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AS MARCAS DA MEMÓRIA HEGEMÔNICA E VIVIDA NAS IMAGENS DA
MULHER NEGRA NO LUGAR CULTURA NOS LIVROS DIDÁTICOS
Camila Ferreira da Silva1
Janssen Felipe da Silva2
RESUMO
Este trabalho apresenta resultados, parciais, de uma pesquisa de Mestrado, tendo
continuidade no Doutorado, desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Pernambuco. Para tanto, temos enquanto objetivo
compreender as marcas da Memória Hegemônica e da Memória Vivida nas imagens da
Mulher Negra no lugar cultura nos livros didáticos do território campesino do Brasil e da
Colômbia. Adotamos enquanto Abordagens Teórica o Feminismo Negro Latino-
Americano e os Estudos Pós-Coloniais esse diálogo tem como intuito nos auxiliar político
e epistemologicamente na compreensão das formas de silenciamento, subalternização e
enfrentamento da Mulher Negra frente as amarras raciais e euro-hétero-normativas. Os
movimentos de resistência e de enfrentamento da Mulher Negra tem ocasionado um
deslocamento heterotópico que escorre em direção as margens, evidenciando outros
modos de ser, de pensar e de produzir conhecimento dissociados cânone ocidental.
Adotamos como procedimentos metodológicos a pesquisa documental, para a
organização e tratamento dos dados fazemos uso da análise de conteúdo via análise
temática, atrelada aos procedimentos da antropologia visual. No que diz respeito aos
resultados da pesquisa, no lugar cultura, identificamos nos livros didáticos em questão
duas perspectivas distintas, a saber: arte e folclore. No lugar cultura enquanto arte há uma
demarcação de registros visuais que advêm e/ou se aproximam das produções
eurocêntricas. Já o lugar cultura enquanto folclore é delimitado pelo registro de produções
artísticas que se distanciam dos postulados coloniais/modernos. Essa dualidade, arte e
folclore, está ancorado nas Heranças Coloniais que tendem a silenciar, subjugar e, por
vezes, ocultar as produções culturais da exterioridade colonial que não se filia aos moldes
eurocêntricos, pois retratam expressões culturais de mulheres e homens que foram/são
racializados/subalternizados. Nessa direção, o corpo feminino negro, conjuntamente com
as suas produções culturais passam a ocupar os espaços periféricos da produção artística.
Diante disso, entendemos que o lugar cultura é atravessado pela Geo-Corpo Política do
1 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco - Centro de Educação. Mestra em
Educação pela mesma instituição. Pedagoga pela Universidade Federal de Pernambuco - Centro
Acadêmico do Agreste (CAA- UFPE). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação Raça, Gênero e
Sexualidade - Audre Lorde, UFRPE-DED. Integra o Grupo de Estudos Pós-Coloniais e Teoria da
Complexidade em Educação, sediado no CAA-UFPE. 2 Professor Associado II do Núcleo de Formação Docente do CAA-UFPE. Professor Permanente do
PPGEdu/UFPE/CE e do PPGEduc/UFPE/CAA. Coordenador do Instituto de Estudos da América Latina
da UFPE. Vice Líder do Laboratório de Estudos Antropológicos. Coordenador do Grupo de Estudos Pós-
coloniais e Teoria da Complexidade em Educação. Editor Responsável da Revista Interritórios
(https://periodicos.ufpe.br/revistas/interritorios/index).
Conhecimento que reside nas imagens da Mulher Negra, determinando tanto as relações
de poder, quanto as condições que a Mulher Negra é representada, isto é, na base da
pirâmide social enquanto sujeito mais explorado e submisso.
Palavras-Chaves: Memória; Feminismo Negro; Estudos Pós-Coloniais; Livro Didático;
Território Campesino.
INTRODUÇÃO
Este trabalho é o recorte de uma pesquisa de Mestrado, concluída, tendo
continuidade no Doutorado, ambas desenvolvidas junto ao Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal de Pernambuco. Para tal, temos enquanto objetivo
compreender as marcas da Memória Hegemônica e da Memória Vivida nas imagens da
Mulher Negra no lugar cultura nos livros didáticos do território campesino do Brasil e da
Colômbia. Partimos da ideia de que os marcadores da Memória Hegemônica (raça,
gênero, classe, sexualidade, território, dentre outros), foram/são constituídas com traços
profundos de exclusão social, cultural, política e epistêmica, demarcando os lugares e,
por vezes, as condições dos sujeitos no sistema mundo capitalista/patriarcal
moderno/colonial ocidentalizado/cristianizado.
Posto isto, compreendemos que os livros didáticos se configuram enquanto um
espaço, dentro da cultura educacional, no qual as Mulheres Negras são representadas nos
diversos setores da vida social, podendo assim manter as relações de poder forjadas pela
Memória Hegemônica ou tecer rachaduras por meio da Memória Vivida. Neste cenário,
os livros didáticos assumem papel preponderante, visto que no tempo-espaço-histórico
têm se constituído enquanto um instrumento da cultura organizacional escolar e,
simultaneamente é produto das formulações governamentais que o faz por meio dos seus
conteúdos e imagens. Portanto, o livro didático é o resultado de uma seleção curricular
que opera por meio de determinados interesses sociais, culturais, políticos e econômicos,
embasando conhecimentos que, em sua grande maioria, refletem os valores ideológicos
dos grupos dominantes.
Nessa conjuntura, os livros didáticos permaneceram exercendo grande influência
na educação básica, tanto por se constituírem enquanto um instrumento didático
extremamente utilizado pelas/os docentes, como também por comporem um importante
mercado editorial sustentado pelo Estado que gera grandes lucros para as editoras que os
produzem. Como resultado, as relações estabelecidas entre o setor público e privado,
representadas pelas políticas educacionais e pelos conglomerados editoriais, geram um
cenário de disputas na área educacional, principalmente no que se refere ao processo de
descentralização da produção e do seu conteúdo (SILVA, 2018).
Essas disputas ocorrem por duas razões: a primeira, se refere ao fato da educação
ter/assumir um papel preponderante na reversão de desigualdades em especial de raça e
de gênero, desconstruindo estereótipos e preconceitos. É fato que as desigualdades não
têm seu nascedouro nas instituições de ensino, mas historicamente tem sido utilizada
enquanto veículo de propagação dessas desigualdades. A segunda, diz respeito a escola
se constituir enquanto um mecanismo de mobilidade social capaz de incluir aquelas/es
que no tempo/espaço estiveram margens.
Por tal, sendo os livros didáticos suportes privilegiados de mensagens curriculares
tendem a exercer grande influência, tanto por serem instrumentos extremamente
utilizados pela maioria das/os docentes no desenvolvimento de suas aulas. Quanto por
representarem um espaço curricular em que as desigualdades podem ser questionadas,
ressignificadas e/ou ratificadas.
Cabe destacar que foram os movimentos sociais, em especial as feministas negras,
as pioneiras em trazer para o debate aspectos pouco privilegiados na sociedade, como a
defesa de direitos à igualdade racial e de gênero. Dentre os objetivos das feministas
negras, no setor da educação, salientamos a necessidade de excluir passagens e textos
discriminatórios em livros didáticos que tendem a estereotipar e até mesmo invisibilizar
este segmento (SILVA, 2008).
Diante disso, destacamos o Programa Nacional de Livro Didático do Campo e o
Programa Escuela Nueva, respectivamente Brasil e Colômbia. Este Programas
constituem a política educacional pela qual são geridas as determinações da legislação
específica sobre educação do campo e a produção de livros didáticos, apresentando
enquanto objetivo
o Programa Nacional do Livro Didático do Campo, fundamentado na
Política de Educação do Campo, visa atender aos alunos dos anos iniciais do ensino fundamental, de escolas do campo, das redes públicas
de ensino, considerando as especificidades do contexto social, cultural,
ambiental, político, econômico, de gênero, geracional e de raça e etnia
(BRASIL, 2013, p. 41, grifo nosso).
Escuela Nueva es un modelo educativo dirigido, principalmente, a la
escuela multigrado proporcionando libros escolares a las zonas rurales con reconocimiento de la igualdad sin discriminación, compreender que
hay particularidades en razón de muchas condiciones (culturales, de
sexo, de raza…), (COLÔMBIA, 2010, p. 77, grifo nosso).
Logo, compreendemos que a política educacional direcionada para os livros
didáticos do território campesino, de ambos os países, partem do respeito as diferenças
de raça e de gênero em diálogo com as lutas travadas pelas feministas negras. Todavia, o
que se tem evidenciado é que o Estado tem cooptado a luta da população negra, em
especial da Mulher Negra, se aproveitando das conquistas políticas numa perspectiva
funcional. Isto é, a imposição de um modelo branco-cêntrico, sexista, classista, vinculado
ao agronegócio, sob o falso discurso de valorização das diferenças, produzindo uma
lógica assistencialista, paliativa e normalizadora dos conflitos sociais vigentes. Nessa
direção, entendemos que as políticas educacionais para o livro didático do território
campesino do Brasil e da Colômbia se insere em um contexto de luta permanente,
considerando os mecanismos de subterfúgio que o Estado vem realizando.
Diante do exposto, a título de organização, para além da introdução e das
considerações finais, este trabalho está organizado em três seções. Na primeira,
realizamos um diálogo entre as Abordagens Teórica do Feminismo Negro Latino-
Americano e os Estudos Pós-Coloniais. Na segunda, apresentamos nossas escolhas
Teórico-metodológicas. Por fim, na terceira, versamos sobre as marcas da Memória
Hegemônica e da Memória Vivida nas imagens da Mulher Negra no lugar cultura nos
livros didáticos do território campesino do Brasil e da Colômbia.
1. FEMINISMO NEGRO LATINO-AMERICANO E OS ESTUDOS PÓS-
COLONIAIS: TECENDO DIÁLOGOS
Nessa subseção, tecemos um diálogo entre as Abordagens Teóricas do Feminismo
Negro Latino-Americano e dos Estudos Pós-Coloniais. No que concerne à primeira
Abordagem discorremos sobre os seguintes conceitos: a) Memória Hegemônica; b)
Memória Vivida; c) Interseccionalidade; d) Patriarcado. Na segunda, fazemos uso dos
seguintes conceitos: a) Colonialidade e seus eixos do Poder, do Saber e do Ser b)
Heranças Coloniais; c) Geo-Corpo Política do Conhecimento.
A invasão empreendida pelo imperialismo português, no século XV, demarcou a
criação de uma linha abissal na qual se estabeleceram os territórios, os sujeitos e as
epistemes de referência. Assim, o sujeito autocriado (homem branco, europeu,
heterossexual e cristão) sem localização espaço-temporal nas relações de poder mundial
inaugura o mito de autoprodução da verdade moderna e eurocentrada, na qual as suas
referências (sociais, culturais, políticas, epistêmicas e econômicas) passam a ser
consideradas válidas e universais para explicar cientificamente a realidade.
Nessa linha de pensamento, Grosfoguel (2010), aponta que o sujeito autocriado
tem a sua localização geo-política marcada por uma existência como
colonizador/conquistador em que o ego conquistus é materializado na figura do homem
branco. Logo, os sujeitos situados no extremo desta representação passam a ocupar não
só os espaços periféricos de representação, mas passam, também, a ser silenciadas/os,
subalternizadas/os por este ego conquistus do sujeito colonizador.
Nesta tessitura, a Memória Hegemônica é forjada a partir de uma pertença
hierarquizada de desigualdade e de exclusão do ego conquistus que no tempo-espaço-
histórico demarcou sua Geo-Corpo Política do Conhecimento enquanto una e universal.
Assim, a Memória Hegemônica coaduna com a Colonialidade, uma vez que se funda na
imposição de um padrão de poder branco-cêntrico, arbitrário de dominação e exploração,
no qual o ideário colonial penetra as estruturas sociais tanto na dimensão objetiva quanto
na dimensão subjetiva dos povos subjugados. Para Quijano (2005), há três eixos da
Colonialidade: do Poder, do Saber e do Ser.
A Colonialidade do Poder diz respeito à classificação e à hierarquização racial dos
povos em inferiores e superiores ao mesmo tempo que demarca a distribuição e o controle
do trabalho dos povos subalternizados. Nesse ordenamento social a Mulher Negra se situa
na base da pirâmide social, enquanto o ser mais explorado e submisso, visto que
representa a antítese do ser hegemônico: o homem branco, europeu, heterossexual e
cristão e a antítese do ideal feminino: a mulher branca.
Atrelada a esta Colonialidade, temos a Colonialidade do Saber que implica na
negação e na invalidação dos conhecimentos dos sujeitos situados na linha abissal. Dessa
maneira, este eixo da Colonialidade legitima uma razão que produz um conhecimento
neutro, hegemônico, eurocêntrico, masculino, universal e, por tal tido enquanto válido.
Como resultado, o sujeito autocriado, na condição de sujeito epistêmico, narra a sua
história, exaltando e validando seus conhecimentos em detrimento das demais formas de
produção de conhecimento.
A Colonialidade do Ser denota a internalização da subalternidade do não europeu,
que passa a aceitar a imagem do colonizador como sua, ocultando assim a dominação
colonial. De acordo com Silva (2018, p.74),
no caso da Mulher Negra, a Colonialidade do Ser tece uma projeção do
que é ser mulher, esta projeção está ancorada no ideal de mulher branca a qual a Mulher Negra passa a acolher como sua. Logo, o Corpo
Feminino Negro passa a se situar no espaço do ainda-não, do que ainda
não existe concretamente, ela ainda não é o ideal de mulher branca, mas também não é mais o que era antes. A perversidade da Colonialidade
do Ser modifica profundamente a alteridade racial e de gênero da
Mulher Negra, visto que há um acoplamento dos marcadores raciais e
sexuais que passam a garantir a submissão da Mulher Negra.
Diante do exposto, compreendemos que as Heranças Coloniais (Colonialidade do
Poder, do Saber e do Ser), coadunam com o Patriarcado e a Interseccionalidade,
simultaneamente. Isto ocorre por que há um reforço das relações hierárquicas entre os
sujeitos em virtude do gênero, mas também pela raça, aprofundando as formas de
subjugação sobre a Mulher Negra, uma vez que porta, concomitantemente, ambos os
marcadores de opressão raça e gênero, podendo ainda aglomerar outros, tais como: classe,
sexualidade, território, entre outros.
Na contramão deste processo à Memória Vivida advém da Geo-Corpo Política do
Conhecimento do sujeito subalternizado. Assim, a Memória Vivida inclui o que a
Memória Hegemônica exclui, restituindo suas histórias, sua corporalidade, sua
afetividade, sua identidade e sua condição de sujeito epistêmico (GONZÁLEZ, 1984).
Por tal, falar de Feminismo Negro é pensar a partir de um movimento político e
epistêmico das Memórias Vividas da Mulher Negra que fez e faz, cotidianamente, fraturas
nos postulados hegemônicos, evidenciando outros modos de ser, de pensar e de produzir
conhecimentos.
2. PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO
Nesta subseção apresentamos nossas escolhas Teórico-metodológicas realizadas
na tessitura do trabalho. Assim, no primeiro momento, discorremos sobre a pesquisa
documental, seguido do uso da técnica de análise de conteúdo, atrelado à antropologia
visual no que diz respeito à tríade: pré-texto, texto e signo.
A adoção das abordagens Teórico-metodológicas do Feminismo Negro Latino-
Americano e dos Estudos Pós-Coloniais realizam uma virada epistêmica, considerando
que advém dos modos de ser, de pensar e produzir conhecimento dos sujeitos situados na
exterioridade colonial. A opção por tais Abordagens nos fez trilhar caminhos outros, a
saber: elegemos os livros didáticos do território campesino do Brasil e da Colômbia, isto
por que o campo e os sujeitos que nele residem, historicamente, foi/é são silenciadas/os.
Ademais, estes países são pioneiros no desenvolvimento de políticas afirmativas de
promoção da igualdade étnico-racial na América Latina. Na Colômbia se destaca a Lei
70/1993 que confere a obrigatoriedade de incluir nos diferentes níveis de ensino as
Cátedras de Estudos Afrocolombianos, Afroamericanas e Africanas. No Brasil, frisamos
a Lei 10.639/2003 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-
brasileira e Africana no sistema de ensino.
Neste percurso, nossas escolhas Teórico-metodológicas no encaminharam para
uma pesquisa do tipo documental que se caracteriza enquanto um procedimento que faz
uso de métodos e técnicas para a apreensão, compreensão e análise de documentos
diversos (SÁ-SILVA; ALMEIDA e GUINDANI, 2009). Para a organização e tratamento
dos dados fizemos uso da análise de conteúdo via análise temática (BARDIN, 2011;
VALA, 1990) que se desdobra em três etapas, são elas: pré-análise, exploração do
material e tratamento do dados e inferência.
A primeira, foi efetivada por meio da seleção e organização dos livros didáticos
do território campesino do Brasil e da Colômbia, realizamos leituras flutuantes no intuito
de identificar e selecionar as imagens da Mulher Negra. Na segunda etapa, codificamos,
classificamos e categorizamos as imagens que carregassem apresentassem marcas da
Memória Hegemônica e da Memória Vivida. Na terceira etapa, realizamos interpretações
mais aprofundadas levando em consideração o contexto de produção e de análise dos
dados coletados e codificados.
Atrelado a terceira etapa, utilizamos alguns elementos da antropologia visual: pré-
texto, texto e signo. O pré-texto diz respeito às impressões iniciais que a observadora
capta da imagem. O texto é o portador de um discurso que o faz por meio de uma
determinada representação social, cultural, histórica, política, econômica, epistêmica,
entre outros. O signo corresponde à construção ideológica de um universo simbólico que
foi tecido a partir de um ou mais pré-texto e texto (RIBEIRO, 2005).
Cabe destacar que a imagem na antropologia visual apresenta características que
vão além da qualidade instrumental de documentar, considerando que é perpassada de
natureza simbólica, construindo narrativas a partir dos signos que carrega. Desse modo,
a imagem condensa uma série de elementos do diverso que podem ser apropriados das
mais diferentes formas pelos sujeitos que a ela têm acesso.
3. AS MARCAS DA MEMÓRIA HEGEMÔNICA E DA MEMÓRIA VIVIDA NAS
IMAGENS DA MULHER NEGRA NO LUGAR CULTURA
Nesta subseção, tratamos das marcas da Memória Hegemônica e da Memória
Vivida nas imagens da Mulher Negra no lugar cultura por meio do pré-texto, do texto e
do signo. Frisamos que o lugar cultura diz respeito às distintas formas de expressão
artística (dança, pintura, escultura, música, etc.) realizadas por mulheres e homens.
Na exploração das imagens, identificamos que o lugar cultura apresenta duas
perspectivas distintas: arte e folclore. A primeira se refere as imagens que se aproximam
de expressões culturais hegemônica e nos livros didáticos são nomeadas de arte. A
segunda, demarca as expressões culturais que se distanciam do centro hegemônico e pela
lógica colonial passaram a ser denominadas de folclore, lendas, mitos, dentre outros.
As imagens da Mulher Negra no lugar cultura compreendem 37 imagens. Deste
total 24 estão situadas nos livros didáticos do Brasil, sendo 06 no lugar arte e 17 no lugar
folclore. A Colômbia soma 13 imagens das quais 02 estão no lugar arte e 11 no lugar
folclore. Salientamos que neste trabalho elegemos as imagens da Mulher Negra que
fossem mais representativas dentro do universo selecionado do lugar cultura. Vejamos:
Figura 01 - Cultura Figura 02 - Cultura
Fonte: MEC. Hist. 5º ano. Brasil, 2016, p.167. F Fonte: MEN. Cienc. Soc. 5º ano. Colômbia, 2014, p. 82.
Nas imagens da Mulher Negra no lugar cultura como arte trazemos os pré-textos:
a) retirante; b) mãe/filha (figura 01). Estes pré-textos demarcam uma condição de não
prestígio, sobretudo pelas condições em que o Corpo Feminino Negro é retratado,
atrelado a um contexto de pobreza e/ou miséria. Como resultado, o pré-texto e o texto
tecem um signo firmado nos marcadores da Memória Hegemônica na qual a situação
socioeconômica e cultural da Mulher Negra permanece subalterna, considerando que as
hierarquias de raça, de gênero e de classe passam a determinar as condições em que esses
sujeitos são representados.
A figura 02 traz enquanto pré-texto as faces de Mulheres Negras e de homens
negros colombianos, evidenciando a sua profissão e fraturando os postulados da Memória
Hegemônica que postula que estas e estes sujeitos não podem alçar postos de trabalho
considerados de status social. Para além do exposto, destacamos que a figura 02 transita
entre ambas as Memórias, isso ocorre por que pela lógica colonial tal produção,
dissociada dos ditames branco-cêntrico, é denominada de arte popular.
Nessa conjuntura, a definição do que é cultura como arte popular e erudita está
associada, também, ao local geopolítico de produção dessas obras. A figura 01 é uma obra
de um artista brasileiro, mas com influência na arte europeia, por isso é tida enquanto arte
erudita e não arte popular. Assim, a figura 02 rompe com os postulados da Memória
Vivida ao retratar Mulheres Negras e homens negros, mas pela própria lógica colonial é
tida enquanto arte popular, por distanciar do seu “ideal” de produção. Por isso a figura 02
transita entre ambas as Memórias: Vivida e Hegemônica, evidenciando que não há
neutralidade entre as Memórias, mas tensões e assimetrias de poder.
Ainda, no lugar cultura enquanto folclore, selecionamos a figura 03 e 04, ambas,
apresentam enquanto pré-texto a Mulher Negra enquanto dançarina. Segue:
Figura 03 - Cultura Figura 04 - Cultura
Fonte: MEC. Hist. 2º ano. Brasil, 2016, p.159. Fonte: MEN. Cienc. Soc. 4º ano. Colômbia, 2014, p. 76.
As figuras 03 e 04 apresentam a imagem da Mulher Negra participando e/ou
integrando em atividades culturais ao mesmo tempo que demarca a latente presença da
Colonialidade do Poder e do Patriarcado, simultaneamente. Na primeira, identificamos
uma hierarquização dos sujeitos: homem branco, seguido da mulher branca, do homem
negro e a Mulher Negra em último plano. Portanto, se a Colonialidade do Poder classifica
e hierarquiza os sujeitos, o Patriarcado aprofunda essa desigualdade em virtude do gênero,
sobretudo, quando o gênero é racializado.
Deste modo, embora a Mulher Negra “participe” das atividades culturais a
Colonialidade do Poder e o Patriarcado determina dentro de que condições a Mulher
Negra pode atuar. Isto é, no papel de coadjuvante, de relegada a quarto plano, que integra
as atividades, mas em uma condição subalterna, como podemos observar nas figuras 03
e 04 em que a Mulher Negra tanto em último plano, quanto ocupa as margens da figura e
os sujeitos brancos permanecem centralizados/as.
Posto isso, entendemos que as Memórias tecem relações de poder que se
entrecruzam nas imagens da Mulher Negra, determinando as condições de sua
representação, uma exaltando e validando a cultura eurocêntrica e a outra as culturas da
exterioridade colonial. Essa disputa, no lugar cultura, tem se firmado por meio de
assimetrias, visto que os marcadores da Memória Hegemônica compreendem 82% das
imagens e a Memória Vivida representa 18%. Embora em menor porcentagem a
exterioridade colonial permanece, ocasionando tensões na luta por espaços outros,
representações outros e, isto vêm, paulatinamente, resvalando nos livros didáticos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No lugar cultura, identificamos duas perspectivas distintas: arte e folclore, essa
dissociação determina, no material analisado, a Geo-Corpo Política do Conhecimento que
perfaz as imagens da Mulher Negra. O lugar cultura como arte é demarcado por registros
visuais que advêm ou se aproximam das produções eurocêntricas. Por outro lado, o lugar
cultura como folclore compreende o registro das expressões culturais dos sujeitos
situados no sul subalternizado e/ou de produções artísticas que se distanciam dos
postulados coloniais/modernos.
Essa dualidade, arte e folclore, provém das tensões e conflitos entre ambas as
Memórias que buscam, paulatinamente, angariar espaços nos livros didáticos. É fato que
a Memória Hegemônica tem ocupado cada vez mais espaço e como consequência temos
o silenciamento e/ou a subjugação das produções culturais da exterioridade colonial e a
exaltação das produções culturais euro-centradas.
Por sua vez, as imagens que coadunam com a Memória Vivida resgatam as danças,
as pinturas, os modos de ser e de se vestir da exterioridade colonial, registrando a cultura
como uma forma de expressão artística, mas também de resistência, de protagonismo e
de militância. Tais resistências fraturam, ainda que lentamente, a Memória Hegemônica
ao mesmo tempo em que angariam espaços que outrora lhes foram/são negados. Diante
disso compreendemos que os livros didáticos podem se constituir enquanto uma
ferramenta poderosa no enfrentamento do racismo e do sexismo que habita nos espaços
escolares, contribuindo para a valorização das Memórias Vividas da exterioridade
colonial.
REFERÊNCIAS
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