As Origens Da Pequena Empresa No Brasil

Revista da Micro e Pequena Empresa, Campo Limpo Paulista, v.1, n.1, p.53-65, 2007.

AS ORIGENS DA PEQUENA EMPRESA NO BRASIL1

Jos Henrique Souza Pontifcia Universidade Catlica (PUC-Campinas) Economista e Doutor pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) E-mail: [email protected] - Brasil

Lindinalva Candida Machado Pontifcia Universidade Catlica (PUC-Campinas) Graduando em Cincias Econmicas pela Pontifcia Universidade Catlica de Campinas (PUCCAMP) E-mail: [email protected] - Brasil

Cilene Aparecida Silva de Oliveira Pontifcia Universidade Catlica (PUC-Campinas) Graduando em Cincias Econmicas pela Pontifcia Universidade Catlica de Campinas (PUCCAMP) E-mail: [email protected] - Brasil

Resumo: As pequenas empresas brasileiras so objetos de inmeros trabalhos acadmicos, entretanto, pouco se sabe a respeito de suas origens. A histria dessas empresas no Brasil ainda carece de ateno. O pequeno negcio ligado prestao de servios ou atividade agrcola - quer seja na figura do empresrio individual ou do produtor familiar, ou representado pelo pequeno pecuarista ou tropeiro - sempre teve uma importncia enorme para a sociedade brasileira. Dos pequenos empreendedores do incio de nossa histria aos microempresrios que atuam em centrais de distribuio, quitandas, indstria, transporte, sales, bares e restaurantes, foi construda uma imensa classe de capitalistas responsveis pelo abastecimento e pela prestao de servios urbanos. O presente artigo explora as origens das pequenas empresas brasileiras focando a diversidade de suas reas de atuao.

Abstract: The small Brazilian companies are objects of numerous scholarly works, however, little is known about their origins. The history of these companies in Brazil still needs attention. The small business connected to the provision of services or the agricultural activity - whether the figure of the entrepreneur or individual producer's family, or represented by small cattlers or tropeiros - always had a great importance to Brazilian society. Of small entrepreneurs from the beginning of our history to microentrepreneurs who work in distribution centers, grocery, industry, transport, lounges, bars and restaurants, was built a huge class of capitalists responsible for the supply and the provision of urban services. This article explores the origins of small Brazilian companies focusing on the diversity of their areas.

Palavras-chave: Pequenas Empresas; Desenvolvimento econmico; Brasil Colnia.

1 Colaboraram com esse estudo os estudantes de economia da Puc-Campinas: Bruna M. da Silva, Camila C.

Viana, Camila Costa, Edilene Lopes do Rosrio, Eric Helbig Liceti, Jefferson Marialva, Las C. de S Bortolozzo, Ncolas G. Nardolillo, Rodolpho M. D. Benati, Tatiane C. Santos e Wellynghton Carlos Matsumoto.

Jos Henrique Souza, Lindinalva Cndida Machado e Cilene Aparecida Silva de Oliveira

55


1 INTRODUO

No se sabe ao certo o momento exato em que surgiram as micros e pequenas empresas no Brasil, o que faziam e nem onde se localizaram. As obras de Caio Prado Jr. (1945) e Celso Furtado (1980) apresentam a tese de que somente a grande empresa aucareira seria vivel no Brasil do incio do sculo XVI. Dessa forma, uma leitura rpida dessas obras faria supor que as pequenas empresas seriam inviveis, pelo menos no incio do processo colonial. Na verdade, o prprio Caio Prado Jr. demonstra que a pequena propriedade sempre esteve presente no Brasil e que surgiu juntamente com a atividade produtiva colonial. Separar a histria do Brasil da histria da pequena empresa seria, portanto, um erro.

O objetivo desse trabalho colher evidncias a respeito da presena das pequenas empresas no incio do processo de ocupao portuguesa em solo americano. Em outras palavras, estamos estudando as origens dessas empresas para descobrir quem foram os primeiros microempresrios brasileiros. Tentaremos entender as atividades que realizavam, em que poca surgiram, de onde vieram e em que regio estavam localizados.

2 AS PEQUENAS EMPRESAS NO BRASIL COLONIAL

2.1 As Pequenas Empresas Ligadas ao Mercado Externo

O descobrimento do Brasil trouxe para a Coroa Portuguesa uma grande preocupao. Como evitar que holandeses, franceses e ingleses invadissem as novas terras para reclamar um pedao do Novo Mundo? Portugal - naquele momento - dispunha de uma populao que no ultrapassava dois milhes de habitantes, o que era claramente insuficiente para ocupar, colonizar e defender uma rea to vasta. Alm do mais, os empresrios e a prpria coroa portuguesa estavam mais interessados pelo comrcio das especiarias, do que em estabelecer negcios em solo brasileiro. Investir no Brasil parecia um desperdcio de recursos e um uso no-lucrativo para os poucos navios e empreendedores disponveis.

Porm, para manter o controle sobre o Brasil, Portugal deveria desenvolver uma estrutura produtiva local. Somente gerando oportunidades lucrativas seria possvel atrair e manter povoados em territrio brasileiro. Com um sistema produtivo, tambm seria possvel cobrar impostos necessrios para pagar os custos da defesa do novo territrio. Afinal, navios, portos e fortes precisariam ser construdos e reparados; soldados deveriam ser

56 As origens da pequena empresa no Brasil


armados e remunerados e, sobretudo, empreendedores precisariam ser atrados para a nova colnia. Todo esse esforo exigia uma grande quantidade de recursos, de pessoas e de empreendedores. A produo de alimentos, madeira, meios de transporte e os servios de reparos de embarcaes seriam essenciais para manter o povoamento na Terra de Vera Cruz.

A descoberta de ouro na Amrica Espanhola aguou o interesse dos demais povos europeus pelo Novo Mundo. A coroa portuguesa passou a procurar desesperadamente formas de ocupar o novo territrio. O desafio era a ocupao econmica do Brasil, mas tal atividade deveria ser rentvel o suficiente para atrair investimentos e suportar os pesados fretes e os gastos de defesa da colnia. Uma alta rentabilidade s seria alcanada em condies vantajosas de produo e preo final. O produto agrcola que melhor atendia a essas exigncias era o acar.

O acar - conhecido na sia antes de Cristo - era uma especiaria extremamente valiosa. Artigo de luxo, tambm utilizado como remdio, era consumido apenas por ricos senhores feudais e comerciantes. O fato de j existirem pequenos empresrios lusitanos produzindo acar na Ilha da Madeira e equipamentos para engenho no continente, tambm favoreceu a escolha portuguesa pela cultura da cana-de-acar no Brasil.

Em 1516, a Casa da ndia - rgo da administrao colonial - enviou tcnicos em acar para avaliar o territrio brasileiro. Trs anos mais tarde j havia indcios de acar brasileiro em Anturpia. Sinais de um grande volume de produo j se manifestavam em 1534, em So Vicente. Foi nessa localidade que surgiram os primeiros engenhos de que se tem notcia no Brasil. Assim, aps o descobrimento, as origens da agricultura e da indstria brasileira se encontram em Santos e So Vicente2.

Apesar do incio glorioso no litoral paulista, a regio escolhida para ser a zona produtora foi mais ao norte na chamada Zona da Mata - regio que compreende a faixa litornea que vai do atual estado da Bahia at a Paraba. Essa rea contava com condies de cultivo muito melhores do que o sul do Brasil. Seu clima e a fertilidade da terra eram ideais. Alm de sua localizao privilegiada, dada sua proximidade em relao ao mercado consumidor, tambm apresentava vantagens por se encontrar prxima aos portos que garantiam o desembarque dos escravos e o escoamento da produo.

Em 1570 j existiam mais de 50 engenhos na Zona da Mata, a maioria em Pernambuco e na Bahia. Caio Prado Jr. aponta que a produo aucareira em pequenas propriedades agrcolas no Brasil era invivel. A opo seria a grande fazenda monocultora e operada pelo trabalho escravo conhecida como plantation.

A plantation, ou engenho como era conhecida no Brasil, representava um desafio em termos tecnolgicos e de planejamento, elaborao estratgica e capacidade gerencial. Os empresrios portugueses precisaram montar um organismo produtivo integrado, caro e complexo. Era algo totalmente novo que deveria contar, inclusive, com torres, armamento, fora militar e casas fortes (FERLINI, 2002 e ANTONIL, 1711, cap. 1). Alm da fbrica de acar era preciso construir a capela, a escola, a casa dos senhores, as casas dos escravos, a enfermaria e a serraria (para fabricar mveis, embarcaes, apetrechos do engenho, peas de reposio do maquinrio e o madeiramento das casas).

2 Provavelmente o engenho mais antigo que se tem notcia no Brasil o Engenho da Madre de Deus fundado em

1532 por Pero de Ges no atual morro das Neves , municpio de Santos (MUNIZ, 1982).


57


Desse modo, a implantao do sistema agrcola brasileiro do sculo XVI foi um grande avano econmico. A agricultura do acar, alm de gerar renda, emprego e oportunidades de novos negcios, inseriu o Brasil no processo de globalizao em curso naquele momento. Assim, a primeira atividade produtiva brasileira organizada e voltada para o mercado foi a indstria do acar. Essa atividade perdurou por sculos influenciando a formao da sociedade, do territrio e da economia.

Com a invaso holandesa a agricultura canavieira nordestina entrou em um longo perodo de crise. O descobrimento do ouro, elevando os preos dos escravos, ajudou a piorar a situao dos engenhos nordestinos. Segundo PALCIOS (2002: 38-39)

Ao longo e sombra dessa crise [...] desenvolveu-se um numeroso segmento de cultivadores pobres e livres, primitivamente agricultores de subsistncia provenientes de terras da periferia da regio das plantations. [...] Na metade do sculo existem testemunhos de presena significativa de comunidades de pobres livres cultivadores de tabaco, mandioca e outros alimentos, em reas relativamente centrais do Nordeste Oriental, supostamente dominadas por plantations.

Muitos agricultores dedicados produo para subsistncia tambm procuraram entrar em atividades agrcolas produtoras de artigos mercantis. A busca por oportunidades de novos empreendimentos, quer seja voltada para o mercado interno como alimento, por exemplo, quer seja ligada exportao como o algodo, cana-de-acar e tabaco, atraiu inmeros brasileiros.

Segundo PRADO JR. (1945: 41-42), preciso distinguir dois setores bem diferentes da produo. O primeiro era o dos produtos de exportao, o outro setor, o das atividades acessrias. Ao contrrio da cana-de-acar, na qual se encontra a explorao em larga escala, as atividades secundrias apresentam outras formas e tipos de organizao. So pequenas unidades nas quais o prprio proprietrio que trabalha. Trata-se, portanto, do pequeno empresrio agrcola voltado para o abastecimento das vilas que vo surgindo no litoral brasileiro. Prado Jr. chega a argumentar que esses primeiros pequenos empresrios brasileiros seriam formados, sobretudo, por indgenas que passaram a produzir alimentos para trocar por objetos e mercadorias que tanto prezavam. Com a mestiagem, constituiro o que mais tarde se chamou de caboclos, e formaro o embrio de uma classe mdia entre os grandes proprietrios e os escravos.

Desse modo, a economia brasileira colonial no se resumia produo aucareira e muito menos grande empresa voltada para a exportao. A variedade de produtos extrados, cultivados e manufaturados no Brasil colonial era imensa. A produo de alimentos, frutas, flores, especiarias e ervas voltada para o mercado interno teve grande impacto econmico no Brasil colonial e abriu oportunidade para o estabelecimento de uma gama enorme de pequenos negcios. Muitas vezes, para conseguir oportunidades de investimento, os pequenos empresrios desafiavam abertamente as proibies impostas pela coroa portuguesa.

Pequenos agricultores pobres no Nordeste brasileiro se dedicaram produo de fumo para se vincular ao lucrativo comrcio mundial de cativos. O perigo da falta de alimentos e de que esses pequenos produtores desestabilizassem os preos dos produtos fez com que a coroa portuguesa lhes abrisse guerra declarada. Impedidos de exercer essa atividade, muitos pequenos agricultores foram obrigados a se voltar para a produo de alimentos e para a subsistncia (PALCIOS, 2002: 40-43).



No tardou, porm, que esses pequenos empresrios excludos momentaneamente do mercado buscassem novas oportunidades de negcios. Segundo PALCIOS (2002), a demanda inglesa promovida pela Revoluo Industrial fez com que cultivadores pobres livres encontrassem, na cultura do algodo, uma nova oportunidade para investir.

No final do sculo XVIII o algodo impulsionou a produo agrcola nordestina e o desenvolvimento de inmeros pequenos empreendimentos. Para substituir a decadente agricultura da cana-de-acar, o governo portugus procurou incentivar os pequenos agricultores e os pequenos produtores escravistas a migrarem da produo de alimentos para a cultura do algodo. A resposta foi positiva e imediata, revelando o desejo de inmeros pequenos proprietrios de se converterem em pequenos empresrios. Surgiram, nessa nova onda de desenvolvimento, vrias cidades onde o algodo era beneficiado, prensado e embarcado (ANDRADE, 2002:106). A corrida pelo mercado foi to forte que em 1785 instalou-se, [...] nos principais centros urbanos da regio sobretudo no porto do Recife uma intensa crise de abastecimento alimentar, que somente seria debelada na dcada de 1820. (PALCIOS, 2002:48). Medidas de proibio do cultivo do algodo foram decretadas, obrigando os pequenos agricultores a voltarem ao cultivo da mandioca, de alimentos e fabricao de farinha.

Tudo indica que a pequena empresa brasileira surgiu no setor agrcola. Suas origens tnicas provveis seriam os ndios brasileiros que se dedicavam agricultura de subsistncia e que teriam se convertido em pequenos fornecedores de alimentos para os centros urbanos. Entretanto, estudos histricos mais recentes (PALCIOS, 2002) tm demonstrado que a pequena empresa embrionria no se dedicava apenas s atividades secundrias e de suporte. A importncia da pequena empresa agrcola brasileira, na verdade, era muito maior do que aparece nos textos de PRADO JR. (1945).

A pequena empresa participava diretamente da atividade econmica principal. No se resumia s atividades secundrias e de apoio. Segundo PALCIOS (2002:37),

Ao amparo de uma crise sem paralelo na oferta de fora de trabalho escrava para a regio, os cultivadores pobres livres crescem e se expandem at ocupar, nas ltimas dcadas do sculo XVII, articulados por impulsos provenientes de Mancheste e Liverpool, a linha de frente da produo agrcola nordestina e o mais forte canal de articulao do Brasil com o mercado mundial: o algodo.

Mais que isso, a pequena empresa camponesa j nasce vinculada ao mercado mundial (PALCIOS, 2002).

Segundo FERLINI (2002:28), a polarizao da sociedade colonial entre senhores e escravo esconde uma extensa gama de grupos intermedirios.

[...] compunham o universo social do Nordeste aucareiro: mercadores, roceiros artesos, oficiais de acar, lavradores de roa e mesmo desocupados. [...] Havia, portanto, uma grande diversidade de livres no-proprietrios e livres pequenos-proprietrios [...] eram brasileiros, de origem branca, pouco mesclados de mulatos. Mas, at o sculo XVIII, o papel de lavradores de cana limitou-se aos colonos brancos. [...]

Entretanto, no final do sculo XVIII, j podem ser encontrados lavradores negros e pardos cultivando cana-de-acar (FERLINI, 2002:31).


59


2.2 As Pequenas Empresas Ligadas ao Mercado Interno

No Brasil colnia, os portugueses substituram produtos que consumiam na Europa por alimentos consumidos pelos indgenas. Assim, substituram a farinha de trigo, por exemplo, pela farinha de mandioca. Tambm trouxeram animais e variedades vegetais como: sorgo, inhame, car; banana, manga, arroz3 e o coqueiro (ANDRADE, 2002). Os pequenos agricultores eram os responsveis pelo cultivo desses gneros voltados para o abastecimento de cidades coloniais como Recife, Salvador, Sabar, Mariana e Rio de Janeiro. Ocupavam-se tambm de abastecer as frotas de navios que chegavam aos portos brasileiros (PALCIOS, 2002:40) e que daqui saam rumo frica, sia ou de regresso a Portugal. O comrcio com as ndias, o trfico de escravos e a explorao de ouro no centro-sul da colnia movimentavam populaes imensas, o que exigia a produo, transporte e comercializao de uma grande quantidade de alimentos, cordas, tecidos e artigos de couro e de madeira.

Existem muitas referncias atividade de pequenos empreendedores em relatos de viajantes, artistas, cientistas e aventureiros que percorreram o territrio brasileiro no incio do sculo XIX. Eram abundantes e variados os alimentos e produtos manufaturados no Brasil daquela poca. DEBRET (1834), RUGENDAS (1835), AGASSIZ (1869), ANTONIL (1711), SAINT-HILAIRE (1887) e DALINCOURT (1825) citam a produo de amendoim, batata-doce, centeio, milho, mandioca e trigo em So Paulo. Em Santa Catarina a cultura da pimenta, indigueiro, baunilha, arroz, caf e copaba. Produtos como caf, ch, mandioca, car, inhame e cola de sapateiro eram produzidos no Rio de Janeiro. O tabaco era cultivado em Minas Gerais e tambm na Bahia. No Maranho e Par, o cacau e o algodo estavam presentes. O Rio Grande do Sul produzia trigo, uva, vinho, cuia para chimarro e a erva-mate. A banana, a cebola e a aguardente eram produzidas e comercializadas em diversas partes do territrio.

Devido prtica dos mineradores de concentrar o trabalho de seus escravos exclusivamente na busca por ouro e diamante, surgiu - nas Minas Gerais do Ciclo do Ouro - um grande mercado por alimentos. Da mesma forma, medida que a economia e a populao da colnia cresciam, aumentava a demanda por alimentos produzidos pelo sistema de roa e pela pecuria. Tratava-se de produtos como a mandioca, o milho, o acar, o trigo, o tabaco e o cacau (LAPA, 2002, LINHARES, 2002 e SANTOS, 2002).

Com a chegada da famlia real portuguesa ao Rio de Janeiro no incio do sculo XIX, a produo interna de alimentos se transformou em um verdadeiro sistema de abastecimento que ligava diversas regies do Brasil colnia e mobilizava centenas de pequenos produtores, roceiros, sitiantes, agricultores, artesos e oficiais mecnicos.

[...] desde os seus fornecedores que se distribuam por Mato Grosso, Gois e Minas Gerais, de onde desciam gado em p, porcos, galinhas, carneiros, toucinho, queijos, cereais, tecidos grosseiros de algodo [...]. Esse elenco de produtos completava-se com hortalias, peixes, cuja rede de pequenos produtores tambm estava articulada com o sistema de transporte, representado sobretudo pelas tropas de muares [...] (LAPA, 2002:167-168).

No incio do sculo XIX, uma multido de pequenos vendedores ofertava uma gama variada de produtos locais nas cidades brasileiras, como por exemplo, ervas, capins e

3 Segundo Amaral (1958, p. 67) os indgenas brasileiros j conheciam e cultivavam algumas espcies de arroz

antes da chegada de Cabral.



flores4. Eram comercializadas diversas frutas como abacaxi, aa, ara, banana, caj, caju, goiaba, jabuticaba, jambo, laranja, lima, limo galego, mamo, manga, maracuj, melancia; pitanga, tamarindo e tomate. Tambm eram vendidos alimentos processados como amendoim torrado, milho assado, pastis, pipoca, amido, fub, polvilho e angu. Muitos produtos agrcolas manufaturados eram comercializados por pequenos comerciantes como cestos, charutos, cola de sapateiro, guaran, tabacos, bebidas, doces, bolos e quitutes (AGASSIZ, 1869, DEBRET, 1834, D`ALINCOURT, 1825).

Figura 1 Armazm e Pequenos vendedores

Fonte: RUGENDAS, Joran Moritz. Viagem Pitoresca Atravs do Brasil.1998.

Assim, o Brasil antes mesmo de sua afirmao como nao independente, j havia sido palco do surgimento de um conjunto considervel de micro e pequenas empresas. Muitas dessas empresas atuavam nos ramos de produo agrcola, manufaturas, servios e comrcio. Para representar visualmente esses primeiros microempresrios, escolhemos um quadro de Rugendas retratando um armazm do Brasil colonial. Outros trs quadros de Debret descrevem atividades tpicas de pequenos e mdios empresrios brasileiros.

4 As flores eram utilizadas para perfumar roupa, enfeitar cabelo e como mensagens entre namorados. Segundo

DEBRET (1834:362), no Brasil do incio do sculo XIX, os pais e maridos relutavam em alfabetizar as moas para evitar correspondncias amorosas. Essa precauo [...] levou as brasileiras a inventarem uma combinao engenhosa de interpretao simblica das diferentes flores, construindo uma linguagem, de modo que uma simples flor oferecida ou mandada era a expresso de um pensamento ou de uma ordem transmitida, aos quais podiam ligar conseqncias diversas pela adio de inmeras outras flores ou de simples folhas de certas ervas convencionadas de antemo.


61


No quadro de Rugendas (Figura 01) possvel deixar-se seduzir por uma cena tpica do Brasil colonial. Pode ser identificada uma loja de vveres (centro) e escravos vendedores de pequenos produtores de alimentos (ao lado da porta), e produtos manufaturados ( esquerda). Nessa obra de Joran Moritz Rugendas nota-se que a venda se encontra no piso trreo e a residncia do proprietrio no piso superior. Tal medida, til para a segurana da loja, tambm oferecia a oportunidade da sinhazinha contemplar o movimento desse verdadeiro ponto de encontro social, no qual se constituiu o pequeno empreendimento.

Figura 2 Pequenos produtores e tropeiros

Fonte: DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil. (s/d).

Na figura 2, Debret retrata os pequenos produtores de alimentos que abasteciam as cidades brasileiras do sculo XIX. Muitos transportavam seus produtos por meio de caravanas comandadas por tropeiros que, com justia, podem ser considerados os primeiros empresrios brasileiros do ramo de transporte terrestre. Pecuaristas, criadores de muares, pequenos fabricantes de embarcaes, liteiras, carros e proprietrios de barcos tambm faziam parte dessa extensa rede de infra-estrutura de transporte e abastecimento do Brasil colonial.

A figura 3 descreve uma venda onde uma negra oferece limes de cheiro e polvilho com os quais os folies se divertiam no carnaval carioca. Segundo DEBRET (1834:267), a fabricao desses produtos ocupa toda a famlia do pequeno capitalista.



Produzidos por dezenas de microempresrios os limes de cheiro garantiam, alm da descontrao, uma oportunidade lucrativa para muitos pequenos fabricantes e vendedores nas festividades do carnaval.

Nota-se o cuidado do proprietrio em firmar seu estabelecimento prximo igreja e, portanto, junto ao fluxo de clientes. As grandes portas garantem um ambiente agradvel na sempre quente Rio de Janeiro, alm de oferecer uma vitrine natural para expor suas mercadorias para os transeuntes. O piso da loja em um plano superior ao da rua garante mais higiene, requinte, visibilidade e conforto.

Figura 3 - Pequeno comrcio


A figura 4, entretanto, a que revela com mais detalhes o interior de um pequeno negcio no Brasil colonial. Trata-se de um pequeno proprietrio dedicado ao ramo de servios pessoais. Dois negros livres, de grande conhecimento e esprito empreendedor, atuam como barbeiro, cabeleireiro, dentista, sangrador e aplicador de sanguessugas. Prtica mdica muito comum na poca, mas que somente profissionais habilidosos podiam executar.

Nesse quadro possvel notar os cuidados com que o pequeno empresrio toca sua empresa. Divulga aos clientes com preciso e clareza suas habilidades. Com poucas


63


palavras consegue tornar pblico sua capacitao. Toma o cuidado de acrescentar uma bela cortina decorando a loja e separando os ambientes interno e externo.

No interior da loja a cadeira escolhida para seus clientes no um mvel qualquer, mas uma pea importantssima na composio do ambiente de trabalho. Seu estilo majestoso e estilizado transforma momentaneamente seus clientes, no simples ato de barbear, em verdadeiros monarcas. As navalhas afiadas e impecavelmente alinhadas, um candelabro decorado, a cadeira de honra do cliente no centro da loja, um espelho altura do fregus e a limpeza do assoalho revelam o cuidado desse pequeno, mas hbil e perspicaz, empresrio afrodescendente. Roupas elegantes e um corte de cabelo de bom aspecto completam sua bem sucedida estratgia de marketing.

Figura 4 Pequeno empresrio do setor de servios pessoais


Trata-se, portanto, no do empresrio portugus ou branco; muito menos do pequeno campons de origem agrcola de que fala PRADO JR. (1945), mas de um legtimo representante africano. Este fantstico trabalho de Jean Baptiste Debret retrata mais que um empresrio real. Trata-se do empreendedor herico que ilustra de forma simblica a luta dos pequenos empreendedores da nova nao que se formava. Brasileiro descendente de africanos que, por suas prprias foras e habilidades, conseguiu sair da condio de cativo



para a de pequeno empresrio. Vencendo uma situao social extremamente desfavorvel conseguiu, esse pequeno empresrio brasileiro, ascender com xito e dignidade pessoal.

Nada melhor do que um olhar estrangeiro para descrever esse pequeno empresrio do incio do novo Brasil:

Quem, com efeito, ousaria dizer-se mais digno da considerao pblica que este oficial de barbeiro brasileiro, ante a lista pomposa de seus talentos afixada na porta da loja? Infatigvel at na hora do repouso geral, vemo-lo afiar as navalhas numa m, que outro negro faz girar, ou consertar meias de seda, ramo de indstria explorado exclusivamente nos seus momentos de lazer. (DEBRET, 1834: 189).

3 CONCLUSO

As pequenas empresas surgiram com a atividade produtiva colonial. De fato, impossvel separar a histria do Brasil da histria da pequena empresa. Evidncias, documentos e relatos apontam para o litoral do estado de So Paulo as origens da agricultura e da indstria brasileira, mais precisamente nas cidades de So Vicente e Santos. Devido ao fato da economia do acar ser apoiada e em parte abastecida pelas pequenas propriedades possvel apontar o litoral paulista como o local de origem da agricultura, da indstria e das pequenas empresas brasileiras.

Suas origens tnicas provveis viriam dos primeiros colonizadores (portugueses, belgas e holandeses) e dos ndios brasileiros convertidos em pequenos fornecedores de alimentos. Mas a presena de pequenos produtores afrodescendentes e mesmo de relatos de asiticos estabelecidos no Brasil colonial no de surpreender ningum. O mundo arquitetado pelos lusitanos e que ligava quatro grandes continentes proporcionou um ambiente favorvel para o surgimento da pequena empresa brasileira multicultural e multitnica j no incio do sculo XVI.

Os primeiros pequenos empresrios brasileiros atuavam na agricultura, transporte, manufatura, servios e comrcio. Os pequenos produtores no ficaram vivendo margem e dependentes da grande empresa aucareira. Muito menos se dedicavam apenas s atividades secundrias e de suporte grande empresa colonial. Na verdade, a pequena empresa participava diretamente da atividade econmica principal o que lhe conferia uma importncia econmica enorme desde seu estgio embrionrio.

4 BIBLIOGRAFIA

AGASSIZ, Jean Louis Rodolph e AGASSIZ, Elizzabeth Cary. Viagem ao Brasil: 1865/1866. 1a edio de 1869. Braslia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. AMARAL, Lus. Histria Geral da Agricultura Brasileira. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 2a edio, 1958. ANDRADE, Manuel Correia. A Pecuria e a Produo de Alimentos no Perodo Colonial. In: SZMNECSANYI, Tams (Org.). Histria Econmica do Perodo Colonial. So Paulo: Hucitec, 2002, v. , p. 99-108. ANTONIL, Andr Joo. Cultura e opulncia do Brasil. 1a edio de 1711. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1982.


65


ARRUDA, Jos Jobson de Andrade. Explorao Colonial e Capital Mercantil. In: SZMNECSANYI, Tams (Org.). Histria Econmica do Perodo Colonial. So Paulo: Hucitec, 2002, v. , p. 217-223. DALINCOURT, Lus. Memria Sobre a Viagem do Porto de Santos Cidade de Cuiab. Primeira edio de 1825. Braslia/DF: Edies do Senado Federal, volume 69, 2006. DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil. Primeira edio de 1834. So Paulo: Crculo do Livro, (s/d). FERLINI, Vera Lcia Amaral. Pobres do Acar: estrutura produtiva e relaes de poder o nordeste colonial. In: SZMNECSANYI, Tams (Org.). Histria Econmica do Perodo Colonial. So Paulo: Hucitec, 2002, v. , p. 21-34. FURTADO, Celso. Formao Econmica do Brasil. So Paulo: Ed. Nacional, 1980. HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1936. LAPA, Jose Roberto do Amaral. O Interior da Estrutura. In: SZMNECSANYI, Tams (Org.). Histria Econmica do Perodo Colonial. So Paulo: Hucitec, 2002, v. , p. 163-171. LINHARES, Maria Yedda Leite. A Pecuria e a Produo de Alimentos na Colnia. In: SZMNECSANYI, Tams (Org.). Histria Econmica do Perodo Colonial. So Paulo: Hucitec, 2002, v. , p. 19-121. MUNIZ Jr, J. Abandono no Engenho dos Erasmos. Jornal Cidade de Santos. 4 de julho de 1982. Disnonvel em: http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0133e.htm. Acesso em: 02 jul 2007. NOVAES, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1815). So Paulo. Hucitec, 1979. PALACIOS, Guilhermo. A Agricultura Camponesa e Plantations Escavistas no Nordeste Oriental Durante o Sculo XVIII. In: SZMNECSANYI, Tams (Org.). Histria Econmica do Perodo Colonial. So Paulo: Hucitec, 2002, v. , p. 35-54. PRADO JR., Caio. Histria Econmica do Brasil. 1a edio de 1945. So Paulo: Brasiliense, 1995. RUGENDAS, Joran Moritz. Viagem Pitoresca Atravs do Brasil. Primeira edio de 1835. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Primeira Edio de 1887. Braslia/DF: Editora do Senado. Coleo o Brasil Visto por Estrangeiros, 2002. SANTOS, Nadja Paraense dos. Theodoro Peckolt: The scientific work of a pioneer in phytochemistry in Brazil. Hist. cienc. saude-Manguinhos., Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, 2005. Disponvel em: . Acesso em: 04 July 2007. Pr-publicao. SANTOS, Ronaldo Marcos. Mercantilizao, Decadncia e Dominncia. In: SZMNECSANYI, Tams (Org.). Histria Econmica do Perodo Colonial. So Paulo: Hucitec, 2002, v. , p. 67-75. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Pecuria, Agricultura de Alimentos e Recursos Naturais no Brasil-Colnia. In: SZMNECSANYI, Tams (Org.). Histria Econmica do Perodo Colonial. So Paulo: Hucitec, 2002, v. , p. 123-159.



SIMONSEN, Roberto. Histria Econmica do Brasil: 1500-1820. 4 edio, Braslia: Senado Federal, 2005. STOLS, Eddy. Panorama das relaes belgo-brasileiras. Braslia: Embaixada da Blgica. 20 set. 2005. Disponvel em: http://www.belgica.org.br/panorama.htm. Consultado em 05 mar. 2007. STRAUMANN, Patrick. Rio de Janeiro, Cidade Mestia: nascimento da imagem de uma nao. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Documents

As Origens Da Pequena Empresa No Brasil