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74 A R T I G O S M A R G E M E S Q U E R D A 13 As aventuras de Karl Marx contra a pulverização pós-moderna das resistências ao capital * MARCELO DIAS CARCANHOLO GRASIELA CRISTINA DA CUNHA BARUCO O título deste trabalho é, obviamente, uma paródia baseada na obra de Löwy 1 . Ali, o autor procurava mostrar que todo conhecimento e interpretação da realidade social estão ligados ao que ele chama de “grandes visões sociais de mundo”, ou seja, que a pretensa neutralidade ideológica no trato científico – tão cara à tradição positivista – é uma mera ilusão, mistificação. Neste trabalho, o objetivo é analisar criti- camente as bases teóricas do pensamento pós-moderno que levam à defesa de um posicionamento fragmentado e meramente heterogêneo diante da lógica do capital – que, segundo Marx, é, de fato, totalizante e homogeneizadora, ainda que do ponto de vista apenas formal. Na primeira parte, são esboçados alguns elementos do pensamento de Foucault sobre o caráter microdeterminado do poder, o que pode ser identificado como um dos fatores que compõem a gênese da ideia pós-moderna sobre as microcontestações fragmentadas. A segunda visa discutir o caráter dialético dessas microcontestações. Se, por um lado, elas apresentam possibilidades no enfrentamento com a lógica do conteúdo-capital, devido ao fato de que este efetivamente se manifesta nos distintos terrenos da sociedade; por outro, essas lutas fragmentadas possuem limites óbvios ao restringirem-se cada uma * Os autores agradecem os comentários críticos de João Leonardo Medeiros. 1 Michael Löwy, As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento (São Paulo, Busca Vida, 1987). Margem 13 Final.indd 74 Margem 13 Final.indd 74 29/1/2010 11:12:22 29/1/2010 11:12:22

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As aventuras de Karl Marx contra a pulverização pós-moderna das resistências ao capital*

MARCELO DIAS CARCANHOLOGRASIELA CRISTINA DA CUNHA BARUCO

O título deste trabalho é, obviamente, uma paródia baseada na obra de Löwy1. Ali, o autor procurava mostrar que todo conhecimento e interpretação da realidade social estão ligados ao que ele chama de “grandes visões sociais de mundo”, ou seja, que a pretensa neutralidade ideológica no trato científi co – tão cara à tradição positivista – é uma mera ilusão, mistifi cação. Neste trabalho, o objetivo é analisar criti-camente as bases teóricas do pensamento pós-moderno que levam à defesa de um posicionamento fragmentado e meramente heterogêneo diante da lógica do capital – que, segundo Marx, é, de fato, totalizante e homogeneizadora, ainda que do ponto de vista apenas formal.

Na primeira parte, são esboçados alguns elementos do pensamento de Foucault sobre o caráter microdeterminado do poder, o que pode ser identifi cado como um dos fatores que compõem a gênese da ideia pós-moderna sobre as microcontestações fragmentadas.

A segunda visa discutir o caráter dialético dessas microcontestações. Se, por um lado, elas apresentam possibilidades no enfrentamento com a lógica do conteúdo-capital, devido ao fato de que este efetivamente se manifesta nos distintos terrenos da sociedade; por outro, essas lutas fragmentadas possuem limites óbvios ao restringirem-se cada uma

* Os autores agradecem os comentários críticos de João Leonardo Medeiros.1 Michael Löwy, As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento (São Paulo, Busca Vida, 1987).

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ao seu terreno, supostamente autônomo e independente, reduzindo assim a própria efetividade de suas contestações.

Na terceira parte, apresenta-se a relação que existe entre essa dialética das microcontestações e a temática das alternativas ao ca-pitalismo, principalmente no que diz respeito ao sujeito social que pode se propor a transformar esse modo de produção, o sujeito revolucionário. Por último, e como consequência, conclui-se com uma apreciação crítica sobre o capitalismo e o socialismo dentro da perspectiva pós-moderna.

Microfísica do poder e microcontestações fragmentadasO pós-modernismo, enquanto pensamento político-ideológico,

parte da premissa de que a sociedade hoje em dia viveria uma época de fragmentação2, em que distintas e múltiplas identidades foram construídas, independentemente de qualquer ordenamento social mais geral. A isso se relaciona a defesa de que a sociedade contemporânea seria pós-industrial, isto é, não teria no processo produtivo a sua lógica fundante, como na época moderna. Estaria muito mais ligada ao crescimento do setor de serviços e à exacer-bação do consumo3.

O individualismo seria, assim, uma de suas características, o que redefi ne uma importância para o que se chama micrologia do coti-diano, isto é, às distintas e heterogêneas microidentidades da vida cotidiana. Esse individualismo teria nascido com o modernismo, mas seria exagerado, de forma narcisista, na realidade pós-moderna.

Dessa forma, cada microidentidade teria como perspectiva política a atuação voltada aos diversos e específi cos modos de opressão e poder que atingem esses distintos e autônomos campos da vida so-cial. A origem da defesa pós-moderna das contestações fragmentadas está no rechaço que essa forma de pensamento promove a qualquer perspectiva totalizante e na defesa que faz da fragmentação da (nova) realidade social.

2 A esse respeito ver Deise Mancebo, “Contemporaneidade e efeitos de subjetivação”, em Ana Mercês Bahia Bock (org.), Psicologia e o compromisso social (São Paulo, Cortez, 2003); e Virgínia Fon-tes, Refl exões im-pertinentes: história e capitalismo contemporâneo (Rio de Janeiro, Texto, 2005).3 É exatamente o que fazem Michael Hardt e Antonio Negri, Império (Rio de Janeiro, Record, 2001), cap. 3.4, ao assumirem que a pós-modernidade se caracteriza pela passagem do paradigma industrial para o dos serviços e da informação, no que eles chamam de informatização.

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Não por acaso, esse tipo de perspectiva parece construir-se, entre outras bases4, a partir de uma leitura específi ca do que seja a ideia da microfísica do poder em Foucault.

A questão do poder passa a ser parte importante do pensamento de Foucault a partir de um determinado momento, fazendo com que a genealogia desse5 se torne o projeto central de sua refl exão. Entre-tanto, não existe, como poderia parecer, uma natureza geral (essência) do poder. O que há são formas heterogêneas, diferentes, múltiplas e dispersas de suas práticas de poder. Esse novo tipo de análise da questão faz parte do que o autor chama de “microfísica do poder”, o que não poderia ser confundido com a mera opressão estatal, uma vez que os poderes são exercidos em esferas e graus de intensidade diferenciados.

Tais poderes estariam relacionados ao que cada sociedade constrói e apresenta como verdade, ou saberes:

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de dis-curso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros, os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.6

Assim, verdade é poder7, um conjunto de procedimentos intima-mente relacionados a sistemas e efeitos de poder. Para Foucault, esses

4 Alex Callinicos, em seu Contra el postmodernismo: una crítica marxista (Bogotá, El Ancora, 2003), disponível na internet em <http://www.socialismo-o-barbarie.org/actualizaciones_formacion/formacion.htm>, identifi ca na origem desse tipo de pensamento uma mescla entre três fontes: movimento artístico pós-moderno, em contraposição dialética com as bases da arte moderna; fi losofi a pós-estruturalista, principalmente as ideias de Deleuze, Derrida e Foucault; e a noção do que seria uma sociedade pós-industrial.5 “É essa análise do porquê dos saberes que pretende explicar sua existência e suas transfor-mações situando-o como peça de relações de poder ou incluindo-o em um dispositivo político, que em uma terminologia nietzscheana Foucault chamará ‘genealogia’.” Cf. Roberto Machado, “Introdução: por uma genealogia do poder”, em Michel Foucault, Microfísica do poder (23. ed., Rio de Janeiro, Graal, 2007), p. X.6 Ibidem, p. 12.7 Ibidem, p. 13: “[...] entendendo-se mais uma vez, que por verdade não quero dizer ‘o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou fazer aceitar’, mas o ‘conjunto das regras

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saberes verdadeiros não podem ser entendidos separadamente do poder, ou melhor, dos distintos mecanismos e instrumentos técnicos que legitimam os processos de dominação.

Quem exerceria esse poder? A resposta marxista padrão, segundo Foucault, seria que esse é um exercício de dominação de classe8. Entretan to, para ele, o poder não tem centro; não haveria interesse, em termos analíticos, na restrição ao campo da luta de classes, nem na atuação do Estado, mas sim pelas táticas de governabilidade. O Estado, que não é entendido como um instrumento direto da domina-ção de classe9, não se defi ne pela sua territorialidade; esse é mais um elemento, não necessa ria mente o mais importante. Dessa forma, se o poder não tem centro, trabalha-se com o local, o micro, o corpo, o hábito – e seu exercício se dá em níveis variados, não se situando em nenhum ponto específi co da estrutura social, mas em todos ao mesmo tempo, com distintos graus de incidência, e sem nenhum referente unitário, centralizado, que lhe dê sentido.

Assim, se não há dominação de classe, ao menos de forma direta, na defi nição dos mecanismos de poder quem o exerce? Para Foucault, ele se exerce em todo espaço: ninguém é propriamente dono do po-der, ele é genuinamente difuso; não se sabe ao certo quem o detém, embora se possa saber quem não o detém.

segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos espe-cífi cos de poder’”.8 Isso não signifi ca que o poder e o Estado, para Marx, sejam meras correias de transmissão do domínio de uma classe perante a outra, ainda que essa concepção se apresente, em maior ou menor grau, em algumas interpretações que se pretendem marxistas. De fato, o poder e o Estado, dentro de uma sociedade capitalista, estão inseridos em uma lógica de dominação/exploração de uma classe que vive do seu trabalho por outra que vive do trabalho alheio, mas isso não permite desconsiderar as contradições internas e/ou fracionamentos dentro das próprias classes sociais, da estrutura de poder e do Estado. A sociedade capitalista não é um refl exo perfeito da contradição capital-trabalho em todas as suas instâncias, mas, a partir dessa contradição fundamental do capitalismo, constitui-se como um complexo de comple-xos, obviamente dialéticos. Ver Antonino Infranca, Trabajo, individuo, historia: el concepto de trabajo em Lukács (Caracas, Monte Ávila Editores Latinoamericanos, 2006), cap. IV.9 Desde já é salutar o alerta de que, para uma análise marxista mais robusta e condizente com a dialética marxista, não existe essa interpretação direta e rasteira da determinação linear da estrutura sobre a superestrutura. O que parece, em muitas passagens de Foucault, é que ele está tratando certo tipo de marxismo, realmente reducionista e vulgar, próprio da época em que pensava esse autor, como se fosse o pensamento de Marx e/ou de qualquer perspectiva marxista possível.

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Por tudo isso, a proposta de Foucault não aceita o tratamento tra-dicional de esquemas teóricos totalizantes, unitários. Nesse ponto, o autor é explícito ao se dirigir contra o pensamento freudiano tradicional e o marxismo10. Especifi camente sobre este último:

Se temos uma objeção a fazer ao marxismo é dele poder efetivamente ser uma ciência [...]. Vejo-os atribuindo ao discurso marxista e àqueles que o detêm efeitos de poder que o Ocidente, a partir da Idade Média, atribuiu à ciência e reservou àqueles que formulam um discurso científi co.11

Ou seja, o principal problema de Foucault com o marxismo, se-gundo ele próprio, seria duplo: a consideração da estrutura de poder como algo unitário, centralizado dentro da lógica de opressão do ca-pital diante do trabalho; e a pretensão, inerente a essa teorização, de se constituir como uma forma de poder, no sentido de que ela traria consigo a pretensa única maneira de fazer ciência, isto é, de descobrir a verdade12. Para Foucault, tal tem um sentido de desqualifi cação de tudo aquilo que “não é ciência”, ou seja, de qualquer outro discurso, seja teórico ou não, que não o marxista13.

A isso Foucault contrapõe o que chama de genealogia, que seria um projeto para libertar os saberes históricos dessa sujeição e opressão construídas pelos saberes totalizantes e pretensamente científi cos: “a reativação dos saberes locais – menores, diria talvez Deleuze – contra a hierarquização científi ca do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de

10 “Foucault rejeita o marxismo como saber inscrito na racionalidade de mundo ocidental e trata de mostrar que este saber constrói um sistema de poder que ele mesmo, Foucault, não pode senão recusar.” Roberto Nigro, “Foucault lecteur et critique de Marx”, em Jacques Bidet e Eustache Kouvélakis (orgs.), Dictionaire Marx contemporain (Paris, PUF, 2001), p. 434.11 Michel Foucault, Microfísica do poder, cit., p. 172.12 “El poder no es unitario, sostiene, y consiste en una multiplicidad de relaciones que infi ltran la totalidad del cuerpo social. Por ello, es imposible asignar una prioridad causal a la base económica, como lo hace el marxismo. Más aún, el poder es productivo: no opera median-te la represión de los individuos y no circunscribe sus actividades, sino que las constituye. Foucault ilustra lo anterior, primordialmente, en las instituciones ‘disciplinarias’ tales como la prisión, creada a comienzos del siglo XIX. Por último, el poder suscita por necesidad una oposición, una resistencia, si bien tan fragmentaria y descentralizada como las relaciones de poder que combate” (Alex Callinicos, Contra el post modernismo, cit., cap. 3, p. 11). Deve-se destacar o caráter profundamente crítico que Callinicos imprime a esse tipo de pensamento em sua obra.13 É fundamental notar que, nessa passagem, Foucault está endereçando a crítica também, em termos idênticos, para o discurso e a prática psicanalíticos.

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poder, eis o projeto das genealogias desordenadas e fragmentárias”14. Note-se que isso é feito sem ter como referência um sujeito – qualquer que seja – universal, transcendente, mas justamente a multiplicidade dos saberes locais, isto é, ao que se pode chamar de microssujeitos.

Mas, qual é a relação disso com as microcontestações fragmen-tadas tão glorifi cadas pelo pensamento pós-moderno? Harvey a percebe perfeitamente:

É clara a crença de Foucault no fato de ser somente através de tal ataque multifacetado e pluralista às práticas localizadas de repressão que qualquer desafi o global ao capitalismo poderia ser feito sem produzir todas as múlti-plas repressões desse sistema numa nova forma. Suas ideias atraem os vários movimentos sociais surgidos nos anos 1960 (grupos feministas, gays, étnicos e religiosos, autonomistas regionais etc.), bem como os desiludidos com as práticas do comunismo e com as políticas dos partidos comunistas.15

Inicialmente, da forma como colocado por Harvey, pode-se inter-pretar essa relação do pensamento de Foucault com os movimentos sociais fragmentados dos anos 1960 como algo direto do primeiro para os segundos, como se a interpretação teórica do autor surgisse por inspiração iluminada e os movimentos sociais apenas seguissem essa ideia. O próprio Foucault não dá margem a esse tipo de interpretação, quando afi rma que “só se pode começar a fazer esse trabalho [de estudo das formas concretas do poder] depois de 1968, isto é, a partir das lutas cotidianas e realizadas na base com aqueles que tinham que se debater nas malhas mais fi nas da rede do poder”16.

Se o poder não é centralizado – e, portanto, seus detentores e mecanismos de operação tampouco são unifi cados, mas dispersos e diluídos –, um combate a essas formas de opressão só poderia advir de um confronto também fragmentado, multifacetado, o que coloca o enfrentamento político contra a realidade do poder no terreno das chamadas microcontestações fragmentadas.

Mas e a lógica do conteúdo-capital? Não é, de fato, totalizante, global e unifi cadora, por mais que as diversas formas de poder a ela relacionadas sejam dispersas? Se essas lutas fragmentadas rejeitam

14 Michel Foucault, Microfísica do poder, cit., p. 172.15 David Harvey, Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural (16 ed., São Paulo, Loyola, 2007), p. 51-2.16 Michel Foucault, Microfísica do poder, cit., p. 8.

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deliberadamente qualquer interpretação holística17 – para usar o termo de Harvey – do capitalismo contemporâneo, fi ca aberta a questão de como conseguem construir um confronto realmente progressivo e progressista às contradi ções centrais da lógica do conteúdo-capital. É disso que passamos a tratar.

Dialética das microcontestações fragmentadas18

Não se pode confundir a crítica, necessária, à fragmentação das contestações sociais, pelo fato de que realmente não se contrapõem à totalidade da lógica do capital, com uma negação total das contestações locais, focalizadas, tão necessárias para uma prática revolucionária anticapitalista. Isso defi ne uma dialética das microcontestações, frag-mentadas em relação à lógica totalizante do movimento do capital.

Essa dialética se defi ne, por um lado, pelos limites óbvios colocados à efetividade das lutas fragmentadas, no sentido de que não enfrentam, questionam, opõem-se, à lógica do capital – ou seja, à exploração do trabalho (indiferentes às distintas formas em que este se apresente) e ao estranhamento/fetichismo/alienação próprios da sociedade mercantil-capitalista. Ao contrário, essas lutas fragmentadas adequam-se à lógica do capital. O que se mostra claro para Wood, quando afi rma que

No capitalismo, muita coisa pode acontecer na política e na organização comunitária em todos os níveis sem afetar fundamentalmente os poderes de exploração do capital ou sem alterar fundamentalmente o equilíbrio decisivo do poder social. Lutas nessas arenas continuam a ter importância vital, mas precisam ser organizadas e conduzidas com a noção clara de que o capita-lismo tem notável capacidade de afastar a política democrática dos centros de decisão de poder social e de isentar o poder de apropriação e exploração da responsabilidade democrática.19

17 “No holismo, os indivíduos empíricos são, sobretudo, representados como identidades posicionais, isto é, como identidades cujo valor é dado pelo lugar que ocupam na hierarquia es-tratifi cada da sociedade; no individualismo, forma hegemônica das sociedades ocidentais, o valor da identidade individual é dado, sobretudo, pela ideia de autonomia do sujeito em relação ao todo.” Cf. Deise Mancebo, “Indivíduo e psicologia: gênese e desenvolvimentos atuais”, em Ana Maria Jacó-Vilela e Deise Mancebo (orgs.), Psicologia social: abordagens sócio-históricas e desafi os contemporâneos (Rio de Janeiro, Eduerj, 1999), p. 36.18 Ellen Meiksins Wood, em seu Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico (São Paulo, Boitempo, 2003), prefere chamá-las de terreno das contestações extra-econômicas.19 Ibidem, p. 236.

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Isso nos leva a outro polo dessa dialética das lutas fragmentadas, o das possibilidades. De fato, justamente porque o conteúdo-capital, em sua lógica totalizante, se manifesta nos distintos terrenos da sociedade, várias formas de manifestação, específi cas, das suas contradições (exploração e estranhamento) são observadas no real-concreto. Assim, as diversas lutas, em diferentes arenas (opressão de gênero, raça, movimentos ecológicos, étnicos etc.) são formas reais de confronto ao capital, enquanto, e desde que, partes de uma totalidade de oposição à sua lógica.

Entretanto, a possibilidade de vitórias das lutas fragmentadas, se não desejam, mesmo com vitórias pontuais, perpetuar-se ad infi ni-tum contra novas formas de manifestação das desigualdades, está relacionada com a possibilidade de uma vitória maior dentro de um confronto anticapitalista, por mais que isso soe incômodo ao ouvido pós-moderno. Isso porque

[...] o capitalismo tem uma tendência estrutural a rejeitar as desigualdades extraeconômicas, mas essa tendência é uma faca de dois gumes. Estrate-gicamente, ela implica que as lutas concebidas em termos exclusivamente extraeconômicos – puramente contra o racismo, ou contra a opressão de gênero, por exemplo – não representam em si um perigo fatal para o capitalismo, que elas podem ser vitoriosas sem desmontar o sistema capitalista, mas que, ao mesmo tempo, terão pouca probabilidade de sair vitoriosas caso se mantenham isoladas da luta anticapitalista.20

De fato, as lutas fragmentadas não têm nenhuma chance de vitória diante do capital enquanto exasperarem a lógica isolacionista de cada uma delas. Por uma razão muito simples: o capitalismo tem a tendência a “identifi car”/igualar as especifi cidades dos indivíduos no momento em que, a partir da expropriação dos meios de produção, cria dois tipos distintos de inserção nessa sociabilidade. Aqueles que não possuem os meios de produção e são, por isso, obrigados a vender sua força de trabalho (manifeste-se ela da forma que for) justamente para aqueles (os proprietários dos meios de produção) que necessitam comprá-la para transformar seu capital-dinheiro na forma capital-produtivo. Não importa o tipo específi co de trabalho material realizado nos distintos ra-mos produtivos. As relações sociais21, no capitalismo, são defi nidas com

20 Ibidem, p. 232.21 “Karl Marx (1818-1883) procura estabelecer um ponto concreto, calcado na vida material, a partir do qual se poderia defi nir o processo histórico. Considera os homens não a partir

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base no fato de que alguns compram para vender (circulação capitalista de mercadorias), enquanto outros são obrigados a vender (sua força de trabalho) para comprar (meios de subsistência)22. Nesse sentido, todos os indivíduos são formalmente iguais, “livres”, para decidir se vendem (ou não) sua força de trabalho no mercado. É a democracia formal burguesa em toda sua fantasmagoria da liberdade, igualdade e fraternidade23.

Essa trindade basilar do liberalismo clássico é meramente formal, aparente, no sentido de que “[...] todo o mundo precisa querê-las, mas elas não podem realizar-se. A única coisa que lhes pode acontecer é que o sistema que as gerou desapareça, assim abolindo os ‘ideais’ juntamente com a própria realidade”24. A identifi cação/igualitarismo dos indivíduos específi cos é meramente formal, aparente, e esconde a real desigualdade entre os proprietários dos meios de produção e os proprietários da força de trabalho, mistifi cando a exploração do trabalho no sistema capitalista.

dos valores aos quais aderem, mas a partir da forma social de produção e reprodução na qual se inserem. É a organização da vida social, o que, para ele, permite explicar a emergência e a generalização de determinados valores, e não o contrário.” Cf. Virgínia Fontes, “História e verdade”, em Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta (orgs.), Teoria e educação no labirinto do capital (Petrópolis, Vozes, 2001), p. 126.22 Essa é a base categorial em Marx para uma teoria das classes sociais, mas está longe de dar conta de toda a complexidade do assunto, especifi camente dos diferentes níveis de mediação entre as distintas frações de classe. O debate marxista acerca do tema é extenso, e se torna ainda mais complexo pelo fato de Marx, no capítulo LII do livro III de O capital, que trata justamente do assunto, terminar a escrita, após algumas pistas, sem fornecer sua resposta. Um bom tratamento da questão pode ser encontrado em Daniel Bensaïd, Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica (séculos XIX e XX) (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999), segunda parte, especialmente o capítulo 4.23 Os discursos que tratam a “sociedade civil”, as ONGs, o “terceiro setor”, como únicas formas de confronto social caem nas mesmas armadilhas porque “[...] oscurecen la profunda división de clases, la explotación y la lucha clasista que polarizan la ‘sociedad civil’ contemporánea. Aunque analíticamente inútil y engañoso, el concepto de ‘sociedad civil’ facilita la colaboración de las or-ganizaciones no gubernamentales con los capitalistas que fi nancian sus instituciones y les permite orientar a sus proyectos y seguidores hacia relaciones subordinadas a los intereses de las grandes empresas a la cabeza de las economías neoliberales.” Cf. James Petras e Henry Veltmeyer, El Imperialismo en el siglo XXI: la globalización desenmascarada (Madri, Popular, 2002), p. 194. Isso não signifi ca que toda ONG seja funcional e esteja a serviço do capitalismo neoliberal; apenas que considerar a luta fragmentada como única forma de confronto ao capital é, primeiro, afi rmá-lo ao invés de negá-lo, e, segundo, justamente esconder as diferenças ideológicas que existem entre os distintos elementos que compõem o “terceiro setor”.24 Fredric Jameson, “O pós-modernismo e o mercado”, em Slavoj Žižek (org.), Um mapa da ideologia (Rio de Janeiro, Contraponto, 1996), p. 281.

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Note-se que o igualitarismo formal não apaga as diferenças, desi-gualdades, especifi cidades dos diferentes indivíduos, apenas as torna formalmente igualadas, pela participação “igual” de cada um no mercado. Dessa forma, o capitalismo não precisa dessas opressões extraeconômicas – no sentido de Ellen Wood –, mas também as utiliza para seu próprio benefício.

Em primeiro lugar, porque “quando os setores menos privilegiados da classe trabalhadora coincidem com as identidades extraeconômicas como gênero ou raça, como acontece com frequência, pode parecer que a culpa pela existência de tais setores é de causas outras que não a lógica necessária do sistema capitalista”25. Nesse sentido, pode-se defi nir uma primeira razão positiva que a funcionalidade das opres-sões extraeconômicas tem para o sistema capitalista: se as identidades extraeconômicas normalmente se confundem com setores menos pri-vilegiados da força de trabalho, e a lógica do capital prescinde de suas diferenciações econômicas, a razão para tais opressões, nesse terreno, não pode ser a lógica capitalista, que é econômica. O capitalismo se isenta de qualquer responsabilidade nesse terreno.

Segundo, é possível defi nir uma razão negativa para a funciona-lidade. Se pela razão positiva o capital não implica – do (seu) ponto de vista meramente aparente – desigualdades extraeconômicas, estas últimas servem para esconder/mistifi car as contradições estruturais da sociedade capitalista – o que, no plano político, leva à divisão da classe trabalhadora. Divisão esta que ocorre porque cada fragmento da classe, enquanto afi rmado em uma unidade/identidade extraeco-nômica específi ca, pode lutar, por mais radical que seja, apenas em seu microterreno, abrindo mão da luta maior.

Wood resume a ideia dessa forma:

[...] a indiferença estrutural do capitalismo pelas identidades sociais das pessoas que explora torna-o capaz de prescindir das desigualdades e opressões extraeconômicas. Isso quer dizer que, embora o capitalismo não seja capaz de garantir a emancipação da opressão de gênero ou raça, a conquista dessa emancipação também não garante a erradicação do capitalismo. Ao mesmo tempo, essa mesma indiferença pelas identidades extraeconômicas torna particularmente efi caz e fl exível o seu uso como cobertura ideológica pelo capitalismo.26

25 Ellen Meiksins Wood, Democracia contra capitalismo, cit., p. 229.26 Ibidem, p. 241.

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Em adição à refl exão da autora, acrescentaríamos, para concluir esse ponto, que o principal erro da postura pós-moderna, que afi rma as lutas em favor das identidades extraeconômicas, ao mesmo tem-po em que rejeita radicalmente a superação – no sentido dialético, que não pode ser confundido com supressão – dessas lutas em um projeto revolucionário anticapitalista, é a confusão que se faz entre várias formas fragmentadas de manifestação da desigualdade entre seres humanos com o conteúdo capitalista dessas desigualdades, ou seja, o estranhamento/fetichismo e a exploração do trabalho. Pior, a exasperação dessa posição pós-moderna, hipostasiando as formas das desigualdades, separando-as de qualquer conteúdo capitalista – como se cada forma fosse um conteúdo em si –, leva à aceitação do capi-talismo como sistema social indiscutível e à fragmentação da classe trabalhadora, sujeito que tem a possibilidade de ser revolucionário, o que decididamente não pode ser confundido com necessidade de ocorrência histórica.

Classes sociais e sujeito(s) revolucionário(s)Essa discussão nos traz ao tema das alternativas que se colocam

ao capitalismo contemporâneo e dos (novos) sujeitos que teriam, ou não, a capacidade de implementá-las27. A esquerda marxista tradicional costuma falar de um sujeito revolucionário, a classe trabalhadora. Mas isso não faz mais sentido para o pensamento pós-moderno. A negação do sujeito revolucionário ocorre em razão da afi rmação que o pós-modernismo faz da fragmentação, característica basilar da condição pós-moderna atual, assim como da defesa da tese segundo a qual a nova economia informacional e de serviços implica, inexoravelmente, uma transformação na natureza e qualidade do trabalho.

Esse tipo de pensamento conclui pela negação do sujeito revolucio-nário tradicional, marxista, a partir de dois fatores inter-relacionados, além de sua rejeição radical a qualquer perspectiva totalizante: a mudança da sociedade industrial para a pós-industrial, ou de servi-ços, e a emergência de um trabalho imaterial – em contraposição ao material, fabril, da época moderna – que estaria na base da economia

27 Note-se que essa forma de colocar a questão está perfeitamente adequada ao discurso pós-moderno, uma vez que não haveria mais um único sujeito histórico, mas vários, que representam múltiplas e distintas identidades, conformando, portanto, alternativas, ao invés de uma única alter-nativa totalizante. Colocar a questão no plural, e não no singular, não é meramente uma opção discursiva, mas um sintoma da ideologia que está contida no pensamento pós-moderno.

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informacional e de serviços. Hardt e Negri28, por exemplo, distinguem três tipos de trabalho imaterial. O primeiro caracterizaria a própria produção industrial, agora “informacionalizada” e com novas tecno-logias de comunicação. O segundo englobaria as tarefas analíticas e simbólicas que perpassam os distintos setores da nova economia. O último seria aquele que se relaciona com a produção e manipulação de afetos, sensibilidades, em suma, toda aquela gama de característi-cas que defi nem uma microidentidade, que fornece especifi cidade ao sujeito individual, categoria basilar desse tipo de pensamento.

Qual é a relação disso com a negação do sujeito revolucionário tra-dicional, a classe trabalhadora29? Essa relação fi ca clara quando Hardt e Negri afi rmam que, independentemente da sua forma, o trabalho material possui a característica inerente de cooperação, ou seja, esta última não seria o resultado de uma imposição externa, como ocorreria nas formas anteriores de trabalho. Assim, a força de trabalho atual não teria a sua potencialidade efetivada necessariamente por intermédio da imposição da lógica do capital30 – ou seja, não seria mais capital variável. Isso im-plica o rompimento da relação antagônica entre capital e trabalho, pois o resultado do processo de trabalho, em sua cooperação, não lhe seria mais estranhado, a partir da apropriação da mais-valia pelo capital. Se não há mais antagonismo, confl ito, luta entre as classes (capital e traba-lho), a classe trabalhadora não pode ser mais o sujeito revolucionário, no sentido de que teria a possibilidade de se colocar como uma alternativa

28 Michael Hardt e Antonio Negri, Império, cit., p. 314-5.29 É fundamental ressaltar já neste ponto a total incompreensão dos pós-modernos – embora isso se estenda para outros tipos de interpretação, inclusive algumas “marxistas” – a respeito do que é capital industrial, força de trabalho, trabalho produtivo e classe trabalhadora. Para esse tipo de pensamento, capital industrial e indústria são sinônimos. Assim, só seria trabalho produtivo aquele que fosse implementado no processo industrial e, portanto, a teoria do valor trabalho e a classe trabalhadora, em Marx, só seria aquela ligada ao setor industrial. O que nem de longe se aproxima do que Marx realmente entendia por essas categorias é algo que basta uma leitura nem tão atenta assim da seção I do livro II de O capital. Ricardo Antunes, em Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afi rmação e a negação do trabalho (São Paulo, Boitempo, 2003), também trata do tema, ainda que se sinta obrigado a falar da classe-que-vive-do-trabalho para representar a classe trabalhadora na atualidade, quando bastaria, em nosso entendimento, o tratamento correto da categoria trabalho produtivo em Marx.30 “Cérebros e corpos ainda precisam de outros para produzir valor, mas os outros de que eles necessitam não são fornecidos obrigatoriamente pelo capital e por sua capacidade de orquestrar a produção.” Cf. Michael Hardt e Antonio Negri, Império, cit., p. 315. Tudo se passa como se alguma(s) micrológica(s) pudesse(m) tornar-se independente(s) do processo de acumulação de capital, ou seja, como se este deixasse de ser totalizante, ainda que em algum grau.

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integralmente anticapitalista. Não há oposição, não há luta, não pode haver revolução; nem, portanto, sujeito revolucionário31!

No que se refere à relação entre a fragmentação e a negação do sujeito revolucionário, Chaui constata que

[...] o pós-modernismo comemora o que designa de “fi m da metanarra-tiva”, ou seja, dos fundamentos do conhecimento moderno, relegando à condição de mitos eurocêntricos totalitários os conceitos que fundaram e orientaram a modernidade: as ideias de verdade, racionalidade, univer-salidade, o contraponto entre necessidade e contingência, os problemas da relação entre subjetividade e objetividade, a história como dotada de sentido imanente, a diferença entre Natureza e cultura etc. Em seu lugar, afi rma a fragmentação como modo de ser do real, fazendo da ideia de diferença o núcleo provedor de sentido da realidade; preza a superfície do aparecer social ou as imagens e sua velocidade espaçotemporal; recusa que a linguagem tenha sentido e interioridade.32

Disso, em primeiro lugar, decorre que quaisquer alternativas que advenham para a atual condição pós-moderna só podem provir da diversidade de identidades produzidas pela fragmentação. O posiciona-mento político pós-moderno que advoga a possibilidade/necessidade de construir outro mundo o faz negando as totalidades, as normas centralizadas – seja pelo partido ou sindicato – e afi rmando a diversi-dade de contestações, o despedaçamento e, nos casos mais radicais, a anarquia. Outro mundo é possível, desde que não seja construído a partir de uma identidade unifi cadora e totalizante.

Mas essa não é a única postura política possível a partir da de-fesa da condição pós-moderna. Além dessa postura radical – ainda que desprezando, também radicalmente, qualquer projeto emanci-patório mais geral, como o socialismo –, é possível também uma postura conservadora. Em que sentido? Ao negar qualquer forma de alternativa totalizante, assim como a primeira postura, e já que a realidade pós-moderna signifi ca a fragmentação, o máximo que

31 “Na expressão de suas próprias energias criativas, o trabalho imaterial parece, dessa forma, fornecer o potencial de um tipo de comunismo espontâneo e elementar.” Cf. Michael Hardt e Antonio Negri, Império, cit. p. 315. Os autores conseguem, com isso, pensar a possibilidade de um comunismo elementar (quase lógico), espontâneo, natural, isto é, a-histórico! Isso sim é uma interpretação mecanicista e determinística da história!32 Marilena Chaui, Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas sob o signo do neo-liberalismo (São Paulo, Cortez, 2005), p. 327.

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podemos fazer é resignar-nos, conformar-nos a essa condição. Essa postura política do pós-modernismo é extremamente con-servadora, pois equivale a aceitar que a evolução do capitalismo produziu uma situação tal que é impossível construir qualquer tipo de alternativa(s); é como se o capitalismo tivesse produzido o fi m da história33!

A negação do sujeito revolucionário unifi cado produz uma segunda consequência. Kohan a resume da seguinte forma:

Si fuese verdad que ya no hay sujetos34, entonces desaparecerían como por arte de magia toda alienación, todo aislamiento obligado, toda soledad impuesta, todo sufrimiento inducido, toda manipulación mediática, todo aplastamiento de las experiencias de rebeldía radical, toda represión de la cultura y la sexualidad, toda prohibición de la cooperación social, toda explotación y, por supuesto, todo fetichismo. ¿Qué resta entonces? Pues tan sólo [...] esquizofrenia, desorden lingüís-tico, descentramiento de la conciencia otorgadora de sentido y ruptura de la cadena signifi cante, predominio del espacio aplanado de la imagen por sobre el tiempo profundo de la historia sobre la cual se estructura la memoria y la identidad (individual y colectiva).35

Ou seja, segundo a forma pós-moderna de pensar, quando não há sujeito enquanto classe, não pode existir a consciência de classe, justamente porque esta última não faz mais sentido. Assim também, a luta de classes perde todo o sentido, pois é impossível uma luta entre algo que não existe mais, ou melhor, que perdeu qualquer unidade,

33 Essa dupla possibilidade de postura política a partir do pós-modernismo relaciona-se a “aquilo que Habermas denomina pós-modernismo anárquico (desconstrucionismo e relativismo em des-taque) e aquilo que ele chama de pós-modernismo conservador, a saber, que ambos despedem-se dos fundamentos autoconscientes da razão que caracterizam o espírito moderno em sua origem, o primeiro lamentando e o segundo aplaudindo a autonomia conseguida pela objetivação social desse espírito.” Cf. Leda Maria Paulani, Modernidade e discurso econômico (São Paulo, Boitempo, 2005), p. 137. Sobre a tese neoliberal do “fi m da história” (globaritária, nos termos de Milton Santos), ver Deise Mancebo, “Indivíduo e psicologia: gênese e desenvolvimentos atuais”, cit.34 O autor deveria especifi car que não haveria dentro do pós-modernismo sujeitos do ponto de vista do marxismo tradicional, mas uma pulverização das diferentes possibilidades de contradições, ou seja, nesse sentido, não há sujeito, mas uma miríade de sujeitos específi cos e heterogêneos.35 Nestor Kohan, “Desafíos actuales de la teoría critica”, em Anais do II Encontro Nacional de Política Social – IV Seminário de Práticas em Serviço Social (Vitória, Universidade Federal do Espírito Santo, 2007), p. 4-5, disponível na internet em <http://www.lahaine.org/amauta/b2-img/nestor_desa.pdf>.

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esvaecida no processo de fragmentação e construção de microidenti-dades relacionadas a qualquer referente entendido como comum pelos sujeitos que delas fazem parte. Se é assim, que sentido pode ter uma proposta de classe, como o socialismo, se o seu sujeito não existe mais, ou está diluído nas mais diferentes formas de identifi cação dos sujeitos? A única postura política, em um mundo como esse, só pode ser a afi r-mação dessas novas identidades. A conclusão é que o pós-modernismo, pensando dessa forma, é contraditório com qualquer postulação e ação socialista. Renegar qualquer possibilidade de uma sociedade pós-capitalista, quando se nega a luta revolucionária pelo socialismo, por sua vez, é justamente uma forma de afi rmar o capitalismo. E isso por mais radical que seja o primeiro tipo de postura política, o que afi rma a construção de alternativas com base na diversidade de identidades. Outro mundo é possível, desde que não seja o socialismo36!

Pós-modernismo, capitalismo e socialismo: notas para uma conclusãoA negação pós-moderna da alternativa socialista – por mais que

alguns dos seus defensores procurem encobrir essa conclusão – leva ao tratamento da relação entre o pós-modernismo e a revolução, especifi camente a socialista. Por um lado, como visto, o pensamento pós-moderno rechaça qualquer tipo de revolução socialista. Por outro, o fracasso do “socialismo real” contribuiu para a ascensão e a hegemonia do pensamento pós-moderno. Isso porque esse fracasso atestaria o fato de que a proposta socialista não passaria de uma construção de outras formas de poder opressor e, o que é pior, uma repressão totalitária por forçar um igualitarismo entre os indivíduos, o que negaria as multiplicidades de identidades37.

36 Desconsidera-se, obviamente, qualquer validade alternativa para aquilo que Hardt e Negri chamaram de “comunismo espontâneo e elementar”.37 O que é indevido aqui é justamente a associação direta e linear que se faz das experiências do “socialismo real” com o socialismo enquanto projeto emancipatório. Que as experiências históricas tenham construído formas de opressão – distintas das formas do Ocidente capitalista – não se pode concluir que isso seja inerente a uma sociabilidade socialista. Esta última se caracterizaria, entre outras coisas, pelo fato de que as relações sociais seriam diretas e não intermediadas, seja pela troca de mercadorias (nas economias capitalistas), seja pela imposição de um Estado bu-rocratizado (experiências do “socialismo real”). Tal discussão, inclusive, leva ao questionamento do caráter socialista dessas experiências. As referências aqui são muitas, mas pode-se consultar, a título de ilustração, István Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (São Paulo, Boitempo, 2002).

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De qualquer forma, note-se que não se trata de incluir o socialismo como uma das alternativas possíveis à (e em razão da) condição pós-moderna. Como visto, trata-se de negá-lo como uma das alternativas. Isso produz consequências importantes.

La negación del proyecto emancipatorio es, en defi nitiva, una cuestión central no solo teórica sino práctica, política, ya que descalifi ca la acción, y condena a la impotencia o al callejón sin salida de la desesperación al fundar – ahora sí – la inutilidad de todo intento de transformar radicalmen-te la sociedad presente. Y con este motivo el pensamiento posmoderno echa mano de otras negaciones como las de superación, historia, sujeto, progreso, novedad etc.38

O pós-modernismo nega o projeto emanci patório, o socialismo, justamente por que nega, além de qualquer interpretação (proposta) to-talizante, uma perspectiva verdadeiramente histórica para o ser humano, como se este não fosse o responsável pela criação das condições objeti-vas nas quais vive, inclusive a pós-moderna! No fi nal das contas, trata-se da afi rmação/defesa do presente, isto é, do capitalismo, já que

es, pues, propio del pensamiento posmoderno esta exaltación del presente y negación del futuro que, en verdad, es la conciliación con un presente, el nuestro, conciliación que es siempre la marca del conservadurismo39.

O pós-modernismo é, nesse sentido, uma expressão do pensamento conservador atual.

Negar tal impostura é negar a validade e legitimidade dos distintos movimentos sociais contestatórios? Não necessariamente. Esses con-testam distintas formas de opressão e exploração que dizem respeito também à lógica opressiva do capital. O que não se pode é confundir as distintas formas de manifestação dessa lógica com o seu conteúdo, este sim mais geral, totalizador e globalizante. Como afi rma Antunes, ainda que tratando especifi camente da questão do desemprego, o argumento pode ser facilmente extrapolado para outros campos de luta:

atribuir a elas [associações ou empresas solidárias] a possibilidade de, em se expandindo, substituir, alterar e, no limite, transformar o sistema global de capital parece-nos um equívoco enorme. Como mecanismo minimi-

38 Adolfo Sánchez Vázquez, “Posmodernidad, posmodernismo y socialismo”, Trabajo y Capital, Montevideo, n. 3, 1992, p. 86.39 Ibidem, p. 87.

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zador da barbárie do desemprego estrutural, elas cumprem uma efetiva (ainda que limitadíssima) parcela de ação. Porém, quando concebidas como um momento efetivo de transformação social em profundidade, elas acabam por converter-se em uma nova forma de mistifi cação que pretende, na hipótese mais generosa, “substituir” as formas de transfor-mação radical, profunda e totalizante da lógica societal por mecanismos mais palatáveis e parciais, de algum modo assimiláveis pelo capital. E, na sua versão mais branda e adequada à ordem pretendem em realidade evitar as transformações capazes de eliminar o capital.40

Dessa forma, os distintos movimentos sociais que se confron-tam, em maior ou menor grau, com a lógica do capital, em suas diferentes formas de manifestação, teriam dupla validade. Uma em si, defi nida pela luta nos seus próprios marcos específi cos (movi-mento ecológico, agrário, racial etc.), e outra para além de suas respectivas especifi cidades, dentro de uma luta mais geral contra o conteúdo da lógica do capital. O que o pós-modernismo faz é afi rmar e hipostasiar a primeira validade, como se as formas fossem distintos conteúdos em si. O que uma perspectiva verdadeiramente emancipatória e socialista requer é a aceitação dialética das duas validades. Existe uma autonomia relativa entre ambas, ainda que meramente, pois elas não fazem sentido isoladas, mas dentro de uma perspectiva que procure confrontar o capital em todos seus âmbitos, em sua lógica mais geral, e nas distintas formas em que esta se manifesta. O próprio Foucault, de quem a ideologia pós-moderna parece ter retirado muito de sua fundamentação, reco-nhece que as lutas fragmentadas, enquanto lutas contra o poder, fazem parte do processo revolucionário,

[...] evidentemente como aliado do proletariado, pois, se o poder se exerce como ele se exerce, é para manter a exploração capitalista [...] as mulheres, os prisioneiros, os soldados, os doentes nos hospitais, os homossexuais iniciaram uma luta específi ca contra a forma particular de poder, de coerção, de controle que se exerce sobre eles. Essas lutas fazem parte atualmente do movimento revolucionário, com a condição de que sejam radicais, sem compromisso nem reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma mudança de titular.41

40 Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, cit., p. 113-4.41 Michel Foucault, Microfísica do poder, cit., p. 77-8.

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Mesmo rejeitando o marxismo – ou o que ele parece inferir como tal, a partir de um tipo específi co de marxismo vulgar – por ser uma fonte outra de poder totalizante, Foucault também conclui que as distintas formas de lutas fragmentadas não parecem ter sentido se consideradas apenas enquanto fragmentos, mas unicamente enquanto elementos de um processo revolucionário maior. Foucault parece, aqui, ser muito menos pós-moderno do que os seus “discípulos” gostariam.

Existe, porém, um cuidado adicional a ser tomado. Não é porque se aceita que as lutas dos movimentos sociais apresentam essa dupla validade que se pode outorgar o mesmo nível de importância, teórica e política, para os dois. Fazer isso seria pensar que o conteúdo e suas distintas formas de manifestação possuem idêntico status categorial e/ ou que se encontram em igual nível de abstração. Nem todas as lutas frag-mentadas têm potencialidade antissistêmica, apesar do fato de que as diferentes contestações devem fazer parte do projeto emancipatório.

Precisamente por esto, dentro de la alianza hegemónica de fuerzas poten-cialmente anticapitalistas, aunque todas las rebeldías contra la opresión tienen su lugar y su trinchera, el sujeto social colectivo que lucha contra la dominación de clase debe jugar un papel aglutinador de la única lucha que posee la propiedad de ser totalmente generalizable.42

A contradição fundamental do capitalismo, qualquer que seja a sua forma de manifestação histórica, e quaisquer que sejam as con-tradições adicionais que ele crie, continua sendo aquela expressa na própria fundação do capital, a distinta posição que existe na compra da força de trabalho entre os que vendem para comprar e, portanto, vivem do fruto de seu trabalho, e os que compram para vender, vivendo do fruto do trabalho alheio.

Dessa forma, por mais que as lutas fragmentadas tenham sua va-lidade em si, a exploração de classe – confi gurada pela contradição fundamental do capitalismo – tem uma condição histórica diferente, tem uma prioridade constitutiva na luta maior contra o capital e na construção de uma alternativa real, para além da lógica do conteúdo do capital, para o socialismo.

42 Nestor Kohan, “Desafi os actuales de la teoria critica”, cit., p. 25-6.

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“Terceiro setor” e ressignifi cação da sociedade civil1

EDILSON JOSÉ GRACIOLLI e MARCÍLIO RODRIGUES LUCAS

A visão predominante em relação ao “terceiro setor”As teorias que defi nem o “terceiro setor” partem da tese de que

há, nas sociedades contemporâneas, três esferas distintas, em-bora articuladas. De acordo com essas análises, o primeiro setor se refere à esfera do poder político-institucional, encarnada pelo Estado. O segundo seria aquele representado pelo mercado, isto é, pela produção e circulação de bens e serviços visando o lucro2. Já o “terceiro setor” se confi guraria como sendo a sociedade civil, composto de indivíduos, grupos e instituições que agem de acordo com uma racionalidade diferenciada em relação aos outros dois. Nessa perspectiva, Rubem César Fernandes escreve: “Marcando um espaço de integração cidadã, a sociedade civil distingue-se, pois, do Estado; mas, caracterizando-se pela promoção de interesses coletivos, diferencia-se também da lógica do mercado. Forma, por assim dizer, um ‘terceiro setor’”.

1 Este artigo apresenta parte das conclusões de uma pesquisa que contou com o fi nanciamento da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig), intitulada “Responsabilidade social empresarial, sociedade política e disputa por hegemonia”, realizada entre 2004 e 2006. 2 Alguns autores adotam uma classifi cação inversa: consideram o mercado como primeiro setor e o Estado como segundo. Ver Lester Salamon, Government and the Voluntary Sector in an Era of Retrenchment: the American Experience (Washington D. C., The Urban Institute Press, 1985) e Robert Wuthnow, Between States and Markets: the Voluntary Sector in Comparative Perspective (Nova Jersey, Princeton University Press, 1991).

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Esse se distinguiria por expressões de solidariedade por meio de atividades autônomas e voluntárias que implicam a “doação de tempo, trabalho e talento para causas sociais”3. Engloba desde práticas tradicionais de fi lantropia e caridade até ações com sentidos mais amplos de cidadania, como a defesa de diversos direitos e de melhores condições de vida.

De forma resumida, para tais abordagens, pode-se afi rmar que, na esfera governamental, os agentes, a fi nalidade dos serviços prestados e dos direitos estabelecidos são públicos – desconsiderando-se aqui a corrupção, através da qual tais agentes realizam seus interesses privados. Por sua vez, o mercado é integrado por agentes privados que buscam atender seus próprios interesses, pois objetivam o lucro individual. O “terceiro setor”, para esses autores, é composto de agentes privados que almejam fi ns públicos – quer dizer, é não governamental e não visa o lucro. O extenso trecho a seguir esclarece essa dupla negação:

No Terceiro Setor, o poder e o lucro não constituem razões sufi cientes para a ação. Dizer que são “não governamentais” implica designar iniciativas e organizações que, enquanto tais, não fazem parte do governo e não se con-fundem com o poder do Estado. Não estão no governo agora e não levam ao governo no futuro. [...] A segunda negação (“sem fi ns lucrativos”) faz referência a uma série de organizações e de ações cujos investimentos são maiores que os eventuais retornos fi nanceiros. O que elas fazem é simplesmente caro demais para os mercados disponíveis. [...] requerem recursos humanos e materiais que ultrapassam com frequência a capacidade de pagamento dos mais interessados. Supondo que o Estado não dê conta de subsidiar toda esta atividade, ou não se disponha a fazê-lo, resulta que elas só podem subsistir se contarem com doações feitas por terceiros. Recoloca-se, assim, a distinção já aludida: enquanto os serviços oferecidos pelo Estado são fi nanciados por impostos compulsórios, os serviços oferecidos pelo terceiro setor dependem, em grande medida, de doações voluntárias.4

De passagem, convém mencionar que há uma indevida identifi ca-ção entre governo e Estado nesse enfoque. Mas este é, de imediato, um aspecto menos relevante ao escopo desta análise. No mesmo diapasão, pode-se perceber um eco invertido da concepção de Adam

3 Ruth Cardoso, “Fortalecimento da sociedade civil”, em Evelyn Berg Ioschpe (org.), 3º setor: desenvolvimento social sustentado (2. ed., São Paulo, Gife/Paz e Terra, 2000), p. 8.4 Rubem César Fernandes, Privado, porém público: o terceiro setor na América Latina (3. ed., Rio de Janeiro, Civicus, 2002), p. 23-4.

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Smith acerca da razão para que haja atividades desempenhadas pelo Estado – o qual, para esse autor, poderia, de forma complementar, atuar nas áreas em que a iniciativa privada não pudesse ou não quisesse se fazer presente. Conforme a tese exposta antes, o “terceiro setor” assume frentes de ação que o Estado não tem como assumir.

Como já foi apontado, o que normalmente se identifi ca como “terceiro setor” é formado por um conjunto muito diferenciado de agentes e tipos de organização. É por isso que Fernandes afi rma que o “terceiro setor” é constituído por concepções e práticas divergentes que, apesar de não se confundirem, não se contrapõem de forma radical, confi gurando um arranjo complexo e instável de oposição e complementaridade, num espaço público não estatal. Trata-se de uma gama imensa de ações voluntárias, instituições fi lantrópicas destinadas à prestação dos mais diversos serviços sociais, organizações não governamentais (ONGs) com projetos de intervenção sistemática e entidades de defesa de direitos de grupos sociais específi cos. Assim, sob tal conceito, englobam-se inicia-tivas que vão desde o assistencialismo mais paternalista e conservador até intervenções bastante estruturadas no seio da sociedade, orientadas por concepções mais amplas de cidadania.

Diante dessa complexidade, torna-se inclusive difícil agrupar tan-tos componentes em um mesmo conceito. Por essa razão, Fernandes ressalta quatro convergências fundamentais que possibilitam essa união no interior do mesmo “setor”. Para ele, o “terceiro setor”: 1) faz contraponto às ações do governo; 2) faz contraponto às ações do mercado; 3) empresta um sentido maior aos elementos que o compõem ao recuperar o pensamento trinário, superando divisões dicotômicas; 4) projeta uma visão integradora da vida pública, ao presumir que ela não se limita ao âmbito do Estado e por isso não se restringe a atos de governo5. Essas quatro características estariam presentes nos mais diversos grupos do “terceiro setor”.

Nas teorias afi rmativas quanto à validade explicativa do conceito em questão, esse “setor” é apresentado como uma alternativa inovadora, num processo de consolidação da democracia e do desenvolvimento social. Por isso que Ruth Cardoso fala de um “espaço de participação e experimentação de novos modos de pensar e agir sobre a realidade social” que “enriquece e complexifi ca a dinâmica social”6. Daí o “ter-

5 Ibidem, p. 29-32.6 Ruth Cardoso, “Fortalecimento da sociedade civil”, cit., p. 8.

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ceiro setor” ser enaltecido como detentor de uma lógica diferenciada para o enfrentamento de desigualdades sociais e problemas ambientais crescentes, pois a burocracia estatal se mostraria inoperante e distante, e o mercado, em si, não teria interesse em tais demandas sociais.

O alerta de Jeremy Rifkin é esclarecedor dessa perspectiva. Sem meias-palavras, ele proclama aos quatro cantos “uma nova visão” e “uma nova missão para o século XXI”:

É necessário acabar com os paradigmas políticos e compreender que cada país tem três setores e não dois. Uma vez que se compreenda isso, abrir-se-á a possibilidade de um novo contrato social para esta civilização; trata-se de uma nova visão e de uma nova missão para o século XXI. O setor do mercado cria capitais e empregos de mercado, mas isso não é sufi ciente. O setor do governo cria capitais e empregos de governo, mas isso também não é sufi -ciente. Existe ainda a sociedade civil, que cria capital social e empregos.7

Apesar disso, a maioria dos autores reconhece que, de certa maneira, as práticas que confi guram o “terceiro setor” são antigas, a ponto de al-guns enfatizarem que tal “setor” é, na verdade, o primeiro historicamente. O aspecto “inovador” se referiria, no entanto, à sua consolidação como forma distinta e estruturada de intervenção social. Nesse sentido é que se pode fazer um balanço da emergência recente das práticas e concepções que abrangem o “terceiro setor” no Brasil e na América Latina.

Na década de 1940, o que atualmente se identifi ca como ONG era relacionado a organizações de cooperação internacional – formadas por igrejas, instituições de solidariedade etc. – que ajudavam outras entidades e movimentos sociais nos países pobres. A partir dos anos 1960 e 1970, tanto aqui como em grande parte da América Latina, as ONGs ganharam grande força, exprimindo modos alternativos de oposição política aos regimes ditatoriais. No fi nal da década de 1980, os processos de democratização foram acompanhados por políticas econômicas regressivas que afetaram diretamente grupos sociais com os quais as ONGs mantinham forte vínculo: os setores populares. Diante disso, tais organizações da sociedade civil passa-ram por processos de redefi nição: sua visão como instrumento de reivindicação política, de acordo com Andrés Thompson, “cede lugar à pressão pela profi ssionalização no provimento dos serviços sociais,

7 Jeremy Rifkin, “Identidade e natureza do terceiro setor”, em Evelyn Berg Ioschpe (org.), 3o setor: desenvolvimento social sustentável, cit., p. 20.

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aliviando, assim, o papel do Estado e a pressão sobre o mercado”8. A partir desse período, além do “não governamental”, seu caráter “sem fi ns lucrativos” tornou-se fundamental, dando vigor ao conceito de “terceiro setor”. Portanto, em alguma medida, a emergência desse conceito se vincula às transformações pelas quais passaram certos movimentos sociais.

No que se refere particularmente à relação com os governos, o “terceiro setor” conheceu uma infl exão de rumos: de oposição aos governos ditatoriais, enveredou pelo estabelecimento de parcerias com o propósito de complementar a implementação de políticas públicas. Quanto ao mercado, as parcerias sacramentadas tiveram e têm o intuito de ampliar o alcance do “terceiro setor”, utilizando-se do poder social e da efi ciência organizacional das empresas, que, por sua vez, começaram a buscar maior legitimidade e aceitação, valendo-se de uma relação mais harmônica com as comunidades em que estão inseridas. Enfi m, conforme as teorias que lhe dão suporte, o grande desafi o do “terceiro setor”, quando confrontado com as outras duas esferas, é reinventá-las no sentido de defender e realizar interesses comuns, criando uma nova cultura em oposição ao individualismo reinante9.

Nesse contexto, a RSE se apresenta como a estruturação da infl uên cia dos valores de solidariedade e cidadania na ação das empresas, sendo uma ampliação, para além da produção de bens e serviços, da gover-nança corporativa, eivada por determinadas modalidades de efi ciência e cálculo. Confi gura-se como um fenômeno recente, porém bastante revelador, já que expressa a grande complexidade e amplitude do que se denomina “terceiro setor”, que abarca, além dos diversos grupos citados, mais recentemente, as chamadas “empresas cidadãs”.

“Mundo da vida”, sociedade civil e “terceiro setor”Uma refl exão mais profunda sobre a noção de “terceiro setor”

exige que o conceito de sociedade civil nela implícito seja analisado de forma detalhada. Assim, na tentativa de identifi car os fundamentos dessa concepção de sociedade civil, será analisado aqui o conceito de “mundo da vida”, de Jürgen Habermas, e suas infl uências nas teorias sobre o “terceiro setor”.

8 Andrés A. Thompson, “Do compromisso à efi ciência? Os caminhos do terceiro setor na América Latina”, em Evelyn Berg Ioschpe (org.), 3o setor: desenvolvimento social sustentável, cit., p. 46.9 Ibidem, p. 47.

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A segmentação da realidade social, típica das teorias até aqui tra-balhadas, guarda, direta ou indiretamente, relação com a refl exão de Habermas. Esse fi lósofo distingue duas esferas da vida social: o “mundo sistêmico” e o “mundo da vida”. O primeiro, constituído pelo Estado e pelo mercado, está lastreado na razão instrumental e é marcado por relações heterônomas próprias do capitalismo. Em contrapartida, o “mundo da vida” é caracterizado por uma razão comunicativa que se opõe à reifi cação imposta pelo “sistema” (mercado e Estado). Sua razão funda-se na linguagem e tem como peculiaridade a busca do consenso entre os indivíduos por intermédio do diálogo. É a esfera da autonomia, que se acha em constante luta contra a colonização imposta pelo mundo sistêmico. Assim, para Habermas, a disputa política por ex-celência das sociedades contemporâneas é aquela que se dá nos pontos de encontro – e confl ito – entre o “sistema” e o “mundo da vida”.

É importante ressalvar que a análise de Habermas tem como inspira-ção em especial os países de capitalismo desenvolvido, especifi camente os europeus, no contexto da crise do Estado de bem-estar social [Welfare State] e do que ele aponta como “esgotamento das energias utópicas da sociedade do trabalho”10. Além disso, essa formulação de Habermas se insere numa perspectiva mais ampla de rearticulação do projeto da modernidade através da ênfase em potencialidades racionais pouco ou nada exploradas pelas sociedades capitalistas guiadas pela razão instrumental. Há de se dizer, ainda, que Habermas possui inestimável importância por ter recolocado a política como atividade humana que comporta a intervenção da vontade e de projetos em disputa.

Não obstante, é evidente a proximidade das formulações dos defenso-res do “terceiro setor” com alguns elementos que ancoram as concepções de Habermas. Ao analisar a situação dos países capitalistas desenvolvidos, Habermas11 frisa que a crise do Estado de bem-estar social não pode ser resolvida por um reforço da “domesticação social do capitalismo” pelo Estado nem pelo seu contrário, a liberalização completa por meio da trans-ferência dos problemas da administração para o mercado. A contenção e o controle precisam incidir sobre o mercado e sobre a administração pública. Para isso, a refl exão e o controle devem ser buscados em outro lugar: nas relações estabelecidas em esferas públicas autônomas auto-

10 Jürgen Habermas, “A nova intransparência: a crise do Estado do bem-estar social e o esgota-mento das energias utópicas”, Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 18, set. 1987, passim.11 Ibidem, p. 112.

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organizadas, que se baseiam na solidariedade e se estabelecem pela comunicação. O trecho a seguir é emblemático:

As sociedades modernas dispõem de três recursos que podem satisfazer suas necessidades no exercício do governo: o dinheiro, o poder e a soli-dariedade. As esferas de infl uência desses recursos teriam de ser postas em um novo equilíbrio. Eis o que quero dizer: o poder de integração social da solidariedade deveria resistir às “forças” dos outros dois recursos, dinheiro e poder administrativo. Pois bem, os domínios da vida especializados em transmitir valores tradicionais e conhecimentos culturais, em integrar gru-pos e em socializar crescimentos, sempre dependeram da solidariedade. Mas desta fonte também teria de brotar uma formação política da vontade que exercesse infl uência sobre a demarcação de fronteiras e o intercâmbio existente entre essas áreas da vida comunicativamente estruturadas, de um lado, e Estado e economia, de outro lado.12

Parece bastante claro que a perspectiva de Habermas de “mundo da vida” – indicando esferas públicas autônomas calcadas na solida-riedade e na comunicação –, por estar ligada a uma visão global de um projeto de modernidade, é mais ampla que a noção de “terceiro setor”. Porém, a proximidade existe e é explícita em algumas formula-ções de sociedade civil presentes nas teorias sobre o “terceiro setor”. Liszt Vieira é um dos adeptos do modelo tripartite que se apoia nas refl exões de Habermas ao indicar uma concepção de sociedade civil como o território social de defesa e afi rmação de princípios diferen-ciados em relação aos existentes na lógica dos mecanismos político-administrativos e do mercado.

Vieira sustenta que a sociedade civil faz parte do “mundo da vida” defi nido por Habermas13. No seu entender, “tem, assim, um âmbi-

12 Idem.13 Ao defi nir o “mundo da vida”, Jürgen Habermas não apresenta uma teorização sobre a con-cepção de sociedade civil, o que possibilita um leque ainda maior de divergências interpretativas entre os autores que tentam estabelecer tal relação. Maria da Glória Gohn, por exemplo, entende que o “mundo da vida” é parte da sociedade civil, e não o contrário: “O mundo da vida é dife-renciado dos sistemas econômico e estatal. Ele é um subsistema da sociedade civil, é parte dela e não sua totalidade, e engloba várias formas institucionais – permanentes ou não – que atuam como organismo de limitação e de mediação entre o Estado e o mercado”. Cf. Maria da Glória Gohn, Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos (2. ed., São Paulo, Loyola, 2000), p. 138. Para os propósitos desta análise, essa divergência entre tal autora e Liszt Vieira tem pouca importância e apenas reforça o argumento da proximidade entre a refl exão habermasiana e as teorias afi rmativas sobre o “terceiro setor”.

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to limitado, sendo parte da categoria mais ampla do ‘social’ ou do ‘mundo da vida’”14. Para o autor, constitui a “dimensão institucional” do “mundo da vida”, por ser composta por “instituições e formas associativas” de integração social comunicativamente reproduzidas. Com base no pensamento habermasiano, Vieira elabora uma noção de sociedade civil que “se refere a movimentos sociais e instituições, localizados tanto na esfera privada quanto na pública, com o objetivo de se contrapor às ações sistêmicas de mercado e de Estado”15, ga-rantindo espaços democráticos e autônomos de busca de consenso. Nessa perspectiva, as associações da sociedade civil, diferentemente dos “grupos de interesses”, desempenham o papel de formadoras da opinião pública e, por isso, são uma instância de crítica e controle do poder. Em outras palavras, tais organizações estão voltadas para a defesa do interesse público e da cidadania. Por isso, na análise de Vieira, mais do que um lócus social, a sociedade civil é o meio e o fi m da democracia política, concepção que se aproxima, conforme o próprio autor, da noção anglo-saxônica de “terceiro setor”16.

Essa esfera pública não estatal, que inclui movimentos sociais, ONGs, associações de cidadania e exclui sindicatos (“grupos de interesses” econômicos) e partidos políticos (“organizações pró-estatais”), se colo-ca, segundo essa visão, como a alternativa inovadora para reformar e democratizar o Estado e o mercado através da consolidação de sujeitos políticos autônomos, levantando “a bandeira da ética, da cidadania, da democracia e da busca de um novo padrão de desenvolvimento que não produza a exclusão social e a degradação ambiental”17.

Sociedade civil como espaço da luta de classesEssa perspectiva de sociedade civil como defensora do “bem co-

mum” não é por nós partilhada. Os motivos são basicamente dois: a sociedade civil não pode ser entendida como sujeito histórico porta-dor de valores de solidariedade e cidadania; afi nal, trata-se de uma esfera social e não de um agente autônomo. Além disso, a tentativa de transformá-la em unidade harmônica e homogênea, ao se recorrer a uma noção abstrata de “bem comum”, tem um caráter mistifi cador, por

14 Liszt Vieira, Cidadania e globalização (4. ed., Rio de Janeiro, Record, 2000), p. 46.15 Ibidem, p. 58-9.16 Ibidem, p. 63.17 Ibidem, p. 66.

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encobrir as contradições inerentes a uma sociedade de classes. Portanto, a refl exão presente neste artigo, ao situar as contradições de classe em primeiro plano, alimenta-se da noção de sociedade civil elaborada no campo do marxismo, especialmente nas obras de Antonio Gramsci.

Nas análises de Karl Marx e Friedrich Engels, a categoria sociedade civil é utilizada sempre se remetendo à esfera das relações de produ-ção, ou seja, ao domínio das relações econômicas, que estruturam a base material da sociedade. Nessa ótica, a sociedade civil subordina o Estado, tomado como elemento “superestrutural”, no sentido de defi nir e estabelecer sua organização e seus objetivos. Quanto a esse aspecto, a perspectiva desenvolvida por Gramsci traz inovações importantes, já que esse autor não mais associa a sociedade civil apenas ao âm-bito das relações de produção, levando em conta, em sua defi nição, aspectos ideológicos e culturais – a vida espiritual e intelectual –, ao lançar mão do conceito de hegemonia.

Martin Carnoy18 salienta que, se para Marx a sociedade civil se vincula à “estrutura”, para Gramsci ela integra a “superestrutura”19, reconfi guran-do uma noção ampliada de Estado20. Isso porque, com o conceito de hegemonia, Gramsci amplia e sofi stica os aspectos que Marx classifi ca como “superestruturais”. O fi lósofo italiano remete a dois “‘níveis’ su-perestruturais”: a sociedade civil, conjunto de organismos considerados privados, e a política, ou Estado no seu sentido estrito. A hegemonia signifi ca direção política, intelectual, cultural e moral da sociedade por parte das classes dominantes, no sentido de que sua visão de mundo é apresentada e aceita, mesmo que de forma tensa, como universal para todas as classes. Portanto, exprime a síntese entre consentimento (sociedade civil) e coerção (sociedade política).

18 Martin Carnoy, Estado e teoria política (9. ed., Campinas, Papirus, 2004).19 Os termos “estrutura” e “superestrutura” aparecem aqui entre aspas devido aos seus limites conceituais. Se por um lado eles possuem um valor didático, por outro, podem resultar em simplifi cações improcedentes que difi cultam a apreensão da dinâmica da totalidade social. Cf. E. P. Thompson, As peculiaridades dos ingleses e outros artigos (Campinas, Unicamp, 2001), p. 252-63.20 “Estamos sempre no terreno da identifi cação de Estado e governo, que precisamente é um representar-se da forma corporativo-econômica, isto é, da confusão entre as sociedades civil e política, já que se deve observar que na noção geral de Estado entram elementos que devem se referir à noção de sociedade civil (no sentido, podia se dizer, em que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é hegemonia couraçada de coerção)”. Ver Antonio Gramsci, Obras escolhidas (Lisboa, Estampa, 1974), p. 404.

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Como lembra Carlos Montaño, “a atividade da sociedade civil, na acepção marxiana, constitui o motor da história e, na interpretação gramsciana, condiciona os espaços e as formas de lutas de classes e a transformação social”21. Sob esse aspecto, é importante sublinhar que, se Gramsci superou a visão mais limitada de sociedade civil do marxismo tradicional, não negou, no entanto, de forma alguma sua vinculação íntima às relações de produção, estando, por isso, enrai-zada na estrutura de classes da sociedade capitalista, constitutiva da totalidade social. Apesar de ser a esfera de construção do consenso, entendido como aceitação de determinada visão de mundo, a socie-dade civil não é coesa, sendo perpassada por contradições e sujeita aos confl itos. Segundo Carnoy,

As instituições, que formam o aparelho hegemônico, somente têm sen-tido, na análise de Gramsci, quando estabelecidas no contexto da luta de classes e da classe dominante, que estende seu poder e controle à sociedade civil através dessas mesmas instituições.22

Para Gramsci, a sociedade civil é a sociedade das classes em confl i-to – latente ou manifesto –, e não uma esfera isolada da lógica e dos processos de reprodução do capital. Por isso, a análise gramsciana possui um profundo potencial crítico em relação às teorizações sobre o “terceiro setor”, já que a segmentação da sociedade em três setores, além de separar o domínio das relações econômicas e a sociedade civil, acaba por ocultar nesta o confl ito de classe, que passa a ser visto como embate de interesses econômicos particularistas. Esse é o papel mistifi cador do conceito de “terceiro setor”, que, a partir de uma representação de “bem comum”, tenta transformar a sociedade cindida em classes em um todo harmônico e integrado.

Assim, na teorização sobre o “terceiro setor”, ganha destaque a no-ção de um interesse que se diz mais amplo que o de classe. Não é por outro motivo que Liszt Vieira diferencia as organizações da sociedade civil daquilo que ele denomina “grupos de interesse”:

As associações da sociedade civil têm o papel de formadoras da opinião pública e constituidoras da opinião coletiva nos espaços situados fora do Estado e do mercado. Distinguem-se dos “grupos de interesse”, caracteri-

21 Carlos Montaño, Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social (2. ed., São Paulo, Cortez, 2003), p. 263.22 Martin Carnoy, Estado e teoria política, cit., p. 96.

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zados pela lógica dos interesses econômicos particularistas e pela defesa dos interesses privados específi cos, como, por exemplo, as organizações sindicais e empresariais.23

Para além da “neutralidade” perversa na equiparação feita entre organizações dos trabalhadores e dos empresários, embute-se, nessa análise, a visão segundo a qual os interesses da sociedade civil se situam acima do antagonismo estrutural entre capital e trabalho, ou melhor, os interesses da sociedade civil são supraclassistas e uni-versais. Estando acima dos “interesses econômicos particularistas”, os valores do “terceiro setor” são tidos e havidos também como mais legítimos e proeminentes em relação a qualquer demanda dos trabalhadores como classe.

Ao criticar a idealização de uma sociedade civil defensora do “bem comum”24, Montaño acentua que a sociedade civil é, fundamentalmen-te, um espaço de tensões e disputas. Daí falar de um processo de “lutas na sociedade civil”, diferentemente das teorias sobre o “terceiro setor”, das quais se subentende a ideia de “lutas da sociedade civil”:

Essas lutas são travadas por sujeitos, porém não entre a sociedade civil, o Estado, o mercado, mas por sujeitos individuais (homens e mulheres) e coletivos (grupos e organizações) em diversos espaços ou esferas da sociedade total, seja na sociedade civil, no Estado, na esfera produtiva, no espaço do consumo, na vida cotidiana.25

Nem mesmo a ideia de “sociedade civil organizada”26 ameniza os problemas de tomá-la como sujeito, porque os grupos organizados

23 Liszt Vieira, Cidadania e globalização, cit., p. 61.24 Em sua obra Terceiro setor e questão social, Montaño caracteriza essa noção de sociedade civil e o conceito de “terceiro setor” como “ideológicos”, numa clara demonstração de fi liação, neste ponto, à perspectiva do marxismo clássico, que entende ideologia como falsifi cação, como falsa consciência. A despeito de utilizar boa parte das refl exões de Montaño, não empregaremos o termo “ideológico” para caracterizar aspectos mistifi cadores das teorizações sobre o “terceiro setor”, pois, a partir da contribuição de Gramsci, ideologia pode ser entendida como visão de mundo e, dessa forma, até mesmo as concepções críticas são ideológicas, se encaradas num sentido amplo. 25 Carlos Montaño, Terceiro setor e questão social, cit., p. 277.26 “Não se trata mais de um sinônimo de sociedade, mas de uma maneira de pensá-la, de uma perspectiva ligada à noção de igualdade de direitos, autonomia, participação, enfi m, os direitos civis, políticos e sociais da cidadania. Em virtude disso, a sociedade civil tem que ser ‘organizada’.” Cf. Liszt Vieira, Cidadania e globalização, cit., p. 63.

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da sociedade civil, como destaca Montaño, não são apenas diversos como também antagônicos:

Na sociedade civil estão presentes organizações tanto dos trabalhadores, de “excluídos”, das chamadas “minorias”, dos defensores de direitos humanos, da mulher, da criança e do adolescente, do meio ambiente, mas também comparecem organizações representantes do capital (Sesc, Sesi, Fundação Bradesco) e ainda mais, organizações fascistoides (Tradição Família e Pro-priedade, grupos neonazistas, por exemplo), instituições fanático-religiosas (diversas seitas que pregam o “fi m do mundo”, entre outras) ou até funda-mentalistas. Isto é, pensar na sociedade civil como uno resulta num erro grosseiro de interpretação histórica.27

Por isso, Montaño chama a atenção para o fato de que as organizações da sociedade civil que pretendem ter um caráter transformador devem se articular com os movimentos sociais, e não substituí-los num processo de “terceirização” da questão social. Para tanto, precisam abandonar o pragmatismo e a lógica de “gestão controlada dos recursos comunitários” que caracterizou a maioria das ONGs desde a década de 1990, cujo resultado foi o abandono de projetos mais abrangentes de sociedade em função do atendimento de demandas pontuais e individualizadas, palatáveis – e funcionais – ao projeto neoliberal28. Afi nal,

O projeto neoliberal quer uma sociedade civil dócil, sem confronto, cuja co-tidianidade, alienada, reifi cada, seja a “preocupação” e “ocupação” (não a do trabalho e lutas sociais) em atividades não criadoras nem transformadoras, mas voltadas para as (auto-)respostas imediatas às necessidades localizadas.29

“Terceiro setor” e totalidade socialToda a crítica até aqui exposta tem como referência aspectos da to-

talidade social. Os fenômenos em questão são entendidos como “parte

27 Ibidem, p. 274-5.28 Os fundamentos do neoliberalismo podem ser encontrados em Friedrich August Von Hayek, O caminho da servidão (Rio de Janeiro, Instituto Liberal, 1990). Para um balanço e uma análise crítica do desenvolvimento da hegemonia neoliberal, ver Perry Anderson, “Balanço do neoliberalismo”, em Emir Sader e Pablo Gentili (orgs.), Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995), p. 9-38; Ricardo Antunes, A desertifi cação neoliberal no Brasil: Collor, FHC e Lula (Campinas, Autores Associados, 2004); Idem, Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afi rmação e a negação do trabalho (7. ed., São Paulo, Boitempo, 2003), entre outros.29 Carlos Montaño, Terceiro setor e questão social, cit., p. 260.

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movente e movida”, nos termos de Lukács30, de um contexto sócio-histórico amplo. Isso signifi ca que o “terceiro setor” e, especifi camente, a “responsabilidade social empresarial” não devem ser tratados tão-somente a partir de sua lógica interna ou de seus resultados imediatos. Impõe-se analisá-los no âmbito da sociedade capitalista, contraditória e cindida em classes, em tempos de “hegemonia neoliberal”31.

Como já foi assinalado, a categoria “mundo da vida”, desenvolvida por Habermas, mantém clara ligação com as teorias sobre o “terceiro setor” devido ao fato de distinguir uma terceira esfera na sociedade com uma lógica diferenciada em relação à do mercado e à do Es-tado. Mas há entre elas outro ponto de convergência implícito, não menos importante: o mundo sistêmico, das relações capitalistas, é considerado insuperável, restando unicamente a possibilidade de se buscar a emancipação em uma esfera pública constituída por práticas autônomas ou, na terminologia de Habermas, pelo agir comunicativo. Essa esfera autônoma então coexistiria – sempre se defendendo da colonização – com o mundo sistêmico, caracterizado pela heterono-mia, pelo trabalho estranhado e pela razão instrumental. Conforme aponta Vieira, “trata-se de limitação e regulamentação [do mercado e do Estado por parte da sociedade civil], e não de abolição”32.

No que se refere à sociabilidade cotidiana, essa perspectiva repre-senta a afi rmação da possibilidade de existência de relações livres e autônomas, apesar da permanência da heteronomia e do estranha-mento na esfera produtiva. Isso quer dizer que, fora do trabalho, os indivíduos encontrariam a oportunidade de envolver-se em atividades autênticas e realizadoras. O trabalho continua subordinado ao capital, porém não é mais visto como a categoria central da vida social.

No que respeita à processualidade histórica, um grande limite dessas teorizações sobre o “terceiro setor” consiste em se colocar a realidade concreta como restrição para a ação. Em outros termos, o mercado e o Estado são considerados como patamar dado, diante do qual não se coloca a possibilidade dessa causalidade ser modifi cada substantivamente. A cultura do possibilismo é a conclusão prática a que se chega desde tal diagnóstico implícito.

30 Georg Lukács, “As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem”, em Temas de ciências humanas (São Paulo, Ciências Humanas, 1978), v. 4, p. 1-18.31 Perry Anderson, “Balanço do neoliberalismo”, cit.32 Liszt Vieira, Cidadania e globalização, cit., p. 49.

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A perspectiva de atuar a partir das “margens” da ordem sistêmica, sem embates diretos, mais do que realismo, revela pragmatismo e mistifi cação. O aspecto problemático de se pensar uma esfera à parte em relação ao “sistema” é que a lógica do capital permite, de fato, a emergência de formas alternativas como o “agir comunicativo” ou uma “economia solidária”. Contudo, de modo algum, na vigência do capitalismo, essas formas de ação podem se consolidar, tornar-se autônomas e, muito menos, expandir-se, estando fadadas à extinção ou a permanecer às margens da sociedade.

Como se sabe, o sistema “sociometabólico do capital”33 não se restringe ao plano econômico e ao Estado, necessitando de um controle social amplifi cado que atinja o conjunto das esferas de so-ciabilidade. Como ressalta Lukács, a forma mercadoria se expande para a totalidade social34. É claro que essa noção não nega a exis-tência e a possibilidade de ressignifi cações, tensões e resistências, sejam elas cotidianas – “capilares” – ou estruturadas de forma mais sistemática; daí a utilização da concepção gramsciana dos aparelhos de hegemonia como espaços de embates. O que se quer mostrar é que é inconcebível uma esfera que não seja perpassada pelas con-tradições próprias do sistema capitalista35.

33 Ver István Mészáros, Para além do capital (São Paulo, Boitempo, 2002). A utilização da expressão “sistema sociometabólico do capital”, à maneira de Mészáros, tem nesse texto o intuito de se contrapor às noções, atualmente predominantes nas ciências humanas, que identifi cam sistema capitalista apenas como a esfera econômica (produção e circulação de mercadorias). Sistema capitalista não corresponde exclusivamente ao mercado, nem mesmo somente ao mercado e ao Estado; corresponde, na verdade, a uma totalidade social que inclui as diversas esferas de sociabilidade existentes.34 Esta afi rmação pode ser atribuída também ao próprio Marx, que já em seus Manuscritos econômico-fi losófi cos acentuava que, na sociedade capitalista, o estranhamento não se limita ao processo produtivo e aos produtos do trabalho, manifestando-se na totalidade – objetiva e subjetiva – do gênero humano. Ver Karl Marx, “O trabalho alienado”e “Manuscritos econômico-fi losófi cos de 1844”, em Florestan Fernandes (org.), Marx & Engels (3. ed., São Paulo, Ática, 1989 col. Grandes Cientistas Sociais, v. 36), p. 146-64.35 Várias teorizações apologéticas sobre o “terceiro setor” tocam na questão dos limites da autonomia. “Ser ‘não governamental’ e ‘não lucrativo’ não signifi ca, é claro, estar em algum outro mundo além das esferas de infl uência do Estado e do mercado, ou infenso aos condicionamentos sociais. O terceiro setor não é feito de matéria angelical.” Cf. Rubem César Fernandes, Privado, porém público, cit., p. 24. Apesar disso, tais ponderações são bastante insufi cientes, já que são articuladas, a todo momento, com a afi rmação de uma lógica completamente distinta: “no entanto, constituem uma esfera institucional distinta, cujas características próprias lhes são dadas justamente pela negação do lucro ou do poder

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Quando se examina mais a fundo a atividade prática das organizações do “terceiro setor”, é igualmente problemático falar em autonomia. Por mais que se considere uma esfera autônoma, com uma racionalidade específi ca, o “terceiro setor” é empurrado ao pragmatismo: na disputa por verbas – tanto estatais quanto do mercado –, as organizações têm que se enquadrar em determinados limites para conseguir sobreviver e desenvolver suas atividades, sempre dentro do horizonte imposto pelos fi nanciadores. Tal limitação parece não se verifi car no caso das organizações bancadas pelas “ONGs fi nanciadoras” internacionais. To-davia, essas retiram recursos de grandes transnacionais ou de governos de países ricos. A diferença, portanto, resume-se à existência de uma mediação a mais; o limite estrutural é o mesmo.

Questiona-se, portanto, a validade do próprio conceito de “terceiro setor”. Além disso, como já foi indicado, por meio da apreensão do contexto sócio-histórico pode-se analisar criticamente a ascensão de um padrão de intervenção social que elege o “terceiro setor” como seu grande expoente.

Montaño36 alude à ideia de um “tripé neoliberal” para identifi car o processo histórico em que a emergência do “terceiro setor” se enquadra. Esse tripé seria formado pelos seguintes processos: 1) a reestruturação produtiva, cuja consequência principal deságua na precarização das condições de trabalho; 2) a reforma do Estado, que Montaño identifi ca como contrarreforma, na medida em que se refere à desresponsabilização do Estado em relação à “questão social”; 3) a transformação da concepção de sociedade civil como arena de embates em um “terceiro setor” harmônico que assume a tarefa de responder à “questão social”, em grande medida abandonada pelo Estado, por obra e graça de ações focalizadas e pontuais.

No quadro da hegemonia neoliberal, em que o Estado reduz sua presença nas áreas sociais (infraestrutura, saúde, educação, segurança etc.), as organizações do “terceiro setor” têm uma funcionalidade no sentido de substituir, complementar ou concorrer com a ação gover-namental no que diz respeito ao enfrentamento das demandas sociais. Nada mais compreensível, se considerarmos que, como relembra Maria Célia Paoli, “empresários e governo empenham-se em descobrir modos

de Estado. [...] Exercitar e promover a adesão voluntária aos valores enquanto fi ns em si mesmos é a sua razão de ser específi ca”. Ibidem, p. 24-5.36 Carlos Montaño, Terceiro setor e questão social, cit., p. 267.

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legítimos de desconstruir as garantias sociais como direitos universali-zados (por seu alto custo), encolhendo seletivamente o acesso a elas e apelando para a ‘criatividade social’ dos atingidos”37.

Numa perspectiva diferente, Ruth Cardoso afi rma que a ascensão do “terceiro setor” não deve ser entendida como um processo de desresponsabilização do Estado. Para ela, o âmbito de atuação do Estado e o do “terceiro setor” estão demarcados e não coinci-dem. O Estado deve ser a esfera de garantia dos direitos básicos e universais.

O lugar das ações de governo, a meu ver, está claramente demarcado. Cabe ao governo garantir os direitos essenciais e universais dos cidadãos, os quais, por sua vez, podem e devem exigir que isso se faça de modo efi ciente e equitativo. No Brasil, o papel da sociedade civil foi bastante signifi cativo na defesa de direitos básicos de cidadania quando eles não estavam garantidos. Hoje é tarefa e responsabilidade dos ministérios governamentais assegurar o acesso à educação, à saúde, ao trabalho e à cultura a todos os cidadãos deste país.38

Porém, segundo Cardoso, apenas a garantia de direitos universais não é sufi ciente numa sociedade como a brasileira, por sua “herança profunda de desigualdade e marginalização”. Nesse sentido, o papel do “terceiro setor” consiste em desenvolver “ações diretas e pontuais” que combatam os desequilíbrios historicamente consolidados. Sua efi ciência nessa função se liga à busca e experimentação de solu-ções inovadoras, que confi guram uma nova maneira de agir na área social qualitativamente diferente em relação ao Estado, burocrático e centralizado. Na ótica de Cardoso, ações voltadas a grupos sociais específi cos – “mais frágeis e vulneráveis” – exigem “regras e modos de atuação que só se constroem através da ação e experimentação”39. O Estado, universal, mas ao mesmo tempo distante, não tem condições de atender essas demandas específi cas40.

37 Maria Célia Paoli, “Empresas e responsabilidade social: os enredamentos da cidadania no Brasil”, em Boaventura de Souza Santos (org.), Democratizar a democracia (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005), p. 390.38 Ruth Cardoso, “Fortalecimento da sociedade civil”, cit., p. 10.39 Ibidem, p. 11.40 Nesse sentido, o Estado deveria “aprender” com o “terceiro setor”, por meio do estabeleci-mento de parcerias. Esse foi, aliás, o argumento usado para defender o Programa Comunidade Solidária colocado em prática pela então primeira-dama Ruth Cardoso no governo FHC.

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Em que pese essa tentativa analítica de desvincular a ascensão do “terceiro setor” e a desresponsabilização do Estado, o processo histórico concreto aponta para outra direção. Não há dúvida de que as políticas públicas estatais são centralizadas e, em grande medida, inefi cientes, necessitando de transformações para que a maioria social, em sua multiplicidade, veja ampliados seus direitos políticos e sociais. Porém, o período de ascensão do “terceiro setor” não representa um momento signifi cativo de mudanças nessa direção. Nas últimas décadas, os di-reitos universais estão sendo atacados e ameaçados, tanto nos países centrais do capitalismo quanto em áreas periféricas nas quais algumas garantias foram conquistadas muitas vezes de forma bastante incipiente e frágil41. Enquanto isso, têm sido ampliadas políticas estatais de natureza focalizada, muito diferentes da noção de direito. É nesse processo que o “terceiro setor” se consolida, fi nanciado, em larga escala, por verbas públicas, que se tornam cada vez mais escassas para problemas estru-turais vinculados aos direitos básicos da população.

Como ressalva Montaño42, trata-se da transformação de direitos estabelecidos em “não direitos do cidadão”, dependentes da ativida-de voluntária e fortuita de indivíduos solidários isolados, ONGs ou “empresas cidadãs”43. Em outros termos, o processo em questão é de ascensão de uma concepção restritiva e excludente de cidadania, baseada em “autorrespostas” focalizadas, que refl ete, de acordo com Paoli44, uma estratégia de despolitização da “questão social”, altamente funcional ao projeto neoliberal de reorganização social, tendendo a ser uma espécie de nova volta no parafuso do controle e da dominação de classe na sociedade capitalista.

41 Enquanto Ruth Cardoso discursava sobre a necessidade do aprendizado com o “terceiro setor”, Bresser Pereira, ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (1995–1998), defendia e implementava medidas de uma reforma estatal altamente regressiva, em nome da ideia de “público não estatal”.42 Carlos Montaño, Terceiro setor e questão social, cit., p. 239.43 É nesse sentido que Maria Célia Paoli frisa que os “excluídos”, que antes tenderiam a se organizar em movimentos sociais para defender direitos, agora dependem das políticas localizadas. “Agora sujeitos a serem natureza descartável pelo próprio desmonte do setor público e pelo menosprezo à universalidade dos direitos de cidadania, sujeitos a todas as formas de violência, separados e hierarquizados pelas barreiras da passagem do privado ao público, resta-lhes a esperança de serem capturados pelas políticas compensatórias e localizadas da fi lantropia social organizada no âmbito dos grupos da sociedade civil.” Cf. Maria Célia Paoli, “Empresas e responsabilidade social”, cit., p. 389.44 Ibidem, p. 409.

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