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Michel Lorblanchet Trad. Luís Lima As origens da cultura (série) As origens da Arte (2009)

As Origens Da Arte

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Page 1: As Origens Da Arte

Michel Lorblanchet

Trad. Luís Lima

As origens da cultura (série)

As origens da Arte

(2009)

Page 2: As Origens Da Arte

Prefácio

Falar das origens da cultura é falar de práticas (técnicas, linguísticas, religiosas) cuja

emergência não é compreendida nem pelo simples efeito, uniforme, dos dados

genéticos, nem pela adaptação de um grupo ao seu meio envolvente. É olhar para o

lugar onde certas populações fabricam novas competências, desdobram capacidades

de invenção, de aprendizagem e transmissão, dotando-se, no mesmo lance, de uma

identidade própria.

A etologia ensinou-nos que esses fenómenos não dizem unicamente respeito à espécie

humana: há primatas que inventam e transmitem procedimentos técnicos; para

comunicar, grupos de pássaros dotam-se de sinais não inatos. Em contrapartida, a

espécie humana trouxe à inovação cultural uma dimensão e uma potência inéditas,

graças às suas disposições cognitivas específicas. A invenção e o aperfeiçoamento de

ferramentas, a domesticação do fogo, o aparecimento das línguas, a criação dos ritos e

das artes, e, há dez mil anos, o surgimento dessas biotecnologias que são a agricultura

e a criação de gado ritmam a progressão cultural humana.

As investigações recentes renovaram profundamente a abordagem de tais fenómenos.

Para tornar esse conhecimento acessíveis ao grande público, o Collège de la Cité des

Sciences et de l’Industrie dedicou-lhe várias séries de conferências ao convidar os

melhores especialistas. É o conteúdo dessas conferências que se pode reencontrar na

presente série de trabalhos intitulada «As Origens da Cultura»: As Primeiras

Sepulturas, de Bruno Maureille; Os Começos da Criação de Gado, de Jean-Denis

Vigne; As Primeiras Ferramentas, de Pascal Picq e Hélène Roche; Os Começos da

Agricultura, de Marcel Mazoyer; As Origens da Linguagem, de Jean-Louis Dessalles,

Pascal Picq e Bernard Victorri; As Origens da Arte, de Michel Lorblanchet.

Roland Schaer,

Director da área de Ciências e Sociedade –

Cidade das Ciências e da Indústria

Page 3: As Origens Da Arte

Apresentação

Ao decorar as grutas com as suas pinturas, ter-se-á o homem tornado subitamente

artista? Ou seria ele, desde as suas mais remotas origens, um artista que se ignorava

enquanto tal?

As respostas que os especialistas dão à questão da origem da arte dependem dos

respectivos domínios e pontos de vista de cada qual. Dependem, em particular, da

possibilidade de coexistência de diversas definições da própria «arte».

Apesar de um conhecimentos insuficiente dos dados arqueológicos, a posição tomada

por Georges Bataille, em 1980, pode encaminhar e esclarecer a reflexão sobre esta

temática.

Page 4: As Origens Da Arte

Figura 1:

Representação esquemática da história da arte pré-histórica desde a sua origem.

Evolução da Arte / Evolução do Homem

0 anos / 1 milhão / 2 milhões / 3 milhões

Paleolítico Arcaico e Antigo / Paleolítico Médio / Paleolítico Superior

[da esquerda para a direita]:

Pedra-Figura (Makapansgat)

Primeiros esferóides e bolas

Primeiro uso do ocre vermelho

Primeiros bifaces

Colecção de pedras preciosas e de fósseis

[de cima para baixo:]

Marcas sobre pedras

Ossos incisos

Primeira arte rupestre: cúpulas (Índia)

Cozedura do Ocre

Proto-figura (Berekhat Ram)

Adorno

Pintura corporal

Arte parietal e arte móvel

Afro-Ásia – Europa no Início / Mundo Inteiro / África / Europa e Próximo Oriente

[da esquerda para a direita]:

Australopitecos

Homo Habilis

Últimos Australopitecos

Homo Erectus

Pré-Sapiens

Neandertal

Homo Sapiens (Homem Moderno) / Neandertal

Page 5: As Origens Da Arte

1

O ponto de vista clássico

sobre a origem da arte

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Georges Bataille e o ponto de vista clássico

sobre o nascimento da arte

A arte começa na gruta de Lascaux? Encandeado pelo esplendor das pinturas da cavidade, Georges Bataille celebrou a

gruta de Lascaux ao atribuir-lhe o lugar que merece na escala das criações humanas; e

fê-lo certamente melhor do que os pré-historiadores que ele considerava «demasiado

tímidos» e que não tinham sabido ou ousado fazê-lo. A sua sensibilidade literária

produziu alguma belas páginas sobre a temática, cujo conteúdo convém relembrar.

Para Georges Bataille1, a arte é o signo da hominização; Lascaux é o símbolo da

passagem do animal ao homem, é «o lugar do nosso nascimento» porque «se situa no

começo da humanidade cumprida»; «é o sinal sensível da nossa presença no

universo»; «nunca antes de Lascaux atingimos o reflexo dessa vida interior da qual

arte – e só ela – assume a comunicação».

As suas declarações têm a força da convicção: «Nenhuma diferença é mais vincada:

opõe à actividade utilitária a figuração inútil desses signos que seduzem, que nascem

da emoção e se dirigem a ela [...] sentimento de presença, de clara e ardente presença,

que nos dão as obras-primas de todos os tempos».

O Homem de Neandertal, «cuja face terá parecido mais bestial do que a de qualquer

homem vivo», não produzia qualquer «obra de arte». Pelo contrário, o Homem de

Lascaux prova a sua aptidão para ultrapassar a tradição e «fazer a obra de arte»: «Sob

a luz de igreja das candeias, ele excedia o que até então existira ao criar aquilo que

não existia no instante anterior».

Devemos pois «atribuir a Lascaux um valor de começo».

1 As citações de Georges Bataille são retiradas da sua obra La Peinture préhistorique: Lascaux ou la naissance de l’art, Genebra, Skira, 1986.

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Não podemos acompanhar Bataille, nem nos seus desenvolvimentos teóricos sobre

«as proibições e transgressões» que crê reencontrar em Lascaux, nem, sobretudo, na

oposição categórica por ele formulada entre Homo faber, fabricante de ferramentas

pertencentes ao mundo do trabalho, e Homo sapiens, ser cumprido que daí em diante

pertenceria ao mundo do jogo (Homo ludens) e da arte – que, ainda segundo Bataille,

mas também de acordo com uma opinião amplamente partilhada, é jogo por

excelência.

Sabemos, hoje, que Lascaux não é o começo da arte no sentido cronológico do termo

já que, apesar da lamentável ausência de datação directa dos pigmentos, apenas lhe é

concedida uma idade de 17 mil anos.

Todavia, Georges Bataille tem parcialmente razão. Com a sua «cavalgada de animais

que se perseguem», a espectacular extensão de imagens cobrindo as suas superfícies

rochosas, Lascaux é, efectivamente, um dos primeiros monumentos artísticos da

história do Homen. Dado o seu acabamento estético, pode ainda ser considerado um

começo: melhor do que centenas de outros conjuntos parietais mais modestos, esta

gruta, tal como a de Altamira, fornece a prova inequívoca das mais elevadas

capacidades criativas dos homens desde o Paleolítico.

Depois dos escritos de Georges Bataille, outros locais de igual importância, mas de

uma antiguidade ainda maior, foram descobertos: a Gruta de Chauvet, a de Cussac, a

arte ao ar livre da Europa Meridional que, tanto quanto Lascaux, fazem remontar a

plenitude da arte até ao Paleolítico.

Coloquemos porém a seguinte questão: em que medida o «milagre de Lascaux» (que

tão bem poderia ser o de Chauvet, de Cussac, do Côa, etc.), equivalente ao «milagre

grego» segundo Bataille, nos seduz e quais são as consequências dessa sedução por

ele exercida sobre nós?

Por via das suas ferramentas e do seu género de vida, o homem de Lascaux – ou, mais

genericamente, o homem da Idade da Rena – é para nós um estranho; mas por via da

sua arte, pelo contrário, «comunica com a parente afastada que é para ele a

humanidade presente». Na forma de arte espectacular que esta gruta oferece,

reencontramo-nos, reconhecemo-nos. Somos levados a pensar – na nossa condição de

Ocidentais – que Lascaux, Chauvet, Cussac, Altamira, e os cerca de trezentos e

cinquenta sítios paleolíticos europeus ornados, assinalam o surgimento da ARTE, que

nada – ou tão pouco – anunciava até então.

Page 8: As Origens Da Arte

Aos olhos dos artistas e dos escritores europeus contemporâneos (como, além de

Georges Bataille, André Breton, Pablo Picasso...), esta explosão de beleza parece até

eclipsar a mensagem desconhecida que tais imagens podem conter, mensagens às

quais os pré-historiadores se amarram de modo tão patético! Magia, totemismo,

simbolismo sexual, alucinações xamânicas* (por maioria de razão) parecem derisórias

quando comparadas com a emoção gerada pela contemplação das grandes

composições paleolíticas. Na sua potência e beleza, que sem dúvida ultrapassam o

respectivo sentido, estas obras parecem anunciar aquilo que, em 1790, Emmanuel

Kant designava por «beleza livre» (que ele opõe à «beleza aderente», como a das

ferramentas, por exemplo), uma liberdade comparável à da arte contemporânea,

liberta das mensagens religiosas que a arte tradicionalmente veiculava.

Pela primeira vez na história dos homens, estamos em presença não só de uma arte

figurativa, que representa elementos da realidade, como sobretudo de uma arte visual,

que se abre à comunicação, que se afixa e se encena, que se dirige aos outros homens

ou a divindades capazes, como eles, de ver e apreciar.

O «valor de exposição» desta arte, que se inscreve na envolvência natural das grutas

ou das paisagens ao ar livre, é efectivamente novo, independentemente da existência

no mesmo momento, e por vezes nos mesmos sítios, de uma arte secreta que se

esconde nas dobras da natureza e que é o duplo invertido da arte que se mostra2.

Uma opinião tradicional Como Bataille – que aqui contribuiu para uma introdução esclarecedora e cómoda – a

maioria dos pré-historiadores consideram que a arte começa com essa forma de arte

espectacular (não só parietal*, também arte móvel*) surgida «subitamente» na

Europa, há cerca de 35 mil anos.

Segundo a opinião de Henri Breuil, desenvolvida em 1952 no seu espesso livro Les

Quatre Cents Siècles d’Art Parietal, o Homem de Cro-Magnon torna-se artista ao

descobrir acidentalmente o poder de figuração de fenómenos naturais como as

«pedras-figura*», as formas rochosas naturais, os fosseis e as pegadas animais e

humanas (vestígios digitais, marcas de descarnação* sobre os ossos). O gosto dos 2 Dominique Sacchi (dir.), L’Art paléolithique à l’air libre; le paysage modifié par l’image, Colloque de Tautavel-Campôme, 7-9 de Outubro 1999, Carcassonne, GAEP, e Paris, GEOPRÉ, 2002.

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homens modernos pela imitação seria o fundamento das primeiras realizações

artísticas.

Em 1964, André Leroi-Gourhan afirma igualmente que «o primeiro passo foi dado

pelo Homo sapiens». [Anteriormente] a gama do que se poderia designar por

manifestações pré-artísticas – ocres, cúpulas, formas naturais – criam uma estreita

auréola em torno do crânio achatado do Homem de Neandertal: qualitativamente e

quantitativamente, as manifestações moustierense e pós-moustierenses (ver quadro 1)

não têm comum proporção com o que se desenvolve subsequentemente.

Assim, para os grandes especialistas da arte pré-histórica do século XX, a arte surge

numa fase final da evolução humana há apenas algumas dezenas de milénios,

enquanto a história humana se estende ao longo de quase três milhões de anos. Esta

emergência é percebida como um progresso evolutivo cujo fundamento é biológico; é

considerada como a marca distintiva exclusiva do tipo humano último, o Homo

sapiens, o homem moderno*, nosso predecessor directo. Para alguns, até, a arte terá

nascido de uma mutação genética.

Outros, como os defensores da psicologia evolucionista, propõem uma teoria segundo

a qual a criatividade dos homens do início do Paleolítico Superior estaria ligada ao

aparecimento de novas capacidades cognitivas, permitindo a passagem de uma

inteligência sectorial ou especializada para uma inteligência generalizada.

Os homens de Neandertal só terão tido capacidade para fazer análises pontuais,

respondendo cada uma delas a necessidades imediatas da vida quotidiana, sendo o

homem moderno o único a poder fazer a síntese e a elaboração de conceitos gerais

que ultrapassam as necessidades imediatas. De acordo com esta teoria, a origem da

arte acompanharia a emancipação da linguagem articulada.

Especialista em arte rupestre, o sul-africano David Lewis-Williams3, associa o

nascimento da arte ao da consciência, que ele concebe como «um continuum, [que

vai] da consciência racional à consciência alterada». Só o Homo sapiens, com o seu

cérebro aperfeiçoado, dominaria «o espectro inteiro da consciência», do estado de

vigia ao do sono, passando pelo devaneio e pelo sonho, pelos fantasmas e por toda a

imagética alucinatória artificial ou natural. A «ponte neurológica» que parece existir

entre nós e os homens de Cro-Magnon – uma vez que o cérebro deles é idêntico ao

nosso – permitiria pensar que a partir do Paleolítico Superior se praticava a 3 As citações de David Lewis-Williams são retiradas da sua obra L’Esprit dans la grotte: la conscience et les origines de l’art, Mónaco, Éditions du Rocher, 2003.

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introspecção e que havia interesse pelos estados de alma e estados psíquicos, ao ponto

de provocar alucinações que era preciso ter o cuidado de anotar, figurando-as nas

paredes das grutas! Assim, ainda segundo Lewis-Williams, os começos da arte

estariam ligados às alterações da consciência e ao xamanismo, que corresponderia a

uma «necessidade universal» [que consistia em] dar um sentido aos estados alterados

da consciência [e] que está na origem de todas as formas religiosas ulteriores».

Estas teorias globalizantes, amplamente mediatizadas – o xamanismo pretende

explicar as artes do mundo inteiro, e de todas as épocas –, apresentam uma visão

profundamente redutora da arte pré-histórica e da arte em geral. Não passam de uma

deriva do ponto de vista clássico que atribui a inteira paternidade da arte ao homem de

Cro-Magnon. Não se apoiam em dados arqueológicos objectivos mas antes numa

argumentação teórica de tipo metafórico, combinando o biológico e o cultural, sem

que se saiba claramente o que pertence a um domínio ou ao outro: as visões

inspiradoras dos xamãs sobre arte rupestre seriam assim uma mistura de motivos

alucinatórios universais, produzidos pela estrutura mental dos homens modernos

(motivos ditos «entópticos»), e de elementos culturais locais, por exemplo, ainda

segundo Lewis-Williams, «episódios de mitos relativos à formação de um xamã

contados aos noviços». Não tentaremos aqui uma refutação deste «caldo conceptual»,

para empregar uma fórmula utilizada por alguns opositores de tal ponto de vista: um

livro recente fornece uma crítica aprofundada4.

O ponto de vista clássico sobre o aparecimento da arte sublinha sistematicamente a

incompletude dos tipos humanos anteriores aos homens modernos, a sua inaptidão

intelectual e espiritual no sentido amplo, já que é geralmente admitido que a

expressão artística – sobretudo nesses tempos longínquos – está ligada às crenças: se

os homens de Neandertal e os Homo erectus eram incapazes de produções artísticas, é

porque a sua linguagem era insuficientemente evoluída e porque não tinham atingido

o estádio psíquico que permite a instalação das crenças mágico-religiosas. Esta

opinião leva a uma desqualificação das criações anteriores ao Paleolítico Superior,

constituindo a «estreita auréola» em torno do «crânio achatado» dos nossos

longínquos predecessores, que Leroi-Gourhan evocava. Essas produções são

consideradas não artísticas e relegadas para a categoria mais vaga, algo pejorativa, das

4 M. Lorblanchet, J. Le Quellec, P. Bahn, H. P. Francfort, B. e G. Delluc (dir.), Chamanisme et arts préhistoriques, vision critique, Paris, Errance, 2006.

Page 11: As Origens Da Arte

criações ditas puramente «simbólicas», o que evita uma referência excessivamente

explícita ao termo «arte».

De acordo com a mesma teoria, a emergência da arte no Paleolítico Superior antigo só

pode ser brutal; efectua-se num tempo relativamente curto – no máximo um ou dois

milénios –, correspondendo à instalação dos imigrantes sapiens na Europa Ocidental.

É, pois, considerada uma revolução ou, melhor ainda, uma «explosão criativa»,

segundo a expressão de John Peiffer.

Como se trata de uma aparição no seio de um vazio artístico, a ideia de «progresso»

está associada ao fenómeno de duas maneiras: não só a arte é em si mesma um

progresso, como a sua evolução interna pode, também ela, apenas fundar-se no

conceito de progresso. A arte emerge no Paleolítico Superior, desenvolve-se depois ao

ritmo habitual do crescimento, passando da infância à maturidade e, depois, à

degenerescência (ou senescência), seguindo uma curva regular ascendente que se

torna descendente, passando das formas simples às formas complexas, do

esquematismo e da abstracção balbuciante a um naturalismo triunfante, para terminar,

no fim do Paleolítico Superior, após um percurso de 25 milénios, numa regressão

marcada por um esquematismo cada vez mais elementar que conduz à morte da arte

rupestre na Europa Ocidental, há cerca de dez mil anos. As cronologias estilísticas de

Breuil, e depois as de Leroi-Gourhan, desenvolvem-se em dois ou quatro estilos

sucessivos, quais trajectórias, comportando por vezes tempos de paragem e regressos.

Estas visões comportam algumas ideias implícitas. Com vestígios etnocêntricos, a

arte-progresso, figurativa e naturalizada, atesta a supremacia do homem moderno que

nós somos, mais particularmente do homem ocidental e, se levarmos o raciocínio ao

extremo que ele próprio sugere, acabamos simplesmente por acreditar que existe um

berço da arte e que este só pode ser europeu. A progressão das formas paleolíticas

supõe uma flecha do tempo claramente orientada para nós.

Por outro lado, estas visões tradicionais implicam uma definição redutora da arte: só

existiria arte na figuração espectacular e na representação do mundo real ou

imaginado. A arte paleolítica confirmaria até que, desde a sua origem, a função

primeira da arte consistiria em representar o real! Além disso, essa percepção da arte

pré-histórica coloca a tónica no aspecto mais espectacular da arte das grutas: as

figurações animais (por exemplo, os grandes touros de Lascaux); tendendo assim a

eclipsar os motivos indeterminados e os signos – menos impressionantes, é certo, mas

porém bem presentes e em grande número, nas paredes ornadas.

Page 12: As Origens Da Arte

Um osso entalhado, traçados indeterminados, uma pedra com cúpulas, uma colecção

de fósseis, uma bonita ferramenta, o uso dos corantes e dos minerais raros não

saberiam responder a comportamentos artísticos ou não seriam merecedores da

qualificação «obras de arte». Não estará aqui presente uma projecção de um conceito

particular e redutor de arte?

A extraordinária diversidade da arte contemporânea deveria no entanto alargar a

percepção dos pré-historiadores que, entenda-se, não podem escapar completamente

ao ascendente da sociedade em que vivem. O pintor Pierre Soulages, por exemplo,

considera a pintura como «uma harmonização de formas e cores sobre a qual vêm

fazer-se e desfazer-se os sentidos que se lhe prestam»: supremacia auto-suficiente da

forma e da cor e, sobretudo, permanente disponibilidade semântica da criação...

Noções deste tipo poderiam ser úteis aos pré-historiadores nas suas investigações

sobre as origens da arte.

Page 13: As Origens Da Arte

As contradições da concepção tradicional

do «nascimento da arte»

Estará a origem da arte ligada ao aparecimento do homem moderno? Os dados arqueológicos mostram que, contrariamente às hipóteses apresentadas no

capítulo precedente, o nascimento e a evolução da arte não são fenómenos uniformes,

mas «estilhaçados».

Não existe uma correspondência directa e imediata entre o aparecimento do homem

moderno e o da arte; por outro lado, a evolução da arte efectua-se segundo modelos

extremamente variados, diferentes consoante as regiões do mundo e as épocas

consideradas.

A falta de precisão e os limites das datações por radiocarbono não facilitam em nada a

compreensão dos fenómenos de contemporaneidade e de evoluções desencontradas no

tempo. No entanto, parece que na Europa – como aliás, vê-lo-emos, na Austrália –

existe um desfasamento de vários milénios entre a chegada dos primeiros Homo

sapiens e o aparecimento das primeiras grutas ornadas. O Aurignacense (civilização

dos primeiros homens modernos, ver quadro 1) não é homogéneo; não surge no

mesmo momento em todas as regiões da Europa. No Ocidente, a mais antiga gruta

ornada datada, a gruta de Chauvet, não parece ser contemporânea do mais velho

Aurignacense – que pode remontar até cerca de quarenta mil anos, na Cantábria, por

exemplo (deixemos de lado, por agora, uma gruta indiana com várias centenas de

milhares de anos, a de Darakhi Chattan; aí voltaremos.

Para mais, as primeiras formas de arte do Paleolítico Superior são diversas: parece ter

sido aproximadamente no mesmo momento, entre -34000 e -32000 anos, que se

desenvolveram as estatuetas do Jura Souable; as pinturas muito esquemáticas das

paredes da gruta Fumane, no Veneto; os espectaculares fresco da gruta de Chauvet, no

vale do Ardèche; os blocos gravados com motivos vulvares, no Vale de Vézère;

algumas pinturas bicromáticas (negro e encarnado), na cúpula de certos abrigos do

mesmo vale (abrigo Blanchard, abrigo de La Ferrassie); e simples incisões paralelas

nas paredes dos abrigos das Astúrias. Nos seu estilos, temas e técnicas, os motivos

mais antigos são pois radicalmente diferentes uns dos outros: alguns parecem simples

e rudimentares, enquanto outros são incrivelmente sofisticados, mobilizando à partida

todos os recursos da criação. Tal é o caso, por exemplo, das decorações da gruta de

Page 14: As Origens Da Arte

Chauvet ou do homem-leão de Hohlenstein-Stadel, que poderia figurar na estatuária

egípcia!

Page 15: As Origens Da Arte

Quadro 1. Cronologia simplificada dos tempos pré-históricos

Época

Geológica

Data Civilização Idade Homem fóssil

Holoceno

0

-1000

- 40 000

- 100 000

- 500 000

Bronze-Ferro

Cardial

Sauveterriana

Aziliense

Idade dos

metais

Neolítico

Mesolítico

Homem

Moderno

(Homo

sapiens)

Pleistoceno

Superior

Pleistoceno

Médio

Pleistoceno

Inferior

Magdaleniana

Solutrense

Gravetiense

Aurignacense

Châtelperroniana

Paleolítico

Superior

Moustierense

Paleolítico

Médio

Neandertal

Acheuliano

Paleolítico

Inferior

Homo Erectus

Homo habilis

- 1 milhão

- 2 milhões

Abbeviliano

Cultura Pebble

(ferramentas em

seixos)

Page 16: As Origens Da Arte

As tentativas de aproximação que se esforçam por mostrar que a arte de Chauvet se

inscreve num contexto coerente não conseguem dissimular a extraordinária solidão do

grande santuário ardechense, cujos temas, técnicas e estilos se distinguem não só dos

que estão patentes nos raros conjuntos parietais europeus atribuíveis ao Aurignacense,

mas igualmente de todos os conjuntos do Paleolítico Superior. O mesmo sucede, aliás,

com Cussac, Lascaux e Altamira; o particularismo de cada gruta ornada, que os

esquemas evolutivos gerais têm dificuldade em integrar, é exaltado nos grandes

santuários que, em muitos aspectos, permanecem únicos.

A arte do Paleolítico Superior não parte, pois, de um ponto zero; a trajectória unívoca,

que vai do simples ao complexo e serve de base às cronologias estilísticas tradicionais

está morta!

Nem na Europa, nem em lugar nenhum do mundo, a arte do Pleistoceno Superior (fim

da época glaciar) se inicia com formas simples que evoluem para formas complexas.

Na Austrália, na mesma época que na gruta de Chauvet, por exemplo, convivem o

estilo figurativo geométrico de Panaramitee, os traçados digitais de certas grutas do

Sul e as figurações animais e humanas naturalistas da Terra de Arnhem. Na Índia, o

começo das pinturas abrigadas, que remonta a uns dez mil anos, faz conviver a arte

figurativa dinâmica dos «dançarinos verdes», a arte animalista hierática e simbólica, e

os motivos geométricos dos intricate designs (decorações geométricas complexas).

Em África, como noutros lugares, no seu início, a grande arte rupestre é dispare: no

Sara, coexistem dois estilos de pintura, o Bubalino, naturalista, e o das Cabeças

Redondas, mais simbólico; na África do Sul, motivos geométricos gravados, situados

entre -6000 e -2000, sucedem uma fase original de gravuras rupestres naturalistas.

Nem todas as regiões ocupadas pelos Homo sapiens apresentam arte de um nível

equivalente ao de Chauvet ou de Lascaux; podem até ser totalmente desprovidas dela.

Vastas regiões geográficas povoadas por homens «modernos», longos períodos do

passado desses mesmos homens, apresentam uma ausência total de arte parietal ou

rupestre: em grandes extensões da Ásia e da América não existe de todo; e, em África,

berço dos Homo sapiens desde há duzentos mil anos, existe uma arte móvel modesta e

muito esporádica, desde há 75 mil anos, mas a grande arte rupestre só aparece no

Holoceno (ver quadro 1). É claro que os aparecimentos e desaparecimentos da grande

arte animalista não se produzem ao mesmo tempo nas diversas regiões do mundo.

Que provas arqueológicas sólidas temos nós para sustentar que a arte rupestre sariana

remonta a uma fase anterior ao Neolítico? E alguns conjuntos premonitórios de

Page 17: As Origens Da Arte

cúpulas, muito antigos e de datação sempre delicada, colocarão verdadeiramente o da

Índia antes do início do Mesolítico?

Na Europa o brutal desaparecimento da grande arte animalista em finais do

Paleolítico e a sua ausência no Mesolítico mostram com toda a evidência que a

equação «arte = Homo sapiens» deve ser, no mínimo, fortemente matizada!

Na Austrália, país povoado pelos homens modernos há mais de sessenta mil anos, o

tempo de latência que precedeu o mais longo e mais rico complexo de arte rupestre do

mundo foi da ordem dos dez a quinze milénios. Nas rochas ao ar livre desse

continente e nas paredes dos abrigos, alguns dez milénios antes de Chauvet, instala-se

uma tradição artística original que associa a abstracção pura a um naturalismo

figurativo com tendência geométrica, que persiste ainda nos nossos dias. Trata-se de

uma arte da superfície, com pendor ornamental, que se distingue radicalmente da arte

do volume – tendencialmente naturalista – do Paleolítico das nossas regiões e que se

opõe mesmo ao conjunto da arte europeia.

Assim, o aparecimento, o desaparecimento ou a ausência de arte no mundo na sua

forma mais espectacular, designadamente a arte das paredes dada ao olhar, são

fenómenos de diversidade desencontrados no tempo que não parecem estar

directamente ligados – pelo menos não exclusivamente – à presença ou à ausência do

homem moderno.

É até provável que esses aparecimentos e desaparecimentos se possam ter produzido

localmente no decurso do Paleolítico Superior europeu; têm múltiplas causas,

simultaneamente culturais, económicas, sociológicas e religiosas.

As causas do aparecimento da arte rupestre

na Austrália e na Europa Na Austrália, os primeiros imigrantes chegados da Indonésia ocuparam à partida a

totalidade de um continente vazio onde os recursos naturais eram abundantes. De

acordo com os vestígios de corantes encontrados no decorrer de escavações, durante

uma quinzena de milénios esses primeiros ocupantes não terão praticado mais do que

uma arte elementar – certamente a pintura corporal. Depois, há cerca de 45 mil ou

cinquenta mil anos, começou a progressiva rarefacção da «megafauna» (assim se

Page 18: As Origens Da Arte

designa a fauna composta por espécies gigantes de herbívoros e aves como os

cangurus, vombates, emas...), que forneciam até então uma caça abundante e fácil.

Esta redução da fauna, que acabou por resultar na extinção de algumas espécies,

estava ligada a uma sobre-exploração por vias da caça, associada a um reforço da seca

que assolou o território em finais do Pleistoceno. A ausência de água deixou os

primeiros caçadores-colectores numa situação de stress económico que, segundo

alguns investigadores australianos, pode ter contribuído para o desenvolvimento da

grande arte do continente: poderá designadamente ter provocado a instauração ou o

reforço dos ritos favorecedores da fecundidade das espécies (são ainda frequentes nos

nossos dias) – sendo que comportam a realização de figurações rupestres.

Uma prova complementar da influência determinante que pode ter a evolução do

meio natural e da fauna sobre a produção artística é dada pelo desaparecimento da

arte paleolítica em finais da era glacial. Um mesmo fenómeno geral de mudança do

meio envolvente pode levar a resultados opostos em regiões diferentes. Uma

comparação aprofundada destes fenómenos, muito dissemelhantes na Austrália e na

Europa, seria sem dúvida instrutiva.

A chegada dos Homo sapiens à Europa Ocidental há cerca de quarenta mil anos pôde

constituir um dos factores favorecedores da emergência de uma arte nova – mas não

da arte propriamente dita.

Foi nas regiões mais remota e intensamente povoadas pelos homens de Neandertal, no

beco do Sudoeste da Europa, que a arte paleolítica se desenvolveu. A instalação de

recém-chegados no seio de uma população autóctone relativamente importante e

antiga provocou um aumento da densidade populacional, um acréscimo das trocas e

dos laços sociais e talvez ainda uma melhoria da linguagem. Seguiu-se-lhe uma

competição pela exploração dos recursos naturais bem como uma luta identitária

estimuladora das crenças, que resultou na edificação de santuários materializantes da

apropriação espiritual e económica dos grupos sobre a sua respectiva região.

Terá sido, portanto, o choque cultural e económico – ligado à imigração dos homens

modernos na Europa Ocidental e à convivência com os homens de Neandertal, ao

longo de vários milénios – o criador das condições excepcionais que facilitaram ou

suscitaram a emergência de uma nova religião e de uma arte nova. A situação no

Oeste europeu foi, pois, muito diferente da ocorrida no Próximo Oriente, onde a

simbiose entre Neandertais e homens modernos – que partilharam a mesma cultura

durante vários milénios – nada produziu de equivalente à arte do quaternário franco-

Page 19: As Origens Da Arte

cantábrico. Na Europa, a arte das grutas e a sua fácies meridional, a arte a céu aberto,

são as respostas a contextos socioeconómicos particulares. É certo que o homem

moderno é efectivamente o autor da arte das cavernas, mas o homem de Neandertal

contribuiu para a exaltação das suas capacidades de artista! É possível, aliás, que o

homem de Neandertal não tenha ainda dito a sua última palavra em matéria de

arqueologia: muitas coisas continuam por conhecer sobre o Paleolítico Superior

antigo e sobre a paternidade das culturas que coabitavam na aurora desta nova era.

A aculturação que se produziu nesse momento pode ter sido menos limitada do que se

admite geralmente e terá ocorrido nos dois sentidos. Por um lado, o Neandertal não

terá sido o único beneficiário, uma vez que o Cro-Magnon terá progredido ao

inventar, no contacto com ele, uma nova forma de arte; por outro lado, o Neandertal,

cujas capacidades cognitivas estavam afirmadas havia muito tempo, pôde por vezes ir

muito longe na imitação do recém-chegado, e as suas capacidades artísticas puderam

desabrochar nesse contexto. É possível que um dia a investigação leve a aceitar que

ele seja o autor de uma forma de arte parietal; com efeito, não terá pelo menos

precedido os Aurignacense na realização muito simbólica das cúpulas em blocos de

rochedo?

A Austrália dá-nos ainda um último tema de reflexão: para compreender a repartição

dos estilos artísticos desse continente, os investigadores australianos tentam

prudentemente aplicar à arte pré-histórica os modelos sociolinguísticos das sociedades

aborígenas actuais. A arte rupestre é considerada um sistema de comunicação. Neste

contexto, nas regiões e nas épocas em que as condições de vida são as mais duras, o

território tribal e artístico é vasto, as condições de vida difíceis induzem uma forte

coesão social, um mecanismo de aproximação e a adopção de um mesmo estilo de

arte rupestre. Em contrapartida, nos meios favoráveis (junto ao litoral), onde a

população aumenta, desenvolvem-se tensões sociais, os territórios tribais contraem-se,

as identidades sociais locais afirmam-se e a regionalização dos estilos aparece e

reforça-se.

Este modelo australiano da fragmentação estilística e territorial em função dos

recursos e da densidade populacional poderia fazer luz sobre as pesquisas realizadas

no campo do aparecimento e da evolução da arte quaternária europeia e permitir-nos

ultrapassar o dogma da trajectória estilística unívoca proposta pelos investigadores

das gerações precedentes.

Page 20: As Origens Da Arte

2

Uma outra abordagem

sobre a origem da arte

Page 21: As Origens Da Arte

Uma definição de arte

O Paleolítico Antigo e Médio, que constitui um imenso período anterior ao advento

da arte das cavernas, é visto por Georges Bataille como «uma interminável senda».

Esta fórmula elegante parece convir àqueles que associam o nascimento da arte à

chegada – tão esperada – do homem moderno, no Paleolítico Superior.

Um outro ponto de vista pode ser proposto, mas implica várias notas prévias.

Antes de mais, a arte não se resume às gravuras rupestres figurativas tal como

aparecem esplendorosas nas paredes australianas e europeias. As suas manifestações

podem ser extremamente variadas desde a origem: arte utilitária das ferramentas, a

utilização dos fósseis, dos minerais e das «pedras preciosas», a arte móvel, as pinturas

corporais, adornos, máscaras, etc., podem também adoptar os estilos figurativo,

abstracto ou geométrico.

Convém, depois, despojarmo-nos do falso processo que a nova arqueologia anglo-

saxónica intentou aos especialistas europeus da arte das cavernas. Censura-lhes

projectarem o modelo da arte ocidental contemporânea nas produções paleolíticas, a

pretexto de que a noção de «arte» será desconhecida nas civilizações antigas, cujas

criações não podem ter tido como alvo a única busca do prazer estético, como

acontece com a criação contemporânea. A esta crítica podem avançar-se as seguintes

respostas:

– A noção de «arte» tem, certamente, uma história: convém desconfiar do discurso

estético moderno e ver nas figurações das paredes outra coisa além da sua simples

beleza e qualidade formal. O estudo da arte rupestre deve esforçar-se por recriar a

percepção e o uso das imagens pelos povos do passado.

A necessária prudência que a utilização do termo «arte» requer na investigação pré-

histórica não deve, porém, fazer esquecer que nunca houve a menor oposição – mas

sempre, pelo contrário, uma estreita associação – entre função estética e função

utilitária, religiosa ou mágica. Pelo seu impacto visual e pelos seus cânticos, a arte

religiosa visa impressionar o crente, facilitar a sua comunicação com a divindade. Na

arte tradicional e na arte dita «primitiva», a beleza garante a eficácia da magia; pelo

esplendor das cores e das formas exprimem-se o respeito devido às forças que

governam o mundo e o esforço por lhes ser agradável, seduzi-las e até vertê-las a seu

Page 22: As Origens Da Arte

favor. A beleza figurativa ou ornamental é antes de mais funcional. Tal como os

homens, as divindades amam a beleza.

– O prazer está biologicamente associado à criação artística, é o seu motor. Em todos

os tempos, a contemplação das harmonias naturais, das cores, das luzes, das formas,

dos materiais tê-lo-á produzido, enquanto o espectáculo do feio terá sido sentido

como desagradável, se não mesmo repugnante.

A aptidão para se comover diante do espectáculo do belo que a natureza oferece – o

sentimento estético – constitui a essência do homem e produz uma «química», como

todas as emoções. Através da sua própria criação artística, o homem pretende

reproduzir, provocar o prazer que sente nessa contemplação do belo, um prazer que é,

pois, parte integrante da arte, quaisquer que sejam os seus objectivos declarados. Se o

sentimento ou a sensação estética constituem um dado permanente da natureza

humana, a concepção da própria beleza, pelo contrário, não é absoluta mas sim

construída e cultural, por isso variável de acordo com os grupos humanos, os períodos

e as regiões do mundo.

Para tentar definir-lhe a origem, alarguemos assim a definição de arte... Consideremos

como manifestações da arte no seu começo as realizações que são as marcas do

espírito sobre a natureza, a apropriação pelo homem das produções curiosas da

natureza e as criações humanas que, quaisquer que sejam os seus objectivos e

conteúdos (que ignoramos), implicam um jogo de materiais, de cores e de formas (das

quais nos apercebemos). Esta definição pretende ser útil ao arqueólogo. Só diz

respeito às artes que produzem marcas materiais, aquelas que apelam aos sentidos da

visão e, secundariamente, do tacto; deixa de lado as artes do som e da oralidade tais

como a música, o canto, a poesia, uma vez que essas formas artísticas apenas

fornecem vestígios materiais excepcionais ou muito tardios como, por exemplo, as

flautas em osso de aves do Paleolítico Superior.

Os antropólogos descobriram, porém, assinaturas anatómicas das artes da voz, da

linguagem, das vocalizações e do canto nos primeiros hominídeos, que utilizavam

tipos de comunicação vocal mais elaborados que os dos chimpanzés actuais. O

desenvolvimento dos lóbulos temporais no Australopiteco grácil atesta uma origem

muito antiga da linguagem e da música, enquanto a anatomia do nariz e da faringe

revela que um modo de linguagem articulada existia já há 1,5 milhões de anos! Esta

Page 23: As Origens Da Arte

antiguidade provável da linguagem e da música advogam a favor de uma origem

extremamente antiga de todas as formas de expressão artística.

Um caso particular relaciona-se com a arquitectura, que produz vestígios materiais

muitas vezes efémeros. Os milhões de anos de nomadismo deixaram na paisagem

poucas marcas duráveis da implantação passageira dos homens. As primeiras

estruturas, feitas de ramagens, cestaria e peles, não eram concebidas para serem

duradouras, mas puderam todavia ter cumprido funções simbólicas... Muito antes das

primeiras cidades e dos primeiros monumentos ligados à sedentarização, as marcas

difusas dessas estruturas ligeiras, que os arqueólogos registaram desde o Paleolítico

antigo (Oldoway, Terra-Amata, etc.) colocam a origem da arquitectura entre as outras

formas de arte, no início da humanidade.

Nesta perspectiva, a história da arte e a do homem são indissociáveis: a arte começa

com o homem ou, talvez, com o seu predecessor directo, o Australopiteco.

Desde a sua origem, o homem afirma-se como um artista, porque partilha as suas

primeiras pulsões com outros animais, nomeadamente com alguns grandes símios e

porque, de antemão, colecta e colecciona as «obras de arte» da natureza, porque cria

imediatamente formas, produz marcas e traçados e, desde muito cedo, inventa os

primeiros adornos.

Page 24: As Origens Da Arte

Uma arte de primatas?

De acordo com a biologia moderna, o homem e o chimpanzé estão muito próximos, já

que partilham 99% do seu material genético.

Sabe-se hoje que os chimpanzés fabricam ferramentas, que elaboraram culturas e são

capazes de aprender um certo número de palavras do vocabulário humano. Esta

proximidade explica que os comportamentos dos grandes símios, dos homens

modernos e dos homens pré-históricos possam ser comparados.

A partir da Segunda Guerra Mundial, por acção do etólogo e artista Desmond Morris,

são realizadas investigações sobre a pintura dos símios, numa óptica completamente

nova: trata-se de definir «a origem animal do sentido estético»5 num estádio

extremamente primitivo, anterior à própria cultura. Por experimentação e

comparação, importa delimitar um fundamento animal na pulsão criativa do homem.

Foi fornecida tinta e diferentes suportes (papel e madeira) a alguns chimpanzés em

cativeiro, tendo sido observada a sua reacção pictural.

Segundo Thierry Lenain6, o jogo pictural dos símios funda-se na necessidade de

marcar, de «perturbar a ordem visual estabelecida». A primeira pincelada, o risco a

lápis, tem como função atacar o campo, transtorná-lo, imprimindo-lhe um traçado. Os

símios parecem cair imediatamente na armadilha deste prazer da «marca

perturbadora», enquanto as crianças, no início mais inábeis do que eles, são menos

vítimas do mecanismo e libertam-se dele mais rapidamente para aceder à

simbolização e à representação. Por vezes, só muito mais tarde redescobrem «o

fascínio da marca pura por via do longo desvio cultural [da arte abstracta], situado a

anos luz da arte dos símios».

Estas experimentações evidenciaram, ainda segundo Lenain, a existência de estruturas

recorrentes no grafismo dos símios «resultando em grande parte dos esquemas

motores que caracterizam os gestos do traçar, tais como o vaivém do punho e do

antebraço». Surgem assim feixes de curvas devidas aos movimentos do antebraço que

5 Desmond, Morris, La Biologie de l’art. Études de la création artistique des grands singes et de ses relations avec l’art humain, Paris, ed. Stock, 1962. 6 As citações de Thierry Lenain são provenientes do seu livro La Peinture des Singes, Prefácio de D. Morris, Paris, ed. Syros-Alternatives, 1990.

Page 25: As Origens Da Arte

se desenvolvem elipticamente em final de gesto, sendo a mão trazida de volta ao

ponto de partida, ou ainda a leques formados por traços convergentes, a barras

paralelas, a agregados de rectas e de curvas, bem como a formas mais simples:

pontuações, arcos de círculo e, por vezes, círculos.

Em casos raros, uma certa consciência do motivo parece manifestar-se, à força de

repetição: os traçados espontâneos de leques foram percebidos e depois reproduzidos

intencionalmente, segundo uma técnica simples implicando a representação mental

prévia do motivo.

Os grafismos dos símios são abstractos e informais – exceptuando dois casos

excepcionais de motivos figurativos, talvez sob influência humana?

O desenrolar do acto gráfico está fundado no fenómeno de inscrição: os traçados

sucessivos recobrem-se parcialmente, inscrevem-se uns nos outros e desempenham o

papel de campos gráficos sucessivos, permanecendo sempre visíveis. O jogo de cores

empregues uma após outra acrescenta múltiplas variantes nesta espécie de

composições. Por vezes, é igualmente perceptível um certo sentido de simetria.

Experiências recentes levadas a cabo com símios capuchinhos (ou macaco-prego,

Cebus apella) revelam que estes têm uma propensão para criar e utilizar ferramentas.

Colocados na presença de bolas de argila, juntamente com folhas, pedras e tinta, os

símios começaram a amassar, a bater, a fazer rolar as bolas para lhes dar uma nova

forma, pintando-as ainda com os dedos ou com folhas mergulhadas em tinta. Com um

pau, uma pedra ou com os dedos, gravaram placas de argila que lhes eram

apresentadas, produzindo marcas inorganizadas parecidas com os traçados digitais das

grutas ornadas do Paleolítico.

O conjunto destas experimentações faz luz, é certo, sobre as primeira manifestações

artísticas dos primatas e do próprio homem... mas suscita também algumas reservas:

· na natureza, os símios não pintam; as respectivas manifestações espontâneas

passíveis de serem qualificadas de artísticas são inexistentes ou excepcionais;

· sendo as condições radicalmente diferentes, é difícil comparar os comportamentos e

as produções estéticas de símios e homens pré-históricos: a influência exacta do

experimentador sobre o comportamento dos símios em laboratório é difícil de avaliar

e os hominídeos do Pleistoceno não tinham ninguém que lhes fornecesse papel e

cores, ninguém para imitar – pelo menos, no início da sua história!

Page 26: As Origens Da Arte

A parecença entre os grafismos símios e os traçados digitais inorganizados nas

paredes argilosas das grutas paleolíticas é perturbante. Mas trata-se de uma

convergência formal devida a constrangimentos anatómicos: o braço do símio e o do

homem são parecidos e não permitem levar a cabo gestos radicalmente diferentes; não

podem, por isso, produzir espontaneamente marcas muito diferentes. Convém, no

entanto, observar que as vastas varridelas impulsivas dos símios não se encontram nos

inúmeros grandes painéis de traçados digitais pré-históricos, onde parece existir uma

mestria maior, mesmo quando é questão de traçados inorganizados.

O que faz falta ao símio é a consciência do trabalho que efectua. O seu acto gráfico é

uma mera reacção imediata, instintiva, a um estímulo exterior. A sua pintura poderia

ser comparada à pintura gestual (pintura moderna realizada a partir de gestos

espontâneos), mas é uma pintura do instante, desprovida da menor intenção

comunicativa e que, para lá do momento da sua criação, não se prolonga numa

verdadeira obra de arte duradoura.

Nestas experimentações, é interessante verificar que a simetria em espelho utilizada

pelos símios nas suas composições está inscrita na natureza dos primatas, mas que a

disposição simétrica de um desenho de símio não é mais do que uma resposta

imediata à solicitação de um desenho precedente. Em contrapartida, a fabricação de

um biface pelo Homo erectus é uma autêntica criação na qual a estrutura simétrica do

objecto está inteiramente pré-concebida. Em suma, símios e homens utilizam um

mesmo fundamento pulsional mas o homem coloca-o ao seu dispor enquanto o símio

fica dele refém.

Destas comparações entre as produções dos símios e dos homens retiramos mais uma

informação útil: não é unicamente o gosto pela simetria que ambos partilham mas

também o das formas geométricas básicas – curvas, círculos, barras paralelas, leques,

pontuações... – que são autênticos dados biológicos; trata-se de motivos que os

primatas produzem espontaneamente e não da marca de umas quaisquer alucinações ,

como afirma uma teoria xamânica recentemente reactivada.

Para concluir, relembremos igualmente o relato feito pelo zoólogo Julian Huxley, em

1942, a propósito do jovem gorila Meng que reproduziu repetidas vezes, com o

indicador, o contorno da própria sombra projectada no muro branco da jaula, como se

quisesse desenhar a sua silhueta. De acordo com Huxley, esse gesto poderia

esclarecer a origem da arte humana, cujos primeiros traçados lineares tenham talvez

sido guiados pela sombra dos objectos projectados no muro da gruta: estranha cena

Page 27: As Origens Da Arte

que reenvia para o mito da caverna de Platão ou para o relato de Plínio o Velho: «o

princípio da pintura consistiu em traçar, graças a linhas, o contorno de uma sombra

humana» (História Natural, livro XXXV). Plínio desenvolve esta ideia no mito da

filha de Sicione: tendo o seu amante partido em viagem, ela conservava dele um

retrato em argila que fora modelado na sombra do seu rosto projectado sobre um

muro. De acordo com Régis Debray, que se apoia nesta posição, «a imagem é a

sombra e Sombra é o nome do duplo»7.

A ideia segundo a qual a arte pré-histórica poderia ser um duplo «mecânico» do real

(sendo essa função «reprodutiva» da arte eminentemente discutível) acaba de fazer

um divertido reaparecimento na Internet, numa hipótese formulada por Max Gatton:

ele concebe a origem da arte pré-histórica na projecção de imagens exteriores sobre as

paredes de uma tenda em pele de animal que terá desempenhado o papel de câmara

escura; a luz que penetra através de uma fenda projecta na parede oposta a imagem

invertida dos animais exteriores; basta então traçar-lhes o contorno!

Mas o aparecimento da arte pré-histórica, que é essencialmente uma arte do volume

antes de ser uma arte a duas dimensões, não pode certamente ser explicada pela

invenção de uma mera astúcia técnica!

7 Régis Debray, Vie et mort de l’image, Paris, Gallimard, 1994.

Page 28: As Origens Da Arte

Coleccionador das obras de arte da natureza

Desde o início da sua longa história, o homem apresenta-se como um elemento da

natureza. Tal como algumas aves ou caranguejos, empreende imediatamente a longa

colecta de um bricabraque de produções naturais com formas bizarras e coloridas.

Pela escolha que deles faz, proclama esses objectos «obras de arte» e sonha ser o seu

autor. Toma posse do que de mais belo a natureza lhe oferece: fósseis, conchas,

pedras curiosas, matérias coloridas, cristais e minerais, aos quais se juntam todos os

materiais cintilantes perecíveis: plumas, corchas, plantas e flores...

Ao capturar a beleza, depressa toma consciência do seu próprio poder criador: «Tudo

o que parece harmonioso ao homem não pode senão ser a manifestação das leis que o

governam, a ele e ao mundo, daquilo que vê e daquilo que é, e que, por natureza – é

este o termo – o preenche e lhe convém. Está preso na trama em que foi tecido» (René

Caillois.8)

Os pintores modernos foram provavelmente quem melhor compreendeu a natureza

artística do homem; segundo Paul Klee: «O artista é homem: é ele próprio natureza,

pedaço de natureza na área da natureza.»

Coleccionador de fósseis As escavações revelaram o fascínio que os fósseis desde sempre exerceram sobre os

homens.

Os homens pré-históricos trouxeram fósseis (rinconelas, crinóides...) para o seu

habitat (por exemplo, em Combe-Grenal, em França, ou em Gesher Benot Ya’aqov,

em Israel), onde os pré-historiadores os descobriram e conservaram, centenas de

milhares de anos mais tarde, quando eram investigadores atenciosos, o que nem

sempre foi o caso! Assim, por exemplo, um dente de tubarão fossilizado foi

encontrado no sítio moustierense de Darra-I-Kur, no Afeganistão.

Ferramentas, nomeadamente bifaces, foram por vezes talhadas numa rocha que

continha um fóssil, escrupulosamente conservado no centro da peça: é o caso de

8 René Caillois, L’Écriture des pierres, Paris, Skira, 1970 (em coleccção de bolso: Flammarion, col. «Champs», 1987).

Page 29: As Origens Da Arte

objectos provenientes dos sítios ingleses de West Tofts em Norfolk, de Swanscombe e

da saibreira de Bedford; a indústria Acheuliana de Saint-Just-des-Marais, na região

francesa de Oise, forneceu um ouriço cretáceo transformado em raspador.

Figura 2:

Este biface do Acheuliano Médio, datado de cerca de 300 mil anos, encontrado em

Swanscombe, em Inglaterra, contém um fóssil de ouriço do Cretáceo. Ilustração

baseada em K. P. Oakley.

No Paleolítico Médio, durante o período Moustierense, a colecta dos fósseis torna-se

mais frequente; são conservados ora como peças isoladas, ora para serem integrados

no fabrico de ferramentas: Combe-Grenal, La Ferrassie e La Plane, no Périgord (em

França), a gruta da Hiena, em Arcy-sur-Cure, também em França; Schweinskopf-

Karmelengerg, na Alemanha; Skhul e Qafzeh, em Israel, fornecem alguns exemplos.

Um numulite com cem mil anos, encontrado no sítio Moustierense Antigo de Tata (na

Hungria), foi decorado com uma cruz gravada em cada um das suas faces. O

Micoquiano (Acheuliano Final) da gruta de Külna, na República Checa, forneceu um

fragmento de resina fóssil. Um nucleu* do sítio Moustierense de Tercis-les-Bains, na

região francesa das Landes, inclui também ele um ouriço posto em relevo pela talha.

Os últimos Neandertais perpetuam a apanha dos fósseis nos níveis Châtelperronianos,

nomeadamente na gruta de Arcy-sur-Cure.

A colecta e a utilização esporádica desses elementos ensinam-nos assim que os

primeiros homens possuíam o sentido da forma e da cor e que estavam dotados de

uma certa fineza de toque; o comportamento deles parece estar próximo do nosso,

uma vez que continuamos a apanhar conchas e fósseis, que enchem os nossos museus.

Foram, efectivamente, as formas, a cores, a estrutura mais ou menos simétrica e

geométrica, a textura dos objectos, o seu aspecto por vezes luzidio, a suavidade ao

toque das superfícies polidas, a densidade da matéria que torna estas pedras

espantosamente pesadas na cova da mão, que captaram a atenção dos primeiros

homens – bem como a natureza ao mesmo tempo animal e mineral dos fósseis e a sua

origem aparente, frequentemente aquática. A seu carácter de raridade confere-lhes

importância, o que igualmente constituiu um carácter atractivo. É divertido observar

Page 30: As Origens Da Arte

que o «neuro-marketing», que se desenvolve no comércio actual, assenta em dados

biológicos perceptíveis desde o início da humanidade.

Sabemos hoje como se formaram os fósseis e os minerais; no entanto, o nosso

deslumbramento nem por isso se atenuou. É difícil para nós imaginar a dimensão que

estas formações naturais terão tido no espírito dos nossos antepassados. Ao colocar

de antemão a questão da sua «autoria», tê-los-ão sem dúvida introduzido no domínio

das crenças, dos mitos e dos símbolos. Nas nossas tradições folclóricas modernas,

estes fósseis são muitas vezes designados por «pedras-da-lua», «pedras-do-sol»,

«pedras-de-raio», «pedra-da-lídia», etc. O sobrenatural junta-se espontaneamente a

estes estranhos presentes do firmamento que os Homo erectus começaram a moldar à

sua maneira. A mestria com que os primeiros artesãos talharam peças em torno de um

fóssil, sem o danificar, provoca admiração. A sua integração numa ferramenta

confirma o poder do fóssil que decora o instrumento, insuflando-o com uma força

sobrenatural, uma eficácia nova e mágica.

Coleccionador de corantes naturais Os corantes utilizados durante a pré-história são essencialmente matérias minerais

negras ou encarnadas. O único que pode ter sido utilizado e que deixou vestígios nas

jazidas antigas é o carvão de madeira, que seria comummente empregue mais tarde,

na arte parietal do Paleolítico Superior. Infelizmente, a distinção arqueológica entre

um resto de lareira e um carvão enterrado podendo ter servido de corante é

praticamente impossível.

O uso dos corantes encarnados – o carácter atractivo desta cor é universal – precedeu

o dos negros. Os pré-historiadores designam genericamente com o termo «ocre» uma

grande diversidade de substâncias contendo óxidos de ferro e cuja cor varia do

amarelo ao encarnado.

A primeira aparição de uma pedra de cor viva num sítio arqueológico foi assinalada

na África do Sul, em Makapansgat. Trata-se de um seixo de jasperite, uma variedade

de jaspe, descoberto num nível datado de três milhões de anos, segundo Raymond

Dart. Este seixo não chamou a atenção unicamente pela sua cor vermelha mas

também pela sua forma estranha, evocadora de uma face humana. Um Australopiteco

percorreu uma distância de vários quilómetros para trazê-lo até ao seu habitat. A

Page 31: As Origens Da Arte

atracção pelos minerais encarnados parece estar inscrita nos comportamentos

biológicos dos primatas, antes mesmo da emergência do homem verdadeiro, isto é,

antes do aparecimento do género Homo.

Na África Oriental, esse berço da Humanidade constituído pelos planaltos etíope e os

desfiladeiros de Oldoway, na Tanzânia, duas descobertas merecem ser relembradas.

No sítio Acheuliano Antigo de Gaded, datado de 1,5 milhões de anos, a presença de

fragmentos de basalto erodidos, que quando esfregados produzem um pigmento

encarnado, permitem pensar que o Homo erectus pôde já, nesse tempos remotos, ter

utilizado tais pigmentos.

Dois nódulos encarnados de tufo vulcânico rubificado foram descobertos por Louis

Leakey, em 1958, nos desfiladeiros de Oldoway. Há mais de um milhão de anos,

esses detritos, então recolhidos como simples curiosidade, foram trazidos para o sítio

pelo Homo erectus.

Figura 3:

Seixo de jasperite encarnado de Makapansgat, na África do Sul, com três milhões de

anos.

Depois, em todo o Mundo Antigo, durante as centenas de milhares de anos do

Paleolítico Antigo, matérias corantes foram regularmente recolhidas pelo Homo

erectus.

Deu-se uma expansão generalizada do uso dos corantes no decurso do Paleolítico

Médio, tendo-se ainda intensificado no final desse período: em Tata, na Hungria, uma

lâmina de marfim de mamute polida carrega as marcas de um pigmento encarnado, tal

como em Molodova, na Ucrânia. As omoplatas de mamute da planície russa,

frequentemente gravadas e pintadas a vermelho, constituem uma tradição

moustierense ainda praticada na Morávia dos anos 22 mil e 29 mil antes dos nossos

dias.

O uso do corante torna-se sistemático no conjunto da área povoada pelos homens de

Neandertal, do Próximo Oriente (Israel, Líbano) até ao sudoeste europeu e,

particularmente, no sudoeste francês (nas jazidas do Périgord).

Page 32: As Origens Da Arte

Na África do Sul, o pigmento encarnado é amplamente utilizado nessa época.

Numerosas grutas-habitat desse país (grutas de Mambata, de Pomongwo, de Klasies

River Mouth ou de Blombos) forneceram blocos de ocre gravados e milhares de

pedaços de ocre, todos utilizados... Na Namíbia, foram encontradas minas de

hematites (minérios de ferro que dão ocre vermelho), datadas de entre 100 mil a 40

mil anos. Na maior parte destas jazidas, são «proto-sapiens», isto é, precursores dos

homens de Cro-Magnon (ou «sapiens arcaicos»), que utilizam estes corantes.

A Austrália foi povoada há 60 mil anos e, durante esse mesmo período, os primeiros

colonos, Homo sapiens, possuíam já o domínio técnico do ocre vermelho e

esboçavam uma forma de pintura, como por exemplo na Terra de Arnhem.

Os modos de utilização das matérias corantes não cessaram de progredir.

Durante as primeiras centenas de milénios, uma simples apanha ocasional de «pedras

encarnadas» acompanhava a colecta de outras curiosidade naturais – minerais e

fósseis; talvez se efectuasse então alguma busca de materiais para o fabrico das

ferramentas.

Foram os acheulianos que, há 400 ou 300 mil anos, aproximadamente, começaram a

utilizar os ocres que tinham trazido para os seus habitats e empreenderam o seu

tratamento: as estrias e as facetas de uso encontradas em fragmentos de ocres revelam

que estes foram por vezes raspados para a obtenção de pó ou esfregados sobre uma

superfície dura como uma pedra ou mole como uma pele de animal ou humana.

Foram também os acheulianos quem terá transformado essas matérias ao inaugurarem

a prática da cozedura de certos ocres, como em Terra-Amata, em Nice. A calcinação

do ocre está ulteriormente atestada nos habitats moustierenses. Há que notar que se

encontraram, dessas épocas longínquas, abundantes provas materiais da utilização do

ocre vermelho como matéria corante mas que ainda não foram descobertas as marcas

correspondentes das pinturas ou dos motivos coloridos que podem ter sido efectuados,

porque os suportes sobre os quais esses pigmentos foram utilizados eram constituídos

por materiais perecíveis que desapareceram: tratava-se de pinturas sobre peles de

animais ou humanas, que não foram conservadas, ou então sobre rochedos ao ar livre,

que a erosão apagou. As primeiras manchas pintadas que chegaram até nós são

marcas e decorações em ossadas de mamutes da Hungria e da Rússia, datadas do

Paleolítico Médio (Tata e Molodova) e, sobretudo, as primeiras pinturas parietais do

Paleolítico Superior, conservadas graças à sua situação nas grutas.

Page 33: As Origens Da Arte

Os trituradores de corantes, as mós e as pás (seixos ou blocos de calcário, de greda ou

de quartzito*), ligados a uma produção de pó sistemática e mais importante, surgem

há cerca de 150 mil anos, na Europa Ocidental.

Na época Moustierense, os homens (designados então «moustierenses») eram grandes

utilizadores de corantes. O conjunto de ferramentas ligadas à utilização enriquece-se:

no nível moustierense da gruta de Soyons, na região francesa de Ardèche, foi

descoberto um godé que continha ocre vermelho. As colectas diversificam-se, são

completadas pelos produtos negros do manganésio e do ferro, muitas vezes moldados

em forma de «lápis» (na realidade, pequenos nódulos com bicos afiados); também a

utilização do ocre se torna mais abrangente, já que, pela primeira vez, surge

ocasionalmente associada às sepulturas.

A utilização dos corantes é um fenómeno cultural perfeitamente circunscrito no

espaço e no tempo: 90 a 99 por cento dos corantes encontrados nas jazidas da segunda

metade do Paleolítico Médio, na região francesa de Périgord, são corantes negros

enquanto que, desde o período Châtelperroniano e até ao Aurignacense, ainda na

mesma região, essa percentagem inverte-se a favor do ocre vermelho. Fora desta

zona, nomeadamente no Moustierense da Europa ocidental, é o ocre vermelho quem

domina, e nenhuma manifestação do uso de corantes foi notada no Paleolítico Médio

germânico.

No conjunto do Moustierense ibérico, as fases mais recentes incluídas, o uso dos

corantes parece ter sido ora totalmente inexistente, como em Portugal e no Sul de

Espanha, ora bastante modesto, como na Cantábria. Desta feita, foram utilizados os

corantes encarnados, como no resto da Europa e do Mundo.

Pelo uso intensivo dos corantes, mais particularmente os negros, o Moustierense da

região do Périgord faz figura de excepção cronológica e geográfica. O progresso da

utilização dos corantes negros ao longo dos diferentes tipos de Moustierense poderia

indicar a existência, há 50 ou 40 mil anos, no Périgord, de um modo de pintura cuja

ocorrência foi concebida, em 1921, por Denis Peyrony, e, em 1952, por François

Bordes: tratava-se provavelmente de pinturas corporais, ou ainda de pinturas rupestres

realizadas dentro de abrigos que a erosão terá feito desaparecer.

Este fenómeno deve ser posto em paralelo com a multiplicação generalizada das

expressões simbólicas nesta época (inclusive no território do Sudoeste francês): ritos

de inumação, associação do corante e das sepulturas, marcas rítmicas sobre pedras

Page 34: As Origens Da Arte

(cúpulas) e ossos, colecta episódica de fósseis e de minerais, primícias de adornos,

refinamentos tecnológicos e estética das ferramentas.

Antes mesmo do Châtelperroniano, ou simultaneamente, os moustierenses tinham

atingido o estádio evolutivo que autorizava a eclosão da arte das cavernas. De acordo

com o que se sabe hoje, estes povos não chegaram a realizar pinturas nas grutas

profundas quando já ornavam com cúpulas alguns blocos dos seus abrigos. Por outro

lado, e no mesmo momento, os australianos gravavam motivos figurativos nos

rochedos e realizavam, sem dúvida, pinturas. Se esta disjunção paralela ocorreu foi

porque, na Europa, os mecanismos sociais desencadeadores de tais práticas ainda não

tinham surgido.

Este substrato local, esta longa tradição estética moustierense explica o nascimento do

núcleo artístico aurignacense no vale de Vézère, há 35 ou 30 mil anos. A continuidade

das actividades artísticas entre o Moustierense e o Aurignacense é clara,

nomeadamente no abrigo de La Ferrassie, na região francesa da Dordonha.

Graças a outros mecanismos, e em contextos técnicos e estilísticos completamente

diferentes, em simultâneo mas de modo independente, a arte naturalista do Paleolítico

Superior surge igualmente na Europa média e no Leste de França (gruta de Chauvet),

ao mesmo tempo que noutras regiões do mundo.

Em 1968, Raymond Arthur Dart insistiu no simbolismo geral do ocre vermelho ao

lembrar que a palavra «hematite», frequentemente utilizada como sinónimo de «ocre

vermelho», deriva do grego haema, «sangue»; do mesmo modo, o termo inglês

bloodstone (literalmente, «pedra de sangue») é, também ele, equivalente ao ocre

vermelho. Segundo este autor, «o ocre vermelho, considerado como o sangue criador

da Terra-Mãe, é um dos mais brilhantes e mais frequentes simbolismos da

humanidade». E lembra ainda os numerosos usos medicais do ocre e as virtudes

curativas que lhe são atribuídas nas sociedades tradicionais.

Pelo seu lado, em 1980, Ernest Wreschner põe em evidência a importância do ocre

vermelho na evolução da humanidade. De acordo com ele, não é de admirar que o

encarnado tenha sido o primeiro corante utilizado porque, de entre todas as cores, esta

parece ser objecto de uma «preferência» humana quase geral, cuja base é

provavelmente genética. O autor sublinha igualmente a carga simbólica universal do

encarnado, frequentemente associado ao perigo e à morte, ao sangue e à vida e,

muitas vezes também, à procriação, às mães, à Terra-Mãe. A transformação, por via

do fogo, do ocre amarelo em ocre vermelho foi verosimilmente considerada em todos

Page 35: As Origens Da Arte

os tempos como uma operação mágica, reforçando ainda mais os poderes dessa

matéria.

Os corantes não são substâncias banais e a intensificação e diversificação da

utilização dos ocres e de outros pigmentos, ao longo das centenas de milénios que

constituem o passado da humanidade, ilustram provavelmente o desenvolvimento

cognitivo e simbólico dos homens: «A percepção do encarnado e a discriminação das

cores conduzem a acções que acarretam novas experiências e novas aprendizagens.

Um aspecto do processo cognitivo é a atribuição de um sentido a certos objectos, a

certas matérias, e foi o caso do ocre. A criação de um sistema de relações resultou na

elaboração das estruturas socioculturais. Uma dessas relações pode ter sido expressa

pela pintura corporal que, como meio de assinalar, terá contribuído para a coerência

do grupo.» (Ernest Wreschner9).

É possível conceber uma utilização polissémica dos corantes no Paleolítico Médio,

como é ainda o caso em algumas sociedades caçadoras recolectoras da actualidade:

«nas culturas matrilineares da África Central, por exemplo, o encarnado pode

significar “pai”, “mulher”, “homem”, “mediador”, certas “categorias de parentes”, o

“arco-íris”, a “manhã”, o “nascimento”, as “emoções”, o “desejo sexual”, o “poder

místico”, os “ritos de passagem”, etc. , conforme a situação e o contexto em que essa

cor é utilizada.» (Anita Jacobson-Widding10).

Assim se vê a importância de evitar um ponto de vista demasiado simples ou parcial

sobre estas questões difíceis.

O ocre vermelho e o óxido de manganésio negro (ou o carvão de madeira, que não

deixou vestígios materiais) podem ter sido ambos utilizados para pinturas corporais.

O simbolismo do negro devia ser então muito diferente do encarnado.

Tal uso dos corantes, a sua presença intermitente nas sepulturas, isto é, num contexto

ritual, não deve fazer esquecer que estas substâncias, que foram sem dúvida

poderosos símbolos socioculturais, puderam ter outros usos em domínios da vida

quotidiana. Nesses casos, o seu carácter religioso ou mágico é menos aparente mas

não inexistente: utilização como abrasivo, na técnica da gravura, para o curtimento e a

raspagem das peles, protecção contra o frio, etc.

9 Ernest Wreschner, «Red ochre and human evolution: a case for discussion», Current Anthropology, n.º 21, 1980, pp. 631-634. 10 Anita Jacobson-Widding, «Red-white-black as a mode of thought; a study of triadic classification by colours in the ritual symbolism and cognitive thought of the people of the lower Congo», Uppsala Studies in Cultural Anthropology 1, Stockholm, Almqvist och Wiksell, 1979.

Page 36: As Origens Da Arte

A propósito, nos domínios da pré-história e da etnografia, a impossibilidade de

excluir a dimensão simbólica dos actos mais simples da vida quotidiana é bem visível.

Colecta das matérias primas para o fabrico das ferramentas Os mitos dos Aborígenes australianos explicam a formação das rochas utilizáveis para

o fabrico de ferramentas, enquanto outros mitos orientam esse mesmo fabrico. Assim,

na Austrália, o aprovisionamento, a talha e o uso das ferramentas de pedra são

considerados actos sagrados que reactualizam os trabalhos dos heróis do Tempo do

Sonho, sendo frequentemente acompanhados de ritos e cantos tradicionais. Terá sido

certamente assim em todos os períodos da história humana.

A colecta, o transporte e a utilização de rochas exógenas – de origens longínquas e

difíceis de talhar –, mostram que, ao longo de toda a pré-história, imperativos não

utilitários, não funcionais, preocupações propriamente estéticas e associadas a crenças

primaram com frequência sobre o conforto e a eficácia.

O sílex, é certo, bem como outras rochas comuns facilmente disponíveis, constitui o

material de base para o fabrico das ferramentas, mas, desde muito cedo, os homens da

pré-história foram atraídos pela diversidade mineralógica das rochas, pela variedade

dos seus aspectos e cores, pelas suas texturas mais ou menos finas, pela sua maior ou

menor aptidão a serem talhadas – tal como haviam sido, aliás, atraídos pela

diversidade das formas e cores dos fósseis e minerais.

Não só tal rocha estava destinada ao fabrico de tal tipo de ferramenta, como parece

que, ao variarem as cores e as origens das pedras, para lá da sua respectiva vocação

tecnológica, os primeiros artesãos terão desejado diversificar as matérias primas com

que trabalhavam. O conjunto de ferramentas que dispunham oferece frequentemente

uma cintilante paleta com uma variedade infinita de matizes em tons de amarelos,

encarnados, castanhos e negros, aos quais se mesclam, por vezes, o branco, o azul, o

verde; são ainda sílexes manchados com tiras de cores vivas ou tonalidades esbatidas,

rochas polidas ou granulosas. Tal como o terá sido, sem dúvida, o homem pré-

histórico, o pré-historiador é sensível, por exemplo, ao efeito produzido pela presença

de raspadores em jaspe amarelo dourado e em sílex negro de azeviche, originários do

Cretáceo! Que precioso bem poderia constituir uma rocha proveniente de uma terra

ou de uma tribo longínqua? De que poder mágico poderia estar investida?

Page 37: As Origens Da Arte

Nas indústrias de Oldowayen, na Tanzânia, a abundância das ferramentas talhadas em

magníficos blocos de lava verde mostra que, numa data remota, os hominídeos eram

já sensíveis às cores dos materiais que utilizavam.

Jan Jelinek relata que «os australianos e os índios da América têm em conta não só a

qualidade dos materiais, como também o seu aspecto estético11», sendo que os

aborígenes preferem, por exemplo, utilizar pedras de belas cores para o fabrico de

pontas de lança.

Uma outra noção à qual voltaremos, por considerá-la importante e porque releva

igualmente do domínio da estética, é a mestria da talha, a perfeição técnica e formal

das ferramentas bem feitas, que não eram forçosamente mais eficazes do que

ferramentas mal acabadas.

A beleza da maior parte das ferramentas pré-históricas salta logo à vista: é demasiado

evidente para não ter sido desejada pelos seus criadores, uma vez que as ferramentas

são as primeiras criações dos homens. Não esqueçamos que uma atracção pelas belas

ferramentas e belos materiais, característica simultaneamente do coleccionador e do

mestre artesão, contribuiu para fundar a própria ciência e favoreceu o encontro entre o

pré-historiador e o homem da pré-história, do qual não se pode negar a proximidade

de certas disposições.

Insistamos ainda sobre a beleza das ferramentas ao citar as seguintes linhas de

Jacques Tixier sobre a indústria Ateriana de Aïn Fritissma, em Marrocos –

equivalente magrebino de um moustierense final, datando de 40 mil a 30 mil anos,

sensivelmente –: «Variedade e beleza dos materiais utilizados, pureza técnica notória

da maioria das peças e sucesso de talhas excepcionais fazem dela a “série de vitrina”

ideal.12» O autor sublinha «a variedade dos coloridos da matéria prima: sílex em

raspas ou plaquetas, apresentando uma ampla gama de tons: cinzento-malva pálido,

translúcido, caramelo, por vezes muito translúcido, manchado de camurça, cinza

marmoreado, branco tipo “leite coalhado”, púrpura-rosa, negro antracite, branco

marmoreado de rosa, jaspes encarnados e “verde-cinza”, camurça com patina

ferruginosa raiada de azul e amarelo, verde e ferrugem, calcedónia, argilito. Os

artesãos desta série escolheram indiscutivelmente a sua matéria prima, não só

procuraram as rochas boas para talhar como também as mais agradáveis à vista. O

11 Jan Jelinek, Encyclopédie illustrée de l’homme préhistorique, Paris, Grund, 1979. 12 Jacques Tixier, «Les industries lithiques d’Aïn Fritissa (Maroc oriental)», Bulletin d’archéologie marocaine, t. III, 1959, pp. 107-244.

Page 38: As Origens Da Arte

sílex de muito boa qualidade era abundante, o que não os impediu de irem em busca

de rochas menos fáceis de talhar, como os jaspes, os argilitos ou as calcedónias».

É, efectivamente, difícil não considerar estas cintilantes séries como as «paletas» dos

primeiros artistas.

O jaspe

Os jaspes multicolores – ocre-amarelos, salpicados ou raiados de negro, castanhos e

encarnados – dos quais inúmeros seixos cobrem a vertente ocidental do Maciço

Central francês e o leito dos rios que daí partem, foram comummente procurados

pelos moustierenses da margem oriental da região da Bacia da Aquitânia. Foram

particularmente utilizados nos célebres sítios de Corrèze, como Chez-Pourré, Chez-

Comte e La Chapelle-aux-Saints.

Na estação moustierense de tradição acheuliana e na moustierense típica de

Fontmaure (Viena, em França), escavada por Louis Pradel, a grande maioria das

ferramentas é em jaspe opala de origem local. É provável que a jazida de jaspe tenha

fixado o habitat. Esta soberba matéria multicolor, que faz de cada objecto que produz

uma verdadeira jóia, provém da areia sobre a qual se instalaram os moustierenses

numa data relativamente tardia da sua evolução. Mas, como nota Pradel, as

dificuldades de talha são grandes, porque surge frequentemente uma quebra na zona

de passagem de uma cor para a outra. É por isso evidente que os moustierenses de

Fontmaure privilegiaram a beleza em detrimento da solidez da matéria prima.

Todavia, para o fabrico das pontas (armações de lanças que sofriam choques) optaram

pelo sílex de Grand-Pressigny, na região de Indre – uma rocha mais homogénea e

resistente, mas igualmente esplêndida, com a sua cor de mel mais ou menos malhada

que, mais tarde, no início dos tempos proto-históricos, viria a ser objecto de um

comércio em larga escala.

Rochas ainda mais preciosas e raras, difíceis de encontrar, de cores vivas e qualidades

mineralógicas excepcionais, como o cristal de rocha*, a obsidiana, a calcedónia, a

ágata, o topázio ou a opala, atraíram igualmente os talhadores de ferramentas, isto

bem antes do Paleolítico Superior.

O cristal de rocha

O cristal de rocha, também designado «quartzo hyalino*», é extremamente duro.

Límpido como o vidro, apresenta-se sob a forma de cristais de sílica pura cobrindo

Page 39: As Origens Da Arte

geodes e fissuras do soclo cristalino (Maciço Central, Pirenéus, etc.), ou sob a forma

de seixos enrolados nos aluviões dos rios. Apesar de muitas vezes se encontrar

intimamente fissurado, sendo, afinal, pouco propício para a talha, este minério foi

procurado e utilizado de maneira discreta mas quase contínua ao longo de centenas de

milénios.

Em todo o Mundo Antigo, a utilização esporádica do cristal de rocha regista-se

durante uma grande parte do Acheuliano; mas, tal como as matérias corantes e os

fósseis, é frequentemente trazido e conservado no habitat no seu estado natural não

modificado, isto é, sob a forma de cristais poliédricos.

Apesar de excepcional, a utilização do quartzo hyalino, para a talha de uma

ferramenta tão elaborada como um biface cordiforme* de há 700 mil anos, foi

referida por Jacques Tixier a propósito do Acheuliano antigo do erg13 Tihodaïne, em

Marrocos. Um biface foliáceo foi fabricado neste material pelos Micoquianos da gruta

de Külna, na República Checa. A frequência do cristal de rocha na formação das

ferramentas aumenta de seguida nos sítios moustierenses, entre os quais se pode citar,

por exemplo, Solignac, na região francesa de Haute-Loire, Montgaudier, na Charente

e La Baume-Bonne, nos Alpes-de-Haute-Provence. Mas é principalmente no

moustierense da Corrèze que é utilizado para o fabrico de ferramentas particularmente

cuidadas, na Chapelle-aux-Saints e, sobretudo, em Chez-Pourré, Chez-Comte, onde

foram recenseadas umas cinco dezenas de peças, nomeadamente uma belíssima série

de raspadores e pontas, algumas feitas num cristal fumado que produz o mais belo

efeito.

Fora de França, a presença do cristal de rocha surge mencionada por Marcel Otte no

moustierense da gruta Scladina, na Bélgica, e por Jan Jelinek, no Micoquiano da gruta

de Külna – que forneceu, designadamente, uma bela ponta talhada nesse material.

Os Homo erectus coleccionaram ocasionalmente, portanto, os cristais prismáticos de

quartzo hyalino, tendo-os excepcionalmente talhado e transformado em bifaces.

Depois, foram os Neandertais quem utilizou com maior frequência essa matéria prima

no fabrico de certas ferramentas, atribuindo-lhe, provavelmente, um valor mágico ou

simbólico.

O gosto pelo cristal de rocha manteve-se no Paleolítico Superior bem como noutras

épocas e regiões do mundo. Folhas de loureiro solutrenses, de rara beleza, realizadas

13 Termo tuaregue adoptado pela geografia internacional, significa «deserto de dunas» (n. do t.).

Page 40: As Origens Da Arte

num cristal de rocha cintilante, podem ser classificadas entre as obras de arte da pré-

história. Em 1923, foram interpretadas como «objectos rituais», por Givenchy.

Para curar os doentes, tal como os xamãs himalaicos, os medicine men australianos

praticam conjurações com a ajuda de cristais de quartzo hyalino.

A obsidiana e as pedras raras

A obsidiana apresenta-se como uma outra rocha de grande beleza utilizada no

Paleolítico Antigo e Médio e sobretudo, depois, no Neolítico e durante a proto-

história, durante a qual foi objecto de um comércio mediterrâneo de grande extensão.

Este vidro de vulcão de cor escura, muito homogéneo e fino, aliando beleza e

adaptação perfeita para a talha, foi utilizado em diferentes épocas nas regiões

vulcânicas do globo onde era acessível.

A partir de 1,4 milhões de anos, a obsidiana torna-se o material de predilecção dos

Acheulianos e, depois, dos homens do Paleolítico Médio de Melka-Kunturé, na

Etiópia. Leakey concebeu a existência de um sistema de troca na África Oriental

baseado nos bifaces de fina obsidiana de Kariandusi (no Quénia).

Em 1927, Joseph de Morgan sublinhou «a qualidade excepcional da obsidiana da

Arménia. Certos blocos são transparentes e muito pouco fumados, outros são de um

negro azeviche, e outros ainda transparente mas cheios de inclusões pretas. Por fim,

encontra-se uma grande quantidade deste blocos compostos por um vidro negro

raiado de encarnado, ou completamente vermelho.» Este autor refere-se a uma série

de raspadores, pontas e discos moustierenses em obsidiana, provenientes de estações

de superfície nas encostas do vulcão Alagheuz, na Arménia. Mais recentemente, a

gruta de Erevan, na mesma região, forneceu uma rica indústria moustierense típica,

em sete níveis, da qual todas as peças são feitas de obsidiana local.

Pelo contrário, na Europa, e no resto da Ásia, a obsidiana não parece ter sido

empregue no Paleolítico Antigo ou Médio. Não existem jazidas de obsidiana em

França.

Na gruta de Kundaro I, na Geórgia, as escavações levadas a cabo pelo Instituto de

Arqueologia de Leningrado revelaram uma indústria com 700 a 500 mil anos de idade

que continha uma peça excepcional: o carácter raro desta pequena lesma em obsidiana

advém-lhe do facto de essa rocha só se encontrar no estado natural a uma centena de

quilómetros do lugar onde foi encontrada, o que implica um transporte inabitual.

Page 41: As Origens Da Arte

Entre as pedras preciosas e raras mencionadas nalgumas jazidas, citemos um

magnífico topázio encontrado no Moustierense de Sergeac, na região francesa da

Dordonha, e a opala e o jaspe encontrados no sítio Paleolítico Antigo de

Zhoukoudian, na China.

Poder-se-ia somar à lista das curiosidades as pedras-pomes do Acheuliano e do

Moustierense do tipo Quina Combe-Grenal, na Dordonha, que, contrariamente aos

minerais metálicos e aos fósseis, puderam agradar pela sua espantosa ligeireza e

diversas propriedades.

Page 42: As Origens Da Arte

Primeiras formas, primeiras ferramentas: poliedros,

esferóides e bifaces

O fabrico das primeiras ferramentas pelo homo habilis ou Australopitecos, há cerca de

2,7 milhões de anos, na África Oriental (no vale do Awash, na Etiópia), implicava, a

montante, a existência de um projecto intelectual.

Essas ferramentas, lascas e seixos preparados, constituíam os elementos de base da

civilização dos seixos trabalhados, também designada «Pebble Culture» ou

«Oldowayen». As necessidades de aparelhamento de então limitavam a fortuitidade:

era preciso escolher os seixos de dimensão conveniente, de forma geralmente

achatada, provenientes de uma rocha pronta a ser talhada. Isto implicava a projecção

de uma imagem mental do objecto desejado sobre a matéria bruta. Gestos e formas

produzidas foram depois identicamente repetidos durante mais de dois milhões de

anos.

Às simples lascas juntaram-se os «choppers», seixos possuidores de um cortante mais

ou menos sinuoso obtido por via da retracção num único dos lados, e os «chopping

tools» (ou choppers bifaces), cujo cortante é obtido através da retracção em ambos os

lados.

Nesta indústria já estandardizada apareciam, ao lado dos tipos comuns, formas mais

elaboradas: seixos ou nódulos de pedra talhados em toda a sua superfície, chamados

«poliedros», e, mais tarde, «bifaces».

Poliedros e bolas Ao longo do Paleolítico Antigo ou Médio, entre os seixos talhados do Acheuliano e

do Moustierense, e ao lado das lascas, choppers, bifaces e outras variedades de

ferramentas, aparecem bolas de pedra enigmáticas que os pré-historiadores designam

«poliedros», «sub-esferóides», «esferóides» ou «bolas*» (abreviação: PSSB).

Page 43: As Origens Da Arte

Segundo François Bordes, «são objectos em sílex, quartzito, etc., de forma geralmente

poliédrica, tendendo para a forma esferoidal». Encontram-se desde o início do

Paleolítico, do Vilafranquiano de Aïn Hanech, na Argélia, até ao Acheuliano Superior

ou ao Moustierense de tradição acheuliana de Bihorel (na região francesa de Seine

Maritime), estão presentes no Acheuliano de Gafza (Tunísia) e no Moustierense de

Aïn Méterchen (na Tunísia). O seu uso é problemático. Talvez desempenhassem o

papel de bolas?14»; quanto às bolas propriamente ditas, trata-se de poliedros cuja

superfície foi inteiramente piquetada e regularizada por bujardada*.

Os PSSB constituem aquilo a que, hoje, os especialistas da tecnologia da pedra

designam «cadeia operatória»: a bola, que é uma esfera quase perfeita, está de facto

virtualmente contida no poliedro, sendo ele próprio uma esfera aproximativa – ou

uma esfera em devir. A cadeia pode ser parada em qualquer um dos estádios que a

constituem. É por isso que, dependendo das jazidas, encontram-se mais poliedros,

esferóides, bolas, ou uma combinação de vários destes tipos.

Parece, todavia, que a relação entre o número de poliedros e o número de bolas se

inverte ao longo do tempo: só os poliedros se encontram nos sítios mais antigos (Aïn

Hanech, na Argélia, por exemplo); surgem depois acompanhados de bolas, que se vão

tornando progressivamente mais numerosas no decurso do Acheuliano, enquanto a

proporção de poliedros diminui; por fim, as bolas tornam-se quase exclusivamente

presentes no Moustierense recente. Constituem um aperfeiçoamento dos poliedros

que certos acheulianos e os moustierenses realizaram com maior frequência do que os

seus predecessores do Paleolítico arcaico – sendo que estes parecem tê-los ignorado

durante muito tempo.

Voltemos à descrição destas peças espantosas. Os poliedros são esferas grosseiras

com facetas desbastadas (ou seja, cuja parte superficial foi retraída), em grandes

lascas, sobre toda a superfície de um bloco, de um seixo ou de um nódulo de forma

originalmente arredondada. Têm muitas vezes a dimensão de uma laranja e pesam

várias centenas de gramas, chegando mesmo a um quilograma.

Estes objectos, que se encontram em todo o continente africano e numa grande parte

da Eurásia, aparecem há cerca de dois milhões de anos em África, isto é, várias

centenas de milénios antes dos bifaces. Estão nomeadamente presentes no Oldowayen

das gargantas de Oldoway, no conjunto do Magrebe, na África do Sul e em todo o

14 François Bordes, Typologie du Paléolithique ancien et moyen, Paris, ed. CNRS, 2000.

Page 44: As Origens Da Arte

Acheuliano africano. Acompanham as migrações do Homo erectus para o Próximo

Oriente, antes do milhão de anos, para a Europa Oriental, para o conjunto da Europa

e, em particular, para França, onde são contemporâneos da glaciação rissiana...

Como dissemos, no decurso da sua longa história, as bolas facetadas aperfeiçoaram-se

gradualmente para se transformarem, cada vez mais frequentemente, em bolas.

Estas últimas surgem ao lado de poliedros no Acheuliano Antigo de Oldoway,

sensivelmente no mesmo momento que os primeiros bifaces; podem ser consideradas

um aperfeiçoamento introduzido pelo Homo erectus. Abundam no conjunto do

Acheuliano africano e, depois, nos seus prolongamentos do Paleolítico Médio, no

Acheuliano e no Moustierense do Próximo Oriente, na Ásia... Reencontram-se ainda

no Acheuliano europeu, nomeadamente no cascalho do rio Somme, onde foram

assinaladas por Jacques Boucher de Perthes nos socalcos do vale do Aisne e,

finalmente, em grande número em todo o Moustierense Ocidental.

A utilização destas bolas de pedra fez correr muita tinta. A maior parte dos autores

sublinhou que não podiam ser confundidas com os nucleus, nem com os percussores*,

mas que talvez se tratasse de pedras de jogo ou, antes, de pedras de arremesso para a

caça. Para apoiar esta tese foi invocado o facto de uma dessas bolas ter sido

encontrada fendida em dois fragmentos conservados juntos, em Quina (região

francesa de Charente), o que alimentou a hipótese de que um invólucro de pele de

animal cercava a bola, tal como acontece com as bolas dos gaúchos das pampas

argentinas. Mas outros autores espantam-se com o número elevado destes objectos em

certos meios e com as suas dimensões por vezes estranhas: o Acheuliano de Sidi

Abderrhaman (em Marrocos) forneceu bolas de 30 centímetros de diâmetro, com um

peso superior a dez quilogramas. Outras bolas, feitas de argila, não puderam, também

elas, ter sido utilizadas como pedras de arremesso.

A disposição em monte de algumas delas bem como a sua associação com os

depósitos de ferramentas leva a pensar que se trata por vezes de objectos de culto.

Estas enigmáticas bolas (que puderam, é certo, ter tido diversas utilizações das quais a

traceologia* nada revela) convidam os pré-historiadores a pôr freios à sua imaginação

e a considerar modestamente que se encontram tão só na presença de «bolas de

pedra»! Convidam-nos ainda a lembrarem-se do aviso de Jacques Boucher de Perthes,

o pai da pré-história que, desde 1849, considerava as bolas de pedra dos cascalhos

quaternários do rio Somme como «símbolos», porque «algumas exigiam um trabalho

demasiado considerável para meras pedras de arremesso».

Page 45: As Origens Da Arte

A simples existência destes esferóides desde o dealbar da humanidade não constitui

só por si um fenómeno de grande importância?

Poliedros, esferóides e bolas ocupam um lugar à parte na história humana, porque

representam as primeiras criações de formas geométricas. Há mais de 2 milhões de

anos, o homem concebeu a ideia da esfera e tentou concretizá-la através de um duro

labor, num material resistente. A pedra cedeu diante da vontade do espírito e da mão,

e a vitória foi tanto mais bela quanto pode ter sido gratuita! Contrariamente ao que foi

dito muitas vezes, pensamos que, desde o início, o homem foi capaz de criar uma

forma perfeita simplesmente por prazer, tendo podido depois descobrir-lhe possíveis

utilizações.

No seu estudo sobre esquemas conceptuais e cadeias operatórias dos artesãos do

paleolítico (sendo «artesão» um termo vizinho de «artista»), Pierre-Jean Texier

mostrou que os PSSB foram «construídos a partir de conceitos geométricos e

volumétricos», mais precisamente partindo da «busca de um volume regular repartido

em torno de um ponto virtual15». Mostrou ainda que «a aquisição de uma forma

poliédrica a esférica tinha sido obtida por organização da feitura em torno de um

centro de equilíbrio tendendo para um centro de simetria verdadeira».

O fabrico de um poliedro efectuava-se com um percussor de pedra, ao desbastar um

bloco ou um seixo através de retracções superficiais em toda a camada exterior,

evitando ao máximo a perda de matéria e utilizando a cicatriz de uma retracção

anterior como plano de golpe para a retracção seguinte. A experimentação confirmou

o cuidado extremo que o fabricante tinha para simplesmente «pelar» o nódulo,

evitando um encetamento demasiado profundo na matéria. O poliedro é portanto uma

bola com facetas irregulares cujo centro de gravidade (ou «centro de equilíbrio») se

situa no seio do volume que ele constitui.

Quando a feitura se prossegue para além deste estádio, para chegar aos estádios

intermediários dos esferóides e sub-esferóides, e depois à esfera quase perfeita da

bola, outras operações intervêm para esbater as arestas e regularizar a superfície

inteira do objecto: a piquetagem com um percussor e, depois, a bujardada sobre uma

bigorna.

A regularização do poliedro, guiada pelo esquema mental da esfera, conduz a um

deslocamento progressivo do centro de gravidade que vem colocar-se no centro 15 Pierre-Jean Texier, «L’Acheuléen d’Isenya (Quénia)», La Vie préhistorique, Société préhistorique française, Dijon, ed. Faton, 1996, pp. 58-63.

Page 46: As Origens Da Arte

geométrico da bola tornada perfeitamente redonda. Um objecto simétrico

relativamente a um ponto central é assim criado. É a primeira simetria realizada pelo

homem no decurso da sua história.

Ainda segundo Texier: «O que pode, numa primeira abordagem, parecer um objecto

grosseiro, produto de um aparelhamento inorganizado é, na realidade, uma diligência

complexa que faz apelo a noções de simetria e a inovações técnicas.» Uma diligência

tão complexa quanto o fabrico de um biface.

Os bifaces Como o nome indica, os «bifaces» são ferramentas em forma de amêndoa,

trabalhados nas suas duas faces; são munidos de uma ponta afiada e de uma base

geralmente arredondada, por vezes não talhada e conservada, o que permite uma boa

preensão. Esta ferramentas, dotadas de um cortante periférico, podem ser fabricadas a

partir de um nódulo, de um bloco, de um seixo ou de uma grande lasca.

Os primeiros bifaces derivam dos seixos talhados: retracções periféricas em torno dos

seixos produzem choppers discóides; retracções compactas suplementares

transformam-nos progressivamente em bifaces. Pode também conceber-se a origem

dos bifaces em poliedros.

As suas dimensões máximas escalonam-se entre 30 e 5 centímetros e o seu peso

oscila entre dezenas e algumas centenas de gramas – alguns ultrapassam mesmo, por

vezes, o quilograma.

Os bifaces surgem no Acheuliano Antigo da África Oriental, no sítio de Oldoway, há

cerca de 1,4 milhões de anos. No entanto, alguma formas muito rudes, baptizadas

«proto-bifaces», foram assinaladas em indústrias oldowayanas mais antigas; segundo

Bar Yosef, a partir de 1,7 milhões de anos, as populações de Homo erectus produzem

indústrias de bifaces e indústrias de lascas e choppers que reaparecem em momentos e

meios diferentes. Os bifaces somam-se, portanto, às indústrias de lascas e seixos

trabalhados, sem fazê-los desaparecer. A proporção de bifaces varia enormemente de

um sítio para o outro.

Nem por isso o biface deixa de ser uma peça «símbolo do Acheuliano», devendo ser

considerado como uma invenção espectacular do Homo erectus, que o leva consigo na

sua colonização da Eurásia, ao mesmo tempo que as indústrias de lascas e seixos

Page 47: As Origens Da Arte

trabalhados. Os primeiros bifaces surgem assim no Próximo Oriente há mais de um

milhão de anos. A tradição destes artefactos, amplamente desenvolvida na Índia, não

se propagou até à Ásia Oriental; e, na Europa Ocidental, manifesta-se apenas desde há

700 mil anos. Numa forma mais reduzida, o biface persiste até ao final do Paleolítico

Médio, nomeadamente na Europa. A tradição do biface propriamente dito interrompe-

se então, mas diversas pontas foliáceas perpetuam a técnica da talha bifacial que faz

diversas reaparições no decurso do Paleolítico Superior e no início da proto-história.

Na sua forma típica, a par do chopper e do poliedro-bola, o biface é a ferramenta que

teve a mais ampla e longa utilização de toda a história humana.

Apesar do modelo desta ferramenta se ter transmitido através dos milénios e pelos

vários continentes, a sua função exacta permanece incerta. A traceologia não nos dá

mais informação sobre as utilizações dos bifaces. Antepassadas do moderno canivete

suíço, estas ferramentas eram certamente multifuncionais, servindo simultaneamente

para cortar, raspar, perfurar, bater. Os bifaces eram geralmente segurados pela mão. A

sua longevidade, a sua universalidade, o cuidado tido na sua concepção e

transformação por vezes em verdadeiras obras de arte, a quantidade e,

frequentemente, a qualidade da matéria que requeriam para o seu fabrico podem

parecer surpreendentes se os compararmos com a facilidade de obtenção de

ferramentas mais especializadas e com melhor desempenho (lascas, raspadores,

pontas...), cuja produção foi, no mesmo momento, igualmente abundante. Como

muitos autores já o afirmaram, o biface não responde certamente apenas a

necessidades materiais. Imperativos socio-religiosos deverão ter desempenhado um

papel essencial na sua produção e longevidade.

Os primeiros exemplares são peças grosseiras cujo cortante é mais ou menos sinuoso;

são talhadas com um percussor duro (um seixo de quartzo, por exemplo). Depois, a

partir do Acheuliano Médio, as peças afinam-se, a sua silhueta torna-se mais elegante,

os retoques mais ligeiros e os rebordos mais rectilíneos. O uso do percussor macio

(em matéria orgânica, como a madeira ou o osso), que apareceu há uns 500 mil anos,

explica um tal progresso.

Uma espantosa variedade de materiais foi utilizada para o fabrico dos bifaces: toda a

espécie de pedras preciosas, vulcânicas ou até calcárias, de grãos e cores muito

diferentes, foram empregues. Alguns bifaces foram, inclusivamente, talhados em osso

compacto de elefante pelos acheulianos de Itália e pelos paleolíticos antigos e médios

Page 48: As Origens Da Arte

da Alemanha; a utilização dessa matéria difícil de trabalhar, relativamente tenra e que,

de qualquer modo, não oferece uma resistência equivalente à da pedra, leva a pensar

que não era a solidez nem a eficácia da ferramenta que eram procuradas. Talvez se

tratasse de instrumentos votivos ou simbólicos, cujo valor estava ligado ao do animal

que fornecia a matéria prima ou à proeza de que o artesão que trabalhava um material

excepcional devia fazer prova.

Vários pesquisadores elaboraram classificações de bifaces. Uma das mais utilizadas, a

de François Bordes, é muito detalhada, uma vez que inclui mais de uma vintena de

tipos diferentes de bifaces. A listagem é constituída a partir de quatro formas básicas:

oval, discóide, cordiforme e triangular.

Acheulianos e moustierenses não adoptaram indiferentemente todos estes modelos: as

formas que preferiram foram em particular os cordiformes e as ovais, com todas as

variantes e diferentes proporções segundo os lugares, sendo que triângulos e discos

ocorrem mais raramente. A passagem de uma forma a outra é frequentemente

progressiva, sendo as modulações e figuras intermediárias numerosas. Esta é a razão

pela qual Bordes fundou a sua tipologia em medidas precisas e relatos numerados,

fixando limites objectivos entre os diferentes tipos.

A extensão da gama dos bifaces revela o prazer com que os homens pré-históricos

jogaram com as formas; é ainda reveladora das suas proezas técnicas. As variações da

silhueta do biface acompanham as da respectiva espessura: certas peças, maciças, de

secção por vezes triangular (triedros), são obtidas por via do percussor duro, enquanto

o percussor macio permite obter formas ovalares alongadas, como «limandas»,

cordiformes oblongos, «amigdalóides*» – bifaces com rebordos côncavos são

qualificados de «lanceolados micoquianos» e outros, por fim, alongam-se e ganham o

nome de «ficrons*»...

No fabrico dos bifaces , os Homo erectus referem-se, pois, a formas geométricas

ideais que contêm curvas derivadas do círculo e da oval, ou comportando rectas

(como no triângulo), mas nunca têm a forma do quadrilátero: não existem bifaces

rectangulares. Foi, no entanto, encontrado, em Fontmaure, um biface que mostra que

os moustierenses não ignoravam completamente o quadrado.

A simetria perfeita que caracteriza a maior parte destas ferramentas reflectia um

processo ontogenético inerente à natureza do espírito humano. Esta mestria antiga da

simetria revela que o homem actual está provavelmente em gestação desde a mais alta

Antiguidade.

Page 49: As Origens Da Arte

Vários investigadores pensam que o biface terá tido como modelo a mão humana: de

acordo com Kenneth P. Oakley, «com o dealbar do pensamento simbólico, o biface

terá inconscientemente representado uma terceira mão que, ao contrário da original

em carne e sangue, era capaz de cortar e despedaçar as carcaças dos animais

caçados16».

Tal simbolismo é plausível: à parecença morfológica com a mão soma-se uma

semelhança funcional; mas só pode tratar-se de um simbolismo muito geral.

A bem dizer, a semelhança com a mão é imperfeita, porque esta é assimétrica, quando

o biface, por seu lado, é simétrico. Preferimos pensar que, ao criar bifaces, o Homo

erectus procurava antes de mais incarnar os seus esquemas mentais na dura matéria;

antes mesmo de fabricar uma ferramenta, ele criava tão só uma forma. A forma

precedia a função.

Segundo Jean-Marie Le Tensorer, «o homem trabalha a matéria para lhe dar uma

forma satisfatória. Desde o início, essa forma terá tendência para apresentar uma forte

simetria. O Homem passou de artesão a artista; a simetria não é minimamente

necessária para a função da ferramenta, é um complemento estético17».

É claro que a primeira forma procurada e obtida na formação dos poliedros foi a

esfera; e foi, provavelmente, a partir do seu fabrico que o criador de bifaces produziu

o círculo, a oval e o triângulo; estreitando progressivamente a espessura das peças,

afastou-se do espaço a três dimensões do poliedro e tendeu para o espaço a duas

dimensões de uma forma plana imposta por um contorno.

Helène Roche e Pierre-Jean Texier mostraram concludentemente que a construção do

biface assenta no princípio de uma dupla simetria: «Uma morfologia é procurada por

via da adaptação simultânea de duas convexidades, de maneira a que uma seja feita à

imagem da outra, em função de um plano de equilíbrio bifacial. Da intersecção dessas

duas convexidades nasce uma silhueta alisada por via de retoques, que se distribui em

relação a um plano de equilíbrio bilateral.18»

Os dois planos de simetria são perpendiculares. O estreitamento da peça, consecutivo

sobretudo à intervenção do percussor suave, dá prioridade ao plano de equilíbrio 16 Kenneth P. Oakley, «Emergence of Higher thought, 3-0, 2 ma. b.q.», Philosophical Transactions of the Royal Society of London, b 292, 1981, pp. 205-211. 17 Jean-Marie Le Tensorer, «Les prémices de la créativité artistique chez Homo erectus», Mille fiori, Festschrift für Ludwig Berger, 25 de Agosto de 1998, pp. 327-335. 18 Helène Roche e Pierre-Jean Texier, «La notion de complexité dans un ensemble acheuléen, Isernia-Kenya», 25 ans d’études technologiques, bilan et perspectives, CNRS, 1991, pp. 99-108.

Page 50: As Origens Da Arte

bilateral, isto é, ao contorno. Esta prioridade sublinha uma evolução maior: o homem

fabrica uma silhueta que ele domina perfeitamente; com o seu percussor de madeira,

desenha já uma forma abstracta, redonda ou angular, uma oval, uma amêndoa, um

coração ou um triângulo. Escultura que tende para o desenho, o biface testemunha das

capacidades de abstracção do Homo erectus; mostra igualmente que a abstracção está

na origem da arte.

Empenhada há mais de um milhão de anos pelo Homo erectus no fabrico das suas

ferramentas, a dialéctica do volume e do plano reencontra-se ao longo de todo o

Paleolítico, até à arte figurativa do Paleolítico Superior com as suas estatuetas sem

face oculta, as suas decorações sobre o tronco cilíndrico das armas e das ferramentas,

os seus perfis de animais integradores de volumes rochosos sobre as paredes das

cavernas. Este jogo só alcança a proeminência perfeita do plano num número restrito

de obras parietais ou móveis realizadas em perfil absoluto sobre uma superfície

regular, em finas gravuras sobre as faces planas dos ossos (omoplatas). Os «contornos

recortados» magdalenianos e as pinturas e gravuras parietais sugerem o volume em

trompe-l’oeil, ou seja, dão ao plano, através de um artifício gráfico, uma profundidade

que lhe falta.

Sublinhemos aqui um facto importante: as obras planas, os puros desenhos num

suporte anónimo, são minoritárias no conjunto das produções paleolíticas europeias: a

arte dos primeiros artistas, como a da natureza, é uma arte total que se desdobra no

espaço e associa todas as técnicas: traço, escultura, volume, matéria e cor.

Na Austrália, em contrapartida, desde o início da arte rupestre, há cerca de 50 mil

anos (apenas), afirma-se uma arte do plano com tendência geométrica e decorativa

que continua a ser a dos grandes artistas aborígenes australianos actuais. É uma arte

de caçadores habituados a ler as pegadas no solo, radicalmente diferente da arte

ocidental de tendência realista que, desde a sua origem, dá um grande espaço ao

volume e à matéria. A ausência de integração das formas do relevo e de verdadeiras

esculturas sem face oculta na arte pré-histórica australiana sublinha as diferenças

entre os dois mundos artísticos da Europa e da Austrália.

Voltemos aos bifaces. Alguns refinamentos tecnológicos excepcionais e determinados

contextos das descobertas mostram claramente as espantosas capacidades do espírito

humano de há centenas de milénios para cá. Assim, no deserto da Síria, em

Nadaouiyeh, as investigações de Jean-Marie Le Tensorer revelaram mais de dez mil

Page 51: As Origens Da Arte

bifaces em níveis datados de 500 mil anos! Cada uma dessas peças, quase sem

excepção, é uma obra de arte. Tal produção maciça de uma ferramenta particular, que

alia a perfeição formal ao esplendor do material, responde a uma necessidade

espiritual que ultrapassa a função utilitária. Revela a existência de uma tradição

estético-mitológica de «obras-bifaces», numa duração aliás limitada a algumas

centenas de milénios, como bem mostra a estratigrafia do sítio, com a produção de

bifaces comuns, menos numerosos e frequentemente sumários, retomando depois o

seu curso normal.

Quase no mesmo momento, em Espanha, um magnífico biface em quartzito

encarnado foi descoberto entre a trintena de esqueletos do poço da Sima de los

Huesos, em Atapuerca. Esta peça, realizada num material escolhido, é provavelmente

uma oferenda depositada ao lado dos mortos que eram atirados para um poço

funerário; o contexto atesta um comportamento altamente simbólico da parte dos

ante-neandertais, há cerca de 400 mil anos!

Assim, a produção das primeiras ferramentas, que são as primeiras obras de arte,

revela que, sem qualquer incitação exterior, sem referência a qualquer modelo, o

intelecto humano produz por si próprio esquemas abstractos que são a fonte da arte.

Dissimetria e estética funcional A simetria não constituiu uma regra intangível para o artista-artesão das origens: ele

apreciava o jogo! O seu amor pelas gamas formais condu-lo de tempos a tempos para

fora dos caminhos trilhados. Em muitas sítios, no meio de bifaces tradicionais,

surgem algumas peças dissimétricas associando voluntariamente um rebordo convexo

e um rebordo côncavo. Não é por serem destros ou canhotos que os acheulianos

fabricam bifaces dissimétricos: o seu carácter bifacial permitia efectivamente que tais

instrumentos fossem indiferentemente utilizados por um ou outro tipo de manejador.

Estas peças respondem, pois, provavelmente ao simples prazer de criar novas formas

e de efectuar o exercício técnico e plástico que isso supõe. Entre as ferramentas

comuns do Paleolítico arcaico, figuram já lascas dissimétricas em que um rebordo

natural ou embotado se opõe a um cortante: trata-se de raspadores ou de pontas

«desalinhadas», sendo que o eixo do objecto perfaz um ângulo com o eixo da lasca na

Page 52: As Origens Da Arte

qual está moldado, o que resulta por vezes num desequilíbrio de conjunto da peça.

Estamos aqui na presença de um fenómeno cultural, uma vez que os raspadores

desalinhados podem ser muito frequentes localmente, como por exemplo no período

de Yabroud, na Síria, que data de cerca de 200 mil anos. Note-se que a eficácia deste

tipo de ferramenta, sobretudo quando se trata de uma peça de mão, como um

raspador, é igual à de uma ferramenta perfeitamente simétrica.

Raspadores bifaces dissimétricos, designados «prondniks», existem igualmente no

Micoquiano Oriental da Europa Central.

Pelo contrário, a dissimetria das pontas podia impedir a sua utilização como ponta de

dardo ou de lança. Certas pontas, destinadas a armar a extremidade de um dardo,

deviam ser perfeitamente simétricas. Com elas, reencontramos a noção de «estética

funcional», associando a beleza e a eficácia na sua acepção mais actual, «ou seja, a

procura no fabrico das ferramentas das formas belas e mais eficazes, tal como hoje as

formas mais aerodinâmicas» (Leroi-Gourhan19).

Pedras-figuras, estatuetas e máscaras No século XIX, juntamente com sílexes talhados, Boucher de Perthes recolhera nos

aluviões do rio Somme um grande número de pedras curiosas que tinha interpretado

como «os símbolos dos primeiros homens», testemunhando uma «necessidade inata

de religião». Na sequência disto, os pré-historiadores desconfiaram bastante destas

«pedras-figuras» que respondem à projecção de uma imagem mental numa forma

natural – projecção, que pode estar na origem da arte. Em pré-história, para que uma

«pedra-figura» possa ser tida em conta enquanto tal, é preciso que testemunhe, de

uma maneira ou de outra, de uma intervenção humana: deverá ter sido descoberta

num nível arqueológico e deverá possuir-se a prova de que foi objecto de um

transporte intencional ou então terá de comportar os estigmas indiscutíveis de um

retoque ou de um esboço de trabalho humano como prolongamento da obra da

natureza, completando-a com o objectivo de perfazer a sua figuração. É o caso, como

já vimos, da pedra-figura encarnada de Makapansgat (África do Sul), representada na

figura 3 (p. 00), evocando um rosto humano e que um australopiteco transportou e

trouxe de volta para o seu habitat.

19 André Leroi-Gourhan, Les Hommes de la préhistoire, Paris, Bourrelier, 1955.

Page 53: As Origens Da Arte

É também o caso de uma figurinha israelita: no decurso de umas escavações, em

1981, no sítio acheuliano a céu aberto de Berekhat Ram, um pequeno nódulo de tufo

vulcânico de 3,5 centímetros de altura e 2,5 centímetros de largura foi descoberto por

Naama Goren-Inbar. A sua situação em níveis datados por via de métodos

radiométricos permite estimar a sua idade entre os 250 e 280 mil anos. Trata-se de

uma pedra-figura retocado pelo homem para acentuar a sua semelhança natural com

uma silhueta feminina de formas generosas. Apesar do cepticismo de alguns

investigadores, vários especialistas que efectuaram um exame microscópico da peça

estão de acordo para reconhecer a existência de algumas raspagens sobre o peito, os

ombros, o pescoço e os braços da figura representada.

Figura 4:

Proto-figurinha acheuliana de Berekhat Ram (Israel), com, aproximadamente, 280 mil

anos.

Ao tomar conhecimento das imagens e das informações entregues por esses

especialistas experimentados, é impossível não nos espantarmos não só com a

extraordinária datação desta «estatueta» como, sobretudo, com a sua estranha

parecença com as Vénus do Paleolítico Superior – igualmente caracterizadas por um

porte maciço e caracteres sexuais acentuados –, tendo as mais antigas uma idade

compreendida entre 25 e 28 mil anos.

Como explicar esta semelhança geral? Tratar-se-á de uma simples convergência? Ou

será que os homens conseguem encontrar a mesma imagem simbólica da mulher a

centenas de milénios de distância? A tradição das imagens femininas estende-se

efectivamente sobre o conjunto dos tempos pré-históricos e reencontra-se em

civilizações do mundo inteiro; a sua emergência no Paleolítico Antigo não deveria,

por isso, espantar-nos.

Uma outra pequena proto-escultura* do mesmo tipo foi assinalada num nível

acheuliano, datado de 400 mil anos, na jazida de Tan-Tan, em Marrocos. O seu

estudo, ainda em curso, deverá confirmar se o seixo foi ou não também ele retocado.

No dealbar do Paleolítico Superior, um nível proto-aurignacense de Srbsko, na

Boémia, ofereceu uma outra figurinha, esculpida num osso de grande mamífero, que

parece apresentar-se como um marco no caminho conduzindo às figurinhas

antropomórficas estilizadas do Paleolítico Superior Antigo. Trata-se de uma estatueta

Page 54: As Origens Da Arte

muito rudimentar, uma das mais antigas obras de arte da Europa. Parece, com efeito,

apegar-se a uma tradição de estatuetas, muito primitivas, em marfim, do Paleolítico

Superior Antigo e do Aurignacense Ocidental, que terá persistido até às figurinhas em

metacárpico de mamute da Morávia, que são, todavia, mais recentes (27 mil anos).

Entre as primeiras figurinhas animais do mundo, uma cabeça datada de cerca de 34

mil anos, esculpida numa vértebra de rinoceronte lãzudo, foi descoberta na Sibéria. É

contemporânea das figurinhas animais do Aurignacense germânico.

Num habitat de finais do Moustierense, situado na gruta de Achon, em La Roche-

Cottard, na região francesa de Indre-et-Loire, um bloco de sílex triangular, com 10

centímetros de lado e 4 centímetros de espessura, foi encontrado apresentando uma

perfuração natural na qual uma esquírola óssea foi inserida e fortemente bloqueada;

os rebordos da peça foram regularizados por via de retoques e o conjunto faz

irresistivelmente pensar numa face humana, ou antes, uma máscara. Como em

Berekhat Ram, tratar-se-á de uma curiosidade natural trazida de volta a um habitat,

tendo a sua vocação formal sido acentuada por um trabalho humano, de modo a

transformar o objecto numa verdadeira figuração humana.

Assim, no estado actual dos conhecimentos, excepção feita a certas ferramentas –

bifaces, poliedros ou bolas –, as criações humanas a três dimensões anteriores ao

Paleolítico Superior são raras no conjunto do mundo.

As poucas peças recenseadas pertencem ao Acheuliano e ao proto-aurignacense. Em

todos os casos, trata-se unicamente da exploração superficial de formas naturais

minimamente retocadas e completadas, revelando já uma tendência figurativa discreta

que se afirma particularmente na cabeça de urso de Tobalga, esculpida sem face

oculta, e que é a mais recente destas peças.

Page 55: As Origens Da Arte

Marcas e estrias

Desde o nascimento da sua disciplina, os pré-historiadores viram-se confrontados com

o delicado problema da interpretação das marcas observadas nas ossadas de animais.

Esforçaram-se de imediato para distinguir as marcas provocadas por fenómenos

naturais daquelas feitas pelo homem, que podiam trazer a prova da antiguidade deste

último (que, na época, ainda não estava demonstrada) e da sua contemporaneidade

com espécies animais desaparecidas. Estas distinções foram primeiramente muito

incertas e alguns investigadores puderam mesmo defender a existência do homem na

época terciária, hipótese errada e depressa refutada.

Foi o doutor Henri Martin quem, entre 1906 e 1936, no seu longo e rigoroso estudo da

jazida moustierense de Quina, na região francesa de Charente, desenvolveu a primeira

verdadeira aproximação científica ao trabalho do osso realizado pelos homens pré-

históricos.

Ele reconheceu a fragilidade dos limites entre marcas de utilização e marcas

intencionais, quer sejam decorativos, quer respondam a uma qualquer outra

necessidade de ordem intelectual ou espiritual; a posição regular das incisões nem

sempre é, com efeito, significativa, uma vez que pode resultar de um trabalho de

descarnação do osso. Só a comparação e o contexto arqueológico podem esclarecer a

interpretação de cada peça, uma interpretação que, apesar de tudo, permanece

frequentemente conjectural.

Em 1933, na linhagem das investigações de Henri Martin e com o mesmo rigor e o

mesmo espírito crítico, o paleontólogo Pei Wen-Chung, pesquisador nas escavações

da jazida de Zhoukoudian, na China, publicou uma obra abundantemente ilustrada

sobre «o papel dos animais e das causas naturais na quebra dos ossos».

Recorrendo a numerosos exemplos oriundos dessa famosa jazida do Paleolítico

Antigo, que acabava de lhe oferecer o primeiro esqueleto de Sinantropo20, o autor

apresenta uma grande variedade de marcas feitas nas ossadas pré-históricas pelos

carniceiros e roedores contemporâneos dessas ossadas – bem como pela acção das

águas infiltradas nos níveis arqueológicos. Estudou ainda as vermiculações* de

origem microbiana ou vegetal, as marcas de raízes e as dissoluções químicas pela 20 O Sinantropo é um hominídeo da espécie Homo erectus.

Page 56: As Origens Da Arte

água de infiltração, que aumentam os foramens naturais do osso, abrem perfurações e

coloram até por vezes o osso como se se tratasse de pintura. Ele descreve os ossos

rolados, usados, polidos pelos agentes naturais bem como os que se encontram

quebrados ou riscados por efeitos mecânicos no interior dos sedimentos, fenómenos

hoje designados pelo termo «trampling»*. Com humor, apresenta ainda incisões feitas

por dentes de ursos e de hienas, que se assemelham «a inscrições em caracteres

chineses», e vermiculações numa tíbia de lobo, que simulam uma «gravura

representando uma avestruz e o seu ovo»!

São numerosos os paleontólogos e pré-historiadores que, ainda hoje, continuam

certamente a meditar sobre os ensinamentos de Henri Martin e Pei Wen-Chung – os

primeiros a denunciar claramente as armadilhas que as marcas ósseas podiam tecer

aos especialistas em busca das origens da arte e do pensamento simbólico...

Foi, no entanto, numa armadilha deste género que caíram, há apenas um quarto de

século, uma série de investigadores entre os mais célebres.

Em 1969, numa publicação, o professor François Bordes apresentou, ao lado de um

osso perfurado, um fragmento de costela de bovídeo ornado de «gravuras

intencionais» provenientes da jazida de Pech de Azé II, na região francesa de

Dordonha, e que fora descoberto num nível bem anterior ao Moustierense: um nível

acheuliano datando de, sensivelmente, 300 mil anos! O objecto foi regularmente

citado pelos especialistas durante os vinte anos subsequentes. «O osso gravado do

acheuliano de Pech de Azé II» tornava-se assim uma peça de referência, atestando um

nível intelectual inesperado no Homo erectus... Em 1977, o célebre especialista

americano Alexander Marshak publicou um estudo aprofundado e uma interpretação

das gravuras do osso de Pech de Azé II, «nas quais vislumbrava a origem de uma

vasta e longa tradição do meandro» ligada ao simbolismo da água, podendo até alguns

desses traçados representar «rios irreais», «trajectos evocando viagens xamânicas»...

Coube a Francisco d’Errico e Paola Villa, em 1997, pôr termo «às viagens

xamânicas» dos «gravadores acheulianos» ao demonstrar, por via de uma análise

microscópica e anatómica comparativa aprofundada, que essas pretensas gravuras, na

realidade, não passavam de impressões deixadas pelos vasos sanguíneos na superfície

de uma costela de bovídeo!

Útil lição de modéstia para todos, sublinhando que os maiores especialistas também

se enganam: o estudo actual das marcas ósseas reclama uma grande precaução e uma

Page 57: As Origens Da Arte

diligência rigorosa que recorre a várias disciplinas e métodos de observação muitas

vezes sofisticados.

Assim, de acordo com o actual estado do conhecimento, durante várias centenas de

milénios, os Homo erectus, os neandertais e os proto cro-magnóides realizaram estrias

em inúmeras ossadas com finalidades extremamente diversas, entre as quais as mais

comuns foram o despedaçamento e a descarnação dos animais de caça. Dentre estas

estrias – cerca de setenta casos –, algumas, com um aspecto mais complexo e mais

organizado, foram interpretadas como sendo «intencionais e simbólicas», sem que

uma prova formal tivesse sido fornecida a favor de tal hipótese. É o caso, em

particular, do grande sítio acheuliano de Bilzingsleben, na Alemanha, que, no

decorrer de escavações notavelmente levadas a cabo, forneceu um impressionante

conjunto de marcas ósseas, verosimilmente acidentais e nas quais muitos viram

«marcas semânticas», «simbólicas», «vestígios de ritos arcaicos» e até «uma gravura

de felino associada a signos geométricos» – mas estas interpretações subjectivas não

resistem a um exame atento.

Algumas peças excepcionais, cujo número tem vindo a aumentar graças às buscas

modernas, apresentam porém grafismos geométricos, verosimilmente simbólicos.

Trata-se, nomeadamente de: fragmentos ósseos ornados oriundos de La Ferrassie, na

região francesa da Dordonha (Moustierense), cuja figura abaixo representada

reproduz um exemplar, com os seus traços paralelos escalonados; um osso da gruta de

Peyère, na região dos Altos-Pirenéus franceses (Moustierense); um osso de Bacho

Kiro, na Bulgária, que apresenta caibros (Paleolítico Médio); uma falange de

cervídeo, ao que parece, de Turské Mastale, na Boémia, com motivo geométrico

(transição Paleolítico Médio/Superior); e um osso de Blombos, na África do Sul, com

motivo geométrico (Paleolítico Médio). Estes fragmentos atestam que certos

Neandertais e proto cromagnóides estavam próximos do patamar que marca o advento

da grande arte da Idade da Rena, dezenas de milénios antes do surgimento desta.

Figura 5:

Osso com incisão, descoberto no abrigo de La Ferrassie, na Dordonha, datando do

Moustierense (altura: 12 centímetros).

Page 58: As Origens Da Arte

Estrias e incisões sobre pedras Os traços incisos são menos numerosos em pedras do que em ossos. Apenas uma

quinzena de sítios forneceram mais de vinte peças, no total.

Dúvidas idênticas às das marcas ósseas rondam algumas destas incisões. Causas

naturais podem explicá-las: deslizes de terrenos que provocam fricções com outras

rochas, o calcar sobre os solos pré-históricos provocando o fenómeno de trampling, já

descrito, tiveram sobre as pedras o mesmo efeito que sobre os ossos; há que somar-

lhes, por vezes, arranhões de animais; em contrapartida, roeduras e dentadas podem

felizmente ser eliminadas da lista dos fenómenos explicativos destas marcas, bem

como as estrias de descarnação, tão frequentes nos ossos.

Quando as estrias encontradas nos ossos são profundos entalhes dispostos

regularmente, pode ser vislumbrada uma acção humana; mas é então necessário

estabelecer a diferença entre estigmas de uma operação utilitária e traçados efectuados

com uma intenção gráfica, talvez simbólica; com efeito, determinadas pedras podem

ter sido utilizadas para proteger a palma da mão contra o cortante das ferramentas, ou

contra a picada das agulhas durante os trabalhos de recorte e de perfuração das peles

ou de reparação das redes de pesca; tais acções produziram marcas involuntárias

nessas pedras.

Foram, no entanto, observadas estrias em pedras apresentando uma organização de

aspecto intencional nas jazidas do Paleolítico Antigo, nas gargantas de Oldoway, em

África; o sítio acheuliano de Terra-Amata, em Nice, datado de cerca de 380 mil anos,

forneceu vários seixos que parecem ter sido voluntariamente incisos. Foram

descoberto seixos incisos em níveis de finais do Paleolítico Inferior de Baume-Bonne

(na região francesa dos Alpes-de-Haute-Provence), de Markleeberg (Alemanha) e da

Grotta dell Alto (Itália).

No Moustierense, estas marcas parecem tornar-se mais numerosas; pode citar-se

algumas ferramentas cujo córtex ostenta traços aparentemente gravados: um raspador

em sílex de Hermiès, na região francesa de Somme; um raspador em calcário da gruta

do Observatório, no Mónaco; um instrumento biface em quartzito da gruta de Isturitz,

nos Pirenéus Atlânticos. Há também seixos incisos provenientes do sítio moustierense

de Combe-Grenal, na Dordonha, de Chez-Pourré e Chez-Comte, na Corrèze, e da

estação de Erd, na Hungria; mencionemos ainda um fóssil gravado do Paleolítico

Médio de Tata, também na Hungria. O Moustierense do abrigo de Axlor, em Dima,

Page 59: As Origens Da Arte

Espanha, forneceu uma pequena pedra de greda semi-esférica que, no seu lado plano,

apresenta duas cúpulas e uma ranhura mediana que lhe dão o aspecto de uma face

humana grosseira. O Moustierense21 de Qafzeh, em Israel, continha uma ferramenta

de pedra com incisões mais ou menos paralelas.

Deste conjunto, insuficientemente estudado, destacam-se três peças significativas que

se inscrevem na lista das gravuras anteriores ao Paleolítico Superior:

– na Gruta de Temnata, na Bulgária, foi trazido à luz um fragmento de xisto datado de

cerca de 50 mil anos (transição do Paleolítico Médio para o Paleolítico Superior),

ornado com um motivo geométrico gravado – uma das mais antigas manifestações

gráficas sobre pedra na Europa;

– no sítio de Brno-Bohunice, na República Checa, um seixo gravado foi encontrado

num nível de transição datado de 42 mil anos;

– no sítio a céu aberto de Quneitra, em Israel, foi descoberto um córtex de sílex com

traços organizados; a indústria associada é o Moustierense levantino, datado de 53

900 anos (mais ou menos 5 900 anos), período durante o qual os homens de

Neandertal e os homens de tipo moderno coabitaram na região e adoptaram a mesma

cultura – o Moustierense. Esta peça é constituída por uma plaqueta de 7,2 centímetros

de comprimento máximo, ostentando incisões concêntricas em semi-círculo, dispostas

com intervalos regulares; trata-se de um motivo cujo traçado geométrico é

programado e controlado.

21 Moustierense: cultura do Paleolítico Médio da Europa e do Próximo Oriente. Na Europa Ocidental, o Moustierense é a cultura dos homens de Neandertal e, no Próximo Oriente, é a cultura comum aos homens de Neandertal e aos primeiros homens modernos, que são vizinhos e contemporâneos.

Page 60: As Origens Da Arte

A primeira arte rupestre do mundo: as cúpulas

O bloco com cúpulas de La Ferrassie Um grande bloco de calcário macio cobria a sexta sepultura moustierense do abrigo

de La Ferrassie, na Dordonha, escavado em 1921 por Louis Capitain e Denis Peyrony.

Essa sepultura em fossa continha os restos de uma criança neandertalense de três

anos.

Os autores das escavações «retiraram o bloco, voltando-o». Notaram então, «na face

interna do mesmo, uma vintena de cúpulas que só podiam ser o resultado de um

trabalho humano».

Concluíram: «A partir de uma fase do Moustierense, os homens traçavam já na pedra

cúpulas absolutamente idênticas àquela que reencontramos numa época mais recente,

no Aurignacense e, mais tarde, nos meios paleolítico e neolítico. Pela sua execução e,

sobretudo, pela sua disposição, estes furos parecem ter tido um carácter sinalético,

simbólico, talvez até ritual.22»

Esta descoberta capital forneceu o testemunho mais sólido de uma expressão

simbólica, precedendo o Paleolítico Superior – situa-se na origem da arte rupestre

europeia em finais do Paleolítico Médio, há uns 40 mil anos.

As condições da descoberta não permitem qualquer dúvida sobre a posição

estratigráfica do bloco e das suas cúpulas e sobre a sua atribuição ao Moustierense.

Por sorte, o bloco ficou conservado no museu nacional da pré-história, em Eyzies,

França, onde o estudámos para efectuar um relatório. O contexto excepcional e a

carga sagrada desta descoberta merecem ser sublinhados. Associadas a um túmulo,

voltados para a fossa e para o morto, essas cúpulas não podem corresponder a uma

preocupação material; são eminentemente simbólicas e rituais. O carácter do sítio de

La Ferrassie – um abrigo sepulcral que forneceu sete sepulturas no total e

comportando estruturas enigmáticas (fossas e montículos) – confere o mesmo

significado ao osso ornado precedentemente descrito e que está associado à sepultura

n.º 1.

22 Louis Capitan, Denis Peyrony, «Station préhistorique de La Ferrassie, commune de Savignac-du-Bugue (Dordogne)», Revue anthropologique, n.º 22, 1912, pp. 76-99.

Page 61: As Origens Da Arte

A tradição das cúpulas desenvolve-se seguidamente nos níveis aurignacenses do

mesmo abrigo e em outros sítios da região, para reaparecer em diversas épocas na

Europa e na arte rupestre do mundo inteiro.

As cúpulas da Índia e o dealbar da arte rupestre asiática A gruta de Daraki-Chattan, no vale do Chambal (a Oeste de Madhya Pradesh, na

Índia) acaba de ser alvo de um estudo aprofundado realizado por uma equipa de

investigadores indianos e australianos. Este estudo trouxe dados científicos novos

sobre a existência de uma arte rupestre no final do Paleolítico Antigo. As duas

paredes dessa pequena cavidade, aberta num quartzito muito duro de época primária,

estão cobertas de cúpulas. Há alguns anos, Giriaj Kumar elencou mais de quinhentas,

tendo mostrado que a sua repartição parecia geralmente anárquica, excepção feita a

alguns alinhamentos de uma organização local em semi-círculo. Este autor recolheu

igualmente na superfície do solo algumas ferramentas de quartzito atribuíveis ao

período Acheuliano, o que é bastante frequente nesta região da Índia. Em 2004-2005,

foram realizadas escavações na gruta na base das paredes que incluem as cúpulas. Os

resultados foram espectaculares: várias placas carregando cúpulas, provenientes da

esfoliação das paredes, bem como vestígios de traçados parietais formados por

ranhuras profundas foram descobertos em níveis do Acheulinao Superior, contendo

um conjunto de ferramentas características de lascas, nucleus, choppers, bifaces e até

os percussores que serviram para realizar as cúpulas parietais e as ranhuras. Estes

trabalhos, acompanhados por medições de idade sobre os sedimentos, fornecem, ao

que parece, a prova de que o preenchimento acheuliano da gruta não foi perturbado e

que Daraki-Chattan é, sem dúvida, a mais antiga gruta ornada do mundo descoberta

até hoje! De acordo com a indústria associada, datará de finais do Paleolítico Antigo,

certamente à volta de 200 mil anos.

Esta descoberta confirma a existência muito antiga da arte rupestre, que fora já

anunciada com a descoberta do bloco moustierense com cúpulas de La Ferrassie. Na

Índia, as cúpulas são frequentes nos abrigos sob a rocha, mas a sua datação é muito

delicada porque só pode ser estabelecida por via de uma relação indiscutível com um

nível arqueológico.

Page 62: As Origens Da Arte

A arte das cúpulas é abundante em todas as regiões do mundo, em todas as épocas,

mas sabe-se agora que se iniciou certamente há várias centenas de milhares de anos.

Figura 6:

Parede ornada de cúpulas artificiais datando de, aproximadamente, 200 mil anos,

encontradas na gruta de Daraki-Chattan, em Madhya Pradesh, na Índia. O diâmetro

médio das cúpulas é de 4 centímetros.

Page 63: As Origens Da Arte

O adorno

A recolha e, depois, a utilização dos corantes naturais têm, como vimos, uma origem

extremamente antiga. Os dados arqueológicos tais como a escolha das matérias, a

preparação do pó, a cozedura do ocre, as estrias de utilização... permitem conceber a

existência, em diversas regiões do mundo, de pintura sobre pedra, madeira ou peles e,

consequentemente, também de pintura corporal, desde o Acheuliano, há várias

centenas de milhares de anos.

Elementos de adorno, pendentes e pérolas de colares foram igualmente descobertos

em níveis antigos, mas a sua identificação arqueológica é frequentemente delicada;

alguns investigadores sublinharam essa dificuldades. Também neste domínio, as

armadilhas para pré-historiadores são numerosas: a primeira diz respeito aos ossos

perfurados.

Algumas falanges de rena ou de outros cervídeos e alguns fragmentos ósseos

perfurados foram espontaneamente interpretados como pendentes. Um estudo

experimental sobre as marcas de uso das ferramentas demonstrara que os acheulianos

e os moustierenses perfuravam efectivamente a madeira e o osso... até que um

investigador americano descobriu, em 1990, num dejecto de coiote, uma falange de

cervo carregando marcas nítidas de roedura e uma perfuração redonda que era

claramente a marca de uma dentada do animal! Esta descoberta confirmava as

dúvidas levantadas por um certo número de perfurações verificadas em ossadas

acheulianas e moustierenses. Foi assim que, por exemplo, um fémur de urso com

perfurações múltiplas, encontrado numa jazida moustierense de Divje Babe, na

Eslovénia, primeiramente interpretado como uma flauta e como uma prova da

existência da música instrumental no Paleolítico Médio, foi rapidamente relegado

para o conjunto de ossadas mordidas e roídas pelos grandes carnívoros que

abundavam no Paleolítico. As hesitações e a prudência dos pré-historiadores nas suas

análises dos adornos foram ainda acentuadas pelos diversos trabalhos revelando que o

suco gástrico das hienas actuais produz grandes quantidades de perfurações ósseas

aquando da digestão das suas presas, perfurações visíveis nos ossos regurgitados!

Por outro lado, algumas peças foram interpretadas como adornos, quando as

perfurações que apresentavam eram de origem natural! É o caso, por exemplo, de

Page 64: As Origens Da Arte

fósseis contendo furos, oriundos de uma exploração de cascalho de Bedford, em

Inglaterra; conchas perfuradas por vermes, em Boksteinschmiede, na Alemanha;

minúsculos fósseis crinóides com uma estrutura de perfuração central, do Acheuliano

de Gesher Benot Ya’aqov, em Israel... Em todos estes casos, a hipótese do emprego

como adorno de um objecto com perfuração natural é uma especulação sem

verdadeiro fundamento arqueológico.

Os estudos modernos com todas as suas observações experimentais e comparações

resultaram por fim na identificação de um pequeno número de peças que inscrevem o

aparecimento dos adornos pelo menos no Paleolítico Médio, numa época largamente

anterior à chegada dos homens de Cro-Magnon (grandes apreciadores de colares e

pendentes).

Diversas peças mencionadas em publicações recentes, que são verosimilmente

adornos, deveriam no entanto ser analisadas com métodos ainda mais rigorosos: por

exemplo, as pérolas acheulianas de El Greifa, na Líbia, em casca de ovo de avestruz,

fabricadas segundo um método surpreendentemente actual; e ainda os dentes de urso

com ranhuras do Moustierense de La Rochelle, na Dordonha, ou da gruta de Sclayn,

na Bélgica, cuja artificialidade das incisões e a respectiva correspondência com

métodos de suspensão continua ainda por demonstrar.

O pequeno lote de adornos moustierenses, ou mais antigos, podendo ser

indiscutivelmente retidos inclui: dois caninos de raposa perfurados do Moustierense

da la Quina, na região francesa de Charente, e de la Cova Beneito, em Espanha; duas

vértebras caudais de lobo perfuradas do Micoquiano de Bocksteinschmiede, na

Alemanha; um incisivo perfurado, de lobo, do Paleolítico Médio de Repolustöhle, na

Áustria. Os Neandertais do Châtelperroniano continuaram a fabricar alguns adornos

na gruta da Rena de Arcy-sur-Cure, que forneceu vinte e seis objectos perfurados:

dentes de raposa, de bovídeo, de marmota ou de urso. Este tipo de peças expandiu-se

depois, durante o Aurignacense.

Os pré-aurignacenses da Europa de Leste fabricavam regularmente adornos numa

época contemporânea ou até anterior ao Châtelperroniano, há cerca de 45 ou 40 mil

anos. Assim, a gruta de Bacho Kiro, na Bulgária, continha dentes perfurados, de

raposa e de urso; e da gruta de Istallöskö, na Hungria, provêm um pendente

pentagonal e uma imitação de canino de cervo em madeira de cervídeo.

Fora da Europa, uma importante descoberta foi recentemente feita na África do Sul.

Num habitat de protosapiens, na gruta de Blombos, a leste do Cabo, datada de cerca

Page 65: As Origens Da Arte

de 75 mil anos, num nível contemporâneo do Paleolítico Médio Europeu, vários

pequenos amontoados de conchas perfuradas acabam de ser descobertos. São, no

total, quarenta e um exemplares do tamanho de grãos de bico, pertencentes à espécie

Nassarius kraussianus, que vive nos estuários; todas estas conchas são oriundas de

um rio que se situava a uma vintena de quilómetros do habitat. Foram, portanto,

transportados. O estudo microscópico estabeleceu que haviam sido perfurado

intencionalmente: as marcas de utilização revelam que foram usados sobre a pele ou

sobre uma roupa pintada de ocre vermelho. O seu ajuntamento em grupos distintos

indica que estamos na presença de diversos pequenos colares.

Em 2002, o mesmo nível forneceu corantes, uma plaqueta de ocre marcada com

estrias geométricas intencionais e um osso gravado.

O aparecimento dos adereços trabalhados assinala uma etapa importante na evolução

do homem. O adorno tem, com efeito, uma função simbólica e social: representa o

grupo ou o indivíduo, distinguindo-o dos demais. Destinado a ser visto e identificado

por todos, o adorno transmite uma mensagem implicando uma sociedade estruturada.

Exprime ainda um saber-fazer técnico e confirma a entrada do mundo animal

enquanto fornecedor de matéria-prima (ossos, conchas, madeira de cervídeos) no

mundo dos signos.

Na Europa, a produção dos primeiros adornos, em pequeno número, começa há cerca

de 45 mil anos. Foram os últimos Neandertais (moustierenses tardios e

châtelperronianos) a fabricá-los e, depois, sobretudo, os imigrantes Cro-Magnon

portadores da civilização Aurignacense.

Na África do Sul, as descobertas de Blombos confirmam a existência de

comportamentos estéticos, simbólicos e sociais bem antes do aparecimento do homem

de Cro-Magnon stricto sensu.

Figura 7:

Estes dois objectos foram encontrados na gruta de Blombos, na África do Sul. Foram

realizados por Homo sapiens arcaicos da Middle Stone Age, há 75 mil anos.

Em cima: colar de conchas de água doce perfuradas.

Em baixo: pequeno bloco de ocre vermelho decorado com gravuras geométricas.

Page 66: As Origens Da Arte

Conclusão:

um salto qualitativo e não uma ruptura

Desde o início da sua longa história, o homem recolhe e colecciona as criações da

natureza: pedras com formas e propriedades curiosas, fósseis, minerais, matérias

coloridas e corantes... Não sendo exterior à natureza, não copia as criações naturais

que o fascinam mas, de antemão, entra na engrenagem do mecanismo universal e, por

sua vez, cria também. Afirma primeiramente o seu poder criador no fabrico de

ferramentas que, desde logo, ultrapassam as suas funções.

Essencialmente diferentes das ferramentas criadas por certos animais, a ferramenta

humana é antes de mais forma, volume, matéria. Há mais de dois milhões de anos, o

homem afirmava-se como tal, com o seu gosto inato pelas formas perfeitas, ao

inventar a primeira forma geométrica – a esfera –, concretização laboriosa e

verosimilmente inútil de uma ideia carregada de simbolismo.

No decurso das centenas de milénios do Paleolítico, do Homo habilis ao Homo

erectus, do Neandertal ao homem moderno, as ferramentas atestaram uma busca

sistemática de simetria – apresentando-se esta como um dado biológico sem função

utilitária, mas correspondente a um gosto pronunciado pelo equilíbrio e a harmonia.

As ferramentas materializam formas mentais que agradam: a oval, a folha, o círculo, o

triângulo, até mesmo o quadrilátero; e, desde 1,5 milhões de anos, os bifaces

ofereceram a síntese do plano, do volume, da matéria e da cor. No fabrico destas

ferramentas, o artesão pré-histórico não responde apenas a uma necessidade material

imediata: ele joga com as formas, as matérias e as cores, com subtis variantes que

frequentemente fazem da sua realização uma obra de arte única. Esta inclinação para

a estética irrompe por vez com esplendor, por exemplo na escultura dos bifaces de

Nadaouiyeh, na Síria. A vontade do artista é então excessivamente resplandecente e

inegável para não estar ligada a crenças: o biface encarnado de Atapuerca, cuja

matéria e cor são excepcionais, e que se apresenta como uma oferenda feita aos

mortos, sublinha, ela também, a dimensão simbólica da ferramenta, há já 400 mil

anos!

Page 67: As Origens Da Arte

O criador do remoto Paleolítico vislumbra nas pedras-figura como uma vontade da

natureza que ele acompanha ao contribuir por vezes com alguns retoques para fazer

delas um começo de figurinhas, uma «proto-escultura». A «estatueta» de Berekhat

Ram, em Israel, e certamente também a de Tan-Tan, em Marrocos, mostram que uma

figuração foi por vezes reconhecida em formas naturais ou acidentais.

No decurso das eras, quantos achados espontâneos foram sem dúvida inconsequentes?

Os grafismos realizados a golpe de sílex sobre ossos ou pedras ou as estrias deixadas

pela faca do caçador despedaçando os animais de caça não foram mais do que formas

vazias, auto-suficientes, que nunca produziram senão a surpresa maravilhada, o

deleite do acto criador inesperado. Na inocência dos começos, houve, assim, durante

centenas de milénios, uma forma nativa de «arte pela arte»...

No entanto, o símbolo nunca foi muito longe. A dimensão simbólica pode ter

aparecido muito cedo na série de etapas, frequentemente complexas, que comporta o

fabrico da maior parte das ferramentas: escolha do material e da sua origem,

predestinação das formas, modos operatórios. Apesar de acidentais, as estrias de

descarnação deixadas sobre as ossadas na sequência das operações de corte e partição

da carne puderam, também elas, ser portadoras de uma carga simbólica oriunda do

contexto no qual eram produzidas.

Assim, na imensidão do tempo, descobertas de artesãos puderam encontrar um

conteúdo mitológico e sagrado para se elevarem ao nível de símbolos e obras de arte...

Estes acontecimentos foram certamente raros, porque os testemunhos deixados por

essas premissas artísticas são caracterizadas pelo seu isolamento e a sua dispersão

extrema no espaço e no tempo.

Detenhamo-nos, por um breve instante, na raridade destes testemunhos artísticos do

Paleolítico Antigo e Médio, e comparemo-los com a sua abundância no Paleolítico

Superior. Este contraste tem várias causas: a actividade artística intencional e

reflectida, que se constata desde a origem da linhagem humana, ter-se-á certamente

desenvolvido de modo progressivo ao longo do tempo, e a busca dos testemunhos

dessa actividade intensificou-se ela própria ultimamente. Os pré-historiadores estão

agora a tomar consciência da antiguidade dos comportamentos estéticos e simbólicos

e, doravante, os achados multiplicam-se. Mas muitos passaram despercebidos no

passado e continuam a escapar-nos ainda hoje. Numerosos testemunhos estão por

descobrir nas séries antigas de vestígios que deverão ser estudados com os métodos e

o rigor modernos.

Page 68: As Origens Da Arte

Mas as variações climáticas ligadas à alternância das glaciações e dos aquecimentos

fizeram desaparecer muitos vestígios. No interior das grutas, as pinturas do Paleolítico

Superior foram conservadas, mas a arte rupestre ao ar livre, que pode ter existido

centenas de milénios antes, não conseguiu chegar até nós.

Apesar do seu número ainda reduzido – mas em constante aumento –, estes marcos,

que polvilham a longa história do homem, constituem a prova do seu gosto inato pela

beleza e libertam-no do espartilho materialista no qual uma certa pré-história se

esforça por encerrá-lo.

Nos finais do Paleolítico Antigo, em Darakhi-Chattan, na Índia, aquele que era um

sonhador de absoluto empreende já ornar as paredes da caverna em que habita com

miríades de cúpulas, pontuações escavadas, ideais, certamente rituais – assim emerge

a primeira arte parietal e o aparecimento da tradição mundial das cúpulas que se

expandiria ao longo de centenas de milénios. Talvez caia depois na noite do

esquecimento, mas os Neandertais de La Ferrassie, na Dordonha, irão recuperá-la e

transmiti-la aos Cro-Magnons, seus sucessores directos.

A secunda metade do Paleolítico Médio – a última centena de milénios – está

marcada por uma simbolização crescente das produções que se multiplicam nos

protosapiens de África e nos moustierenses europeus. Este período é caracterizado

pelas premissas da arte móvel e do adorno, o desenvolvimento das sepulturas

acompanhadas de oferendas; trata-se, pois, de uma arte sobretudo ligada ao corpo

humano, limitada ao indivíduo e ao seu imediato meio envolvente: o grupo e a

caverna. O biface prolonga a mão, as pinturas corporais e as tatuagens vestem a pele,

o ocre, cujo emprego se intensifica, decora os mortos e os vivos, as estrias e as

cúpulas ornam os ossos, os seixos e as pedras do habitat. Esta arte doméstica, ligada

ao quotidiano, ao corpo e à sua sobrevivência no Além, é também uma arte social,

estimulada por crenças: é o reflexo da mestria da técnica e do avanço espiritual que

permite doravante qualquer tipo de criação. Contém em germe a grande arte rupestre

do mundo.

O adorno, o uso dos corantes naturais e a decoração corporal são «os protótipos das

ates visuais». Na pintura corporal, «o corpo humano serve de pano de fundo sobre o

qual são impostos motivos culturais, a argila humana é trabalhada com um fim

cultural23». Este controlo da cultura sobre a natureza, esta vontade constante do

23 Ellen Dissanayake, Homo aestheticus, Seattle, University of Washington Press, 1995.

Page 69: As Origens Da Arte

homem de concluir, à sua maneira, a obra «iniciada» pela natureza encontrará a sua

expressão magnificada nas figurações rupestres.

Na realidade, a passagem da decoração corporal (pinturas, tatuagens e adornos) para a

arte rupestre instituída não implica um salto intelectual tão grande quanto poderia

parecer, inscrevendo-se antes na continuidade das criações humanas. A arte pré-

histórica que decora o corpo e a pele humana estende-se às paredes das grutas e, ao ar

livre, às rochas da paisagem mas, na sua espectacular extensão, na sua invasão do

mundo subterrâneo na Europa, permanece uma arte total, a três dimensões, que

integra o espaço e realiza a síntese de todas as técnicas: utilização da cor, do volume e

da matéria.

A arte móvel do Paleolítico Superior, principalmente o europeu, iria marcar uma

tímida separação das técnicas – gravura, escultura e pintura, tão frequentemente

associadas anteriormente, tornar-se-iam mais autónomas, mais independentes. Este

era o meio privilegiado para o advento da arte a duas dimensões (o desenho), apesar

do facto de o «suporte» mineral ou animal sobre o qual se exercia nunca ser neutro. É,

aliás, o que distingue a arte paleolítica da arte dos períodos históricos.

Há 45 ou 35 mil anos, conforme as regiões do mundo, a arte rupestre, da qual um

primeiro brilho trazido por umas cúpulas indianas alumiara a noite dos tempos, nasce

ainda do encontro de uma capacidade e de uma necessidade:

– uma capacidade cognitiva resultante das disposições inatas do espírito humano para

produzir imagens mentais e símbolos, resultando também da acumulação das

experiências e das aquisições no decurso dos milhões de anos da sua história;

– uma necessidade nascida de contextos locais particulares (confrontação entre

humanidades diferentes, mudança do meio natural, etc.), suscitando crenças e práticas

rituais que, para serem cumpridas, põem em obra todas as potencialidades do espírito

criador.

Porque o seu advento é o culminar de mais de dois milhões de anos de produção e de

concretização de imagens mentais, a arte rupestre ou parietal não aparece nem como

uma ruptura, nem como um «big bang» cultural, mas antes como um simples salto

qualitativo. Apresenta-se de antemão como um fenómeno «fragmentado» no espaço e

no tempo, extremamente diversificado no plano estético. Não existe um «berço da

Page 70: As Origens Da Arte

arte», tal como não existe um progresso nem uma progressão estilística ao longo do

tempo.

A heterogeneidade dos começos da arte está ligada à diversidade dos contextos do seu

aparecimento. Em situações favoráveis, a sua longa história, as suas experiências

acumuladas permitem-lhe emergir como uma arte consumada, mobilizando todos os

processos de criação, fazendo imediatamente coexistir figuração, abstracção, pintura,

gravura, sentido do espaço e do volume, numa profusão formal que, é claro, não

exclui as convenções estilísticas próprias aos diferentes grupos.

Na concepção das ferramentas, a forma ultrapassa a função: e o mesmo sucede com a

criação artística, ou seja, com a produção das «ferramentas espirituais» que são as

imagens, garantes da comunicação com os poderes sobrenaturais. A sua eficácia

mágica e simbólica implica uma explosão de beleza; o homem caracteriza-se desde

sempre pela vontade de se ultrapassar a si próprio em tudo o que empreende. Não se

contenta com o desenho de bisontes e cavalos: finalmente livre, numa expressão total

que abraça a paisagem, cria, na jubilação da beleza, a sua arte, levando a vida ao

mundo que o rodeia.

A arte figurada dos pintores e gravadores de paredes ilustra uma vontade humana de

empresa sobre o mundo. A apropriação territorial, a identidade cultural e técnica

afirmam-se na arte das paredes que expõe os ídolos e os estilos particulares, nos quais

cada grupo se reconhece como sendo diferente dos outros. Continuam hoje por

estudar, na Europa, os territórios culturais que a arte parietal contribuiu para desenhar.

O impulso da arte rupestre, que investe as sumptuosas construções da natureza –

montanhas, rochedos, vales e grutas –, traduz uma nova maneira de se considerar no

mundo, uma maneira que se atreve a colocar o homem no seio do edifício universal.

As imagens rupestres ofertas ao olhar estão assim ligadas à emergência das primeiras

cosmogonias, dos primeiros sistemas de crenças; assinalam uma nova etapa espiritual

ligada não ao advento de uma religião particular, mas a uma elevação do

comportamento religioso saído dos primeiros ritos, que torna doravante possíveis

todas as religiões. A arte rupestre responde a uma evolução do espírito que tem as

suas próprias leis e que é, em parte, independente da evolução biológica do cérebro.

Page 71: As Origens Da Arte

Figura 8:

No início do Paleolítico Superior, a arte rupestre investe as grutas profundas

europeias, a partir de 50 mil anos, sensivelmente; aqui, o célebre painel de Pech-

Merle, datado de cerca de 25 mil anos, oferece um belo exemplo de pinturas rupestres

numa paisagem subterrânea com a qual desposam as formas naturais.

O próprio conceito de «nascimento» ou «origem» da arte pode, afinal, parecer

inadequado, uma vez que o homem é o artista por natureza e que a história da arte

começa e confunde-se com a do homem.

Nas suas pulsões e realizações artísticas, o homem exprime a sua vitalidade, a sua

capacidade de estabelecer uma relação benéfica e positiva com os seu meio

envolvente: ele humaniza a sua natureza. O seu comportamento de artista constitui um

dos caracteres selectivos favoráveis à evolução da espécie humana. Desde a sua

origem, o homem é, em todos os sentidos do termo, um «homo aestheticus», como o

afirmam igualmente, com convicção, a antropóloga americana Ellen Dissanayake e o

filósofo francês Luc Ferry.

Page 72: As Origens Da Arte

Anexos

Glossário

Amigdalóide:

Em forma de amêndoa; diz-se de certos bifaces.

Arte móvel:

Esta arte é constituída por obras «portáteis», que podem geralmente ser sustidas na

mão; seixos, ossos, plaquetas gravadas ou pintadas, figurinhas esculpidas, etc. Os

blocos ornados mais volumosos constituem um intermediário entre a arte móvel e a

arte rupestre.

Arte rupestre e arte parietal:

«Arte rupestre» é uma expressão geral que define todas as formas de arte em suporte

rochoso, quer se trate de uma parede ornada numa gruta ou de blocos e nivelamentos

rochosos ao ar livre.

A expressão «arte parietal» tem um sentido mais restrito: designa exclusivamente a

arte sobre paredes rochosas e é empregue em particular para designar a arte das grutas

ornadas de pinturas, gravuras ou esculturas.

Bujardada:

Tratamento de superfície, por martelada, nas operações de escultura.

Bola:

Esta arma de arremesso dos gaúchos da Argentina é constituída por uma longa correia

que termina em duas bolas de pedra fechadas em duas bolsas de couro. Atiradas às

patas dos animais, permitem a sua captura.

Page 73: As Origens Da Arte

Por extensão – e sem prejuízo da sua função –, para os pré-historiadores, o termo

«bola» designa uma esfera de pedra, do tamanho de uma bola de bilhar, abundante no

Paleolítico Antigo e Médio.

Xamanismo:

Esta prática religiosa está frequentemente baseada nas actividades do «xamã»,

garantindo, em nome do grupo, a relação com o mundo sobrenatural por via da transe

e das alucinações.

Na realidade, este termo vago cobre práticas muito diversas e espalhadas em

diferentes regiões do mundo. De forma abusiva e superficial, alguns pré-historiadores

tentaram, de maneira repetitiva, explicar alguns conjuntos de arte através de uma

forma de xamanismo; esta hipótese suscitou numerosas críticas científicas.

Cordiforme:

Em forma de coração; os bifaces são frequentemente cordiformes.

Cristal de rocha:

Ver quartzo hyalino.

Cúpula:

Pequena cavidade com alguns centímetros de diâmetro e um a dois centímetros de

profundidade, escavada pela mão do homem em superfícies rochosas. Os

agrupamentos de cúpulas não possuem função utilitária aparente e são provavelmente

produtos simbólicos. Encontram-se no mundo inteiro e foram produzidas durante

centenas de milénios.

Descarnação:

Este termo do vocabulário técnico da pré-história (equivalente a «descarnagem»)

designa a extracção da carne nas operações de matança pré-histórica. Esta operação

deixou frequentemente estrias nas ossadas, designadas por «estrias de descarnação».

Ficron:

Biface alongado e pontiagudo.

Page 74: As Origens Da Arte

Homem moderno ou Homo sapiens:

A expressão «homem moderno» é equivalente a «homem de Cro-Magnon» ou ainda a

«Homo sapiens». Designa a forma última da linhagem humana que sucedeu ao

homem de Neandertal.

Nucleus (plural: «nuclei» ou «nucleus»):

Núcleo de rocha dura a partir do qual o homem pré-histórico talhava as suas

ferramentas.

Percussor:

Ferramenta utilizada para bater nódulos de sílex no fabrico das ferramentas; pode ser

constituído por uma pedra, um osso ou um fragmento de madeira de cervídeo ou

ainda de madeira vegetal.

Pedra-figura:

Pedra cuja forma natural evoca uma forma humana ou animal.

Proto-escultura:

Pedra-figura encontrada num contexto arqueológico e apresentando os estigmas de

um retoque humano que completa e precisa a obra da natureza (exemplo: o nódulo de

Berekhat Ram).

Quartzo hyalino ou cristal de rocha:

Estas duas expressões são sinónimas; designam uma cristalização de silício

transparente como vidro e extremamente duro, prestando-se muito mal à talha, mas

que os homens pré-históricos, porém, procuraram e utilizaram. Por considerá-la uma

«pedra preciosa», atribuindo-lhe sem dúvida poderes sobrenaturais, serviram-se dela

inclusivamente para fabricarem as suas ferramentas.

Quartzito:

Rocha siliciosa compacta e resistente; pode tratar-se, em certos casos, de uma greda

cimentada em silício.

Traceologia:

Page 75: As Origens Da Arte

Estudo microscópico e experimental das marcas de uso das ferramentas pré-históricas,

visando determinar as funções destas.

Trampling:

Termo inglês de uso generalizado que significa «o calcar de um solo» pelo homem ou

por animais (incluindo os de época pré-histórica), tendo deixado marcas

características nos sedimentos e nos seus respectivos vestígios.

Vermiculação:

Resultado de fenómenos de erosão em vestígios ou paredes rochosas semelhantes às

marcas deixadas pelos vermes.

Page 76: As Origens Da Arte

Bibliografia

Paul Bahn, Jean Vertut, Journey through the Ice Age, Berkeley, University of

California Press, 1997.

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Denis Vialou, L’Art des cavernes, Mónaco, Éditions du Rocher, 1987.

Page 78: As Origens Da Arte

Índice

Prefácio p.

Apresentação p.

1. O ponto de vista clássico sobre a origem da arte

Georges Bataille e o ponto de vista clássico sobre o nascimento da arte p.

As contradições da concepção tradicional do «nascimento da arte» p.

2. Uma outra abordagem sobre a origem da arte

Uma definição de arte p.

Uma arte de primatas? p.

Coleccionador das obras de arte da natureza p.

Primeiras formas, primeiras ferramentas:

poliedros, esferóides e bifaces p.

Marcas e estrias p.

A primeira arte rupestre do mundo:

as cúpulas p.

o adorno p.

Conclusão:

um salto qualitativo e não uma ruptura p.

Anexos

Glossário p.

Bibliografia p.

Page 79: As Origens Da Arte

Contracapa

Os investigadores de hoje entregam-nos, simplesmente, claramente, o estado do seu

saber.

A arte nasce ao mesmo tempo que o homem.

Através da arte rupestre, o homem ousa colocar-se no coração do edifício universal,

oferecendo imagens ligadas à emergência das primeiras cosmogonias, dos primeiros

sistemas de crenças.

Essas criações marcam uma etapa espiritual oriunda da capacidade de estabelecer uma

relação benéfica e positiva com o seu meio envolvente: a capacidade de humanizar a

natureza. O seu comportamento de artista constitui um dos caracteres selectivos

favoráveis à evolução da espécie humana.

Desde a origem, o homem é, em todos os sentidos do termo, um «Homo aestheticus».

Michel Lorblanchet é director de investigação honorário no CNRS. Especialista da

arte pré-histórica, estudou no terreno as grutas ornadas do sul de França, bem como a

arte rupestre na Austrália e na Índia.