21
546-566 Artigo Artigo recebido em 5 de setembro de 2017 e aprovado para publicação em 1º de novembro de 2017. DOI: 10.1590/TEM-1980-542X2018v240307. Cem anos de estudos sobre a cartografia portuguesa das ilhas do sudeste asiático na primeira metade do século XVI: evolução das agendas de pesquisa Francisco Roque de Oliveira [*] [*] Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (CEG-IGOT-ULisboa) — Lisboa — Portugal. E-mail: [email protected] ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5854-8971 Resumo: Ao longo dos últimos cem anos, um conjunto restrito de historiadores da cartografia propôs sínteses sobre os mais antigos mapas portugueses das ilhas do sudeste asiático, tema estreitamente vinculado ao conjunto dos mapas ibéricos do século XVI e condicionado pelo desacordo diplomático luso-castelhano pela posse das Molucas. Apresentamos uma análise dos principais trabalhos dedicados a esse tópico e examinamos a forma como esses ensaios reflectem os diversos paradigmas teórico- metodológicos que foram sendo próprios da historiografia da cartografia, assim como contextos nacionais e institucionais específicos. Avaliaremos também em que medida seu legado incorpora algumas das mais pertinentes questões próprias do debate teórico atual sobre a história da cartografia, a começar por aquelas que postulam a necessidade de atender aos contextos técnicos, culturais e políticos subjacentes à elaboração e à circulação dos mapas. Palavras-chave: Cartografia portuguesa; Ilhas do sudeste asiático; Teoria da história da cartografia. e Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six- teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract: Over the last 100 years, a limited number of cartography historians have proposed syntheses on the oldest Portuguese maps of Southeast Asia, a theme closely linked to the whole of the Iberian maps of the sixteenth century and conditioned by the Portuguese-Castilian diplomatic dispute over the possession of the Moluccas. We present an analysis of the main works dedicated to this topic of research and examine how these essays reflect the diverse theoretical and methodological paradigms proper to the history of cartography, as well as specific national and institutional contexts. We will also assess the extent to which its legacy incorporates some of the most pertinent issues inherent in the current theoretical debate on the history of cartography, starting with those that postulate the need to address the technical, cultural and political contexts underlying the design and circulation of maps. Keywords: Portuguese cartography; Insular Southeast Asia; Theory in the history of cartography.

Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

  • Upload
    others

  • View
    5

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

546-566

Artigo

Artigo recebido em 5 de setembro de 2017 e aprovado para publicação em 1º de novembro de 2017.

DOI: 10.1590/TEM-1980-542X2018v240307.

Cem anos de estudos sobre a cartografia portuguesa das ilhas do sudeste asiático na primeira metade do século XVI: evolução das agendas de pesquisa

Francisco Roque de Oliveira [*]

[*] Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (CEG-IGOT-ULisboa) — Lisboa — Portugal. E-mail: [email protected]

ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5854-8971

Resumo: Ao longo dos últimos cem anos, um conjunto restrito de historiadores da cartografia propôs sínteses sobre os mais antigos mapas portugueses das ilhas do sudeste asiático, tema estreitamente vinculado ao conjunto dos mapas ibéricos do século XVI e condicionado pelo desacordo diplomático luso-castelhano pela posse das Molucas. Apresentamos uma análise dos principais trabalhos dedicados a esse tópico e examinamos a forma como esses ensaios reflectem os diversos paradigmas teórico-metodológicos que foram sendo próprios da historiografia da cartografia, assim como contextos nacionais e institucionais específicos. Avaliaremos também em que medida seu legado incorpora algumas das mais pertinentes questões próprias do debate teórico atual sobre a história da cartografia, a começar por aquelas que postulam a necessidade de atender aos contextos técnicos, culturais e políticos subjacentes à elaboração e à circulação dos mapas.

Palavras-chave: Cartografia portuguesa; Ilhas do sudeste asiático; Teoria da história da cartografia.

The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesisAbstract: Over the last 100 years, a limited number of cartography historians have proposed syntheses on the oldest Portuguese maps of Southeast Asia, a theme closely linked to the whole of the Iberian maps of the sixteenth century and conditioned by the Portuguese-Castilian diplomatic dispute over the possession of the Moluccas. We present an analysis of the main works dedicated to this topic of research and examine how these essays reflect the diverse theoretical and methodological paradigms proper to the history of cartography, as well as specific national and institutional contexts. We will also assess the extent to which its legacy incorporates some of the most pertinent issues inherent in the current theoretical debate on the history of cartography, starting with those that postulate the need to address the technical, cultural and political contexts underlying the design and circulation of maps.

Keywords: Portuguese cartography; Insular Southeast Asia; Theory in the history of cartography.

Page 2: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 547-566

Introdução

No ano seguinte ao término da I Guerra Mundial, o geólogo holandês Eduard Cornelius Abendanon (1878-1962) publicou no The Geographical Journal um sugestivo estudo que, explícita ou implicitamente, vem guiando até hoje as principais pesquisas

dedicadas aos primórdios da cartografia europeia das ilhas do sudeste asiático. Trata-se de “Missing links in the development of the ancient Portuguese cartography of the Netherlands East Indian Archipelago”, texto publicado quase em simultâneo, em francês, no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (1919a e 1919b) e que surgiu na sequência da preparação do terceiro e último volume do trabalho mais vasto que Abendanon empreendeu por esses anos sobre a cartografia histórica das ilhas Celebes: Voyages géologiques et géographiques à travers la Célèbes centrale (1900-1910) [Leyden, 1916-1918].

A versão inglesa desse estudo sobre a cartografia portuguesa da atual Indonésia vem acrescentada de um breve, mas muito pertinente, comentário crítico assinado por Edward Heawood (1863-1949), bibliotecário da Royal Geographical Society, de Londres (1919). Muitos anos depois, em 1975, o mais destacado especialista em cartografia antiga portuguesa do século XX, Armando Cortesão (1871-1977), deu à estampa uma extensa resenha sobre as mais antigas cartografias e a descrição das Molucas (1975). Para a composição desse que foi um dos seus últimos trabalhos, Cortesão partiu, em boa medida, do texto que Abendanon vira publicado por duas vezes em 1919, tratando de rever algumas de suas principais ideias com base num conhecimento mais alargado das fontes cartográficas portuguesas da primeira metade do século XVI.

No essencial, a seleção e a organização de materiais realizadas por Abendanon e Cortesão a propósito dessa matéria, focadas numa preocupação em distinguir a produção cartográfica portuguesa de outras tradições cartográficas europeias, reaparecem no conteúdo dos dois ensaios mais significativos que, em anos mais recentes, vieram atualizar esse tópico de pesquisa: “The image of the Archipelago in the Portuguese cartography of the 16th and early 17th centuries”, que Luís Filipe Thomaz publicou na revista Archipel em 1995, e “Other maps, other imagens: Portuguese cartography of Southeast Asia and the Philippines (1512-1571)”, de José Manuel Garcia (Thomaz, 1995; Garcia, 2002). Acrescente-se que o último estudo deve ser lido em conjunto com o preâmbulo que o próprio Garcia escreveu para a edição fac-similada do Livro de Francisco Rodrigues, cuja publicação coordenou (2008).

Essas são as principais referências bibliográficas que tomaremos para a síntese que aqui fazemos sobre os mais antigos mapas ocidentais das ilhas do sudeste asiático. Sempre que nos parecer oportuno, sublinharemos em que medida parte dos pressupostos próprios do estudo “clássico” da cartografia antiga exemplificado por Abendanon, Cortesão e Heawood tem sido ampliada ou revista com base em algumas das preocupações enunciadas nos trabalhos mais recentes de Thomaz e Garcia. Uma das vantagens de dispormos de cerca de cem anos de estudos acumulados sobre um mesmo objeto é que, quando colocados em sequência, eles

Page 3: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 548-566

oferecem uma oportunidade excepcional para notarmos o sentido cambiante das opções metodológicas seguidas, ou seja, permitem-nos tomar o pulso a alguns aspectos próprios da historiografia da história da cartografia (Harley, 1987, p. 17-39; Edney, 1996, p. 186-188; Oliveira, 2012, p. 15-19).

Essa continuidade de interesses nos oferece ainda o ensejo para avaliarmos em que medida as modernas agendas dessa disciplina descobrem aqui novas oportunidades para a prossecução dos seus inquéritos sobre os contextos técnicos, culturais e políticos subjacentes à elaboração e à circulação dos objetos cartográficos.

Primeiras viagens e primeiros mapas

Em sua resenha centenária, Abendanon visava inquirir sobre os espécimes cartográficos de matriz portuguesa que testemunhariam o paulatino progresso do conhecimento geográfico sobre o arquipélago malaio-indonésio para além dos únicos mapas sobreviventes da primeira metade do século XVI que considerava espelharem uma cartografia tanto quanto possível baseada em observações pessoais: por um lado, os mapas incluídos no designado Livro de Francisco Rodrigues — que Abendanon datou de 1511-1513, muito perto do intervalo de elaboração desta obra que hoje se discute, de 1511-1515 — e, por outro, o mapa-múndi de Lopo Homem, de 1554, guardado no Museo di Storia della Scienza, em Florença.

Para abordar o problema, ele parte de um conjunto de pressupostos que, a distância de todos estes anos, aparecem tanto ou mais interessantes que as próprias conclusões a que chegou, centradas no valor dos mapas da “escola de Dieppe” como vestígios indiretos do desenvolvimento da cartografia portuguesa do sudeste asiático marítimo entre a anônima Carta do Delfim (ou Carta Harleiana), de circa 1536, e os trabalhos de Nicolas Desliens, Jean Rotz e Pierre Desceliers, das décadas de 1540 a 1560 (Abendanon, 1919a, p. 352-354; Cortesão, 1978, p. 98-101; La Roncière e Mollat du Jourdin, 1984, p. 28-31; Garcia, 2008, p. 55-56; Matos, 2016, p. 918-919; Oliveira, 2016, p. 191).

A principal premissa de Abendanon é aquela que o faz vincular o valor dos mapas à viagem ou à observação direta dos lugares que lhe deu origem. É assim que, logo à partida, qualifica como fantasista toda a cartografia anterior à primeira grande expedição portuguesa de reconhecimento do arquipélago, empreendida entre 1511 e 1512, por ordem do governador da Índia Afonso de Albuquerque (gov. 1509-1515), na sequência da conquista de Malaca, em agosto de 1511. Trata-se da conhecida expedição capitaneada por António de Abreu, que zarpou de Malaca no fim de 1511 destinado a reconhecer o caminho marítimo para Molucas e Banda e a quem Rodrigues integrou na qualidade de piloto-cartógrafo (Cortesão, 1943, p. 343-354; Cortesão, 1978, p. 82-88; Matos, 2006, p. 268-277; Garcia, 2008, p. 18-19; Pinto, 2013, p. 74-77).

Page 4: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 549-566

Esse critério de classificação tem um efeito secundário não menos importante quando aplicado à cartografia dita espanhola do mesmo período, mormente aquela que incorporou os resultados da presença dos agentes da Coroa espanhola nas Molucas (e nas Filipinas) entre a expedição de Fernão de Magalhães/Juan Sebastián Elcano (1521-1522) e aquela de Ruy López de Villalobos, que permaneceu em Ternate entre 1543 e 1546.

Abendanon considera que o caráter sempre precário e intermitente da presença espanhola nessas águas inviabilizou, por si só, qualquer progresso significativo no desenho cartográfico do arquipélago até 1550, ano do planisfério de Diego Gutiérrez, peça que encerra uma sequência na qual pontificam os principais mapas conhecidos de Nuño García de Toreno, Diogo Ribeiro, Sebastian Cabot e Alonso de Santa Cruz (Abendanon, 1919a, p. 150-152; Martín Merás, 1993, p. 97-119; Cerezo Martínez, 1994, p. 218-219, 261-262; Brotton, 1997, p. 138-150; Brotton, 2012, p. 200-217; Sánchez, 2013, p. 171-228).

Da mesma forma que Abendanon assume exclusivamente como válida a cartografia portuguesa do arquipélago malaio-indonésio que qualifica de “oficial e cujos paradigmas seriam os referidos mapas de Rodrigues e Lopo Homem, a lógica da sua tese se assenta também na ideia muito simples de que, a partir de meados do século XVI — quer dizer, virtualmente desde o mapa de Lopo Homem, de 1554 —, a cartografia portuguesa inicia uma fase de declínio irreversível, resultado da degenerescência e do crescente desgoverno dos portugueses no arquipélago supostamente verificada desde então e cujo resultado mais imediato veio a ser sua expulsão de Ternate pelos habitantes locais, em 1575 (1919a, p. 350).

Essa tese, na qual se volta a articular a qualidade do exercício cartográfico e seu “progresso” com o exercício de um contato regular e forte no terreno, é rematada com outra preposição de feição essencialmente nacionalista, além de eurocêntrica: “A new period of cartografic activity for the Archipelago only commenced at and through the arrival of the Dutch towards the end of the 16th century” (1919a, p. 350). Trata-se de confirmar a sugestão de sucessivas linhagens cartográficas razoavelmente estanques entre si, cada uma delas associada a determinada experiência colonial europeia no sudeste asiático: os mapas portugueses e seus avatares de Dieppe para o “século português” do arquipélago; os mapas holandeses, como que inventados para o novo poder colonial hegemônico na região consubstanciado pela Vereenigde Oost-Indische Compagnie (VOC); e, por fim, os mapas espanhóis, como pálido indício de uma experiência colonial desde cedo confinada à periferia do grande espaço insular do sudeste asiático.

Mapas anteriores à viagem

Quando Cortesão retomou o velho exercício proposto por Abendanon sobre os primórdios da cartografia, a qual era hábito designar como “Insulíndia” (Lobato, 2016, p. 581-588), aproveitou

Page 5: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 550-566

para aplicar a esse caso cerca de quarenta anos de estudos próprios sobre a cartografia antiga portuguesa, entre os quais se incluía a primeira edição do Livro de Francisco Rodrigues, que empreendera para a Hakluyt Society (Cortesão, 1944). Mas, sobretudo, pôde aproveitar os resultados da monumental síntese da produção cartográfica do “século de ouro” português correspondente aos Portugaliae Monumenta Cartographica (6 vols., Lisboa, 1960-1962), empresa editorial que realizara em parceria com Avelino Teixeira da Mota (1920-1982).

O estudo dedicado à cartografia das Molucas foi preparado para o II Colóquio Luso-Espanhol de História Ultramarina, que ocorreu em Lisboa, em 1973, coordenado por Teixeira da Mota e subordinado ao tema “«A viagem de Fernão de Magalhães e a questão das Molucas”. Foi a última grande iniciativa no âmbito da história organizada pela Junta de Investigações Científicas do Ultramar, organismo governamental que tutelou os estudos tropicais na última fase do Estado Novo e do império ultramarino português, tendo sido promovida com o pretexto de aprofundar a análise da complementaridade entre fontes portuguesas e espanholas (Valentim, 2007, p. 214-218).

A percepção desse contexto científico, simultaneamente receptivo ao desenvolvimento de pesquisas comparadas, mas que não dispensa o viés nacionalista que Cortesão cultivou como poucos no terreno da história da cartografia em Portugal, ajuda a compreender os resultados desse inquérito historiográfico. O tema e sua circunstância parecem se conjugar de forma a tornar tal tarefa científica particularmente urgente. Por um lado, Cortesão considerara desde sempre que o diferendo luso-espanhol pela posse das ilhas Molucas fora “o problema máximo da política portuguesa no campo internacional, pois a colonização do Brasil e da África só mais tarde tomou a importância que hoje se lhe reconhece” (1935, v. 1, p. XXXII-XXXIII); por outro, desde o início da década de 1960, coincidindo com o princípio da guerra colonial que Portugal travou na África até 1974, Cortesão abria as lições que ministrava no curso de história da cartografia da Universidade de Coimbra lembrando como “em períodos de crise internacional como o que atravessamos” o estudo do panorama da antiga cartografia portuguesa era fundamental para que se pudesse verificar, “fácil e vividamente, a grandeza dos serviços que Portugal prestou à humanidade, à ciência e à civilização, e o direito que assiste à nossa presença em terras distantes, particularmente em África, por nós começada a descobrir e a ser civilizada há mais de cinco séculos” (Cortesão, Albuquerque e Mota, 1963, p. 8).

A primeira diferença fundamental entre a listagem de mapas proposta por Abendanon para as Índias Orientais holandesas e a que Cortesão apresenta do arquipélago oriental está em que, neste caso, se destacam dois mapas anteriores à expedição de António de Abreu, de 1511-1512, e à cartografia de Rodrigues que a documentou. São esses o célebre planisfério anônimo português dito “de Cantino”, de 1502, e a carta portuguesa anônima do Oceano Índico atribuída a Jorge Reinel, de circa 1510, hoje guardada na Herzog August Bibliothek de Wolftenbüttel.

Page 6: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 551-566

Sem deixar de sublinhar a profunda influência ptolomaica visível no Planisfério de Cantino, responsável por uma representação muito fantasiosa da realidade, Cortesão destaca a ocorrência de dois topônimos próprios do espaço situado para oriente de Malaca e do qual os portugueses apenas tinham notícias indiretas desde o início da década de 1490: as legendas “Ilha gauaa em esta ilha a muto benjoym e seda e porcelana”, marcada muito a leste de Madagascar e que explica corresponder a Java, e “Caleirciram aquj he muyto clauo”, alusiva a uma ilha menor e mais oriental do que aquela e a qual Cortesão não tem dúvida em identificar como a ilha Ceram, no limite meridional das Molucas (1975, p. 52-53).

Por outro lado, a respeito da carta atribuída a Jorge Reinel — destituída de qualquer resquício de influência ptolomaica, circunstância inédita na cartografia europeia da Ásia que devemos sublinhar desde já —, Cortesão dá conta da marcação sucessiva de uma série de informações que parecem sugerir um conceito embrionário do arquipélago malaio-indonésio, a primeira das quais correspondente à legenda aposta a um conjunto de ilhas conjeturais situadas a sul da Índia e atravessadas pelo equador: “Ho grande arcipelago que faz gram temor nom se saber ate honde vão ter estas ilhas”.

A leste desse espaço, as referências remetem aos principais pontos de interesse estratégico e geoeconômico da região: “A muyto homrrada e muyto Rica ilha de camatoro” — por Samatra, que assim tem aqui a primeira referência cartográfica conhecida — “A muyto populosa e nobre e Rica cidade de malaca aquall aynda a nos nam he sabyda nem descuberta” — ou seja, Malaca, fixada no mapa ainda antes de recolhida a prova visual — e o grupo insular composto por duas ilhas de maiores dimensões e duas menores, cruzado pelo trópico de Capricórnio e desenhado na parte sudeste do mapa, ao qual corresponde a legenda “Nesta ilha nace o crauo” e que Cortesão interpreta como um ensaio inédito de marcação das Molucas (1975, p. 53-54).

Se o entendimento muito empírico da história da cartografia fez com que Cortesão pontuasse toda a sua obra com a ideia segundo a qual a arrumação cronológica dos mapas antigos permite seguir, como se se tratasse de um filme, a história das navegações e dos descobrimentos geográficos europeus (1935, v. 1, p. XXX-XXXII; Cortesão e Mota, 1960, v. 1, p. XVIII-XIX), o preâmbulo que incorpora o Planisfério de Cantino e o mapa de Jorge Reinel de 1510 confirmavam a extrema relevância de todos aqueles mapas que resolviam uma incerteza geográfica com um traçado em boa medida conjetural antes de acederem à prova incontroversa da experiência: “Estas legendas e a mais ou menos fantasiosa situação das ilhas respectivas mostram bem a perplexidade dos cartógrafos em face das vagas e por vezes incríveis informações recebidas e que de algum modo tinham de registar nas cartas” (1975, p. 54).

A mesma preocupação em valorizar os testemunhos cartográficos anteriores aos mapas de Rodrigues, em que “as Ilhas das Especiarias começaram a ser representadas com base em informações positivas e em parte verificadas in loco pelo próprio cartógrafo”, leva Cortesão

Page 7: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 552-566

a introduzir no ponto seguinte uma referência à chamada “grande carta do piloto de Java”, correspondente ao mapa de matriz do sudeste da Ásia que Rodrigues provavelmente manuseou para desenhar as Molucas. Ele nos diz que deve ter sido com base nesse mapa ou em alguma carta javanesa semelhante a essa que Rodrigues desenhou esse conjunto de ilhas que não chegou a visitar durante a expedição naval de 1511-1512. Isso seria demonstrado pelo fato de as Molucas terem sido desenhadas de perfil no seu livro, “prática desusada entre os cartógrafos portugueses” (1975, p. 59).

Trata-se de um tópico que se tornou obrigatório nas análises sobre os primórdios da cartografia portuguesa do arquipélago e que surge documentado por uma carta que Afonso de Albuquerque escreveu ao rei de Portugal, em Cochim, no dia 1º de abril de 1512. Nela se explica que os portugueses haviam tido acesso a um mapa asiático — eventualmente malaio, como hoje se crê —, o qual deveria representar a Ásia marítima entre o mar Vermelho e a costa chinesa até pelo menos a latitude de Guangdong, além de boa parte do Atlântico. O próprio Albuquerque supervisionou a realização de uma cópia desse mapa, elaborada por Rodrigues e remetida a Lisboa, mas que se perdeu pouco depois num naufrágio no Índico. Nas precisas palavras de Albuquerque,

um pedaço de padram que se tirou dua gramde carta dum piloto de jaoa, a quall tinha ho cabo de bõoa esperamça, portugall e a terra do brasyll, ho mar rroxo e ho mar da persia, as ilhas do cravo, a navegaçam dos chins e gores [os habitantes da Formosa/Taiwan e do arquipélago de Riu Kiu ou, eventualmente, os coreanos], com suas lynhas e caminhos dereytos por omde as naos hiam, e ho sertam, quaees reynos comfynavam huns cos outros (Cortesão e Mota, 1960, v. 1, p. 80).

Ficava assim atestado o aproveitamento de protótipos cartográficos asiáticos por parte dos cartógrafos portugueses na fase inicial do reconhecimento do sudeste da Ásia, circunstância muito relevante, já que sabemos que quase não existem vestígios das tradições cartográficas indígenas locais anteriores ao século XIX (Winter, 1949, p. 21-23; Reid, 1993, p. 43-47; Schwartzberg, 1994a, p. 689-693, Schwartzberg, 1994b, p. 828-838; Gelpke, 1995, p. 77; Suárez, 1999, p. 39-40; Fernández-Almesto, 2007, p. 745-746).

O reconhecimento do arquipélago nos mapas de 1512 a 1550

O propósito específico do artigo de Cortesão o levou a centrar a atenção na carta do livro de Rodrigues que traz a representação das Molucas (fl. 37). Em todo caso, passamos a apresentar, reorganizada de acordo com a regra geográfica de leitura que corre do Ocidente para o Oriente, a importante sequência de sete cartas deste livro que representam o arquipélago malaio-indonésio e suas adjacências imediatas:

~

Page 8: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 553-566

[1] (fl. 29) Carta de Ceilão, ilhas Nicobar e estreito de Malaca (que reproduz um padrão europeu de representação).

[2] (fl. 33) Carta do golfo de Bengala, com parte de Ceilão e ilhas Andamã e Nicobar (que duplica e amplia o espaço representado no fl. 29, mas aqui com predomínio de soluções cartográficas asiáticas, incluindo um plano urbano junto ao Rio de Bemgalla (= delta do Ganges).

[3] (fl. 30) Carta da costa nordeste de Sumatra, ilhas de Lingga e Bangka, e costa noroeste de Java (que confirma um padrão europeu de representação, resultado do primeiro reconhecimento português dessa seção dos litorais indonésios).

[4] (fl. 34) Carta da Península Malaia e parte norte de Sumatra (evidenciando nova síntese de padrões europeus e asiáticos de representação e legendas de teor econôómico, como a que se refere a “muita pimemta” de Sumatra).

[5] (fl. 35) Carta do leste de Sumatra, extremo oeste de Java e sudoeste de Bornéu, com a ilha de Bangka (síntese luso-asiática de representação, que quase duplica o espaço representado na fl. 30 e identifica erroneamente Bornéu com Maquacer = Macaçar/Sulawesi).

[6] (fl. 36) Carta das costas leste e norte de Bornéu, leste de Java, Madura, Bali, Lombok e Sumbawa (que traz assinaladas as escalas de Agriaci = Gresik e Surubaia = Surabaya em Java e denota a interferência de padrões de representação não portugueses, designadamente para as pequenas Sundas).

[7] (fl. 37) Carta da parte oriental do arquipélago (com traçado híbrido, como as anteriores, e topónimos que deixam poucas dúvidas quanto ao facto de representarem as ilhas das Flores e Timor, os arquipélagos de Banda e Molucas, para além de Amboíno e Ceram) [Cortesão e Mota, 1960, vol. 1, p. 82-84; Cortesão, 1978, p. 463-464; Garcia, 2008, p. 82-99].

Demonstrando simultaneamente um conhecimento mais alargado dos objetos cartográficos e uma interpretação mais flexível do seu valor intrínseco em relação à amostra muito reduzida de mapas do arquipélago malaio-indonésio selecionada por Abendanon, Cortesão identifica dezenove cartas posteriores às de Rodrigues e anteriores ao planisfério de Lopo Homem, de 1554, que incluíram representações das Molucas, todas elas assinadas ou atribuídas a distintos cartógrafos portugueses ou que pelo menos acolheram a transposição muito notória de protótipos portugueses. Nessa listagem, surge em primeiro lugar a importante série de sete cartas da família Reinel:

[1] A carta do Índico e do arquipélago malaio-indonésio atribuída a Pedro Reinel, de circa 1517, que desapareceu da Armeebibliothek de Munique no fim da II Guerra Mundial e que apresentava o arquipélago entre as margens de um grande golfo imaginário de reminiscências ptolomaicas.

Page 9: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 554-566

[2] A carta anônima atribuída a Pedro Reinel da British Library, de circa 1522 (?), quase equivalente à anterior e que traz uma inscrição identificando as Islas de San Lázaro (Filipinas), assim como uma bandeira portuguesa plantada nas Molucas.

[3] O desaparecido planisfério atribuído a Jorge Reinel, dito Kunstmann IV, de circa 1519, que deve ter sido elaborado em Sevilha no contexto da preparação da viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães e que tinha as “Ilhas de maluquo donde a o cravo” (ilhas Molucas onde há o cravo) situadas a leste do meridiano de demarcação, ou seja, no hemisfério espanhol.

[4-6] O planisfério de Lopo Homem e as duas cartas que incluem representações do arquipélago oriental incluídas no Atlas de Lopo Homem-Reinéis, de circa 1519 (carta de Malaca às Molucas e carta do magnus golfus chinarum), articulando reminiscências ptolomaicas com o que parece ser o aproveitamento de cartas semelhantes às de Rodrigues, se é que não o uso direto desse protótipo.

[7] A carta anônima do hemisfério sul em projeção polar atribuída a Pedro Reinel e que Cortesão sustenta ter sido concluída em Lisboa pouco antes do regresso da nau Victoria, em setembro de 1522, e que marca as Molucas dentro do hemisfério português.

Em segundo lugar, Cortesão enumera os cinco mapas assinados ou atribuídos a Diogo Ribeiro que chegaram aos nossos dias [8-12]: quatro planisférios e uma carta do hemisfério oriental, elaborados entre 1525 e circa 1532 em Sevilha, onde o cartógrafo português se estabelecera em data incerta (Gil, 2009, p. 361-363, 377-380). Cortesão recorda que Ribeiro assessorara os preparativos da expedição de Magalhães, tendo sido nomeado em 1523 primeiro cosmógrafo oficial da Casa de la Contratación de las Indias, razão suficiente para que todas as suas cartas coloquem a Província de Maluco (Molucas) no hemisfério espanhol de Tordesilhas.

Os oito últimos mapas que fazem parte da listagem de dezenove cartas elaboradas por Cortesão — excluindo, como dissemos, o planisfério de Lopo Homem, de 1554 — são os seguintes:

[13] A carta anônima portuguesa do arquipélago e da península malaia dita Penrose, de circa 1535, com várias ilhas Molucas, como Motir, Tidore e Ternate, a parte norte de Halmaera (Jeilolo), talvez a parte setentrional das Celebes e aquela que deve ser a mais antiga representação ocidental completa da costa de Bornéu (Cortesão e Mota, 1960, v. 1, p. 123-124).

[14-15] As cartas do sudeste asiático integradas nos dois Atlas atribuídos a Gaspar Viegas de circa 1537, em que Timor e as Ilhas de Maluco têm sempre um pavilhão português cravado.

Page 10: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 555-566

[16] O fragmento de planisfério de António Pereira, de circa 1545, representando o Pacífico e a América e que faz figurar a margem oriental do arquipélago num intervalo da moldura do mapa.

[17] O planisfério português anônimo da Nationalbibliothek de Viena, de circa 1545, que ainda não traz a representação da Nova Guiné, descoberta pelos espanhóis em 1545, mas que acrescenta precisão ao estreito de Sunda e ao desenho de Timor em relação a cartas anteriores.

[18] A carta do Índico e do sudeste asiático integrada no Atlas Vallard, de circa 1547, com as Illes del Molucques dentro do hemisfério português.

[19] O planisfério anônimo da Biblioteca Vallicelliana de Roma de circa 1550, que tornava a acrescentar uma bandeira portuguesa sobre as ilhas Malvco, enquanto reservava três pavilhões castelhanos à Nova Guiné.

Ambiguidades nacionais

No comentário à seleção de cartas proposta por Abendanon em 1919, Edward Heawood notara algumas ausências difíceis de explicar à luz do conhecimento da época sobre a cartografia portuguesa do século XVI. Esse era, desde logo, o caso dos mapas integrados nos Atlas de Gaspar Viegas, assim como os trabalhos dos Reinéis, que Abendanon desvalorizara por alegadamente obedecerem a cânones demasiado fantasiosos (Heawood, 1919, p. 355). Com essa listagem de dezenove mapas suplementares, Cortesão não apenas se desembaraçava desse como de outro critério, que limitara a escolha de Abendanon ao deixar de lado os mapas de Diogo Ribeiro — mesmo tratando-se de um português que fora um provável discípulo dos Reinéis — pelo fato de este trabalhar a serviço do rei da Espanha (Abendanon, 1919, p. 351).

Cortesão se ocupara extensamente da obra de Diogo Ribeiro nos Portugaliae Monumenta Cartographica amparado no argumento de o cartógrafo ter nascido em Portugal e, ao que tudo indica, ter aprendido a arte de cartógrafo no país. É interessante notar como, em contrapartida, os trabalhos de Nuño García de Toreno não cabem em nenhuma dessas listagens de Cortesão, embora ele admita que maioria as cartas atribuídas ao espanhol “foram realmente feitas por Diogo Ribeiro, um estrangeiro e provavelmente mais jovem, trabalhando como assistente daquele” (Cortesão e Mota, 1960, vol. 1, p. 89). Também acabamos de verificar que Cortesão não hesitou em considerar o Atlas luso-francês Vallard — uma peça ilustrativa da produção cartográfica portuguesa, opção que não se explica, mesmo quando simultaneamente recupera, confirmando seu valor intrínseco, as pistas que Abendanon soubera dar sobre a profunda influência que a cartografia e os cartógrafos portugueses exerceram sobre a generalidade das cartas do sudeste asiático da escola de Dieppe (Cortesão e Mota, 1960, vol. 5, p. 139-140; Cortesão, 1975, p. 63-64).

Page 11: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 556-566

Em boa medida, essa relativa ambivalência de critérios aplicados no momento de circunscrever o que se podia considerar uma herança cartográfica portuguesa tem algum paralelismo com uma observação que Cortesão escrevera muitos anos antes, nas páginas de seu livro Cartografia e cartógrafos portugueses dos séculos XV e XVI (1935), a qual parecia entreabrir a porta para a exploração de outro ponto de vista explicativo mais flexível, quer dizer, menos preocupado com a razão nacional e mais atento às questões próprias da circulação dos agentes e das ideias em quadros políticos e institucionais concorrentes, mas também em boa medida complementares do ponto de vista da construção do saber: “Com os espanhóis a nossa ligação é bastante mais íntima, tanto que não falta quem chame peninsular à ciência náutica portuguesa de quatrocentos.”

Lembrando logo a seguir que a relação basilar da náutica portuguesa com a astrologia e a astronomia espanholas dos séculos XIII a XV era talvez um dos aspectos mais notáveis e interessantes da história das relações científicas e culturais das duas nações ibéricas, Cortesão acrescentava, que

no ponto de vista da História da Cartografia, não podemos olvidar que o primeiro mestre cartógrafo vindo para Portugal, e provavelmente o primeiro que cá existiu, foi um maiorquino: Jácome de Maiorca, aliás também judeu, o célebre Jofuda Cresques (Cortesão, 1975, p. XXXV; cf. Andrade, 2014, p. 81-86).

Fosse como fosse, no raciocínio de Cortesão predominaria, no cômputo geral, uma compartimentação dos objetos condicionada por uma leitura quase romântica dos vínculos entre os cartógrafos, marcados pelo lugar de nascimento e pela consanguinidade. Em consequência disso, restava pouca margem à revisão das grandes categorias operativas que condicionavam o estudo da história da cartografia à luz dos interesses de Estado e de um entendimento nacionalista sobre a produção e a transmissão do saber cartográfico que distorcia os termos da questão e ia se tornando anacrônico.

Entre mapas híbridos e “silêncios cartográficos”

No volume I dos Portugaliae Monumenta Cartographica, Teixeira da Mota notou que os traçados de Java e de toda a costa ocidental das Celebes da grande carta da Ásia marítima de circa 1540, pertencente à Herzog August Bibliothek (Wolfenbüttel), apresentam grande proximidade com o planisfério anônimo de Viena, de circa 1545. Na esteira do trabalho pioneiro de Abendanon, notou também como os dois mapas, a par dos Atlas de Gaspar Viegas e da carta Penrose, constituiam os principais missing links na evolução cartográfica da Insulíndia (Cortesão e Mota, 1960, vol. 1, p. 147-148, 155-156). Com essa referência à carta de Wolfenbüttel, que Cortesão deixou por indicar em 1975, fecha-se a listagem dos mapas

Page 12: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 557-566

da primeira metade do século XVI pertinentes ao estudo das pioneiras representações desse espaço na cartografia portuguesa e europeia.

No inventário para o conjunto do século XVI, Garcia (2002, p. 27-29) acrescenta quatro outros nomes mais relevantes para a segunda metade da centúria. Em primeiro lugar, Bartolomeu Velho, quando se refere à carta do golfo de Bengala e do sudeste asiático integrada no Atlas de circa 1560, que lhe é atribuído e pertence à Huntington Library (San Marino, Califórnia). O segundo é Lázaro Luís, ao se referir à carta equivalente que faz parte do Atlas de 1563, que está na Academia das Ciências de Lisboa. O terceiro é Sebastião Lopes, pelas folhas do Atlas de circa 1565 da Newberry Library (Chicago), que lhe está atribuído. Finalmente, Fernão Vaz Dourado, a propósito da vasta coleção de mapas do sudeste asiático integrados nos seus seis Atlas que chegaram aos nossos dias, datados de 1568 a 1580.

Se é verdade que essa revisão replica boa parte dos comentários sobre as evidências cartográficas que passamos em revista a partir dos trabalhos de Abendanon e Cortesão, deve-se destacar que Garcia produz, em paralelo, uma pormenorizada análise dos mapas do livro de Rodrigues, que tem um dos seus mais importantes motivos de interesse na forma como investiga a matéria da convivência ou da sobreposição num mesmo mapa de práticas cartográficas asiáticas e europeias (Garcia, 2002, p. 15-18; Garcia, 2008, p. 26-31, 80-108). Nunca será demais sublinhar a relevância do exercício de composição cartográfica de Rodrigues, gerador de diversas representações híbridas que solucionam, com grande rapidez e aparente facilidade, o problema da representação do real no momento decisivo que antecede o reconhecimento ou o controle da totalidade desses espaços pelos portugueses.

Como também dissemos, acrescenta-se a isso que muitos dos traçados do sudeste asiático reproduzidos por Rodrigues são os únicos testemunhos sobreviventes das práticas cartográficas asiáticas anteriores à chegada dos europeus, por isso nos facultam uma oportunidade única de descortinar como seriam as desaparecidas cartas malaio-indonésias da época.

Em face dos inventários da primitiva cartografia portuguesa do arquipélago malaio-indonésio assinados por Abendanon e Cortesão, tal como diante daquilo que Heawood e Teixeira da Mota apresentaram sobre a mesma questão, podemos dizer que devemos a Thomaz novas ideias a respeito de pelo menos quatro aspectos fundamentais que perspectivam outros tantos roteiros de pesquisa para a história da cartografia paralelos ao da articulação entre fontes ocidentais e asiáticas, flagrante nos mapas de Rodrigues.

O primeiro problema tocado por Thomaz tem implicações diretas na forma como Abendanon concebera a transição entre as cartografias portuguesa e holandesa. Como ele nos lembra, se é verdade que — de um ponto de vista estritamente técnico — a cartografia portuguesa fora suplantada pela holandesa em meados do século XVI, do ponto de vista topográfico — especialmente no Oriente— os mapas portugueses continuarão por muito tempo a servir de protótipo à generalidade dos cartógrafos europeus, conforme o exemplo dado por Petrus Plancius no último quarto desse século, quando prescindiu de Mercator e preferiu depender

Page 13: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 558-566

das cartas náuticas de Bartolomeu Lasso para compor várias das cartas particulares que então executou, nomeadamente a que representa as Insvlae Moluvccae (Thomaz, 1995, p. 79, 82; Cortesão e Mota, 1960, v. 3, p. 97-98).

Essa questão tem incidência em outro aspecto fundamental da produção cartográfica portuguesa de vários espaços do mundo, entre os quais o sudeste da Ásia é um exemplo paradigmático que Thomaz também ressalta. Trata-se de perceber que sua natureza essencialmente empírica determina que, de modo deliberado, não sejam representados muitos dos litorais que não haviam sido reconhecidos de forma sistemática pelas viagens. Assim, os correspondentes “silêncios cartográficos” não podem ser interpretados de forma linear como sinônimos de desconhecimento absoluto ou, sobretudo —, de hesitação sobre a natureza insular ou continental de determinados territórios, como o próprio Diogo Ribeiro se encarrega de explicar nas legendas relativas à Península Malaia, à Sumatra, à Tapoblana ou à Halmaera que pontuam seus planisférios (Cortesão e Mota, 1960, v. 1, p. 105-106).

O mesmo sucede em relação ao desenho da costa meridional de Java e Sumbawa, raramente representadas nos mapas portugueses até fim do século XVI, ou à ilha das Flores, que também figura em poucos desses mapas até meados do mesmo século. A contraprova dessa particularidade genética, que valoriza a experiência dos lugares e que raramente supriu sua falta com dados que não incorporassem uma experiência tangível de viagem, é explorada por Thomaz ao descrever a forma como a toponímia arcaica de Ptolomeu, imagem de marca de um saber livresco, é escassa e rapidamente desaparece da cartografia portuguesa, como é o caso do Sinus Magnus que Ribeiro ainda confunde com o Mar de Java no planisfério de 1529 da Biblioteca Vaticana (Thomaz, 1995, p. 80-82).

A ampla interferência de topônimos malaios na cartografia portuguesa dos espaços da Ásia oriental e do sudeste é outro tópico explorado por Thomaz, que também nota como essa toponímia dá lugar a topônimos portugueses e espanhóis uma vez ultrapassado o limite dos espaços tradicionalmente frequentados pelos navegadores malaios — quer a oriente das Molucas, nas Marianas e nas Carolinas, quer na costa da Nova Guiné.

Por último, sublinhamos a forma como Thomaz perspectivou as consequências na cartografia portuguesa resultantes da relativa desaceleração no levantamento sistemático do arquipélago malaio-indonésio que parece ocorrer depois das expedições de Diogo Lopes Sequeira a Sumatra e Malaca, em 1508-1509, e de António de Abreu ao arquipélago, em 1512-1513 (Thomaz, 1995, p. 80-82; Thomaz, 1994, p. 567-580; Flores, 1998, p. 139-154; Lobato, 1999, p. 97-121; Disney, 2009, v. 2, p. 182-198; Pinto, 2013, p. 73-87).

Já sabemos que Abendanon se apoiou nessa aparente desaceleração para traçar uma longa elipse entre os mapas de Rodrigues e o mapa-múndi de Lopo Homem de 1554, vazio que Cortesão tratou de preencher com uma série de dezenove cartas de origem portuguesa mais ou menos explícita. A esse respeito, Thomaz opta por relacionar os distintos ritmos de produção cartográfica detectados com os períodos e os espaços nos quais a ação direta dos

Page 14: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 559-566

agentes da Coroa portuguesa mais intensamente se manifestou. É assim que o progresso, a estagnação ou um retrocesso na imagem do arquipélago passam a ser vistos em primeiro lugar como resultado da alternância entre os momentos em que a Coroa esteve mais presente e aqueles em que a implementação de uma política mais “liberal” fez reduzir o âmbito dos monopólios régios e foi compensada pelo trato mercantil privado, de caráter muito mais anárquico e, para o que mais nos importa, desinvestido da obrigação de proceder à atualização do conhecimento cartográfico disponível, como desde logo sucedia no conjunto de operações que desembocava no desenho do padrão real.

Sendo certo que a Coroa portuguesa continuou a chamar para si o controle da grande linha de comércio das especiarias que ligava Malaca a Ternate e a Banda, a maior parte os demais espaços do sudeste asiático, como os do Golfo de Bengala e da Ásia Oriental, foram deixados à margem dos interesses do Estado da Índia a partir do início do governo de Lopo Soares de Albergaria (gov. 1515-1518), introduzindo uma descontinuidade flagrante na orientação política centralista e autoritária protagonizada até essa altura por Albuquerque (Thomaz, 1995, p. 86). Na perspectiva da história da cartografia, em torno da qual centramos desde o início nossa análise, a dicotomia entre cartografia oficial e não oficial que Abendanon introduzira em 1919 encontra aqui uma oportunidade para ser repensada com novos e mais complexos argumentos.

Novas agendas

No cômputo de cerca de um século de estudos sobre as primeiras representações do sudeste asiático na cartografia portuguesa, percebemos que nunca se deixou de perseguir a reconstituição de uma série, o mais completa possível, de mapas, cuja maioria dos espécimes traz consigo a marca dos interesses políticos de sentido imperial que, em última análise, determinaram o respectivo fabrico. O eterno problema da marcação do contrameridiano de Tordesilhas e da definição das áreas de soberania portuguesa e espanhola no arquipélago das Molucas é o emblema desse interesse recorrente por uma qualidade de trabalho em torno dos mapas que nunca se demarca de uma aproximação de tipo tradicional, que explora os grandes mapas, organiza-os em sequência e procura medir, por meio deles, os ritmos mais ou menos rápidos de incorporação das novidades e sua maior ou menor correção formal (Edney, 2011, p. XV-XVI).

Poderíamos ser levados a pensar que estamos diante de um paradigma invariante, teimosamente preso ao mimetismo da tradição positivista, que toma o mapa como transposição tautológica do real e persegue à exaustão a ideia segundo a qual a leitura da história dos mapas é também a leitura do progresso das representações (Harley, 1987, p. 3; Harley, 2001, p. 151-158; Oliveira, 2012, p. 18). O que essa resenha de trabalhos nos deu a ver baralha uma leitura assim tão simplista da questão.

Page 15: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 560-566

É verdade que nenhum dos autores que destacamos optou por fazer acompanhar seus inquéritos por uma reflexão que pensasse de forma extensa a complexidade dos mapas como objeto ou se ativesse naquele tipo de interpretação que já deles faziam os cosmógrafos do século XVI quando diziam que uma carta era somente uma “imagen del mundo por ausência suya” (Brendecke, 2012, p. 199). Não o fizeram os autores mais recentes, como Thomaz e Garcia, ainda que tivessem se debruçado sobre as imagens cartográficas do arquipélago malaio-indonésio depois de John Brian Harley ter divulgado a proposta epistemológica que questiona a pretensa objetividade dos mapas e remete à importância de normas e valores sociais implícitos na operação de mapear os territórios.

Por maioria de razão, é escusado buscar demasiadas referências a esse respeito no que escreveram os pioneiros Abendanon, Heawood e Cortesão, de quem, ainda assim, sobram exemplos de empenho em explorar o conteúdo dos mapas e seu valor documental muito além das questões estritamente técnicas que estes colocavam, como fora norma até a década de 1970 (Harley, 1987, p. 33-36; Domingues, 2015, p. 23-25). Seja como for, o caso que estudamos nos oferece mais do que aquilo que uma leitura apressada sobre o trabalho desses historiadores da cartografia parece dar a ver.

Apenas quatro exemplos do que pretendemos dizer. Primeiro, quando Garcia destaca a relevância dos elementos não europeus na cartografia de Rodrigues, oferece um contributo essencial para a reconstrução da própria história cultural indígena do espaço malaio-indonésio do início do século XVI e para a discussão do conceito de hibridez cultural naquela que, até certo ponto, poderíamos classificar de cartografia luso-asiática, à semelhança do que tem sido proposto para outros contextos geográficos que foram palco de experiências coloniais ibéricas na mesma época (Gruzinski, 1987; Harley, 1992; Mundy, 1996; Russo, 2005; Mundy, 2011; Oliveira, 2016, p. 191-192; Oliveira, 2017, p. 39-52; Oliveira, 2018, p. 192-194).

Em segundo lugar, quando Thomaz expande o conhecimento sobre a matriz malaia da toponímia inscrita na generalidade dos mapas estudados, tanto nos oferece novos indícios sobre a transmissão dos conteúdos representados entre os diferentes atores em presença quanto estabelece novas pistas para a reconstituição das próprias fronteiras etnolinguísticas que configuravam o grande espaço geográfico e cultural malaio-javanês (2008, p. 352-357).

Em terceiro, ainda a propósito das mesmas particularidades toponímicas dos mapas portugueses, quando Thomaz identifica o recurso à geografia clássica de Ptolomeu, tanto reforça o conhecimento que se tem sobre a matriz empírica da cultura portuguesa da época quanto sobre a especificidade dos contextos que marcaram a elaboração dos poucos espécimes em que se vislumbram tais vestígios de erudição (2001, p. 14-15).

Por último, quando Abendanon ou Cortesão propuseram as primeiras listagens das representações europeias do arquipélago e das Molucas, na margem do que se aceitavam ou não como exemplos relevantes, estava sempre implícito um raciocínio sobre a importância da transferência de notícias e a circulação internacional de agentes — cartógrafos, pilotos,

Page 16: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 561-566

espiões, entre muitos outros — na base da qual podemos hoje reequacionar boa parte das ideias sobre os vínculos entre os distintos âmbitos políticos, institucionais e culturais nos quais os mapas desempenharam um papel do maior relevo para o exercício do domínio colonial.

Bastará isso para que se possa dizer que a paulatina construção de uma série alargada de mapas, como a que aqui resenhamos, com todo o debate suscitado sobre os espécimes eleitos e as razões pelas quais uns foram escolhidos e outros não, traz incorporada boa parte da agenda que a tornará relevante para os estudos de história da cartografia que vierem.

Síntese: a força das circunstâncias

Entre o exercício que antecipa a projeção de um número de temas já incorporados nos mais recentes estudos sobre os mais antigos mapas do sudeste asiático de matriz europeia — como os de Thomaz e Garcia — e aqueles trabalhos fundadores em que reconhecemos a gênese de certa linhagem de objetos e interesses de estudo — como os de Abendanon, Heawood, Cortesão e Teixeira da Mota — existe, como que unindo-os, uma mesma desatenção recorrente com as questões próprias da teoria da historiografia da cartografia, à qual importa retornar uma última vez.

Sabemos que a consolidação de qualquer domínio de investigação historiográfica depende, em simultâneo, “da descoberta do rastro de elementos empíricos de um dado passado como da mobilização de novas ferramentas teórico-conceptuais que se apurem no presente” (Neves, 2016, p. 14-15). Mas sabemos também que a história da cartografia — exatamente como a história tout court — é um saber científico indutivo, assente na investigação documental, motivo pelo qual a preocupação com a exposição de argumentos teorizadores, sobretudo quando assume a forma de modelo formatador de sua escrita, mobiliza mais resistências do que em vários domínios disciplinares próximos (Torgal, 2015, p. 58).

No caso da historiografia universitária produzida em Portugal, o “vício narrativista e documentalista” que a marcou durante o Estado Novo português [1933-1974] (Torgal, 2015, p. 54) — para a nossa cronologia e para o nosso tema específico, tal é válido até Cortesão — transitou para uma prática substancialmente distinta do ponto de vista epistemológico e metodológico, que a atualizou na generalidade dos terrenos de especialidade pelos quais se espraia, incluindo o votado ao estudo dos mapas. Em todo caso, constatamos que não se impôs, em nenhum dos exercícios de historiografia da cartografia posteriores a Cortesão de que tratamos, um raciocínio extenso, muito menos prévio, do gnero daquele que, por exemplo, se vem tendo para os relatos de viagem quando se busca uma posição intermediária entre as abordagens de cunho positivista, que os tomam como descrições do real, e posturas construtivistas, que os leem como meras invenções (Burke, 2016, p. 37).

Ainda que na esmagadora maioria dos casos nos faltem explanações desse teor, sobra-nos um racionalismo inconfesso cujos silêncios apenas podemos avaliar à luz dessa tendência

Page 17: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 562-566

mais geral que privilegia o domínio das fontes — nesse caso, a cartobibliografia — em detrimento das leituras em voga nos meios mais tocados pela chegada da pós-modernidade cultural à história da cartografia (Domingues, 2015, p. 27).

Vimos nos pontos anteriores como essa relativa lisura teórica não interferiu demasiado na sofisticação progressiva dos enunciados dos autores que foram sistematizando a história dos mapas das ilhas do sudeste asiático com base no mote dado por Abendanon: um universo cartográfico não apenas progressivamente alargado, como bem atento à sugestão de artefatos, objetos e práticas híbridas que a história cultural hoje tanto sublinha e das quais a história da cartografia também faz eco (Burke, 2016, p. 37). De todo modo, há que prestar atenção a pelo menos uma alteração substantiva de contexto que condiciona a prática historiográfica em análise e a divide, grosso modo, em dois períodos de perfil muito distinto.

Por um lado, temos aquele momento ainda muito marcado pelo entendimento do mapa como ferramenta essencial para a verificação de um discurso historiográfico e a reivindicação política que este ambiciona sustentar (Oliveira, 2015, p. 1033). Quando Cortesão afirma, como lemos, a valia instrumental dos mapas para amparar os direitos coloniais portugueses na África numa conjuntura internacional adversa à manutenção do Império colonial português, coloca-se numa linha de interpretação que, no essencial e apesar de todas as distâncias, repisa dos mesmos argumentos sobre os “direitos históricos” que o Visconde de Santarém esgrimira para o público das sociedades de geografia nos anos posteriores às guerras napoleônicas em que a Europa, e Portugal com ela, afinara os mecanismos de expansão colonial (Oliveira, 2012, p. 11-15) — daí que todo o testemunho dos mapas que Cortesão recolhe venha tocado por um sentido pouco exato dos principais conceitos que manuseia, o primeiro dos quais será a prova nacional que legitima a escolha de certo número de cartógrafos e cartas em prejuízo de outros.

Como também referimos, houve momentos em que Cortesão se colocou a si próprio a questão da fluidez da fronteira cultural entre os dois reinos peninsulares no quadro da expansão europeia. Porém, esse tipo de hesitação parece ter se diluído com o tempo, em favor de listagens menos debatidas sobre os percursos individuais de um sem-número de cartógrafos que circulou entre Lisboa e Sevilha, contaminando qualquer possibilidade de demarcação exata de uma fronteira nacional aplicada à arte de fazer mapas. O que hoje sabemos sobre a interferência de protótipos portugueses na cartografia da Ásia difundida nos Países Baixos a partir do fim do século XVI replica o mesmo tipo de mecanismos, interpelando diretamente a clivagem entre as cartografias portuguesa e holandesa que Abendanon inaugurou para esse mesmo tema, assente em pressupostos nacionais em certo sentido não menos discutíveis do que os de Cortesão.

Por outro lado, constatamos que, nos autores que vêm publicando depois de Cortesão sobre a primitiva cartografia do sudeste da Ásia, parece nítido não existirem evidências de compromisso direto entre o trabalho historiográfico e um apelo político expresso. Essa

Page 18: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 563-566

nova circunstância tem ajudado a diferençar um segundo período nessa série de exercícios de história da cartografia, coincidindo com a implantação da democracia e com a decorrente “normalização” da prática historiográfica acadêmica portuguesa.

Tal recentração dos objetivos de pesquisa — ainda que decorra de forma essencialmente desatenta a uma problematização teórico-metodológica visível, repetimos — tem franqueado novas possibilidades de pesquisa, dirigidas a uma apreensão mais fina dos contextos políticos e culturais que ditaram os diferentes ritmos de produção dos espécimes cartográficos reconhecidos, assim como a circulação dos modelos cartográficos e a maior ou menor “exatidão” das respectivas representações. Dessa forma, ganha pleno significado a ideia segundo a qual a circunstância da história da cartografia dessa parcela do mundo — “circunstância” no sentido tomado de empréstimo da célebre frase de Ortega e Gasset (Torgal, 2015, p. 56) — é o primeiro dos argumentos em que devemos procurar a razão de sua prática em cada momento.

Page 19: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 564-566

Referências bibliográficas

ABENDANON, Eduard Cornelius. Essai sur les cartes qui font défaut dans la plus ancienne cartographie portugaise de l’Archipel des Indes Orientales Néerlandaise. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, n. 8, 37 série, p. 290-298, 1919b.

______. Missing Links in the Development of the Ancient Portuguese Cartography of the Netherlands East Indian Archipelago. The Geographical Journal, v. LIV, n. 6, p. 347-354, 1919a.

ANDRADE, Rui Silvestre de. Armando Cortesão (1891-1977): ideologia e nacionalismo na historiografia da cartografia portuguesa dos séculos XV e XVI. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Lisboa, 2014.

BRENDECKE, Arndt. Imperio e información: funciones del saber en el dominio colonial español. Madri/Frankfurt: Iberoamericana/-Vervuert, 2012.

BROTTON, Jerry. A History of the World in Twelve Maps. Londres: Penguin Books, 2012.

______. Trading Territories: Mapping the Early Modern World. Londres: Reaktion Book, 1997.

BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Madri: Ediciones Akal, 2016.

CORTESÃO, Armando (Ed.). A suma oriental de Tomé Pires e o livro de Francisco Rodrigues. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1978.

______. As mais antigas cartografia e descrição das Molucas. In: MOTA, Avelino Teixeira. A viagem de Fernão de Magalhães e a questão das Molucas: actas do II Colóquio Luso-Espanhol de História Ultramarina. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1975, p. 49-75.

CEREZO MARTÍNEZ, Ricardo. La cartografía náutica española en los siglos XIV, XV y XVI. Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1994.

CORTESÃO, Armando______. Cartografia e cartógrafos portugueses dos séculos XV e XVI: contribuição para um estudo completo. Lisboa: Seara Nova, v.2, 1935.

______. O itinerário de António de Abreu. Seara Nova, n. 796, p. 308-310, 1942.

______ (Ed.). The Suma Oriental of Tomé Pires and the Book of Francisco Rodrigues. Londres: Hakluyt Society, 1944.

______; ALBUQUERQUE, Luís de; MOTA, Avelino Teixeira da. Curso de história da cartografia. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1963.

______; MOTA, Avelino Teixeira da (Eds.). Portugaliae Monumenta Cartographica. Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique, v. 6, 1960-1962.

DISNEY, Anthony R. A History of Portugal and the Portuguese Empire: from the Beginnings to 1807. Cambridge: Cambridge University Press, v. 2, 2009.

DOMINGUES, Francisco Contente. Rumos da História da Cartografia. In: OLIVEIRA, Francisco Roque de (Org.). Cartógrafos para toda a Terra. Produção e circulação do saber cartográfico ibero-americano: agentes e contextos. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2015, p. 23-33.

EDNEY, Matthew H. Foreword. In: DYM, Jordana; OFFEN, Karl (Eds.). Mapping Latin America: a Cartographic Reader. Chicago/Londres: The University of Chicago Press, 2011, p. XV-XVII.

______. Theory and the History of Cartography. Imago Mundi, v. 48, p. 185-191. 1996.

FERNÁNDEZ-ALMESTO, Felipe. Maps and Exploration in the Sixteenth and Early Seventeenth Centuries. In: WOODWARD, David (Ed.). The History of Cartography. Cartography in the European Renaissance. Chicago/Londres: The University of Chicago Press, v. 3, 2007, p. 738-770.

FLORES, Jorge Manuel. Zonas de influência e de rejeição. In: MARQUES, António Henrique de Oliveira (Dir.). História dos portugueses no Extremo Oriente. t. 1 (Em torno de Macau: séculos XVI-XVII. Lisboa: Fundação Oriente, v. 1, 1998, p.135-168.

GARCIA, José Manuel. O livro de Francisco Rodrigues: o primeiro Atlas do Mundo Moderno. Porto: Editora da Universidade do Porto, 2008.

______. Other Maps, Other Images: Portuguese Cartography of Southeast Asia and the Philippines (1512-1571). In: SOUSA, Ivo Carneiro de; GARCIA, José Manuel. The First Portuguese Maps and Sketches of Southeast Asia and the Philippines, 1512-1571. Lisboa: Centro Português de Estudos do Sudeste Asiático, 2002, p. 11-29.

GELPKE, J. H. F. Sollewlin. Afonso de Abuquerque’s Pre-Portuguese “Javanese Map”, Partially Reconstructed from Francisco Rodrigues’ Book. Bijdragen tot de Taal-, Land- en Volkenkunde, v. 151, n. 1, p. 76-99, 1995.

Page 20: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 565-566

GIL, Juan. El exilio portugués en Sevilla: de los Braganza a Magallanes. Sevilha: Fundación Cajasol, 2009.

GRUZINSKI, Serge. Colonial Indian Maps in the Sixteenth-Century Mexico: An Essay in Mixed Cartography. RES: Antropology and Aesthetics, n. 13, p. 46-61, 1987.

HARLEY, John Brian. Rereading the Maps of the Columbian Encounter. Annals of the Association of American Geographers, v. 82, n. 3, 1992, p. 522-542.

______. The Map and the Development of the History of Cartography. In: ______; WOODWARD, David (Eds.). The History of Cartography. Cartography in Prehistoric, Ancient, and Medieval Europe and the Mediterranean. Chicago/Londres: The University of Chicago Press, v. 1, 1987, p. 1-42.

______. The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography. Baltimore/Londres: The John Hopkins University Press, 2001.

HEAWOOD, Edward. Note [a “Missing links in the development of the ancient Portuguese cartography of the Netherlands East Indian Archipelago” de E. C. Abendanon]. The Geographical Journal, v. LIV, n. 6, p. 355, 1919a.

LA RONCIÈRE, Monique; MOLLAT DU JOURDIN, Michel. Les Portulans : Cartes marines du XIII au XVII siècles. Fribourg: Office du Livre, 1984.

LOBATO, Manuel. Insulíndia. In: DOMINGUES, Francisco Contente (Dir.). Dicionário da expansão portuguesa 1415-1600. Lisboa: Círculo de Leitores, v. 2, 2016, p. 581-588.

______. Política e comércio dos portugueses na Insulíndia: Malaca e as Molucas de 1575 a 1605. Macau: Instituto Português do Oriente, 1999.

MARTÍN MERÁS, Luisa. Cartografía marítima hispana: la imagen de América. Madrid: Lunwerg Editores, 1993.

MATOS, Jorge Semedo de. Francisco Rodrigues. In: DOMINGUES, Francisco Contente (Dir.). Dicionário da Expansão Portuguesa 1415-1600. Lisboa: Círculo de Leitores, v. 2, 2016, p. 918-919

______. O piloto Francisco Rodrigues e a definição de um roteiro das Molucas. In: VICENTE MAROTO, María Isabel; ESTEBAN PIÑERO, Mariano (Eds.). La Ciencia y el Mar, Valladolid, [s.n.], 2006, p. 263-286.

MUNDY, Barbara E. Hybrid Space. In: DYM, Jordana; OFFEN, Karl (Eds.). Mapping Latin America: a Cartographic Reader. Chicago/Londres: The University of Chicago Press, 2011, p. 51-55.

______. The Mapping of New Spain: Indigenous Cartography and the Maps of the Relaciones Geográficas. Chicago: The University of Chicago Press, 1996.

NEVES, José. Os sujeitos da história. In: ______. (Org.). Quem faz a história: ensaios sobre o Portugal contemporâneo. Lisboa: Edições Tinta-da-China, 2016, p. 9-16.

OLIVEIRA, Francisco Roque de. Asian Eyes in Portuguese Maps: Hybrid Cartographic Representations of China in the Early Modern Age. In: SARAIVA, Luís; JAMI, Katherine (Eds.). History of Mathematical Sciences: Portugal and East Asia V. Visual and textual representations in exchanges between Europe and East Asia. Cingapura/Londres: World Scientific, 2018, p. 171-202.

______. Cartografia portuguesa e luso-asiática da China dos séculos XVI e XVII: três mapas em três escalas. In: ______. (Org.). Percepções europeias da China: ideias e imagens na origem da moderna Sinologia. Lisboa: Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, 2017, p. 33-56.

______. Dois séculos de história da cartografia em Portugal. In: ______. (Coord.). Leitores de mapas: dois séculos de história da cartografia em Portugal. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2012, p. 11-24.

______. Francisco de Borja Garção Stockler versus António Ribeiro dos Santos: os primeiros estudos de cartografia antiga em Portugal. In: ______. (Org.). Cartógrafos para toda a Terra. Produção e circulação do saber cartográfico ibero-americano: agentes e contextos. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2015, p. 1013-1041.

______. Pinturas a duas mãos: cartografias híbridas dos litorais chineses (sécs. XVI-XIX). In: NIETO OLARTE, Mauricio; DÍAZ ÁNGEL, Sebastián (Eds.). Dibujar y pintar el mundo: arte, cartografía y política. Bogotá: Universidad de los Andes, 2016, p. 189-197.

PINTO, Paulo Jorge de Sousa. As missões de diplomacia informal portuguesa e luso-asiática no mundo malaio-indonésio (séculos XVI e XVII). In: ALVES, Jorge Santos (Coord.). Portugal e a Indonésia: história do relacionamento político e diplomático (1509-1974). Macau: Instituto Internacional de Macau, v.1, 2013, p. 74-77.

REID, Anthony. Southeast Asia in the Age of Commerce, 1450-1680. Expansion and Crisis. New Haven/Londres: Yale University Press, v. 2, 1993.

Page 21: Artigo - SciELO · The Portuguese cartography of maritime Southeast Asia in the first half of the six-teenth century: a synthesis of 100 years of inventory and map exegesis Abstract:

Tempo | Niterói | Vol. 24 n. 3 | Set./Dez. 2018. 566-566

RUSSO, Alessandra. El realismo circular: tierras, espacios y paisajes de la cartografía indígena novohispana, siglos XVI y XVII. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2005.

SÁNCHEZ, Antonio. La espada, la cruz y el padrón: soberanía, fe y representación cartográfica en el mundo ibérico bajo la Monarquía Hispánica, 1503-1598. Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2013.

SCHWARTZBERG, Joseph E. Introduction to Southeast Asia Cartography. In: HARLEY, John Brian; WOODWARD, David (Eds.). The History of Cartography. Cartography in the Traditional East and Southeast Asian Societies. Chicago/Londres: The University of Chicago Press, v. 2, 1994a, p. 689-700.

______. Southeast Asian Nautical Maps. In: HARLEY, John Bryan; WOODWARD, David (Eds.). The History of Cartography. Cartography in the Traditional East and Southeast Asian Societies. Chicago/Londres: The University of Chicago Press, v. 2, 1994b, p. 828-838.

SUÁREZ, Thomas. Early Mapping of Southeast Asia. Cingapura: Periplus Editions, 1999.

THOMAZ, Luís Filipe F. R. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994.

______. País dos belos: achegas para a compreensão de Timor-Leste. Macau: Instituto Português do Oriente/Fundação Oriente, 2008.

______. Prefácio. In: ERÉDIA, Manuel Godinho de. Suma de árvores e plantas da Índia intraganges. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, p. 7-22.

______. The Image of the Archipelago in Portuguese Cartography of the 16th and Early 17th centuries. Archipel, n. 49, p 79-124, 1995.

TORGAL, Luís Reis. História… Que História? Notas críticas de um historiador. Lisboa: Temas e Debates, 2015.

VALENTIM, Carlos Manuel. O trabalho de uma vida: biobibliografia de Avelino Teixeira da Mota (1920-1982). Lisboa: Edições Culturais da Marinha, 2007.

WINTER, Heinrich. Francisco Rodrigues’ Atlas of ca. 1513. Imago Mundi, n. 6-1, p. 20-26, 1949.