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As propinas e o financiamento da Festa de São Sebastião no Rio de
Janeiro
(1790-1828)
Maria Beatriz Gomes Bellens Porto1
Resumo: A festa de São Sebastião era administrada pelo Senado da Câmara do Rio de
Janeiro e mobilizava toda população, promovendo interação e redes de sociabilidade
nos espaços públicos e privados em torno da devoção. Os festejos eram promovidos
por indivíduos que financiavam a procissão e as Oitavárias e depois cobravam seus
gastos ao Senado da Câmara. Pretende-se analisar como se dava o pagamento das
propinas e o que era fornecido, a fim de se entender a festa como local de
representação e reprodução da sociedade de Antigo Regime.
Palavras chave: Festa de São Sebastião. Senado da Câmara. Administração Colonial.
Financiadores. Devoção.
Abstract: The festival of São Sebastião was administered by the Municipal Concil of
Rio de Janeiro, and it used to mobilize all the population, promoting an interection of
networks of sociability at the public and private spaces around the devotion. The
festivals used to be promoted by the people who payed for the procession as well as
for the parties on the eight following days, and afterwards, they charged the Senado da
Camara for their costs. We intend to analise how was payed for the politician to go the
festivals, and what wad provided, in order to understant the festivals as a place of
representation and reproduction of the Ancien Régime society
Key-words: Festival of São Sebastião.Municipal Concil.Colonial Administration.
Financiers. Devotion.
No período colonial, a festa de São Sebastião era a segunda maior festa
religiosa oficial da cidade do Rio de Janeiro, atrás apenas do Corpo de Deus, presente
em toda a América portuguesa. A celebração do padroeiro mobilizava toda a
população, promovendo a interação e redes de sociabilidade nos espaços públicos e
privados em torno da devoção, na preparação dos enfeites das casas, na limpeza das
1Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em História Social-PPGHIS/UFRJ, orientação: Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio. [email protected]
2
ruas e até na obrigatoriedade da participação na procissão.2Os festejos eram
promovidos por indivíduos que financiavam a procissão e os oito dias de festa – as
Oitavárias – e depois cobravam seus gastos ao Senado da Câmara, que administrava a
celebração. Por meio dessa prática era possível estabelecer redes de sociabilidade com
os oficiais da Câmara, participar ativamente da economia fluminense e,
principalmente, utilizar a festa para o estabelecimento de relações políticas,
econômicas e como forma de hierarquização em relação aos demais participantes.
No presente artigo abordaremos os modos de financiar a festa e
aspropinaspagas para a participação da Monarquia e seus representantes, como
representatividade das mudanças sociais ocorridas após a chegada da Corte bragantina.
1. O Santo
O Império Ultramarino Português estava sob a égide de dois Sebastiões a partir
de meados do século XVI. O Rei Dom Sebastião, que lutou e desapareceu em 1578 na
Batalha de Alcácer-Quibir, e São Sebastião, cuja devoção era antiga, mas que nesse
período se torna latente, justamente pela homenagem ao Rei3.
Acreditava-se que o santo teria sido visto lutando lado a lado dos portugueses,
mamelucos e índios em defesa da cidade do Rio de Janeiro, na batalha de Uruçumirim
contra os franceses, ocorrida no mesmo dia da comemoração do santo, em 20 de
janeiro de 15654
Dessa forma, a cidade seria fundada em primeiro de março deste mesmo ano
com o nome de cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, e a festa em homenagem
ao seu padroeiro se tornou uma das mais importantes. Como ilustrou Luís Gastão
d’Escragnolle Dória no periódico Eu sei Tudo,de 1921, a celebração era
2 AGCRJ. Editais do Senado da Câmara, códice 16.4.21 f. 14. ACM. Pastorais e Editais 1742-1838– E236 3HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em Portugal (séculos XV e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.Sobre São Sebastião como padroeiro particular do rei D. Sebastião, a devoção ao santo na dinastia de Avis e nos séculos XVI e XVII na cidade do Rio de Janeiro, Cf. SILVA, Ricardo Mariella da. São Sebastião do Rio de Janeiro: religiosidade e segurança no século XVI. Dissertação (Mestrado em História) – PUC-RJ, Rio de Janeiro, 1996; e CARDOSO, Vinicius Miranda. Emblema Sagitado: os jesuítas e o patrocinium de São Sebastião no Rio de Janeiro, sécs. XVI-XVII. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2010. 4 Recebeu do papa Caio o título de Defensor da Igreja. Foi sepultado na Cloaca Máxima. Uma Basílica perto da Porta Capena, em Roma foi erguida em sua homenagem e parte das relíquias do seu corpo dada pelo Papa Eugenio II à abadia Saint Médard de Soissons, na França em 828. Câmara Cascudo explica que a crença se difundiu entre os índios tamoios, que lutaram ao lado dos portugueses contra os tupinambás, e alguns cronistas como Melo Morais. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 1979. 4ª edição. P.720
3
uma das mais antigas e prezadas do Rio de Janeiro, teve usado esplendor nos tempos da União da Igreja com o Estado, considerando-se 20 de janeiro dia santo da guarda com exclusão do trabalho e as gratas recordações para o bispado interno por memória do defensor espiritual da cidade.5
Sebastião foi um soldado romano nascido em Nabora no século III. Cidadão de
Milão, foi nomeado chefe da primeira corte dos pretorianos pelo Imperador
Diocleciano. Acusado de ser ameno com as prisões dos cristãos foi denunciado a
Diocleciano, que mandou prendê-lo a uma árvore para ser seteado até a morte. Dado
como morto, foi atirado em um rio e resgatado por Irene (Santa Irene) que cuidou de
suas chagas. Sebastião não estava morto e, ao se recuperar, foi procurar ou foi levado,
não há consenso, a Diocleciano para questioná-lo a respeito da violência sofrida, e este
voltou a condená-lo, sendo executado em 20 de janeiro de 288 e jogado no esgoto
público de Roma. Luciana (Santa Luciana), achou seu corpo, limpou e sepultou6.
São Sebastião é considerado o santo protetor dos arqueiros, das moléstias
contagiantes, evocado em epidemias, guerras e escassez de viveres7. Na iconografia
tradicional é representado no momento em que se realiza o “milagre”, é flechado e
sobrevive.
Seu culto teria surgido no século IV, mas atinge seu ápice apenas nos séculos
XIV e XV. Em Portugal estima-se que ao menos 92 igrejas o têm por orago.
2. A Festa
Os Estatutos da Igreja Católica do Rio de Janeiro dividiam em quatro ordens os
graus de solenidades religiosas da cidade, sendo a festa de São Sebastião considerada
de primeira ordem, grau máximo. Foi administrada pelo Senado da Câmara até 1828 e
depois pela Casa Real, de modo que a festa ainda hoje é organizada pela Catedral do
Rio de Janeiro8.
5 AN. Luís Gastão d'Escragnolle Dória. O padroeiro da cidade São Sebastião do título. In: Eu sei tudo, Janeiro de 1921. 6 Também é cultuado na Igreja Ortodoxa e na Umbanda, sincretizado a Oxóssi, Orixá das florestas, da caça e representado por seu arco e flecha. 7Recebeu do Papa Caio o título de Defensor da Igreja. Próximo ao local de sua morte, em Roma, foi erguida uma Basílica em sua homenagem. Parte das relíquias do seu corpo dada pelo Papa Eugenio II à abadia Saint Médard de Soissons, na França em 828. CASCUDO, op. Cit. p. 702 8 MARTINS, William de Souza. Arraiais e procissões na corte: festas e civilização na cidade do Rio de Janeiro. (1828-1860). Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1996.
4
Os festejos começaram a ser realizados no Morro do Castelo, onde a cidade foi
fundada e localizavam-se a fortaleza de São Sebastião e a Sé. À medida em que a
cidade foi expandiu-se, cresceu a necessidade de deslocar a Sé para a planície e a
Catedral de São Sebastião saiu do Morro do Castelo e foi transferida junto da Igreja da
Cruz dos Militares em 1733. Neste mesmo ano passou a ocupar provisoriamente a
Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, e em 1808 a Igreja de Nossa
Senhora do Carmo, elevada a Capela Real por D. João VI. Em 1979, a Catedral de
São Sebastião passou para a atual construção, na Avenida Chile, Centro da cidade do
Rio de Janeiro.
Vieira Fazenda explica que em 1734 a maior celebração da festa, a procissão,
passou a ser realizada dia 27 de janeiro, começando por uma missa de consagração no
dia do santo, dia 209, tendo solenidades em todos os dias das Oitavárias. A
documentação pesquisada no Arquivo da Cúria corrobora tal informação através dos
editais da Sé, que anualmente, entre os dias 14 a 19 de janeiro, autorizavam “a
procissão solene do Glorioso Mártir São Sebastião saindo da Santa Igreja Catedral e
pelas Ruas do Rosário até o canto da rua de trás da Candelária voltando pela esquerda
até as dos Pescadores e seguindo a Rua Direita continuarão por Palácio e Rua da
Cadeia a subir a ladeira” “que vai junto ao seminário de São José até se recolher na
antiga catedral”10, no Morro do Castelo.
Diversos foram os indícios da presença dos santos na constituição dos nomes
das cidades ultramarinas, em padrões e construções arquitetônicas como fortes e
capelas, nos escritos e relatos de viagens, sermões e na presença de padres e frades em
quaisquer navegações durante o período colonial. Beatriz Catão Cruz Santos esclarece
que tais ações faziam parte da evangelização assumida pela Coroa Portuguesa11, como
uma das frentes de conquista na expansão e colonização no além-mar, que após o
Concílio de Trentoi, era representada pela Companhia de Jesus.
As festas religiosas do período colonial eram divididas em dois tipos: ritos
católicos relacionados à vida de Jesus (natividade, morte e ressureição) e aos santos
(Virgem Maria, padroeiros, mártires). Havia também as festas públicas promovidas
pela Monarquia portuguesa e autoridades coloniais, como a coroação dos soberanos,
9RIHGB: Vieira Fazenda, Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Tomo 86, volume 140, 1919. P. 144 http://www.ihgb.org.br/rihgb/rihgb1919t0086c.pdf Acessado em 23 de setembro 2014. 10ACM Pastorais e Editais 1742-1838– E236, 17 de janeiro de 1793 e 15 de janeiro de 1799. 11 SANTOS, Beatriz Catão Cruz. “Santos e devotos no Império ultramarino português”. In: Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, 29(1): 146-178, 2009.
5
nascimentos e casamentos de príncipes, que “procuravam fortalecer o poder da
Monarquia, da burocracia colonial e reforçar a devoção colonial”12. Mais do que isso,
era uma das maneiras da monarquia e religião estenderem seu manto protetor e
repressor13.
A participação nas festas religiosas era obrigatória. As Ordenações Filipinas,
de 1603, maior código de lei do Império Ultramarino, decretava que todo morador a
menos de uma légua da cidade em que ocorresse a procissão deveria estar presente sob
pena de cadeia e mil réis a serem pagos para o Conselho. As Ordenações também
definiam as datas das procissões reais que a população deveria comparecer, como a
festa do Corpo de Deus, a maior e mais antiga do Reino, as solenidades da Visitação
de Nossa Senhora e do Anjo Custódio, anjo da Guarda do Reino e a de São
Sebastião14.
Já as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, conjunto de leis
eclesiásticas de 1707, também traziam a obrigatoriedade da participação da população.
Os editais que permitiam e regularizavam a festa de São Sebastião determinavam além
do caminho da procissão, a participação de “todo o nosso amado clero secular e
regular, comunidades, irmandades e confrarias em boa ordem”, sob a pena de “dez
tostões de multa aplicadas para a fábrica da nossa Sé”. Além disso, os clérigos e
quaisquer ordens religiosas que existissem na cidade “que não tiverem legítimo
impedimento e com hábito e censura decente” deveriam acompanhar a “procissão até
se recolher”15.
Assim como determinavam as Ordenações, os editais também categorizavam
sobre a obrigatoriedade da participação da população, sob risco das mesmas penas
para os membros da Igreja.
Mandamos debaixo das mesmas penas declaradas que nenhum homem legitima causa esteja a janela, nem assentado em cadeira enquanto passar a procissão e tanto avistar o Santíssimo Sacramento se ponham de joelhos com toda a reverência que todos tenham as ruas limpas com ramos, flores e verbas e as janelas e fronteiras ou nada no melhor modo que lhe for possível tudo para maior
12RAMINELLI, Ronald. “Festas” In: VAINFAS, Ronaldo (dir.).Dicionário do Brasil colonial(1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. p.233 13DEL PRIORE, Mary Lucy. Festas e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo, Brasiliense, 2000 p.12 14 Após o terremoto de 1755 a procissão para São Francisco Borja também foi considerada data solene, invocado para proteger o Reino de desastres naturais. MARTINS, op.cit, p.15 15Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. 1707.São Paulo: Na Typ. 2 de Dezembro de Antônio Louzada Antunes, 1853.
6
solenidade, honra e Glória de Deus, que remunerará a cada um o zelo com que servindo dado nesta cidade do Rio de Janeiro16
Santos explica que não raro as legislações eclesiásticas e régias eram análogas,
nem era exclusividade para a obrigatoriedade na festa17. A documentação acima nos
aponta os outros pontos de encontro, no que diz respeito aos encargos dos moradores
da limpeza, ornamento das ruas e havia ainda a questão do local por onde a procissão
passava.
3. As Propinas
Por ocasião das festas os membros do Senado da Câmara deveriam comparecer
paramentados com as insígnias de administração local representando seu poder, e por
extensão o poder régio. Para isso receberiam propinas, pagas também pelos
financiadores, dentro da mesma lógica de cobrança depois que a festa ocorria18.
Faz-se necessário destacar que utilizamos o termo "propina", assim como é
definido pela documentação, posto que se refere ao pagamento das atividades dos
homens bons, os membros do Senado da Câmara, tendo em vista que estes não eram
remunerados pelo cargo que ocupavam19. As propinas eram recebidas como recompensas por algum serviço prestado,
mesmo fazendo parte dos deveres dos camarários, uma vez que os cargos do Senado
não eram pagos. Em todos esses casos é necessário observar o caráter hierarquizador
de receber para participar da festa do padroeiro, dando, assim, uma conotação
burocrática para um ato também devocional.
inseridas na lógica da cultura política do Antigo Regime, as pessoas recebiam, davam e retribuíam nas ocasiões festivas, pondo em circulação solidariedades, mercadorias, os costumes e as regras que orientavam a vida social. Seja no financiamento das armações efêmeras, da iluminação pública, dos fogos de artifícios, e dos divertimentos públicos, ou mesmo, mediante a prática da etiqueta ou a exibição da pompa, a festa luso-brasileira procurava impor uma ordenação forma a um mundo aparentemente instável20
16ACM. Pastorais e Editais 1742-1838– E236 17 SANTOS, Beatriz Catão Cruz. OCorpo de Deus na América; a festa de Corpus Christi nas cidades da América portuguesa-século XVIII. São Paulo: Annablume, 2005. p.105 18 AGCRJ 43.4.18 Festividades de São Sebastião 1786-1830. 19AGCRJ 43.4.18 Festividades de São Sebastião 1786-1830
20 KANTOR, Iris; JANCSÓ, István (Org.) Festa: Cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Hucitec, Edusp, Fapesp, Imprensa Oficial, 2001.p.12.
7
Camila Santiago explicita que para o caso de Vila Rica a documentação não
permitiu uma análise dos valores pagos individualmente para cada propina21.
Entretanto, no Rio de Janeiro podemos estabelecer cada valor e uma análise
comparativa de quem eram os membros que deveriam comparecer antes e depois de
1808. Observamos que cargos como de Vice-Rei e Ouvidor, também recebiam as
propinas, que eram pagas em três momentos, antes da procissão, no comparecimento
nos dias 20 e 27 de janeiro.
A partir da tabela 1 podemos perceber os cargos que eram pagos em cera de
velas, que, como veremos a seguir, era o principal item financiado, além do seu valor
simbólico de poder iluminar suas próprias casas, um luxo na Colônia. José Antônio de
Freitas Guimarães era um dos principais financiadores da festa de São Sebastião e
pagou em 1894, 611$335 correspondentes a 40 arrobas e 20 libras de cera, dividida
nos cargos abaixo.
21 SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. Os gastos do senado da câmara de Vila Rica com festas: destaque para Corpus Christi (1720-1750) In: KANTOR, Iris; JANCSÓ, István (Org.) Festa: Cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Hucitec, Edusp, Fapesp, Imprensa Oficial, 2001. Volume II
8
Quadro 1: Propinas pagas para as festas dos dias 20 e 27 de janeiro e procissão de São Sebastião em 1804 Cargo Valores Pagos em cera Sr. Vice-rei 1 arroba e 10 libras Sr. Chanceler 1 arroba 3 ½ libras Sr. Desembargador Valente 1 arroba 3 ½ libras Sr. Desembargador Luís Jose de Carvalho 1arroba 3 ½ libras Guarda mor da relação 1 arroba 3 ½ libras Aos membros do Senado 7 arrobas e 16 libras Sr. Dr. Ouvidor 1 arroba 8 libras Sr. Dr. Síndico 1 arroba 20 libras Sr. Tesoureiro do Senado 1 arroba 16 libras Porteiro do mesmo Senado para luminárias da Casa da Câmara
1 arroba 11 libras
Porteiro por sua propina 1 arroba 11 libras Alcaide do mesmo 1 arroba 11 libras Escrivão 1 arroba 11 libras Contínuo 1 arroba 11 libras Para a Sé no dia 20 de janeiro 4 arrobas 14 libras Para a Sé no dia 27 de janeiro 6 arrobas 14 ½ libras Para os senhores cidadãos que carregarão o Palio 3 arrobas 24 libras Para os mesmo que carregarão o andor e estandartes 3 arrobas 20 libras Para os senhores desembargadores da relação uma tocha cada um
3 arrobas 28 libras
Aos senhores ajudantes de ordens Gaspar José 3 arrobas 3 ½ libras Para os oficiais da justiça 3 arrobas 2 libras Para a música 3 arrobas 23 libras Para a procissão 5 arrobas 3 ¾ libras Fonte: AGCRJ 43.4.18 Festividades de São Sebastião 1786-1830.
Já para o ano de 1811, depois da chegada da Corte, o mesmo José Antônio de
Freitas Guimarães, requer um pagamento maior de 949$190 correspondentes a 53
arroba 14 libras e 1 quarta de cera para as propinas.
Quadro 2: Propinas pagas para o que será gasto na festa de São Sebastião e seu Oitavário em 1810. Cargo Valores Pagos em cera Sr. Dr. Juiz de Fora
1 arroba 8 libras
João Pedro 1 arroba 8 libras sr. Claudio Jose Pereira Guimarães 1 arroba 8 libras sr. Procurador 1 arroba 8 libras sr. Escrivão 1 arroba 8 libras sr. Tesoureiro 1 arroba 16 libras Luminárias para a casa da câmara 1 arroba 12 libras Alcaide 1 arroba 8 libras sr. Antônio Jose Coelho 1 arroba 12 libras sr. Dr. Sindico 1 arroba 20 libras Capela Real 13 arrobas 18 ½ libras
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Capela Real no dia da procissão 14 arrobas 23 ¾ libras Sé Velha
3 arrobas 19 libras
Que se gastou na procissão 7 arrobas 24 ¼ libras Senhores cidadãos 2 arrobas 25 ¾ libras Fonte: AGCRJ 43.4.18 Festividades de São Sebastião 1786-1830.
Comparativamente, observamos além do aumento do valor em 337$755 e
diminuição no número de itens e pessoas a serem pagas. Além do natural
desaparecimento dos cargos de Vice-Rei e algumas funções coloniais, que se observa
é que com a Corte não há uma proliferação de cargos, mas uma concertaçãono
pagamentoà Capela Real, justamente a própria Monarquia. A pesquisa irá de dedicar a
identificar quem eram os políticos que eram citados nominalmente a receberem tais
propinas, não sendo apenas os cargos que ocupavam.
Através do pagamento das propinas podemos perceber mais um aspecto da
relação direta das práticas administrativas com aspectos devocionais da festa. A
participação, que seria a princípio devocional, ganha um aspecto secular e obrigatório.
4. Financiar a festa
Os financiadores forneciam artigos para as procissões, como fogos de artificio,
armações para o Pálio, para palanques, tablados, arcos triunfais, pagamento dos
músicos, cuidados com a imagem e andor de São Sebastião e principalmente cera para
as luminárias22.
Mary Del Priore destaca que “item cada vez mais importante para o sucesso
das celebrações, as luminárias passam a servir para a propaganda do Estado Moderno,
retratando o nome do Rei ou de seus funcionários mais chegados”23. Três dias antes do
início oficial das festas ao padroeiro já começava “o justo e louvável costume de
porem os moradores desta mesma cidade luminárias na noite dos sobreditos dias 17,18
e 19 do corrente na forma costumada desde o princípio da fundação desta cidade, com
pena de 3$000”24.
Deste modo, uma das principais formas de rastrearmos quem eram os
financiadores da festa de São Sebastião é através da documentação que se refere ao
fornecimento da cera. Num mundo de escuridão, quem fornecia cera para as
22 As luminárias eram panelinhas de barros com azeite de mamona e uma ponta de algodão que se acendia ou cascas de laranja com o mesmo azeite e mechas de algodão. 23DEL PRIORE, op. Cit. p. 36. 24 AGCRJ Editais do Senado da Câmara, 16.4.21 f.56v-57v, 13 de janeiro de 1798.
10
luminárias se destacava dos demais moradores, numa clara apropriação simbólica de
um contrato econômico com o Senado da Câmara.
Em 1805, José Antônio de Freitas Guimarães apresenta um requerimento
pedindo o pagamento de 600$480 réis referentes a 39 arrobas e três libras de cera25.
Contudo, esse não foi seu único ano de fornecimento de cera, ainda em 1795, ele
apresenta um requerimento “aos senhores do Senado pedindo o pagamento de
930$600 correspondentes a 52 arrobas e 2,22 libras de cera que forneceu para as festas
de São Sebastião”. Em 1803, o pagamento seria de “512$500 correspondentes a 40
arrobas e uma libra de cera” e no ano seguinte “611$335 correspondentes a 40 arrobas
e 20 libras”26.
O que observamos é que 15 anos depois do primeiro registro de pedido de
pagamento, José Antônio de Freitas Guimarães continua fornecendo cera para as
festividades do padroeiro. Em 1810, a quantia a ser paga e volume de cera chega ao
máximo 949$190 referentes a 54 arrobas, 14 libras e uma quarta. José Antônio de
Freitas Guimarães foi um dos maiores financiadores da festa, em artigos diretamente
ou no pagamento das supracitadas propinas. Outro destaque da documentação é que
ele passa a ser referido com o título de capitão em 1811, demostrando, assim, uma
distinção no trato de sua importância27.
Mais um nome recorrente a ser destacado é o do capitão Manuel Alvares
Machado, que fornece cera nos anos de 1791, 1792, 1794, 1796 e 1798, chegando à
sua quantia mais alta em 1796, quando solicita o pagamento de 1:461$900 por 83
arrobas e duas libras de cera28.
Invariavelmente os itens pagos em relação à festa de São Sebastiãoremetiam a
celebração religiosa, mas também a própria Monarquia portuguesa. Em um
requerimento de 1791, Antônio Ferreira solicita ao Senado o pagamento de 134$400
por importâncias que ele gastou mandando fazer dois grandes painéis: um de São
Sebastião e outra do Conde de Bobadela29.
Há de se destacar que Gomes Freire de Andrade, o Conde de Bobadela, havia
falecido 28 anos antes, e a solicitação se refere ao restauro dos painéis após o
incêndio de 20 de julho de 1790 no Senado da Câmara, que destruiu grande parte de
25AGCRJ 43.3.90 Festividades de São Sebastião, requerimento de José Antônio de Freiras Guimarães,1805. 26 AGCRJ 43.4.18 Festividades de São Sebastião 1786-1830. 27 AGCRJ 43.4.18 Festividades de São Sebastião 1786-1830. 28 AGCRJ 43.4.18 Festividades de São Sebastião 1786-1830. 29AGCRJ 43.4.18 Festividades de São Sebastião 1786-1830.
11
seus arquivos30, bem como os ditos painéis. A documentação relata que “o suplicante
fez a obrigação que relata [a pintura dos painéis] e fez requerimento por se haver
queimado [...] e conforme ordem do Sr. Dr, Corregedor se mandou reformar todas as
alfaias” em 18 de dezembro de 1790.
O que podemos destacar de mais significativo neste requerimento é o reforço
da nossa hipótese de que as festas religiosas e da Monarquia seguiam a mesma lógica
da sociedade de Antigo Regime, onde o painel do santo padroeiro e de uma das mais
importantes figuras políticas do período colonial, o Vice-Rei Conde de Bobadela,
precisavam ser reformadas para serem exibidas durante a procissão.
Conforme dito anteriormente com a chegada da Corte em 1808 as festas
oficiais ficaram mais rebuscadas, e com a festa do padroeiro não poderia ser diferente.
Além da cera e dos músicos, observamos gastos com pinturas, restauração da
douragem do resplendor do orago, gastos com entalhe, painéis e até veludo e
almofadas para o andor.
Kantor e Jancsó destacam que com a chegada da Corte dos Braganças ao Rio
de Janeiro muda a natureza das tensões entre paradigmas e práticas do que a América
portuguesa se tornou. O que se percebe é uma europeização das solenidades
justapostas à americanização da imagem do Monarca e da ordem política
constitucional.
ancoradas muitas vezes nos padrões tradicionais do Antigo Regime, as novas sociabilidades tornam-se indicadores da emergência de novas identidades simultaneamente políticas, religiosas, sociais e étnicas, configurando parte do processo de construção e legitimação tanto do regime imperial brasileiro, quanto da dinastia reinante.31
O aumento na quantidade de itens a serem financiados permitiu um
alargamento dos usos econômicos, políticos e simbólicos da festa. Custódio José de
Almeida solicita o pagamento de “396$800 correspondentes a armação que fez para
procissões por ocasião das festas de São Sebastião”. Dez anos depois solicita 83$200
30 AGCRJ 44-4-22 Sobre o incêndio no Senado da Câmara 20 de Julho de 1790. No dia 4 de setembro de 1790, é lançado um edital, a fim de se recuperar e copiar os documentos incendiados parcialmente e os que se encontravam na residência de camaristas. Estavam presentes o doutor ouvidor corregedor da Câmara Marcelino Pereira Cleto, o Juiz de Fora e presidente do Senado da Câmara Baltazar da Silva Lisboa, além dos vereadores Francisco Pinheiro Guimarães e José Mariano de Azevedo Coutinho, e o procurador Manuel de Souza Meirelles. 31 KANTOR, Iris; JANCSÓ, István (Org.) Festa: Cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Hucitec, Edusp, Fapesp, Imprensa Oficial, 2001.p.12.
12
para uma “armação que fez na Sé velha e construção do camarim”32. Já em 1827 o
requerimento refere-se ao andor do santo.
As apropriações de financiar festas religiosas ligadas ao Senado da Câmara, e
portanto, uma instituição política administrativa nos leva a pergunta: Financiar era
apenas um ato devocional?. Geertz defende que o homem é muito dependente de
símbolos e sistemas simbólicos a ponto de serem decisivos para sua viabilidade como
criaturas. Nossa hipótese é que os financiadores não faziam apenas usos políticos,
econômicos, mas também simbólicos, a fim de demarcar perante as demais camadas
da população a sua participação ativa como devoto.
Uma das maneiras encontrada de se destacar simbolicamente no espaço da
festa, como através das pessoas que eram encarregadas de segurar as Varas do Pálio,
sob o qual sacerdotes carregavam o Santíssimo Sacramento, seguindo-se em menor
importância os que carregavam o andor e os estandartes. William Martins expõe que a
ordem de quem pegava no Pálio se dava de acordo com a dignidade: “a composição do
pálio revelava o caráter centralizador da Monarquia e, secundariamente, a
conformidade dela em relação a critérios tradicionais de dignidades cortesã”33. Até
1808, a designação era feita pelo Senado da Câmara, passando depois para a
Monarquia através do Ministério de Negócios do Reino.
Além do prestígio e de se destacarem hierarquicamente, quem participava da
cerimônia no Pálio também recebiam propinas, que deveriam ser pagas para “para os
senhores cidadãos que carregarão o Pálio e para os mesmo que carregarão o andor e
estandartes34”,
Em 1828, a Câmara municipal para de prover e controlar as festas religiosas,
como a de São Sebastião e do Corpo de Deus, passando a ser encargo da Casa
Imperial. Apesar da Constituição de 1824 ter mantido as atribuições coloniais das
festas oficiais, a lei complementar de 1ᵒ de outubro de 1828 mudou os regimentos das
Câmara, que passaram a ser “corporações administrativas e não exercerão jurisdição
alguma contenciosa”35. O fechamento também da Mesa do Desembargo do Paço e a
Mesa da Consciência e Ordens, corrobora para a interpretação de William Martins
para o período Imperial, que considerou uma representação do “coroamento das
32 AGCRJ 43.4.18 Festividades de São Sebastião 1786-1830. 33 MARTINS, op.cit. 92. 34 AGCRJ 43.4.18 Festividades de São Sebastião 1786-1830. 35Apud MARTINS, Coleção leis do Império de 1828. Rio de Janeiro, Tip. Nacional, 1878. Lei de 1 de outubro de 1828 “Dá nova forma às Câmaras Municipais marca suas atribuições e o processo para a sua eleição e dos Juízes de Paz” art. 24.
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discussões legislativas, substituindo as formas tradicionais de controle social através
da festa barroca, por novos dispositivos que procuravam enquadrar o cotidiano da
população nas leis”36.
Diante do exposto, propomos o entendimento da festa como representação.
Roger Chartier explica que “As representações do mundo social assim construídas,
embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre
determinadas pelos interesses de grupo que as forjam”, assim, a festa seria a
representação da sociedade idealizada, com hierarquias bem definidas através do
financiamento. Assumindo que a atuação desses grupos era devocional, mas também
produzir estratégias através desse financiamento, posto que “as percepções do social
não são de forma alguns discursos neutros”, pretendemos indicar alguns caminhos que
nossa pesquisa seguirá a fim de entender as festas religiosas oficiais sob o prisma da
administração do Senado e dos aproveitamentos desse espaço como reprodutor da
própria sociedade de Antigo Regime.37
Fontes primárias: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ) AGCRJ Editais do Senado da Câmara, 16.4.21 f.56v-57v, 13 de janeiro de 1798. AGCRJ 43.3.90 Festividades de São Sebastião, requerimento de José Antônio de Freiras Guimarães,1805. AGCRJ 43.4.18 Festividades de São Sebastião 1786-1830. AGCRJ 44-4-22 Sobre o incêndio no Senado da Câmara 20 de Julho de 1790. Arquivo da Cúria Metropolitana (ACM) Pastorais e Editais 1742-1838– E236 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) RIHGB: Vieira Fazenda, Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Tomo 86, volume 140, 1919. P. 144 http://www.ihgb.org.br/rihgb/rihgb1919t0086c.pdf Acessado em 23 de setembro 2014. Arquivo Nacional (AN) AN. Luís Gastão d'Escragnolle Dória. O padroeiro da cidade São Sebastião do título. In: Eu sei tudo, Janeiro de 1921. Referências Bibliográficas.
36MARTINS, op. cit. p 251 37 CHARTIER. Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Portugal: Diefel, 1988. p.17 et alli
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BOXER, Charles R. Portuguese Society in the tropics, The municipal councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda, 1510-1800. Madison and Milwaukee: The University of Wisconsin Press, 1965. __________. O Império colonial Português, 1715-1825. Lisboa: Edições 70, 1981. CHARTIER. Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. DEL PRIORE, Mary Lucy.Festas e Utopias no Brasil Colonial.São Paulo, Brasiliense, 2000. HESPANHA, António Manuel (coord). História de Portugal. Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. KANTOR, Iris; JANCSÓ, István (Org.) Festa: Cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Hucitec, Edusp, Fapesp, Imprensa Oficial, 2001. MARTINS, William de Souza. Arraias e procissões da Corte, festas e civilização do Rio de Janeiro (1828-1860). Niterói: Universidade Federal Fluminense (dissertação de mestrado), 1996. ___________. Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700-1822). São Paulo: Edusp, 2009. RAMINELLI, Ronald. Festas In: VAINFAS, Ronaldo(dir.).Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. SANTOS, Beatriz Catão Cruz. O Corpo de Deus na América; a festa de Corpus Christi nas cidades da América portuguesa - século XVIII. São Paulo: Annablume, 2005. _________________. Santos e devotos no Império ultramarino português. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 29(1): 146-178, 2009 SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. Os gastos do senado da câmara de Vila Rica com festas: destaque para Corpus Christi (1720-1750) In: KANTOR, Iris; JANCSÓ, István (Org.) Festa: Cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Hucitec, Edusp, Fapesp, Imprensa Oficial, 2001. Volume II.