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As marcas de oralidade em relatos pessoais escritos por alunos do Ensino Médio
Tatiane Cristina Becher (UNIOESTE)
Sanimar Busse (UNIOESTE)
Resumo: Apresentam-se, neste trabalho, reflexões preliminares sobre a escrita de alunos do
Ensino Médio. A investigação parte do texto como lugar de ensino/aprendizagem e de diálogo
entre outros textos, conforme destaca Geraldi (1997). Trataremos, aqui, de uma proposta de
produção de texto do gênero relato pessoal, realizada em três turmas pertencentes a um colégio
estadual da cidade de Cascavel/PR. Nos textos produzidos pelos alunos, verifica-se a tendência
ao comportamento menos monitorado do uso da linguagem, por meio de marcas de oralidade
provenientes do discurso oral falado do aluno, como sujeito que se utiliza de sua própria
linguagem cotidiana, de forma espontânea, mesmo no momento da escrita. O roteiro de
investigação compreende a descrição e a análise da natureza dos fenômenos registrados nas
redações analisadas, as quais apresentaram, em diversos momentos, a aproximação da
modalidade falada com a modalidade escrita. Os dados, ainda iniciais, revelam uma tentativa
de manifestação de conhecimentos já construídos, marcados por hipercorreções e ausência de
controle sobre a arbitrariedade da escrita.
Palavras-chave: escrita; marcas de oralidade; Ensino Médio
Abstract: In this paper, preliminary considerations related to the writing of High School
students are presented. The investigation regards the text as a place for teaching/learning and
for dialogue among other texts, as emphasized by Geraldi (1997). We deal, here, with a
composition proposal of the text genre personal report, given in three classes which belong to
a state school in the city of Cascavel/PR. On the texts produced by the students, it’s possible
to notice the tendency to a less monitored behavior while using language, through marks of
orality coming from the student’s oral speech, who is considered a subject that uses one’s own
daily language, in a spontaneous manner, even when writing. The investigation guide
comprehends the description and analysis of the registered phenomena’s nature in the
compositions analyzed, which frequently presented approximation between spoken and written
modalities. The data, still initial, reveal an attempt to manifest knowledge that is already built,
marked by overcorrection and lack of control towards the arbitrariness of writing.
Keywords: writing; marks of orality; high school
Considerações iniciais
A disciplina de Língua Portuguesa está inserida na área de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias, a qual, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio -
PCNEM (BRASIL, 2000), tem sua diretriz registrada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional nº 9.394/96 e no Parecer do Conselho Nacional da Educação/Câmara de Educação
Básica nº 15/98. Segundos os PCNEM (BRASIL, 2000), o ensino da Língua Portuguesa deve
ser articulado aos pressupostos de sua área, englobando leitura/literatura, estudos gramaticais
e produção textual, os quais eram, antigamente, separados em aulas específicas, como se não
tivessem relação entre si.
Dentre os objetivos propostos à disciplina de Língua Portuguesa, ao nos atentarmos às
atividades que propõem explorar a capacidade do aluno de se expressar por meio da escrita,
segundo as Diretrizes Curriculares da Educação Básica Língua Portuguesa/DCEs (PARANÁ,
2008), ao produzir uma redação, o aluno deve ser capaz de desenvolver textos que representem
sua autoria e seu posicionamento quanto à sua leitura do mundo. Não obstante, conforme as
DCE, “a produção escrita possibilita que o sujeito se posicione, tenha voz em seu texto,
interagindo com as práticas de linguagem da sociedade”. (PARANÁ, 2008, p. 56)
No entanto, conforme afirma Marquesi (2014), a dificuldade que alunos do Ensino
Médio apresentam para se expressarem por meio da escrita é recorrente, sendo que, muitas
vezes, esses alunos limitam-se a transcrever trechos ou clichês de textos lidos em suas redações,
o que presume a ausência de um fio condutor orientador de sua escrita.
Um dos objetivos de grande parte dos alunos deste nível de ensino consiste em obter a
aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), com o intuito de auxiliar na
conquista de uma vaga nas mais variadas universidades do país. Para conseguir uma nota
suficiente neste exame, uma das obrigações estipuladas ao estudante é demonstrar seu domínio
quanto ao uso da linguagem para defender sua opinião sobre o tema apresentado na proposta
de redação.
De acordo com as informações contidas na Cartilha do Participante Redação no Enem
(2016), o ENEM propõe, em sua etapa de redação, que o aluno se posicione acerca de um tema,
apresente uma tese e, por meio de um texto dissertativo-argumentativo, exponha sua opinião,
apoiada em argumentos consistentes, estruturados com coesão e coerência, formando uma
unidade textual. Esse texto deve ser escrito respeitando a modalidade formal da Língua
Portuguesa, sendo que um dos requisitos para uma redação adequada ao gênero é a “ausência
de marcas de oralidade e de registro informal”.
A redação do ENEM, assim como em qualquer outra situação de uso formal da língua,
como em redações para vestibulares em geral, escrita acadêmica, trabalhos escolares, textos
produzidos em um ambiente de trabalho, dentre outros, requer um domínio relativamente
elevado da capacidade de escrita de qualquer pessoa que utiliza essa modalidade da linguagem.
Para Marcuschi (1997), a escrita representa um bem indispensável para se viver em sociedade
na atualidade, podendo ser vista, inclusive, como essencial à nossa sobrevivência.
Uma das considerações avaliadas em testes classificatórios como o ENEM é o uso
formal da linguagem, como se estabelece na própria Cartilha do Estudante para a Redação do
Enem, em que uma das instruções para o uso adequado dessa modalidade escrita é a ausência
de expressões escritas que se aproximem da fala informal. No entanto, segundo Crescitelli e
Reis (2014), “o homem é um ser que fala; portanto, todas as práticas sociais que ele realiza
decorrem da oralidade, incluindo-se a escrita.” (CRESCITELLI; REIS, 2014, p. 38). Assim, há
a influência direta existente entre as capacidades da fala e da escrita em qualquer indivíduo
capaz de escrever. A habilidade de adequar o uso da linguagem de acordo com diferentes
contextos, objetivos e circunstâncias representa um dos papeis do educador cuja função remete
ao ensino da língua e suas diversas possibilidades de uso – como é o caso da adequação da
linguagem a ser utilizada em uma produção textual como a do ENEM.
Neste artigo, serão, primeiramente, abordadas as noções de texto, produção textual e
diferenciação entre fala e escrita, a partir de estudos de autores como Geraldi (1997), Koch
(2008), Marcuschi e Dionisio (2007), Marcuschi (1997), dentre outros, para, em seguida,
apresentarem-se os dados dos fenômenos morfossintáticos presentes nas redações analisadas,
refletindo acerca das marcas de oralidade presentes do corpus, com aporte teórico nos autores
apresentados e em documentos como as Diretrizes Curriculares da Educação Básica Língua
Portuguesa (DCE) e os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM), na
intenção de abordar a necessidade de conscientizar o aluno-escritor acerca das adequações
pertinentes entre as diferentes modalidades de uso da linguagem.
O texto como ambiente de manifestação dos fenômenos da linguagem
Com o intuito de se discorrer acerca dos fenômenos de escrita relacionados à oralidade
encontrados nas produções de alunos do Ensino Médio, este estudo foi realizado a partir do
material textual ao qual nos referimos como o “texto”. Há, no entanto, variadas formas de se
conceber a noção do que se trata um texto. Conforme Geraldi (1997), o texto caracteriza-se
como uma atividade discursiva, por meio da qual uma pessoa diz algo para outra, o que consiste
em “uma sequência verbal escrita formando um todo acabado, definitivo e publicado”
(GERALDI, 1997, p. 101).
Para Costa Val (1999, p. 3), “pode-se definir texto ou discurso como ocorrência
linguística da língua falada ou escrita, de qualquer extensão, dotada de unidade
sociocomunicativa, semântica e formal”. Costa Val (1999) concorda com Geraldi (1997) no
sentido de que um texto representa uma unidade de linguagem em uso que possui a função de
promover a comunicação entre dois seres.
Guimarães (2004) descreve o texto como qualquer enunciado, verbal ou escrito, extenso
ou curto, antigo ou moderno, sinônimo de discurso, assim como os autores Halliday e Hasan
(1976) afirmam que um texto pode ser falado ou escrito, em prosa ou em verso, em forma de
monólogo ou diálogo, abrangendo desde um simples provérbio até uma peça completa, desde
um grito para se pedir ajuda até uma discussão em um comitê que dure um dia.
Ruiz (2001) aponta para uma diferenciação existente entre concepções que entendem a
linguagem como um sistema, seja como representação do pensamento ou como instrumento de
comunicação, e a concepção denominada “sociointeracionista”, a qual considera a linguagem
uma atividade de interação social, onde indivíduos produzem-se como sujeitos. Para a autora,
a atividade linguística não é representada por frases isoladas ou um conjunto delas, mas sim
sequências linguísticas maiores, as quais possibilitam uma continuidade de sentidos, o que
significa considerar como objeto de análise o texto. A pluralidade de teorias concernentes ao
conceito de texto reflete a complexidade deste objeto de estudo.
Acerca da consideração dos gêneros textuais nos quais os textos se enquadram, de
acordo com Bakhtin (1992), as esferas de atividade humana regulam a utilização da língua,
sendo que o enunciado reflete as especificações e finalidades intrínsecas a cada uma dessas
esferas sociais, as quais estabelecem tipos relativamente estáveis de enunciados, aos quais nos
referimos como gêneros do discurso.
Koch (2008) baseia-se nos estudos de Bakhtin (1992) para apontar que essas práticas
comunicativas também são representadas pelos gêneros textuais, os quais são constituídos de
determinado modo e possuem funções específicas coerentes com as esferas sociais às quais
estão inseridos, o que torna possível reconhece-los e produzi-los quando necessário.
Segundo Koch (2008, p. 107), “todo gênero é marcado por sua esfera de atuação que
promove modos específicos de combinar, indissoluvelmente, conteúdo temático, propósito
comunicativo, estilo e composição”, mesmo que, ainda segundo a autora, os gêneros sejam
dinâmicos e sofram variações em sua constituição. Para Koch (2003), dentro da esfera escolar,
há o desdobramento do gênero, o qual deixa de ser apenas uma ferramenta de comunicação e
passa a ser, também, um objeto de ensino/aprendizagem.
No que concerne à habilidade de escrita, Ilari (1997) afirma ser o objetivo da produção
textual escolar a possibilidade de levar o aluno a observar os aspectos textuais do uso da língua,
utilizando-se de textos coesos e adequados, sendo a redação um exercício de roteiros
relacionados às funções do texto e seus registros linguísticos, atentando-se à coesão interna do
texto que se cria, representando, ainda, uma prática de controle dos fatores de informatividade
e redundância dentro do texto.
Acerca das modalidades falada e escrita da língua
O uso da língua não se restringe apenas ao material escrito, sendo a noção de texto
muito mais abrangente do que apenas a grafia. Segundo Marcuschi (1997, p. 126), “a fala seria
uma forma de produção textual-discursiva oral, sem a necessidade de uma tecnologia além do
aparato disponível pelo próprio ser humano. A escrita seria, além de uma tecnologia de
representação abstrata da própria fala, um modo de produção textual-discursiva com suas
próprias especificidades”.
Destaca-se a relação entre as diferentes formas de manifestação da língua. Marcuschi e
Dionisio (2007) afirmam que a língua se manifesta e funciona de duas maneiras: como
atividade oral e como atividade escrita. A expressão “fala” corresponde às formas orais do
material linguístico, enquanto o termo “escrita” refere-se ao material linguístico escrito, sendo
que se tratam de realizações integradas da língua, uma vez que é impossível identificar
determinados fenômenos formais de diferenciação entre oralidade e escrita que sejam
exclusivos da escrita ou da fala – todos os parâmetros linguísticos podem aparecer em algum
momento em ambas. Os autores continuam que não há dois sistemas linguísticos diversos em
uma mesma língua, ou seja, tanto a fala quanto a escrita seguem o mesmo sistema linguístico.
Mesmo assim, conseguimos identificar cada uma dessas habilidades de maneira clara, tendo
em vista que apresentam similaridades e diferenças, constantemente entrelaçadas.
Marcuschi (1997) aponta a existência de terminologias para as seguintes dicotomias:
língua padrão vs variedades não-padrão, língua culta vs língua coloquial, norma padrão vs
normas não-padrão. Para o autor, as relações entre fala e escrita tratam da questão dos
diferentes usos da língua, sendo que “o interessante nesta perspectiva é que a variação se daria
tanto na fala quanto na escrita, o que evitaria o equívoco de identificar a língua escrita como a
padronização da língua, ou seja, impediria identificar a escrita como equivalente a língua
padrão” (MARCUSCHI, 1997, p. 132).
Rodrigues (1999) enfatiza que, quando se escreve, há um distanciamento maior entre
escritor e leitor do que na língua falada, que prevê uma situação conversacional face-a-face,
momentânea, na qual o sujeito para quem se fala recebe a mensagem instantaneamente. Na
escrita, a mensagem do autor não é transmitida de imediato ao leitor. Dessa maneira, o escritor
possui mais tempo para pensar sobre o que e de que maneira escreve, da mesma forma que o
leitor irá dispor de mais tempo para entender sobre o que foi escrito. Por isso, o escritor tem
condições de produzir seu texto com mais cautela do que em uma situação conversacional,
organizando sua escrita de maneira mais cuidadosa.
Análise do corpus
Com o intuito de se identificar e analisar de que maneira a modalidade falada se
entremeia com a modalidade escrita, o que se manifesta ao utilizar-se da grafia, o corpus que
compõe esta pesquisa consiste em 48 textos produzidos por alunos do Ensino Médio de um
colégio público estadual, localizado na cidade de Cascavel/PR. A proposta de escrita foi
realizada no início do ano letivo de 2017, assim como a coleta dos dados, sendo que a amostra
abrangeu todas as séries pertencentes ao Ensino Médio: 1º, 2º e 3º anos. A atividade foi aplicada
pela professora regente e envolveu a apresentação escrita dos alunos, os quais foram instruídos
a apresentarem-se por meio desse relato pessoal, comentando sobre aspectos de sua
personalidade, suas preferências, sua rotina e atividades diversas que praticam no dia-a-dia.
Marcuschi (2010) utiliza os termos “oralidade” e “letramento” para tratar de práticas
sociais, e “fala” e “escrita” para se referir a modalidades de uso da língua. Para o autor, os
textos de cada modalidade – fala e escrita – são correlacionados e distinguidos pelos gêneros
textuais, nos quais há diversas variações, resultando em semelhanças e diferenças ao longo de
contínuos sobrepostos. Pode-se perceber, por exemplo, que uma carta se assemelha mais com
textos orais do que textos acadêmicos, mesmo que ambos sejam materiais escritos.
Dessa forma, podemos prever que as redações aqui analisadas se enquadram em uma
modalidade escrita que se aproxima da modalidade falada e, portanto, apresenta uma tendência
maior a apresentar ocorrências de marcas na escrita que se aproximam da oralidade, ou seja,
marcas de escrita próximas à maneira como o aluno utiliza a linguagem em sua fala cotidiana.
Vejamos alguns casos apresentados pela escrita dos alunos pertencentes à amostra:
1) “[...]e reparei que sem estudo agente vai acabar em nada[...]”
2) “Gosto de fazer textos de auto-ajuda, segundo a meus amigos e familiares eu levo
jeito.”
3) “[...]levei meus estudos na brincadeira[...]”
4) “[...]sempre me dei bem em atividades escolares.”
5) “Eu estuda em um colégio de irmãs, tudo muito rígido, mas divertido era tudo
certinho e bem puxado, mas nessa caminhada tive amigos, que não vejo mais e
amigos que ainda se vemos, mas hoje vejo a a minha filha passando por tudo isso
muito bom.”
Cada um desses trechos foi copiado de redações diferentes. Em todos os exemplos, há
expressões escritas que se aproximam da linguagem oral-dialogada, mais informal, coloquial,
como “agente vai acabar em nada”, “levo jeito”, “levei na brincadeira”, “me dei bem” e “bem
puxado”. Para Dijk (2002), o discurso é produzido por um falante e recebido por um ouvinte
inseridos em situações específicas de comunicação, ou seja, consiste em um processo funcional
inserido em um contexto social. Dessa maneira, ainda segundo o autor, ao comunicar-se, o
sujeito utiliza não apenas objetos linguísticos, mas também os resultados provenientes de
algum tipo de ação social. Os exemplos trazidos apresentam-se como resultantes de processos
sociais intermediados pela fala em situações mais coloquiais. Certamente, todas essas
expressões informais indicadas provêm da maneira como esses alunos se comunicam
informalmente, por meio da linguagem oral-dialogada.
Marcuschi (1997) destaca que o ser humano foi concebido como um ser que fala, e não
como um ser que escreve; daí deriva a noção de consideração da fala como primário e da escrita
como secundária. Segundo o autor, todos os povos já existentes compartilharam ou
compartilharam da linguagem oral, enquanto relativamente poucos têm ou tiveram acesso à
língua escrita. Ademais, mais relevante do que apontar qualquer espécie de supremacia entre
as duas modalidades, faz-se relevante, na verdade, esclarecer a natureza das práticas sociais
envolvidas com o uso da língua escrita e oral, pois cada uma delas possui um papel e um grau
de relevância para a sociedade.
Segundo Crescitelli e Reis (2014, p. 32), “o contexto interacional escolar deve
concorrer para que o aluno seja um usuário competente da linguagem e capaz de adequá-la em
instância pública dialógica diversificada e complexa, a qual envolve inúmeras situações do
exercício da cidadania sujeitas a avaliações”. Para as redações analisadas neste trabalho,
compreende-se que o conteúdo sobre o qual os alunos redigiram estes textos possibilita o uso
de uma linguagem mais informal e, outrossim, percebem-se várias marcas da língua oral
presentes na escrita. Outro exemplo é apresentado abaixo:
6) “[...] não me recordo ao certo quando comecei a estudar desde lá não se esforcei
muito ai acabei reprovando na 3ª série nos mudavamos muito ai não gostava de ir
a aula, levei meus estudos na brincadeira, ai reprovei de novo no 9º ano.”
No exemplo 6, a oralidade é marcada pelo uso da expressão “ai” como conectivo
textual, o qual pode ser considerado, baseando-se em Marcuschi (1997), como um fenômeno
dialógico e discursivo de uso de um conectivo textual na modalidade oral, impreciso, não-
planejado e não-normatizado. Marcuschi (1997) destaca a dicotomia fala x escrita ao trazer
exemplificações de suas características, apontando a fala como contextualizada, implícita,
redundante, não-planejada, imprecisa e não-normatizada, enquanto a escrita é
descontextualizada, explícita, condensada, planejada, precisa e normatizada. Segundo o autor,
essa perspectiva caracteriza-se por uma visão imanentista, que sugere essa separação entre a
língua em uso e a língua como um sistema de regras, o que decorreu ao ensino da língua a partir
de regras gramaticais. Por esse motivo, esse viés, de caráter restritamente formal, não abre
espaço para os fenômenos dialógicos e discursivos.
A partir desses pressupostos, faz-se devida a conscientização, por parte da escola, da
existência de tais fenômenos dialógicos e discursivos, assim como de sua adequação quanto à
situação de uso da língua. O conectivo “ai”, recorrente na fala de muitos alunos, não seria
considerado adequado em um texto dissertativo-argumentativo, como é o caso da redação do
ENEM, por exemplo. Mesmo assim, essa linguagem oral informal pertence ao sistema
linguístico desse aluno – o que também deve ser visto com naturalidade pela instituição
educadora. Não se trata de um “erro”, como seria classificado em muitos casos. Trata-se de
uma necessidade de adequação da linguagem conforme as diferentes situações sociais, o que
não excluir a possibilidade de se utilizar expressões informais como essa em contextos
específicos. Segundo Tarallo (2005), há diversas maneiras de se dizer a mesma coisa, dentro
de um mesmo contexto, com o mesmo valor de verdade, ao que se denomina “variante
linguística”. Existem variantes padrão/não padrão, conservadoras/inovadoras,
estigmatizadas/de prestígio.
Outros exemplos de marcas de oralidade percebidas nos textos analisados são descritos
a seguir:
7) “[...] agora eu to no último ano do ensino médio.”
8) “[...] eu estudo aqui nesta escola desdo 6º ano do fundamental [...]”
9) “[...] estudei na 2ª serie num colegio que eu não lembro o nome e estudei na 1ª
serie em outro colegio que não lembro o nome [...]”
O exemplo 7 apresenta uma marca da fala, na qual o aluno escreve um termo
exatamente como está habituado a pronunciá-lo: “tô” ao invés de “estou”. Para Rodrigues
(1999, p. 31), “as diferenças entre língua falada e língua escrita são de outra natureza, [...] elas
resultam de diferenças entre os processos de falar e de escrever, ou entre condições de produção
do texto falado e do escrito”. No exemplo 7, a utilização do termo “tô” para se designar ao
termo lexical “estou” representa não apenas de uma informalidade, mas uma marca da fala, de
fato. Afinal, subtração de sílaba em “tô” para a designação verbal conjugada “estou” é
frequentemente utilizada pelos falantes do português, especialmente em situações que não
requerem qualquer nível de formalidade, mas não faz parte da norma padrão da língua
portuguesa, em sua modalidade escrita. Mais uma vez, o que se apresenta é uma necessidade
de conscientização acerca da variação da língua, inserida em diferentes contextos, com
diferentes propósitos – o que difere de uma dicotomização entre os extremos “certo” e “errado”.
Conforme Vieira e Brandão (2007), entende-se por “normas” um conjunto de “regras”,
“funções”, “modelos”, “princípios”, “leis”. No entanto, há uma lacuna entre a norma idealizada
e a norma praticada de fato, mesmo quando utilizada pelos falantes com alto nível de
escolaridade – o que nos leva à necessidade de, constantemente, repensar nosso código
gramatical e buscar atualizá-lo. Nesse contexto, surgiu o fenômeno da língua falada brasileira
na sua variante culta, que passou a ser o modelo, a norma, contrastando as variantes cultas das
populares.
Nos exemplos 8 e 9, há a contração informal de conjunção e artigo, característica da
língua falada, em “desdo” (desde + o) e “num” (em + um). Partindo de uma perspectiva
fundamentada na norma denominada “padrão”, mais tradicionalista, esse uso da linguagem é,
na maioria das vezes, rechaçado quando usado no contexto escolar, especialmente quando se
trata da modalidade escrita, pois, conforme Marcuschi (1997, p.120), “a fala é adquirida
naturalmente em contextos informais do dia-a-dia. A escrita, em sua faceta institucional, se
adquire em contextos formais: na escola. Daí também seu caráter mais prestigioso como bem
cultural desejável”.
No entanto, embora seja também papel da escola capacitar o aluno para o correto uso
da língua considerada padrão, há, conforme anteriormente ressaltado, a importância de
salientar a variação existente entre diferentes contextos sociais. Segundo Freitag (2011), cabe
ao professor de língua portuguesa o reconhecimento de que cada aluno pertence a uma
realidade linguística diferente e que, de algum modo, tais diferenças irão se manifestar na
maneira como aprendem o código linguístico. Não obstante, para as DCE (2008), a escola,
como instituição democrática, tenciona garantir a socialização de conhecimentos e, para tanto,
deve acolher alunos independentemente de sua origem quanto à variação linguística que
utilizam. Conforme consta nas próprias DCE (2008),
A acolhida democrática da escola às variações linguísticas toma como ponto
de partida os conhecimentos linguísticos dos alunos, para promover situações
que os incentivem a falar, ou seja, fazer uso da variedade de linguagem que
eles empregam em suas relações sociais, mostrando que as diferenças de
registro não constituem, científica e legalmente, objeto de classificação e que
é importante a adequação do registro nas diferentes instâncias discursivas.
(PARANÁ, 2008, p. 55).
Temos, ainda, no exemplo 9, a repetição de termos. Segundo Crescitelli e Reis (2014),
a repetição consiste em uma estratégia de construção do texto falado, assim como a correção,
o parafraseamento, a parentetização e a referenciação.
No âmbito escolar, marcas de oralidade utilizadas na modalidade escrita, como os
exemplos trazidos neste artigo, são, muitas vezes, criticados e considerados “erros”, sem
qualquer conscientização quanto à adequação da escrita em diferentes contextos sociais, sendo
que, segundo Marcuschi (1997), a supervalorização da escrita acarreta uma carga ideológica
de superioridade para sociedades letradas, ou até mesmo para grupos específicos que dominam
a habilidade de escrita dentro de uma sociedade desigualmente desenvolvida. De encontro à
essa supervalorização da escrita, tem-se um dos sentidos da área de ensino de linguagens,
presente nos PCNEM (BRASIL, 2000, p. 8): “analisar, interpretar e aplicar os recursos
expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza,
função, organização das manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção”.
Além disso, ainda conforme os PCNEM (BRASIL, 2000), os parâmetros também
deixam claro como uma das competências objetivadas ao longo do processo de ensino-
aprendizagem de alunos do Ensino Médio a seguinte diretriz: “compreender e usar os sistemas
simbólicos das diferentes linguagens como meios de organização cognitiva da realidade pela
constituição de significados, expressão, comunicação e informação” (BRASIL, 2000, p.9). Por
essa razão, faz-se necessária a consideração das diferentes funções da escrita, inclusive dentro
da escola, tornando claro para o aluno que, assim como se adequa a linguagem falada mais
apropriada conforme o contexto, o mesmo ocorre com a linguagem escrita.
Marcuschi (1997) salienta a função da escrita nos diferentes contextos sociais, como
escola, família, dia-a-dia, trabalho, vida burocrática e atividade intelectual, sendo que, para
cada situação, há distintas ênfases e objetivos para a escrita. Por conseguinte, escrita e contexto
entrelaçam-se, resultando em diferentes tipos e formas textuais, assim como terminologias e
expressões específicas. Por isso, seria benéfico o trabalho escolar focado nessas relações,
orientando o aluno quanto à seleção e definição de níveis de linguagem apropriados de acordo
com os diferentes contextos.
Considerações finais
A análise realizada nos permite perceber de que maneira a fala influencia na escrita,
uma vez que consistem em modalidades que se intermeiam, mesmo apresentando distinções
claras entre si. Como apontado por Crescitelli e Reis (2014), o ser humano é, primeiramente,
um ser que fala, adquirindo a habilidade de se comunicar por meio da linguagem oral-dialogada
para, posteriormente, apropriar-se da capacidade de escrita. Por essa razão, a escola, como
instituição democrática de inclusão, deve considerar a linguagem em suas diferentes
modalidades de uso, mostrando que diferentes situações sociais requerem diferentes usos da
linguagem, tanto na modalidade falada quanto na escrita, assim como deve levar o aluno a
apropriar-se dessa capacidade de adequação linguística.
Sendo assim, os profissionais docentes devem estar cientes das ideologias presentes nos
DCE e nos PCNEM com relação à consideração da linguagem e suas variações, para que a
escola seja essa instituição de inclusão que tenciona ser – inclusão esta, inclusive, linguística –
respeitando os diferentes usos da língua, em suas distintas modalidades, além de trabalhar com
suas variações, de modo a capacitar o estudante a refletir acerca de seu próprio uso da
linguagem, ultrapassando a noção de ensino que se limita aos meros conceitos de “certo” e
“errado”, a qual exclui a capacidade de adequação da língua - uma vez que esta necessidade de
adequação de fato existe e está presente em qualquer contexto.
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