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Público Domingo 11 Dezembro 2011 53 Bartoon Luís Afonso Frei Bento Domingues O.P. O Advento está carregado de textos poéticos, de histórias espantosas As linguagens da beleza na celebração litúrgica 1. Os cristãos têm muitas e boas razões para participar na Eucaristia dominical e na sua reconfiguração. O Advento é dedicado a so- nhar e a assumir os sonhos de Jesus Cristo na transfiguração do mundo e no processo da conversão de cada participante. O espírito da liturgia alimenta-se na verdade da lin- guagem sacramental, rumor de todos os símbolos “em que tudo é outra coisa” (H. Helder). Se a poesia é a única prova concreta da existência do ser humano como humano, a música é a alma de toda a poesia, presente, aliás, no ritmo de todas as artes que verdadeiramente o sejam. Como linguagem suprema da transcendência humana, rasga o tecto do mundo, expõe- se ao sopro divino, religação do céu e da terra. M. S. Lourenço sustenta, nos Degraus do Parnaso, que a literatura, entendida como incluindo a poesia e a prosa, tem a tarefa de nos levar até à fronteira do inex- primível. Para ele, o problema subjacente consiste em que a linguagem, de que a literatura é a arte (no sentido em que a música é a arte do som), funciona dentro de limites que não podem ser ultrapassados. Isto leva a que a linguagem não seja capaz de representar completa- mente todo o âmbito da experiência. Existe, assim, uma parte da experiência que não é representável linguisticamente, logo literariamente. Este poeta chama “inexprimível” a este domínio da experiência linguisticamente inacessível. A grandeza relativa da arte da linguagem pode, justamente, medir-se pela sua capacidade de levar o leitor à intuição desse domínio, embora dele não possa ser feita qualquer descrição. O verdadeiro artista é aquele que encontrou a expressão simbólica da experiência transcendente. Por este caminho, M. S. Lourenço colocou a questão das fronteiras entre a literatura e a religião. Tem defendido a ideia de que o culto religioso não existe incondicionalmente e que a expressão da experiência religiosa é condicionada pela formulação literária que a descreve, uma vez que esta é o veículo da asserção religiosa. Neste sentido, uma doutrina religiosa é ape- nas tão verdadeira quanto o for a fórmula literária que a transmite. 2. Dir-se-á que uma teoria dessas é boa para académicos discutirem, mas sem alcance prático numa celebração litúrgica, que não é nem uma tertúlia, nem um concerto. A Igreja dispõe, para as suas celebrações sacramentais, de livros litúrgicos editados pelas au- toridades competentes, de princípios doutrinais, de normas e rubricas muito claras para a sua execução. Além disso, há liturgistas especializados e zeladores das orientações da pastoral litúrgica. Está tudo previs- to, mesmo as adaptações possíveis. Basta abrir o livro e olhar para as rubricas a observar escrupulosamente. Acontece que a celebração viva de uma comunidade não pode ser substituída por um arranjo de enlatados prontos a servir. Existem, graças a Deus, muitas e variadas realiza- ções que saltam para fora deste esquema, sem cair na banalidade. 3. Noto, no entanto, que os cuidados com a digni- dade e criatividade litúrgicas estão centrados na construção e renovação dos espaços, as chamadas “novas igrejas”, empreendimentos em que se gastam milhões. Não sou contra a arquitectura religiosa de grande qualidade. Pelo contrá- rio. Gostaria que, na linha da renovação da arte sacra, orientada pelos dominicanos A. Couturier/P. Regamey, com muitos outros, se apostasse sempre no “génio”. O que me espanta é o pouco investimento, sobretudo o pouco cuidado, com a construção de uma comunida- de e com as suas diversas expressões culturais da Fé. Valeria a pena comparar o que uma paróquia gastou e gasta com os seus espaços litúrgicos e o que gasta, por exemplo, com a atracção e formação de grupos corais, verdadeiramente criativos, que ajudem a configurar os sonhos mais profundos da comunidade, em celebrações que a exprimam e a transfigurem. Não se trata de redu- zir tudo à música. Sem preparação bíblica é impossível fazer a ponte hermenêutica entre textos, rituais, acções litúrgicas e a vida concreta da semana onde a maioria das pessoas gasta a maior parte do seu tempo. A arte da celebração é a convergência de muitas ar- tes. Uma celebração não é conseguida quando é um grande espectáculo, mas quando carrega e desata as energias interiores de cada um e faz sonhar com novos céus e nova terra. O Advento está carregado de textos poéticos, de histórias espantosas, de apelos a não nos deixarmos abater pelos dias sem horizonte. O cristão que vai à celebração dominical vai para refazer a alma no fundamento da esperança que não engana. Das muitas pessoas que “vão à missa”, a escolha de- pende dos motivos mais diversos: umas por causa da qualidade da homilia, outras por causa da qualidade do canto, algumas até para participar em mais um sa- crifício, etc.... A presença do Amor — acolhido ou recusado — percorre o quotidiano da nossa vida. As celebrações da liturgia, nas linguagens da beleza, existem para não se perder a consciência e a memória do que, misteriosamente, sem- pre acontece e esquecemos, distraídos do essencial de onde brotam os sonhos e a Alegria. Uma celebração é conseguida quando carrega e desata as energias interiores de cada um e faz sonhar com novos céus e nova terra Frei Bento Domingues escreve neste espaço ao domingo Ainda ontem Rita e Helena Miguel Esteves Cardoso Q uem não gosta de polémicas ou é mentiroso ou um monotomaníaco de primeira. No TLS e no London Review of Books sur- gem na secção de cartas e temos de esperar uma semana para lermos a resposta do críti- co criticado. Também é bom. Mas melhor é o hábito do New York Review of Books, que, no fim do jornal, que é o lugar mais apetitoso, publica as críticas às críticas (geralmente dos autores dos livros criticados) e, logo a seguir, a resposta do crítico. A ordem — primeiro escreve quem protesta e depois quem se defende — é descaradamente facciosa e sensacio- nal, dando a última palavra ao autor da crítica original. A melhor polémica literária de 2011 foi a que que estalou entre a poeta Rita Dove, afro-americana, nascida em 1952, professora da Universidade da Virginia em Charlottesville, que escolheu a Penguin Anthology of Twentieth-Century American Poetry e a grandiosa crítica literária Helen Ven- dler, euro-americana, vinte anos mais velha e professora de Harvard. Os elementos estão online, de graça. Ataca Vendler: http://bit.ly/rsbNrZ. Contra-ataca Dove: http://bit. ly/t3P5Cq. As acusações são violentas e as palavras, bem escritas e pesadas, são venenosas. A contra-resposta da crítica ao amontoado de argumentos, protestos e insultos da poeta é de uma altivez monumental. Limita-se a afirmar: “I have written the review and I stand by it”. É uma polémica não só divertida como importante. Leia e julgue. Quem é que tem razão? Não podem ser ambas.

As linguagens da beleza na celebração litúrgica

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A arte da celebração é a convergência de muitas artes.Uma celebração não é conseguida quando é umgrande espectáculo, mas quando carrega e desata as energias interiores de cada um e faz sonhar com novoscéus e nova terra. O Advento está carregado de textospoéticos, de histórias espantosas, de apelos a não nos deixarmos abater pelos dias sem horizonte. O cristão que vai à celebração dominical vai para refazer a almano fundamento da esperança que não engana. por Bento Domingues, in Público [11-12-2011, p. 53]

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Page 1: As linguagens da beleza na celebração litúrgica

Público • Domingo 11 Dezembro 2011 • 53

Bartoon Luís Afonso

Frei Bento Domingues O.P.

O Advento está carregado de textos poéticos, de histórias espantosas

As linguagens da beleza na celebração litúrgica

1. Os cristãos têm muitas e boas razões para participar na Eucaristia dominical e na sua reconfi guração. O Advento é dedicado a so-nhar e a assumir os sonhos de Jesus Cristo na transfi guração do mundo e no processo da

conversão de cada participante.O espírito da liturgia alimenta-se na verdade da lin-

guagem sacramental, rumor de todos os símbolos “em que tudo é outra coisa” (H. Helder).

Se a poesia é a única prova concreta da existência do ser humano como humano, a música é a alma de toda a poesia, presente, aliás, no ritmo de todas as artes que verdadeiramente o sejam. Como linguagem suprema da transcendência humana, rasga o tecto do mundo, expõe-se ao sopro divino, religação do céu e da terra.

M. S. Lourenço sustenta, nos Degraus do Parnaso, que a literatura, entendida como incluindo a poesia e a prosa, tem a tarefa de nos levar até à fronteira do inex-primível. Para ele, o problema subjacente consiste em que a linguagem, de que a literatura é a arte (no sentido em que a música é a arte do som), funciona dentro de limites que não podem ser ultrapassados. Isto leva a que a linguagem não seja capaz de representar completa-mente todo o âmbito da experiência. Existe, assim, uma parte da experiência que não é representável linguisticamente, logo literariamente.

Este poeta chama “inexprimível” a este domínio da experiência linguisticamente inacessível. A grandeza relativa da arte da linguagem pode, justamente, medir-se pela sua capacidade de levar o leitor à intuição desse domínio, embora dele não possa ser feita qualquer descrição. O verdadeiro artista é aquele que encontrou a expressão simbólica da experiência transcendente.

Por este caminho, M. S. Lourenço colocou

a questão das fronteiras entre a literatura e a religião. Tem defendido a ideia de que o culto religioso não existe incondicionalmente e que a expressão da experiência religiosa é condicionada pela formulação literária que a descreve, uma vez que esta é o veículo da asserção religiosa. Neste sentido, uma doutrina religiosa é ape-nas tão verdadeira quanto o for a fórmula literária que a transmite.

2. Dir-se-á que uma teoria dessas é boa para académicos discutirem, mas sem alcance prático numa celebração litúrgica, que não é nem uma tertúlia, nem um concerto.

A Igreja dispõe, para as suas celebrações sacramentais, de livros litúrgicos editados pelas au-toridades competentes, de princípios doutrinais, de normas e rubricas muito claras para a sua execução. Além disso, há liturgistas especializados e zeladores das orientações da pastoral litúrgica. Está tudo previs-to, mesmo as adaptações possíveis. Basta abrir o livro e olhar para as rubricas a observar escrupulosamente. Acontece que a celebração viva de uma comunidade não pode ser substituída por um arranjo de enlatados prontos a servir.

Existem, graças a Deus, muitas e variadas realiza-ções que saltam para fora deste esquema, sem cair na banalidade.

3. Noto, no entanto, que os cuidados com a digni-dade e criatividade litúrgicas estão centrados na construção e renovação dos espaços, as chamadas “novas igrejas”, empreendimentos em que se gastam milhões. Não sou contra a

arquitectura religiosa de grande qualidade. Pelo contrá-rio. Gostaria que, na linha da renovação da arte sacra, orientada pelos dominicanos A. Couturier/P. Regamey,

com muitos outros, se apostasse sempre no “génio”.O que me espanta é o pouco investimento, sobretudo

o pouco cuidado, com a construção de uma comunida-de e com as suas diversas expressões culturais da Fé. Valeria a pena comparar o que uma paróquia gastou e gasta com os seus espaços litúrgicos e o que gasta, por exemplo, com a atracção e formação de grupos corais, verdadeiramente criativos, que ajudem a confi gurar os sonhos mais profundos da comunidade, em celebrações que a exprimam e a transfi gurem. Não se trata de redu-zir tudo à música. Sem preparação bíblica é impossível fazer a ponte hermenêutica entre textos, rituais, acções litúrgicas e a vida concreta da semana onde a maioria das pessoas gasta a maior parte do seu tempo.

A arte da celebração é a convergência de muitas ar-tes. Uma celebração não é conseguida quando é um grande espectáculo, mas quando carrega e desata as energias interiores de cada um e faz sonhar com novos céus e nova terra. O Advento está carregado de textos poéticos, de histórias espantosas, de apelos a não nos deixarmos abater pelos dias sem horizonte. O cristão que vai à celebração dominical vai para refazer a alma no fundamento da esperança que não engana.

Das muitas pessoas que “vão à missa”, a escolha de-pende dos motivos mais diversos: umas por causa da qualidade da homilia, outras por causa da qualidade do canto, algumas até para participar em mais um sa-crifício, etc....

A presença do Amor — acolhido ou recusado — percorre o quotidiano da nossa vida. As celebrações da liturgia, nas linguagens da beleza, existem para não se perder a consciência e a memória do que, misteriosamente, sem-pre acontece e esquecemos, distraídos do essencial de onde brotam os sonhos e a Alegria.

Uma celebração

é conseguida quando

carrega e desata

as energias interiores

de cada um e faz

sonhar com novos céus

e nova terra Frei Bento Domingues escreve neste espaço ao domingo

Ainda ontem

Rita e Helena

Miguel Esteves Cardoso

Quem não gosta de polémicas ou é mentiroso ou um monotomaníaco de primeira.

No TLS e no London Review of Books sur-gem na secção de cartas e temos de esperar uma semana para lermos a resposta do críti-

co criticado. Também é bom. Mas melhor é o hábito do New York Review of Books, que, no fi m do jornal, que é o lugar mais apetitoso, publica as críticas às críticas (geralmente dos autores dos livros criticados) e, logo a seguir, a resposta do crítico.

A ordem — primeiro escreve quem protesta e depois quem se defende — é descaradamente facciosa e sensacio-nal, dando a última palavra ao autor da crítica original.

A melhor polémica literária de 2011 foi a que que estalou entre a poeta Rita Dove, afro-americana, nascida em 1952, professora da Universidade da Virginia em Charlottesville, que escolheu a Penguin Anthology of Twentieth-Century American Poetry e a grandiosa crítica literária Helen Ven-dler, euro-americana, vinte anos mais velha e professora de Harvard. Os elementos estão online, de graça. Ataca Vendler: http://bit.ly/rsbNrZ. Contra-ataca Dove: http://bit.ly/t3P5Cq. As acusações são violentas e as palavras, bem escritas e pesadas, são venenosas. A contra-resposta da crítica ao amontoado de argumentos, protestos e insultos da poeta é de uma altivez monumental. Limita-se a afi rmar: “I have written the review and I stand by it”.

É uma polémica não só divertida como importante. Leia e julgue. Quem é que tem razão? Não podem ser ambas.