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ARTIGOS JURÍDICOS As dívidas públicas e a Lei de Responsabilidade Fiscal Ziegle de So!"a  Analista Judiciário e Professor As dívidas públicas e a Lei de Responsabilidade Fiscal Ziegle de So!"a Ul ti mamente têm esp ocado nos jo rnai s al guns interessantes fatos env ol vendo a  Administração Pública Brasileira, traendo ao con!ecimento da opinião pública situaç"es #ue, sem a menor dúvida, al$m de naturais not%cias & da% o interesse da m%dia &, possuem con tor nos jur %dicos imp ort antes, dig nos de uma análise t$c nica mai s cir cunstancia da' Um #ue se destaca $ a tentativa de diversos prefeitos, em fim de mandato, de renegociação com o (overno )ederal das d%vidas públicas de seus respectivos munic%pios, diante da e*ist ência de cerca de + mil munic%pio s sem condiç "es do cumpri mento do precei tuado no art' + da -ei de .esponsabilidade )iscal & i#pedi#en$o de $ans%ei dívidas aos se!s s!cessoes& co# a a#ea'a de p!ni'(o de a$) *!a$o anos de ecl!s(o &, conforme levantamento da /onfederação 0acional dos 1unic%pios 2/013, o #ue proporcionou um verdadeiro mutirão de prefeitos rumo ao Planalto, buscando f4rmulas para abrandar o problema'  A Lei de Responsabilidade Fiscal, #ue o jornalista e consultor Joelmir Beting, muito apropr iadamente, pr efere c!amar de Lei de Responsabilidade +oal , su rg iu ap 4s caloro sos debates e imensa pressão da sociedade no sentido de evitar a falên cia do setor público brasileiro' 5al diploma encerrou com 6fec!o de ouro7 todas as tratativas e reformas adotadas pelo atual governo para disciplinar, de uma ve por todas, os gastos públicos' 0ão obstante a pree*istência de diversos mecanismos legais #ue obrigam ao administrador público a dar um trato correto e !onesto ao din!eiro público, sempre atendendo aos pri nc% pios da ra oabilid ade, eficiência, mor ali dad e e probidade adminis tra tiva, têm se mostrado inoperantes os 4rgãos de controle no sentido de efetivamente e*igirem o real cumprimento dessas regras' 5amb$m o 1inist$rio Público, nesse particular, mostra8se pouco efica, embora bastante atuante em outras áreas' /arradas de raão possui o administrativista Benedicto de 5olosa )il!o #uando destaca #ue

As Dívidas Públicas e a Lei de Responsabilidade Fiscal

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ARTIGOS JURDICOSAs dvidas pblicas e a Lei de Responsabilidade FiscalZiegler de Souza

Analista Judicirio e Professor

As dvidas pblicas e a Lei de Responsabilidade Fiscal

Ziegler de Souza

Ultimamente tm espocado nos jornais alguns interessantes fatos envolvendo a Administrao Pblica Brasileira, trazendo ao conhecimento da opinio pblica situaes que, sem a menor dvida, alm de naturais notcias da o interesse da mdia , possuem contornos jurdicos importantes, dignos de uma anlise tcnica mais circunstanciada. Um que se destaca a tentativa de diversos prefeitos, em fim de mandato, de renegociao com o Governo Federal das dvidas pblicas de seus respectivos municpios, diante da existncia de cerca de 4 mil municpios sem condies do cumprimento do preceituado no art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal impedimento de transferir dvidas aos seus sucessores, com a ameaa de punio de at quatro anos de recluso , conforme levantamento da Confederao Nacional dos Municpios (CNM), o que proporcionou um verdadeiro mutiro de prefeitos rumo ao Planalto, buscando frmulas para abrandar o problema. A Lei de Responsabilidade Fiscal, que o jornalista e consultor Joelmir Beting, muito apropriadamente, prefere chamar de Lei de Responsabilidade Moral, surgiu aps calorosos debates e imensa presso da sociedade no sentido de evitar a falncia do setor pblico brasileiro. Tal diploma encerrou com fecho de ouro todas as tratativas e reformas adotadas pelo atual governo para disciplinar, de uma vez por todas, os gastos pblicos. No obstante a preexistncia de diversos mecanismos legais que obrigam ao administrador pblico a dar um trato correto e honesto ao dinheiro pblico, sempre atendendo aos princpios da razoabilidade, eficincia, moralidade e probidade administrativa, tm se mostrado inoperantes os rgos de controle no sentido de efetivamente exigirem o real cumprimento dessas regras. Tambm o Ministrio Pblico, nesse particular, mostra-se pouco eficaz, embora bastante atuante em outras reas. Carradas de razo possui o administrativista Benedicto de Tolosa Filho quando destaca que o cerne da questo do descontrole das contas pblicas repousa, fundamentalmente, na falta de regras claras para a formulao do oramento pblico, com a fixao de metas e planos que obrigatoriamente devem sair do papel para seu efetivo cumprimento, sob pena de responsabilizao severa de seus gestores, pois, da forma que atualmente elaborado, nada mais significa que uma fico e uma farsa contbil. 1 Assim, como instrumento efetivamente controlador da gesto fiscal responsvel, o Executivo encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar n 18/99 que, aps detalhadas alteraes, transformou-se na Lei Complementar n 101, de 4 de maio de 2000, que recebeu a denominao de Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a qual estabelece normas de finanas pblicas voltadas para a responsabilidade na gesto fiscal, o que, em outras palavras, obriga ao administrador pblico ao bvio: o irrestrito cumprimento das metas preestabelecidas na Lei de Diretrizes Oramentrias e nos oramentos anual e plurianual, alicerando-se no Captulo II, Titulo VI, da Constituio Federal. Esse diploma permite a total transparncia da gesto pblica, determinando a publicidade dos atos atravs de relatrios e demonstrativos da execuo oramentria, de modo que toda a populao tenha real conhecimento dos recursos auferidos atravs de contribuies de toda ordem. Destacam-se, dentre os dez captulos da LRF, os seguintes temas: a) gastos com pessoal, limitados em relao receita corrente lquida para os trs Poderes (Executivo, Legislativo e Judicirio) e para todos os nveis governamentais (Unio, Estados, DF e Municpios); b) endividamento pblico, estabelecido pelo Senado seguindo proposta presidencial; c) metas fiscais anuais, com projeo para os trs exerccios posteriores; d) despesas permanentes, que s podero ser criadas para despesas de trato sucessivo, por prazo superior a dois anos, com indicao da fonte de recursos ou com reduo de outra despesa; e e) controle de despesas em ano eleitoral, com o impedimento de contrataes de operaes de crdito por antecipao de receita oramentria (ARO) no ltimo ano de mandato de governantes, alm de proibio de aumento de despesas com pessoal nos ltimos 180 dias de mandato. Esse ltimo, previsto no art. 42 da LRF, assim dispe, verbis: Art. 42 vedado ao titular de Poder ou rgo referido no art. 20, nos ltimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigao de despesa que no possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exerccio seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito. Pargrafo nico. Na determinao da disponibilidade de caixa sero considerados os encargos e despesas compromissadas a pagar at o final do exerccio.

Tal dispositivo, que no sofreu muitas ressalvas quando das longas discusses sobre o tema no Congresso Nacional, agora vem colocando os prefeitos em polvorosa, diante da proximidade do fim de seus mandatos, com a realidade batendo porta, em face da constatao de que no tero condies de satisfazer a regra legal e, com isso, fatalmente alcanados pela Lei n 10.080/2000, que disps sobre crimes e penas concernes ao assunto, alterando no s o Cdigo Penal Brasileiro, como outros diplomas de natureza penal. Como bem asseverou Jess Torres Pereira Jnior, a LRF desenvolveu um texto extenso e por demais complexo que desafia a anlise e a interpretao de seus aplicadores, porquanto demanda contribuies de ramos variados do direito pblico e da cincia da administrao, aplicadas especificamente gesto financeira e patrimonial do Poder Pblico 2 Emerge, para perfeito entendimento dos contornos do que se pretende interpretar, que, aps a sano presidencial da LRF, pendente ficou a necessidade de lei especfica que estabelecesse os crimes e as penas para os que infringissem seus dispositivos. Em conseqncia, em outubro de 2.000 foi sancionada a Lei n 10.080, j mencionada, denominada Lei de Crimes Fiscais, que altera o Cdigo Penal (Decreto-Lei n 2.848, de 7 de dezembro de 1940), disciplinando os crimes e as penas especficas, alm de alterar a a Lei n 1.079, de 10 de abril de 1950, e o Decreto-Lei n 201, de 27 de fevereiro de 1967. Conforme lies de Carlos Maximiliano3, preceito preliminar e fundamental da hermenutica o que manda definir, de modo preciso, o carter especial da norma e a matria de que objeto, e indicar o ramo de Direito a que a mesma pertence, uma vez que variam os critrios de interpretao e as regras aplicveis em geral, conforme a espcie jurdica de que se trata. Dessa maneira, disposies de Direito Pblico no so interpretadas da mesma forma que as do Direito Privado. Relembra o jurista que em um ou outro, ainda os preceitos variam conforme o ramo particular a que pertencem as normas: os utilizveis no Constitucional diferem dos empregados no Criminal; no Comercial no procede exatamente como no Civil...4 No que diz respeito s leis penais, de regra, como norma interpretativa, impossibilidade do auxlio da analogia ou da paridade, porquanto compreendem to-somente os casos que especificam. Tambm, como caracterstica importante, no possuem efeito retroativo, em face da impossibilidade de alcanarem atos pretritos, em consentaneidade com o princpio da legalidade, pedra angular do prprio estado de direito e tambm de todo direito penal que aspire segurana jurdica. Na Constituio Federal, o princpio da legalidade est previsto no rol de direitos e garantias individuais (art. 5, inciso XXXIX: No h crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prvia cominao legal ) e, no Cdigo Penal Brasileiro, no art. 1 : No h crime sem lei anterior que o defina. No h pena sem prvia cominao legal . O criminalista Nilo Batista, tratando o assunto, relembra que o princpio da legalidade, visto pelo prisma de garantia individual, pode ser desmembrado em quatro funes, sendo a primeira delas e, talvez, a mais importante a de proibir a retroatividade da lei penal (nullum crimen nulla poena sine lege praevia), em face da funo histrica do princpio da legalidade, que surgiu exatamente para reagir contra leis ex post facto: Tudo que se refira ao crime [...] e tudo que se refira pena no pode retroagir em detrimento do acusado.5 A rubrica leis penais, pautando-se mais uma vez nos ensinamentos de Maximiliano, compreende todas as normas que impem penalidades, e no somente as que alvejam os delinqentes e se enquadrem em cdigos criminais. Assim que se aplicam as mesmas regras de exegese para os regulamentos policiais, as posturas municipais e as leis de finanas...6 Verifica-se, pois, que, por se tratar de norma tipicamente penal, as regras que emanam da Lei de Crimes Fiscais devem, obrigatoriamente, ser avaliadas e aplicadas a partir das mximas apontadas. Deflui-se, portanto, que a citada Lei no aplicvel para crimes de gesto fiscal praticados at 19 de outubro de 2000, uma vez que o diploma mencionado s entrou em vigor aps a sua publicao, ocorrida em 20 de outubro, somente abarcando, em conseqncia, os crimes ocorridos a partir dessa data. Assim, independentemente dos aspectos morais que possam ser suscitados os atuais prefeitos, segundo levantamento, devem deixar para seus sucessores uma conta coletiva de R$ 5 bilhes em dvidas e restos a pagar , afirmamos, com convico, que, juridicamente, a Lei de Crimes Fiscais, para a situao apresentada, no , sob nenhuma hiptese, aplicvel. Por outro lado, fixando-se agora to-somente na LRF, um diploma de cunho administrativo e financeiro, voltando os olhos para o art. 42 j transcrito, vislumbra-se algo que, pelo que temos observado, vem passando um pouco despercebido da maioria: o cumprimento da obrigao do administrador pblico (que o pagamento do servio ou obra) depende exclusivamente do adimplemento da obrigao pelo contratado. A Lei n 4.320/64, que estabelece normas direito financeiro, expressa, em seu art. 62, que o pagamento da despesa s ocorrer aps sua regular liquidao. Como liquidar a despesa significa a verificao da adimplncia da execuo, poder ocorrer essa despesa contratada, mas liquidvel to-somente em 2001, situao no alcanada pelo art. 42 da LRF. Ivan Barbosa Rigolin, em tima sntese, explica, de forma clara e definitiva, a razo dessa concluso: Se o contrato pode ser interrompido pelo novo mandatrio aps assumir, ento no precisar ser concludo como fora contratado, nem pago em 2001, mas se a despesa foi totalmente liquidada em 2.000, sob o mandato do dirigente anterior, ento ao novo mandatrio somente restar pagar o que seu antecessor realizou, algo como uma cortesia com chapu alheio, que tanto mal-estar historicamente vem causando aos agentes polticos que herdam pesadas dvidas de seus antecessores. 7 Em resumo, conclui-se, face ao todo exposto, que: a) a Lei de Crimes Fiscais (Lei n 10.080 /outubro/ 2000), por ser um diploma legal de carter eminentemente de direito penal, no pode ser aplicada retroativamente, diante dos aspectos hermenuticos que envolvem a aplicao de normas desse ramo do Direito; e b) o art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n 101 /maio/ 2000), avaliado em conjunto com as regras prescritas na Lei n 4.320/64, norma tpica de direito financeiro, permite que o governante, em final de mandato, contrate e liquide uma despesa (com, evidentemente, a adimplncia do contratado), ficando para o novo governante a tarefa de ordenar e realizar o pagamento respectivo.