As Noites de Flores - Cesar Aira

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  • 8/13/2019 As Noites de Flores - Cesar Aira

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    As noites de Flores

    Csar AiraTraduo Paulo Andrade Lemos

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    UM CASAL DE MEIA-IDADE DE FLORES, Aldo e Rosita

    Peyr, adotou um ofcio curioso no qual eramnicos, despertando a curiosidade dos poucos que

    sabiam disso: faziam entregas noturnas em do-

    miclio para uma pizzaria do bairro. No que eles

    fossem os nicos a faz-lo, como ficava patente

    pelo exrcito de rapazes de moto que ia e vinha

    pelas ruas de Flores e por toda Buenos Aires des-

    de o pr-do-sol, como camundongos no labirin-

    to de um laboratrio. Mas no havia nenhum ou-

    tro casal de meia-idade (nem jovem) que fizesse

    isso a p, e do seu prprio jeito.

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    Eles eram membros muito caractersticos de

    nossa maltratada classe mdia: com uma apo-sentadoria medocre, casa prpria e sem grandes

    apertos, mas tambm sem muita folga. Com sade

    e energia, ainda relativamente jovens e sem nada

    para fazer, teria sido de espantar que no pro-

    curassem alguma atividade com que completar a

    sua modesta renda. No se propuseram a ser ori-ginais. O trabalho apareceu um pouco por acaso

    porque conheciam o jovem gerente da pizzaria e

    tambm talvez porque aquilo se parecia com um

    no-trabalho. A crise, que vinha ocasionando

    tantas adaptaes estranhas nos hbitos, acabou

    fazendo com que a oportunidade se encaixasse.As pizzarias deixaram de ter a sua prpria frota de

    motos depois que perceberam que podiam operar

    com entregadores que tinham seu prprio veculo.

    Houve uma reduo drstica na oferta de traba-

    lho, e o que restou fez-se mais imprevisvel ainda,

    pois os adolescentes que eram donos das motoci-cletas trabalhavam somente quando precisavam

    de dinheiro e mudavam de patro como quem

    muda de roupa. O casal Peyr era pontualssimo,

    responsvel, e o passo-a-passo deles funcionava.

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    Davam-lhes as entregas em locais prximos, num

    raio de ao reduzido, e no se podia dizer quedemorassem mais do que os motoqueiros e nem

    que as pizzas chegassem frias. Ganhavam o pe-

    queno salrio estabelecido, mais as gorjetas. E

    alm do mais, isso os obrigava a caminhar, o que

    era um exerccio recomendado para a idade deles,

    timo para a sade, e nem foi preciso que um m-dico lhes dissesse isso.

    O trabalho os ps em contato com uma parte

    da sociedade que de outro modo desconheceriam.

    E tambm com uma parte deles mesmos que no

    teria vindo luz. Como tantos casais da idade de-

    les, iam ficando cada vez mais parados, passandoas noites na frente da televiso, indo se deitar

    cada vez mais cedo. Ao abrir-se a noite para

    eles, foi como uma renovao de uma espcie

    de juventude. E os rapazes extremamente jovens

    que eram seus colegas de trabalho na pizzaria os

    tratavam com a maior naturalidade. Eram quasemeninos, ou eram meninos mesmo, vistos do alto

    da idade de Aldo e Rosita, o que no os impedia

    de aprender com eles. As geraes, ao se renova-

    rem, trazem coisas novas que no tm nada a ver

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    com a experincia, ou colocam a experincia em

    outro plano. Aqueles garotos eram, alm do mais,especiais. As motos, a rua, os horrios noturnos,

    tudo isso dava a eles um carter muito sedutor de

    liberdade, de audcia, de independncia, ou talvez

    fosse esse prprio carter, com o qual j haviam

    nascido, que os levava a exercer aquele ofcio. O

    gerente da pizzaria contou uma vez ao casal Peyrque eles eram uma boa influncia para aquela

    tropa juvenil. Naquela noite, nas longas con-

    versas nas caminhadas para entrega das pizzas,

    eles elaboraram essa informao e concluram

    que as influncias eram sempre mtuas e, por

    mais fantstico que possa parecer, eles tambm seenriqueciam com o que recebiam.

    Os trajetos seguiam um itinerrio muito

    particular, e por um motivo curioso. Pedestres

    cautelosos, da velha escola, atravessavam as ruas

    somente nas esquinas, respeitando os sinais de

    trnsito quando os havia, se bem que o perigoque representavam os automveis diminusse bas-

    tante depois das dez ou onze da noite. Diminua e

    aumentava ao mesmo tempo porque os veculos,

    por serem em menor quantidade, trafegavam em

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    maior velocidade. Ao caminhar, Rosita se coloca-

    va sempre esquerda de Aldo porque o ouvido

    esquerdo dele funcionava melhor que o direito

    e, como sempre iam conversando sobre alguma

    coisa, ele preferia que ela ficasse do lado em que

    ouvia melhor. Devido a um costume muito antigo

    (sempre caminharam muito) ele lhe cedia o lado de

    dentro, perto da parede, como havia aprendido na

    infncia que era o que um verdadeiro cavalheiro

    deveria fazer, sentindo-se desconfortvel quando

    ficavam posicionados de outro modo. Para cum-

    prir os dois requisitos ao mesmo tempo, tinham

    que mudar de calada a cada vez que dobravam

    uma esquina. Em certos casos, isso os obrigava

    a estender irracionalmente o percurso, mas para

    minimizar isso havia sempre um traado timo do

    itinerrio. Esse clculo pode parecer complicado,

    mas eles o faziam automaticamente.

    Esses mapas virtuais fizeram-se visveis,

    apenas visveis e durante apenas um momento,

    quando se produziu uma guerra de motos, o que

    era freqente, mas que naquela oportunidade teve

    um carter furioso e espetacular.

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    Os motoboys de cada estabelecimento de-

    senvolviam fortes sentimentos de pertencimento

    a um grupo e, conseqentemente, de rivalidade

    com outros grupos do bairro. Montados em ve-

    culos que naturalmente sugeriam uma disputa de

    velocidade, as corridas e os pegas eram habituais.

    Em peridicas erupes esportivas, haviam-se

    enfrentado em eventos ocorridos de madrugada

    quando terminava o trabalho. Os circuitos esco-

    lhidos eram as ruas mais vazias, no lado norte

    das avenidas, porm tambm j o tinham feito

    no movimentado setor sul adjacente aveni-

    da Rivadavia, e uma vez at na prpria avenida.

    No seria exagero observar que tudo era infrao

    nesses torneios; tudo era perigo e tormento para

    os vizinhos devido ao barulho infernal. Mais de

    uma pessoa deve ter pensado, e com bons motivos,

    que aquelas eram mais competies de barulho

    do que de velocidade. As corridas tinham que ser

    curtas como ataques-surpresa, porque a polcia

    demorava apenas alguns minutos para aparecer,

    o que, somado aos problemas de organizao ine-

    rentes juventude dos participantes, sua irres-

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    ponsabilidade, disputa entre os grupos rivais, fa-

    zia desses pegas um caos, por sorte, fugaz. Os donosdas pizzarias, que no fim das contas seriam os res-

    ponsabilizados, tinham proibido terminantemen-

    te as corridas de moto sob ameaa de demisses

    sumrias em massa. Eles no ignoravam que, se

    acontecesse uma tragdia, e era um milagre que ain-

    da no tivesse ocorrido nenhuma, teriam que pa-gar um preo muito alto, o que inclusive poderia

    afast-los do negcio e lev-los runa. Este foi

    um dos motivos pelo qual eles deixaram de ter

    uma frota de motos e agora, quando contratavam

    um entregador com veculo prprio, faziam com

    que os pais assinassem um documento isentandoo estabelecimento de qualquer responsabilidade

    pelo que seus funcionrios motorizados pudessem

    fazer, sozinhos ou em grupo, mesmo antes ou de-

    pois do horrio de trabalho.

    Na realidade, os enfrentamentos mais renhi-

    dos tinham ocorrido entre as pizzarias ou entoentre estas e outros setores da entrega em domi-

    clio: comida chinesa, pastelarias e sorveterias.

    Os piores embates ocorriam entre a pizzaria e a

    sorveteria. Justamente o pega que o casal Peyr

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    testemunhou foi o desenlace de uma srie de de-

    safios e rancores acumulados entre os entregado-res da pizzaria para quem trabalhavam, o Pizza

    Show, e os da sorveteria Freddo. Toda essa garo-

    tada provinha mais ou menos do mesmo estrato

    social, no entanto, uma espcie de identificao

    mimtica ligava os garotos ao estabelecimento

    para quem faziam as entregas, ou at mesmo aoproduto com o qual trabalhavam. Os entregadores

    das democrticas pizzas sentiam-se obrigados a

    representar uma classe popular sujeita aos altos

    e baixos na economia do pas. Enquanto isso, os

    pilotos das quinze motos azuis da Freddo, trans-

    portando os luxuosos sorvetes de sabores rebus-

    cados, viam-se sintonizados com o carpe diem

    de uma classe mdia esbanjadora, imprevidente,

    anti-social. Quem que tinha que correr mais?

    O que tinha que conservar o calor ou o que tinha

    que conservar o frio? O que era mais importante?

    O alimento ou a guloseima?

    Tanto uns quanto outros j tinham sido ad-vertidos que aquelas loucuras no seriam mais

    toleradas. Os ltimos pegas tinham produzido

    todo tipo de problemas com a polcia. Longe de

    amedront-los, essas ameaas fizeram com que

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    eles decidissem subir a aposta e organizar um

    evento memorvel.Na quinta-feira do desafio, quando os sinos

    da baslica comearam a bater meia-noite (iam to-

    car cem badaladas fnebres, porque naquela tar-

    de havia sido encontrado o cadver de Jonathan,

    o rapaz seqestrado, um caso que tinha mantido o

    pas em suspense durante uma semana), trintamotocicletas rugindo iniciaram uma corrida lou-

    ca... pela calada, no pela rua. Nunca se viu nada

    de mais demente e perigoso. As caladas tinham

    menos de quatro metros de largura. Trinta motos

    lanadas a toda velocidade sobre essa passarela

    exgua formavam uma onda heterognea e multi-colorida de metal, plstico, carne juvenil e rudo.

    Todos empurravam para o lado da parede, pois

    quem caa na rua pelo meio-fio tinha que esperar

    pelo fim do cortejopara se reincorporar ao grupo.

    Formava-se uma espcie de ziguezague compacto

    que, mesmo sem se estabilizar e mesmo sem dei-xar de ser um caos, permitia uma aprendizagem

    de habilidades a uma velocidade cada vez mais

    acelerada. Em trinta segundos deram a volta no

    quarteiro e pularam para a quadra seguinte, e

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    assim foram descendo quadra por quadra fazendo

    desenhos em forma de oito at a avenida Rivada-via (tinham comeado na Directorio), onde chega-

    ram quando soava a badalada nmero noventa e

    nove. Com a centsima badalada, se dispersaram,

    fugindo dos carros da polcia que confluam para

    o local, fazendo soar as sirenes das viaturas de

    todas as delegacias do bairro.A grande serpente de trovo deixou tudo

    trmulo. Os moradores que dormiam ou se pre-

    paravam para ir deitar acharam que se tratava de

    um terremoto, alguns chegaram a supor que era

    o justo castigo dos Cus pela morte de Jonathan.

    Os que assomaram s sacadas e conseguiram

    v-los no acreditavam no que viam. H que se

    reconhecer que havia motivos para que ficassem

    atnitos: a rua vazia e aquela procisso pela cal-

    ada. Geralmente, na vida atual, nada acontece.

    Se existe alguma notcia, a televiso a transmite,

    ela assimilada muito rapidamente e deixa de ser

    novidade. A possibilidade de surpreender-se qua-se no existe porque a surpresa sempre retrocedeu

    ao passado imediato, restando somente a repeti-

    o. Aquilo ali, ao contrrio, prosseguia vibrando

    sem explicao, sem repetio.

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    Aldo e Rosita, que estavam entregando a lti-

    mapizza da noite, os viram passar na calada emfrente. Mesmo estando de sobreaviso de que eles

    estavam preparando alguma coisa, pois percebe-

    ram suas confabulaes, jamais teriam imaginado

    que seria aquilo. Se soubessem, teriam ficado em

    casa. Mas que loucos, que loucos, murmuravam,

    vendo passar aquela espcie de trem expresso demotocicletas. Demoraram alguns segundos, os

    poucos segundos necessrios para que a feroz ca-

    ravana tivesse dobrado a esquina, para pensar na

    prpria segurana. Se no tivessem atravessado

    para a calada em frente, teriam trombado com

    eles. Escapamos por um triz, disse Aldo. Mas,

    um momento... Qual era a calada em frente? Em

    frente de qu? Os enroscamentos daquele circui-

    to estavam transformando um lado no outro o

    tempo todo, o em frente no em frente do em

    frente. O rudo proveniente do fundo do tabuleiro

    de damas das ruas do bairro de Flores anunciava

    um regresso iminente... Continuaram andando. Ocalor suave e o aroma que emanava das pizzas

    que Aldo transportava com a pequena ala da

    embalagem pendurada no dedo, esse microclima

    em que avanavam e se sentiam protegidos, hoje

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    no os protegia. Chegaram esquina quando o

    rugido furioso j os ensurdecia e atravessaram,sem pensar, somente para se colocarem nas res-

    pectivas posies habituais... e o rio de motos

    tornou a cruzar na frente deles. Ufa! Escapamos

    outra vez! Mas era outra vez? Devia ser, porque

    se repetiu na quadra seguinte, e na outra, e na ou-

    tra... at que terminaram as badaladas, e terminoua corrida.

    Tocaram a campainha e um homem desceu

    para buscar apizza. Pagou-lhes e deu-lhes uma

    gorjeta generosa, felicitando-os pelo servio ul-

    tra-rpido. O que lhes surpreendeu, porque para

    eles parecia que tinha se passado uma eternidade.

    Porm, pelo visto, eles tinham vindo quase cor-

    rendo. O homem ficou ainda mais um momento

    na porta, olhando para a esquina.

    Agora h pouco havia um barulho tre-

    mendo, vocs no viram nada?

    Depois de uma breve hesitao, Aldo respondeu:

    Era uma procisso de motos em homena-gem a Jonathan.

    O homem fez uma cara sria e murmurou

    algo, assentindo: Coitado do garoto... Coitados

    dos pais dele...

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    Quando ficaram ss e comearam a retornar,

    Rosita felicitou o marido pela mentira plausvelque ele havia improvisado. Acharam que isso, na

    verdade, poderia ser um bom pretexto para des-

    culpar esses garotos loucos, se houvesse uma in-

    vestigao policial. Era perfeitamente verossmil

    que os entregadores de Flores tivessem querido

    fazer, a seu modo, uma homenagem ao rapazassassinado, j que ele tambm tinha exercido o

    mesmo ofcio com sua moto e, alm do mais, ele

    era do bairro.

    claro que essa idia no passou pela cabe-

    a dos responsveis pelo evento. O que fizeram

    foi pela pura exuberncia animal de suas vidas esuas motos, talvez tambm pela liberdade que o

    horrio da meia-noite lhes dava. E tambm no

    se poderia descartar completamente a exaltao

    da morte, que havia estendido um manto de me-

    lancolia por sobre toda a Argentina. Porm, neles,

    isso poderia ter causado uma reao do tipo Se o

    Jonathan morreu, ento tudo permitido.

    A idia da desgraa, com a qual pretendiam

    assust-los e cham-los razo, no lhes era to

    distante. Pelo contrrio, eles a tinham muito pre-

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    sente, faziam apostas com ela; ela era o fermento

    dos seus desafios. Mas encaravam a morte de ummodo muito impessoal, como as baixas estats-

    ticas que ocorrem em todas as guerras. Era a pos-

    sibilidade mxima de sua participao no grupo.

    Talvez fossem jovens demais para pensar de ou-

    tra maneira. Se morressem, iriam se transformar

    numa estrela aplicada na moto de seu competidor.Quando, naquela tarde, as telas de todos os tele-

    visores veicularam a espantosa notcia da morte

    de Jonathan, assassinado por seus seqestrado-

    res, a deciso, j tomada, de organizar a corrida

    mais perigosa jamais concebida pela imaginao

    tomou sentido e se fez inevitvel. A morte, comoum cu negro, chamava clamorosamente os as-

    tros, os pontos de luz brilhante. E a forma da

    corrida, o enroscamento das voltas e reviravoltas

    meia-noite, evocava a formao de uma dessas

    galxias espiraladas repletas de mundos. Que lhes

    importava a opinio dos adultos! Eles eram inde-pendentes. A luz que os iluminava por dentro era

    a insero deles no mercado de trabalho.

    claro que no se poderia generalizar. Por

    um lado, eles formavam uma horda homognea

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    da mesma gerao que pensava igual e reagia em

    unssono. Por outro lado, eram todos diferentes.Rosita e Aldo participavam das duas vises. Um

    dos lderes do grupo de tarefas do Pizza Show

    era um rapaz de quatorze anos, Walter. Seu pai,

    divorciado, expiava a culpa de ter abandonado

    o lar com presentes caros, muito alm de suas

    possibilidades. Um deles tinha sido a bela motojaponesa que era a menina-dos-olhos de Walter.

    Estudava no Liceu da Aeronutica e era to bri-

    lhante que sabia armar e desarmar um GPS e por

    isso lhe haviam oferecido um bom emprego numa

    oficina de consertos desses aparelhos. O GPS (Glo-

    bal Positioning System) uma pequena maravilhatecnolgica que revolucionou a navegao e a lo-

    calizao, o equivalente moderno da bssola. Ele

    envia um sinal que captado por um satlite que

    o devolve em forma de coordenadas bastante pre-

    cisas, informativas do posicionamento no territ-

    rio. Estas coordenadas so traduzidas numa telaque um mapa onde um pontinho luminoso indi-

    ca o local em que se encontra o GPS. Os modelos

    menores cabem no bolso e so to precisos quan-

    to os grandes, usados nos avies a jato das linhas

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    comerciais, ou nos barcos e nos trens. Usam-no

    tambm os alpinistas, os velejadores, e at mesmo

    simples excursionistas. Os carros novos j vm

    com o GPS de fbrica (o prmio do seguro contra

    roubo diminui neste caso). Em pouco tempo, as

    mes o estariam usando para no se perderem de

    seus filhos nos supermercados ou nas praas. A

    acelerao do progresso cientfico fez com que

    seu uso se generalizasse de um modo quase sub-

    reptcio, pois o grosso da populao continuava

    ignorando a sua existncia, e os que o conheciam

    continuavam vendo-o como um joguinho mgico

    ou como um segredo da Nasa. Parecia incrvel que

    houvesse, e em Buenos Aires, uma oficina de con-

    sertos de GPS. Porm, era uma realidade, e Walter

    podia testemunhar que aquela no era a nica e

    nem a maior, e que ali chegavam cinqenta apare-

    lhos por dia para consertar. O mais espantoso era

    terem contratado um garoto de quatorze anos para

    fazer os consertos, quando a complexidade desta

    tecnologia teria feito pensar que seria necessrio,

    pelo menos, um engenheiro formado numa univer-

    sidade americana. Porm era normal, e todo mun-

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    do aceitava isso com naturalidade. Sabia-se to

    pouco sobre o funcionamento de um GPS quantodo funcionamento da mente de um adolescen-

    te moderno.

    Havia outra coisa que era ainda mais sur-

    preendente: o fato de que, meses depois de haver

    recebido essa oferta, Walter continuasse sendo

    entregador do Pizza Show. Era fcil imaginar queo salrio seria vrias vezes superior e com me-

    lhores perspectivas. A princpio, ele tinha alegado

    um problema de horrios, mas na realidade era o

    oposto: como ia ao colgio de manh, o trabalho

    noturno da entrega era o que menos conviria a

    ele. Disse que gostava, simplesmente, e que o ex-citava sair a toda velocidade pelas ruas escuras de

    Flores com umapizza e com um sentimento de li-

    berdade e de aventura (e tambm havia o fato de

    que lhe pagassem para faz-lo, porque, seno,

    dava no mesmo sair para vagabundear). E havia

    tambm a camaradagem entre os colegas, o grupi-nho estacionado na calada da pizzaria, os papos

    interrompidos pela partida repentina de um ou de

    outro, a lealdade ao grupo. No eram argumentos

    muito convincentes. Tanto que terminou usando

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    como desculpa a Grande Corrida das Galxias, de

    cuja organizao foi a alma mater.Mas havia uma causa secreta para a sua per-

    manncia ali e isso tinha a ver com uma velha

    lenda segundo a qual, oculta no meio dos bandos

    de entregadores motorizados de Flores, havia uma

    moa que se fazia passar por um rapaz. Era inevi-

    tvel que essa fbula brotasse do imaginrio co-letivo. Numa poca em que os dois sexos compar-

    tilhavam todos os trabalhos de igual para igual,

    o delivery tinha ficado no domnio exclusivo dos

    rapazes por algum motivo que permaneceu sem

    explicao. O inexplicvel era o ponto de partida.

    A romntica sede de amor e de mistrio, prpriada idade, fazia o resto. Na mente inquisitiva e

    precisa de Walter, a fantasia tomou o peso da

    certeza e coloriu a sua vida inteira como uma pai-

    xo. Suas suspeitas rodaram em espiral por todo

    aquele pequeno mundo noturno, de colega em co-

    lega, de moto em moto. Nem por um instante lhepassou pela cabea que ele tambm poderia ser

    objeto de suspeita. Era bonito como uma menina,

    tinha a pele de alabastro, os olhos meigos com

    longos clios, o cabelo fino, as mos de boneca,

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    esbelto e gil como um gato. Alm disso, a moda

    impunha roupas largas, ideais para o disfarce dossexos, e ele sempre andava na ltima moda. Era

    quase elegante demais.

    Uma complexa srie de indcios e raciocnios,

    ou intuies, ou talvez sonhos acordados, levou-o

    a dirigir suas suspeitas para um rapaz chamado

    Diego. Como costuma acontecer nesses casos,havia algo de reao retardada nesta concluso,

    tipo como que eu no pensei nisso antes, que

    s no era concludente porque o enigma conti-

    nuava, tornando-se cada vez mais denso. Diego

    havia trabalhado com ele na entrega do Noble Re-

    pulgue, uma pastelaria. Ele tinha uma velha motovermelha emprestada, era um pouco tmido e

    muito prudente, como todos os que usavam motos

    emprestadas, e Walter tinha simpatizado com ele.

    Quando Walter se transferiu para o Pizza Show,

    Diego foi junto com ele, coisa que o surpreendeu

    porque no tinham uma relao especialmenteprxima. Ao contrrio, Diego havia se mostrado o

    tempo todo mais apegado a um outro entregador,

    o maior do grupo, em consonncia com a neces-

    sidade de proteo que parecia sentir. Porm, saiu

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    de l com ele, e isso o agradou. Exceto que, pouco

    tempo depois, ele tornaria a surpreend-lo, indotrabalhar na sorveteria Freddo, sem explicaes,

    a no ser aquela que ele poderia supor: a de que

    no haviam renovado o emprstimo da motoci-

    cleta e, sendo assim, tinha lgica a mudana para

    a grande sorveteria, o nico estabelecimento de

    Flores que continuava mantendo sua prpria frotade veculos, as famosas quinze motos azuis com

    caixas trmicas.

    Diego teria por volta de quatorze ou quinze

    anos, era pequeno, com um jeito infantil, a pele

    plida e os olhos rasgados, algo entre o coreano

    e o boliviano, bonito a seu modo. Por que quepassou pela cabea de Walter que ele era uma ga-

    rota? Pela sua timidez, pelo seu mistrio, por suas

    mudanas sem explicao, ou porque sua ateno

    havia pousado nele, simplesmente. Visto por este

    prisma, a mudana para a Freddo assumia um

    significado distinto, como uma traio ou umaprovocao. Ou talvez como uma espcie de men-

    sagem cifrada. Lamentava no t-lo examinado

    com mais ateno quando o tinha prximo, quan-

    do trabalhavam juntos. Mas a ateno sempre

  • 8/13/2019 As Noites de Flores - Cesar Aira

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    Asnoitesde

    Flores

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    operava desse modo, um pouco anacrnica, quase

    brincalhona: ela despertava quando o objeto daateno tinha se afastado. Buscava na memria e,

    a sim, os desejos errantes se fixaram no instante.

    Uma das caractersticas com a qual a lenda havia

    se enriquecido era a velocidade fantstica que a

    moto prateada dessa garota lunar desenvolvia, o

    que lhe permitia superar todos os seus persegui-dores masculinos. E ele achava que se lembrava...

    que Diego retornava rpido demais de suas en-

    tregas ou que, magicamente, sua moto parava de

    fazer barulho logo depois de se afastar, ao sumir

    na escurido de uma rua lateral... Porm, conclua

    racionalmente que a memria poderia engan-lo.Foi assim que teve a idia de fazer aquela

    corrida louca pelas caladas. Organizou-a para

    ter Diego prximo dele no tumulto das voltas e

    obrig-lo a confessar seu segredo, pois tinha colo-

    cado, sem ningum ver, um GPS na moto dele. Os

    furiosos movimentos em oito no meio da noite fa-riam retroceder o tempo at onde ele necessitava.