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 FEVEREIRO – MAIO 2015  I 21 Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política 40 revista.sep.org.br

As cooperativas de produção na estratégia para a superação da alienação do trabalho

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O artigo analisa as possibilidades e limites de superação daalienação do trabalho presentes na expansão das cooperativasde produção no seio do modo de produção capitalista. Primeiramente,examina a categoria de alienação presente nas elaborações dojovem Marx, atualizando-a com relação ao conceito do valor-trabalho,introduzido em suas obras posteriores. Em seguida, estabelece umacompreensão sobre o que se pode entender por trabalho emancipado,oposto à alienação. Por fim, identifica os pontos nos quais o cooperativismocolabora para esse processo de emancipação e as limitações quepode possuir caso seja adotado como estratégia isolada para a superaçãodo capitalismo.

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  • FEVEREIRO MAIO 2015

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    FEVEREIRO MAIO 2015

    Revista da Sociedade Brasileira de Economia Poltica

    40Sumrio da Edio 40

    As cooperativas de produo na estratgia para a superao da alienao do trabalhoRodrigo Straessli Pinto Franklin e Pollyanna Paganoto Moura

    A disciplina do trabalho nas empresas recuperadas autogestionadas na ArgentinaRenake B. David das Neves

    Marx nas fronteiras do mercado mundial: Polmicas e notas metodolgicasFlvio Ferreira de Miranda

    Da natureza das relaes de produo dimenso cultural da ao poltica: Problemticas e caminhos tericos acerca dos conitos ruraisAnglica Massuquetti

    Teoria da explorao e da superexplorao da fora de trabalho em O Capital (Livro I) de MarxCarlos Alves do Nascimento, Fernando Frota Dillenburg e Fbio Maia Sobral

    Reconsiderando a crtica de Gesell sobre a teoria do capital de MarxTsuyoshi Yuki

    Tempo, Trabalho e dominao social: Uma reinterpretao da teoria crtica de Marx Moishe PostoneHenrique Pereira Braga (Resenha)

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    Sumrio da Edio 40

    As cooperativas de produo na estratgia para a superao da alienao do trabalhoRodrigo Straessli Pinto Franklin e Pollyanna Paganoto Moura

    A disciplina do trabalho nas empresas recuperadas autogestionadas na ArgentinaRenake B. David das Neves

    Marx nas fronteiras do mercado mundial: Polmicas e notas metodolgicasFlvio Ferreira de Miranda

    Da natureza das relaes de produo dimenso cultural da ao poltica: Problemticas e caminhos tericos acerca dos conitos ruraisAnglica Massuquetti

    Teoria da explorao e da superexplorao da fora de trabalho em O Capital (Livro I) de MarxCarlos Alves do Nascimento, Fernando Frota Dillenburg e Fbio Maia Sobral

    Reconsiderando a crtica de Gesell sobre a teoria do capital de MarxTsuyoshi Yuki

    Tempo, Trabalho e dominao social: Uma reinterpretao da teoria crtica de Marx Moishe PostoneHenrique Pereira Braga (Resenha)

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  • AS COOPERATIVAS DE PRODuO NA ESTRATGIA PARA A SuPERAO DA ALIENAO DO TRABALHO

    RODRIGO STRAESSLI PINTO FRANkLINPOLLYANNA PAGANOTO MOURA

    Recebido em 29 de julho de 2014

    Aprovado em 24 de outubro de 2014

  • resumo

    O artigo analisa as possibilidades e limites de superao da alienao do trabalho presentes na expanso das cooperativas de produo no seio do modo de produo capitalista. Primei-ramente, examina a categoria de alienao presente nas elaboraes do jovem Marx, atualizando-a com relao ao conceito do valor-trabalho, introduzido em suas obras posteriores. Em seguida, estabelece uma compreenso sobre o que se pode entender por trabalho emancipado, oposto alienao. Por fim, identifica os pontos nos quais o cooperati-vismo colabora para esse processo de emancipao e as limitaes que pode possuir caso seja adotado como estratgia isolada para a superao do capitalismo.

    Palavras-chave: alienao do trabalho; cooperativismo; luta de classes.

    Classificao JEL: B51, J54, P13.

    abstractThe article analyzes the possibilities and limits of overcoming alienation of labor existing in the expansion of production cooperatives within the capitalist mode of production. First, it examines the category of aliena-tion present in the elaborations of the young Marx, updating it with res-pect to the concept of labor value, introduced in his later works. Then, it establishes an understanding about the emancipated labor, in contrast

    AS COOPERATIVAS DE PRODuO NA ESTRATGIA PARA A SuPERAO DA ALIENAO DO TRABALHO

    rodriGo straessli Pinto FranklinDoutorando e Mestre em Economia do Desenvolvimento pelo Programa de Ps-Gradua-o em Economia da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul PPGE/UFRGS. Bolsista do CNPq Brasil.

    Pollyanna PaGanoto moUraMestranda em Teoria Econmica do Programa de Ps-Graduao em Economia da Universidade Federal do Esprito Santo PPGEco/UFES. Bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Esprito Santo - FAPES.

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    to alienation. Finally, it identifies the points at which the cooperativism contributes to this process of emancipation and the limitations that it may contain in case of being adopted as an isolated strategy to overcome capitalism.

    Keywords: alienation of labor; cooperatives; class struggle.

    introduoO conflito de classes o motor do desenvol-vimento histrico da sociedade humana, que segue um percurso dialtico de sintetizao entre diversas teses e suas antteses. As condi-es materiais do perodo histrico precedente so as bases em que se daro as transformaes histricas atuais, que por sua vez determinaro as condies materiais das fases vindouras.

    dessa forma que o capitalismo surgiu como uma sntese de um momento histrico anterior. Revolues burguesas, acumulao primitiva de capital, migrao de camponeses para as cidades, revoluo industrial, enfim, todos esses processos, criados e/ou direcionados pelos cho-ques de interesses, desembocaram em um novo modelo de acumulao que, ao mesmo tempo em que desnudou as relaes de explorao, ao retirar destas as institucionalidades polticas e religiosas que lhe davam forma, as dissimulou

    por meio de relaes monetrias, alienando as relaes sociais ao transform-las em meras relaes materiais entre mercadorias.

    E, assim, o prprio capitalismo deu incio ao movimento que geraria sua anttese. A classe trabalhadora, ao ser pressionada pela explorao desumana do capitalismo uma explorao, ao mesmo tempo, aberta e dissimulada , insur-giu contra seus opressores, em uma tentativa de alcanar uma sociedade cuja base fosse o trabalho livre e emancipado. Com isso nasceu o novo conflito, ou melhor, a nova forma como se expressa o antigo conflito entre classes antag-nicas, que definir a prxima sntese da socieda-de humana.

    Muitas ideias, curiosamente a maioria prove-niente de tericos burgueses, surgiram com o in-tuito de explicar o que seria e como se daria essa sociedade utpica. Neste contexto, surgiram os autores que mais tarde foram denominados de socialistas utpicos. Estes tinham como objeti-vo a implantao, com o apoio e a iniciativa da burguesia, de uma sociedade justa e igualitria, atravs da criao de ncleos de produo geri-dos pelos prprios trabalhadores, que seriam os proprietrios dos meios de produo. A evoluo das ideias destes autores resultou no surgimento do cooperativismo, um movimento baseado na

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    associao livre de trabalhadores, com o intuito de, alm de garantir a sobrevivncia dos associa-dos, buscar formas alternativas ao capitalismo desumano de promover a produo, circulao e distribuio de mercadorias. As cooperativas, como so denominadas essas associaes auto-gestionrias de trabalhadores, consolidaram-se em uma contundente insero anticapitalista dentro do prprio capitalismo, baseadas em uma srie de princpios contrrios lgica de acumu-lao do capital.

    No decorrer do desenvolvimento do capitalismo, o movimento cooperativista ganhou foras espe-cialmente em momentos de prolongada depres-so econmica, quando as rdeas da explorao esto sempre mais apertadas. Com a adeso de novas pessoas e novas ideias, o cooperativismo acabou incorporando outros objetivos, como a luta contra o desemprego e por melhores con-dies de trabalho, e deixou de representar, em certa medida, um foco de transformao revolu-cionria da sociedade.

    De fato, cada vez que mais pessoas abraam esse ideal, ele se modifica, agregando caractersticas de diferentes ideologias. Isso, inclusive, uma resposta do prprio capitalismo, que tenta assi-milar o cooperativismo, na tentativa de transfor-m-lo em sua prpria anttese.

    Ao mesmo tempo em que comearam a desenvol-ver essas instituies que contradizem a lgica do capitalismo tomando por base a luta dos tra-

    balhadores, comeou tambm o esforo por parte dos burgueses, ou dos setores sociais identifica-dos com o capitalismo, de esvaziar essas institui-es de seu contedo anticapitalista, e inclusive de integr-las lgica do capital. (Borges Neto, 2003, p. 104)

    Atualmente, o debate em torno da capacida-de dos empreendimentos autogestionrios de superarem a sociedade capitalista, levando a uma forma de organizao da produo baseada no trabalho livre e emancipado, sem antes se degenerarem, resume-se a discusses sobre a via-bilidade da autogesto em empreendimentos de grande porte, e sobre formas de impedir o surgi-mento de cooperativas fraudulentas, que visam apenas a reduo de encargos trabalhistas propi-ciada pela natureza das relaes de trabalho das cooperativas, ou seja, resumem-se a adequar o cooperativismo lgica capitalista. Entretanto, se o objetivo do cooperativismo desenvolver a anttese de um sistema pautado na alienao das relaes sociais de produo, falta ainda discutir se elas permitem que o trabalho humano seja realizado em sua plenitude, ou seja, expressando a relao social que em si, atravs da autoges-to e da cooperao entre os indivduos; e ainda, se essa capacidade emancipadora sobreviveria ao processo de sntese com o capitalismo. neste ponto que este trabalho se insere.

    O presente artigo est estruturado em duas sesses. A primeira sesso tratar dos concei-tos de alienao e emancipao do trabalho, e

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    identificar as pr-condies para a realizao do trabalho emancipado de acordo com a teoria marxista. Na segunda sesso faremos uma breve anlise sobre as possibilidades de emancipa-o do trabalho a partir das cooperativas de produo.1

    1. a teoria da alienao em marx A alienao do trabalho humano est na essn-cia do modo capitalista de produo e acumu-lao. Entretanto, no isso que aparenta o sistema baseado na exacerbao da liberdade individual. De fato, muitos pensadores se propu-seram a desvendar o funcionamento das insti-tuies capitalistas, e tantos outros o fenmeno da alienao do ser humano em sua pluridimen-sionalidade, mas sem estabelecerem qualquer relao direta entre os dois temas.

    Karl Marx foi o primeiro a estabelecer esta ligao terica entre os filsofos e os economis-tas polticos. Ele mostrou que era uma tarefa necessria tanto para a economia compreender o processo de alienao do trabalho, quanto para a filosofia desvendar os mistrios das relaes so-ciais de produo. Contudo, o conceito marxista de alienao , at hoje, alvo de grande divergn-cia entre os marxistas. Este debate divide-se em duas questes principais: quanto ao significado do conceito, e quanto ao seu papel na teoria marxista.

    A primeira dessas questes tem por base o fato de que, durante toda a sua vida, Karl Marx pro-duziu diversas obras em que utilizava o termo alienao do trabalho, mas nem sempre com um mesmo contedo. Alm disso, suas razes hegelianas, as influncias que sofreu de Feuerba-ch e a posterior ruptura com estes dois tericos contriburam para a complexidade da questo: teria Marx desenvolvido um conceito em opo-sio a Hegel, ou buscado a superao da teoria hegeliana no melhor dos termos do Aufhebung2 alemo? Ser que, para Marx, os diversos signifi-cados do conceito de alienao estiveram sempre conectados, ou teria ele atribudo diferentes significados ao termo medida que mudava sua concepo?

    A segunda polmica que envolve a alienao do trabalho quanto ao papel reservado, por Marx, para este conceito. Alguns autores acreditam que a alienao do trabalho est por trs de todo sistema econmico-filosfico de Marx, enquan-to outros argumentam vigorosamente que no passa de um fruto de devaneios de um jovem Marx idealista, que foi superado pelo autor em sua maturidade.

    Como fica claro, ambas as questes concentram suas principais divergncias na discusso sobre uma possvel ruptura na evoluo do pensa-mento de Karl Marx, que colocaria de um lado um jovem Marx com seu af pela filosofia, e de outro um Marx maduro, com suas preocupaes

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    voltadas para os fatos concretos da economia poltica. Faremos, ento, uma breve sumarizao deste debate.

    Optamos por apresentar primeiro a perspectiva daqueles que creem na dicotomia jovem Marx e velho Marx, dentre os quais podemos citar Louis Althusser e Jacob Gorender. Esses autores acreditam que o desenvolvimento do pensa-mento de Marx, expresso na transformao dos objetivos de suas obras, representa o processo de construo da prpria concepo do materialis-mo histrico. Por esse motivo, Althusser rotula as obras que Marx produz em sua juventude, dentre as quais ressalta A questo judaica e Os manuscritos econmico-filosficos de 1844, tam-bm conhecidos como Manuscritos de Paris, de filosofia ideolgica com aspiraes idealistas. (Althusser, 1980)

    Os autores que defendem essa perspectiva argumentam que medida que Marx passava a aceitar a teoria do valor-trabalho, ele teria soterrado a centralidade do conceito de aliena-o, substituindo-o pelo de fetichismo. Gorender (1982), na introduo que escreve para a traduo de Para a crtica da economia poltica, apresenta a trajetria dessa transformao, que sumariza-mos a seguir.

    Antes de iniciar suas incurses pelo campo da economia poltica, Marx fora fortemente in-fluenciado pelas elaboraes de Engels que, no incio de 1844, publicou o Esboo de uma crtica

    da economia poltica. Em tal obra, que possuiu profundas influncias da filosofia de Feuerbach,3 o autor desenvolveu uma srie de conceitos que seriam incorporados s ideias do jovem Marx, dentre os quais o repdio teoria do valor-traba-lho. (Gorender, 1982, p. VIII)

    Foi tambm em 1844 que Marx elaborou seus primeiros esboos sobre sua teoria de economia poltica. Gorender ressalta que, nos Manuscritos econmico-filosficos de 1844, o valor-trabalho considerado por Marx inadequado para servir de base a uma cincia da Economia Poltica. Em seu lugar, o princpio explicativo original o da dominao da propriedade privada, a partir do qual se enfoca a subjugao do proletariado como um processo de alienao. (Gorender, 1982, p. VIII)

    Nos Manuscritos, Marx no s inseriu o conceito de alienao do trabalho dentro da economia poltica, como o fez em posio central. O autor o considerou como o elemento chave que falta-va aos economistas de sua poca para a devida compreenso dos fenmenos econmicos, e como elemento central para o entendimento dos fen-menos da alienao estudados pelos filsofos.

    No campo filosfico, a importncia dos Manuscritos se deveu, sobretudo, ruptura que representou entre Marx e o idealismo hegeliano. Neles, Marx inverteu a dialtica de Hegel e ampliou e recomps o conceito de alienao tal como este o concebia. Apesar disso, Marx

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    teria se aproximado do materialismo na forma de um humanismo naturalista de influncia feuerbachiana.

    Esse humanismo, no entanto, logo cairia por terra. Na obra A ideologia alem, escrita em 1846 e com coautoria de Engels, Marx teria formu-lado uma autocrtica de seus trabalhos anterio-res na forma de uma crtica a Feuerbach. Essa crtica foi feita a fim de desqualificar todos os jovens hegelianos de seu perodo e o materialis-mo contemplativo que os regia. Livre de Hegel, Marx comeou a traar as bases para o seu materialismo histrico, buscando na realidade concreta, ou seja, na realidade material das rela-es sociais, a base para seu pensamento.

    O prximo passo teria sido dado com a publica-o da obra Misria da filosofia, publicada como crtica obra Sistema das contradies econmicas ou filosofia da misria, de Pierre-Joseph Prou-dhon. Em sua crtica, Karl Marx incorporou a teoria do valor-trabalho nos termos concebidos por David Ricardo, que a determinao do valor pelo tempo do trabalho. A teoria do valor--trabalho foi reconhecida como fundamento da economia poltica enquanto cincia, e o termo alienao, conforme ressalta Gorender (1982, p. IX), nem foi citado.

    Posteriormente, em O capital, Marx teria, ento, elaborado um sistema livre do conceito de alienao, que s apareceria despido de co-notaes especulativas e em raras passagens

    e, sobretudo, representado por sua verso concretizada: o fetichismo. (Gorender, 1982, p. XXVI) As relaes sociais de produo e suas mistificaes dominaram a anlise marxista. A mais-valia, que passou a explicar os mecanis-mos de explorao do capital, fez o papel que pertencia propriedade privada nos pensamen-tos do jovem Marx.

    Diante desta argumentao, a ruptura esta-va completa. Um era o Marx filosfico dos Manuscritos, o outro era o Marx economista poltico dO capital. Alienao versus valor-tra-balho. Propriedade privada versus mais-valia. Filosofia versus economia poltica. Jovem Marx versus velho Marx.

    Passamos agora a analisar o posicionamento daqueles que no concordam com essa ruptura entre jovem e velho Marx, e que acreditam em um desenvolvimento orgnico e coerente de suas obras e ideias, dentre os quais poderamos destacar Gyrgy Lukcs, Leandro Konder e Istvn Mszros. Longe de no reconhecerem uma evoluo do pensamento de Marx, estes autores rejeitam a idia dramatizada de uma inverso radical de sua posio depois dos Ma-nuscritos de 1844. (Mszros, 1981, p. 210)

    As elaboraes tericas do jovem Marx fo-ram nada mais do que seu ponto de partida. O prprio Marx deixou claro que as escreveu sem uma concluso prvia em mente. Sendo obras incompletas, no sentido de no apresentarem

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    um sistema econmico-filosfico concludo, no devem ser analisadas separadamente. Deve-se buscar o entendimento de seus primeiros ma-nuscritos dentro da totalidade da obra de Marx.

    Antes de entrar para o campo da economia poltica, Marx era um filsofo, e era com os problemas da filosofia que se preocupava. Na tentativa de romper com Hegel, nos Manuscritos de 1844, Marx descobriu a chave para a devida compreenso de todas as formas de alienao: a alienao do trabalho. Dessa forma, o interesse de Marx pela economia poltica provm de tal identificao. Portanto, afirma Mszros:

    no verdade que, quando Marx passou a interessar-se pelos problemas da economia polti-ca, ele voltou as costas ao conceito da alienao: ocorreu exatamente o contrrio. To logo ele compreendeu que a alienao econmica era o elo comum de todas as formas de alienao e desumanizao, foi-lhe impossvel no adotar o conceito, com base nesse denominador comum estrutural, como o centro de referncia de toda a sua concepo. (ibidem, p. 211)

    Marx no teria abandonado o conceito de aliena-o, nem quando identificou, mais tarde, a vali-dade da teoria do valor-trabalho. Na obra Marx: a teoria da alienao, Istvn Mszros levantou uma srie de trechos de diversas obras ps--manuscritos de Marx em que o termo alienao no s se fazia presente (na forma predicativa da palavra alem Entfremdung), como tambm apresentava grande relevncia na argumentao

    marxista. (ibidem, pp. 201-205) Destaco esta citao dO capital: [] O capital cada vez mais se patenteia fora social []; mas, patenteia-se fora social alienada, autnoma, que enfrenta a sociedade como coisa e como poder do capitalis-ta por meio dessa coisa. (Marx, 1983, p. 303)

    O fenmeno da alienao do trabalho est intensamente presente nO capital, inclusive na forma do fetichismo, que consiste em atribuir um significado maior do que o objeto realmen-te possui, e sem ter motivos aparentes para tal atribuio, vincula-se a explicaes msticas e sobrenaturais. Quando Marx afirma, por exemplo, que a mercadoria um fetiche, ele lhe atribui um misticismo que no lhe pertence, um misticismo que parece ser derivado da prpria natureza da mercadoria, mas que, na realidade, derivado direto da mente humana, ou para ser mais especfico, de uma forma de organizao social. Logo, o fetichismo, um aspecto da alie-nao, no passa da autonomizao de alguma caracterstica do indivduo alienado.

    Levando em considerao o que foi exposto, nos parece apropriado analisar a alienao do traba-lho como elemento central do sistema marxista. Todavia, no vemos motivo para crer que este conceito, tal como foi desenvolvido nos Manus-critos de Paris, tenha permanecido intacto du-rante toda a evoluo do pensamento de Marx.

    A anlise que Marx elaborou nos Manuscritos de

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    1844, por mais que tenha se aprofundado para alm do que os economistas polticos de sua poca, trata dos fenmenos sociais em um nvel tanto quanto superficial da realidade. medida que Marx alcanava uma elaborao mais prxi-ma da essncia dos fenmenos sociais, surgiam novos conceitos que implicavam uma modifica-o de seus escritos anteriores.

    Esta evoluo dialtica do pensamento de Marx no pode ser negada. Afinal, como podem os Manuscritos de 1844 serem completamente com-patveis com, por exemplo, a teoria do valor-tra-balho, sendo que, naquele, esta no era aceita? O fato de Marx ter lanado nos Manuscritos a base para toda a sua teoria no elimina a evoluo de seu pensamento.

    Partindo de tais concepes, apontamos para uma necessidade de atualizao do conceito de alienao do trabalho da forma como foi apre-sentado nos Manuscritos para o modo que foi utilizado nO capital.

    1.1. Alienao do trabalho revisitada

    A alienao , em suma, um processo de estra-nhamento e de escravizao.4 Neste processo, o ser humano objetiva parte de si e passa a v-la como um objeto autnomo, com vontades pr-prias. Assim, o homem perde o controle de algo que faz parte dele, e passa a ser controlado por esse algo, agora estranho a ele.

    O que, a princpio, passaria por um mero

    problema de conscincia, por se tratar da forma como o homem se relaciona com parte de si mesmo, deve ser compreendido como um pro-blema de fundamento econmico, j que so as condies materiais de vida, frutos da produo material, que determinam a conscincia huma-na. Lanamos mo da argumentao de Laymert dos Santos para explicar esta relao:

    Ocorre que os homens pensam e, como seres pensantes, representam para si mesmos e para os outros o que fazem. Essas representaes, esse pensamento, so uma emanao direta de como se comportam. Ento os homens produzem e pensam, produzem materialmente e produzem representaes, ideias, sobre a sua produo ma-terial. Representaes e ideias que tambm so condicionadas pelas mesmas condies materiais de produo. Essas representaes, essas ideias, formam a conscincia; uma conscincia que determinada pela produo, que vem se sobrepor a ela []. (Santos, 1982, p. 47)

    Uma vez que a conscincia derivada direta da realidade material, exatamente no momento em que ela se desprende dessa realidade que a alienao se torna potencial, o que ocorre com o surgimento da diviso social do trabalho. Isso significa dizer que com a diviso social do tra-balho, a conscincia do homem deixa de se rela-cionar diretamente com aquilo que a originou.

    Vejamos: enquanto a produtividade da socieda-de humana se encontra em tal nvel que uma pessoa no seja capaz de produzir alm do suficiente para a prpria subsistncia, todos os

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    indivduos precisam inevitavelmente se envolver no processo de produo material da sociedade, de modo que qualquer forma de conscincia por eles desenvolvida esteja ligada necessariamente com o processo de produo material da qual se origina.

    O aumento de produtividade, proporcionado seja pelo desenvolvimento social e tecnolgi-co, ou por uma primitiva diviso natural do trabalho, permite que alguns indivduos se desvinculem da produo material, garantindo a sua subsistncia a partir de alguma forma de apropriao da produo alheia.5 A diviso social do trabalho consolida-se no instante em que um grupo de trabalhadores, desvinculado da produo material, passa a se dedicar a uma produo puramente intelectual. Essa separao entre trabalho prtico e terico permite que o pensamento intelectual se torne autnomo, sem ligao necessria com a realidade material. Como afirmam Marx e Engels:

    A partir desse momento, a conscincia pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da conscincia da prxis existente, representar algo realmente sem representar algo real a partir de ento, a conscincia est em condies de emancipar-se do mundo e lanar-se construo da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. puras. (Marx & Engels, 2007, p. 35)

    Essa separao entre conscincia e realidade, entre teoria e prtica, marca o surgimento da alienao. Vale ressaltar que a diviso social

    do trabalho encerra o germe da alienao, mas no implica esta como consequncia necessria. Na realidade, a alienao determinada pelas condies materiais de produo, que, adequada a um modelo de diviso do trabalho, permite a separao entre conscincia e produo material. Dentro desta perspectiva, para superar a alie-nao seria necessrio restabelecer esta relao entre conscincia e produo material, pois s assim o indivduo poderia pensar em teologia, filosofia, moral etc. em acordo com as suas con-dies materiais, ou seja, em acordo com a sua prpria realidade.

    No capitalismo, as condies materiais de produo permitem a separao da sociedade em trabalhadores (expropriados dos meios de produo) e capitalistas (proprietrios destes meios de produo). Uma vez afastados dos meios de produo, os trabalhadores so impeli-dos ao mercado de trabalho, onde garantiro seu sustento.

    A fim de que a classe trabalhadora mantenha-se sempre dentro do processo produtivo, necess-rio que ela esteja sempre em busca de garantir seu sustento, o que significa que ela deve ser re-munerada no limite do mnimo necessrio para adquirir seus meios de subsistncia no mercado. Mas, enquanto os trabalhadores no se encon-trarem livres de suas necessidades materiais, eles no sero capazes de participar da produo intelectual, de forma que no sero capazes de

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    resolver a alienao de que sofrem perante o prprio trabalho (comungando conscincia com produo material), e nem de superar, portanto, as demais formas de alienao das quais so vtimas (poltica, religiosa etc.).

    Da mesma forma, o capitalista, no-produtor, por mais que esteja livre para realizar plenamen-te suas capacidades intelectuais, enquanto tais capacidades permanecerem separadas do proces-so de produo material, no ser ele capaz de pensar de acordo com a sua realidade material, e da mesma forma permanecer alienado em todos os sentidos.

    Por esse motivo, a alienao do trabalho, a sepa-rao entre conscincia e prtica, determinada pelas condies materiais de produo do per-odo atual, o conceito-chave para a resoluo de todas as outras formas de alienao dentro do pensamento marxista.6 Nos Manuscritos econmico-filosficos, Marx desenvolve os quatro aspectos que a alienao do trabalho apresenta no capitalismo: alienao da natureza; alienao do indivduo; alienao da condio humana; e alienao das relaes sociais.

    Como dito anteriormente, no acreditamos que a adoo do valor-trabalho tenha invalida-do qualquer um destes aspectos, mas isso no significa que eles tenham sobrevivido inclumes do aprofundamento do pensamento marxiano. Faremos uma atualizao dos aspectos apre-sentados nos Manuscritos de Paris a partir de

    elementos presentes nO capital.

    Antes, porm, sugerimos uma inverso da or-dem de exposio apresentada por Marx, visto que agora partimos de uma concepo terica diferente. Em suas digresses sobre a alienao do trabalho nos Manuscritos, Marx comeou com o seguinte pargrafo:

    O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais sua produo aumenta em poder e extenso. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior nmero de bens produz. Com a valorizao do mundo das coisas aumenta em proporo direta a desvalorizao do mundo dos homens. O trabalho no produz apenas mercado-rias; produz-se tambm a si mesmo e ao traba-lhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporo com que produz bens. (Marx, 1989, p. 159 [grifos nossos])

    Com o foco na propriedade privada, Marx vai desenvolver a categoria de alienao a partir da expropriao do produto do trabalho humano. Todavia, acreditamos que, se tivesse elaborado tal anlise nO Capital, ele t-la-ia concebido a partir da transformao do trabalhador em mer-cadoria, ou seja, a partir da alienao mercantil da fora de trabalho.

    1.1.1. Alienao do indivduo

    Esse processo de transformao do trabalha-dor em mercadoria s possvel devido a duas premissas: primeiro, o trabalhador tem que

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    ser proprietrio livre de sua fora de trabalho; segundo, o trabalhador no pode ser capaz de satisfazer as suas prprias necessidades atravs do seu prprio trabalho, ou da venda do produ-to do seu trabalho. (Marx, 1985a, pp. 187-188) A segunda premissa garantida com a separao entre os trabalhadores e a propriedade dos meios de produo, enquanto a primeira garantida pelas instituies liberais do capitalismo. as-sim que a condio material da classe trabalha-dora a impele a vender sua nica posse: a fora de trabalho.

    Dessa maneira, o trabalhador reduzido a uma mera mercadoria,7 uma objetivao autnoma de si mesmo, um ser sem identidade, igual a todos os outros. Essa a forma como o capitalista, proprietrio dos meios de produo que compra sua fora de trabalho, o v. Quando realizam tal transao, o trabalhador dispe de seus ms-culos e crebro para que o capitalista os use da forma como entender por um determinado perodo de tempo.

    Durante esse tempo, o trabalhador deixa de per-tencer a si mesmo e passa a pertencer ao capita-lista. O trabalhador sai de seu corpo, se desliga, fica ausente, sente as cordas que amarram seus membros de forma que possa ser manipulado como uma marionete. O trabalhador no pensa, no sente, apenas faz.

    O trabalhador no se reconhece no processo de

    produo porque no se pertence durante o pro-cesso. Ele deixa de existir enquanto indivduo quando trabalha, e passa a existir somente quan-do sai do trabalho. Por isso, o trabalhador rejeita o trabalho, j que o trabalho externo, o trabalho em que o homem se aliena, um trabalho de sacrifcio de si mesmo, de mortificao. (Marx, 1989, p. 162) Para o trabalhador, o trabalho passa a ser momento de tortura, momento de negao de si, um processo de desrealizao do prprio trabalhador.

    Alm disso, as condies materiais com as quais o trabalhador realiza o trabalho no so por ele escolhidas, mas lhe so impostas pelo capita-lista. Sendo assim, com o intuito de alcanar o mximo de produtividade, o trabalhador posto a trabalhar com mquinas automatizadas, as quais so a cristalizao de um trabalho anterior ou trabalho morto e alm de afastarem ainda mais a conscincia do trabalhador do processo de produo, podam qualquer participao ativa dele dentro deste processo. Como refletia Marx:

    Em nenhum sentido a mquina aparece como meio de trabalho do trabalhador individual. A sua differentia specifica no de forma alguma, como no meio de trabalho, a de mediar a ativi-dade do trabalhador sobre o objeto; ao contr-rio, esta atividade posta de tal modo que to somente medeia o trabalho da mquina, a sua ao sobre a matria-prima supervisionando-a e mantendo-a livre de falhas []. A atividade do trabalhador, limitada a uma mera abstrao da atividade, determinada e regulada em todos os

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    aspectos pelo movimento da maquinaria, e no o inverso. (Marx, 2011, p. 580)

    O trabalhador, que objetivou sua fora de tra-balho, no capaz de reconhecer a sua prpria participao no processo de produo, que agora o domina em nome do capitalista. O trabalhador est alienado de si e do processo produtivo. Essa separao entre trabalhador e processo de produ-o o primeiro aspecto da alienao do trabalho no capitalismo: a alienao do indivduo.

    Quando escreveu os Manuscritos de 1844, Marx no tinha claro que a explorao no capitalismo se d pela justa relao mercantil de compra e venda de fora de trabalho. Mesmo assim, o autor identificou este aspecto da alienao, em que o homem se desvincula de si mesmo ao estranhar o processo produtivo, mas deduzia tal ocorrncia da separao entre o trabalhador e seu produto, ou seja, da alienao da coisa, ou como preferimos chamar, da alienao da natureza.

    1.1.2. Alienao da natureza

    Quando o trabalhador vende a sua fora de trabalho, a nica mercadoria de que dispe, ele abre mo de seu produto antes mesmo de produ-zi-lo, pois vende a sua participao no processo de produo. Essa ciso entre o trabalhador e seu produto causa muito mais do que o simples empobrecimento do trabalhador.

    Como j foi dito anteriormente, o ser do ho-mem moldado pelas suas condies materiais.

    E, atravs do processo de produo, o homem modifica essas condies, permitindo que ele expresse sua vontade perante o ambiente que o cerca, perante o mundo dos sentidos. Mas o ho-mem no s expressa, como se impe e domina a matria sobre a qual age em outras palavras, atravs da produo material o ser humano domina a natureza. Em suma, o homem modifi-ca o ambiente ao seu redor atravs do trabalho,8 que se concretiza no produto.

    O produto do trabalho humano a cristaliza-o da prpria vontade humana, a expresso pura do que o homem representa, o reflexo do homem no mundo, o que liga o homem de hoje com seu passado e seu futuro. O produto do trabalho a prova concreta da relao homem--natureza, visto que resulta diretamente da realizao desta relao. Ele faz parte do homem da forma como a natureza tambm o faz.

    Quando o trabalhador vende sua fora de traba-lho, seu produto deixa de expressar sua vontade. O trabalhador perde no s o direito sobre seu produto, como tambm perde a sua relao com o produto. E uma vez que no capaz de se relacionar com o produto, meio pelo qual o homem interage com o ambiente, o trabalhador castrado de suas relaes com a natureza. A alienao da coisa, que separa o trabalhador de seu produto, a prpria ciso entre o homem e a natureza, entre o homem e o mundo que o cerca.

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    O produto desse trabalho alienado, a mercado-ria, j no mais representa a supremacia huma-na. O que ocorre o inverso: ela no representa mais nada para o trabalhador que no a prpria mercadoria. O processo de alienao do produtor o processo de emancipao da mercadoria. A mercadoria torna-se um ser autnomo, com exis-tncia prpria e estranha ao trabalhador.9

    A mercadoria domina o trabalhador. Incapaz de se relacionar diretamente com o mundo, o traba-lhador pode se relacionar apenas com a merca-doria e atravs desse relacionamento, ou seja, atravs do consumo das mercadorias, o trabalha-dor busca satisfazer suas necessidades, busca se relacionar com o ambiente sua volta. desse fenmeno de dominao pela mercadoria que os outros dois aspectos da alienao do trabalho, que sero tratados adiante, derivam.

    Com a atualizao do conceito de valor-trabalho, a alienao da natureza derivada direta da alienao do indivduo. A propriedade privada expropria no o produto do trabalho humano, mas a prpria fora de trabalho. Afinal, dizer que a alienao do trabalho deriva da separao entre trabalhador e produto significa condenar a diviso social do trabalho como foco gerador ne-cessrio de alienao. Em consequncia, estaria condenando a vida social do homem, uma vez que a diviso social do trabalho, ao mesmo tem-po em que permite o surgimento da alienao, obriga os homens a manterem relaes sociais de

    produo.

    Alm disso, a mercadoria ganhou mais espao na teoria marxista. Ela deixa de ser um mero fruto de relaes de produo alienadas, e passa a ser carregada de ideologia. A mercadoria passa a ser, ela mesma, um foco de alienao.

    1.1.3. Alienao da condio humana

    Assim que o trabalhador torna-se escravo da mercadoria, assim que a realizao de seus dese-jos resume-se ao consumo de mercadorias, o ser humano afasta-se daquilo que Marx considera como condio humana.

    Para Marx, um dos principais aspectos que diferenciam o ser humano dos animais fato de o ser humano pensar em si como um ser gen-rico, ou seja, como um elemento pertencente espcie humana. Sendo essa conscincia genrica que diferencia os homens dos animais, a natu-reza do homem seria a prpria realizao dessa conscincia.

    Marx acreditava que o homem s poderia viver e agir conforme sua natureza se agisse de forma deliberada e consciente como um ser genrico, isto , como um ser social. (Marx, 1989, p. 45, nota 19) Como j vimos, a ao do trabalhador na esfera pblica, a esfera onde o ser humano relaciona-se com o mundo sua volta10 a esfe-ra da produo , est longe de ser algo volun-trio no capitalismo. O trabalhador s entra no processo produtivo porque obrigado a vender

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    sua fora de trabalho, e v neste processo apenas o meio de garantir os recursos necessrios para a sua subsistncia.

    A atividade produtiva passa a ser apenas um meio do trabalhador garantir a sua existncia fsica. Ele abre mo da sua participao na cons-truo material da sociedade e passa a exerc--la simplesmente pela vontade de outro. A vida genrica, realizao da natureza humana, passa a ser apenas um meio para a vida individual. O trabalhador busca sua realizao enquanto ser no na esfera pblica da produo, mas na esfe-ra privada individual do consumo. Na medida em que o trabalho alienado subtrai ao homem o objeto da sua produo, furta-lhe igualmente a sua vida genrica, a sua objetividade real como ser genrico. (ibidem, pp. 164-166)

    Graas ao seu trabalho alienado, o trabalhador estranha a sua prpria natureza, a sua prpria condio humana. O ser universal agora algo fora do homem. Objetivada pelo processo de produo, a vida genrica deixa de pertencer ao trabalhador. Vai para longe dele, junto com seu produto e com a atividade de produo, pois a vende junto com sua fora de trabalho.

    O trabalhador despojado torna-se mais uma vez um escravo. Desta vez, ele dominado pelas suas prprias necessidades materiais. Afinal, em be-nefcio das suas necessidades materiais, da sua realizao como ser individual, que o homem aliena sua prpria natureza.

    Uma vez que o trabalhador se encontra afastado da condio humana, estaria ento o capitalista, proprietrio dos meios de produo, da fora de trabalho e da mercadoria, mais prximo da natureza humana? Este modo de produo, que aliena os trabalhadores, no faz menos com os no-trabalhadores, afinal, tudo que aparece no trabalhador como atividade de alienao se manifesta no no-trabalhador como condio de alienao. (ibidem, p. 171).

    1.1.4. Alienao das relaes sociais

    Por fim, medida que o trabalho alienado afasta o ser humano de sua vida genrica, de seu ser social, ele afasta o homem de sua relao com o prprio homem. (ibidem, p. 166) O ser humano no capaz de compreender as relaes sociais por trs do processo de produo de mercado-rias. Para ele, tais relaes so estranhas, obscu-ras ou at inexistentes.

    Como os trabalhadores esto podados de suas relaes com o mundo exterior, eles consequen-temente esto podados de suas relaes com os outros trabalhadores. Dessa forma, dominados pela mercadoria, apenas com ela podem se relacionar.

    Para o indivduo de uma sociedade capitalista, as relaes sociais de produo, que so relaes entre pessoas, so transformadas em relaes entre coisas, relaes entre meras mercadorias. Isto ocorre devido ao fato de as mercadorias

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    encerrarem nelas mesmas um mistrio, um fetiche.

    A mercadoria misteriosa simplesmente por encobrir as caractersticas sociais do prprio trabalho dos homens, apresentando-as como caractersticas materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho. [] Atravs dessa dissimulao, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com proprie-dades perceptveis e imperceptveis aos sentidos. (Marx, 1985a, p. 81)

    Como poderiam, todavia, duas mercadorias, seres inanimados, no s se relacionarem, como tambm ofuscarem uma relao social real? Se a mercadoria o fruto material do trabalho humano, logo objeto puramente material, como poderia possuir uma caracterstica que, apesar de inerente, contrria sua prpria natureza material? A resposta simples: as mercadorias possuem tal poder por serem frutos do trabalho alienado.

    Na mente dos seres humanos, essas mercado-rias so objetos autnomos, com uma realidade prpria e distinta do homem. Mas, na realidade, elas so parte do prprio ser humano, so a pr-pria materializao da interao do homem com o ambiente que o cerca. Quando o trabalhador passa a estranhar o prprio produto, ele torna autnomas suas propriedades sociais presentes na mercadoria. Como o homem no reconhece o fruto do prprio trabalho como sendo parte dele e, portanto, tambm no reconhece o trabalho

    do outro na mercadoria do outro , ele no capaz de reconhecer as relaes sociais por trs das trocas.

    A igualdade dos trabalhos humanos fica dis-farada sob a forma da igualdade dos produtos do trabalho como valores; a medida, por meio de durao, do dispndio da fora humana de trabalho toma a forma de quantidade de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relaes entre produtores, nas quais se afirma o carter social dos seus trabalhos, assumem a forma de relao social entre os produtos do trabalho. (ibidem, p. 80)

    O fetichismo da mercadoria, que a base das relaes sociais capitalistas, no nada mais do que o poder, transferido pela sociedade, que as mercadorias possuem de igualar todas as formas de trabalho humano em um quantum de trabalho abstrato e, assim, de reificar as relaes humanas.

    Quando esta transferncia ocorre, o trabalhador perde a capacidade de reconhecer a igualdade do trabalho abstrato humano, enxergando-o apenas em sua forma de trabalho concreto. Assim, o metalrgico, por exemplo, no consegue ver se-melhana entre o trabalho que realiza e o traba-lho realizado pelo pedreiro, ou pelo engenheiro, ou por qualquer outro que no metalrgico. Os trabalhadores no conseguem perceber a essncia do trabalho humano que os iguala.

    Apenas as mercadorias podem fazer esta comu-nicao entre os homens. Apenas as mercadorias

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    podem fazer diferentes pessoas dentro da socie-dade capitalista se relacionar. E ainda assim, o fazem na forma de relaes entre mercadorias.

    A alienao das relaes sociais ganhou mais profundidade com o desenvolvimento da teoria de Marx. Apesar de ser a forma menos desen-volvida nos Manuscritos econmico-filosficos, ela se faz presente por trs de quase todo O capital. A teoria do valor de Marx alcanou elementos fundamentais para a adequada compreenso desse aspecto da alienao como, por exemplo, o trabalho abstrato e o fetichismo da mercado-ria. Nos Manuscritos, Marx buscou partir do que chamou de fatos econmicos contemporneos, e podemos perceber que se manteve fiel aos fatos como os observou naquele perodo. Acre-ditamos que as mudanas em suas concluses deveram-se exclusivamente ao aprofundamento de suas pesquisas, sem apresentar uma ruptura de sua posio poltico-filosfica.

    1.2. A emancipao do trabalho

    Tendo claro o conceito de alienao do traba-lho, devemos nos aprofundar no debate sobre as formas de sua superao, ou seja, da eman-cipao do trabalho. Se as divergncias sobre o tema anterior j so muitas, o debate sobre sua superao ainda mais complexo.

    Em suas obras, Karl Marx coloca, de forma categrica, que o homem s se tornar comple-to, ou seja, livre dos fenmenos da alienao, no comunismo, pois nele o homem ser capaz de

    se reconciliar consigo mesmo, com o gnero hu-mano e com a natureza. (Santos, 1982, p. 41) O comunismo o resultado do processo de huma-nizao das relaes sociais, e, neste processo, as condies materiais de vida devero ser modifi-cadas para que possam reproduzir essa condio de trabalho emancipado, i.e., para que o produto do trabalho reflita as relaes derivadas do pro-cesso produtivo.

    De acordo com a concepo do materialismo histrico de Marx, o capitalismo, enquanto modo de produo historicamente localizado, chegar necessariamente a um fim. Porm, nada se pode concluir sobre que sistema ir suced--lo. A mobilizao da classe trabalhadora ser decisiva para a superao do capitalismo, visto que o movimento histrico determinado pela luta de classes.

    A questo fundamental que, sendo a alienao um conceito scio-histrico, a sua superao tambm deve ser. Disso decorre primeiramente que a transcendncia da alienao deve compre-ender um desenvolvimento histrico necessrio, que se dar a partir das instituies e condies materiais capitalistas. Essa transformao social deve consistir em um movimento de superao dialtica da alienao, em que ocorra tanto a supresso de seus determinantes, quanto a preservao e superao de alguns elementos fundamentais para sua transcendncia. E como um processo histrico, ela no poder nunca ser considerada definitiva, visto que, como

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    fenmeno histrico, sempre ser passvel de modificao.

    Partindo da, a emancipao do trabalho na teoria marxista pode ser [] entendida como uma sucesso de conquistas sociais, das quais a ltima a menos (na verdade, qualitativa-mente menos) impregnada de alienao do que a precedente (Mszros, 1981, p. 225); levando, atravs de uma tendncia emancipadora, a uma transformao nas condies de trabalho e vida dos indivduos, de forma que elas apresentem relaes transparentes e racionais com outros indivduos e com a natureza (Santos, 1982, p.82), de forma que se reduzam as possibilidades de ressurgimento da alienao do trabalho.

    Dentro destes termos, resta estabelecer os passos necessrios para uma devida superao da alienao do trabalho. O primeiro passo iden-tificar o trabalho emancipado como o trabalho no-alienado, ou seja, aquele em que o trabalha-dor (enquanto classe) domine tanto o processo produtivo quanto o fruto de seu trabalho e per-ceba as relaes sociais e naturais representadas no processo de produo.

    Para isso, em primeiro lugar, os trabalhadores enquanto classe devem ser os proprietrios dos meios sociais de produo.11 Alm de poderem exercer o trabalho de forma livre, eles podero subordinar o processo produtivo aos seus inte-resses, acabando com o trabalho degradante e dominador. Dominando o processo de produo,

    daro um passo essencial para a reconciliao entre a conscincia e a prtica de transformao do concreto.

    A produo no ser, ento, regida pela acumu-lao. Os produtos que no capitalismo so pro-duzidos para serem trocados, e no para serem consumidos tero suas quantidades e qualida-des definidas conforme os anseios da coletivida-de no que tange manuteno e reproduo de um modo de vida.

    Como a circulao das mercadorias est intrin-sicamente relacionada com a forma como elas so produzidas, alterando-se esta ltima, aquela tambm ser alterada. Os instrumentos de trocas devero ser, portanto, modificados. A mercado-ria produto do trabalho humano dotado de utilidade e cuja troca (processo redutor de tra-balho concreto em abstrato) o meio pelo qual seus produtores se relacionam deve ser extinta. Em seu lugar devero surgir mecanismos de troca transparentes que evidenciem as relaes sociais de produo e que impeam a reprodu-o das contradies imanentes ao capitalismo.

    O trabalho, ento, poder ser encarado como forma de realizao do indivduo. Tal postura perante o trabalho contrria presente na sociedade capitalista, em que o indivduo busca se satisfazer atravs do no-trabalho, do cio. Isso implica uma modificao cultural que deve passar pelos mecanismos de disseminao da cultura e da educao.

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    Em suma, a fim de emancipar o trabalho, de-vero ser modificadas, em um desenvolvimento histrico consciente, as condies materiais de vida dos indivduos, causando impactos diretos na conscincia humana.

    2. a utopia cooperativistaColocar em prtica o plano de emancipao do trabalho uma tarefa rdua do movimento dos trabalhadores. rdua no s devido brutali-dade dos conflitos de classe, mas tambm pela dificuldade de encontrarem alternativas slidas e consistentes com o processo de superao da alienao.

    Muitas so as frentes em que os trabalhadores se organizam para enfrentar o capital: a luta sindi-cal, poltico-partidria, revolucionria etc. O co-operativismo, movimento de trabalhadores que se associam a fim de se tornarem proprietrios de seus prprios meios de produo, consiste em uma importante e crescente frente de enfren-tamento. Quanto mais agudas so as crises do capital, maior o nmero de trabalhadores que ingressam no movimento por meio da forma-o de novas cooperativas de produo. Dentre estes esto os funcionrios de empresas falidas que lutam para no perderem seus empregos, assim como os desempregados ou trabalhadores do setor informal que buscam alternativas para contornar sua atual situao.

    Alm de representar uma alternativa ao desem-prego e s precrias condies de trabalho, um dos objetivos relacionados ao cooperativismo o de apresentar uma alternativa ao prprio capitalismo. O que daria ao cooperativismo esta caracterstica revolucionria seria o fato de que, enquanto uma empresa capitalista uma associao de proprietrios (no-trabalhadores) dos meios de produo que tem como objetivo a gerao de lucro, uma cooperativa uma asso-ciao de produtores (e ao mesmo tempo pro-prietrios dos meios de produo) superando de forma positiva, ainda que limitada, a oposio entre capital e trabalho.

    Dessa forma, para alguns autores de influncias marxistas, essas associaes livres de traba-lhadores poderiam ser consideradas implantes socialistas no sistema capitalista, visto que na medida em que os resultados econmicos das co-operativas (os lucros, se houver) so distribudos entre os scios-trabalhadores, desaparece a mais--valia, a explorao. (Borges Neto, 2003, p. 104)

    Contudo, acreditamos que a nsia por encontrar uma forma de superao do capitalismo colabo-ra para embaar a anlise sobre a existncia de explorao no cooperativismo. Os apologistas do cooperativismo muitas vezes no veem que nas cooperativas so os trabalhadores como associa-dos os capitalistas deles mesmos, isto , aplicam os meios de produo para explorar o prprio trabalho. (Marx, 1985b, p. 509)

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    A explorao do trabalho nas cooperativas ainda uma realidade. Uma vez inseridas em um contexto capitalista, no so necessariamente os trabalhadores associados que absorvem a mais--valia produzida. Neste sentido, o que ocorre nas cooperativas pode ser entendido como a autoexplorao do trabalho, situao em que os prprios trabalhadores so responsveis por ex-trair a mais-valia de seus trabalhos para que seja apropriada pela classe capitalista como um todo.

    A raiz desse fenmeno est na distino entre gerao e apropriao de mais-valia, ou seja, no fato de que a mais-valia gerada em determinada indstria possa ser apropriada por capitalistas ou rentistas de outros setores. Para citar duas formas de apropriao de mais-valia: h, por exemplo, a transferncia resultante do pagamen-to de juros, renda fundiria, impostos etc.; alm, tambm, da transferncia de valor resultante da transformao dos valores em preos de pro-duo que faz com que parte da mais-valia gerada nas indstrias mais intensivas em capital varivel seja direcionada para as indstrias mais intensivas em capital constante.

    Assim, nas cooperativas, os trabalhadores no s continuam sendo explorados, uma vez que po-dem se apropriar apenas da parte da mais-valia direcionada ao capital industrial, como tambm podem vir a se apropriar da mais-valia produzi-da nas empresas capitalistas tradicionais, como seria o caso de cooperativas intensas em capital fixo.

    Portanto, desde que inseridas no modelo de acumu-lao capitalista, as cooperativas no sero capa-zes de romper com os mecanismos de explora-o do trabalho,12 uma vez que estes no dizem respeito apenas ao funcionamento interno da empresa, mas a todo o sistema de produo e circulao de mercadorias. Para isso, preciso buscar de forma consciente a transformao dos meios materiais, para que expressem uma nova forma de interao social, sem explorao.

    O que dizer, ento, da possibilidade dessa forma de organizao de se apresentar como um meio para a superao da alienao do trabalho nos termos que delineamos na sesso precedente? Em primeiro lugar, devemos evidenciar os avanos que o cooperativismo representa nesse caminho.

    H, nas cooperativas, um reencontro entre a classe dos expropriados com os meios de produ-o. Como ressaltamos anteriormente, a base da alienao do trabalho no capitalismo nasce da criao de uma classe de trabalhadores despos-sudos. Uma vez no possuindo nada alm da prpria fora de trabalho, esta que eles devem vender para garantirem a sua sobrevivncia. O cooperativismo apresenta-se como uma soluo para este impasse para muitos trabalhadores, so-bretudo nos momentos de crise em que eles so rejeitados pelo capital e enviados para ampliar o exrcito industrial de reserva.

    Alm disso, a propriedade dos meios de produ-o no liberta os cooperados da necessidade

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    do trabalho (como ocorre no caso do capitalista que, por isso mesmo, se aliena). Esses propriet-rios dos meios de produo precisam trabalhar nas cooperativas das quais fazem parte e, para isso, organizam-se na forma da autogesto.

    A autogesto permite a convergncia entre pro-priedade, gesto e execuo. Em uma empresa capitalista comum, cabe aos proprietrios dos meios de produo (por exemplo, os acionistas majoritrios) decidirem sobre os objetivos do empreendimento, as linhas estratgicas gerais e outras decises de longo prazo, enquanto cabe a um corpo de funcionrios especializados a gesto propriamente dita otimizao dos recursos, tendo em vista os objetivos definidos, e algumas decises de curto alcance tomadas no dia-a-dia , cabendo aos trabalhadores apenas a execuo da atividade produtiva.13 Nas coopera-tivas de produo, essa diviso no ocorre, pois os associados so ao mesmo tempo propriet-rios, gestores e trabalhadores.

    Essa comunho permite que a unidade entre conscincia e produo material seja restabeleci-da. A partir do momento em que quem toma as decises so os mesmos indivduos envolvidos no processo de produo material, as decises passam a ser tomadas tendo em vista a realiza-o do trabalho.

    Os indivduos so capazes, assim, de identificar seu papel ativo na construo da cooperati-va, pois veem que a adequao desta s suas

    vontades depende apenas deles.14 Os trabalhado-res tornam-se mais prximos do prprio proces-so produtivo, e com isso, aproximam-se de si mesmos enquanto indivduos envolvidos no pro-cesso produtivo. E ainda, so os associados em conjunto que decidiro sobre a forma em que devem ser distribudos os produtos e as receitas do empreendimento, permitindo que estes rom-pam com a prpria lgica do valor ao decidirem por formas alternativas de distribuio.15

    No obstante, tambm preciso reconhecer os limites que a expanso do cooperativismo dentro do capitalismo enfrenta no sentido de estabelecer a emancipao do trabalho humano. Um primeiro ponto que deve ser levantado diz respeito ao domnio do processo produtivo por parte dos trabalhadores. Por mais que a autoges-to permita o controle da produo no interior da cooperativa, ela no direciona esforos para inverter a desumanizao do modo de produo capitalista,16 ou seja, as cooperativas no buscam criar um modo de produo condizente com sua natureza, o que as impedem de prosseguir com um plano efetivo de emancipao do trabalho. Pelo contrrio, a fim de competirem com empre-sas capitalistas, as cooperativas reproduzem o mesmo modelo produtivo e as mesmas estrat-gias de reduo de custos, que apenas favorecem a explorao e a alienao do trabalho.

    Isso significa que no s a diviso do trabalho similar, como que os instrumentos de trabalho

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    utilizados so os mesmos. Como ressaltamos na sesso anterior, os instrumentos de trabalho do modo capitalista de produo so instrumentos que tentam reduzir ao mximo o valor da fora de trabalho, transformando o produtor em um instrumento da mquina.

    assim tambm que a terceirizao e outras for-mas de utilizao de trabalho de no-associados so inseridos nas cooperativas. Ao utilizar este tipo de recurso, alm de promoverem a explora-o da fora de trabalho, as cooperativas abrem mo, deliberadamente, de parte do processo produtivo, que passa a ser de responsabilidade de agentes externos (sejam empregados ou em-presas terceirizadas).

    Se a partir do momento que as cooperativas deixam de assumir um papel ativo na modi-ficao das condies materiais de produo, elas estagnam no processo de emancipao do trabalho, quando adotam trabalho terceirizado ou contratam mo-de-obra no cooperativada, elas invertem este processo, tornando-se algo similar a empresas capitalistas da capital aberto com um alto grau de democracia (entre os acionistas).

    Alm disso, a ausncia de um plano de expanso que pense o cooperativismo como um todo, e que vise dominar o processo de produo como um processo social, reduz as cooperativas a ini-ciativas isoladas, com um potencial limitado de transformar da sociedade. Como Marx ressaltou

    nas Instrues para os delegados do conselho geral provisrio da Associao Internacional dos Trabalhadores, em 1866:

    Restricted, however, to the dwarfish forms into which individual wages slaves can elaborate it by their private efforts, the co-operative system will never transform capitalist society. To con-vert social production into one large and har-monious system of free and co-operative labour, general social changes are wanted, changes of the general conditions of society, never to be realized save by the transfer of the organized forces of society, viz., the state power, from capitalists and landlords to the producers themselves. (Marx & Engels, 1985, p. 190 [grifos nossos])

    Claro que as cooperativas podem exercer um papel importante com relao ampliao da conscincia individual no que tange necessida-de de subjugar o processo produtivo vontade da coletividade. Mas sem um esforo coordena-do no sentido de dominar o poder estatal e, com isso, o comando sobre a produo coletivizada, a expanso das cooperativas no seio do capi-talismo no ser suficiente para provocar tal transformao.

    Um segundo ponto que deve ser ressaltado quanto aos limites do cooperativismo dentro do capitalismo diz respeito manuteno da lgica do valor. As cooperativas reforam a alienao do trabalho a partir do momento em que repro-duzem a lgica de acumulao do capital. Na medida em que participam do mesmo sistema

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    de produo e circulao de mercadorias, elas produzem formas reificadas das relaes sociais, ou seja, fortalecem o fetichismo da mercadoria.

    Enquanto produzirem mercadorias, produziro alienao. Como vimos, a mercadoria a forma fetichista do produto, e ela ganha essa forma quando, fruto de um trabalho alienado, recebe o poder de igualar as diferentes formas de traba-lho concreto em trabalho abstrato socialmente determinado.

    Ora, mas se o mercado o ambiente onde a mercadoria realizada, ele em si uma forma social que produz alienao, que tem a lgica de dar origem a leis que se impem aos produ-tores. (Borges Neto, 2003, p. 112) Portanto, para romper com esse fetichismo, alm de adotar formas de produo no-alienadas, preciso superar o prprio processo de circulao de mercadorias, ou seja, o mercado. Faz-se necess-rio encontrar formas alternativas de estabelecer essas relaes de troca de maneira que expres-sem de forma transparente e racional as relaes sociais entre os indivduos.

    Mas inverter o atual modo de circulao de mercadorias significa inverter toda a lgica das relaes sociais. Porm, de nada adianta uma co-operativa realizar sozinha esta inverso (ela nem poderia), caso a sociedade com que se relaciona no a tenha feito.

    conclusoO presente trabalho teve por objetivo avaliar as possibilidades que a expanso das cooperati-vas de produo dentro do sistema capitalista apresenta para se alcanar a emancipao do trabalho humano e, por suposto, a superao do prprio capitalismo.

    Para atingir tal objetivo, iniciamos nosso artigo com uma anlise sobre o conceito de aliena-o no paradigma marxista, com o intuito de identificar os elementos necessrios para a sua superao. Assim, compreendendo a alienao do trabalho em quatro dimenses do indiv-duo, da natureza, da condio humana e das relaes sociais , apontamos que sua superao depende, sobretudo, de se colocar os meios de produo sob o domnio dos trabalhadores, e de eliminar a mercadoria enquanto forma de relao do trabalho humano.

    Apontamos que o cooperativismo apresenta alguns elementos que afirmam e outros que negam a alienao do trabalho. A coletivizao dos meios de produo, mesmo restrito reali-dade da cooperativa, e a autogesto do processo produtivo se mostram como pontos-chave para a superao da alienao. Primeiro, por serem passos decisivos para a unio da conscincia com o processo produtivo; segundo, por colo-carem disposio dos trabalhadores todas as ferramentas necessrias para a realizao desse processo.

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    No obstante, podemos perceber que a mera ex-panso das cooperativas dentro do modo de pro-duo capitalista no se mostra como elemento suficiente para nos levar emancipao do tra-balho humano. Em primeiro lugar, pelo fato da autogesto que nela se realiza estar limitada atividade de cada cooperativa, ou seja, ela no capaz de gerar uma forma de organizao social que subjuga o modo de produo como um todo vontade da coletividade. Em segundo lugar, enquanto permanecerem dentro de uma estru-tura de mercado que produz mercadorias para a venda (e no para o consumo) com o intuito de se obter lucro , as cooperativas no sero capazes de desnudar o fetichismo e mostrar o que h de humano por trs das relaes entre as mercadorias.

    Por fim, importante frisar que, ao apontar os limites que a expanso das cooperativas no modo de produo capitalista apresenta para a superao da alienao do trabalho, no esta-mos nos posicionando contra essa forma de organizao enquanto estratgia do proletariado na luta de classes em prol da implantao do socialismo. O que queremos mostrar que as cooperativas s podero ter um carter real-mente transformador se estiverem articuladas com outras iniciativas que busquem suplantar o controle do capital sobre o processo produtivo e acabar com as formas reificadas e fetichistas de relaes sociais.

    BibliografiaALTHUSSER, Louis. Ler o capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

    BORGES NETO, Joo Machado. Cooperativas e socialis-mo. In: SOUZA, A. R.; CUNHA, G. C. & DAkUZAkU, R. Y. (orgs.). Uma outra economia possvel: Paul Singer e a econo-mia solidria. So Paulo: Contexto, 2003. pp. 99-125.

    GORENDER, Jacob. Introduo. In: MARX, karl. Para a crtica da economia poltica. So Paulo: Abril Cultural, 1982. pp. vII-XXIII.

    kONDER, Leandro. Marxismo e alienao. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1965.

    MARX, karl. O capital: crtica da economia poltica. Livro 3. vol. 4. 4 ed. So Paulo: Difel, 1983.

    _______. O capital: crtica da economia poltica. Livro 1. vol. 1. 10 ed. So Paulo: Difel, 1985a.

    _______. O capital: crtica da economia poltica. Livro 3. vol. 5. 4 ed. So Paulo: Difel, 1985c.

    _______. Manuscritos econmico-filosficos. Lisboa: Edies 70, 1989.

    _______. Grundrisse. So Paulo: Boitempo, 2011.

    MARX, karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alem. So Paulo: Boitempo, 2007.

    ______________. Collected Works. vol. 20, Marx and Engels: 1864-1868. London: Lawrence & Wishart, 1985.

    MSZROS, Istvn. Marx: A teoria da alienao. Rio de Janei-ro: Zahar Editores, 1981.

    SANTOS, Laymert Garcia dos. Alienao e capitalismo. So Paulo: Brasiliense, 1982.

    notas1 A despeito da existncia de cooperativas de naturezas diversas (cooperativas de consumo, de crdito, de habitao etc.) e do devido papel que cada uma desempenha para a superao da alienao, este trabalho possui foco nas coo-perativas de produo, visto que so nelas que o trabalho

  • 35REvISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLTICA

    40 / fevereiro-maio 2015

    de produo material realizado de forma autogestionria. Portanto, sempre que utilizamos o termo cooperativa, ser exclusivamente a este tipo de cooperativa que estare-mos nos referindo, salvo quando especificado o contrrio.

    2 Aufhebung um termo-chave, muito utilizado na literatura marxista, que em alemo [] significa ao mesmo tempo transcendncia, supresso, preservao e superao (ou substituio) pela elevao a um nvel superior (Mszros, 1981, p. 14).

    3 [] a crtica do prprio Engels partia de princpios humanistas antropocntricos e moralizantes, inspirados na filosofia de Feuerbach. Com apoio no humanismo feuer-bachiano que se desvenda a Economia Poltica como ideologia da propriedade privada, da concorrncia e do enriquecimento sem limite []. (Gorender, 1982, p. vII)

    4 Muitos tericos consideram uma diferena entre os termos alienao e estranhamento tal com utilizados por Marx. Ns, no entanto, nos posicionamos ao lado daqueles que utilizam ambos como sinnimos.

    5 Note que, ao mesmo tempo em que surge a diviso social do trabalho, surgem tanto a propriedade privada quanto a diviso da sociedade em classes (de diferentes ofcios).

    6 O fato de ver na alienao do trabalho o conceito-chave para entender todos os fenmenos da alienao do homem no deve ser encarado como mero reducionismo. As de-mais formas de alienao merecem ateno especfica dos tericos marxistas. No entanto, no adianta tentar resolv--las antes de modificar as bases materiais em que a vida dos indivduos se assenta. Nem se deve imaginar que a resolu-o da alienao econmica seria suficiente para emancipar o homem em toda sua pluridimensionalidade. Cf.: konder (1965, pp. 28-29).

    7 Uma mercadoria com uma capacidade especial: a de criar valor.

    8 Alm de modificar o ambiente que o cerca, o trabalho modifica o prprio homem.

    9 Como disse Marx nos Manuscritos, [] a alienao do trabalhador no seu produto significa no s que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existncia exter-na, mas que existe independentemente, fora dele e a ele

    estranho, e se torna um poder autnomo em oposio com ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma fora hostil e antagnica. (Marx, 1989, p. 160 [grifos nossos])

    10 Em contraposio esfera privada, em que ele se rela-ciona consigo mesmo.

    11 Fica implcito o fim da segmentao da sociedade entre capitalistas e trabalhadores.

    12 O que no significa que o mesmo ocorreria se esti-vessem inseridas em outro modo de produo (como o socialismo, por exemplo).

    13 claro que isso varia de acordo com a empresa, sendo que em algumas o trabalhador goza at de um certo grau de autonomia e de participao nas decises (como o caso do modelo de gesto japons), mas em nenhuma empresa nos moldes capitalista ocorre a fuso plena destes trs papis.

    14 Nas cooperativas so os prprios associados que defi-nem a cadncia do trabalho, as condies de segurana em que ser realizado e at mesmo se e quando o realizaro. Alm disso, os cooperados podem, ainda, determinar os meios de produo que sero utilizados, modificando as condies materiais de trabalho.

    15 Como, por exemplo, ao substituir a lgica de que cada um recebe de acordo com a quantidade (e qualidade, para adicionar o preconceito) de trabalho realizado, pela de que cada um recebe de acordo com as suas necessidades.

    16 muito ressaltado o fato de o cooperativismo acabar com a ditadura do capital nas empresas. Contudo, no estamos nos referindo somente desumanizao do modo de organizao da produo, mas desumanizao inerente s formas materiais de produo.

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    Revista da Sociedade Brasileira de Economia Poltica

    40Sumrio da Edio 40

    As cooperativas de produo na estratgia para a superao da alienao do trabalhoRodrigo Straessli Pinto Franklin e Pollyanna Paganoto Moura

    A disciplina do trabalho nas empresas recuperadas autogestionadas na ArgentinaRenake B. David das Neves

    Marx nas fronteiras do mercado mundial: Polmicas e notas metodolgicasFlvio Ferreira de Miranda

    Da natureza das relaes de produo dimenso cultural da ao poltica: Problemticas e caminhos tericos acerca dos conitos ruraisAnglica Massuquetti

    Teoria da explorao e da superexplorao da fora de trabalho em O Capital (Livro I) de MarxCarlos Alves do Nascimento, Fernando Frota Dillenburg e Fbio Maia Sobral

    Reconsiderando a crtica de Gesell sobre a teoria do capital de MarxTsuyoshi Yuki

    Tempo, Trabalho e dominao social: Uma reinterpretao da teoria crtica de Marx Moishe PostoneHenrique Pereira Braga (Resenha)

    revista.sep.org.br

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    As cooperativas de produo na estratgia para a superao da alienao do trabalhoRodrigo Straessli Pinto Franklin e Pollyanna Paganoto Moura

    A disciplina do trabalho nas empresas recuperadas autogestionadas na ArgentinaRenake B. David das Neves

    Marx nas fronteiras do mercado mundial: Polmicas e notas metodolgicasFlvio Ferreira de Miranda

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