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DIMENSÕES vol. 20 - 2008 195 AS CRÔNICAS COLONIAIS E A PRODUÇÃO DE SENTIDOS PARA O UNIVERSO INCAICO E O PASSADO DAS ORIGENS DO TAWANTINSUYO SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA Professora da ISPAM-DF Resumo Este artigo apresenta uma análise das crônicas produzidas no período colonial a respeito dos incas e das tradições históricas das origens do Tawantinsuyo. A partir dos referenciais teóricos da Etnohistória, da História do Imaginário, da Análise do Discurso e das Representações Sociais, revela alguns questionamentos e análises em torno das condições de produção, manutenção e funcionamento dessas crônicas, bem como do imaginário, dos regimes de verdade e das representações que as informam. Palavras-chaves: incas, crônicas, Etnohistória. Abstract This article presents an analysis of the chronicles produced in the colonial period regarding the Inca and of the historical traditions of the origins and expansion of Tawantinsuyo. Starting from the theoretical references of Etnohistory, of the History of the Imaginary, of the Analysis of the Speech and of the Social Representations, reveals some analyses around the production conditions, maintenance and operation of these chronicles, as well as of the imaginary, of the truth regimes and of the representations that inform them.

AS CRÔNICAS COLONIAIS E A PRODUÇÃO DE SENTIDOS PARA O UNIVERSO INCAICO E O PASSADO DAS ORIGENS DO TAWANTINSUYO

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DIMENSÕES vol. 20 - 2008 195AS CRÔNICAS COLONIAIS E A PRODUÇÃO DESENTIDOS PARA O UNIVERSO INCAICO E O PASSADODAS ORIGENS DO TAWANTINSUYOSUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRAProfessora da ISPAM-DF

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    AS CRNICAS COLONIAIS E A PRODUO DESENTIDOS PARA O UNIVERSO INCAICO E O PASSADODAS ORIGENS DO TAWANTINSUYO

    SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRAProfessora da ISPAM-DF

    Resumo

    Este artigo apresenta uma anlise das crnicas produzidas no perodocolonial a respeito dos incas e das tradies histricas das origens doTawantinsuyo. A partir dos referenciais tericos da Etnohistria, da Histriado Imaginrio, da Anlise do Discurso e das Representaes Sociais, revelaalguns questionamentos e anlises em torno das condies de produo,manuteno e funcionamento dessas crnicas, bem como do imaginrio, dosregimes de verdade e das representaes que as informam.

    Palavras-chaves: incas, crnicas, Etnohistria.

    Abstract

    This article presents an analysis of the chronicles produced in the colonialperiod regarding the Inca and of the historical traditions of the origins andexpansion of Tawantinsuyo. Starting from the theoretical references ofEtnohistory, of the History of the Imaginary, of the Analysis of the Speechand of the Social Representations, reveals some analyses around theproduction conditions, maintenance and operation of these chronicles, aswell as of the imaginary, of the truth regimes and of the representations thatinform them.

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    Key words: incas, chronicles, Etnohistory.

    1. Problemtica e desafios

    Quando os espanhis desembarcaram no litoral peruano, por volta de1532, os incas exerciam controle poltico e econmico sobre umavasta regio da Amrica do Sul, que abarcava os planaltos andinos,da Colmbia at as regies do Chile e da atual Argentina, das costas doPacfico at a floresta amaznica, tendo o Peru como centro poltico,econmico e demogrfico. Tawantinsuyo era o nome dado pelos incas aseus domnios, significando a tierra de los cuatro suyos ou as cuatro regionesunidas entre si (Rostworowski, 1999: 19), j que se encontrava divididoem quatro grandes regies (Chinchaysuyu, Antisuyo, Collasuyu eCuntisuyu) habitadas por uma multiplicidade de etnias1.

    A grandiosidade, a diversidade, a riqueza e a complexa organizao doTawantinsuyo atraram fortemente a ateno dos espanhis que, emboraimpressionados e mesmo incomodados ante o inusitado, tinham urgncia deum (re)conhecimento dessa humanidade estranha e desconhecida. Asurpreendente diferena confrontada criava a necessidade de ser reconhecida,ou melhor, incorporada, para atenuar seu contedo perturbador,desconhecido, para a Espanha, de forma a assegurar a esta seu poder denomeao, sua posio de dominao nos territrios americanosconquistados. Para o projeto de colonizao e domesticao das terras epovos confrontados na Amrica, especialmente no Tawantinsuyo, eraindispensvel um conhecimento da terra e do mar, das coisas naturais e morais,espirituais e temporais, eclesisticas e seculares, passadas e presentes, nassuas dimenses informativas, prescritivas e organizacionais. De tal necessidadesurgiram crnicas2, cartas, dirios, tratados, relatrios de servios, dentreoutros discursos reveladores das variadas e sucessivas tentativas decompreenso e explicao da existncia do Tawantinsuyo.

    Desde o sculo XV, os cronistas penetraram na Amrica por mandatoreal, visto que as ordenanas sobre conquistas e descobrimentos prescreviam,aos que fossem explorar as terras americanas, que levassem um Veedor geralmente um funcionrio da Coroa, capito, soldado ou membro do clero(missionrio) para atuar como escrivo responsvel pela descrio da terra,de suas riquezas e dos usos e costumes de seus habitantes (Mignolo, 1998:

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    78).Por volta de 1540, os cronistas comearam a realizar suas primeiras

    aproximaes da cultura incaica. No incio daquela dcada, quando CristbalVaca de Castro governava o Vice-reino do Peru, realizaram-se reuniescom o propsito de interrogar os antigos quipucamayos e amawtas doTawantinsuyo. Os quipucamayos eram os especialistas andinos no manuseiodos quipus um sistema de registro de informaes quantitativas (Pease,1995: 22-23) a respeito dos impostos, leis, batalhas, observaes dos astros,calendrios, colheitas, populaes, etc., que servia-se de conjuntos decordes de distintas cores e comprimentos, articulados entre si de diversasformas e com ns em distintas posies (Natalino, 2004: 161). Como bematenta Eduardo Natalino, no sabemos se os quipus eram tambm utilizadosno registro de informaes no numricas, desse modo possuindo umadimenso narrativa, j que no temos

    nenhuma leitura, traduoou verso colonial reconhecida e aceita de seussupostos contedos no-numricos, apesar de que, como veremos, algunscronistas do incio do Perodo Colonial relataram que seus informantes andinosutilizavam-se de quipus para responder aos questionamentos acerca de suasorigens e histria. Tais relatos coloniais so utilizados como argumento pelosque defendem que os quipus serviam tambm para o registro de informaesno-numricas, as quais serviam de base para narrativas que dependiam deuma tradio oral articulada. Desse modo, creio que no devemos dar a polmicapor encerrada (Idem: 161).

    J os amawtas eram tambm funcionrios responsveis pela manutenode tradies histricas e sagradas. Eles eram, ao mesmo tempo, msicos,poetas e sacerdotes, responsveis pela celebrao da grandeza dos incas,conservando-lhes assim a memria. Os saberes dos amawtas eram altamentevalorizados, o que lhes garantia algum status e privilgio na sociedade.

    Os cronistas estiveram, assim, entre os primeiros autores a relatar tanto aprpria experincia vivenciada, como a observada nos Andes Centrais: osaspectos fsicos e naturais, bem como os hbitos, costumes, rituais e histriasde tempos passados, enfim, tudo o que viam e ouviam dizer alm do quelhes era relatado pelos prprios incas se constituiu em objeto de suasnarrativas3.

    As crnicas produzidas por espanhis envolvidos no processo decolonizao e evangelizao4 do Vice-reino do Peru, e por alguns ndios emestios cristianizados nos sculos XVI e XVII5 constituem as principais

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    fontes de pesquisa utilizadas pelos historiadores no estudo do passado dasorigens do Tawantinsuyo. Como bem observou Natalino, a escassez defontes documentais produzidas pelas tradies histricas indgenas emtempos pr-hispnicos ou coloniais deve estar relacionada

    ao papel preponderante que era desempenhado pelas narrativas orais e porformas de registro muito distintas das que tradicionalmente reconhecemoscomo tais, como por exemplo os ceques. Soma-se a isso, a nossa incapacidadede entender completamente os sentidos que eram veiculados por fontes comoos quipus, os pallares ou os tocapus (2004: 177).

    Devido a tal deficincia, os pesquisadores utilizam tambm como fontesde pesquisa os indcios materiais/arqueolgicos andinos e os trabalhosantropolgicos realizados no sculo XX, os quais, segundo Natalino,demonstram a vigorosa continuidade das tradies orais andinas,responsveis pela manuteno de relatos muito semelhantes aos poucos queforam transcritos no Perodo Colonial (Idem: 177).

    No entanto, a utilizao das crnicas como fontes de pesquisa aindasuscita uma srie de indagaes e desafios. A partir dos referenciais tericosda Etnohistria, da Histria do Imaginrio, da Anlise do Discurso e dasRepresentaes Sociais, apresentaremos neste artigo alguns questionamentose anlises em torno das condies de produo, manuteno e funcionamentodas crnicas a respeito dos incas e do passado das origens do Tawantinsuyo.Neste trabalho, buscamos observar os imaginrios, os regimes de verdade,os dispositivos de poder e as representaes que perpassaram os sentidosimbricados nesses discursos6.

    Na segunda metade do sculo XX, a Etnohistria7 propiciou uma grandetransformao nos estudos histricos, rompendo muitas concepesarraigadas sobre a documentao e abrindo-se interdisciplinaridade. Noestudo das particularidades culturais, essa nova rea de estudo lanou umnovo olhar sobre as crnicas, os mitos, as festas, os rituais sagrados, aiconografia, os monumentos, os vestgios arqueolgicos e propugnou avalorizao do saber no-letrado e da tradio oral (Neto, 1997: 326).Segundo Edgard F. Neto, a valorizao de toda a sorte de documentossignificou um aprofundamento significativo da sensibilidade para com os maisdiversos aspectos da experincia humana e a incorporao de desafiantestarefas metodolgicas (Idem: 327-328).

    A partir da dcada de 1970, a Etnohistria produzida sobre os Andespr-hispnicos e coloniais buscou revelar e explicitar as especificidades e

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    originalidades das sociedades andinas8. Dentre os principais representantesdessa tendncia, destacam-se John V. Murra, John H. Rowe, R. Tom Zuidema,Waldemar Espinoza Soriano, Franklin Pease e Maria Rostworowski. Aquelassociedades que haviam sido estudadas e interpretadas a partir de um pontovista eurocntrico e colonialista comearam a ser vistas a partir de novascategorias antropolgicas, que permitiram leituras diferentes das tradicionaisfontes andinas e de algumas crnicas.

    Alguns estudiosos passaram a questionar as condies de produo dascrnicas e a refocalizar o passado das sociedades andinas sob novasperspectivas. Nesse processo, os etnohistoriadores observaram o grandedesafio de se analisar as tradies histricas pr-hispnicas que haviam sidorecolhidas pelos cronistas nas circunstncias de conquista e aculturao. Ascrnicas e os documentos da burocracia colonial, enquanto fontes de pesquisa,ganharam novo status, medida que os estudiosos passaram a admitir queessas fontes, forjadas sob o ponto de vista colonialista, cristo e europeudos sculos XVI e XVII, no podiam constituir um retrato fiel da realidadeincaica, mas apenas veculos de representaes acerca da organizao eestrutura do Tawantinsuyo (Zuidema, 1964; Urton, 2004).

    Franklin Pease (1995: 122) criticou a utilizao indiscriminada das crnicascomo fontes de pesquisa, mas destacou a importncia de sua utilizao paraa compreenso das categorias que proporcionaram a apreenso da realidadeincaica. Mesmo reconhecendo os limites das crnicas para tratar dassociedades andinas, bem como de todo e qualquer discurso sobre o passado,alguns pesquisadores no abandonaram essas narrativas como fontes depesquisa, mas passaram a utiliz-las em sua dimenso de documentosconstrudos e no reflexos do real. Alm disso, os pesquisadoresreconheceram que, apesar de as crnicas terem sido escritas sob o ponto devista espanhol, elas ainda deixavam indcios para a percepo da materialidadeandina9.

    Em meio aos questionamentos produzidos pelos etnohistoriadores,encontramos a possibilidade de empreender um estudo dessas crnicas apartir de um conjunto interdisciplinar de teorias, que envolve alguns elementosda Anlise do Discurso, os conceitos de Imaginrio e Representaes Sociais,bem como as reflexes de Michel Foucault acerca dos regimes de verdadee dispositivos de poder em sociedade.

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    2. O processo de produo de sentidos

    Na perspectiva da Anlise do Discurso, tratamos as crnicas comodiscursos, como formas de linguagens sociais produzidas numa determinadapoca e lugar. Isso porque os discursos constituem atos de fala impressos,formas de linguagens em ao ou prticas discursivas (Maingueneau, 1997:29). Na acepo de Eni Pucinelli Orlandi,

    A Anlise de Discurso, como seu prprio nome indica, no trata da lngua, notrata da gramtica, embora essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. Ea palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idia de curso, de percurso,de correr por, de movimento. O discurso assim palavra em movimento, prticade linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando. (...) Naanlise de discurso, procura-se compreender a lngua fazendo sentido,enquanto trabalho simblico, parte do trabalho geral, constitutivo do homeme da sua histria (2003a: 15).

    A partir desse referencial, percebemos as crnicas como lugares designificao, de confronto de sentidos, de estabelecimento de identidades,de argumentao (Orlandi, 1990: 18). As crnicas escritas sobre os incasconstituem discursos que produziram e produzem efeitos de sentidos a seremcompreendidos nas condies em que apareceram e nas de hoje. Assim, aanlise das crnicas nos permite apreender as memrias e as tradies queestruturaram o universo incaico como significados presentes nos diferentesdiscursos construdos sobre o mesmo (Pesavento, 2004: 42).

    o Imaginrio Social que nos informa acerca do real, tornando-ointeligvel e comunicvel atravs da produo dos discursos nos quais epelos quais se efetua a reunio das representaes coletivas numa linguagem(Baczko, 1985: 311). Desse modo, percebemos as imagens e valoresveiculados nas crnicas produo precpua do Imaginrio Social a respeitodos incas e o Tawantinsuyo como resultados das atividades interpretativas erepresentacionais de seus autores. Como bem atenta a historiadora TaniaNavarro-Swain,

    No podemos, porm, esquecer que as prprias fontes expressam e somediadas pelo olhar de seus autores. Isso no significa, como querem alguns,reduo da realidade ao discurso, mas apenas a constatao que os indcios impressos ou imagticos do real so incontornavelmente textuais, construdosde um lcus especfico de fala, apesar de suas linguagens especficas (2006:web).

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    A partir de suas mediaes sociais, os cronistas veicularam em seusdiscursos Representaes Sociais, uma modalidade de conhecimento quepermite que os atores sociais atribuam um sentido aos seres e s coisas(Schiele & Boucher, 2001: 363). Na acepo de Denise Jodelet, asRepresentaes Sociais constituem

    Forma[s] de conhecimento[s], socialmente elaborada[s] e partilhada[s], comum objetivo prtico, e que contribuem para a construo de uma realidadecomum a um conjunto social (...) [Ou seja, como] sistemas de interpretao queregem nossa relao com o mundo e com os outros orientam e organizam ascondutas e as comunicaes sociais (2001: 22).

    Esse ato produtor e ordenador de sentidos, que se revela na elaboraodas Representaes Sociais, possui uma fora poderosa e inevitvel na vidaem sociedade, pois, como bem assinala Spivak e Medrado,

    o sentido uma construo social, um empreendimento coletivo, maisprecisamente interativo, por meio do qual as pessoas na dinmica das relaessociais historicamente datadas e culturalmente localizadas constroem ostermos a partir dos quais compreendem e lidam com as situaes e fenmenosa sua volta (2000: 41).

    No podemos deixar de considerar a existncia e as mltiplas funes doImaginrio Social como receptculo das representaes. Sandra JatahyPesavento, ao comentar as concepes do historiador Bronislaw Baczko arespeito do imaginrio, declara que

    O imaginrio histrico e datado, ou seja, em cada poca os homens constroemrepresentaes para conferir sentido ao real. Essa construo de sentido ampla, uma vez que se expressa por palavras; discursos/sons, por imagens,coisas, materialidades e por prticas, ritos, performances. O imaginrio comportacrenas, mitos, ideologias, conceitos, valores, construtor de identidades eexcluses, hierarquiza, divide, aponta semelhanas e diferenas no social. Ele um saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a coeso e o conflito(2004: 43).

    Devemos observar as condies imaginrias de produo e as significaesdas representaes dos incas nas crnicas coloniais. Isso porque o imaginrioque comporta essas representaes funcionou como uma das forasreguladoras da sociedade colonial andina. Como bem atenta Baczko, atravsdos seus imaginrios sociais, uma coletividade designa a sua identidade;

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    elabora uma certa representao de si; estabelece a distribuio dos papise das posies sociais; exprime e impe crenas comuns (1985: 309).Assim, a Anlise do Discurso no menospreza a fora do imaginrio naconstituio do social, destacando-o como parte necessria do funcionamentoda linguagem. Segundo Orlandi, Ele eficaz. Ele no brota do nada:assenta-se no modo como as relaes sociais se inscrevem na histria e soregidas, em uma sociedade como a nossa, por relaes de poder (2003a:42).

    As imagens que os cronistas possuam a respeito do passado das origensdo Tawantinsuyo no foram formuladas ao acaso. Podemos dizer que elasse constituram no confronto do simblico com o poltico, em processosque ligam discursos e instituies (Orlandi, 2003a: 42). No no dizer emsi mesmo que o sentido das tradies histricas incaicas pode ser mtico oufabuloso, nem tampouco definido pelas intenes de quem disse. precisoreferi-lo s suas condies de produo, que, segundo Orlandi,

    implicam o que material (a lngua sujeita a equvoco e a historicidade), o que institucional (a formao social, em sua ordem) e o mecanismo imaginrio. Essemecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentrode uma conjuntura scio-histrica (2003a: 40).

    Nessa perspectiva, necessrio considerar as relaes que os discursosmantm com sua memria e remet-los sua formao discursiva paracompreender o processo de produo de sentidos para o passado dos incase do Tawantinsuyo. Segundo Maingueneau e Charaudeau, os discursos tmrelao com a memria medida que compartilham saberes e crenas sobreo mundo, remetendo a um enunciado precedente, apoiando-se numa tradio,mas tambm criando, pouco a pouco, sua prpria tradio (2004: 325-326). As crnicas mantm essa relao com a memria interdiscursiva (Idem:325) medida que esta evoca tanto as narrativas orais dos povos andinos,como os discursos teolgicos dos primeiros padres da Igreja e os textosbblicos, para participar da interpretao dos acontecimentos.

    De acordo com Michel Foucault, a formao discursiva serve paradesignar conjuntos de enunciados que podem ser associados a um mesmosistema de regras historicamente determinadas. Os discursos se inscrevemem diferentes formaes discursivas que delimitam os seus conceitos, objetos,escolhas temticas, modalidades de enunciao, posies e funcionamentos.As regras de formao so condies de existncia (mas tambm decoexistncia, de manuteno, de modificao e de desaparecimento) emuma dada repartio discursiva (Foucault, 2004: 43). A formao discursivadetermina assim o que pode e deve ser dito, por quem e para quem. A

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    memria tambm inseparvel do modo de existncia de cada formaodiscursiva, que tem uma maneira prpria de gerir essa memria (Maingueneau& Charaudeau, 2004: 325). Com isso, as palavras derivam seus sentidosdas formaes discursivas em que se inscrevem. Como bem atenta Orlandi, pela referncia formao discursiva que podemos compreender, nofuncionamento discursivo, os diferentes sentidos (2003a: 43-44).

    As crnicas10 produzidas nos sculos XVI e XVII a respeito da Amricae seus habitantes integram uma formao discursiva na qual circula um conjuntode enunciados que compartilham de um mesmo sistema de regrashistoricamente determinadas, criadas pelo entrelaamento de valores,representaes, saberes, normas, instituies, poderes, por aquilo, enfim,que compe o tecido social (Maingueneau & Charaudeau, 2004: 241). apartir dessa tessitura que o universo incaico apreendido e comunicado. Oinstitucional influi nas condies de produo das crnicas que sofreram,desde o sculo XV, com os Reis Catlicos, um maior controle por parte daCoroa e da Igreja. Mediante uma srie de dispositivos institucionais, laicos ereligiosos, determinava-se o que podia e o que no podia ser dito nas crnicas(Carnavaggio, 1994: 103). Essas instituies sujeitavam, assim, o cronista,submetendo-o s suas regras, condio essa que lhe concedia legitimidade eautoridade de fala. Como pessoa autorizada a falar pelos poderes institucionaisde sua poca, o cronista estava, portanto, credenciado a reproduzir apenasum tipo particular de discurso o discurso histrico pico11; como enunciadordesse discurso, apenas a ele so conferidos reconhecimento e autoridade,desde que o discurso seja enunciado sob as formas legitimadas (Oliveira,2001: 10). A censura espanhola, um dos dispositivos mais explcitos dessepoder de fala, controlava tudo o que podia ser publicado. Um de seusmais ativos e atuantes dispositivos institucionais, o Santo Ofcio da Inquisio,desempenhou nesse contexto o papel de controle da sociedade, por meioda vigilncia da leitura e publicao de obras (Idem: 11).

    As crnicas estiveram, assim, atravessadas por uma vontade de verdade,pelos poderes de nomear e classificar; e, como discursos reconhecidos eautorizados de sua poca, exerceram uma espcie de presso, um poder decoero sobre outros discursos possveis a respeito dos incas e seu passado.Essa vontade de verdade12 que atravessa as crnicas acabou por desenharplanos de objetos possveis, observveis, mensurveis, classificveis, queimpunham ao sujeito/cronista uma certa posio, olhar e funo, ao prescreveras formas de apreenso, os conhecimentos verificveis e teis a respeito daAmrica e os seus habitantes. Apoiadas sobre um suporte institucional

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    religioso e governamental, eram, ao mesmo tempo, conduzidas e reconduzidaspor todo um conjunto de prticas sociais.

    3. As tradies histricas das origens do Tawantinsuyo

    Os cronistas apreenderam as histrias a respeito do passado das origensdo Tawantinsuyo como narrativas mticas como discursos fabulosos,demonacos e legendrios, que diziam respeito s aes memorveis dosheris e heronas ancestrais (tidos tambm como huacas seres sagrados/divinizados), responsveis pela fundao e expanso do governo dos incassobre os Andes. Essas narrativas tratam especialmente dos fundamentospolticos e religiosos do Tawantinsuyo, j que descrevem os valores, osconceitos e as normas em torno das quais deviam ser estruturadas asidentidades, as relaes de parentesco, as hierarquias e os papis sociais nasociedade incaica. No por acaso, as tradies orais que davam sentidosno s s huacas, mas tambm ao passado, s transformaes sociais, sidentidades e organizao social dos incas foram interpretadas pelos cronistascomo mitos. Como bem declara Franklin Pease,

    Os autores del siglo XVI recogan mitos a raz de un genuino interess por lapoblacin de las nuevas tierras, y usaban esos mitos para componer sushistorias; en cambio, la mayora de los extirpadores de las idolatrias del sigloXVII recogieron mitos dentro de un proceso judicial contra los falso dioses ysus adoradores, entre sus tareas de evangelizacin. Condenando los dolos ylos templos buscaban acalhar la imagen sagrada del mundo que la poblacinandina haba elaborado durante siglos (1982: 11).

    As tradies histricas pr-hispnicas que explicavam as origens doTawantinsuyo haviam sido transmitidas de gerao em gerao no seio decertas famlias e ayllus e chegaram ainda a sobreviver durante os anos iniciaisda conquista espanhola (Favre, 1998: 71-72). No entanto, como ressaltaNatalino,

    a progressiva substituio dos aparatos estatais inca e mexicano pelocastelhano-cristo, aliada ao processo de converso religiosa, gerou umaimpossibilidade crescente de manuteno e de reproduo das tradieshistricas nativas de forma independente dos poderes castelhanos, pois seusmembros eram, tradicionalmente, parte dos antigos poderes estabelecidos,que agora encontravam-se, majoritariamente, submetidos ou aliados aoscristos (2004: 189).

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    Infelizmente, o choque da conquista espanhola comprometeu boa partedessas tradies orais e as informaes que guardavam os quipus. A apariodas hostes hispnicas, na segunda metade do sculo XVI, havia sufocado odesenvolvimento da organizao incaica (Rostworowski, 1999: 25). Naspalavras de Nathan Wachtel, esse mundo at ento inteiramente auto-subsistente (...) de repente sofreu um choque brutal e sem precedentes: ainvaso de homens brancos vindos da Europa, o impacto de um mundoprofundamente diferente (1997: 195). Nesse processo, as tradies locaisde registro da memria estiveram vulnerveis s presses coloniais.

    Alguns cronistas, dentre eles Sarmiento de Gamboa, Molina, Garcilaso eAcosta, tenderam a chamar de mitos, fbulas, sonhos e contos aquelas histriasque pertenciam s tradies orais indgenas, que no encontravam sentidosno horizonte cultural cristo europeu. A narrativa do Outro foi assim marcadapor uma retrica da alteridade (Hartog, 1999: 229-272) que transportavao Outro ao mesmo, ou seja, que transportava a diferena para um universobastante familiar aos europeus, ao dos mitos, dos contos e das fbulas.Designar a narrativa do Outro como mentira, mito ou fico foi tambm umaestratgia, da parte dos cronistas, para validar suas prprias narrativas comomais srias e verdadeiras. Como bem afirmou o cronista e jesuta Jose deAcosta13,

    Saber lo que los mismos indios suelen contar de sus principios y origen, no escosa que importa mucho, pues ms parecen sueos los que refieren, quehistorias. (...) Mas de qu sirve aadir ms, pues todo va lleno de mentira, yajeno de razn? Lo que hombres doctos afirman y escriben es, que todo cuantohay de memoria y relacin de estos indios llega a cuatrocientos aos, y quetodo lo de antes es pura confusin y tinieblas, sin poderse hallar cosa cierta. Yno es de maravillar, faltndoles libros y escritura, en cuyo lugar aquella su tanespecial cuenta de los quipocamayos es harto y muy mucho, que pueda darrazn de cuatrocientos aos. ([1590] 1999, Libro I, cap. XXV).

    Na acepo de Acosta, a falta de registro escrito das histrias contadaspelos ndios a respeito do seu passado as fazia perderem veracidade e crdito,j que no imaginrio europeu da poca somente a linguagem escrita seriacapaz de preservar na memria o passado. O relato escrito era consideradoo retrato fiel do real, o que lhe garantia legitimidade, autoridade e superioridadeperante outras formas de linguagens, especialmente perante as linguagensorais e iconogrficas amplamente utilizadas pelos ndios.

    A escrita se faz, assim, como critrio de diferenciao entre europeus eamerndios. Aqueles que detm a escrita (europeus, hombres doctos) passam

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    a serem vistos como detentores de um discurso verdadeiro, enquanto que odiscurso do Outro, expresso em outra linguagem, ganha o sentido de falso.Desse modo, os cronistas estabelecem suas verdades a respeito da Amrica,silenciando ou remodelando as vozes indgenas.

    No surpreende que, na viso de Sarmiento de Gamboa (1523-1592),as histrias contadas pelos ndios peruanos a respeito do seu passado spudessem figurar como fbulas de brbaros, opiniones ciegas e cuentosdel demnio (1988: 39). Numa viso marcadamente eurocntrica edemonolgica, esse cronista deprecia os saberes indgenas, imprimindo-lhesum sentido demonaco que, no imaginrio cristo europeu do sculo XVI,figurava como algo fundamental para se entender o Outro e sua diferena.Ao classificar as tradies histricas indgenas, Sarmiento inscreve seudiscurso numa formao discursiva que imposta pelas formas legtimas eautorizadas de enunciao da memria acerca do passado do Tawantinsuyo.

    O termo mito foi tambm uma das armas de dominao intelectual doOcidente moderno, que buscou chamar de mito, tudo aquilo que poderiarivalizar com sua prpria ortodoxia do momento. Na Europa dos sculosXVI e XVII, as narrativas traduzidas como mticas convocavam todos osfantasmas da alteridade, fundamentando-se assim em um processo deexcluso da narrativa do Outro como algo profano, indecente, grosseiro,abominvel, infame, absurdo e escandaloso (Detienne, 1992: 15-47). Esseprocedimento parecia evitar que as histrias contadas pelos prprios ndiosrivalizassem com a ortodoxia e os valores cristos colonialistas, e quepromovessem um questionamento da validade dos conceitos, dogmas evalores que os espanhis desejavam introduzir na Amrica. Como bem disseGiulia Lancini, a funo do mito ento a de tornar dizvel o que no temnome, evitando, assim, a vertigem da perda de referncia no oceano dodiverso (1991: 24). Nesse sentido, a denominao mito ocultava outraslinguagens e sistemas de pensamentos, diferentes do racional e cristoseuropeus, que estruturavam o social. Evitava-se, desse modo, que os taisdiferentes sistemas de pensamento e linguagens revelassem outraspossibilidades de existncia para homens e mulheres em sociedade, alm deoutras atitudes com relao ao passado, ao sagrado, natureza e ao corpo.

    As tradies histricas pr-hispnicas ganharam novo enfoque naperspectiva da Etnohistria. Os saberes recolhidos das tradies oraisamerndias, que antes haviam sido relegados pela historiografia tradicionalao domnio dos mitos, das fbulas e das lendas como produtos do espritohumano primitivo que no resistiam prova dos fatos e que deviam ser

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    rejeitados pela histria , passaram a ser vistos como conhecimentos quepodiam traduzir em linguagem simblica ensinamentos e valores referentes vida social e histria. Da por diante, essas tradies vm sendo includasna anlise histrica, e compreendidas a partir de diferentes pressupostosque circulam nas cincias humanas.

    Zuidema (1964) argumentou que as representaes mticas presentes nascrnicas sintetizavam as concepes andinas acerca de como deviamestruturar-se as hierarquias e a histria. Gary Urton (2004: 27) observouque as histrias registradas nas crnicas sobre tempos pr-hispnicos podemser consideradas como mitos ou lendas a partir do surgimento de uma tradioliterria de histrias oficiais durante as primeiras dcadas posteriores conquista espanhola, historicizando a mitologia incaica. Desse modo, oautor destacou o status ambguo mtico/histrico dos relatos oferecidos peloscronistas, ou seja, que todas aquelas histrias registradas nas crnicas,descrevendo eventos, pessoas e lugares pr-hispnicos representam mito-histrias (Idem: 21). Segundo Urton, esse termo denota de maneira maisclara o potencial idntico e simultneo do status mtico e histrico dos relatoscontidos nessas narraes. Nessa perspectiva, Urton escreveu a Historiade um mito: Pacariqtambo y el origen de los Inkas ([1990] 2004), emque apresenta um estudo sobre o passado das origens dos incas, afirmandoque o propsito de seus estudos no era o de historicizar o contedo dosciclos mticos das origens centrado em Pacariqtambo, porque isso nodiminuiria o carter fabuloso e de riqueza simblica desta tradio mtico-histrica. Desse modo, o autor buscou explorar os processos sociais,polticos, individuais e coletivos subjacentes na

    creacin de representaciones historicistas del mito de origen y las utilizacionesque fueron dadas a esas representaciones, comezando en los nosimediatamente posteriores a la conquista espaola del Peru (2004: 27).

    Urton justifica que as histrias registradas, tanto nas crnicas espanholascomo nas indgenas, so ainda de importncia central para a interpretaodas sociedades andinas, tanto pr-hispnicas como ps-coloniais, j queesse corpo de conhecimentos formou a base sobre a qual os povos andinoscomearam a construir e reinterpretar seu prprio passado (2004: 21).

    Percebemos os mitos, veiculados nas crnicas, como relatos histricos,formas de conhecimentos que produzem sentidos para o passado das origensdo Tawantinsuyo. Esses relatos recolhidos das tradies orais andinas

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    constituam discursos que justificavam, atualizavam e codificavam as crenase prticas sociais, ou seja, que emprestavam sentidos ao real. Os relatosdessas histrias abrigavam, ao mesmo tempo, a atualizao da cultura e aformao das subjetividades, pois, ao cont-las, os sujeitos estavam apoiadosna memria, e esta, segundo Le Goff, no momento em que acionada fazintervir no s a ordenao de vestgios, mas a releitura destes vestgios(1992: 424). A tradio oral dos incas, apoiada na memria, apresenta umadinmica contnua, uma capacidade de atualizao cultural permanente, poiscada vez que ela era acionada a partir de um tempo presente fazia com queelementos que se mantinham importantes para a cultura fossem reafirmados,bem como elementos que j estivessem obsoletos deixassem de sermencionados e novos elementos fossem introduzidos, formando as dinmicasprprias de sua atualizao cultural (Caleffi, 2004: 39). Desse modo, osmomentos em que tradies histricas eram evocadas configuravammomentos tambm de atualizao da cultura.

    As tradies histricas das origens do Tawantinsuyo, em suas atualizaestemporais, tambm emprestavam sentidos para o universo incaico frente aocolonizador espanhol, representando instrumentos de comunicao tambmutilizados para exprimir e transmitir diferentes valores e representaes,saberes instituidores de realidades.

    Quando se trata das crnicas e tambm das tradies orais incaicas, no a veracidade emprica do evento relatado que procuramos observar, aquilembrando Michel Foucault, o que importa deter so os efeitos de verdadeque produzem, o regime de verdade que os reatualiza. Nessa perspectiva,o que nos interesse a fora contida nessas tradies histricas, os valoresnelas revelados, as representaes nelas presentes. Apreendemos essasrepresentaes como

    sistemas de interpretao que regem nossa relao com o mundo e com osoutros orientam e organizam as condutas e as comunicaes sociais. Damesma forma, elas intervm em processos variados, tais como a difuso e aassimilao dos conhecimentos, o desenvolvimento individual e coletivo, adefinio das identidades pessoais e sociais, a expresso dos grupos e astransformaes sociais (Jodelet, 2001: 22).

    Os cronistas construram representaes do passado incaico a partir deseus imaginrios, apreendendo o estranho e desconhecido com conceitos evalores que lhes eram familiares. Os mitos veiculados nas crnicas constituemas suas representaes e interpretaes acerca do passado das origens do

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    Tawantinsuyo. Nessa perspectiva, o trabalho de anlise das crnicas deveconsiderar esses discursos no como algo errneo ou fictcio a respeito dosincas, mas como efeito de uma produo de sentidos em que seus autoresatualizam seus imaginrios, convices, interesses, valores, anseios, desejose identidades.

    SARMIENTO DE GAMBOA

    O Vice-reino do Peru havia se tornado um importante centro dos interessesespanhis na regio andina, sendo alvo de ampla administrao e controle.poca preponderante para isso foi o decnio 1570-1580, marcado pelavigorosa presena do Vice-rei Francisco de Toledo, considerado o grandeorganizador do sistema colonial no Peru, uma vez que, sob sua administrao,implantou-se ali o projeto colonizador de Carlos V. No por acaso, sob suagesto e proteo foram produzidas obras como a segunda parte da Historiageneral Indica [1572] e a Historia de los Incas [1572], do cronista enavegador Sarmiento de Gamboa, bem como o trabalho de levantamentode informaes em vrias cidades, dentre elas, Cuzco. Ali, foram recolhidosvrios relatos a respeito da vida e do passado dos incas, um conjuntoriqussimo de dados interpretados luz dos conceitos e valores cristoscolonialistas, que concorriam para a construo de uma imagem negativados incas e uma exaltao dos espanhis como herdeiros legtimos das terrasdo Peru.

    Na misso de desprestigiar os incas, o vice-rei Toledo encarregou seuassessor Sarmiento de Gamboa de recolher dados a partir dos relatos deancios sobre a formao da sociedade inca. Tambm confiou essa tarefade recopilao ao proco Cristbal de Molina (Relacin de las fbulas yritos de los Incas [1570]), aproveitando seus conhecimentos a respeito dosrituais e smbolos da religio nativa. A obra de Molina ficou conhecida comouma das mais importantes fontes para a compreenso da religio andina, etem sido, por isso mesmo, considerada como fonte de maior importncia(Pease, 1995: 36). Como bem assinala Pease, sua obra, junto com a deBetanzos, Cieza de Len e Sarmiento de Gamboa, participa do conjunto dedocumentos tidos como mais importantes de informaes cusquenhas daquelemomento (Idem: 36).

    A poltica de registro da memria incaica adquire um interesse peculiar apartir da administrao toledana. sob ela que se busca consolidar as relaescolonialistas de dominao, mediante vrios dispositivos como o da

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    legitimidade histrica da conquista, com a organizao da memria acercado passado incaico. Nela, discerniam-se quais os territrios conquistadospelos espanhis que haviam sido dominados ou possudos violentamentepelos incas e nomeavam-se os incas como senhores usurpadores e tirnicos,desclassificando-os, portanto, como detentores do direito s terras e aopoder exercido. Na viso de Sarmiento ([1572] 1988), os ttulos dos incasno resultavam do princpio da legitimidade, mas do uso da fora e daviolncia. Para afirmar isso, os espanhis utilizaram argumentos da teologia,dos cnones, do Direito Natural e dos justos ttulos da conquista s colnias,ou seja, todo um conjunto de argumentos convincentes e autoconvincentespara fundamentar a justeza da destituio do poder dos incas sobre os Andes.

    A respeito das origens do Tawantinsuyo, Sarmiento escreve que a seislguas do vale de Cuzco, em Pacaritambo14, surgiram oito irmos, sendoquatro homens e quatro mulheres. O mais velho dos homens se chamavaManco Capac, o segundo Ayar Auca, o terceiro Ayar Cachi, o quarto AyarUchu. Das mulheres, a mais velha se chamava Mama Ocllo, a segunda MamaHuaco, a terceira Mama Ipacura ou Mama Cura, a quarta Mama Raua(Sarmiento, [1572] 1988: 52). Partindo de Pacaritambo, esses irmos sarampelos Andes, empreendendo conquistas de terras, e chegando finalmente aCuzco, onde se estabeleceram e passaram a governar os territrios e ospovos subjugados. Ao descrever esse processo que levou os irmos e irmsincas ao estabelecimento de seus domnios, Sarmiento afirma que eles erampessoas de

    (...) feroces brios y mal intencionados, aunque de altos pensamientos. Estos,como fuesen de ms habilidad que los otros y entendiesen la pusilanimidad delos naturales de aquellas comarcas e su facilidad en creer cualquier cosa quecon alguna autoridade o fuerza se les proponga, concibieron en s que podranenseorearse de muchas tierras con fuerzas e imbuimientos. Y as juntronsetodos los ocho hermanos, cuatro hombres y cuatro mujeres, y trataron elmodo que tendran para tiranizar las otras gentes fuera del asiento donde ellosestaban, y propusieron de acometer tal hecho con violencia (...). y para sertenidos y temidos fingienron ciertas fbulas de su nacimiento, diciendo queellos eran hijos del Viracocha Pachayachachi, su creador, y que haban salidode unas ventanas para mandar a los dems. Y como eran feroces, hicironsecreer, temer y tener por ms que hombres y aun adorarse por dioses. Y asintrodujeron la relign que quisieron ([1572] 1988: 51).

    Nesse discurso, o cronista parece identificar tanto os homens como asmulheres incas com a conquista, a fora, a violncia, a idolatria e a tirania,

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    sinalizando para a representao das mulheres como tambm imbudas dessamisso conquistadora, condenada pelo cronista por ser responsvel pelainstalao de um sistema cruel, tirnico e idlatra nos Andes. As tradieshistricas e sagradas cujos sentidos foram fundantes para a dominaoincaica sobre os Andes, bem como para a instalao de determinados cultose rituais ligados a uma dinastia de homens e mulheres tidos como filhos dodeus Viracocha, foram desqualificadas por Sarmiento como fbulasinventadas pelos incas num desejo de poder. Alm disso, a religio introduzidapelos incas aparece como algo forjado cruelmente para a conquista edominao dos Andes. Desse modo, a aura sagrada que envolvia as tradieshistricas e a religio incaica desmitificada pelo cronista quando este imprimesobre elas um sentido desmoralizante e ilegtimo.

    Sarmiento, como funcionrio da Coroa e do vice-rei Toledo no Peru,procurava em seus textos dar legitimidade conquista espanhola do Peru,buscando enfatizar o carter blico, as guerras, as mentiras e as crueldadesdos incas, imprimindo imagens que desclassificavam o poder e domnio delessobre aquelas terras. Dessa forma, ele um dos artfices do chamado mitoda usurpao15, construindo uma imagem do governo e da ordem incaicacomo ilegtima e usurpadora (Iokoi, 1998: 746). Temos, pois, um saber quefoi institudo/instituidor pelas/das prticas da conquista espanhola nos Andes.No surpreende que o cronista tenha, portanto, alegado

    averiguar la tirania de los crueles incas de esta tierra, para que todas nacionesdel mundo entiendan el jurdico y ms que legtimo ttulo que el rey de Castillatiene a estas ndias y a otras tierras a ellas vecinas, especialmente a estosreinos del Per (Sarmiento, [1552] 1988: 50).

    GARCILASO DE LA VEGA

    No sculo XVII, apareceram obras distintas que marcaram tambm aelaborao de uma histria andina. As crnicas de autores mestios como ado Inca Garcilaso de La Vega, e de indgenas cristianizados como GuamnPoma de Ayala e Juan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui (Relacin deAntigedades deste reino del Per [1613]) se destacaram nesse perodocomo tentativas de incorporar o ponto de vista andino16.

    Em 1586, o Inca Garcilaso de la Vega, filho do conquistador espanholSebastin Garcilaso de la Vega e da usta (princesa) Inca Chimpu Ocllo(Rovira e Mataix, 2005), comeou a escrever os Comentrios Reales de

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    los Incas, obra que tambm teve ampla circulao, sendo traduzida em vriaslnguas. Seguindo as correntes humanistas da poca, Garcilaso iniciou umprojeto historiogrfico centrado no passado americano, e em especial no doPeru. Considerado como o pai das letras do continente, em 1605, deu aconhecer em Lisboa a obra La Florida del Inca, uma crnica da expediodo conquistador Hernando de Soto na Flrida, na qual defende a legitimidadede impor naqueles territrios a soberania espanhola para submet-los jurisdio crist.

    Garcilaso escreveu os Comentarios Reales utilizando os seus prpriosconhecimentos da cultura incaica, os testemunhos orais de seus parentescusquenhos e as prprias crnicas da poca (Gebram, 1998: 29). A primeiraparte dessa obra trata das origens e da vida dos incas at a chegada dosconquistadores espanhis. J a segunda parte, trata da conquista e colonizaoespanhola dos Andes Centrais. Mesmo estando a sua obra impregnada devalores cristos e europeus, ela foi considerada pela Inquisio espanholacomo inadequada para a poca por valorizar a cultura incaica, representandoassim uma ameaa ao pensamento eurocntrico (Idem: 29). Somente em1609, a primeira parte de Comentrios Reales foi publicada em Lisboa,sendo reimpressa em Madri em 1723. A segunda parte, terminada em 1613,se deu como produo pstuma, sendo do mesmo ano em que Garcilasofaleceu. Contudo, essa obra foi considerada a mais importante de toda a suacarreira literria, sendo traduzida para vrias lnguas e em muitas edies.

    Segundo Pease, Garcilaso deu origem a uma interpretao duradourasobre os incas e sua histria. Interessado em estabelecer a legitimidade deseus antepassados incas, negada pelos primeiros cronistas para o caso deAtahualpa e, progressivamente, para os demais incas nos autores posteriores,Garcilaso construiu as bases da legitimidade e estabilidade do poder dosincas, usando o expediente de converter em monarquia o governo doTawantinsuyo sobre os Andes (Pease, 1995: 42) e, paulatinamente, foiderrubando as imagens negativas dos incas, construdas pelo cronistaSarmiento de Gamboa. Sua influncia na historiografia duradoura, pois,graas ao seu parentesco com os incas, alguns pesquisadores considerarama sua narrativa como um retrato mais fiel e oficial do passado incaico, perdendode vista as suas condies de produo.

    nessa deixis discursiva, ou seja, nesse espao-tempo que envolve oato de enunciao (Maingueneau, 1997), que podemos entender porque aviso de Garcilaso a respeito dos incas parece perpassada por conceitoseuropeus de selvageria, urbanidade, doutrinamento, idolatria, civilizao,

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    gentilidade e lei natural. Transitando entre o mundo de sua me e o de seupai, ele constri um discurso singular que se inscreve, ao mesmo tempo, emdois quadros de pensamento. Se, por um lado, ele deixa entrever uma imagemdos incas como benfeitores, como povos que instruram os outros emurbanidade, leis e costumes (Garcilaso, [1609] 1992: 10), por outro lado,ele no deixa de afirmar que as histrias contadas pelos ndios constituemrelatos confusos e fabulosos. Desse modo, o discurso de Garcilaso se inscrevetambm no quadro de pensamento europeu que desprezava os saberesindgenas como algo da ordem do irracional, legendrio e demonaco (Idem,cap. V, web).

    Ao enunciar o seu discurso na forma de crnica, Garcilaso inscreve-o namesma cenografia que a dos clrigos e conquistadores espanhis, ou seja,na mesma formao discursiva reconhecida e autorizada para se falar arespeito da Amrica e seus habitantes no sculo XVI. Ao classificar os povosandinos como idlatras, gentlicos e supersticiosos, Garcilaso faz uso dosesteretipos que circulavam no imaginrio europeu, criando a alteridade doNovo Mundo; desse modo, ele se submete aos efeitos de uma formaodiscursiva que lhe garante legitimidade de fala, enunciando o seu objeto dediscurso a partir de conceitos e valores familiares aos europeus.

    assim que, nas suas descries das origens dos Tawantinsuyo, a aofundadora dos personagens Manco Cpac e Mama Ocllo possui um cartersagrado e legtimo, resultante de uma ordem divina. Segundo Garcilaso, assimteria tido incio a aventura de Manco Cpac e Mama Ocllo, do casal incaprimordial, at que, no vale de Cuzco, teriam conseguido enterrar a barra deouro no solo, fazendo-a sumir na terra. Ali foi por eles assinalado como localdesejado pelo deus Sol para o incio do estabelecimento de seu governo.Nessa verso da histria, o estabelecimento da ordem incaica sobre os Andesparece relacionado a um desejo de propagao do culto, leis e preceitos dodeus Sol, pois, como enfatizou Garcilaso, os povos andinos estavam carentesde leis e regras morais (Garcilaso, [1609] 1999: Tomo I, cap. III, web).

    Na viso de Garcilaso ([1609] 1967: 46), os incas constituam instrumentosda divina providncia para livrar as populaes andinas do pecado e daidolatria, preparando-as para o recebimento do evangelho, com a chegadados colonizadores espanhis. Em sua crnica, os incas aparecem comorepresentantes da razo, da lei natural e da urbanidade sobre os Andes,recebendo uma imagem bastante positiva e agradvel aos olhos europeusdo sculo XVI, j que descritos luz dos conceitos e valores cristospreparadores do caminho para a evangelizao, dentro de um plano divino.

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    Enquanto os incas so classificados como povos de razo, urbanidade eleis naturais, os demais povos andinos so automaticamente o contrriode tudo isso, sendo reconhecidos como irracionais, selvagens e ignorantes.Esse discurso cria, portanto, uma imagem dos incas muito prxima dacristandade, j que esses mesmos critrios de classificao eram usadospelos cronistas para exaltar a superioridade das sociedades crists europiasperante as sociedades amerndias.

    As histrias contadas pelos incas a respeito do passado das origens doTawantinsuyo recebem, na crnica de Garcilaso, o sentido de fbulashistoriales ([1609] 1967: 52-53), integrando a categoria de discursoserrneos e fictcios que pareciam escapar lgica europia. No entanto, aomesmo tempo em que percebe essas histrias como similares s profanas yfbulas de la gentilidade antigua (Ibidem: 57), Garcilaso encontra tambmaspectos que as aproximam das histrias sagradas da cristandade:

    El que las leyere [sic] podr cotejarlas a su gusto, que muchas hallarsemejantes a las antiguas, as de la Sancta escritura como de las profanas yfbulas de la gentilidad antigua (Ibidem: 57).

    A possibilidade de que essas histrias encontrassem semelhanas comaquelas j conhecidas na Europa tornava a cultura incaica bastante familiaraos leitores europeus de sua poca, eliminando o estranhamento e a diferenaperturbadora. Garcilaso concebe, assim, a histria dos incas a partir dereferenciais presentes na Bblia e nos mitos dos antigos povos j conhecidospelos europeus, o que implica ocultar os sentidos prprios para os incas arespeito de suas prticas e histrias. Sentidos que poderiam fazer funcionaroutras matrizes de inteligibilidade, diferentes daquela crist, eurocntrica,colonialista e androcntrica do sculo XVI, para o entendimento da culturaincaica. Ou, talvez, como assinala Natalino, as elites indgenas aliadaspretendessem provar que seu mundo e sua histria tambm eram partes dagrande histria universal crist, atendendo, dessa forma, s novas demandasdos tempos coloniais.

    Reformular as explicaes tradicionais da antiga viso de mundo paradar conta da nova realidade e incorporar as idias crists era, muito mais doque um ato deliberada e conscientemente interesseiro, a nica forma deobter um certo reconhecimento por parte dos novos senhores, de seus parese da populao indgena em geral, a quem pretendiam representar e comandardesempenhando o papel de intermedirios (Natalino, 2004: 198-199).

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    GUAMN POMA DE AYALA

    J o cronista indgena Guamn Poma de Ayala, atuou como ajudante doextirpador de idolatrias Cristbal de Albornoz, entre os anos 1569 e 1571,na tarefa de conhecer os ritos sagrados andinos do tempo dos incas. Namesma linha de construo de Sarmiento de Gamboa, Guamn Poma buscouargumentos para desprestigiar os incas, legitimando os justos ttulos daconquista espanhola sobre os Andes (Manga Quispe, 2002: web). Aocontrrio do discurso de Garcilaso de la Vega a respeito dos povos pr-incas e dos incas, Guamn Poma, em Nueva Cornica y buen gobierno[1615/1616], exalta os povos pr-incas para construir uma imagem negativados incas. Estes seriam responsveis pela destruio da boa e verdadeirareligio que devia vigorar antes do estabelecimento do Tawantinsuyo. Parafundamentar mais essa viso negativa, o cronista fez uso tambm dasrepresentaes de gnero (masculino/feminino) que circulavam no imaginriocristo e europeu do sculo XVII, construindo uma imagem do governo dosincas como fundado na fraqueza e vulnerabilidade feminina ao demnio.

    Para Guamn Poma, foi uma mulher, Mama Huaco que, ligada ao demnio,originou o governo dos incas e a idolatria nos Andes, pois estava grvida depai desconhecido e foi aconselhada pelo demnio a mostrar seu filho comoum ser sagrado. Ela e outra mulher, a ama Pillco Ziza, levaram o menino auma janela em Tambotoco e o apresentaram, j com dois anos de idade,dizendo que ele (Manco Cpac) havia sado de Pacaritambo e que, sendofilho do Sol e da Lua, deveria governar como Cpac Apo Ing (GuamnPoma, ibidem: 64-67). Nessa verso, a histria das origens de Cuzco aparececomo uma inveno, como uma mentira introduzida por mulheres vulnerveiss influncias demonacas, fora da tutela masculina. Assim indagava GuamnPoma:

    como puede hacer hijo del sol y la luna de trece grados de cielo, que est en losms alto del cielo, es mentira y no le vena por derecho de Dios ni de la justiciael ser rey y el reino, y dice que es Amaro Serpente y demonio, no le viene elderecho de ser seor y rey como lo escriben. Lo primeiro porque no tuvo tierrani casa antiqusima para ser rey; lo segundo fue hijo del demonio enemigo deDios y de los hombres, mala serpiente amaro; lo tercero de decir que es hijo delsol y de la luna que es mentira; lo cuarto de nacer sin padre y la madre fuemundana primer hechicera la mayor y maestra criada de los demonios; no levena casta ni honra ni se puede pintar por hombres de todas las generacionesdel mundo no se halla aunque sea salvaje animal ser hijo del demonio que esamaro, serpiente (Ibidem: 67).

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    Seus argumentos so apenas afirmaes: mentira, o demnio,no tem direitos, filho sem pai. Feminino criador, associado serpentee ao demnio: isso expressa com clareza os valores-base de construodessa representao como fora da ordem, fora da norma, em um caosprimitivo, marcado pela ausncia do Pai.

    Guamn Poma apresenta os incas como os inventores do culto shuacas, s pacarinas (lugares de procedncia das distintas etnias) deadorao de dolos e demnios. No surpreende que, em seu discurso,uma mulher, na figura de Mama Huaco, descrita tambm como feiticeira,seja destacada como a responsvel pela introduo do pecado e da idolatrianos Andes. Tal qual a Eva no mito do den, que havia produzido a expulsode Ado do paraso, Mama Huaco, em cumplicidade com o demnio, haviadado origem ao governo tirnico dos incas.

    No surpreende, portanto, o fato de que Guamn Poma tenha usado aimagem de Mama Huaco, a primeira Coya e fundadora do Tawantinsuyo,para conferir aos incas uma origem ilegtima, diablica e no-natural; e tambmo fato de que a maioria dos cronistas tenha silenciado ou negado apossibilidade de que Mama Huaco atuasse como uma mulher governadorae conquistadora, j que aos olhos espanhis isso poderia representar umaameaa tentativa de instalao, nos Andes, de uma sociedade cristpatriarcal, cujos atributos de fora, poder e habilidade poltica deveriam sermasculinos. Em representaes como essas, o maravilhoso, como assinalaNavarro-Swain, aparece apenas para melhor desaparecer, para melhorassegurar o ordenamento do mundo, seus valores e suas imposies (1998:254). Por outro lado, o maravilhoso que atravessa as representaes deMama Huaco nos informa sobre a existncia de mulheres fortes e ativas quepuderam exercer alguma liderana poltica nos Andes.

    Como os incas representavam um grupo cuja existncia era intrigante eperturbadora, visto que poderia transtornar a to almejada ordem cristcolonial e as imagens naturalizadas do feminino no imaginrio espanhol dapoca, o cronista precisava fechar as brechas e trazer o mundo ordem dodiscurso.

    Ao classificar Mama Huaco e as mulheres incas como seres maispecadores e idlatras, Guamn Poma repete os esteretipos que circulavamno imaginrio cristo europeu e que criavam diferenas entre homens emulheres; desse modo, ele garante a legitimidade de sua fala, criando seuobjeto de discurso a partir de conceitos e valores familiares aos europeus,compartilhados por uma formao discursiva autorizada a falar a respeito da

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    Amrica e das mulheres indgenas. As representaes elaboradas pelocronista acomodam-se ao que j se conhece na Europa; atravs do mecanismode ancoragem17, ele busca acomodar o desconcerto, neutraliz-lo dealguma forma (Arruda, 1998: 20), ou seja, situar o universo incaico emrelao aos valores cristos, androcntricos e colonialistas europeus,buscando, assim, inscrever o seu discurso num sistema nocional jreconhecido, legitimado e autorizado.

    4. As crnicas coloniais enquanto discursos fundadores

    O imaginrio dos cronistas revela-se em suas crnicas, nas quaisveicularam representaes instauradoras de relaes de fora, de relaesde senti-do, que circularam como verdades a respeito do Tawantinsuyo.Como bem disse Baczko, s relaes de fora e de poder que toda adominao comporta, acrescentam-se assim as relaes de sentido: qualquerinstituio social, designadamente as instituies polticas, participa assim deum universo simblico que a envolve e constitui o seu quadro defuncionamento (1985: 310). Tais relaes de sentido instauram um regimede verdade, assim explicitado por Foucault:

    Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua poltica geral de verdade:isto , os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros;os mecanismos e instncias que permitem distinguir os enunciados verdadeirosdos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as tcnicas e osprocedimentos que so valorizados para a obteno da verdade; o estatutodaqueles que tm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault,1979: 12).

    As verdades so enunciados que agem como censores, estabelecendolimites. Elas no passam de fices teis criadas e criadoras de poder, jque o termo verdade cria um campo de exerccio de controle, incluso eexcluso. no prprio Imaginrio Social que se encontra a legitimao dopoder. Como bem assinala Baczko,

    o poder deve apoderar-se do controle dos meios que formam e guiam aimaginao coletiva. A fim de impregnar as mentalidades com novos valores efortalecer a sua legitimidade, o poder tem designadamente de institucionalizarum simbolismo e um ritual novos (1985: 302).

    Entretanto, como assinala Foucault (1979), o poder existe em uma rede

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    infinitamente complexa de micropoderes, de relaes que permeiam todosos aspectos da vida social. Ele no s reprime, mas tambm cria, e criandoa verdade instaura a sua prpria legitimao. Cabe aos historiadores, portanto,identificar essa produo da verdade como uma funo do poder (OBrien,2001: 46).

    Na conquista da Amrica, os espanhis detinham no apenas um poderfsico, blico e econmico, que permitia subjugar, reprimir e explorar aspopulaes amerndias, mas tambm o poder de impor novos sentidos vida dessas populaes, e novas relaes polticas, econmicas, sociais ede gnero.

    Os cronistas recolhem as tradies histricas a respeito das origens doTawantinsuyo e, dessas narrativas, constroem uma nova memria, uma outratradio a respeito dos fundamentos polticos e religiosos do governo dosincas sobre os Andes. Deveriam ser tradio e memria que no contrariassemos valores e princpios cristos reconhecidos como universais e sagrados.As descries do passado e das huacas nas crnicas tornam-se, assim,discursos fundadores, ao instaurar e criar uma nova memria e uma outratradio, desautorizando os sentidos anteriores. De acordo com Orlandi, oque caracteriza um discurso fundador, o fato de que

    ele cria uma nova tradio, ele re-significa o que veio antes e institui auma memria outra. um momento de significao importante, diferenciado.O sentido anterior desautorizado. Instala-se outra tradio de sentidos,que produz os outros sentidos nesse lugar. Instala-se uma nova filiao.Esse dizer irrompe no processo significativo de tal modo que pelo seu prpriosurgir produz sua memria (2003b: 13).

    As crnicas deixam escapar sentidos ao narrar as tradies histricasincaicas como mitos ou fbulas, deixando transparecer interpretaes econtores para adequ-las aos esquemas imaginrios europeus e cristos.No entanto, as interpretaes dos cronistas conservam ainda dadosfundamentais sobre os quais elaboram suas narrativas e estes nos permitemvislumbrar uma multiplicidade de perspectivas e sentidos presentes nossistemas sociais incaicos.

    Os cronistas puderam ouvir os depoimentos dos quipucamayos e dosamawtas (locutores/emissores) especialistas no registro de informaes ehistrias a respeito da sociedade incaica e depois os transcreveram, nonecessariamente tal como lhes foram transmitidos, pois alm de perceb-lossob sua perspectiva, efetuavam uma seleo, discernindo o que lhes convinharelatar ou silenciar. O cronista, como interlocutor, aquele que est ao mesmo

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    tempo na posio de receptor de um ato de comunicao e de enunciador,ao tomar a palavra em seu turno (Maingueneau & Charaudeau, 2004: 288).Desse modo, as crnicas so produtos de, pelo menos, duas etapas derepresentao e interpretao: uma por parte da pessoa, relatando a histria(locutor/emissor), a outra por parte da pessoa que recebe e registra esserelato (interlocutor/enunciador).

    Nessa situao de comunicao colocada pela conquista espanhola, arelao locutor-interlocutor bastante desigual. As coeres que determinamo jogo da troca de informaes entre eles so provenientes, ao mesmo tempo,das identidades, dos lugares que eles ocupam nessa troca (em termos fsico-sociais) e da finalidade que os liga (em termos de objetivo). O locutor(indgena) das histrias encontrava-se, em todas as instncias, sujeitado esubordinado ao interlocutor (espanhol), podendo de certa forma inscreverseu discurso no do interlocutor, enfatizando certos aspectos e omitindo outros,para construir uma imagem da sua cultura e histria mais adequada aos valorese conceitos dos conquistadores. Como bem questiona Urton,

    Narrara uno la misma historia sobre sus orgenes a un conquistador, tal comouno la hubiera narrado previamente a un conquistado? Qu ventaja podraser obtenida, en un contexto de conquista, con enfatizar ciertos puntos yomitir otros? O con cambiar la historia por completo, para representarse a unomismo, o al linaje de uno, en una luz ms favorable? (2004: 22)

    O cronista, por sua vez, ao relatar as informaes recebidas,ressemantizava-as atravs de seu repertrio interpretativo18. Essa situaode comunicao envolvia, portanto, os sentidos dos enunciados veiculadosnas crnicas.

    Na poltica do silncio, ou seja, do que pode ou no ser dito, as vozesdos povos colonizados sobre suas particularidades histricas e culturais soexcludas ou silenciadas nos discursos dos cronistas. Desse modo, apagam-se os sentidos que se desejava evitar, sentidos que poderiam fazer funcionaro trabalho significativo de uma outra formao discursiva (Orlandi, 1990:52). Esse mecanismo asfixia tambm o sujeito colonizado, porque um modode no permitir que ele circule pelas diferentes formaes discursivas, peloseu jogo. No por acaso, o discurso do Outro foi classificado como mtico,legendrio, demonaco e irracional, a fim de no permitir que ele circulassecom valor de verdade.

    Em suma, as prticas discursivas dos cronistas, bem como dos sistemassimblicos em que se fundamentam, so eminentemente polticas. A

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    reconstruo do imaginrio19 que os incas possuam a respeito das origensdo Tawantinsuyo foi, portanto, parte essencial dos dispositivos do poder e,em seu sentido mais amplo, do poder poltico que, nos sculos XVI e XVII,tenta engendrar uma sociedade colonial e crist nos Andes Centrais. Dito deoutra forma, a transformao das representaes do passado incaico foiparte constitutiva da implantao dos aparelhos institucionais de controle edomesticao dos povos a serem conquistados. As significaes construdassobre as huacas, heronas e heris ancestrais que aparecem nas histriasdas origens do Tawantinsuyo foram tambm de fundamental importnciapara o estabelecimento, nos Andes, de novas identidades, hierarquias erelaes sociais nos moldes cristos, colonialistas e androcntricos.

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    Notas

    1 Este amplo domnio territorial havia sido resultado de um processo de expanso quese iniciou no sculo XV (por volta de 1476), quando os Incas passaram a incorporar,sob seu poder, centenas de grupos tnicos e lingsticos. Segundo Henri Favre,essa expanso assegurou-lhes rapidamente a herana de uma tradio cultural quemuitos povos haviam contribudo para forjar e enriquecer ao longo de um passadomuitas vezes milenrio (1998: 07).2 Crnica (1. chronica; del greco chronik, libro en que se refieren los sucesos pororden del tiempo). f. s. XII al XX. Historia en que se observa el orden de los tiempos.1 crnica general, 1275. (Martin Alonso. Enciclopdia del idioma. Diccionariohistrico y moderno de la lengua espaola (siglos XII al XX) Etimolgico, tecnolgico,regional e hispanoamericano. Tomo I, Madrid: Aguillar, 1958, p. 1275). As crnicassurgem na Espanha do sculo XII, por iniciativa do infante Alfonso, futuro Alfonso Xde Castilla e Len, como modelo de escrita preponderante para se registrar e celebraros grandes feitos histricos. Legitimadas como uma compilacin seria, que presenteem rigurosa orden cronolgica, e indicando as fechas, un relato escrito con estilocuidado (Carnavaggio, 1994: 101, pautavam-se ao cnone da poca, que prescreviao padro de escrita desse tipo de narrativa, a incluso o critrio de rigor na descriocronolgica dos eventos. A princpio a produo da crnica real esteve estreitamenteligada instituio monrquica e imagem do soberano. Mais do que um relatocronolgico ou descrio, no sentido medieval, a crnica era uma listacronologicamente organizada acerca dos acontecimentos que se desejava conservarna memria e ressaltar como exemplo a serem seguidos. Como um registro literrio denatureza descritiva e pedaggica, ela constituiu, ento uma rememorizao organizadaacerca dos grandes feitos dos monarcas e das monarquias bastante proliferada nosperodos que se seguiram da Idade Mdia conquista da Amrica (Oliveira, 2001: 17-21).3 Entre os cronistas que escreveram durante os anos de 1550-1560, na chamada primeirafase da conquista espanhola, esto: Pedro Cieza de Len (Segunda parte de la Crnicadel Per [1548-1550]), os informante de Frei Bartolom de Las Casas (De las antiguasgentes del Per [1559]), Juan Diez de Betanzos (Suma y Narracin de los Incas[1551]) e Agustn de Zarate (Historia del Descubrimiento y Conquista del Peru[1555]).

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    4 Os cronistas de formao religiosa, como Jose de Acosta, Jose de Arriaga, Avendao,Medina, Cristbal de Molina e Martn de Mura, fizeram das prticas e crenas dosincas os temas recorrentes em suas narrativas, em razo de sua estranheza diante dano correspondncia desse mundo novo aos esquemas e padres religiososcatlicos.5 No final da dcada de 1560, o indgena Titu Cusi Yupanqui, de descendncia Inca,escreveu sua Instruion del Ynga don Diego de Castro TituCusi Yupanqui. No sculoXVII, as obras de autores mestios como a do Inca Garcilaso de La Vega (ComentriosReales de los Incas[1609]), e de indgenas cristianizados como Guamn Poma deAyala (Nueva Cornica y Buen Gobierno [1615]) e Juan de Santa Cruz PachacutiYamqui (Relacin de Antigedades deste reino del Per [1613]) se destacaram natentativa de incorporar o ponto de vista andino6 Esse estudo foi realizado durante as minhas pesquisas de mestrado e doutorado noPrograma de Ps-Graduao em Histria da Universidade de Braslia. Em 2001, defendiuma dissertao sobre as representaes das prticas religiosas dos incas veiculadasnas crnicas de Sarmiento de Gamboa [1572], Martn de Mura [1590] e Jose deAcosta [1590]. J no ano de 2006, defendi uma tese sobre as representaes dofeminino e o sagrado nos discursos dos cronistas e na historiografia sobre oTawantinsuyo.7 Os questionamentos produzidos especialmente em um dilogo da histria com aantropologia, no mbito da histria cultural (Burguire, 2005), trouxeram uma novarea de estudos denominada Etnohistria (ou histria antropolgica), que veio valorizaras particularidades culturais das sociedades e as relaes entre os grupos tnicos(Neto, 1997: 325). Combinando mtodos prprios das disciplinas histricas eantropolgicas, incluindo a arqueologia, o etnohistoriador veio reconstruir tambm opassado de diferentes etnias que habitavam a Amrica na poca da chegada doseuropeus. A Etnohistria produzida por historiadores, antroplogos e arquelogosganhou maior visibilidade a partir dos anos 1960. No bojo da crise dos paradigmascientficos da modernidade, em que se fez uma crtica histria tradicional de influnciapositivista marcada por concepes eurocntricas, colonialistas e androcntricas,esses pesquisadores revelaram novas vozes na historiografia trazendo novos objetose fontes de pesquisa.8 A etnohistria andina tem se dedicado s anlises do mundo cosmolgico, mtico,religioso, ritual pr-hispnico e de suas transformaes a partir da ao missionriacolonial. Entre os anos de 1960 e 1980, os etnohistoriadores deram as pautas para odebate acadmico sobre os saberes e crenas andinas. Entre os temas que animaramas suas reflexes destacam-se: as relaes de parentesco, as concepes sagradaspr-hispnicas (deuses e huacas), as identidades dos heris/heronas ancestrais, osciclos mticos das origens dos incas e da guerra entre os Incas e Chancas, os conceitos/relaes de gnero, os calendrios rituais, a extirpao das idolatrias, o messianismoe o milenarismo andino (Bendez, 2004: 07).9 Do ponto de vista simblico possvel, portanto, investigar qual a dinmica dospontos notados, no outro, a partir de pontos anotados, pelo cronista, ou seja:atravs da identificao dos processos de reao, de identidade ou diferena,deflagrados pelos elementos simblicos do outro em um discurso cuja lgica simblicaseja conhecida. (...) como afirma Pease, a crnica (...) deve ser entendida como umafonte oral, alterada pelo cronista que a estabilizou, escrevendo-a, mas necessrio,para torn-la til para o entendimento do outro, situar o cronista no apenas quantoao seu itinerrio e contexto no qual colheu informaes, mas tambm em sua dimensohistrica mais ampla ( Neto, 1997: 327).10 As crnicas surgiram na Espanha do sculo XII, por iniciativa do infante Alfonso,futuro Alfonso X de Castilla e Len, como modelo de escrita preponderante para seregistrar e celebrar os grandes feitos histricos. Legitimada como uma compilacinseria, que presente em rigurosa orden cronolgica, e indicando as fechas, un relato

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    escrito con estilo cuidado (Carnavaggio, 1994: 101), pautava-se, portanto, ao cnoneda poca, que prescrevia o padro de escrita desse tipo de narrativa, a incluso ocritrio de rigor na descrio cronolgica dos eventos. A princpio a produo dacrnica real esteve estreitamente ligada instituio monrquica e imagem dosoberano. Mais do que um relato cronolgico ou descrio, no sentido medieval, acrnica era uma lista cronologicamente organizada acerca dos acontecimentos que sedesejava conservar na memria e ressaltar como exemplo a serem seguidos. Como umregistro literrio de natureza descritiva e pedaggica, ela constitua uma rememorizaoorganizada acerca dos grandes feitos dos monarcas e das monarquias bastanteproliferada nos perodos que se seguiram da Idade Mdia conquista da Amrica(Oliveira, 2001: 17-21).11 As crnicas como discursos picos ofereciam uma resposta necessidade depreservar a memria das realizaes dos antepassados. Esse tipo de narrativa deviaincluir o critrio de rigor na descrio cronolgica dos eventos que se desejavapreservar na memria e ressaltar como exemplos a serem seguidos (Carnavaggio,1994: 101). Pautando-se numa dimenso utilitria, ao abarcar os grandes feitoshistricos, especialmente os grandes feitos dos monarcas e da nobreza espanhola,as crnicas ofereciam ensinamentos morais, sugestes prticas ou normas de vida,tornando-se o cronista, dentre mestres e sbios de seu tempo, um narrador conselheiro(Oliveira, 2001: 18-21).12 Essa vontade de verdade, como bem disse Michel Foucault, como os outrossistemas de excluso, apia-se sobre um suporte institucional: ao mesmo temporeforada e reconduzida por todo um compacto conjunto de prticas como a pedagogia, claro, como o sistema dos livros, da edio, das bibliotecas, como as sociedades desbios de outrora, os laboratrios hoje. Mas ela tambm reconduzida, maisprofundamente sem dvida, pelo modo como o saber aplicado em uma sociedade,como valorizado, distribudo, repartido e de certo modo atribudo (1996: 17).13 Em 1589, o jesuta espanhol Jose de Acosta publicou a Historia Natural y Moral delas ndias, obra que chamou a ateno de seus contemporneos europeus, por ofereceruma explicao para a questo da presena do mundo americano. Traduzidarapidamente para vrias lnguas europias, revela o grande interesse que o assuntoprovocava, bem como a urgente necessidade de se encaixar o Novo Mundo nasconsagradas concepes europias. Essa ampla difuso e aceitao de sua obrarespondeu, em grande parte, pelo olhar da cristandade ocidental sobre os amerndios,particularmente Incas e Astecas, cujas ressonncias podem ser observadas emtrabalhos da poca e mesmo posteriores.14 Pacaritambo: Posada de la Produccin, Posada del Amanecer o Casa del Escondrijo(Rostworowski, 1999: 37).15 Segundo Zilda Mrcia Gricoli Iokoi, os espanhis que chegaram a esta regio nosculo XVI tinham a preocupao de conquistar novas terras, e, dessa forma,procuraram encontrar justificativas para essa apropriao. Assim, ao difundirem aidia de que os incas eram usurpadores, que haviam se apropriado das terras atravsda violncia, tornavam-nos ilegtimos na rea. Os espanhis poderiam, assim,prosseguir a conquista. Produziram, para a mentalidade da poca, o mito da usurpao,com o objetivo de legitimar a coroa espanhola, e criaram campo para constituio dospressgios funestos como os de Viracocha, criados aps a conquista (1998: 746).16 Nesta produo tambm se inclui a obra do frei mercedrio espanhol Martn deMura, Historia del origen y genealoga real de los reyes incas de Per [1590]. Entre1590 e 1611 Mura fez vrias redaes de sua obra; foi missionrio doutrinador naparquia ndia de Capochia, s margens do lago Titicaca, local onde, provavelmente,teria recolhido materiais para seu livro. Sua narrativa apresenta uma descrio dogoverno, justia, religio, guerras, relaes familiares, festas e dos governantes incaicos,sendo por isso um dos poucos cronistas a falar das Coyas (mulheres que governavamao lado dos homens Incas o Tawantinsuyo).

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    17 Segundo Denise Jodelet, a ancoragem serve para a instrumentalizao do saber,conferindo-lhe um valor funcional para a interpretao e a gesto do ambiente (2001:39).18 Em linhas gerais, esses repertrios interpretativos so (...) as unidades deconstruo das prticas discursivas o conjunto de termos, descries, lugares-comuns e figuras de linguagem que demarcam o rol de possibilidades de construesdiscursivas, tendo por parmetros o contexto em que essas prticas so produzidas eos estilos gramaticais especficos (Spink e Medrado, 2000: 47).19 Sobre a fora e controle dos imaginrios na Amrica, ver as obras Inferno Atlntico:Demonologia e colonizao. Sculos XVI-XVII (1993) e O Diabo e a terra de SantaCruz (1986) de Laura de Mello e Souza; A colonizao do imaginrio: Sociedadesindgenas e ocidentalizao no Mxico espanhol, sculos XVI-XVIII, de Serge Gruzinski

    (2003); A Histria do Medo no Ocidente, 1300-1800, de Jean Delumeau (1989).

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    Aguado tambm se utilizou em sua construo retrica do Novo Mundodos exempla: contos curtos e exemplares que fundiam elementos dahagiografia, de lendas e prodgios, cuja funo era atrair a ateno do leitor,visando, de maneira simples, transmitir verdades unvocas a um pblico amplo.Era importante, mesmo que o relato narrado fosse fictcio, sempre conservarseu carter verossmil que pudesse criar uma iluso de coerncia real ou seajustasse a verdades lgicas. Borja Gmez divide os exempla em trs tipos(todos presentes na obra do frei): histrico ligado a personagensimportantes; potico literatura ou mitologia; verossmeis tomados davida cotidiana ou da natureza. Para o autor a utilizao desse recurso retricomedieval j era evidenciada no prprio ttulo da obra: a Recopilacin insinuauma coletnea de relatos que funcionavam como exempla.

    Devido ligao da Histria com ensinamentos morais nas obras dosculo XVI, Aguado no apresenta uma imagem homognea dos indgenasem seu texto. Existiam muitas imagens que se organizavam de acordo comas necessidades de amplificao e as intenes do autor. Dessa forma, aRecopilacin Historial apresenta em sua primeira parte (Historia de laNueva Granada) os ndios que se revoltavam contra o Requerimiento comodspotas, entretanto, na segunda parte (Historia de Venezuela) essa revoltaera justificada devido falta de virtude dos europeus; a tirania, que no incioestava relacionada com a idolatria dos nativos, no final da obra provinha doseuropeus comandados por Lope de Aguirre: quien supera con todas susacciones a cualquier idlatra indgena (p. 205).

    Por fim Borja Gmez afirma que o verdadeiro triunfo da conquista daAmrica foi a instaurao de um imaginrio. Atravs da utilizao da arteretrica, Aguado e outros cronistas do sculo XVI criaram um ndio-retrico, que respondia a uma srie de moldes pr-estabelecidos e a umarealidade textual no apreendida pela experincia. No entanto,paradoxalmente, esse ndio-retrico acabou se tornando um ndio-real.Para o autor a historiografia continua lendo as crnicas do perodo com osprincpios positivistas do sculo XIX, o que resultou numa vitria da retrica,no xito de la funcin moral de la descripcin del ndio (p. 205) e naimposio de uma imagem dos nativos como menores de edad repetidaacriticamente por muitos at o incio do sculo XXI.

    Inserido no debate acerca do quanto de indgena possvel resgatar deuma crnica colonial, Borja Gmez ao lado de outros autores como WalterMignolo aponta para um extremo negativo. Ao ressaltar os aspectosretricos europeus o autor acaba, em certos momentos, anulando qualquer

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    vestgio indgena nas crnicas coloniais, onde o outro totalmente suprimidopela retrica. O que no significa que o oposto crnicas como descrioreal dos nativos seja aceitvel, sendo o espao entre os plos da retricae do retrato real o local onde talvez se possa encontrar aspectos indgenasnas narrativas realizadas por europeus.

    Notas

    1 Mestrando em Histria Cultural pela Unicamp.

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