10
1 Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Programa de Pós-Graduação em Sociologia Disciplina: Estudos Exemplares em Ciências Sociais / 2010 Professor: Frédéric Vandenberghe Aluno: Alexandre de Paiva Rio Camargo Resenha de LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, 274 p. Ler As revoluções do capitalismo pode ser uma experiência duplamente desnorteante. Primeiro, porque seu fluxo narrativo opera com várias escalas, do nível molecular da monadologia tardiana às interações desterritorializadas, tanto intersubjetivas quanto interobjetivas, que caracterizam a abordagem das redes sociotécnicas. Segundo, porque retrabalha uma preciosa gama de autores, em princípio irreconciliáveis, mas que recebem tratamento inteiramente original nas táticas e estratégias cabíveis no mundo capitalista descortinado por Lazzarato. Este talvez seja o maior mérito do livro que ora resenhamos, a síntese de clássicos de variados matizes. A sociologia monadológica de Gabriel Tarde, os dispositivos de disciplina e controle de Foucault e Deleuze, o marxismo da linguagem de Mikhail Bakhtin são reunidos em uma leitura bastante inventiva, capaz de provocar mesmo aqueles que, não sem razão, discordarão do autor. De fato, trata-se de obra ousada, de difícil alinhamento mesmo entre os estudos sobre a crise da modernidade. Explica-se: nosso autor, que antes se juntara a Antonio Negri para formular o conceito de trabalho imaterial no pós-fordismo, aqui rompe de vez com a tradição do open marxism, recusando até mesmo a centralidade do trabalho na produção da subjetividade e do devir, noção que tendia a unificar os estudos sobre o Império. Ao situar-se no extremo mais radical dessa corrente, Lazzarato rejeita não apenas o pensamento dialético, mas o pressuposto falacioso do sujeito coletivo que transforma a história, que apenas serviria ao movimento molecular do capital, aprisionando a cooperação de cérebros e a efetuação de mundos possíveis. Não somente o marxismo, mas toda a filosofia do sujeito se condena ao pressupor categorias totalizantes e universais (como o trabalho) e um fazer na ordem da intersubjetividade. Em seu lugar, os eventos de 1968 deslocam a filosofia do sujeito e a organização sindical assentada no regime da fábrica, possibilitando tanto uma revolução do capitalismo, quanto a emergência da

As Revolucoes Do Capitalismo - Maurizio Lazzarato Resenha

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Resenha sobre As revoluções do capitalismo de Maurizio Lazzarato.

Citation preview

  • 1Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de JaneiroPrograma de Ps-Graduao em Sociologia

    Disciplina: Estudos Exemplares em Cincias Sociais / 2010Professor: Frdric Vandenberghe

    Aluno: Alexandre de Paiva Rio Camargo

    Resenha de LAZZARATO, Maurizio. As revolues do capitalismo. Rio de

    Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006, 274 p.

    Ler As revolues do capitalismo pode ser uma experincia duplamente

    desnorteante. Primeiro, porque seu fluxo narrativo opera com vrias escalas, do nvel

    molecular da monadologia tardiana s interaes desterritorializadas, tanto intersubjetivas

    quanto interobjetivas, que caracterizam a abordagem das redes sociotcnicas. Segundo,

    porque retrabalha uma preciosa gama de autores, em princpio irreconciliveis, mas que

    recebem tratamento inteiramente original nas tticas e estratgias cabveis no mundo

    capitalista descortinado por Lazzarato. Este talvez seja o maior mrito do livro que ora

    resenhamos, a sntese de clssicos de variados matizes. A sociologia monadolgica de

    Gabriel Tarde, os dispositivos de disciplina e controle de Foucault e Deleuze, o marxismo

    da linguagem de Mikhail Bakhtin so reunidos em uma leitura bastante inventiva, capaz

    de provocar mesmo aqueles que, no sem razo, discordaro do autor.

    De fato, trata-se de obra ousada, de difcil alinhamento mesmo entre os estudos

    sobre a crise da modernidade. Explica-se: nosso autor, que antes se juntara a Antonio

    Negri para formular o conceito de trabalho imaterial no ps-fordismo, aqui rompe de vez

    com a tradio do open marxism, recusando at mesmo a centralidade do trabalho na

    produo da subjetividade e do devir, noo que tendia a unificar os estudos sobre o

    Imprio. Ao situar-se no extremo mais radical dessa corrente, Lazzarato rejeita no apenas

    o pensamento dialtico, mas o pressuposto falacioso do sujeito coletivo que transforma a

    histria, que apenas serviria ao movimento molecular do capital, aprisionando a

    cooperao de crebros e a efetuao de mundos possveis. No somente o marxismo, mas

    toda a filosofia do sujeito se condena ao pressupor categorias totalizantes e universais

    (como o trabalho) e um fazer na ordem da intersubjetividade. Em seu lugar, os eventos de

    1968 deslocam a filosofia do sujeito e a organizao sindical assentada no regime da

    fbrica, possibilitando tanto uma revoluo do capitalismo, quanto a emergncia da

  • 2filosofia do acontecimento e das novas estratgias de luta e organizao que lhe

    correspondem. Este o tema central a que o presente livro destina sua discusso.

    O primeiro captulo, O acontecimento e a poltica, parte do paradigmtico maio

    francs para mostrar como o acontecimento configura uma mudana na ordem do sentido,

    permitindo ao poltica escapar das oposies binrias em que se organizam as lutas

    sociais (homem / mulher, capital / trabalho, natureza / sociedade, intelectual / manual), por

    meio da abertura de um novo horizonte, onde possvel acolher a descontinuidade na

    nossa experincia e uma nova sensibilidade que o encontro com o outro proporciona. Na

    filosofia do acontecimento, a mudana social pressupe a atuao sobre as sensibilidades,

    as modalidades de afetar e ser afetado, que subvertem a relao clssica entre sujeito,

    objeto e linguagem. Para emergir o acontecimento, dois agenciamentos devem se

    encontrar: o agenciamento de expresso, que engloba o conjunto de enunciados e regimes

    de signos, produzidos por sujeitos, tecnologias de comunicao e demais redes scio-

    tcnicas; o agenciamento maqunico, que corresponde dimenso incorporada das trocas

    sociais, isto s alianas e expanses mveis que afetam os corpos em geral. Atravs

    destas duas dimenses, o acontecimento cria um mundo possvel, que se manifesta nos

    enunciados e se efetua nos corpos.

    Lazaratto vai buscar na sociologia infinitesimal de Tarde o conceito de cooperao,

    a partir das modalidades de criao e efetuao de mundos possveis. Ao mesmo tempo

    que constitui uma entidade inteiramente singular (com desejo, crena, percepo,

    memria), a mnada tambm um espelho da sociedade, com suas relaes constitutivas,

    porm no pode expressar mais do que uma parte deste conjunto de relaes. Na

    monadologia, o social se replica no microcosmo individual, mas s pode faz-lo

    assumindo uma perspectiva particular, o que permite articular o uno ao mltiplo. Em

    conseqncia, toda a mudana e toda a atividade esto fundadas nas modalidades de

    sentir; toda ao uma ao sobre as vontades, sobre as inteligncias, sobre os afetos. Este

    pressuposto ontolgico remete a uma outra noo de cooperao, bem distante da

    racionalidade produtiva e da constituio subjetiva pelo mundo do trabalho de Marx, da

    fenomenologia e da filosofia da conscincia em geral. Em direo oposta, trata-se de

    integrar o ser ao seu contrrio, isto , reunir mundos divergentes, que se bifurcam, e que

    passam a coexistir simultaneamente em devires possveis.

    Ao valer-se de Tarde, Lazzarato entende as estratgias identitrias como

    subjetivaes da ordem capitalista baseadas em dicotomias, atualizaes da relao

  • 3capital/trabalho, que devem ser superadas, uma vez que implicam que um s mundo

    possvel, o que serve aos ciclos de mobilidade do capital. Por isso mesmo, preciso partir

    de uma (neo)monadologia para entender e superar as modalidades capitalistas de

    aprisionamento da cooperao entre crebros, que impedem a criao e efetuao dos

    mundos possveis. Se os modos de sentir e afetar se tornam a condio da ao e da

    mudana, ento toda a inveno implica um processo de dessubjetivao e uma nova

    produo de subjetividade, desde que seja possvel propagar a inveno atravs do fluxo

    imitativo (de emoes, hbitos, comportamentos, sensaes). Desse modo, para se

    publicizar, a inveno necessita efetuar-se nos agenciamentos maqunicos, na dimenso

    espao-temporal concreta. O problema fundamental que a inveno, que est na

    emergncia do acontecimento, configura precisamente o objeto de explorao e

    domesticao do capitalismo contemporneo, o que convida a uma discusso sobre suas

    mutaes histricas, assunto do segundo captulo.

    Para compreender a mobilidade dinmica do capitalismo, Lazzarato recorre a

    Foucault e a Deleuze (na verdade, aquele lido por este). Tal mobilidade corresponde,

    sobretudo, passagem da sociedade disciplinar, que se confunde com o capitalismo

    industrial e monopolista (sculos XIX e XX), para a sociedade de controle, cuja

    emergncia evidenciou-se e acelerou-se nos desdobramentos de 1968. A primeira,

    caracterizada pelas tcnicas disciplinares articuladas em instituies totais (fbricas,

    escolas, prises, hospitais), age sobre as almas e os corpos, neutralizando a potncia de

    inveno e de codificao da repetio. Deste modo, toda a possibilidade de variao

    subtrada em padres homogneos de integrao, atravs da reproduo de dualismos

    essenciais, sendo os principais os de classe (operrios / patres) e os de sexo (homens /

    mulheres). A represso multiplicidade tem por base a fixao normativa e o

    confinamento espacial das integraes, reduzindo toda a diferena aos dualismos

    reificados e previstos. Nas sociedades disciplinares, as instituies tm um passado

    (tradies), um presente (gesto das relaes de poder mais imediatas) e um futuro (o

    progresso), mas no tm devires, variaes. Como afirma Lazzarato, as cincias sociais

    que legitimaram a constituio e a ao dessas instituies funcionam em termos de

    equilbrio (economia poltica), integrao (Durkheim), reproduo (Bourdieu),

    contradio (marxismo), luta pela vida (darwinismo) ou pela concorrncia, mas ignoram o

    devir (p. 70).

  • 4A agenda de planificao do Wellfare State, ancorada na biopoltica, na gesto da

    vida e dos corpos no interior de processos biolgicos coletivos (como a epidemia e o

    envelhecimento), j sinaliza a presena de tecnologias do regime de controle, em meio ao

    predomnio da sociedade disciplinar. Este o momento que vir o surgimento dos

    pblicos (como o de vidos leitores de jornais), marcados pela conexo entre

    subjetividades, que agem uma sobre as outras, em um espao aberto, por meio de

    tecnologias de velocidade, propagao e transmisso a distancia, que ampliam a

    capacidade de afetar e ser afetado, a cooperao entre crebros. Ora, tais mecanismos de

    integrao e diferenciao se tornaro bastante perceptveis nos marcos de 1968, e a partir

    da comportaro um nmero cada vez maior de agenciamentos, medida que grassam as

    tecnologias televisivas e informticas. Aqui cabe a distino inspirada em Deleuze a

    respeito da peculiaridade de um conceito-chave, o de pblico, dado que ela est na base

    das novas relaes de poder do capitalismo contemporneo. Encarnando a forma de

    subjetivao que melhor expressa a plasticidade da mnada, os pblicos no compem

    com os indivduos uma relao de pertencimento exclusivo e identitria. Embora o

    indivduo no possa pertencer a mais de uma classe ou aglomerao por vez, pode

    pertencer a diferentes pblicos ao mesmo tempo. Nestes termos, os pblicos so

    expresses de formas de subjetividade e socializao ignoradas da sociedade disciplinar.

    Ao lado da moldagem dos corpos pelas tcnicas disciplinares e da gesto da vida

    organizada pelo biopoder, a modulao da memria e do fluxo de desejos e crenas que

    circulam na cooperao entre crebros (noopoltica) formaro os dispositivos que

    constituem a sociedade de controle. Em ltima instncia, a cooperao no mais

    neutralizada em sua virtualidade, nos espaos confinados das instituies totais e seus

    dualismos identitrios, mas capturada de fora, no espao aberto dos agenciamentos entre

    pblicos, onde se formam a opinio pblica e a inteligncia coletiva.

    Passamos, assim, do regime de neutralizao ao de captura do virtual, por meio da

    modulao da memria, da ateno, dos desejos e afetos, que marca a ao do capitalismo

    da empresa o terceiro e mais original captulo do livro resenhado. O corpo alvejado pela

    empresa no mais forjado por disciplinas, mas falado por signos, palavras e imagens,

    que induzem os agenciamentos de expresso aos mundos publicitrios, e que so inscritos

    no mais nos corpos das subjetivaes patolgicas da sociedade disciplinar (loucos,

    presidirios, doentes, operrios), mas no corpo do obeso (cheio dos mundos da empresa) e

    do anorxico (vazio pela recusa desses mundos). O caso-limite nos dado pela Microsoft.

  • 5A inveno e a implementao de um software se fazem atravs do agenciamento de

    mltiplas inteligncias, de saber-fazer e de afetos que circulam em fluxos, deslocando a

    diviso do trabalho tradicionalmente concebida. Afinal, como a criao e a implementao

    de softwares tendem a mimetizar as funes de produtores e usurios, uma nova

    cooperao no apenas possvel, mas necessria: a captura e a apreenso recproca

    fazem de todas as mnadas colaboradoras, mesmo que nem todas tenham a mesma

    potncia de criao e articulao (p. 121). O problema que, em lugar de se distribuir de

    forma heterognea como na cooperao, a potncia de agenciamento canalizada

    unicamente na empresa. Atravs de patentes e licenas, a empresa privatiza uma

    cooperao irredutivelmente pblica, transformando sua multiplicidade de colaboradores

    em uma multiplicidade de clientes. No lugar da propriedade dos meios de produo, na

    propriedade intelectual que se funda agora a captura da criao e da realizao.

    A redefinio das tticas de dominao pelo regime do capitalismo de empresa

    tambm altera as redes de mobilidade e resistncia, tal qual um ponto de fuga. Na

    sociedade de controle, as possibilidades de afetar e ser afetado se multiplicam, abrindo um

    campo de ao que nem sempre pode ser administrado pela empresa, como ocorreu com

    as presses organizadas por cooperao em favor de softwares livres, da quebra das

    patentes sobre medicamentos e da participao na definio da finalidade das pesquisas.

    Por meio da luta em prol de bens comuns (que independem da ao do Estado) nas esferas

    de educao, cultura, sade e pesquisa, e da funo produtiva de seus beneficirios

    (alunos, espectadores, doentes, consumidores), coloca-se o problema da produo e

    distribuio da riqueza comum, do financiamento e do direito de acesso das subjetividades

    a essa nova cooperao. Lazzarato v no capitalismo de empresa a possibilidade de um

    novo conceito de democracia, atravs da cooperao entre crebros, capaz de transformar

    os clientes, usurios e beneficirios em atores polticos de uma nova esfera pblica no-

    estatal.

    Para tanto, e este o sentido mais pragmtico de sua obra, preciso superar a

    clssica diviso entre trabalho intelectual e manual, que norteia no apenas o pensamento

    social (o marxista, em especial), mas tambm as formas de organizao e luta contra o

    capital, todas inspiradas no modelo sindical. Como Lazzarato dir mais frente, os

    instrumentos e formas de organizao do movimento operrio so bastante insuficientes,

    porque, de um lado, se referem a ao modelo de cooperao da fbrica de Marx e Smith,

    no mais dominante, e, por outro, no concebem a ao poltica como inveno, mas como

  • 6simples desvelamento de algo previamente estabelecido, cujo principal operador a

    conscientizao. Onde quer que exista hegemonia das formas de organizao do

    movimento operrio, no pode haver coordenao (p. 232).

    No capitalismo da empresa, a cooperao de crebros no mais necessariamente

    especializada, nem intelectual. Ao invs disso, envolve uma rede constituda por posies

    relacionais, que possuem em comum a capacidade de empreender e comear algo novo, de

    construir problemas e colocar prova as respostas que eles suscitam. Embora haja

    assimetrias quanto ao poder de cada um para articular e criar, todos so colaboradores nos

    agenciamentos de expresso e efetuao. O encontro com o outro, enquanto perturbao

    de uma ordem interna e aparente, torna-se a condio de possibilidade de um novo modelo

    de organizao e luta social. Como instncia de atribuio de sentido experincia social,

    a linguagem antecede o momento da luta poltica, e a ela, mais precisamente polifonia

    de Bakhtin, que o autor recorre para pensar a expresso da subjetividade qualquer.

    Este o tema do quarto captulo, que ope expresso comunicao. Esta ltima

    revela seu carter monolgico nas tecnologias de difuso, que formam pblicos, mas

    inibem cooperaes. O rdio e a televiso so os exemplos mais representativos, voltados

    para a neutralizao da relao acontecimental. Embora o dispositivo do vdeo possibilite

    a captura recproca entre mnadas, a televiso o reduz a um dispositivo poltico de

    centralizao, limitando-o captura unilateral, ao difundir smbolos. Como simulacro do

    tempo real, a televiso se apropria da possibilidade de utilizar o tempo para agir sobre o

    presente que est em vias de se fazer, expropriando o pblico no apenas da

    comunicao, mas antes do tempo acontecimental que a funda e constitui (p. 176). Na

    criao miditica dos acontecimentos, toda a diferena reduzida s escolhas previamente

    elaboradas pela publicidade e pela audincia. Sem abrir-se para devires possveis, o

    acontecimento gerado pela televiso capaz apenas de produzir autoritariamente um

    sentido e de formar um sujeito unvoco da enunciao, do qual passam a depender todos

    os enunciados.

    Trata-se, portanto, de uma inverso do princpio da expresso, manifesto na

    polifonia de Bahhtin. Para este, a palavra a modalidade de afetao por excelncia e o

    ato de falar sempre um desdobramento em espiral (o termo nosso) da palavra do

    outro, com suas entonaes e suas afirmaes emocionais, com suas dissonncias e

    contradies. Na leitura que lhe ape Lazzarato, a polifonia de Bakhtin vai alm do

    reconhecimento intersubjetivo para atingir a virtualidade, j que nela a palavra um

  • 7desdobramento contnuo de percepo, afeio e inteleco, o que a faz participar

    plenamente da atualizao do acontecimento nas almas e nos corpos. Posta nestes termos,

    a internet a tecnologia de distncia que mais favorece e amplifica esta disposio da

    linguagem, porquanto permite converter as virtualidades da cooperao em estratgias

    polticas. Isto porque todos os padres de comunicao e de software repousam sobre os

    agenciamentos das redes, intensificando a ao das mnadas. Indo alm da simples

    formao da opinio pblica e do compartilhamento de julgamentos, que caracterizam o

    monolinguismo e o acontecimento televisivo, a internet permite constituir formas de

    organizao e expresso comuns, realizando as potencialidades do plurilinguismo. esta a

    via de acesso aos movimentos ps-socialistas, tema do quinto e ltimo captulo.

    Alguns pontos podem ser destacados na anlise de Lazzarato sobre os novos

    movimentos de esquerda. Em primeiro lugar, a tenso essencial que advoga existir entre a

    poltica institucionalizada, que s pode negar o devir e operar com a totalidade de pares

    como cidado / estrangeiro e trabalhador / desempregado, e as organizaes ps-

    socialistas, que para constituir mundos possveis no pode correr o risco de se

    despotencializar frente s instituies polticas. Em conseqncia, as estratgias de poder

    destes movimentos freqentemente apresentam carter mvel e flexvel. Este o caso da

    linguagem dos direitos humanos, cuja eficcia propriamente poltica assenta na defesa da

    igualdade dos grupos minoritrios. Assim, demonstrar a igualdade entre homens e

    mulheres foi uma experincia historicamente necessria para que o feminismo percebesse

    os limites dos conceitos de gneros e se abrisse para a diferena entre os sexos.

    O segundo ponto, decorrente do primeiro, nos vem da seguinte questo: como

    admitir e lutar pela existncia da multiplicidade sem recair na percepo de um s mundo

    possvel? Para Lazzarato, esta nos parece ser a pergunta-chave que norteia o novo regime

    de lutas sociais. Sem as primeiras conquistas de igualdade no seria possvel a abertura

    para processos de subjetivao heterogneos e em devir, ora em curso. Assim, a crtica

    feminista do feminismo pode posteriormente se reencontrar com outras excluses

    subjacentes s estratgias identitrias, ancorando-se nas mulheres de cor e nas lsbicas e

    transexuais para desconstruir o prprio sujeito mulher. Em ltima instncia, trata-se de

    abolir a lgica identitria para alargar a poltica das diferenas, de modo a liberartar dois

    ou mais mundos (incompossveis) de um nico mundo realizado pelos canais

    institucionais da esfera poltica.

  • 8Os dois pontos anteriores conduzem a um terceiro: a reversibilidade das

    assimetrias e estados de dominao implicados pelas tecnologias de governo, atravs da

    ao sempre movente e flexvel das organizaes ps-socialistas. Para Lazzarato, os novos

    atores polticos so capazes de misturar em jogos estratgicos a gesto das identidades

    coletivas e suas dicotomias essenciais institudas pelo poder estabelecido, de modo a fazer

    emergir uma poltica do devir, de criao e efetuao de novas formas de subjetividade.

    Este aspecto nos parece bastante interessante, porque nos remete estatstica como

    tecnologia de gesto dos coletivos sociais. Assim como a cooperao entre crebros

    reclama a participao dos grupos minoritrios organizados na definio da finalidade da

    pesquisa cientfica, a sociedade de controle rene condies de possibilidade homlogas

    para a intensa influncia dos mesmos grupos polticos na formulao do programa

    estatstico, tanto na cobertura quanto na definio de suas categorias de classificao. Este

    um aspecto central, j que a realidade da descrio estatstica, dicotmica por definio,

    adquire eficcia normativa ao ser convalidada pela ordem pblica. Por um lado, a

    estatstica, ao contrrio do que se costuma afirmar, no um dado, j previsto e reificado,

    mas uma informao, que pode ser e continuamente resignificada, recebendo

    interpretaes ampliadas ou restritivas de acordo com o interlocutor e a ordem do

    discurso. Isso vlido, sobretudo, para as informaes estatsticas mais disputadas, pouco

    consensuais, como o caso dos indicadores sociais. Por outro lado, a participao ativa

    dos grupos minoritrios demanda e avaliao dos nmeros e seus pressupostos conceituais

    precipita mudanas severas, embora de baixa visibilidade social, nos procedimentos

    estatsticos de objetivao, cujo critrio no raro tem se deslocado da antiga noo de

    objetividade da realidade exterior para a de objetividade da dimenso subjetiva, ou seja,

    percepes sobre pertencimentos subjetivos, como ocorre especialmente em classificaes

    tnico-lingusticas

    Por fim, o quarto e ltimo ponto nos vem da substituio do assalariamento pela

    poltica de renda. O modelo de salrio, resduo do regime da fbrica, implica no apenas

    uma relao de subordinao a um empregador, mas tambm a recomposio de um

    sujeito majoritrio que se sobrepe e inibe a todas as subjetividades possveis. Em seu

    lugar, a poltica de renda permite reconciliar as diferenas no interior e no exterior do

    assalariamento, sem recair em um padro majoritrio e sem se confundir com uma simples

    distribuio equitativa dos recursos. Ao contrrio, a poltica de renda permitiria

    compreender e valorizar a multiplicidade do tempo de trabalho enquanto tempo de vida, a

  • 9heterogeneidade das temporalidades e subjetividades. Embora insista neste aspecto,

    Lazzarato muito pouco claro sobre o modo como estas diferenas qualitativas, cujo

    desdobramento infinitesimal pretende estimular, podem ser mensuradas e quantificadas

    em remuneraes e prestaes, base para qualquer poltica de renda.

    A questo da poltica de renda no um problema isolado. Lazaratto arrisca-se a

    cair em um profundo idealismo por diversas vezes, tanto por seu excesso de confiana nas

    estratgias ps-identitrias dos grupos minoritrios, para o que se vale de uma

    generalizao do caso feminista, sem enfrentar a tomada de posio dos movimentos

    negros e homossexuais, para no falar das minorias tnicas nacionais, que parecem ir na

    direo oposta. Inspirando-se no ps-humanismo e no ps-estruturalismo, Lazzarato

    incorre no paradoxo de um idealismo sem sujeito, alimentado por redes scio-tcnicas,

    que, para agravar o quadro, no possui o apelo sedutor do racionalismo subjacente

    filosofia da conscincia, que ferozmente critica. Seu silncio sobre o sistema financeiro e

    os processos que conformam uma inteligibilidade global s dinmicas atuais bastante

    sintomtico. A anlise apressada que faz da moeda, cuja virtualidade lhe permite capturar

    a articulao da diferena e da repetio , no mnimo, constrangedora. Esta falta de

    ceticismo na razo torna a aparecer no que diz respeito s possibilidades organizacionais

    e polticas da cooperao virtual nas tecnologias informticas, em que se baseia o cerne de

    seu argumento. Vejamos um nico exemplo: o uso de informaes georreferenciadas,

    como as do Google, igualmente criadas pela captura e apreenso recproca entre as

    mnadas. Os mapas digitais fazem com que todos se sintam em casa, precisamente

    porque se baseiam no conhecimento dos moradores da regio, que podem contribuir com

    informaes de sua prpria rua, no tanto para criar bens comuns, como para ampliar a

    atratividade da vida nas grandes cidades. Revelados nos mapas, os servios de

    convenincia e lazer ganham flego novo na e pela ao das mnodas, renovando assim

    antigas promessas de felicidade e bem-estar nascidas no capitalismo da fbrica. Nestes

    termos, devemos nos perguntar: um outro conceito de democracia e uma nova esfera

    pblica no-estatal podem emergir de uma prtica poltica pautada pelo utilitarismo

    econmico, que est na raiz das anlises clssicas sobre a democracia moderna? Esta

    uma questo decisiva que, oportunamente, no chega sequer a ser formulada por

    Lazzarato.

  • 10