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EPEA 2001 - 1 de 13 AS CRIANÇAS DO JARDIM GONZAGA (IN)COMPREENDIDAS PELA FEIRA E PELOS DESENHOS Edna Kunieda UFSCar Daniela Cássia Sudan UFSCar Nivaldo Nordi UFSCar palavras-chave: Forrageamento; Percepção ambiental; Coleta de sobras Resumo: O presente estudo reúne dados sobre coleta de sobras de alimentos em uma feira livre e as informações sobre percepção ambiental de crianças faveladas, obtidas por meio de registros gráficos. Os desenhos mostram uma repetição de traços que parecem expressar conflitos de ordem emocional. Por outro lado, a atividade de coleta de sobras de alimentos, realizada pelas crianças, representa uma estratégia que contribui para a melhoria da qualidade nutricional das famílias estudadas. THE CHILDREN OF JARDIM GONZAGA: (MIS)UNDERSTOOD BY THE STREET MARKET AND DRAWINGS keywords: Foraging; Environmental awareness; Collection of residual surplus Abstract: This study compiles data on the collection of children’s residual surplus food (or leftovers) in a local street market, as well as information on environmental awareness. The latter was obtained from drawings by the aforementioned children, who live in a slum. These drawings repetitively display characteristics which seem to express emotional conflicts. On the other hand, collection of residual surplus food represents a strategy that contributes to the improvement of the nutritional quality of their families’ diets. 1. Introdução Este estudo, realizado com crianças do Jardim Gonzaga, bairro periférico do município de São Carlos, SP, integra dados de duas monografias, uma delas, sobre coleta de sobras de alimentos na feira (SUDAN, 1997) e outra, sobre percepção ambiental através de desenhos (KUNIEDA , 1997). Ambas pesquisas foram desenvolvidas junto a um grupo de aproximadamente 30 crianças em idade escolar, variando de 07 a 15 anos, que ajudavam seus pais praticando coleta regular de sobras de verduras, frutas e legumes, aos domingos, numa feira da cidade. A proposição de tratar conjuntamente, neste trabalho, os dados das pesquisas citadas acima, foi diagnosticar aspectos da realidade das crianças envolvidas na coleta de alimentos na feira, buscando entender as motivações e os conflitos relacionados ao contexto desta atividade. Para compreender o comportamento das crianças durante a coleta de sobras de alimentos, utilizou-se a técnica de observação direta,

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AS CRIANÇAS DO JARDIM GONZAGA (IN)COMPREENDIDAS PELA FEIRA E PELOS DESENHOS Edna Kunieda UFSCar

Daniela Cássia Sudan UFSCar Nivaldo Nordi UFSCar

palavras-chave: Forrageamento; Percepção ambiental; Coleta de sobras Resumo: O presente estudo reúne dados sobre coleta de sobras de alimentos em uma feira

livre e as informações sobre percepção ambiental de crianças faveladas, obtidas por meio de registros gráficos. Os desenhos mostram uma repetição de traços que parecem expressar conflitos de ordem emocional. Por outro lado, a atividade de coleta de sobras de alimentos, realizada pelas crianças, representa uma estratégia que contribui para a melhoria da qualidade nutricional das famílias estudadas.

THE CHILDREN OF JARDIM GONZAGA: (MIS)UNDERSTOOD BY THE

STREET MARKET AND DRAWINGS keywords: Foraging; Environmental awareness; Collection of residual surplus Abstract: This study compiles data on the collection of children’s residual surplus food (or leftovers) in a local street market, as well as information on environmental awareness. The latter was obtained from drawings by the aforementioned children, who live in a slum. These drawings repetitively display characteristics which seem to express emotional conflicts. On the other hand, collection of residual surplus food represents a strategy that contributes to the improvement of the nutritional quality of their families’ diets.

1. Introdução

Este estudo, realizado com crianças do Jardim Gonzaga, bairro periférico do

município de São Carlos, SP, integra dados de duas monografias, uma delas, sobre coleta

de sobras de alimentos na feira (SUDAN, 1997) e outra, sobre percepção ambiental

através de desenhos (KUNIEDA, 1997). Ambas pesquisas foram desenvolvidas junto a

um grupo de aproximadamente 30 crianças em idade escolar, variando de 07 a 15 anos,

que ajudavam seus pais praticando coleta regular de sobras de verduras, frutas e legumes,

aos domingos, numa feira da cidade. A proposição de tratar conjuntamente, neste trabalho,

os dados das pesquisas citadas acima, foi diagnosticar aspectos da realidade das crianças

envolvidas na coleta de alimentos na feira, buscando entender as motivações e os conflitos

relacionados ao contexto desta atividade. Para compreender o comportamento das crianças

durante a coleta de sobras de alimentos, utilizou-se a técnica de observação direta,

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complementada por entrevistas abertas e semi-estruturadas (MELLO, 1995). A

importância dos alimentos coletados pelas crianças na sua alimentação e na de suas

famílias foi verificada por meio da técnica do recordatório de 24 horas, realizada durante o

período de uma semana. A percepção das crianças relativa ao seu contexto ambiental foi

obtida por meio da análise de desenhos (DI LEO,1991; DERDYK, 1989 & VAN

KOLCK, 1968), buscando, sobretudo, não se aprofundar em questões obscuras e, na

medida do possível, interligar a análise dos desenhos com históricos individuais. Também

foram efetuados registros fotográficos das atividades das crianças.

Espera-se que os resultados aqui obtidos e a sua interpretação e discussão

contribuam para a execução de trabalhos em Educação Ambiental, pois atos de defesa e

preservação advêm daquilo que é conhecido pela comunidade que se quer atingir e do que

se conhece dela.

2. O bairro Jardim Gonzaga

2.1. O histórico do bairro

Falecido após um ano de ocupação numa área pública de São Carlos,

caracterizada como campo cerrado, o Sr. Gonzaga deu nome à favela que se constituiu

após seu estabelecimento, a partir de 1977. Com a intensificação do êxodo rural, as

árvores e arbustos do local foram dando espaço às residências. Os primeiros barracos

foram construídos ao redor de uma linha d`agua, que, mais tarde, passou a conduzir o

esgoto pelas ruas da favela. Nascentes foram contaminadas e a erosão de um barranco

passou a ameaçar os moradores que residem próximo à área nas épocas de chuva, perigo

constatado na ocasião da pesquisa e ainda presente. Os moradores, com o tempo, passaram

a despejar seus lixos neste barranco, propiciando a proliferação de ratos e baratas.

Em 1990, devido a reivindicações dos moradores, a prefeitura executou um

projeto de urbanização da favela, efetuando o abastecimento de água e a canalização do

esgoto. Houve casos generalizados de entupimentos nas casas devido à construção

desorganizada das obras. Da mesma forma, as ruas exigem nova pavimentação pelo estado

deficiente em que se encontram.

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A poluição do ambiente, modificação e deterioração da paisagem, vinculadas

ao aumento da densidade populacional e à ocupação desordenada, são problemas que se

agravam com ações equivocadas dos governantes.

2.2. Condições habitacionais

Aproximadamente 71% das famílias estudadas residem em barracos,

caracterizados pela construção em madeira e latas. Apesar de 14% ter parte da residência

com tijolos, ainda preservam características e condições de um barraco. A média do no de

cômodos por residência corresponde a 2,3 e a do no de pessoas a 8,4. Nestas condições, os

membros da família têm que conviver juntos num espaço muito pequeno. Em tais

circunstâncias, entende-se porque as crianças e adultos permanecem pouco tempo em seus

barracos. As crianças brincam o tempo todo na rua e geralmente só voltam para dormir e

se alimentar. Os adultos, quando não estão trabalhando, ficam conversando em rodas de

amigos nos quintais.

3. As crianças e a feira

As crianças permaneciam em uma pracinha localizada ao lado da rua próxima à

feira. Havia um banheiro público em construção que, entre outras coisas, era um espaço

onde as crianças abrigavam-se da chuva, tecendo comentários sobre os últimos

acontecimentos da favela. Nesses momentos relatavam um pouco de suas vidas, onde

sempre havia uma história de estupro, violência e morte. As formas de lazer também eram

explicitadas: “pular do cipó” num rio próximo à favela, pescar e nadar em represas da

região, jogar futebol no campo da favela, jogar vôlei na rua, cantar e dançar em rodas de

pagode nas casas de tios e amigos ou freqüentar apresentações gratuitas de samba, pagode

e música sertaneja nos bairros vizinhos.

Até que o final da feira não se anunciasse, através do desmonte das barracas, as

crianças ficavam brincando, brigando e conversando nessa pracinha. Revezavam-se

circulando pela feira, pedindo dinheiro aos compradores e salgadinhos, doces e

refrigerantes aos feirantes. Retornavam novamente à praça e brincavam de subir nas

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árvores, atirar coisas uns nos outros, jogar capoeira, saltos e cambalhotas, pular

amarelinha e cantar.

Na feira, portanto, se estabelecem várias relações, envolvendo feirantes,

moradores do entorno, compradores, moradores de rua que por ali perambulam,

carroceiros que levam sobras para a alimentação de porcos, adultos da favela e de outros

bairros pobres que coletam alimentos para o próprio consumo, lixeiros que começam a

limpar a rua, crianças da favela que olham os carros estacionados a fim de obter alguns

trocados e cachorros que disputam ossos e retalhos de carnes.

Donos de alguns estabelecimentos comerciais próximos à feira permitem que

as crianças usem o banheiro e bebam água; outros doam produtos alimentícios vencidos;

alguns moradores do entorno reservam para elas, balas, doces e bolachas.

Várias foram as situações presenciadas em que feirantes e crianças entraram

em conflito por causa da coleta de sobras. Muitas crianças foram alvo de taxações

preconceituosas e acusações de furto pelos mesmos feirantes que, paradoxalmente,

trataram-nas, em outros momentos, com brincadeiras e agrados. Observa -se, portanto, uma

mistura de sentimentos de raiva e desprezo com os de pena, tanto por parte dos feirantes

como pelos compradores que por ali circulam.

Embora a coleta de sobras de alimentos seja individual, as crianças se deslocam em

grupo para a feira. Conforme relatos de algumas delas, essa atividade é humilhante. Dessa

forma, o grupo ou a presença de mais pessoas na mesma situação, alivia o incômodo e a

pressão sobre cada criança. Ao mesmo tempo, estimula a realização da atividade,

amenizando o desgaste emocional e auxiliando a superar a timidez perante as pessoas do

próprio bairro onde moram. O grupo também é importante para a otimização da coleta.

Foi observado a troca de alimentos entre as crianças e de informações sobre quais barracas

estão doando mais sobras ou possuem alimentos melhores, divisão dos saquinhos plásticos

encontrados no chão (utilizados para acondicionar os alimentos) e colaboração no

momento de transporte das sobras coletadas até as respectivas residências.

SMITH (1981), analisando a teoria do forrageamento ótimo e NORDI (1992),

em seu trabalho com caranguejeiros do nordeste brasileiro, constataram a importância do

grupo para reforçar o compromisso com a obtenção de recursos e na troca de informações

sobre os ambientes mais produtivos. Não se observou territorialidade e nem outras

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atitudes competitivas durante a coleta de alimentos na feira. Usualmente, a territorialidade

se manifesta onde há, entre outras coisas, previsibilidade temporal ou espacial de oferta de

recursos. Na feira, embora os alimentos sobrem regularmente, as bancas variam

semanalmente quanto à quantidade de sobras que podem oferecer, conferindo uma certa

imprevisibilidade espacial no oferecimento de alimentos. Além disso, cada banca

comercializa uma variedade limitada de itens alimentares, de tal forma que, a fixação de

territórios poderia resultar num forrageio qualitativo menos rico. Nesse sentido, não se

torna eficiente lutar pela delimitação de espaços na feira para obtenção de alimentos. Disto

resulta que, a colaboração entre as crianças, principalmente por meio da troca de

informações sobre as bancas mais produtivas, contribui para o aumento na eficiência da

coleta individual.

Notou-se que a proporção dos diferentes alimentos obtidos pelas crianças,

reflete a disponibilidade de sobras ofertadas pelas bancas, indicando a inexistência de

seletividade na coleta de alimentos. Isto está de acordo com o obtido em algumas

sociedades humanas, analisadas do ponto de vista de teorias ecológicas, que afirmam que,

em situações de escassez de recursos ou crise ambiental, os indivíduos se comportam

como oportunistas ou generalistas, ampliando o seu nicho trófico (SMITH, 1983). De

acordo com JOCHIM (1981), a amplitude do nicho alimentar tende a variar inversamente

com a segurança de subsistência. No caso do grupo estudado, ficou evidente a relação

entre os alimentos provindos da atividade de coleta das crianças e o aumento da

diversidade dos alimentos consumidos, culminando com a expansão do nicho trófico e

garantindo mais qualidade nutricional às famílias.

A variedade de alimentos nas refeições das famílias estudadas, dependeu,

substancialmente, dos alimentos trazidos da feira pelas crianças, que chegaram a

representar de 33 a 43% dos itens alimentares consumidos durante a semana.

Os legumes, verduras e frutas presentes na alimentação das famílias, derivam,

em grande parte, do que é coletado na feira. A carne, contudo, é quase sempre comprada.

No entanto, é provável que, com respeito a esse item, a importância do que vem da feira

esteja subestimada, pois são principalmente retalhos de porco utilizados pelas famílias no

cozimento do feijão e que não aparecem relatados como carne nos recordatórios efetuados.

Apenas cerca de 15% (2 em 13 variedades) das frutas coletadas na feira estiveram

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presentes nas ingestas analisadas. Mais uma vez, os dados parecem não refletir a realidade

observada. As frutas são, via de regra, consumidas em horários que não coincidem com as

refeições principais, e, portanto, a informação pode ter sido omitida. Aproximadamente

65% (16 em 21 variedades) dos legumes e 60% (3 em 5 variedades) das verduras

consumidas se devem à atividade das crianças, comprovando a importância que têm na

melhora da qualidade da ingesta de suas respectivas famílias

A alimentação das crianças coletoras de alimento também foi analisada. Com

exceção de duas delas, cuja alimentação não continha nenhum item provindo da feira, os

alimentos oriundos de sua atividade de coleta representavam, em média, cerca de 28% (18

a 54%) da riqueza de sua dieta. Em muitos casos, a pequena relação entre os alimentos

obtidos na feira e os realmente consumidos pelas crianças, pode ser explicada pelo fato de

que elas passam pouco tempo em casa; andam muito pelas ruas durante o dia e comem o

que ganham das pessoas.

Essas crianças têm uma participação significativa na melhoria da dieta familiar,

praticando coleta semanal regular. Esta atividade representa uma contribuição efetiva às

famílias, pelo significativo aporte alimentar, tanto em termos quantitativos, quanto com

respeito à qualidade nutricional.

4. As crianças pelos feirantes e fregueses

Uma única pergunta foi dirigida aos feirantes e fregueses na feira realizada aos

domingos no bairro Vila Prado: “Qual a sua opinião em relação à atividade de coleta de

sobras realizada pelas crianças da favela do Gonzaga”? O enfoque concentrava-se na

atividade exercida pelos “menores moradores da favela do Gonzaga”, mas os

entrevistados, em sua maioria, relacionaram a questão ao “menor carente” em geral, com

ênfase em situações limites como as que ocorrem nas grandes metrópoles .

A frase mais ouvida foi “tirá-las da rua”. Mas o que é esse “viver na rua”?

Acaso o fato das coletas serem realizadas aos domingos interferiria no rendimento escolar

destas crianças? Esse estar nas ruas aos domingos não está registrado em nossas mentes

como os dias mais agradáveis da infância? Por que necessariamente tem que ser diferente

para estas crianças? É provável que os entrevistados estivessem referindo-se àquelas que

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vivem, de fato, a maioria de seus dias nas ruas. Há que se considerar, no entanto, que é

alto o índice de evasão escolar nessa comunidade.

A feira representa, além da possibilidade de melhorar a dieta familiar, o

espaço social das crianças, onde são reforçados os laços de amizade, realizam-se

atividades lúdicas e se formam vínculos afetivos entre os pré-adolescentes . Contudo, esta

dinâmica não é percebida claramente pela maioria dos feirantes e fregueses entrevistados,

que associam a presença das crianças na feira à vadiagem, obtenção de dinheiro para

compra de drogas ou bebidas alcoólicas e furto de mercadorias. Obviamente, foram

observadas crianças pedindo “um troco”, mas esse dinheiro raramente era guardado, sendo

gasto em doces ou salgados.

A tão decantada criação de escolas seguindo padrões de internato não se

apresenta eficiente quando implantada, embora tenha sido sugerida pela maioria dos

entrevistados. MILITO e SILVA (1995) relacionaram a perda da autonomia para a

procura de emprego ou outras providências da vida adulta e incapacidade de tomar

iniciativas ao menor institucionalizado. Períodos longos de cerceamento da liberdade

estariam gerando as dificuldades citadas.

Somente um dos entrevistados lembrou-se da responsabilidade paterna,

embora não culpasse os pais por seus filhos estarem “na rua” porque as crianças estariam

condenadas a repetir o comportamento dos próprios genitores. Estes, por sua vez, seriam

também fruto do abandono.

Pais atenciosos não são exceção à regra na comunidade estudada, mas há

inadequações de toda espécie, tais como pais ausentes, crianças espancadas, que

presenciam relações sexuais dos adultos, envolvem-se com drogas, etc. Se o processo de

socialização não pode ser realizado satisfatoriamente, caso de muitas dessas crianças,

evidenciam-se as diferenças e inexoravelmente, o processo de marginalização tem início.

Retomando aquela frase tantas vezes repetida: “tirá-las da rua”, pode se

associar a ela um outro sinônimo: “eliminá-las do meu campo de visão”. Intenção

claramente expressa em pelo menos seis das vinte e duas entrevistas. Quem resume de

maneira tão simplista a questão do menor carente, realmente acredita que o direito à

cidadania pertence a alguns setores seletos da sociedade. E mais que isto, dirige a essas

crianças olhares de desaprovação ou indiferença, palavras ásperas ou protagonizam atos

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vexatórios que as desvalorizam diante de um público apático. O grau em que tais atitudes

afetam a auto-estima desse grupo não pode ser calculado com exatidão mas é inegável que

prejudicam a construção de uma personalidade íntegra.

Crianças maltrapilhas, sujas, com nariz escorrendo, piolhos nos cabelos

eriçados e pernas marcadas por pústulas são associadas àquelas das imagens dos

noticiários dos “jornais sangüinolentos” ou inspiram sentimento de comiseração. “A

singularidade do menino de rua deriva da supressão imaginária de todos os laços que o

integram em malhas sociais específicas. Tal supressão das dimensões sociais, seus laços,

compromissos, obrigações, direitos e deveres é que alimenta a piedade piegas” (MILITO

e SILVA, 1995).

5. As crianças pelos seus registros gráficos

A metodologia contemplava 5 temas para os desenhos que, em síntese,

enfocavam o ambiente da feira e do bairro. As crianças, quando não desenhavam garatujas

típicas de pré-escolares mas inadequadas para as idades em questão, apresentavam uma

série de esquemas “casa-árvore-sol”. Segundo DI LEO (1991), esse tipo de esquema é

freqüente nos desenhos espontâneos de crianças em todo o mundo, confirmando a

universalidade básica da mente e dos sentimentos. Em algumas dessas ocasiões, tais

esquemas vieram acompanhados de reações emotivas, desviando-nos, embora não

totalmente, da prioridade de investigar a percepção ambiental das crianças por meio de

seus registros gráficos. Houve um entendimento rápido e eficiente entre pesquisadores e

pesquisados, contudo, a prioridade das crianças era outra: encontrar um espaço permissivo

para dar vazão às suas questões emocionais.

Semelhante resultado constatou NIEMEYER (1994) que em um estudo da

favela, desenhos de crianças e adolescentes registravam conteúdos emocionais de tal feita

que impediram que estas representações fossem incorporadas ao trabalho, necessitando de

parcerias com psicólogos para avaliar as dimensões espaciais dos “mapas mentais”.

Um evidente grau de regressão e desajuste emocional acompanhava o grupo

enfocado, seja no comportamento ou em seus respectivos desenhos. Embora passível de

erros na interpretação dos desenhos, não seria justo deixar de lado resultados que parecem

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indicar um alerta pela exaustiva repetição de traços que convergem para um quadro de

comprometimentos no desenvolvimento normal destas crianças.

Houve registros gráficos simbolizando morte, depressão, inadequação,

ansiedade, regressão e agressividade contida; outros esboçaram um quadro mais leve:

criatividade, relação entre conteúdo didático aplicado à realidade e a representação da

feira como local de lazer.

DI LEO (1991) observa que a criança desenha projetando um desejo, ou então,

uma tentativa de possuir o objeto; enquanto na realidade, não o obtém, a imagem do

mesmo faz parte de sua posse.

Uma repetição exaustiva do esquema “casa-árvore” pôde ser verificada. Seria

correto inferir que estaria indicando uma necessidade voltada para um ambiente mais

saudável, arborizado e limpo? Se esta hipótese for válida, a percepção ambiental destas

crianças aponta para o que lhes é privado, mas em absoluto, não deixa de fazer parte de

seus direitos mesmo sem se darem conta desse fato.

Alguns desenhos estabeleceram analogia entre movimento e vida, portanto,

flores e árvores ficaram fora desta categorização. DI LEO (op. cit.) cita que o movimento

por suas próprias forças é a única maneira pela qual a criança sabe que alguma coisa está

viva.

6. Considerações finais

“A sombra não é o todo da personalidade inconsciente: representa qualidades e

atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego - aspectos que pertencem sobretudo

à esfera pessoal e que poderiam também ser conscientes. Sob certos ângulos a sombra

pode, igualmente, consistir de fatores coletivos que brotam de uma fonte situada fora da

vida pessoal do indivíduo” (JUNG, 1964). Conteúdos inconscientes, se reprimidos ou

rejeitados, podem vir à tona de maneira destrutiva sob a forma de emoções negativas. As

projeções deturpam a imagem que se constrói do próximo pois se visualiza neste, aquilo

que pertence ao próprio indivíduo.

O menor, como estes do nosso estudo, assume, sem o saber, o lado “sombra” da

sociedade. Os dizeres da psicoterapeuta junguiana LUCIANI DEGASPARI (informação

pessoal), esclarecem esse aspecto: ‘Se cada um cuidasse melhor da sua “criança

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abandonada e marginalizada” interior, não seria preciso reprimi-la e “jogá-la na sombra”.

E, agindo assim, não seria necessário projetar, no menor carente, nossas emoções

conflitantes. A “cesta básica” é só uma das bases para se enfrentar um problema de ordem

tão complexa’. É preciso antes nutrir a alma de sentimentos verdadeiramente humanos

para que se possa enxergar no diferente a mesma essência.

7. Referências Bibliográficas

DERDYK, E. Formas de Pensar o Desenho. Scipione Ltda., 1989. 238 p.

DI LEO, J.H. A Interpretação do Desenho Infantil. 3. ed., Artes Médicas, 1991. 218 p. JOCHIM, M.A. Strategies for survival: Behavior in an Ecological Context. 1981.107 p.

JUNG, C.G. O Homem e seus Símbolos. Nova Fronteira, 1964. 316 p.

KUNIEDA, E. Estudo Preliminar sobre Percepção Ambiental através dos Desenhos

das Crianças do Jardim Gonzaga. 1997. 65 f. Monografia (Bacharelado em Ciências

Biológicas) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.

MELLO, L.G. Antropologia Cultural: iniciação, teoria e temas. 6ª edição, Ed. Vozes,

Petrópolis, RJ, 1995.

MILITO, C.; SILVA, H.R.S. Vozes do Meio – Fio. Relume Dumará, 1995. 192 p.

NIEMEYER, A.M.de Desenhos e Mapas na Orientação Espacial: Pesquisa e Ensino de

Antropologia. UNICAMP, 1994. 24 p.

NORDI, N. Os Catadores de Caranguejo-Uçá (Ucides cordatus) da Região de Várzea

Nova (PB): Uma Abordagem Ecológica e Social. 1992. 107 f. Tese (Doutorado em

Ecologia e Recursos Naturais) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.

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ethnographic and archeological analysis., p.37-65, 1981.

SUDAN, D.C. Uma Abordagem Ecológica da Coleta de Alimentos na Feira, Realizada

por Crianças do Jardim Gonzaga e sua Relação na Subsistência das Famílias. 1997. 48

f. Monografia (Bacharelado em Ciências Biológicas) – Universidade de São Carlos, São

Carlos.

VAN KOLCK, O.L. Interpretação Psicológica de Desenhos. Pioneira Ltda., 1968.179 p.

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