envolve a questo da condio do espectador e a condio do
espectador uma coisa ruim. Portanto, precisamos de um novo
teatro, um teatro sem a condio do espectador. Precisamos de um
teatro em que a relao tica - implcita no termo theatron - esteja
subordinada a outra relao, implcita no termo drama. Drama
significa ao. O teatro o lugar no qual uma ao realmente
desempenhada por corpos vivos diante de corpos vivos. Estes ltimospodem ter abdicado do seu poder, mas esse poder recuperado por
aqueles outros na performance, na inteligncia que esta performance
constri, na energia que ela transmite. O verdadeiro sentido do teatro
deve ser atribudo a este poder que atua. O teatro deve ser trazido de
volta sua verdadeira essncia, que o contrrio daquilo que
normalmente conhecido como teatro. O que se deve buscar um
teatro sem espectadores, um teatro onde os espectadores vo deixaresta condio, onde vo aprender coisas em vez de ser capturados
por imagens, onde vo se tornar participantes ativos numa ao
coletiva em vez de continuarem como observadores passivos.
Esta virada foi compreendida de duas formas, em princpio
antagnicas, apesar de freqentemente misturadas na prtica teatral
e na sua legitimao. Por um lado, o espectador deve ser libertado dapassividade do observador que fica fascinado pela aparncia sua
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frente e se identifica com as personagens no palco. Ele precisa ser
confrontado com o espetculo de algo estranho, que se d como um
enigma e demanda que ele investigue a razo deste estranhamento.
Ele deve ser impelido a abandonar o papel de observador passivo eassumir o papel do cientista que observa fenmenos e procura suas
causas. Por outro lado, o espectador deve abster-se do papel de mero
observador que permanece parado e impassvel diante de um
espetculo distante. Ele deve ser arrancado de seu domnio delirante,
trazido para o poder mgico da ao teatral, onde trocar o privilgio
de fazer as vezes de observador racional pela experincia de possuir
as verdadeiras energias vitais do teatro.
Ns reconhecemos estas duas atitudes paradigmticas
sintetizadas pelo teatro pico de Brecht e pelo teatro da crueldade de
Artaud. Por um lado, o espectador deve ficar mais distante, por
outro, deve perder toda distncia. Por um lado, deve mudar o seu
modo de ver para ver de um modo melhor; por outro, deve
abandonar a prpria posio de observador. O projeto de reformar oteatro oscilou incessantemente entre estes dois plos de
questionamento distante e incorporao vital. Isto significa que os
pressupostos que sustentam a busca por um novo teatro so os
mesmos que sustentaram a rejeio do teatro. Os reformadores do
teatro mantiveram, de fato, os termos da polmica de Plato,
rearrumando-os ao tomar emprestada do platonismo uma noo
alternativa de teatro. Plato estabeleceu uma oposio entre umacomunidade potica e democrtica do teatro e uma "verdadeira"
comunidade: uma comunidade coreogrfica na qual ningum
permanece como espectador imvel, na qual todos se movem de
acordo com um ritmo comunitrio determinado por uma proporo
matemtica.
Os reformadores do teatro reapresentaram a oposio platnicaentre choreia e theater como uma oposio entre a essncia viva e
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verdadeira do teatro e o simulacro do "espetculo". Assim o teatro se
tornou um lugar onde a condio passiva do espectador teve que se
transformar no seu oposto - o corpo vivo de uma comunidade que
desempenha o papel do seu prprio princpio. Lemos na carta deintenes desta escola: "O teatro permanece como o nico lugar de
confronto direto do pblico com ele mesmo enquanto coletivo."
Podemos dar um sentido restritivo a esta frase, que iria apenas
contrastar o pblico coletivo do teatro com os visitantes individuais
de uma exposio ou a simples coleo de indivduos assistindo um
filme. Mas claro que esta frase significa muito mais. Ela significa
que "teatro" continua sendo o nome para uma idia de comunidadecomo um corpo vivo. Ele transmite a idia de comunidade como uma
presena de si mesma em oposio distncia da representao.
Desde o advento do romantismo alemo, o conceito de teatro
tem sido associado idia de comunidade viva. O teatro apareceu
como uma forma da constituio esttica - no sentido da constituio
sensorial - da comunidade: a comunidade como um meio de ocupar otempo e o espao, como um conjunto de gestos vivos e atitudes vivas
que esto acima de qualquer forma ou instituio polticas; a
comunidade como um corpo performtico e no como um aparato de
formas e regras. Deste modo, o teatro foi associado noo
romntica de revoluo esttica: a idia de uma revoluo que no
mudaria apenas as leis e instituies, mas transformaria as formas
sensoriais da experincia humana. A reforma do teatro significou,deste modo, a restaurao da sua autenticidade como uma
assemblia ou uma cerimnia da comunidade. O teatro uma
assemblia onde as pessoas adquirem conscincia da sua condio e
discutem os seus prprios interesses, diria Brecht depois de Piscator.
O teatro uma cerimnia onde se d comunidade a posse das suas
prprias energias, afirmaria Artaud. Se o teatro defendido como o
equivalente da verdadeira comunidade, como o corpo vivo da
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comunidade em oposio iluso da mimesis, no de se
surpreender que a tentativa de restaurar o teatro sua verdadeira
essncia tenha tido como pano de fundo terico a crtica do
espetculo.
Qual a essncia do espetculo na teoria de Guy Debord? a
externalidade. O espetculo o reino da viso. Viso significa
externalidade. Agora, externalidade significa a desapropriao do
prprio ser de uma pessoa. "Quanto mais um homem contempla,
menos ele ", diz Debord. Isto pode soar antiplatnico. claro que a
principal fonte para a crtica do espetculo a crtica da religio de
Feuerbach. o que sustenta aquela crtica - a saber, a idia
romntica da verdade como inseparabilidade. Mas esta prpria idia
se mantm de acordo com o descrdito platnico quanto imagem
mimtica. A contemplao que Debord denuncia a contemplao
teatral ou mimtica, a contemplao do sofrimento provocado pela
diviso. "A separao o alfa e o mega do espetculo", escreve.
Aquilo que o homem contempla neste esquema a atividade que lhefoi roubada; a sua prpria essncia que lhe foi arrancada, que se
tornou alheia, hostil a ele, que consente com um mundo coletivo cuja
realidade no nada alm da desapropriao mesma do homem.
Atravs desta perspectiva, no h contradio entre a busca
por um teatro que pode dar-se conta de sua prpria essncia e a
crtica do espetculo. O "bom" teatro postulado como um teatro quedispe de sua realidade distinta com o objetivo nico de suprimi-la,
para transformar a forma teatral em uma forma de vida da
comunidade. O paradoxo do espectador parte de uma disposio
intelectual que , mesmo em nome do teatro, compatvel com a
rejeio platnica do teatro. Esta estrutura est construda em torno
de algumas idias essenciais sobre as quais devemos nos questionar.
De fato, devemos questionar o prprio fundamento no qual estasidias esto baseadas. Estou falando de toda uma gama de relaes,
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firmando-me em equivalncias e oposies chaves: a equivalncia
entre teatro e comunidade, entre o ato de ver e a passividade, entre
externalidade e separao, mediao e simulacro; a oposio entre
coletivo e individual, imagem e realidade viva, atividade epassividade, conscincia de si e alienao.
Este conjunto de equivalncias e oposies endossa uma
dramaturgia muito complicada de culpa e redeno. O teatro
acusado de fazer com que seus espectadores sejam passivos,
contrariando a sua prpria essncia, o que consiste, segundo se
alega, na auto-atividade da comunidade. Como conseqncia, ele se
prope a tarefa de reverter seu prprio efeito e compensar sua
prpria culpa devolvendo aos espectadores sua autoconscincia e
auto-atividade. O palco do teatro e a cena teatral tornam-se ento a
mediao evanescente entre o mal do espetculo e a virtude do
teatro verdadeiro. Eles apresentam, para uma platia coletiva,
espetculos que pretendem ensinar aos espectadores como eles
podem deixar de ser espectadores para que se tornem atores de umaatividade coletiva. Ou, de acordo com o paradigma brechtiano, a
mediao teatral torna a platia atenta situao social em que o
prprio teatro se encontra, dando a deixa para a platia agir
conseqentemente. Ou, de acordo com o esquema artaudiano, faz
com que eles abandonem a condio de espectador: eles no esto
mais sentados diante de um espetculo, esto cercados pela cena,
arrastados para o crculo da ao, o que devolve a eles sua energiacoletiva. Em ambos os casos, o teatro uma mediao que se auto-
suprime.
Este o ponto em que as descries e proposies da
emancipao intelectual entram no quadro e nos ajudam a
remoldur-lo. Obviamente, esta idia de uma mediao que se auto-
suprime muito conhecida entre ns. Ela precisamente o processoque deve acontecer na relao pedaggica. No processo pedaggico,
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o papel do professor colocado como o ato de suprimir a distncia
entre a sua sabedoria e a ignorncia do ignorante. Suas lies e
exerccios visam diminuir continuamente a lacuna entre
conhecimento e ignorncia. Infelizmente, para diminuir a lacuna, eledeve seguir renovando-a sempre. Para substituir a ignorncia pelo
conhecimento adequado, ele deve se manter sempre um passo
frente do aluno ignorante que est perdendo sua ignorncia. A razo
para isto simples: no esquema pedaggico, o ignorante no
apenas aquele que no conhece aquilo que ele no conhece; mas
tambm aquele que ignora como conhecer. O mestre no apenas
aquele que sabe precisamente o que permanece desconhecido para oignorante; ele tambm sabe como fazer com que isto seja conhecvel,
a tal hora e em tal lugar, de acordo com tal protocolo. Por um lado, a
pedagogia apresentada como um processo de transmisso objetiva:
um pouco de conhecimento depois de mais um pouco de
conhecimento, uma palavra depois da outra, uma regra ou teorema
depois do outro. Este conhecimento deve ser transmitido diretamente
da mente do mestre ou da pgina do livro para a mente do aluno.
Mas esta transmisso igual est baseada numa relao de
desigualdade. Apenas o mestre conhece o modo certo, o tempo certo
e o lugar certo para esta transmisso "igual", porque ele conhece
algo que o ignorante jamais conhecer - a no ser que ele mesmo se
torne um mestre - algo mais importante que o conhecimento
transmitido. Ele conhece a distncia exata entre ignorncia e
conhecimento. Esta distncia pedaggica entre uma determinada
ignorncia e um determinado conhecimento , na verdade, uma
metfora. uma metfora de uma lacuna radical entre o caminho do
aluno ignorante e o caminho do mestre, a metfora de uma lacuna
radical entre duas inteligncias.
O mestre no pode ignorar que o aluno dito ignorante que est
sentado sua frente na verdade conhece muitas coisas que ele
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aprendeu sozinho, olhando e ouvindo o mundo sua volta,
adivinhando os significados do que ele via e ouvia, repetindo o que
ele ouviu e aprendeu ao acaso, comparando o que ele descobre com
o que ele j sabe, e assim por diante. O mestre no pode ignorar queo aluno ignorante adquiriu, atravs destes mesmos meios, o
aprendizado que a condio prvia para todos os outros: o
aprendizado da sua lngua materna. Mas, para o mestre, este
apenas o conhecimento do ignorante, o conhecimento da criancinha
que olha e escuta coisas aleatoriamente, compara e palpita ao acaso
e repete por hbito, sem entender a razo dos efeitos que ele
observa e reproduz. O papel do mestre romper com este processotateante de tentativa e erro. ensinar ao aluno o conhecimento do
conhecvel, ao seu prprio modo - o modo do mtodo progressivo,
que dispensa todo tatear e todo acaso, explicando itens dentro de
uma ordem, do mais simples ao mais complexo, de acordo com o que
o aluno capaz de entender, levando em considerao sua idade ou
sua formao social e suas expectativas sociais.
O conhecimento fundamental que o mestre possui o
"conhecimento da ignorncia". o pressuposto de uma lacuna radical
entre duas formas de inteligncia. Este tambm o conhecimento
fundamental que ele transmite ao aluno: o conhecimento de que as
coisas devem ser explicadas a ele para que ele entenda, o
conhecimento de que ele no consegue aprender sozinho. o
conhecimento da sua incapacidade. Deste modo, a instruoprogressiva a verificao sem fim do seu ponto de partida: a
desigualdade. Esta verificao sem fim da desigualdade o que
Jacotot chama de processo de embrutecimento. O oposto do
embrutecimento a emancipao. Emancipao o processo de
verificao da igualdade de inteligncia. A igualdade de inteligncia
no a igualdade de todas as manifestaes de inteligncia. a
igualdade em todas as suas manifestaes. Isto significa que no h
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lacuna entre duas formas de inteligncia. O animal humano aprende
tudo do mesmo modo que aprendeu a sua lngua materna, como se
aventurou pelas florestas das coisas e signos que o rodeiam para
assumir seu lugar entre seus companheiros humanos - observando,comparando uma coisa com a outra, um signo com um fato, um
signo com outro signo, e repetindo as experincias que ele encontrou
primeiramente ao acaso. Se a pessoa "ignorante" que no sabe ler s
sabe uma coisa de cor, mesmo que seja uma simples orao, ela
pode comparar este conhecimento com algo que ela ainda ignora: as
palavras da mesma orao escritas num papel. Ela pode aprender,
signo por signo, a semelhana daquilo que ela desconhece com aquiloque ela conhece. Ela pode fazer isso se, a cada passo, observar o que
est sua frente, dizer o que viu, verificar o que lhe disseram. Entre
a pessoa ignorante e o cientista que constri hipteses, sempre a
mesma inteligncia que est trabalhando: uma inteligncia que cria
formas e faz comparaes para comunicar suas aventuras intelectuais
e para entender o que outra inteligncia est tentando comunicar-lhe
de volta.
Este trabalho potico de traduo a primeira condio para
qualquer aprendizado. A emancipao intelectual, como concebida
por Jacotot, significa a ateno e a declarao daquele poder igual de
traduo e contra-traduo. A emancipao traz uma idia de
distncia oposta quela embrutecedora. Animais falantes so animais
distantes que tentam se comunicar atravs da floresta de signos. este senso de distncia que o "mestre ignorante" - o mestre que
ignora a desigualdade - est ensinando. A distncia no um mal
que deve ser abolido. a condio normal da comunicao. No
uma lacuna que demanda um especialista na arte de suprimi-la. A
distncia que a pessoa "ignorante" precisa atravessar no a lacuna
entre sua ignorncia e o conhecimento do mestre; a distncia entre
o que ela j conhece e o que ela ainda no conhece, mas pode
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aprender pelo mesmo processo. Para ajudar seu aluno a atravessar
esta distncia, o "mestre ignorante" no precisa ser ignorante. Ele s
precisa dissociar seu conhecimento do seu domnio. Ele no ensina o
conhecimento dele aos alunos. Ele inspira estes alunos a que seaventurem pela floresta, digam o que esto vendo, digam o que eles
pensam sobre o que j viram, verifiquem isto e assim por diante. O
que ele ignora a lacuna entre duas inteligncias. a conexo entre
o conhecimento do conhecvel e a ignorncia do ignorante. Qualquer
distncia uma questo de acaso. Cada ato intelectual entrelaa um
fio casual entre uma forma de ignorncia e uma forma de
conhecimento. Nenhum tipo de hierarquia social pode se firmar nestesenso de distncia.
Qual a relevncia desta histria quanto questo do
espectador? Os dramaturgos de hoje em dia no querem explicar
sua platia a verdade a respeito das relaes sociais e os melhores
meios para acabar com a dominao. Mas no suficiente que se
percam as iluses. Pelo contrrio, a perda das iluses muitas vezesleva o dramaturgo ou os atores a aumentar a presso sobre o
espectador: talvez ele venha a saber o que deve ser feito, se ele
mudar a partir do espetculo, se ele se destacar da sua atitude
passiva e se a cena fizer dele um participante ativo no mundo
pblico. Este o primeiro ponto que os reformadores do teatro
compartilham com os pedagogos do embrutecimento: a idia da
lacuna entre duas posies. Mesmo quando o dramaturgo ou o atorno sabe o que ele quer que o espectador faa, pelo menos ele sabe
que o espectador tem que fazer alguma coisa: trocar a passividade
pela atividade.
Mas por que no virar as coisas ao contrrio? Por que no
pensar, neste caso tambm, que exatamente este esforo para
suprimir a distncia que constitui a prpria distncia? Por queidentificar o fato de uma pessoa estar sentada, imvel, com
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inatividade, se no pela pressuposio de uma lacuna radical entre
atividade e inatividade? Por que identificar "olhar" com "passividade",
se no pela pressuposio de que olhar significa olhar para uma
imagem ou para uma aparncia e isso significa estar separado darealidade que est sempre atrs da imagem? Por que identificar o ato
de ouvir com ser passivo, se no pela pressuposio de que agir o
oposto de falar, etc.? Todas estas oposies - olhar/saber; olhar/agir;
aparncia/realidade; atividade/passividade - so muito mais que
oposies lgicas. Elas so o que eu chamo de partilha do sensvel,
uma distribuio de lugares e de capacidades ou incapacidades
vinculadas a estes lugares. Em outros termos, so alegorias dadesigualdade. por isso que voc pode mudar os valores dados para
cada posio sem mudar o significado das prprias oposies. Por
exemplo, voc pode trocar a posio do superior e do inferior. O
espectador geralmente desmerecido porque ele no faz nada,
enquanto os atores no palco - ou os operrios l fora - fazem alguma
coisa com seus corpos. Mas fcil inverter a questo afirmando que
aqueles que agem, aqueles que trabalham com seus corpos, so
obviamente inferiores queles que so capazes de olhar - isto ,
aqueles que conseguem contemplar idias, prever o futuro, ou ter
uma viso global do mundo. As posies podem ser trocadas, mas a
estrutura continua a mesma. O que conta, na verdade, apenas a
afirmao da oposio entre duas categorias: existe uma populao
que no pode fazer o que a outra populao faz. Existe capacidade de
um lado e incapacidade de outro.
A emancipao parte do princpio oposto, o princpio da
igualdade. Ela comea quando dispensamos a oposio entre olhar e
agir e entendemos que a distribuio do prprio visvel faz parte da
configurao de dominao e sujeio. Ela comea quando nos damos
conta de que olhar tambm uma ao que confirma ou modifica tal
distribuio, e que "interpretar o mundo" j uma forma de
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transform-lo, de reconfigur-lo. O espectador ativo, assim como o
aluno ou o cientista. Ele observa, ele seleciona, ele compara, ele
interpreta. Ele conecta o que ele observa com muitas outras coisas
que ele observou em outros palcos, em outros tipos de espaos. Elefaz o seu poema com o poema que feito diante dele. Ele participa
do espetculo se for capaz de contar a sua prpria histria a respeito
da histria que est diante dele. Ou se for capaz de desfazer o
espetculo - por exemplo, negar a energia corporal que deve
transmitir o aqui e agora e transform-la em mera imagem, ao
conect-la com algo que leu num livro ou sonhou, viveu ou imaginou.
Estes so observadores e intrpretes distantes daquilo que seapresenta diante deles. Eles prestam ateno ao espetculo na
medida da sua distncia.
Este o segundo ponto-chave: os espectadores vem, sentem
e entendem algo na medida em que fazem os seus poemas como o
poeta o fez, como os atores, danarinos ou performers o fizeram. O
dramaturgo gostaria que eles vissem esta coisa, sentissem estesentimento, entendessem esta lio a partir do que eles vem, e que
partam para esta ao em conseqncia do que viram, sentiram ou
entenderam. Ele parte do mesmo pressuposto que o mestre
embrutecedor: o pressuposto de uma transmisso igual, no-
distorcida. O mestre pressupe que aquilo que o aluno aprende
precisamente o que ele ensina. Esta a noo de transmisso do
mestre: existe algo de um lado, em uma mente ou em um corpo -um conhecimento, uma capacidade, uma energia - que deve ser
transferido para o outro lado, para outro corpo ou mente. A
pressuposio que o processo de aprendizado no simplesmente
o efeito de sua causa - ensinar - mas a transmisso mesma da causa:
o que o aluno estuda o conhecimento do mestre. Esta identidade
entre causa e efeito o princpio do embrutecimento. Em
contrapartida, o princpio da emancipao a dissociao entre causa
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e efeito. O paradoxo do mestre ignorante est a. O aluno do mestre
ignorante aprende o que o mestre no sabe, j que o mestre fala
para ele procurar alguma coisa e recontar tudo o que ele descobriu
no caminho, enquanto o mestre verifica se ele est realmenteprocurando. O aluno aprende alguma coisa como um efeito do
ensinamento do mestre. Mas ele no aprende o conhecimento do
mestre.
O dramaturgo e o ator no querem "ensinar" nada. De fato,
eles esto mais que cautelosos hoje em dia quanto a usar o palco
como um meio de ensino. Eles apenas querem proporcionar um
estado de ateno ou uma fora de sentimento ou ao. Mas eles
ainda supem que aquilo que vai ser sentido ou entendido ser o que
eles colocaram no prprio roteiro ou performance. Eles pressupem a
igualdade - ou seja, a homogeneidade - entre causa e efeito. Como
sabemos, esta igualdade se baseia em uma desigualdade. Ela se
baseia no pressuposto de que h um conhecimento adequado e uma
prtica adequada no que diz respeito "distncia" e s formas desuprimi-la. Agora, a distncia toma duas formas. H a distncia entre
o ator e o espectador. Mas h tambm a distncia inerente prpria
performance, visto que ela um "espetculo" meditico que se
encontra entre a idia do artista e o sentimento ou a interpretao do
espectador. Este espetculo um terceiro termo, a que os outros
dois podem se referir, mas que impede qualquer forma de
transmisso "igual" ou "no-distorcida". uma mediao entre eles eesta mediao de um terceiro termo crucial no processo de
emancipao intelectual. Para evitar o embrutecimento preciso que
exista algo entre o mestre e o aluno. A mesma coisa que os conecta
deve tambm separ-los. Jacotot colocou o livro como o algo que fica
no meio. O livro a coisa material, exterior tanto ao mestre quanto
ao aluno, atravs do qual possvel verificar o que o aluno viu, o que
ele disse a respeito, o que ele pensa sobre o que disse.
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Isto significa que o paradigma da emancipao intelectual
nitidamente oposto outra idia de emancipao na qual a reforma
do teatro tem sido freqentemente baseada - a idia de emancipao
como a reapropriao de um eu que fora perdido num processo deseparao. A crtica Debordiana do espetculo ainda se baseia no
pensamento Feuerbachiano da representao como alienao do eu:
o ser humano se separa da sua prpria essncia ao forjar um mundo
celestial ao qual o mundo real dos homens est submetido. Do
mesmo modo, a essncia da atividade humana distanciada,
alienada de ns na exterioridade do espetculo. A mediao do
"terceiro termo" aparece ento como a instncia da separao,expropriao e traio. Uma idia de teatro firmado na idia do
espetculo concebe a externalidade do palco como um tipo de estado
transitrio que tem que ser abolido. A supresso desta exterioridade
se torna, assim, o telos da performance. Este programa demanda que
os espectadores estejam no palco e os atores na platia. Ele
demanda que a prpria diferena entre os dois espaos seja abolida,
que a performance acontea em qualquer lugar que no seja um
teatro. Certamente, muitos avanos da cena teatral resultaram desta
derrubada da distribuio tradicional de lugares (no sentido dos locais
e dos papis). Mas a "redistribuio" de lugares uma coisa; a
demanda de que o teatro alcance, como sua essncia, a reunio de
uma comunidade una outra. A primeira provoca a inveno de
novas formas de aventura intelectual; a segunda provoca uma nova
forma de distribuio platnica dos corpos em seus prprios lugares -
ou seja, em seu lugar "comum".
Esse pressuposto contra a mediao est conectado a um
terceiro, o pressuposto de que a essncia do teatro a essncia da
comunidade. O espectador tem que se redimir quando deixa de ser
um indivduo, quando reintegrado no status de membro de uma
comunidade, quando ele arrebatado no fluxo da energia coletiva ou
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levado posio de cidado que age enquanto membro do coletivo.
Quanto menos o dramaturgo souber o que os espectadores devem
fazer enquanto coletivo, mais ele sabe que eles devem se tornar um
coletivo, que eles devem transformar sua mera aglomerao nacomunidade que eles virtualmente so. J tempo, eu acho, de
questionar a idia do teatro como um lugar especificamente
comunitrio. Espera-se que ele seja tal lugar porque, no palco, corpos
vivos e reais atuam para pessoas que esto fisicamente presentes e
juntas no mesmo lugar. Desta forma, espera-se que ele proporcione
uma sensao nica de comunidade, radicalmente distinta da
situao do indivduo assistindo televiso, ou das pessoas que vo aocinema, que se sentam diante de imagens desencarnadas,
projetadas. Por incrvel que parea, o amplo uso de imagens de todos
os tipos de meios na cena teatral no colocou este pressuposto em
questo. As imagens podem substituir os corpos vivos na cena, mas
enquanto os espectadores estiverem unidos ali, a essncia viva e
comunitria do teatro parece estar a salvo. Assim, parece impossvel
escapar da questo: o que acontece especificamente entre
espectadores num teatro que no acontece em outro lugar? Existe
algo mais interativo, mais comunitrio, que acontece entre eles do
que entre indivduos que assistem o mesmo programa na TV ao
mesmo tempo?
Acho que esse "algo" no nada alm do pressuposto de que o
teatro comunitrio em si e por si mesmo. A pressuposio do que o"teatro" significa sempre corre na frente da cena e prediz seus efeitos
reais. Mas, num teatro, ou diante de um espetculo, assim como num
museu, numa escola, ou na rua, existem apenas indivduos, abrindo
seu prprio caminho atravs da floresta de palavras e coisas que se
colocam diante deles ou em volta deles. O poder coletivo comum a
estes espectadores no o status de membro de um corpo coletivo.
E tambm no um tipo peculiar de interatividade. o poder de
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traduzir do seu prprio modo aquilo que eles esto vendo. o poder
de conectar o que vem com a aventura intelectual que faz com que
qualquer um seja parecido com qualquer outro, desde que o caminho
dele ou dela no se parea com o de mais ningum. O poder comum o poder da igualdade de inteligncias. Este poder une os indivduos
na mesma medida em que os mantm separados uns dos outros; o
poder que cada um de ns possui na mesma proporo para abrirmos
nosso prprio caminho no mundo. O que tem que ser colocado
prova pelas nossas performances - seja ensinar ou atuar, falar,
escrever, fazer arte, etc. - no a capacidade de agregao de um
coletivo, mas a capacidade do annimo, a capacidade que fazqualquer um igual a todo mundo. Esta capacidade atravessa
distncias imprevisveis e irredutveis. Ela atravessa um jogo
imprevisvel e irredutvel de associaes e dissociaes.
Associar e dissociar em vez de ser o meio privilegiado que
transmite o conhecimento ou a energia que torna as pessoas ativas -
isto sim poderia ser o princpio de uma "emancipao do espectador",o que significa a emancipao de qualquer um de ns como
espectador. A condio do espectador no uma passividade que
deve ser transformada em atividade. nossa situao normal. Ns
aprendemos e ensinamos, atuamos e sabemos, como espectadores
que ligam o que vem com o que j viram e relataram, fizeram e
sonharam. No existe meio privilegiado, assim como no existe um
ponto de partida privilegiado. Em todos os lugares h pontos departida e pontos de virada a partir dos quais aprendemos coisas
novas, se dispensarmos primeiramente o pressuposto da distncia,
depois, o da distribuio de papis e, em terceiro, o das fronteiras
entre os territrios. Ns no precisamos transformar espectadores em
atores. Ns precisamos reconhecer que cada espectador j um
ator em sua prpria histria e que cada ator , por sua vez,
espectador do mesmo tipo de histria. No precisamos transformar o
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ignorante em instrudo ou, por mera vontade de subverter coisas,
fazer do aluno ou da pessoa ignorante o mestre dos seus mestres.
Deixe-me fazer um pequeno desvio atravs da minha prpria
experincia poltica e acadmica. Eu perteno a uma gerao que
ficou suspensa entre duas perspectivas que competiam entre si: de
acordo com a primeira, aqueles que possuam a inteligncia do
sistema social deveriam passar este aprendizado para aqueles que
sofriam sob este sistema, para que estes ento passassem a agir
para derrub-lo. De acordo com a segunda, as pessoas supostamente
instrudas eram na verdade ignorantes: como eles no sabiam nada
sobre o que era explorao e rebelio, eles tinham que se tornar
alunos dos trabalhadores ditos ignorantes. Portanto, eu primeiro
tentei re-elaborar a teoria marxista para tornar suas armas tericas
disponveis para um novo movimento revolucionrio, antes de sair
para aprender com aqueles que trabalhavam nas fbricas o que
significava explorao e rebelio. Para mim, assim como para muitas
outras pessoas da minha gerao, nenhuma destas tentativas seprovou muito bem-sucedida. Foi por isso que eu decidi investigar a
histria do movimento operrio, para entender os motivos do
desencontro contnuo entre os trabalhadores e os intelectuais que os
visitavam, fosse para instru-los ou para serem instrudos por eles. Eu
tive sorte ao descobrir que esta relao no era uma questo de
conhecimento de um lado e ignorncia de outro, e tampouco era uma
questo de saber versus agir ou de individualidade versuscomunidade. Num dia de maio nos anos 1970, enquanto eu
pesquisava a correspondncia de um operrio dos anos 1830 para
determinar o que fora a condio e a conscincia dos trabalhadores
naquela poca, eu descobri algo bem diferente: as aventuras de dois
visitantes, tambm num dia de maio, mas uns cento e quarenta anos
antes que eu me deparasse com suas cartas nos arquivos. Um dos
dois correspondentes tinha acabado de entrar para a utpica
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comunidade dos Saint-simonistas e ele recontava a um amigo o seu
cronograma dirio na utopia: trabalho, exerccios, jogos, canto e
estrias. Seu amigo respondeu escrevendo sobre uma viagem que ele
tinha feito com outros dois trabalhadores para aproveitar o domingode lazer. Mas no se tratava do lazer corriqueiro de domingo em que
o trabalhador procura recuperar suas foras fsicas e mentais para a
prxima semana de trabalho. Era, na verdade, uma ruptura para
outra forma de lazer - a de estetas que desfrutam de formas, luzes e
sombras da natureza, a de filsofos que passam o tempo trocando
hipteses metafsicas numa pousada no campo e a de apstolos que
saem para comunicar sua f aos companheiros ocasionais queencontram ao longo do caminho.
Aqueles trabalhadores que deveriam ter me fornecido
informao sobre as condies de trabalho e formas de
conscientizao de classe nos anos 1830 me deram, no lugar disso,
algo muito diferente: uma noo de semelhana ou igualdade. Eles
tambm eram espectadores e visitantes, dentro da prpria classe.Sua atividade como propagandistas no podia ser separada da sua
"passividade" como meros transeuntes ou contempladores. A crnica
do seu lazer provocou uma reconfigurao da relao mesma entre
fazer, ver e dizer. Tornando-se "espectadores", eles subverteram a
dada partilha do sensvel, que diz que aqueles que trabalham no
tm tempo livre para passear e olhar ao acaso, que os membros de
um corpo coletivo no tm tempo de se tornar indivduos. isso queemancipao significa: o embaamento da oposio entre aqueles
que olham e aqueles que agem, entre os que so indivduos e os que
so membros de um corpo coletivo. O que aqueles dias
proporcionaram aos nossos cronistas no foi conhecimento e energia
para uma ao futura. Foi a reconfigurao hic et nunc da distribuio
de Tempo e Espao. A emancipao dos trabalhadores no dizia
respeito a adquirir o conhecimento da sua condio. Tratava-se de
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configurar um tempo e um espao que invalidasse a velha partilha do
sensvel que condenava os trabalhadores a no fazer nada com as
suas noites alm de restaurar suas foras para trabalhar no dia
seguinte.
Compreender o sentido desta quebra no corao do tempo
tambm significava colocar em jogo outro tipo de conhecimento, que
no baseado no pressuposto de qualquer diferena, mas no
pressuposto da semelhana. Estes homens, tambm, eram
intelectuais - como qualquer pessoa . Eles eram visitantes e
espectadores, assim como o pesquisador que, cento e quarenta anos
depois, leria suas cartas numa biblioteca, assim como os que visitam
a teoria marxista ou que esto aos portes de uma fbrica. No
existia distncia a vencer entre intelectuais e trabalhadores, atores e
espectadores; no existia distncia entre duas populaes, duas
situaes ou duas pocas. Pelo contrrio, havia uma semelhana a
ser reconhecida e colocada em jogo na prpria produo de
conhecimento. Colocar isso em jogo significava duas coisas. Primeiro,significava rejeitar as fronteiras entre disciplinas. Contar a
histria/estria dos dias e noites destes trabalhadores me forou a
embaar os limites entre o campo da histria "emprica" e o campo
da filosofia "pura". A histria que estes trabalhadores contaram era
sobre o tempo, sobre a perda e a re-apropriao do tempo. Para
mostrar o que isso significava, eu tive que colocar o relato deles em
relao direta com o discurso terico do filsofo que, muito tempoatrs na Repblica, contou a mesma histria ao explicar que, em uma
comunidade bem organizada, todo mundo deve fazer uma coisa s,
que ele ou ela deve cuidar da prpria vida, e que os trabalhadores em
todo caso no tinham tempo para gastar em nenhum outro lugar que
no fosse o prprio local de trabalho ou para fazer qualquer outra
coisa que no fosse o trabalho que se encaixava na (in)capacidade
com a qual a natureza os dotara. A filosofia, ento, no podia se
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apresentar como esfera do pensamento puro separada da esfera dos
fatos empricos. E tambm no era a interpretao terica daqueles
fatos. No havia fatos nem interpretaes. Havia duas formas de
contar histrias.
Embaar as fronteiras entre disciplinas tericas tambm
significava embaar a hierarquia entre os nveis de discurso, entre a
narrao de uma histria e sua explicao filosfica ou cientfica ou a
verdade que est por trs ou por baixo dela. No havia metadiscurso
explicando a verdade de um discurso de nvel inferior. O que tinha
que ser feito era um trabalho de traduo, mostrando como histrias
empricas e discursos filosficos se traduziam mutuamente. Produzir
um novo conhecimento significava inventar a forma idiomtica que
tornaria a traduo possvel. Eu tive que usar esse idioma para contar
a minha prpria aventura intelectual, sob o risco de que o idioma
permanecesse "ilegvel" para aqueles que queriam saber qual era a
causa da histria, seu verdadeiro significado, ou a lio que se
poderia tirar dela e que desencadearia uma ao. Eu tive queproduzir um discurso que fosse legvel apenas para aqueles que
fariam sua prpria traduo a partir do ponto de vista da sua prpria
aventura.
Este desvio pessoal pode nos levar de volta ao cerne do nosso
problema. Estas questes que envolvem o ultrapassamento de
fronteiras e o embaamento da distribuio de papis socaractersticas que definem o teatro e a arte contempornea hoje,
quando todas as habilidades artsticas se desviam do prprio campo e
trocam de lugar e de poderes com todas as outras. Temos peas sem
palavras e dana com palavras; instalaes e performances no lugar
de obras "plsticas"; projees de vdeos transformadas em ciclos de
afrescos; fotografias transformadas em quadros vivos e pinturas
histricas; escultura que se transforma em show meditico; etc.Agora, existem trs formas de entender e praticar esta confuso de
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gneros. Existe o renascimento da Gesamtkusntwerk, que se
presume ser a apoteose da arte como uma forma de vida, mas que
se prova, pelo contrrio, como a apoteose de fortes egos artsticos ou
um tipo de consumismo hiperativo, seno as duas coisas ao mesmotempo. H a idia de uma "hibridizao" dos meios da arte, que
complementa a viso da nossa poca como uma poca de
individualismo de massa que se expressa atravs de trocas
incansveis de papis e identidades, realidade e virtualidade, vida e
prteses mecnicas, e assim por diante. Do meu ponto de vista, esta
segunda interpretao nos leva em ltima anlise para o mesmo
lugar da primeira - para outro tipo de consumismo hiperativo, outrotipo de embrutecimento, na medida em que efetua o atravessamento
das fronteiras e a confuso de papis meramente como uma forma
de aumentar o poder do espetculo sem questionar seus
fundamentos.
A terceira forma - a melhor forma do meu ponto de vista - no
tem como objetivo a amplificao do efeito, mas a transformao doprprio esquema causa/efeito, com a rejeio do conjunto de
oposies que sustenta o processo de embrutecimento. Ela invalida a
oposio entre atividade e passividade assim como o esquema de
"transmisso igual" e a idia comunitria de teatro que na verdade
faz dele uma alegoria da desigualdade. O atravessamento das
fronteiras e a confuso de papis no deveriam levar a uma espcie
de "hiperteatro", transformando a condio (passiva) do espectadorem atividade ao transformar a representao em presena. Pelo
contrrio, o teatro deveria questionar o privilgio da presena viva e
trazer o palco novamente para um nvel de igualdade com o ato de
contar uma histria ou de escrever e ler um livro. Ele deveria ser a
instituio de um novo estgio de igualdade, onde os diferentes tipos
de espetculo se traduziriam uns nos outros. Em todos estes
espetculos, na verdade, a questo deveria ser ligar o que uma
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pessoa sabe com o que ela no sabe; deveria se tratar, ao mesmo
tempo, de atores que apresentam suas habilidades e espectadores
que esto tentando encontrar o que aquelas habilidades poderiam
produzir em um novo contexto, entre pessoas desconhecidas.Artistas, como pesquisadores, constroem o palco onde a
manifestao e o efeito das suas habilidades se tornam dbios na
medida em que eles moldam a histria de uma nova aventura em um
novo idioma. O efeito do idioma no pode ser antecipado. Ele
demanda espectadores que so interpretadores ativos, que oferecem
suas prprias tradues, que se apropriam da histria para eles
mesmos e que, finalmente, fazem a sua prpria histria a partirdaquela. Uma comunidade emancipada , na verdade, uma
comunidade de contadores de histria e tradutores.
Eu tenho conscincia de que tudo isso deve soar como palavras,
meras palavras. Mas eu no levaria isto como um insulto. Ouvimos
tantos oradores passarem suas palavras adiante como algo mais que
palavras, como senhas que nos habilitariam a entrar em uma novavida. Vimos tantos espetculos que se gabavam por no serem meros
espetculos, mas cerimoniais de uma comunidade. Mesmo hoje em
dia, apesar do chamado ceticismo ps-moderno quanto a mudar
nossa forma de viver, pode-se ver tantos shows que posam como
mistrios religiosos que talvez no seja to escandaloso ouvir, para
variar, que palavras so apenas palavras. Romper com os fantasmas
da Palavra transformada em carne e do espectador transformado emator, saber que palavras so apenas palavras e que espetculos so
apenas espetculos talvez nos ajude a entender melhor como
palavras, histrias e espetculos podem nos ajudar a mudar alguma
coisa no mundo em que vivemos.