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As Universidades e o Regime Militar- Rodrito Patto Sá Mota

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As Universidades e o Regime Militar

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  • RodrigoPattoSMotta

    ASUNIVERSIDADESEOREGIMEMILITARCulturapolticabrasileiraemodernizaoautoritria

  • ParaLetcia,OlviaeArthur,meuportoseguro.

  • SUMRIO

    Introduo

    1.OperaoLimpeza1.Asintervenesnasreitorias2.Procedimentosinquisitoriaiseexpurgo3.Anormalizaoeodesafioestudantil

    2.Afacemodernizadora1.Modernizar,mascomo?2.OpapeldoMECeainflunciaestrangeira3.Primeirasmedidasrumoreforma4.OProjetoRondon5.svsperasdoterremotoviolnciaereformasemritmoacelerado

    3.AUsaideainfluncianorte-americana1.AAlianaparaoProgresso2.OsacordosMEC-Usaid3.Bandeirasemchamaseodestinodosacordos4.Alentasada5.Balanodaamericanizao

    4.Onovociclorepressivo1.Umamordaaparaosestudantes:oDecreto2.Osprofessoresnamira:oAI-5eoAC-753.A(ir)rationaledosexpurgos4.Educaomoralecvicaparaajuventude

    5.Osespiesdoscampi1.Acomunidadedeinformaes:SNI,DSIeASI2.Contrapropaganda,anticomunismoecombatecorrupo3.Censuraecontroledavidauniversitria4.Atriagemideolgica5.AsASIsnamira:ineficinciaecorrupo

    6.Osresultadosdasreformas1.Aumentodevagasemudanasnovestibular2.Expansodaps-graduaoedainfraestruturadepesquisa3.Reitoresempreendedores,campiemobras4.Odestinodascinciassociais5.Problemaselimitesdareforma

    7.Adeso,resistnciaeacomodao:oinfluxodaculturapoltica1.Impulsoscontraditrios,resultadosparadoxais2.Adeso,resistnciaeacomodao3.Jogosdeacomodao

    8.Eplogo:odesmontedoaparatoautoritrionasuniversidades

  • 1.Adistensoearespostadacomunidadeuniversitria2.OfechamentodasASIs,caminhosinuoso3.Aanistiaeoretornodosexpurgados4.Ciclosgrevistaseeleiesparareitor

    Concluso

    Abreviaturasesiglas

    Notas

    Refernciasbibliogrficas

    Agradecimentos

  • INTRODUO

    Este livro foi estruturado em tornode algumas indagaes que implicam temas e enfoques poucovisitados pela historiografia. Qual o impacto do regime militar sobre as universidades e osprofissionais da academia? Como atuaram os apoiadores do regime autoritrio nos meiosacadmicosequalainflunciadadireitanasuniversidades?Nocampodoensinosuperior,comosecombinaram e/ou se chocaram os impulsos modernizadores e autoritrio-conservadores? De quemaneiraasambiguidadeseosparadoxosdaditadurabrasileirasemanifestaramnadefiniodesuapoltica universitria? Que influncia efetiva tiveram nesse processo os acordos firmados com aUnited States Agency for International Development (Usaid)? Como operou o sistema deinformaes criado nos campi universitrios, a rede de Assessorias de Segurana e Informaes(ASIs), e qual o impacto dos expurgos polticos? No que toca s relaes entre intelectuais epesquisadoresacadmicoscomoregimemilitar, temvaloromodeloquepropeumapolarizaoentre resistncia e colaborao?De quemodo se podem dimensionar adequadamente as linhas derupturaedecontinuidadeentreoregimepolticoinstauradoem1964eastradiespreexistentes?

    Como comumnas pesquisas acadmicas, algumas das respostas encontradas confirmaram aspremissasiniciais;outrassurpreenderam,aoapontarcaminhosinesperados;ainda,emcertoscasos,asperguntascontinuaramsemsoluo.Estelivrooresultadodasreflexeseanlisespropiciadaspor tais questionamentos, que, naturalmente, foram pautadas em dados, indcios e informaescoletadosaolongodapesquisa.Elenotemapretensodedizeraltimapalavrasobreoassunto,deatingir a verdade plena, mas certamente h o intuito de oferecer contribuio original aoconhecimento do regime militar brasileiro, colocando em foco uma de suas facetas maissignificativas.

    O propsito aqui compreender as polticas universitrias da ditadura, que nos oferecemoportunidadedeobservaraatuaodosmilitareseseusaliadoscivisemreaestratgicaedegranderepercusso.Nasuniversidades,osparadoxoseasambiguidadesdoregimemilitarsemanifestaramplenamente, revelando a complexidade dessa experincia autoritria. De fato, o regime polticoconstrudoapartirde1964tevedupladimenso:elefoiaomesmotempodestrutivoeconstrutivo,embora seu impulso modernizador tenha se viabilizado de maneira repressiva. Em sua facetadestrutiva, o Estado autoritrio prendeu, demitiu ou aposentou professores consideradosideologicamente suspeitos, assim como afastou lderes docentes acusados de cumplicidade com asubversoestudantil.Almdisso,torturouematoualgunsmembrosdacomunidadeacadmicaqueconsideravamaisperigosos.Oanseioporumalimpeza ideolgica levouaobloqueioda livrecirculaodeideiasedetextos,einstalaodemecanismosparavigiaracomunidadeuniversitria.AsAssessoriasdeSeguranaeInformaoforamcriadasdentrodoscampie,juntamentecomoutrosrgosdeinformao(OIs),triaramcontrataes,concessesdebolsaeautorizaesparaestgiosnoexterior.

    Considerando o outro lado desse processo, os militares implantaram reformas de impactoduradouronoensinosuperiorqueaindadoformaaonossosistemauniversitrio,emboramudanasvisando democratizao tenham sido adotadas em anos recentes. Da estrutura departamental aosistemadeps-graduao,passandopelosexamesvestibulares,abasedaestruturauniversitriaemvigorfoiconstrudasobaditadura;oumelhor,foiimpostafora,emboraaessnciadessedesenhotenhasidoelaboradaporlderesdocentes,eapressodomovimentoestudantilouotemorqueela

  • despertava nos militares tenha servido de contrapeso e evitado a aplicao de certas medidaspretendidaspeloEstado.

    Entretanto,talpolticanoestavaprontaquandodavitriadogolpe,pois,assimcomonasoutrasreas do governo, os vencedores no tinham rumos claros sobre o que fazer aps a conquista dopoder,salvoacrenananecessidadedelimparopaseosistemapolticodeinimigosreaiseimaginrios. Os grupos que deram sustentao ao golpe de 1964 compunham uma frenteheterognea, representando tanto diferenas sociais quanto ideolgicas, o que tornou impossvelreunir uma coalizo to ampla em torno de um programa afirmativo. Liberais, conservadores,reacionrios,nacionalistasautoritrioseatalgunsreformistasmoderadosreceberamcomalvioogolpe,poishaviamperdidoaconfiananogovernodeJooGoulart.Onicoconsensoeranegativo:tirardopoderumgovernoacusadodeconduziropasparaoprecipcio.

    Porisso,apolticauniversitriaquefoisedesenhandoaolongodotempo,ecujaslinhasmestrass se definiramplenamente no incio dos anos 1970, resultoude choques entre grupos e opiniesdivergentes, da presso do movimento estudantil e, paradoxalmente, da apropriao de ideiasgestadas no pr-1964, inclusive do prprio conceito de reforma universitria. Assim, a reformaafinal realizada pelo regime militar foi o efeito paradoxal de presses contrrias, de liberais,conservadores,militares,religiosos,intelectuais(eprofessoresuniversitrios),aquesesomaramosconselhosdeassessoresediplomatasnorte-americanos,tendocomocenrioarebeldiaestudantil.

    O golpe de 1964 no foi um movimento essencialmente antirreformista, mas sobretudoanticomunista.Partedosapoiadoresdogolpeerafavorvelareformas,desdequeafastadoqualquerperigoderadicalizaoefortalecimentodelideranasrevolucionrias.Tambmdireitaaceitava-seo argumento reformista de que as universidades precisavam de mudanas para superar certosarcasmos.Aunidadebsicadas faculdadeseramoscatedrticos,professorespoderososque,entreoutros privilgios, tinham cargos vitalcios. Tal sistema era considerado responsvel pela fracaproduodeconhecimentoepelaapatiadosprofessoressituadosnosnveishierrquicosinferiores.Outro problema sensvel era a escassez de vagas para os jovens em condies de ingressar nauniversidade, um grupo em expanso, em virtude do aumento das taxas de urbanizao e docrescimentodemogrficonosanos1950-60.

    Nesse quadro, era forte a sensao de que as universidades precisavam ser transformadas,emboraosprojetospoltico-ideolgicosemdisputadivergissemsobreosrumosaadotar.Demodosimplificado, esquerda e direita convergiam no diagnstico de que era necessrio modernizar eproduzirmaisconhecimento,porm,osprimeirosdesejavamtambmsituarasuniversidadesaoladodascausassocialistas.Esseeraotomdosdebatessobrereformauniversitriaorganizados,antesde1964,porlideranasestudantisepelaUnioNacionaldeEstudantes(UNE),quealmejavamtambmmudaraestruturadepoderdentrodas instituiesdeensino.Ademandapor reformauniversitriafoiincorporadasreformasdebaseanunciadasporJooGoulart,cujosplanosincipientesparaoensinosuperiornotiveramoportunidadedeseconcretizar.

    Entreosadversriosdasesquerdas,sobretudonosgruposinfluenciadosporargumentosliberais,circulavam tambm teses reformistas. Entretanto, ao contrrio da perspectiva socialista erevolucionria,elesqueriammudaroensinosuperiorparatorn-lomaiseficienteeprodutivo,tendoem vista as necessidades do desenvolvimento econmico e demodernizao damquina pblica.Conferia-se nfase ao ensino tcnico, em detrimento da tradio humanista, e privilegiava-se odesenvolvimentotecnolgico,emprejuzodapesquisavoltadaparaacinciapura.Paraessavertente,asuniversidadesnoprecisavamserpblicase tampoucogratuitas.Aocontrrio,questionava-seoestatutodagratuidadedoensinoedefendia-seacobranadetaxasdosestudantesquepudessempagar.

    svsperasde1964,amodernizaoestavanaordemdodia,masquerumodeveriatomar?Os

  • debates sobre reformasnoBrasildosanos1960erampermeadospelacirculaodeconceitosdascinciassociais,sobretudodedesenvolvimentoemodernizao.Algunsdosmodelosmaisinfluentesvinham da academia e das agncias estatais norte-americanas, cujas teorias se pautavam pelosimperativos da Guerra Fria. Na acepo das teorias da modernizao elaboradas por cientistassociais americanos e encampadas pelo governo dos Estados Unidos, principalmente na gesto deKennedy, a melhor maneira de vencer o desafio revolucionrio era modernizar os pasesatrasados, considerados presas fceis do inimigo comunista. E a educao era um dos setoresprioritrios da pauta modernizadora, por seus efeitos multiplicadores e por incutir valores nosjovens. Na produo acadmica americana dos anos 1950 e 1960, moderno, modernizao emodernidade tornaram-se conceitos-chave, ao lado de desenvolvimento, com significados muitasvezesindistintos.1

    Paracertostericosamericanosdelinhademocrata,amodernizaonospasespobresdeveriairalm do progresso econmico e do desenvolvimento, implicando tambm mudanas polticas eculturais que trouxessem em seu bojo a democracia caracterstica da verdadeira modernidade.Porm, tais verses progressistas tambm tinhamcomomotivaoproduzir apelomais sensvelqueafriapromessademelhorarodesempenhoeconmico.Tratava-sedeforjarumamstica,umaideologiaquecompetissecomosprojetosrevolucionrios,principalmenteomarxismo.DaopapelcentralconferidopelasagnciasdogovernoamericanocomdestaquenaUsaid,mas tambmeminstituies privadas, como as fundaes Ford e Rockefeller modernizao das instituieseducacionais brasileiras. Nesse setor foram investidos vultosos recursos, parcela significativa dodinheirodoadoouemprestadopelaUsaidaoBrasilentre1961e1974.Escolaseuniversidadeseramolcusdetreinamentodemodeobraqualificadaedelderes,mastambmespaofundamentalparaodebatede ideias e a formaodeopinio.Da decorria o interesse em firmaros acordosMEC-UsaidquetantaceleumairiamcausarnoBrasil.

    Entretanto, entre os defensores das teorias da modernizao surgiram vertentes pragmticas,menos preocupadas com objetivos de grande alcance (como democracia e modernidade) e maisinteressadasemconquistaraliadosfiis,aceitandooautoritarismocomoopopolticanasdisputascom a esquerda revolucionria. Alguns intelectuais formuladores da poltica externa americanapassaramavernosmilitaresagentestalhadosparamodernizarassociedadesperifricas,aindaquecustaderetardaroadventodademocracia.2TalpragmatismojestavapresentenosanosdeKennedy,massetornoumaisimportantenoperodoposterior,comaascensodosrepublicanosaopoder.

    No Brasil, programas desenvolvimentistas/modernizadores provocavam (e provocam)entusiasmo, em primeiro lugar, pelas flagrantes carncias do pas e pelo sentimento de atraso efrustraoemrelaospotnciasdominantes.Bastalembraraeuforiageradanosanosdogovernode JuscelinoKubitschek pelamstica desenvolvimentista, condensada no lema Cinquenta anos emcinco.Nessequadro,propostasprometendodesenvolvimentooumodernizaoatrairiamaudinciacativa, salvo na esquerda, desconfiada das boas intenes do governo e das instituies privadasamericanas. Apesar do sentimento antiamericano e da consigna anti-imperialista, elementos-chavenas culturas polticas de esquerda, os projetos caros a tais grupos tambm dialogavam com osconceitos de modernizao/desenvolvimento, j que o socialismo implicava industrializao eavanodasforasprodutivas.Nodeixoudehaver,atambm,imbricadanosconflitosideolgicosdo perodo, uma guerra de conceitos na qual se opunham (e s vezes se combinavam)desenvolvimento, modernizao, reforma e revoluo, cujos sentidos eram disputados pelosdiferentesatorespolticos.

    Assim, nos debates polticos e culturais dos anos 1960, era amplo o leque das opes para ofuturodoBrasil.Comavitriadacoalizogolpistaeaderrotapolticadasesquerdas,acaboupor

  • venceravertenteautoritriaeliberal-conservadoradoprojetomodernizador,queparadoxalmenteseapropriou de ideias sugeridas por lderes derrotados em 1964. Os militares tornaram-se agentesmodernizadores, tal como previam alguns cientistas sociais e lderes polticos, mas nem sempreseguiram o script que lhes estava destinado, desbordando na direo de prticas repressivasmaisdrsticasdoquedesejavamosparceirosnorte-americanos,etambmousandoafastar-sedosEstadosUnidosnosanos1970.

    No novidade usar o termo modernizao conservadora ou autoritria para explicar o queaconteceunoBrasilapsogolpe;desde1966algunsanalistastmadotadoaexpressoparadefiniraessncia do regime militar.3 O conceito foi desenvolvido por Barrington Moore Jr., que, sobinflunciadeideiasmarxistas,produziuumainflexonasteoriasdamodernizaonorte-americanas,em perspectiva mais crtica e radical. Esse autor defendia o argumento de que os processos demodernizaoseguiriamtrilhasdiferentesemalgunspases,nosquaisastendnciasmodernizadoraspoderiam semesclar a foras conservadoras. Essencialmente, omodelo destacava a formao dealianas reunindo burguesia e proprietrios rurais, que, tangidos pelo medo da revoluo social,iniciariam processos de modernizao conservadora conduzidos pelo Estado. O conceito inspirador,nessecaso,pelopapelmodernizadordoEstadomilitar,quede fato representoualianasocialepolticaheterognea,baseadaemmobilizaocontrarrevolucionria.4

    Parafazerusodessecampoconceitualhquedistinguirentreconservadorismoeautoritarismonaspolticas implantadaspeloregimemilitar.Oimpulsoconservadorfoi importantenamontagemdo Estado ps-64, expressando anseios de grupos que almejavam manter o statu quo e a ordemtradicional.Noentanto,emvriosmomentos,asdemandasconservadorasentraramemcontradiocomospropsitosmodernizadores,svezeslevaramapior,enquantooautoritarismosempreestevepresente,noobstantecertasambiguidadeseainflunciamoderadoradaopinioliberal.Porisso,hmotivos para oscilar na escolha da melhor adjetivao para o regime militar brasileiro:modernizao conservadoraou autoritria?A resposta que ele foi simultaneamente autoritrio econservador, e a melhor maneira de mostrar os impasses entre impulsos modernizantes econservadoresanalisarassituaesemqueosdoissefizerampresentes.

    So recorrentes na histria brasileira e fazem parte de sua cultura poltica as experincias demodernizao conservadora e autoritria processos demudana contraditrios, em que o novonegociacomovelho,quemantmemvigoreatualizamcertostraosdopassado,enquantooutrossotransformados.Pode-sechamarissodeartedefazermudanasconservando,processoquetevemomentosculminantesnasduasgrandesditadurasdosculoXX:oEstadoNovoeoregimemilitar.DuranteoImprio,dizia-sequeosconservadoresimplantavamasreformaspropostaspelosliberais.Algo do gnero ocorreu no regime de 1964, pois osmilitares apropriaram-se de algumas ideiaslanadas por progressistas e reformistas, mas as adaptaram e sobretudo as aplicaram demaneiraautocrticaeelitista.Namesmalinha,valeapenadestacarqueasduasgrandesreformasdoensinosuperiornoBrasil,no sculoXX, forampromovidasporditaduras: a reformaFranciscoCampos,em1931,eareformadoregimemilitar.Diferenciaaspolticaseducacionaisdosdoisexperimentosautoritriosofatodeque,nosegundo,oexpurgofoimaisgrave,comosever,emboraprofessorestambmtenhamsidodemitidosepresosnafaseduradoregimevarguista.

    Uma das hipteses norteadoras deste trabalho que o Estado autoritrio implantado em 1964,embora incorporasse demandas para romper com o passado, sofreu a influncia de tradiesarraigadas e de elementos que podem ser considerados parte da cultura poltica brasileira. Hacepes e usos diferentes de cultura poltica, categoria analtica desenvolvida pelas cinciassociais nos anos 1960 que, mais recentemente, tem sido apropriada pela historiografia. Aqui,entende-seporculturapolticaumconjuntodevalores,prticaserepresentaespolticaspartilhado

  • pordeterminadogrupohumano,expressandoumaidentidadecoletivabasedeleiturascomunsdopassadoeinspirandoprojetospolticosdirecionadosparaofuturo.5Noseriapossvelapresentarumdebate aprofundadode todos os aspectos que estruturariam a cultura poltica brasileira, tarefa quedemandaria outro livro. Interessa apenas destacar que alguns traos culturais tradicionais semanifestaram nas polticas do regime militar e esta percepo fornece inovadora chaveinterpretativa para compreender elementos paradoxais e por vezes contraditrios do Estadoautoritrio. O argumento principal que certos aspectos tradicionais do comportamento poltico(principalmente dos grupos dirigentes brasileiros) se reproduziram durante o regime militar, emespecialatendnciaconciliaoeacomodao,estratgiautilizadaparaevitarconflitosagudos,eo personalismo, entendido como prtica arraigada de privilegiar laos e fidelidades pessoais emdetrimentodenormasuniversais.6

    Opontocentraldahiptesequeainflunciadetaiscaractersticasdaculturapolticabrasileiraajudaaexplicarocartermodernizador-autoritriodoEstadoduranteoregimemilitar,inclusiveemsua manifestao especfica nas universidades. Alm disso, o influxo cultural pode ajudar acompreendertambmesetratadehipteseexplicativaaindanoexploradaemoutrostrabalhosomodo peculiar como se deram as relaes do aparato repressivo com os meios acadmicos eintelectuais.Paraalmdasaes repressivas,quenopodemserminimizadas, tais relaes forampermeadaspor jogosdeacomodaoquenoseenquadramna tipologiabinriaresistnciaversuscolaborao.

    Ressalva importante: no se subscrevemaqui interpretaes etnocntricas quepodem ser feitaspartindo-sedamatrizculturalistaetampoucoseaceitaumasupostainferioridadebrasileiradiantedemodeloseuropeus.Tambmnose tratadepostularumaespciedeexcepcionalidadebrasileira, jquealgunsdoselementosapontadospodemsemanifestartambmemoutrasrealidadessociais.Almdisso, devem ser evitadas interpretaes deterministas e generalizaes abusivas, como se ocomportamento de todos os agentes sociais fosse idntico e no houvesse escolhas. No entanto,permanece o fato de que a comparao com experincias semelhantes revela peculiaridades doregime militar brasileiro que demandam explicao. O argumento defendido aqui que traosculturaismarcantesfazempartedaresposta.7

    Otemada tradioconciliatriamereceuaatenodeautores influentesnopensamento socialbrasileiro, como Gilberto Freyre, Jos Honrio Rodrigues e Roberto DaMatta, bem como debrasilianistasargutos,comoPhilippeSchmitter.Taisanlisesconvergemparaainterpretaodequea cultura brasileira tem como marcas centrais a flexibilidade, a recusa a definies rgidas e anegao dos conflitos, que so evitados ou escamoteados por meio de aes gradativas,moderadoras, conciliatrias e integradoras. Ressalte-se: a recusa de reconhecer e agudizar osconflitos,a tentativadeneg-losoucontorn-los, servemanutenodaordemdesigualeelitista,pois as estratgias conciliadoras ajudam a escamotear os problemas sociais e a excluso poltica,bemcomoapostergarsuasoluo.

    Tambmforaminspiradorasparaestetrabalhoasanlisesqueenfatizamotraodecordialidadeda cultura brasileira, caracterizada pela negao das distncias sociais e das normas, em contrastecomavalorizaodoslaospessoaisefamiliares.8NostermosdeRobertoDaMatta,aprevalnciadacasa(afamlia,osamigos)sobrearua(asleis,asnormas,oEstado),que,comosevernesteestudo,inspiroumuitos agentes sociais a lanarmo de contatos familiares e pessoais para contornar asmedidas repressivas.Poroutro lado,a flexibilidadeparaacomodardivergncias tornoupossvelacooptao de intelectuais e tcnicos provenientes do campo ideolgico adversrio, prticacaractersticadatradiobrasileiraepresentetambmnoregimemilitar.

    AforadatradioconciliatrianoBrasiltalvezsejaumarazoparaocomtismoterencontrado

  • tantosadeptosnopas.Adivisaordemeprogressosnteseperfeitadoespritoconciliadorqueentrens sematerializou emarranjospolticosdeperfilmodernizante-conservador.Encontra-se amanifestaode tendnciasconciliatriasemvriosmomentoseepisdiosdenossahistria,entreeles:oprocessodaIndependncia,lideradopeloprncipeherdeirodotronoportugusequeevitourupturasbruscas;omodocomofoiimplantadaaRepblicaem1889,noqualaslideranaspolticasdo velho e do novo sistema acomodaram-se, compoucos choques;9 o EstadoNovo e a estratgiagetulista de integraode tendncias heterogneas, que fez escola; os resultados da crise de 1964,que,aocontrriodaesperadaguerracivil,gerouguerradesaliva;atransiops-autoritria,emqueaanistia significou realmenteesquecimentoeperdo,com inmerosex-apoiadoresdo regimemilitarmantidosnopoder;aascensodeLuizIncioLuladaSilvaedoPartidodosTrabalhadores(PT)aopoder,viabilizadaporalianareunindoforasdeesquerdaededireita.

    Assim,forteentrensorecursoconciliao,buscadesoluesdecompromissoqueevitemo caminho de rupturas radicais. Procura-se acomodar os interesses de grupos em disputa, em umjogodemtuasconcesses,paraevitarconflitoagudo,sobretudoquandooscontendoresprincipaispertencemselitessociais.Entretanto,nemtodososagentespolticosfazemusodetaisestratgias,eosqueo fazemno somovidospor lgica frreaouqualquer formadedeterminismo,pois, emalguns contextos, os apelos conciliao no so bem-recebidos. A conciliao e a acomodaofazempartedorepertriodeestratgiasdisposiodosquedisputamosjogosdepodernoBrasilouseja,elasintegramaculturapolticadopas,e,comohlargatradioevriosexemplosbem-sucedidos,muitoslderessoincentivadosaescolhertalcaminho,naesperanadeconstruirprojetospolticosestveis.

    Apercepodainflunciadessestraosarraigadosnaculturapermitecompreenderosparadoxose as contradies das polticas dos governos militares, que, de outro modo, poderiam parecercaticase irracionais.OEstadoconstrudoapsogolpede1964representoutentativadeconciliardemandasopostas, jqueo carterheterogneode suabasede apoiogeroupresses emdireescontrrias.Emlugardefazerescolhaclaraeirrestritaporalgumadasopescomo,porexemplo,fez a ditadura chilena em favor de programa econmico liberal , os dirigentes brasileirospreferiramatenderaprojetosdiferenteseestabelecercompromissos.

    Observando o quadro geral, pode-se dizer que o propsito modernizador se concentrava naperspectivaeconmicaeadministrativa,comvistasaocrescimento,aceleraodaindustrializaoe melhoria da mquina estatal. J o projeto autoritrio-conservador se pautava em manter ossegmentos subalternos excludos, especialmente comoatorespolticos,bemcomoemcombater asideiaseosagentesdaesquerdaporvezes,qualquertipodevanguardanoscamposdapolticaedacultura,defendendovalorestradicionaiscomoptria,famliaereligio,incluindoamoralcrist.

    No que toca especificamente s universidades, a modernizao conservadora implicou:racionalizao de recursos, busca de eficincia, expanso de vagas, reforo da iniciativa privada,organizaodacarreiradocente, criaodedepartamentosemsubstituioao sistemadectedras,fomentopesquisaeps-graduao.Paraviabilizaradesejadamodernizao,sobretudoduranteoperodoinicialdoregimemilitar(1964-68),enfatizou-seaadoodemodelosuniversitriosvindosdospasesdesenvolvidos,emparticulardosEstadosUnidos.Noeixoconservador,oregimemilitarcombateu e censurou as ideias de esquerda e tudo o mais que achasse perigoso e desviante e,naturalmente, os defensores dessas ideias; controlou e subjugou omovimento estudantil; criou asASIs para vigiar a comunidade universitria; censurou a pesquisa, assim como a publicao ecirculao de livros; e tentou incutir valores tradicionais pormeio de tcnicas de propaganda, dacriao de disciplinas dedicadas ao ensino de moral e civismo e de iniciativas como o ProjetoRondon.

  • Quandoassumiramopoder, aps avitria inesperadamente fcil dogolpe,osmilitares e seusaliadoscivisencontraramsituaoconturbadanosmeiosuniversitrios.Noinciodosanos1960,omovimento estudantil havia se tornado aguerrido e bem-estruturado, sobo comandode lderes daesquerdacatlicaedecomunistas.Noclimaderadicalizaoanterioraogolpe,asuniversidadessetornaramcentros importantesdamobilizaoesquerdista,coma realizaodeseminrios,eventosculturais e polticos, manifestaes as mais diversas; e os estudantes se tornaram forte grupo depresso no cenrio pblico. Para alm do fato de as universidades reunirem inimigos do novoregime,credenciando-se,portanto,comoalvosprivilegiadosdasprimeirasoperaesdeexpurgo,elas ocupavam lugar estratgico na formao das elites intelectuais e polticas do pas, e,secundariamente,dosdirigenteseconmicos.Assim,eram indispensveisaoprojetomodernizadoracalentado por setores da coalizo dominante, com duas funes bsicas. Primeiro, continuarcumprindo, agora em escala ampliada, o papel de formar profissionais necessrios s atividadeseconmicas. Em segundo lugar vinha o potencial para desenvolver novas tecnologias, algo aindaincipientenarealidadebrasileirademeadosdosanos1960,equenoeraconsideradoprioritrioportodososenvolvidos,poisaimportaodetecnologiaeraregranasgrandesempresas.

    Porm,oimpulsomodernizadordonovoregimeeracontrabalanadoporforasretrgradasqueoapoiavam,amedrontadascomosriscosmanutenodaordemeaosvalores tradicionais.Essessetores, geralmente representados por religiosos, intelectuais conservadores e militares, no secontentavamtosomentecomoexpurgodaesquerdarevolucionriaedacorrupo.Elesdesejavamaproveitar omomentopara impor uma agenda conservadoramais ampla, que contemplasse a lutacontra comportamentos morais desviantes, a imposio de censura e a adoo de medidas parafortalecerosvalorescarostradio,sobretudoptriaereligio.

    Asuniversidadesrepresentamespaoprivilegiadoparaobservarosentrechoquesdasdiferentesforas que moveram o experimento autoritrio brasileiro. Elas eram importantes lcus demodernizaodopas, bemcomocampodebatalhaentreosvalores conservadores eos ideaisdeesquerda e de vanguarda; eram instituies que o regime militar, simultaneamente, procuroumodernizarereprimir,reformarecensurar.Soboinfluxodaculturapolticabrasileira,osgovernosmilitares estabeleceram polticas ambguas, conciliatrias, em que os paradoxos beiravam acontradio: demitir professores que depois eram convidados a voltar, para em seguida afast-losnovamente;invadireocuparuniversidadesqueaomesmotemporecebiammaisrecursos;apreenderlivrossubversivos,mastambmpermitirquefossempublicadosequecirculassem.Comoexplicaroparadoxo de uma ditadura anticomunista que permitiu a contratao de professores marxistas emantevecomunistasemseuscargospblicos,enquantooutroserambarradosedemitidos?Comofoipossvel, no mesmo contexto, o marxismo ter ampliado sua influncia e circulao nasuniversidades?

    Outroselementostradicionaisdapolticabrasileiratambmsefizerampresentesnesseperodo:oEstado autoritrio lanou mo de estratgias de cooptao, e vrios agentes demonstraramflexibilidade em relao a normas e valores dominantes, com tendncia a tangenciar os preceitoslegaiseconfiarmaisnaautoridadepessoal,noslaossociaiseemarranjosinformais.Essasprticaspermitiram ao Estado contar com o talento de profissionais provenientes de campo ideolgicoadversrio,mas tambmpropiciaramo amortecimento da represso, combase namobilizao defidelidadespessoaisecompromissosinformais.Claro,nemtodososservidoresdoregimeestavampredispostosmoderao,enemsempreelafuncionoubem,pois,adependerdocontexto,dirigentesuniversitriosforampunidosporseremconsideradostolerantesdemais.Almdisso,cumprelembrarquemuitaviolnciaocorreunos campi, sobretudonosmomentosde invasopolicial, que tiveramlugarem1968e,commenorintensidade,em1977,paranomencionarosmembrosdacomunidadeuniversitria presos, torturados e mortos. Ainda assim, nas universidades, muitas vezes as vozes

  • moderadas prevaleceram, e os atos repressivos foram temperados comnegociao e tentativas decooptao.

    Comosetratadeanlisespolmicas,comoriscodeosargumentosseremmalinterpretadosoumanipulados nas disputas pelamemria, vale a pena esclarecer a posio do autor. No pretendodefender a ditadura e tampouco atenuar as violncias cometidas naqueles anos, alis sobejamenteconhecidas. Muito ao contrrio. Seria melhor para o Brasil que Goulart tivesse terminado seumandato e que as eleies de 1965 tivessem se realizado. Alm disso, o crescimento econmicoalcanado pelo regimemilitar poderia ser atingido em quadro democrtico, commenores custossociaisepolticos.

    O propsito deste trabalho construir anlises e interpretaes mais atentas ao impacto doregimemilitarnasociedadebrasileira,procurandoiralmdoquejsabemos.Aviolnciapolticafoi uma constante durante o perodo, naturalmente com momentos mais agudos e fases menosviolentas.Segundodadosoficiais, cercadequinhentaspessoas forammortaspeloEstadomilitar emilhares foram torturadas. A represso, porm, foi temperada por jogos de acomodao econciliao,cujoentendimentoindispensvelparaqueseexpliquedeformaadequadaoprocesso,noseudesenrolareemsuaconclusopeculiar.

    NoBrasil,aestratgiaconciliatriatendeasermaismobilizadaquandoosagentesemconflitopertencemselitessociais.Eesteprecisamenteocaso,poisnosmeiosuniversitrios,emgrandeproporo, estavam pessoas originrias das classes mdia e alta, que tinham possibilidade demobilizar ligaes sociais em seu benefcio, no obstante houvessemuitos pagos tambm, ouseja, pessoas sem laos sociais protetores. Esse jogo complexo, e s vezes ambguo, nos sugereanlisemais sutildo impactodoautoritarismonasuniversidades,capazde iluminarprocessosqueno se encaixam no tradicional par represso/resistncia. Houve tambm arranjo entrerepresso/acomodao, represso/negociao e represso/cooptao. Para substituir a simplistadaderesistnciaversuscolaborao,noCaptulo7desenvolve-seumatipologiamaisadequadaparaexpressar as complexas relaes entre o Estado autoritrio e osmeios acadmicos e intelectuais:resistncia,adesoeacomodao.

    No se deve pensar que essa dinmica modernizante-conservadora se desenrolou de maneiralinear.Houvemomentosemqueumdoselementosdoparprevaleceusobreooutro,emcombinaocomplexa e difcil de deslindar. Processo histrico denso, entrecortado, abrupto, marcado porpeculiaridades regionais, ele s pode ganhar inteligibilidade com o olhar distanciado no tempo esensvel aos conflitos, debates e indecises que o permearam.Da a opo por estrutura narrativacomformatodescritivo-analtico,quealternaofoconasduasdimensesprincipais,modernizaoeautoritarismoconservador,buscandocomissoproduzirexplicaosatisfatriaparaoprocesso.

    Assim, no Captulo 1, analisa-se a primeira onda repressiva, que os golpistas chamaram deOperaoLimpeza, comnfaseemprises,demisses, inquritos e sindicncias,bemcomonasintervenesnasuniversidades.NoCaptulo2,oobjetoafacetamodernizadoraque,nosprimeirosanosdo regimemilitar,oscilouentre liberalismoeestatismo,entreomodelonorte-americanoeabuscadesoluoprpria.Seroexaminadasasprimeirasmedidasreformistasadotadaspeloregimemilitareseranalisadaumadesuasiniciativasdemaiordurao,oProjetoRondon.NoCaptulo3,aateno se volta para um tema de grande repercusso pblica no perodo e que segue at hojepolmico:aparticipaonorte-americananosistemauniversitriobrasileiro,sobretudopormeiodaUsaidedosclebresacordoscomoMinistriodaEducao.Oobjetivomostrarainflunciadosamericanosnocontexto,mastambmquestionarrepresentaesexageradassobreopapeldasforasexternas, que acabampor colocar na sombra outros agentes e interesses.NoCaptulo 4 retorna otemadarepressopoltica,comanlisedosefeitosdoAtoInstitucionaln.5(AI-5)nasuniversidades,

  • quesofreramumasegundaondadeexpurgosem1969.Nessapartesoabordadasasaposentadoriascompulsriasdeprofessores,comdadosmaiscompletossobreoquadronacional,eanalisadososefeitos doDecreto n.477 sobre os estudantes.No ltimo segmento desse captulo examina-se umainiciativadoEstadopara formarosvaloresdos jovenseafast-losde ideias radicais:acriaodadisciplinadeeducaomoralecvica.

    NoCaptulo5,ofocopermanecenociclorepressivops-68eanalisa-seotrabalhodasagnciasdeinformaonoscampi,principalmenteasASIs.Explica-secomofuncionavamosmecanismosdecontroleideolgico,emespecialatriagemparacontrataodeprofessoresedepessoalparaoutrasatividades acadmicas. No Captulo 6, a ateno volta ao polo das mudanas implantadas peladitadura no ensino superior. So estudados com mais detalhes a reforma universitria e seusresultados, em particular a expanso das universidades, a criao do sistema de ps-graduao, onovovestibulareareestruturaodacarreiradocente, terminandocomumbalanodossucessoselimitesdessasiniciativas.

    OCaptulo7representaumainflexonaestruturanarrativa,poisneleseconferemaiornfasedimensoanaltica aquidesenvolvida.So retomadas e aprofundadas as reflexes tericas sobreotemadaculturapoltica,comoobjetivodeinterpretareexplicaraessnciaparadoxaldaspolticasadotadaspeladitadura.SoenfocadastambmascomplexasrelaesentreoEstadoautoritrioeaeliteacadmica,permeadasporresistncia,acomodaoeadeso.OCaptulo8abordaadinmicadadistenso e da abertura poltica conduzida pelos militares que culminou no fim da ditadura. Opropsito mostrar como se deu o lento recuo do regime militar nas universidades, processomarcadoporlutaseconflitos,mastambmpornegociaesquederamumtompeculiaraoEstadops-autoritrio.

    Antes de seguir adiante, cabem ainda algumas observaes de carter introdutrio. Primeiro,importa esclarecer que certos temas correlatos histria das universidades so aqui apenastangenciados, sem maior aprofundamento. Assim, no ser abordada a histria do movimentoestudantil nemaquestodaspolticas educacionaisvoltadasparaos ensinosmdio e fundamental;tampouco se far um estudo minucioso das polticas cientficas. Tais temas sero mencionadosapenas quando fundamentais para iluminar aspectos da poltica universitria dosmilitares.O focosoasuniversidadespblicas,sobretudoasfederais,masasituaodealgumasinstituiesestaduaistambmsertratada.Esteestudotemoobjetivoderealizarumasntese,comointuitodeestabelecerquadro compreensivo/analticomais amplo. Em funo da abordagem escolhida, seria impossvelentrar em detalhes e tratar de todas as peculiaridades regionais e locais. A ideia fornecer ummodelodeanliseaseraplicadoaestudosverticaisdecasossingulares.

    Umltimoebrevecomentriosobreasfonteseosacervosutilizados.Aolongodeseisanosdeintenso trabalho foram consultados muitos arquivos e instituies de memria (a lista completaencontra-senaseodeRefernciasbibliogrficas),demodoqueestecomentrioserestringeaosprincipais acervos. O trabalho comeou a ser concebido em 2003-2004, mas as pesquisas seiniciaramem2005,comincursesnosacervoslegadospelasextintasASIsdaUniversidadeFederaldeMinasGerais(UFMG)edaUniversidadedeBraslia(UnB).Nessaprimeiraetapa,tambmforampesquisadosarquivosdealgunsDepartamentosdeOrdemPolticaeSocial(Dops)estaduaisque,pelomecanismo de troca de informaes entre os rgos de represso, guardaram alguns documentosprovenientesdasuniversidades(felizmente,alis,jqueamaioriadasuniversidadesnopreservouesses acervos). Entre agosto de 2006 e julho de 2007, graas a uma bolsa de ps-doutorado doConselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), foram pesquisadosarquivos norte-americanos em busca de documentos diplomticos e da Usaid, o que resultou emcoleta de volumoso material (7 mil pginas), na sua maior parte ainda no utilizado por outros

  • pesquisadores. Outra fonte importante foi o acervo do extinto Servio Nacional de Informaes(SNI), recentemente aberto consulta pblica noArquivoNacional (AN).Nesses arquivos, foramlocalizadas cerca de 2 mil peas documentais (algumas com dezenas de pginas) sobre asuniversidades,contendomaterialinditoericoeminformaes.

    Paranoficarrestritoafontesoficiaiseaoregistrofriodopapel(oudaimagemdigital),foramrealizadascercadecinquentaentrevistascompessoasqueeramestudantese/ouprofessoresnosanos1960e1970,emdiferentescidadeseinstituies.Almdasentrevistasrealizadasexclusivamenteparaeste trabalho, foram consultados tambm alguns depoimentos colhidos por colegas de outrasinstituies. Os testemunhos orais oferecem a perspectiva de quem viveu o processo, agregandoricos detalhes e informaes que ora confirmam, ora contradizem os registros oficiais. Asentrevistas foram fundamentais, mormente para a construo da anlise sobre as estratgias deacomodao desenvolvida no Captulo 7. Referncias inestimveis, portanto, que, no obstante,foramutilizadascomodevidocuidadocrtico,comoderestodeve-seprocedercomqualquerfonteutilizadapelohistoriador.

    Alguns rgos da imprensa foram pesquisados, principalmente a revista Veja, nas ediespublicadas entre 1968 e 1981, e tambm nmeros esparsos de alguns jornais:Correio daManh,ltima Hora, Jornal do Brasil,O Estado de S. Paulo,O Globo e Folha de S.Paulo. No menosimportante,foiconsultadaamplabibliografiadedicadaaotemaeaoperodo,almdeleisedecretosoficiaisdoregimemilitar.

    Emresumo,opropsitoaquicontribuirparaumamelhorcompreensodoimpactodoregimemilitar, cujapresenaainda se fazmarcantenasbatalhasdamemria,nas injustiasqueaguardamreparao e no legado contraditrio da modernizao repressiva e elitista. Esclarecer a maneiracomo o projeto modernizante-autoritrio incidiu sobre as universidades pode ser til para acompreensodoquadrogeraleparaabrircaminhoanovaspesquisas.Omomentopropcioparaestudaraqueledolorosomomentocomodistanciamentocrticopossvel,evitando,aomesmotempo,aseduodaspaixesqueotemadespertaeabuscaingnuadeneutralidade.

    A inteno mostrar o desenrolar ambguo e por vezes contraditrio do regimemilitar, cujaexpressomxima foi amodernizao conservadora.A ambiguidade e a flexibilidade, que abremcaminho para a acomodao e a conciliao, so aspectos-chave da cultura poltica brasileira,encontrveis direita e esquerda, tanto na sociedade quanto no Estado. O regime militar foiinfluenciadotambmporessequadrocultural,eessarealidadecontribuiuparaamorteceraviolnciapoltica em determinadosmomentos, envolvendo certos agentes sociais em jogos de acomodaocomoEstadoautoritrio.importantedestacarqueaambiguidadeeaflexibilidadesemanifestaramnosdoislados,tantodapartedoslderesintelectuaisquantodosagentesestatais,emjogodemodupla,implicandobenefciosmtuostambm.

    Analisar esse processo levando em conta sua complexidade e seu carter paradoxal indispensvelparaaadequadacompreensodosignificadodoregimemilitar,fugindo-sedeimagenssimplistase,exatamenteporisso,confortadoras.Maisainda:esforosignificativoparaasuperaodolegadoautoritrioe,quemsabe,dafacetanegativadatradioconciliatrianacional.

  • 1.OPERAOLIMPEZA

    VITORIOSOOGOLPE, e antesqueosnovosdonosdopoderdefinissemque rumosdariamaopas, oexpurgodosderrotadosjerasuaprimeirapreocupao.Depoisdossindicatosedasorganizaesde trabalhadores rurais, as instituies universitrias foram os alvos prioritrios das aesrepressivas. Na viso dos vitoriosos de 1964, as universidades haviam se tornado ninhos deproselitismodaspropostas revolucionriasede recrutamentodequadrosparaasesquerdas.Ali seencontrariaumdosfocosprincipaisdaameaacomunista,operigoiminentedequeoBrasildeveriaser salvo, e que mobilizou muitos, sobretudo nas corporaes militares, a se levantar em armascontra o governo Goulart, acusado de tolerar ou, pior ainda, de se associar aos projetosrevolucionrios.

    O governo de Jango gerava insatisfao e insegurana por outras razes tambm, como asituaoeconmicaesuamanifestaomaiscrtica,aespiral inflacionria,que,noinciode1964,geroundicesdeaumentosdepreosnuncaantesvistos.Otemadacorrupo,presentenapautadosgruposdedireitadesdeosanos1950,tambmsensibilizoualgunssetoresgolpistas,principalmenteosprpriosmilitares,masnotodososapoiadoresdomovimentode31demaro,poisalgunsdoslderespolticoseramnotriosmalversadoresdedinheirospblicos.

    Osprincipaiselementosdeflagradoresdogolpetinhamnaturezapoltica:omedo,ainseguranaea reaoaoprocessodeesquerdizaooudecomunizaosupostamenteemcursonopas.Asrepresentaes anticomunistas, que foram dominantes nos discursos favorveis ao golpe,expressavamotemoremrelaoaosmovimentossociaisnocampo(invasesdeterra,demandasdereformaagrrianamarra),foracrescentedossindicatos,expressanasgreves,politizaodossubalternosdasForasArmadaseesquerdizaodosjovensuniversitrios.Almdeexpressaremomedo difuso despertado pelo aumento da influncia da esquerda, tais representaes tinham avantagem de colocar o problema em linguagem compreensvel para a sociedade, h muitoacostumadaaouvirdiscursos sobreoperigovermelho.1 Por outro lado, tal linguagempermitiaconferir mais gravidade ao quadro poltico, inscrevendo a situao brasileira nos parmetros daGuerraFria.

    Desdeofimdosanos1950asuniversidadeshaviamsetornadolugarespropciospropagaodos valores de esquerda, sobo influxode eventosmundiais aRevoluoCubana, as guerras delibertao nasia e nafrica e de transformaes no quadro nacional crescimento urbano eindustrializao, expanso e organizao dos movimentos sociais, como sindicatos, entidades decamponeses e de favelados. As instituies universitrias sofreram mudanas nesse perodo,passandodeacanhadasformadorasdebacharisainstituiesquecresciamedemandavamreformas.Houve um notvel aumento do nmero de estudantes nos vinte anos seguintes Segunda GuerraMundial: eram 30 mil matriculados em 1945 e 142 mil em 1964. Os estudantes universitriostornaram-se grupo socialmais visvel e influente, principalmente porque concentrados em algunscentrosurbanos.

    Noinciodosanos1960,aUNEerainstituioinfluentenodebatepoltico,sobretudonoperododo governo Goulart, que acolheu algumas de suas reivindicaes e atribuiu cargos oficiais amilitantes egressos de organizaes estudantis. Jovens universitrios participaram de vriasatividadesvoltadasparaamobilizaopopularnaqueleperodo,comocampanhasdealfabetizao,decriaodesindicatosrurais,ouorganizaodapopulaofaveladadosgrandescentros.2Alguns

  • dosconflitosentreesquerdaedireitanopr-64tiveramcomopalcoasfaculdades,eissoestavabemfresconamemriadosprotagonistasdogolpe.

    Asrepresentaesanticomunistashegemnicasentreosvitoriososde1964distorciambastanteosobjetivos dos comunistas e sobretudo sua real capacidade de influenciar os acontecimentos.Mas,emboradistorcidos fossepor interesse emmanipular, fossepor autoengano,poisomedomalconselheiro,essesargumentosnoeramabsurdos,poisoscomunistasdetinhamfaixadeinflunciaimportanteentreaslideranasestudantis.Noobstante,nomovimentoestudantil,ogrupomaisfortevinculava-se esquerda catlica, a chamada Ao Popular (AP), que invariavelmente ocupava apresidnciadaUNE,quasesemprecomumcomunistanavice-presidncia.Oscristosdeesquerdavinhampassandoporprocessoderpidaeintensaradicalizaodesdeosanos1950,abandonandoaposiodecombateaoscomunistasparasealiaraeles.Empouco tempocomearamacriticarosmilitantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) por excesso de moderao. No de admirar,assim,queadireitapercebesseocomunismocomoforaavassaladoraentreosestudantes.Emborahouvesse tambm grupos estudantis de direita, a maioria das lideranas falava em revoluo esocialismo,eficavadifcildistinguirentremarxistas(haviavriosgruposalmdoPCB)esocialistascristos.MesmoospoliciaisdosdepartamentosedelegaciasdeOrdemPolticaeSocialatentonicoaparatodoEstadodedicadorepressopolticasentiamdificuldadeemfazeradistino;porvezes,ossocialistascristospareciammaiscomunistasqueoscomunistas.

    Entre os professores universitrios a situao no era a mesma, e as ideias de esquerda noencontravam tanta receptividade. Nos meios acadmicos eram fortes os laos com valoresconservadores, emalguns casos at coma extremadireita.Emgeral as faculdadesdedireito edemedicina eram baluartes conservadores, apesar de certas excees, e, de maneira geral, o corpodocente pendia politicamente para o centro. Havia docentes com opinies de esquerda, alguns atcommilitncianoPCB,ativaoupregressa.Ehaviatambmpequenogrupodejovensprofessores,nafaixaetriaentreosvinteeostrintaanos,quepartilhavaosideaisdomovimentoestudantil,doqual,alis,eramegressos.Masosdocentessensveisaoapelodaesquerdarepresentavamfrancaminorianos meios universitrios antes de 1964. Como se ver, paradoxalmente, esse quadro iria mudarduranteosanosdoregimemilitar.

    Sendo essa a situao nas universidades, sobretudo tendo em vista o perfil da militnciaestudantil,fcilcompreenderporqueelasforamtovisadaspelarepresso.Nomomentodogolpe,osagentesrepressivosjtinhamseusalvospreviamentedefinidos.ElesmantiveramosmilitantessobvigilnciamesmoduranteoperodoGoulart,quandoaorientaoemalgunsestadoseemmbitofederal era deixar a esquerda em paz. Em 1964, as operaes de represso tiveram comoprotagonistas principais as foras policiais (civis emilitares),mas tambm algumas unidades dasForasArmadas,quefizeramseubatismodefogoematividadesaquesededicariamcomafinconos anos seguintes. Em certos lugares, os agentes pblicos contaram tambm com o auxlio demilitantes de grupos de extrema direita (Comando de Caa aos Comunistas CCC, integralistas),alguns dos quais montaram sua prpria estrutura de coleta de informaes durante o governoGoulart.

    A expresso Operao Limpeza foi utilizada por agentes do Estado e seus apoiadores paraexpressar a determinao de afastar do cenrio pblico os adversrios recm-derrotados comunistas,socialistas,trabalhistasenacionalistasdeesquerda,entreoutros.Ametforadalimpezaimplicava tambm punio para os corruptos,mas, inicialmente, o alvo efetivo eram os inimigospolticos. S quando estes comearam a escassear, e tambm quando ficou claro que a ameaarevolucionria fora superdimensionada, as aes repressivas voltaram-se com mais intensidadecontraacorrupo.

  • Osregistrosdosdiplomatasnorte-americanosematividadenoBrasil,napoca,fornecemdadosteis para acompanhar o desenrolar do que chamaram Operation Clean-up. Trata-se de fontesignificativa,porqueosdiplomatasobtinhaminformaesprivilegiadasdecontatosnapolciaenasForasArmadas, relaes cultivadas desde anos anteriores, graas aos convnios e programas detreinamentoparapoliciaisemilitares.3Osamericanosproduziramestimativasaproximadassobreasprisesrealizadasnomomentodogolpe,entretantoalertaramWashingtonqueasinformaeseramesparsasepoucoconfiveis.A imprecisodosdadosdevia-seausnciadecoordenaonacionaldasoperaesrepressivas,comandadasnoplanoregionalpordiferentesforaseautoridades,enemoMinistrio da Justia era capaz de dar informaes exatas. Com base nos dados colhidos pelaembaixadaealgunsconsulados,pode-seestimarentre20mile30milonmerodepessoasdetidasnomomentodogolpe.Amaioriadospresoslogofoisolta,apsbreveinterrogatrio,epartedelesficou livre de qualquer investigao, enquanto outros tantos foram liberados com instrues deaguardarinquritoseeventuaisprocessosjudiciais.Emmaiode1964estimava-sequealgoentremile3milpessoaspermaneciamencarceradas.4

    No h como saber compreciso quantos universitrios e professores figuraramnas listas depresos,masonmerodevetersidoexpressivo.Algunslderessepropuseramalutaremdefesadeseus ideais e saram de casa, por vezes armados, dispostos a enfrentar os gorilas. E ocorreramtentativasderesistnciaemalgumasescolas.Porexemplo,umafrustradamanifestaoestudantilnaFaculdade de Medicina da Universidade de So Paulo (USP) e a ocupao de prdios da entoUniversidade do Rio Grande do Sul (URGS, hoje Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS)edaUniversidadedoBrasil (UB,atualUniversidadeFederaldoRiode JaneiroUFRJ).Valelembrar tambmquealgunsdosmortosnosdiasdogolpeeramestudantes,comodois jovenssecundaristasbaleadosemRecifeapsprotestooriginriodaEscoladeEngenharia.

    Entretanto, como as tentativas de resistncia depressa se esboroaram e tornou-se evidente aderrota total, logo se abandonou qualquer pensamento de resistncia em favor de estratgias deevaso.Tantomais porque apareciamboatos aterradores sobre o destinoquepoderia aguardar osmilitantes de esquerda. No Rio de Janeiro, por exemplo, circularam histrias sobre bandos deanticomunistasqueestariamcaandoematandoseusdesafetos.5Comtantatensonoar,houvequemnoconseguissedormirnanoitedodia31,etampouconassubsequentes.

    Consuladoseembaixadasestrangeirostornaram-seorefgiopreferidodemuitosdosquefugiampriso,naexpectativade sairdopas.Masaopo logoseesgotou,pela limitadacapacidadedeabrigo nas representaes diplomticas dispostas a receber refugiados e tambmpelo aumento davigilnciapolicial.Aalternativadamaioriafoiseesconderemcasadeamigosouparentes,sempreque possvel longe dos centros urbanos. Mas sair das grandes cidades no era fcil, j que nasestradas de acesso a muitas delas foram instaladas barreiras com a exigncia de salvo-condutoexpedido pela polcia. Procurando livrar-se de provas de qualquer inclinao esquerdista, outracautelaadotadaeraqueimardocumentoseocultarlivros,sobretudoosdeorientaomarxista.Houvecasos de livros enterrados, enviados a parentes insuspeitos, e mesmo de pessoas que, em totaldesespero,queimaramnososdocumentos,comotambmoslivros.6

    Apreocupaoemdesfazer-sedos livroscomprometedoresnoera injustificada,pois se sabiaqueospoliciaissemprevarejavamasestantesdossuspeitosembuscadeevidnciasdesubverso.s vezes a operao acabava em depredao dos livros, como ocorreu em algumas bibliotecasparticulares.A propsito, essas prticas policiais geraram timas oportunidades de stira poltica,uma das primeiras armas de ataque contra as foras de represso, pois o humor era dos poucosrecursos disposio dos derrotados. Como os agentes da ordem nem sempre conseguiamidentificar livros subversivos, s vezes apreendiam textos andinos, apenas em razo da capa

  • vermelha ou de um sobrenome estrangeiro. Com isso, ofereceram prato cheio ao talento dehumoristas e chargistasdeoposio, comoStanislawPontePreta (pseudnimodeSrgioPorto) eJaguar,quenoperderamaoportunidadepara troardasuposta faltade intelignciadas forasdaordem.7

    Osexpurgosdelivrosnoselimitavamsresidnciasparticulares,atingiamtambmbibliotecasde instituiespblicas,8mas foram principalmente afetados os estoques de livrarias e editoras. interessantemencionarqueepisdiosdeapreensodelivrosgeraramtensesnoscrculosdepoder,poiscontrariavamocarterdemocrticodomovimentode1964,lanadosupostamenteparasalvaropasdototalitarismodeesquerda.OprpriopresidenteHumbertodeAlencarCastelloBrancoteriareclamadoaoministrodaGuerra,ArthurdaCostaeSilva,dosoficiaisqueseprestavamaopapeldeexpurgar livros.9 A inquietao de Castello Branco reveladora das ambiguidades inerentes aoregimemilitar brasileiro, quedesdeo inciooscilou entre assumir-se claramente comoditadura erespeitar alguns preceitos das instituies liberais. Outras manifestaes das ambiguidades e dosparadoxosdoregimemilitarirosurgiraolongodestaspginas.

    Apreocupaoemevitarprticasdiscricionriassedevia,emparte,aconvicesideolgicasdemembrosdoscrculosdopoder,oudegruposqueosapoiavam,algunsdosquaisseconsideravamrevolucionrios liberais, que entendiam 1964 como um movimento em defesa da liberdade. Acoerncia nem sempre foi o forte demuitos desses liberais, que por vezes aprovavammedidasdiscricionrias quando era de seu interesse. Ainda assim, verdade que, do incio ao fim de suavigncia,oregimemilitarcontoucomaliadosquefizerampressoparaatenuarasaesautoritriasmais contundentes. Por outro lado, o impulso para conter a violncia poltica doEstado provinhatambm de clculos pragmticos, por temor dos prejuzos causados pela repercusso negativa noexterior.Amaiorpreocupaoeranodesagradarograndealiadoeaprincipal fontedeapoiodonovo regime, os Estados Unidos, cuja administrao democrata concordava com certa dose deautoritarismo,masdeprefernciatemperadacomalgumrespeitosgarantiasliberais.Almdisso,oPoder Judicirio tambm contribuiu para impor limites represso nos anos iniciais do regimemilitar,porexemplo,aodarganhodecausaaeditoraselivrariasqueacionavamaJustiacontraaapreenso de livros10 e ao determinar a libertao de presos detidos de maneira arbitrria. Dequalquermodo,osesforosmoderadoreseramcontrabalanadospelasanharepressivadealgumaslideranasmilitares,senhoresdasarmasecapazesdeimporsuavontadeemcertosmomentos.

    A violncia contra intelectuais, estudantes, artistas e livros gerou uma onda de denncias emjornaisnoafinadoscomosrumosautoritriosdonovoregime,sobretudooCorreiodaManheltimaHora.11Aexposiopblicadeinformaessobreprises,atosdecensuraeoutrostiposdeviolnciacometidosporagentesestataiscausoudesconfortoeminoupartedalegitimidadealmejadapela nova ordem. Nesse contexto, foi cunhado e encontrou ampla circulao o qualificativoterrorismo cultural, utilizado originalmente pelo intelectual catlico Alceu Amoroso Lima, emartigonoCorreiodaManhemmaiode1964.Aexpressoeraadequadaparaexprimirasituaodearbtrio e desrespeito aos direitos individuais, em que a represso ao comunismo assumiadimenses absolutamente desproporcionais e contornos maldefinidos. O termo foi adotado deimediato em crculos democrticos e de esquerda, e inspirou artigo de NelsonWerneck Sodr,12publicadoem1965naRevistaCivilizaoBrasileiraperidicoquerepresentavapontodeencontroecumnicoda intelectualidadedeesquerdanosprimeirosanosdoregimemilitar.Noartigo,Sodrfazia longo e detalhado inventrio das aes repressivas contra os intelectuais com base emcompilao de textos da grande imprensa. A expresso terrorismo cultural fez tanto sucesso queacabou aparecendo em lugar improvvel, na correspondncia interna dos diplomatas norte-americanos,queautilizaramparadescreveraesrepressivasporelesconsideradasexcessivasouinadequadas.13

  • Voltando s prises, difcil, como j foi dito, reunir dados precisos sobre o quantitativo depresos ligados aosmeios acadmicos.Os registros disponveismostramque houve detenes portodaparte,masdodestaquesfigurasmaisconhecidasoupertencentessinstituiesuniversitriasdemaiorporte.Assim,attulodeexemplo,emSoPauloforampresosMarioSchenberg,FlorestanFernandes, Isaas Raw, Warwick Kerr, Luiz Hildebrando Pereira e Thomas Maack; em BeloHorizonte,SimonSchwartzman,MarcosRubinger,SylviodeVasconcellos,HenriquedeLimaVaz,Celson Diniz; em Braslia, Perseu Abramo, Jos Albertino Rodrigues, Edgar Graeff, taloCampofiorito, Jos Pertence, Hlio Pontes, Eustquio Toledo, de um total de treze professoresuniversitriosencarcerados.

    ParaoRiodeJaneiro(napoca,estadodaGuanabara),hescassosregistrossobreprofessorespresos, tanto na memria dos contemporneos quanto na imprensa da poca, o que estranho,porqueacidadeeraocentropolticodopas.OprofessorIsnardTeixeira,daEscoladeEnfermagemdaUB, foipresonosprimeirosdias, assimcomoo fsicoPlnioSussekind. Jo conhecido fsicoJosLeiteLopesfoidetidoalgunsmesesdepois,emagosto,quandotentavarequererseupassaportenapolciacarioca.Provavelmentemuitosintelectuaiscariocasvisadosconseguiramseevadir,fosseporque a polcia priorizava lideranas polticas e operrias, fosse porque ali as foras golpistasdemoraram mais que em outros centros a controlar o poder, dando mais tempo de fuga a seusdesafetos que, noRio de Janeiro, dispunhamda opode asilo diplomtico.14NoRecife, foramdetidos Paulo Freire, Antnio Baltar e Luiz Costa Lima; em Porto Alegre, Armando TemperaniPereira, professor e deputado pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Alguns professoresnordestinos foram confinados em Fernando de Noronha, como o paraibano Francisco de AssisLemosdeSouza.

    Os lugares de deteno eram delegacias, penitencirias e quartis,mas houve casos de naviostransformadosemprisotemporria,indciodafaltadeespaoparaacolherosdetidosdaprimeiraondarepressiva.NabaadeSantos,ovelhonavioRaulSoaresabrigoualgunsintelectuaispaulistas,ao lado de centenas de operrios e trabalhadores.Na baa deGuanabara, trs embarcaes foramusadascomounidadesdedeteno,entreelasoPrincesaLeopoldina.Partedasprises foi feitadeimediato,masoutraspessoassforamdetidassemanasdepois,tentandofugirdapolcia.Algunssecansaram desse jogo de esconde-esconde e voltaram para casa, a fim de aguardar a priso,principalmentequandoficouclaraainexistnciaderiscodeumbanhodesangue.15

    Depoimentosdealgunsprofessorespresosem1964informamqueaviolnciafsicafoilimitada,emaisintensaaviolnciapsicolgica.Daspessoasentrevistadasparaestapesquisa,amaioriadisseno tersofridoabusosfsicosnempresenciadonadadognero,salvoalgunsbofetesegolpesdecaratrelatadosemBeloHorizonte.16Aviolnciapsicolgicaocorreuemcasoscomoododeputadoe professor gachoArmandoTemperani Pereira,mantido nu em cela solitria durante trs dias,17tratamentosemelhanteaoexperimentadoporalgunspresosdaUnB.Asituao iriamudarbastantedepoisde1968,comoaumentodaviolnciaeousomaisindiscriminadodatortura,queiriaatingirtambmalgunsprofessoresuniversitrios.

    Comopassardosdias,asprisesforampaulatinamenteesvaziadas,sobretudodeintelectuais,jque os operrios tiveram, em geral, tratamentomais duro no que toca ao tempo de deteno e violncia. Uma vez fora da priso, a preocupao dos libertados passou a ser os inquritos emandamento,aindaumaameaaliberdade.Algunspoucospermaneceramnacadeiapormaistempo,comoLuizCostaLima (doismeses) ouLuizHildebrando (trsmeses),mas o recordista entre osprofessores parece ter sido Marcos Rubinger, da Universidade de Minas Gerais (UMG, atualUniversidadeFederaldeMinasGeraisUFMG),mantidonocrcereatoNatalde1964.Segundooconsuladonorte-americano,eleusouumestratagemaparasairdaprisoedopas:obteveindultode

  • Natalparavisitarafamlia,comocompromissodevoltarcadeianodia28,efugiuparaoRiodeJaneiro,encontrandoasilonaembaixadadaBolvia.18

    Aviolncia deflagrada pelo golpe visou, commais intensidade, s lideranas estudantis e suasentidades, consideradasmais comprometidas pela infiltrao comunista que o corpo docente. Arepressomaisagudacontraestudantesficousimbolizadanoepisdiodedepredaoeincndio,natardedodia1deabrilde1964,noRiodeJaneiro,doprdiodaUNE,objetodediodosgruposdedireita e fonte de preocupao constante dos governos militares, que acabaram por proibir seufuncionamento.TambmnoRiodeJaneiro,oConselhoUniversitriodaUBdissolveutrsdiretriosestudantis (Filosofia, Direito e Engenharia), por acusao de indisciplina grave durante osacontecimentosquelevaramRevoluo.Onmerodeestudantespresosfoibemsuperioraodeprofessores, e suas entidades sofreram interveno por todo o pas. Para fazer a limpeza dosrgos estudantis, o poder militar nomeou interventores em vrios estados, em geral estudantesdemocratas,ouseja,alinhadosnovaordem.NoRioGrandedoSul,porexemplo,aFederaodos Estudantes ficou sob interveno durante quarenta dias, quando os militares entenderam serpossvel sair de cena, j que haviam livrado a entidade da malfica influncia comunista, naspalavrasdocomandantedoIIIExrcito.19

    Dezenasdeestudantesforamexpulsosdasuniversidadeseoutrostantosabandonaramosestudosparafugirrepressoouparadedicar-seinteiramentesatividadespolticas.Algunssconcluramagraduaonoexliooudepoisdaaberturapoltica.Umdosepisdiosmaisconhecidosdeexclusode estudantes ocorreunaFaculdadeNacional deFilosofia (FNFi) daUB, que atrara o rancor dosgruposconservadorespelaforadamilitnciadaesquerdaestudantilnosanosanteriores.AFNFieraomaiorbaluartedoscomunistasnosmeiosuniversitrios,porissodificilmentesairiainclumedoprocessodeexpurgo.Dezenoveestudantesforamexcludosdafaculdade,acusadosde infraoaosregulamentosdainstituioematividadespolticasrealizadasnoperodopr-golpe.20

    OutrogrupodeestudantesmuitovisadopertenciaaoInstitutoTecnolgicodaAeronutica(ITA),emquefuncionava,igualmente,basesignificativadoPCB.Nosanosanterioresaogolpe,ogrmioestudantilrealizoueventoscomprofessoresmarxistas,comoPaulSingereJosArthurGiannotti,e,iniciativa mais comprometedora ainda, organizou atividade com o candidato a deputado MarioSchenberg,nacampanhaeleitoralde1962.Apsogolpe,dozeestudantesforamdesligadosdoITAeamargarampriso,algunsdelesporquatromeses.Curiosamente,oslderesdabasedoPCBnoITAorientaramosmilitantesanofugir,poisacreditava-sequeseriamtratadoscomooficiaisepoderiamusaraprisoparadenunciaraditadura.21Estavamenganadosnasduashipteses

    Almdaspriseseexpulses,opoderrevolucionriosemanifestoudeoutramaneiramarcantenas universidades. Refiro-me s invases e aos choques ocorridos no momento do golpe. NaFaculdade de Filosofia da USP, tambm bastante visada pelas foras da ordem, houve conflito equebradeira quando o Dops invadiu o local. Os policiais arrombaram portas a pontaps,interromperam aulas para prender estudantes, rasgaram papis e empastelaram os equipamentosgrficosdogrmioestudantil.22AlgunsestudantesprocuradospelapolciafugirampelosfundosdoclebreprdiodaruaMariaAntnia,masconstaqueoutrosenfrentaramogrupodeinvasoresquecontavacomoauxliodemilitantesdoCCC,sendosurradoselevadosparaoxadrez.23

    No que toca invaso de universidades em 1964, a situaomais dramtica foi a da UnB. Ocampus foi transformadoemcenriodeguerra, comocupaopor tropasdaPolciaMilitar (PM)mineira e do Exrcito, de armas em punho. Vrios professores e estudantes foram presos, muitoemboraalgunsdosmaisprocuradosjtivessemseevadido.Partedeleslogofoiliberada,enquantooutrospermaneceramdetidospormaistempo,eminstalaesmilitares,submetidosainterrogatriose humilhaes.24 Testemunha dos acontecimentos, o professor Roberto Salmeron elaborou relato

  • vvidosobreaquelaqueseriaaprimeiradeumasriede invasessofridaspelaUnB.Ossoldadosinterditaram a biblioteca procura de textos subversivos. Entre os livros retidos constavam Overmelhoeonegro, deStendhal, eOcrculo vermelho, deConanDoyle.Osmilitares ocuparam ocampusdemaneiraostensivaporduassemanas.

    O tratamento violento dispensado UnB explica-se pela imagem que a jovem universidade(fundada em 1962) tinha nos meios conservadores. Ela era considerada um antro de comunistasreunidospelomarxistaDarcyRibeiro,umdeseusfundadores,comoobjetivodedesencaminharajuventude brasileira. De fato, entre os professores contratados pela UnB havia gente de esquerda,incluindo alguns intelectuais ligados ao PCB, como Oscar Niemeyer, Claudio Santoro e FritzTeixeiradeSalles,porexemplo.Porm,paraosdefensoresdoprojetodauniversidade,apresenadeprofessores de esquerda era coincidncia, e no fruto de um plano perverso. Haveria umaconvergncia entre os fatores juventude, simpatia por reformas sociais e entusiasmo pelo projetoacadmicoarrojadodaUnB.25Dequalquerforma,aimagemdeninhodesubversoerafrancamenteexagerada,poisamaioriadosprofessoresnotinhamilitnciapoltica.OsreceiosqueaUnBgeravadeviam-se,emparte,ousadiaeaudciadoseuprojeto,poisforaplanejadaparaservirdepontadelanaparaareformadasuniversidadesbrasileiras.

    Outrarazoparamereceraatenoespecialdasforasderepresso:situadanacapitalfederal,aUniversidade de Braslia tinha a vocao de atrair estudantes de todo o pas; por isso, poderiairradiar ideias e comportamentos subversivos. As ambies iniciais do projeto da UnB foramabortadaspelassucessivascrisespolticasalivivenciadasnosanosseguintes,poiselaseguiunamirados rgos de segurana. Entretanto, paradoxalmente, parte da sua concepo original seriaaproveitadapeloprprioregimemilitarnareformaimpostasuniversidadesem1968.

    Namaioriadasuniversidades,asaulasforamsuspensasemdecorrnciadasoperaespolicial-militares.Aproximadamente duas semanas aps o golpe, quando a poeira comeou a baixar, asaulas foramretomadas, semquesesoubessequemestariapresente,quemaindaestavaemfugaoupreso.Orecomeodasaulas foiacompanhadopordemonstraesdonovopapel reclamadopelosmilitares,odetutoresdavidauniversitria.NaUMG,porexemplo,ogeneralresponsvelpelareaeprotagonista destacado do golpe, Carlos Lus Guedes, foi consultado pelo reitor sobre aconvenincia do retorno das aulas. Em tom imperativo, Guedes respondeu que era favorvel aorecomeodasaulasnodia13deabril.26

    NaFNFi,asaulasrecomearampelamesmapoca,eopodermilitartambmsefezpresente,edemaneiramaisostensiva: soldados ficaramportada faculdadeporalgunsdiasapso retornodasatividades,situaoquefoiretratadaemchargedojornalltimaHora.Nessequadro,evidentemente,instaurou-seumclimade tensoe incerteza,eosestudantesdeesquerdaaindapresentes,queantesdavamotompolticodafaculdade,adotaramposturadiscreta,tendodetoleraranovadesenvolturadeestudanteseprofessoresdedireita.27

    Entretanto, a retomada das aulas e o esboo de normalizao no significavam o fim doexpurgo. Na verdade, ele estava apenas comeando. Os ministros da Educao nomeados pelosmilitaresprimeirooreitordaUSP,LusAntniodaGamaeSilva,queficouapenasduassemanas,e depois o reitor da Universidade Federal do Paran (UFPR), Flvio Suplicy de Lacerda, quepermaneceria no cargo por cerca de dois anos , em seus discursos inaugurais, deixaram clara aintenodefazeralimpezanareadoMinistriodaEducao(MEC),emsuaspalavras,parasanearocomunismodasinstituiesresponsveispelaformaodajuventude.28

    Amenoaosdoisprofessoresuniversitriosquesetornaramministrosdedestaquenoregimemilitar (Gama e Silva seria depois o titular da Justia na gesto de Costa e Silva) e ficariamtristemente famosos por seus atos no poder, remete a tema fundamental, cuja omisso deixaria o

  • quadroincompleto.precisodestacarossetoresacadmicosqueapoiaramaintervenomilitarnasuniversidades,assimcomonosmeiosculturais,equeforneceramquadrosparaoEstadoautoritrioao longo dos anos seguintes. Se entre as esquerdas o golpe foi recebido com frustrao e dio,outrossegmentosdacomunidadeuniversitriareagiramcomalvioeentusiasmo.Naverdade,houvegrandeapoioderrubadadeGoulartentreprofessoreseintelectuais,que,afinal,erammembrosdosgrupossociaisatemorizadospelosriscosdecomunizao.Entreosestudantes,emboraaesquerdafossemuito influente, havia tambm quem seguisse a orientao de lderes conservadores.Dessesgrupos saram os interventores nas entidades estudantis, assim como os lderes dos rgosdemocrticosqueogovernotentoucriar.

    O expurgo nos meios universitrios resultou de tenses acumuladas no perodo do governoGoulart,quando sedefrontaram lideranas intelectuaispertencentesa campos ideolgicosopostos.Em algumas situaes, as disputas poltico-ideolgicas se combinaram com conflitos internos sinstituies,mobilizando tambminteressespessoais.Casoexemplare ilustrativodessasituaosedeu em Pernambuco, com as disputas em torno dos projetos culturais da Universidade do Recife(atualUniversidadeFederaldePernambucoUFPE).Comosesabe,asforasdeesquerdaagrupadasemtornodogovernadorMiguelArraeshaviamsetornadobastantepoderosas.Menosconhecidaamobilizao dos grupos de direita (conservadores e liberais), cuja militncia antiesquerdistacontribuiuparacriarumclimapolticointensamentepolarizado.EaUniversidadedoRecifefoiumdospontosfulcraisdessesembates.

    NoreitoradodeJooAlfredoCostaLimafoiestabelecidooServiodeExtensoCultural(SEC),dirigidopeloprofessorepedagogoPauloFreire.EntreasatividadesdoSECdestacavam-seaRdioUniversitria,acampanhadealfabetizaoeumperidico,arevistaEstudosUniversitrios.Emmeio radicalizao que antecedeu o golpe, o projeto extensionista da Universidade do Recife foielemento-chavenaspolmicastravadasnacidade,comalideranadocampoanticomunistaocupadapor Gilberto Freyre. O autor de Casa-grande & senzala assumiu a frente dos intelectuaispernambucanosfavorveisderrubadadeGoularteconduziucampanhacontraoreitor,acusando-odepermitirinfiltraocomunistanainstituio.OprincipalveculofoiacolunadominicalpublicadaporFreyrenoDiriodePernambuco, emque eleprovocava as esquerdas favorveis aArraes e aGoulart. Nos meses anteriores ao golpe, a Recife letrada ficou dividida entre os apoiadores deGilberto Freyre e os comunistas do SEC. A partir de abril de 1964, o projeto cultural daUniversidadedoRecifeseriadestrudo,eosresponsveisdemitidosouaposentados.29

    AssimcomonoRecife,emoutrosgrandescentrosurbanoseuniversitrioshavia intelectuaiseacadmicos emdisputa aberta contra a esquerda, prontos a apoiar uma intervenomilitar que oslivrasse dos adversrios. Uma lista completa seria extensa, mas possvel citar exemplos deprofessores universitrios e outros intelectuais que serviram de esteio ao novo regime: EremildoVianna, RaimundoMuniz deArago,DjacirMenezes, Francisco de Paula Rocha Lagoa, ZeferinoVaz,AntonioDelfimNetto,RoqueSpencerMaciel,LusAntniodaGamaeSilva,AlfredoBuzaid,Esther Ferraz,Manuel Nunes Dias. Os nomes citados so do eixo Rio-So Paulo, mas, pelo pasafora, naturalmente, muitos outros deram sua contribuio ao regime militar, fosse em cargosgovernamentais,fosseempostosacadmicos.

    Houvequemapoiasseostensivamenteogolpe,comparticipaoematividadesconspiratriasouem atos pblicos contra o governo Goulart, a exemplo de Zeferino Vaz, professor da USP eautoridadesanitriaqueentrouemchoquecomomovimentosindicaldareadesade,umadesuasmotivaesparalutarcontraos janguistas.30Outrosoptaramporposiodiscretaeaguardaramosacontecimentos,aderindoquando jnohaviamais riscos. JoprofessorEremildoViannaentrouemcenaliderandooperaesrevolucionriasemcolaboraocomapolciacarioca,aocomandar,

  • frentedecivisarmados,aocupaodasinstalaesdaRdioMEC,rgodirigidoporsuacolegaedesafeta,aprofessoraMariaYeddaLinhares.AlicomeouacarreirarevolucionriadeEremildoVianna,queembreveprotagonizariaoutrosepisdiospolmicos.Certosapoiadoresdaditaduranasuniversidades tinham perfil mais moderado, como Muniz de Arago, professor e pesquisadorrespeitadoquetambmparticipoudacampanhacontraGoulart.Noseucaso,havialigaesprviascomosmeiosmilitares,poiseleforaalunodecolgiomilitaretinhaumirmogeneral,bemcomoconexes comaEscolaSuperior deGuerra (ESG), da qual foi palestrante.Apso golpe,Aragoassumiucargosnareaeducacional,comoaDiretoriadeEnsinoSuperiordoMEC(DES/MEC),epassoualgunsmesesdeinterinidadecomoministrodaEducao,entreofinalde1966eoinciode1967,quandoassumiuareitoriadaUFRJ.31

    Humaevidnciaeloquentedoapoioaogolpenosmeiosacadmicos.Emcertasinstituies,osprofessoresseentusiasmaramcomavitriadaRevoluoapontodeaprovarmoesdeapoionosrgoscolegiadosuniversitrios.Muitascongregaesdefaculdadesaprovarammoesdessetipo,comoadoConservatrioMineirodeMsica(atualEscoladeMsica)daUMGeadaFaculdadedeMedicinadaUSP.Otextopublicadopelosprofessoresdemsicamineirosnodia14deabrilde1964dizia: A Congregao resolve aprovar votos de aplauso e de irrestrita solidariedade s ForasArmadas e autoridades civis, pela restaurao das franquias democrticas em nossa Ptria e pelarestituio da tranquilidade e do sossego famlia brasileira. Namesma instituio, o ConselhoUniversitrio aprovou Moo de aplauso Revoluo, apesar da oposio do reitor.NaUSP, oapoiodogrupomajoritriodaFaculdadedeMedicinaeraprevisvel,poisaliseencontravaumdosmais fortes ncleos da direita universitria.Na verdade, asmanifestaes de apoio empolgaram amaioria das lideranas acadmicas na Universidade de So Paulo, e, ao que parece, a nicacongregaoaseabsterdetalgestofoiadaFaculdadedeFilosofia.32

    Entreosapoiadoresdogolpe,importanteressaltar,haviamuitosquenodesejavamaditadura,apenas o afastamento de um governo considerado esquerdista demais. Tampouco eram todoscontrrios realizao de reformas sociais, que, a propsito,muitos dos chefes do novo regimeprometiamfazer,desdequerespeitadososvaloresdemocrticosecristos.Partedessesegmentomoderado logo perderia o entusiasmo pela interveno militar e, nos anos vindouros, iriaengrossarasforasdeoposio.Porm,entreprofessoreseestudantes,haviatambmpartidriosdogolpe que pertenciam extrema direita, como (ex-)integralistas e outros tipos de anticomunistasradicais.

    Dointeriordadireitauniversitriasarammuitasdasdennciascontracolegasdeesquerda,queforam apontados polcia ou s reitorias na expectativa de v-los atingidos pela limpeza. Nosarquivosseencontramdocumentosdessanatureza,comocartasdeprofessoresindicandocomunistasinfiltrados entre estudantes e professores. Na UMG houve casos nas faculdades de Medicina,ArquiteturaeEngenharia.NaFaculdadedeMedicina,acartafoiassinadapor23membrosdocorpode ensino e mdicos da faculdade, que se dirigiram ao general Carlos Lus Guedes paracongratular-secomV.Exa.ehipotecar-lheintegralapoiopelasinvestigaesquevmsendofeitaspara apurar a possvel existncia de agitadores comunistas entre os estudantes estrangeiros. Noentanto, continuava a carta, a medida saneadora ficaria incompleta se no fossem punidos osresponsveis pela cerimnia de aula inaugural na universidade, realizada poucos dias antes domovimentomilitar, no incio demaro de 1964.O evento consistiu em palestra do chefe daCasaCivil da Presidncia e ex-reitor da UnB, o professor Darcy Ribeiro, de quem os missivistas noreconheciam sequer o ttulo, chamando-o de inspetor de alunos que despudorada e cinicamenteostentava o ttulo de professor. Os denunciantes consideraram a cerimnia um espetculodegradanteedeprimente,verdadeirocomciocomunista.33

  • Esse texto revela, nas entrelinhas, as tenses vividas nas universidades no perodo Goulart,quando as hierarquias internas foram questionadas pelas foras renovadoras e por jovens deesquerda.FiguraproeminentenoesquemadepoderdeGoulart,DarcyRibeiroeraaindajovem(41anos)e,porsinal,tinhasidoalunodamesmaFaculdadedeMedicinaanosantes,tendoabandonadoacarreirademdicopeladecientista social.Talvezo rancorcontraele sedevesse tambmaalgumepisdiodesuavidaestudantilnaquelafaculdade,pocaemquemilitounoPCB.Oprincipal,porm,eraoincmododeverojovemdocentedettulosmodestosseucargoeraodeassistentedeensinona UB , ainda mais pertencente a uma rea do saber desprestigiada, assumindo postos toimportantes no governo federal, entre eles o papel de lder da reformulao das universidadesbrasileiras.AquiloerademaisparaosvetustosprofessoresdatradicionalFaculdadedeMedicina.

    NocasodaEscoladeArquitetura,umex-diretoreprofessorcatedrticodainstituiosedirigiuaosresponsveispelaComissodeSindicnciaparaoferecerseusprstimosnaOperaoLimpeza:Estouprontoaprestarinformaessobremovimentosdeagitaoaeclodidos,bemcomoapontarnomesdealunoseex-alunosresponsveisporessesmovimentos.34JnaEscoladeEngenharia,adennciaeracontraumprofessorconsideradocomunista,jpunidocomoafastamentodocargonaRede Mineira de Viao. O annimo missivista desejava ver o professor expurgado tambm daUMG,e,comoacreditassequeodenunciadocontavacomaproteododiretordaescola,dirigiu-sediretamenteaoministrodaEducao.35

    Depoimentose relatosbiogrficos tambmregistraramcasosdedenncias,svezespraticadasporcolegaseex-alunosqueoptarampeladefesadaordememdetrimentodafidelidadeaosantigosmestres.36Situaesdessetipoaconteceramportodoopas,enoapenasem1964,mastambmnosanos seguintes, sobretudo no contexto da represso desencadeada pelo AI-5. Tais episdiosproduziram ambiente desagradvel nas universidades, gerando desconfiana, incerteza e rancoresduradouros. Em certos casos, o constrangimento foi ainda maior porque os colegas no apenasassinaram cartas de denncia, que no contexto seriam suficientes para justificar o expurgo, maschegaramadeporemjuzocontraosacusados.

    Oapoioaonovo regimeemgeralerabaseadoemmotivaopolticae ideolgica.Entretanto,houvetambmmuitaadesooportunista,compessoasqueseaproveitavamdasituaoparaaderireabrir espaos de poder e carreira emmeio aos expurgos. Gama e Silva e Eremildo Vianna, porexemplo,participaramdogolpeeforamresponsveispeloexpurgodealgunscolegas.Noinciodosanos 1960, porm, eles no eram considerados radicais de direita nas respectivas instituies, atdialogavameeventualmentefaziamacordoscomaesquerda.37Pessoasqueemoutrascircunstnciasteriam dificuldade de ascender na carreira universitria viram na adeso aos novos mandatriospreciosaoportunidade,sobretudoporqueosexpurgosgeravamposiesvagasaseremocupadas.

    Asintervenesnasreitorias

    O afastamento de dirigentes universitrios (diretores e reitores) foi momento importante daOperao Limpeza. Como alguns administradores opuseram obstculos s aes repressivas, seuafastamento visava tambm a facilitar o processo de expurgo de docentes e estudantes. Em taisepisdios se manifestaram as ambiguidades do novo poder, dividido entre assumir posturasautoritriasexplcitasourespeitarcertasnormasinstitucionais.Emboraatosarbitrriostenhamsidocometidos s escncaras, as foras damoderao se fizerampresentes tambm, contribuindo paralimitar o escopo das intervenes. Foi possvel identificar seis casos de reitores afastadosdiretamente pelo governo militar (UnB, Universidade Federal da Paraba UFPB, URGS,

  • Universidade Rural do Rio de Janeiro URRJ, Universidade Federal do Esprito Santo Ufes eUniversidadedeGoisUFG),emaisumcasodetentativafrustrada(UMG).Noforamafastadosapenas reitores; por vezes alguns diretores de escolas ou faculdades isoladas tambm foramatingidos,comoemSoJosdoRioPreto,noestadodeSoPaulo.

    Houve tambm situaes nebulosas, em que os reitores no foram afastados fora, masrenunciaramaocargoapsfortespresses.IssoocorreunaUniversidadedoRecife,cujoreitoreraconsiderado favorvel ao governo recm-destitudo e, por isso, foi submetido a intensa presso,principalmente para aceitar a expulso de professores visados pelos rgos de segurana.38 Seuafastamentofoimuitocomemoradodireita,pois,almdeficarabertoocaminhoparaoexpurgo,surgiaaoportunidadedeescolherumdirigentemaisafinadocomonovopoder.

    O desligamento de reitores atingiu parteminoritria das instituies, j que havia cerca de 25universidadespblicasnapoca,contandocomasestaduais.Deumlado,issoconfirmaque,entreoslderesuniversitrios,ogolpefoibem-recebidoequeamaioriadeleseraconfivel,daperspectivados militares. Por outro lado, resultava tambm das preocupaes dos segmentos moderados doregime,quesvezespreferiramnegociaracriarumclimadeexcessivaviolncia.Claro,empelomenosseis instituiesnosedeu importnciaapruridos liberais,e foramafastadososdirigentesuniversitrios mximos. Mesmo a, porm, tentou-se legitimar o processo recorrendo s normasregulares(aLeideDiretrizeseBases,LDB)eaoConselhoFederaldeEducao(CFE)paraindicarreitores pro tempore. Aps a destituio dos reitores, a prtica foi convocar os conselhosuniversitriosa fimdeestabelecer,deacordocoma lei,uma listadenomesparaqueopresidenteescolhesseonovoreitor.Emumcaso,naUMG,adefesadevaloresliberaisexerceuinflunciamaissignificativa e levou derrota da tentativa de interveno militar. Para compreender essaspeculiaridades, importante ter emmente que a intensidade da represso dependia das condieslocais,dasatitudesdosdirigentesuniversitriosedeseuprestgio,assimcomodaatuaodelderescivisedoscomandosmilitares.

    A melhor estratgia para tentar esclarecer um pouco esse emaranhado abordar com maisdetalhes alguns casos singulares.Nadamais adequadoque comear pelaUniversidade deBraslia,queatraaaatenonacional.Comofoidito,ajovemUnBeraconsideradaperigosofocosubversivodesde sua formao, e esse pecado de origem no seria perdoado. Quatro dias aps a invasomilitardocampus,ogovernobaixoudecretooficializandoadestituiodoreitor,AnsioTeixeira,edeseuvice(AlmirdeCastro),assimcomodetodooConselhoDiretor.Oescolhidoparaassumirareitoria foi o professor Zeferino Vaz, revolucionrio de primeira hora e administradoruniversitrio respeitado por seu trabalho na Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto, unidadepertencente USP. Tentou-se dar aparncia de legalidade ao ato convocando-se o CFE parareferendaraintervenoeaindicaodeVaz,emboraasnormaslegaisnotenhamsidointeiramentecumpridas. Aps intensa discusso entre os conselheiros do rgo, que foram pressionados pelogovernoepelo comandomilitar deBraslia, o conselho acaboupor aprovar as aesnaUnBe aindicaodeZeferinoVaz.ObomentendimentoentregovernoemembrosdoCFEse repetirianocasodasoutrasintervenes.39

    ZeferinoVazassumiuemsituaodelicada,comalgunsprofessoreseestudantesaindapresos,esob presso dos militares para demitir os subversivos. O cerco militar, no caso da UnB, foiparticularmente intenso,noapenaspelas razes japontadas,masporque,na jovemcapital,aindaumcanteirodeobras, nohavia foras sociais ou instituies tradicionais (Igreja e imprensa, porexemplo) que servissemde freio s aes dosmilitares, diferena de outras capitais brasileiras.Desde o incio, a tarefa de Zeferino Vaz era inglria: tentar administrar uma instituio que osmilitares da rea preferiam ver aniquilada. Tudo era vigiado, e mesmo um reitor afinado

  • ideologicamentecomonovoregimenotinhasossego,poisosmenoresdetalheseramcontrolados,atoprogramamusicaldaorquestrauniversitria.CirculavaumditojocosonaUnB,nesseperodo,ilustrativo do clima poltico: o comandante do Batalho da Guarda Presidencial mandava nainstituiotantoquantooreitor.40

    Zeferino Vaz viveu dilema comum a outros reitores nos anos seguintes: como administrarinstituies na ala de mira dos militares, sob presso para afinar-se com as necessidades dasegurananacional,econseguirfaz-losemalienar-secompletamentedocorpodocenteeevitandoconflitosgravescomosestudantes.Osdirigentesuniversitriosprecisavammanteraconfianadogoverno e evitar a fria dos rgos, mas, ao mesmo tempo, no desejavam incorrer nadesconfianadacomunidadeacadmica,principalmentedosprofessores,sobpenadenoconseguiradministrar a universidade da forma adequada. verdade que muitos professores aplaudiram aderrubadadeGoulart,quiamaioria.Porm,issonosignificaquetodosapoiassemirrestritamenteos militares, e menos ainda as aes repressivas contra as universidades, que geravam reaescorporativas.Almdisso,apopularidadedogovernofoicaindocomotempo,aomesmopassoqueaumentavaaresistnciaeamilitnciadeoposio,sobretudonasuniversidades.ParaVaz,oquadroeraaindamaiscomplicado,poisamaioriadosprofessoresdaUnBtinhaafinidadecomogovernodepostoe,nomnimo,desconfiavadosnovosocupantesdopoder.

    A preocupao de Zeferino Vaz em tentar equilibrar-se entre as duas foras aparece em suasprimeiras aes frente da UnB. Ele negociou com as autoridades a liberao de alunos eprofessorespresos,eassimganhoupontosnofrontinterno;porm,aomesmotempo,demitiunoveprofessoreseinstrutores.significativoqueasdemissesnotenhamsidoprecedidasdeinquritosinternos ou comisses de sindicncia,mas resultaramde ato intempestivo do prprio reitor.41 Vazpreferiaresolver taissituaessuamaneira,emanteriaesseestiloquandoreitordaUnicamp.Osprocessos de afastamento foram simples atos administrativos, j que ningum ali havia adquiridoestabilidadee,emmuitoscasos,nemsequerhaviacontratosregularesdetrabalho,emdecorrnciadarecente criaodaUnB.O atopunitivodo reitor recm-empossadoprovocoudescontentamento, ealgunsprofessoresdesociologiaeeconomiademitiram-seemsolidariedadeaoscolegas.Zeferinotentou negar o fundamento ideolgico do expurgo ao alegar razes administrativas e sugerir quefaltavacompetnciaaosdemitidos.Acrisefoicontornada,atporquemuitosprofessoresdesejavama estabilizao do quadro para continuar o trabalho.O fato deVaz ter demonstrado simpatia peloformato da nova universidade (em lugar de faculdades, ela possua institutos voltados para apesquisa, e os professores no se organizavam em ctedras, mas em departamentos) ajudou aacalmarosnimoseagerarexpectativasmenospessimistasquantoaofuturodainstituio.

    Esperanasbaldadas,poisnoanoseguintenovaspressesdosrgosdeseguranareativaramacrise,impedindoastentativasdenormalizaoecontribuindoparaasadadeVaz.Oprimeiroembatefoi causado pela contratao do professor Ernani Fiori para o Departamento de Filosofia, noprimeiro semestre de 1965. Fiori havia sido afastado da URGS com base no primeiro AtoInstitucional,porissoosmilitaresdeBrasliaacharamumacintedeix-lotrabalharnaUnB.ZeferinoVazdobrou-sespressesedemitiuFioriemjulhode1965,sobprotestodealgumaslideranasdaUnBque,dessavez,entenderamsernecessrioreagir.Logoemseguida,emagosto,outroepisdioaumentou a insatisfao dos professores e levou greve e demisso espontnea damaioria docorpo docente. OMEC solicitou a devoluo de dois funcionrios cedidos UnB, um dos quaisatuavacomoprofessordesociologia,RobertoDciodeLasCasas.OreitorVazatendeuaoprimeiropedido, contrariado, e tentou tergiversar no caso de Las Casas, para no provocar o nimo deestudantes e professores.Mas a presso dosmilitares foimuito forte, pois tinham registros sobrepregressamilitnciacomunistadoprofessorLasCasas.Emmeiospolmicas,comgreveestudantileprotestosdosprofessores,Vazrenunciouaoposto,sendoindicadoparaseulugaroutroprofessor

  • daUSP, Laerte Ramos. A sada de Vaz foi justificada em funo de um convite para organizar edirigir a futura Universidade de Campinas (Unicamp), mas as dificuldades polticas na UnBcontriburamparaadeciso.Aquelenoeraumcargo fcil, eosdois reitores seguintesviveriammandatosigualmentetumultuados.

    Documento produzido pela Seo de Segurana do MEC, em outubro de 1965, ajuda acompreender o quadro de mudana no comando da UnB. A opinio negativa dos rgos deinformaosobreabrevegestodeZeferinoVazestregistradanotexto,querevelafrustraocomo reitor recrutadoentreosrevolucionrios.Segundoodocumento,Vaz teria sedeixadoenredarporelementosdeesquerdaaindapresentesnauniversidade,quetalvezelenohouvesseexpurgadodevidamente. Como estratgia de gesto para o novo reitor, o oficial de informaes defendeu oafastamento de diretores e coordenadores comprometidos com o esquema anterior (ou seja, comDarcyRibeiro e a esquerda),mas tambm o aumento de recursos e a aceitao de reivindicaesjustasdosestudantes.42

    Laerte Ramos pode no ter tentado atender s reivindicaes justas dos estudantes, mascertamente foimais receptivosdemandasdeexpurgos.ComoelemanteveadecisodeafastaroprofessorLasCasas, a comunidade acadmica reagiu, e no somente em solidariedade ao colega,masporquequeriadarumbastasperseguiesqueintranquilizavamatodosequepoderiamservirdeprecedenteparaoutrosexpurgos.Osprotestosevoluramparaadecisodedemissocoletivadoscoordenadorese, logodepois,paraumagreveconjuntadeestudanteseprofessores.Arespostadonovo reitor foi pesada: para intimidar os grevistas, ele recorreu Polcia Federal, cujos agentesprenderam vrios professores; quinze deles foram desligados de uma s penada (dez professorestiveramoscontratosdetrabalhorescindidos,outrosquatroforamdevolvidosaosrgosdeorigem,euminstrutorteveabolsacancelada).43

    Indignadose semenxergarmelhoralternativa,cientesdequeoprojetooriginaldaUnBestavamorto,osprofessoresoptaramporumprotestofinal:ademissoemmassa.Aproximadamente80%docorpodocentedaUnBpediudemissoemoutubrode1965,223professoresnototal.Nalistadosdemissionrios figuravamnomescomoRobertoSalmeron,JooAlexandreBarbosa,PauloEmlioSalles Gomes, Jean-Claude Bernardet, Nelson Pereira dos Santos, Carolina Bori, Isaas Pessotti,Jayme Tiomno, Elisa Frota-Pessoa, Oscar Niemeyer, Claudio Santoro, Fritz Teixeira de Salles,MarcoAntonioRaupp,OttoGottlieb,AlcidesdaRochaMiranda,entreoutros.44Comopassardosmeses, contrataes foram realizadas para suprir as vagas dos demissionrios, e a universidadevoltou a funcionar, porm novas crises polticas estavam sua espera. O caso da UnB foi aquidetalhadopela repercussonacionalepelamaiordisponibilidadede fontes,mas issonosignificaqueosepisdiosdeintervenonasoutrasinstituiestenhamsidomenosdramticos.

    Nomomentodogolpe,aUniversidadedoRioGrandedoSuleradirigidapeloprofessorEliseuPaglioli, que tinha ligaes comoPTB.O fatode ter sidoministro daSadede JooGoulart noperodo parlamentarista (1962) agravou sua situao, colocando-o na lista de suspeitos. Nosprimeirosdiasdeabril,GamaeSilva,quecomandouoMECporalgunsdiasantesdesersubstitudoporFlvioSuplicydeLacerda,determinouasuspensodePagliolidareitoriadaURGSenomeouuminterinoadreferendumdoCFE.45

    Com a sada de Paglioli, o Conselho Universitrio da URGS se reuniu, em 24 de abril, paraproceder nova eleio. Interpretando bem as preferncias do novo governo, os conselheiroscolocaramnotopodalistaoprofessorJosCarlosMilano,confirmadoporCastelloBrancopoucosdias depois. O novo reitor mostrou-se afinado com os propsitos purificadores da lideranamilitar e fezgestesparaafastaromaiornmeropossveldeprofessores suspeitosaosolhosdasautoridades repressivas. De fato, a URGS foi uma das universidades a demitir maior nmero de

  • professoresem1964.Outrademonstraodadisposiodonovoreitoremcolaborarcomoregimemilitar:emsetembrode1964,elepublicounotaconclamandoacomunidadeuniversitriaasemantertranquila e serena, no dando ouvidos aos pregoeiros da subverso e da violncia, sob pena deadoo demedidas de exceo contra os agitadores.46 Na URGS, como em outras instituies deensino superior, a ascenso dos militares fortaleceu os setores da direita universitria, que seaproveitaram do contexto poltico para estabelecer comando sobre a reitoria por muito tempo,controlandosucessivasgestes.

    NocasodaUniversidadeFederaldaParabaaintervenofoiimediataaogolpeedecididapelosmilitareslocais,queacreditavamterevidnciasdoenvolvimentodoreitorMrioMoacyrPortocoma esquerda. Segundo informe dos rgos de inteligncia, o reitor teria apoiado atividades doscomunistasefacilitadooproselitismodeesquerda.Entreoutrascoisas,elefoiacusadodefinanciarviagens de estudantes URSS e tambm publicaes subversivas (um jornal estudantil). Umaevidncia serviu de prova cabal de sua culpa aos olhos dos militares: Foi agraciado com acomendadehonradaUnioInternacionaldosEstudantes,cujasedePraga.47

    Nodia14deabrilde1964,ocomandantedoExrcitoemJooPessoabaixouatodecretandoainterveno na Universidade da Paraba (UPB, atual UFPB) e nomeando como interventor oprofessordemedicinaeoficialdoExrcitoGuilardoMartinsAlves.Onovoreitorfoiconsideradoocupante temporrio do cargopeloMECe tambmpeloCFE, que enviouofcio recomendando aeleiode lista trpliceparanormalizar a situao.GuilardoAlves semostrouatentosdemandasrepressivas,mas tambmhbilparaangariarapoios, inclusiveexternosuniversidade,ecomissoconseguiu garantir sua eleio pelo Conselho Universitrio. Essa referncia habilidade dointerventor se justifica porque nem sempre o apoio dos militares locais bastou para definir oresultadodaeleionosconselhosuniversitrios,comosevernocasodePernambuco.GuilardoAlvesfoireconduzidoaocargoem1967e,nototal, ficouseteanosfrentedaUPB,numagestoprdigaemobraseinvestimentos,mastambmemexpurgospolticos,sobretudodepoisde1968.48

    AintervenonaURRJ(atualUFRRJ),quenapocaeravinculadaaoMinistriodaAgricultura,teveumtoquedeviolnciamaiorqueadasoutras.Foionicocasoemqueoreitordepostoviu-seencarcerado:oprofessorYdrzioLuizVianna,queasforaslocaisdedireita,incluindosegmentosda prpria universidade, consideravam muito comprometido com as foras de esquerda. Pesoucontraeleoemprstimodemeiosdetransporteparaosestudantescompareceremaocomciodasreformas,oeventode13demarode1964nocentrodoRiode Janeiro,e tambmo fatode terfacilitado a realizao de evento esquerdista nas dependncias da instituio, a que compareceramestudantescubanos.YdrzioVianna,quenoprocessodeexpurgofoi tambmafastadodosquadrosdoserviopblico,ficoupresocomumgrupodeestudantesefuncionriosdaURRJ,noquarteldoExrcitosituadonasimediaesdocampusdeSeropdica.

    Algunsdosestudantesencarceradoschegaramaficarpresosporquarentadias,partedoperodoemsituaode incomunicabilidade.Opior,porm,ocorreuadoisdeles,que foramtorturadosemlocal clandestino e depois abandonados em lugar ermo, amarrados e bastante feridos. Com oafastamentodeYdrzioVianna,foinomeadointerventoroprofessorFredericoPimentelGomes,reveliadoConselhoUniversitriodaURRJ,quesepreparavaparaindicaroutronome.Ointerventorchegou acompanhado de oficiais do Exrcito, para impor-se aos recalcitrantes, e permaneceu nafuno at o fim de 1964, quando foi realizada eleio regulamentar, com a composio de listatrpliceparaescolhadonovoreitor.49

    NocasodaUniversida