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181 AS VIDAS DE MARIA LUIZA Vida A M aria Luiza olhou para o céu sobre o Lago Norte, e da sua rede que balançava a inter- valos regulares admirou as miríades de es- trelas. Aquela imensidão de astros brilhantes e belos lhe forçava a imaginar a origem de tudo aquilo. Per- guntava-se, entre outras coisas, se haveria um ponto finito no universo, se havia outros mundos com vida inteligente, o que havia antes da criação e, se era o nada, filosofava: o nada existia. Devaneios à parte, ela necessitava se concentrar no que realmente era importante, e, agora, o que real- mente a interessava era seu casamento que ocorreria dali a uma semana. Apesar de estar vivendo no sé- culo 20, a influência da sua família foi determinante para sua união com Jorge Castro, um bem sucedido empresário que era visto por seus pais – funcionários públicos do Senado Federal e do Tribunal de Contas – como um bom partido. Explicitamente ou por en- trelinhas, Mário e Eloísa articularam para a união ma- trimonial acontecer, e foram determinantes para que o ex-namorado da filha se afastasse, abrindo caminho para o atual que há muito insistia em conquistá-la.

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AS VIDAS DE MARIA LUIZA

Vida A

Maria Luiza olhou para o céu sobre o Lago Norte, e da sua rede que balançava a inter-valos regulares admirou as miríades de es-

trelas. Aquela imensidão de astros brilhantes e belos lhe forçava a imaginar a origem de tudo aquilo. Per-guntava-se, entre outras coisas, se haveria um ponto finito no universo, se havia outros mundos com vida inteligente, o que havia antes da criação e, se era o nada, filosofava: o nada existia.

Devaneios à parte, ela necessitava se concentrar no que realmente era importante, e, agora, o que real-mente a interessava era seu casamento que ocorreria dali a uma semana. Apesar de estar vivendo no sé-culo 20, a influência da sua família foi determinante para sua união com Jorge Castro, um bem sucedido empresário que era visto por seus pais – funcionários públicos do Senado Federal e do Tribunal de Contas – como um bom partido. Explicitamente ou por en-trelinhas, Mário e Eloísa articularam para a união ma-trimonial acontecer, e foram determinantes para que o ex-namorado da filha se afastasse, abrindo caminho para o atual que há muito insistia em conquistá-la.

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Maria Luiza e o antigo namorado, Felipe, se co-nheceram em uma festa da faculdade. Apresentados por amigos em comum engataram num namoro que perdurou por três anos. No início, as diferenças entre eles eram claras; ela cursava direito no CEUB, ele ain-da frequentava o 2º grau no colégio Elefante Branco.

O proceder e as expectativas dos dois não eram comuns. A bebida, festas, acampamentos e o rock fa-zia parte do mundo do garoto que também não dis-pensava um baseado. Maria Luiza era centrada, fala-va inglês e francês, lia as poesias de Arthur Rimbaud, ouvia MPB, blues, e um copo de cerveja era o bastan-te para deixá-la alegre. Ela que sempre contestava o dito popular que reza que os opostos se atraem, caiu de amores por Felipe e foi correspondida. E os dois passaram a se ver todos os dias, e a paixão cresceu parecendo não ter fim, apesar da diferença de idade entre eles.

Ao ser apresentado à família da namorada num almoço protocolar, Felipe percebeu o mal disfarçado menosprezo por sua figura (que metida num jeans surrado aumentava-lhe o desmerecimento), rituali-zado por lábios comprimidos e olhares que no fundo expressavam desdém.

O pai se mostrou distante e calado, mas Dona Eloísa bombardeou o rapaz com perguntas que pas-saram longe da discrição:

— E você onde mora? Com o que trabalha? Vive com seus pais? Seu pai faz o quê? E sua mãe? Você tá estudando? Quantos irmãos você tem?

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E enveredou por esse caminho deixando Maria Luiza constrangida. Porém, Felipe manteve-se dig-no de um monge, provavelmente devido às folhas da Cannabis que fumara antes, e cordialmente aguentou e respondeu uma a uma as questões indelicadas.

Um ano depois, Maria Luiza se formou e após a colação de grau, realizou uma pequena comemora-ção em sua própria residência. Alguns amigos e sua madrinha compareceram. A reunião ia animada até que as vozes exaltadas de Felipe e a namorada foram ouvidas sinalizando uma forte discussão:

— Você tem coragem de defender sua mãe?— Não! Eu não acredito que ela tenha dito isso?— Pois eu ouvi bem quando ela se virou pra sua

madrinha e disse que você namorava um “bostinha”.— Mesmo que ela tenha falado isso, isso não é

motivo pra você ir embora e me deixar num dia tão importante pra mim.

— Olhe... Maria Luiza! Minha mãe costuma di-zer que quem muito se abaixa mostra o rabo. Eu tô cheio dessa sua família de gente metida. Depois, con-versamos. – finalizou o rapaz, saindo, e deixando a namorada com raiva.

Mas, Maria Luiza tinha seus orgulhos e a atitude do rapaz os inflamou. Ficaram eles uma semana sem se ver, até que Felipe pediu arrego.

Quase dois anos se passaram e, entre idas e vindas, as brigas perduraram (na maioria das vezes atiçadas pelos pais da moça que não davam sossego a Felipe), até culminar no fato que causou o rompi-

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mento do namoro: Em um sábado ao começar a noite e após passarem a tarde juntos, o rapaz anunciou que iria embora e voltaria mais tarde, porém, Maria Lui-za que estava sozinha, insistiu que ficasse e jantasse com ela em sua casa. Felipe relutou um pouco, mas acabou aceitando.

Por volta das 21h, Mario e Eloísa retornaram e, Eloísa, ao ver o moço à mesa, sem delongas o avisou:

— Não quero você comendo nesta casa!O choque das palavras que ouvia incredula-

mente travou a garganta de Felipe que se sentindo humilhado, impensadamente abandonou a calma costumeira jogando ao chão o prato em que comia.

Explodindo em ira o rapaz desencarcerou todos os ressentimentos represados, e as palavras saíram contundentes e acusatórias:

— Vocês são dois imbecis preconceituosos e metidos a besta. Estão sempre se julgando melhores que os outros. Não é porque vocês tem algum dinhei-ro que são melhores que ninguém. Venho aguentan-do calado todas suas provocações por gostar de Ma-ria Luiza, mas agora chega. A senhora – diz olhando bem para Eloísa – é uma das mulheres mais feias que conheço, não sei nem como conseguiu casar, sorte de sua filha que não lhe puxou. Também, casou logo com quem? Com um pau mandado com jeito de vea-do que é esse seu marido.

Então, foi a vez de Eloísa detonar aos gritos:— Fora daqui! Fora daqui! Você está vendo o

que você arranjou Maria Luiza? Esta vendo?

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— Maria Luiza, – volta a falar Felipe – estou lhe esperando lá fora para você ir embora dessa casa comigo. Se você não aparecer, dentro de 20 minutos vou embora.

Antes de atravessar a porta se vira mais uma vez para a moça, que apenas chora e reforça:

— Venha comigo!E recebe a resposta:— Não posso! Se você gostasse de mim, não

ofenderia o meu pai do jeito que fez. Suma da minha vida!

Vida B

Maria Luiza namorava há seis meses o empresá-rio e amigo da família, Jorge Castro, que estava viajan-do a negócios, quando conheceu Felipe e se encantou pelo rapaz. Naquela festa promovida pelos alunos do cursinho pré-vestibular Objetivo, observou o garoto cabeludo que após duas caipirinhas já se mostrava alto e, talvez, pelos efeitos etílicos, não se mostrou tí-mido ao se aproximar com aquela conversa estranha de que não aguentava mais beber, que não estava le-gal e que ali só tinha gente esquisita. Achando diver-tido, o estimulou a falar sobre ele:

— E você o que faz da vida?— Estudo!— Só estuda? – pergunta, abrindo o sorriso.— Estudo, jogo basquete, vou ao cinema, fre-

quento o Motonáutica.

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— Que vida agitada. – diz a moça sem esconder o tom irônico.

E o rapaz sem perceber:— Ah! Em casa assisto às novelas, e sempre que

posso vou jogar futebol de botão com meu avô. Mas agora tenho que me mandar. Minha mãe já deve estar descabelada. Me dê seu telefone?

Quando o telefone tocou às nove e meia e a “secretária doméstica” da casa veio lhe chamar para atender, Maria Luiza quase teve uma síncope. Esbra-vejou, esfregou os olhos e ia soltando um palavrão, mas quando Cândida lhe falou que estava um tal de Felipe ao telefone, estranhamente sentiu-se satisfeita.

Parque da cidade, piscina de ondas, onze horas da manhã mais quarenta minutos, lá estão Maria Lui-za e Felipe. Ela deitada sobre uma toalha, ele com as mãos untadas de bronzeador.

— Sabe que eu nunca tinha vindo aqui.— Eu tô achando você muito burguesinha, me-

nina. – diz Felipe tirando uma da cara da moça e pro-vocando o riso de ambos.

Felipe, no dia anterior, não havia percebido o tanto que Maria Luiza era bonita, porém, além disto, notou que a menina não era loira. A raiz dos cabelos dela era tão preta como os seus, mas preferiu não co-mentar. À noite foram ao cinema.

Quando Jorge Castro voltou, Maria Luiza rom-peu o namoro.

Mario se mostrou indiferente quando a filha apresentou o novo namorado. Todavia, Eloísa Ferraz,

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desde que soube do rompimento do namoro com Jorge Castro, revelou-se indignada. Assim que o ra-paz saiu fez questão de demonstrar sua insatisfação:

— Bela troca você fez né Maria Luiza! Trocou um empresário por um pé rapado. Quando vocês vão ao cinema quem paga a entrada? É você ou ele? Pois teatro e bons restaurantes já eram... Né?

Maria Luiza havia prometido a si mesma que não daria ouvidos à mãe, virou-se e deixou-a falando sozinha.

Apesar da família e, talvez, até por causa, a pai-xão dos enamorados só aumentava e os dois não se desgrudaram mais. Todos os dias davam um jeito de se encontrarem. Um dia na hora do almoço, outro, depois do expediente e, ainda, depois que saiam das aulas.

Maria Luiza terminou o curso de direito no CEUB, e Felipe passou no vestibular da Católica. Na faculdade começou a se destacar nas aulas de economia, e o professor da matéria cujo irmão era deputado, arranjou-lhe um emprego no gabinete do seu mano na Câmara dos Deputados. O moço cortou o cabelo, tirou os brincos e passou a usar camisa social.

No aniversário de 24 anos de Maria Luiza, de-vido a compromissos com o deputado, Felipe chegou atrasado à comemoração que se dava na própria re-sidência dos Ferraz. Educadamente cumprimentava os presentes quando – fingindo não lhe ver – Eloísa o ignorou, para em seguida arrematar com descaso:

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— Era melhor que não tivesse vindo. – Sem dar importância em ser ouvida pelos convidados.

A atitude da futura sogra lhe repercutiu como um tabefe em sua cara deixando-o vermelho. Surpre-so, não soube o que responder. Envergonhado, no-tou algumas pessoas a lhe observar com ar perplexo. Sem nada dizer virou as costas para ir embora. Maria Luiza que vinha ao encontro do namorado, teve tem-po para ver e ouvir o que se passou e correu atrás de Felipe, encontrando-o na extensa varanda que dava acesso à entrada da casa.

— Pra onde você vai Felipe? Nem me cumpri-mentou e vai saindo?

— Você viu? Você viu o que a jararaca da sua mãe fez? Falou pra todo mundo ouvir que antes eu não tivesse vindo. E todo mundo ficou me olhando como se eu fosse um leproso. Sua mãe não respeita ninguém! Não respeita a mim, a você e nem aos pró-prios convidados.

— Por favor, Felipe! É meu aniversário. Não vá embora, apenas ignore minha mãe!

— Não dá! Estou cansado de ser maltratado por sua família. Não boto mais os pés aí!

— É assim? Você diz que gosta de mim e, no primeiro problema, me abandona? O que importa sou eu não, minha mãe.

— Primeiro problema? Presta atenção numa coisa, eu não sou palhaço! Se você quer realmente fi-car comigo não defenda sua mãe.

— Eu não estou defendendo ela. Só acho que você tem que ser superior. Você está fazendo o que

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ela quer. Já que é assim pode ir... Pode ir. – repete a moça com os olhos marejados de lágrimas.

— Nunca mais serei humilhado. Fui! – conclui o rapaz deixando Maria Luiza vertendo as lágrimas que não consegue conter.

Mais tarde, Maria Luiza de cabeça mais fria ana-lisou a situação e deu razão ao namorado. Realmente sua família sempre o tratava mal, e por mais que re-clamasse respeito para o rapaz, seus pais se faziam de rogados. Nas vezes que tirava satisfações com eles, só aprofundava as discussões que seguindo pelo ca-minho das gritarias e acusações abriam chagas nos sentimentos de cada um. Resoluta, decidiu não se submeter aos caprichos paternos e determinou-se a casar com Felipe.

Vida A

O casamento aconteceu com toda a pompa que o dinheiro de Jorge Castro podia proporcionar. A ce-rimônia para quatrocentos e setenta convidados foi realizada na catedral de Brasília. A recepção ocorreu no espaço Espelho das Águas num ambiente chique e moderno. A lua de mel foi em Paris, Roma e Londres.

Retornando da viagem, o casal foi morar na am-pla mansão de Jorge às margens do Lago Sul, onde já residiam os pais do empresário. Antes do casamen-to, a agora Sra. Castro, relutou em residir no mesmo espaço que os sogros, mas acabou convencida pelo marido que argumentando lhe fez lembrar a propor-

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ção daquela casa, com diversos empregados, e, ade-mais, não havia motivos para preocupação, haja vis-ta que nunca aceitaria uma intervenção de seus pais na vida deles. Exigir que fossem embora estava fora de questão, afirmou-lhe. Como se relacionava muito bem com a família do esposo ela concordou com a proposta.

Apenas três meses depois do casamento os problemas em moto contínuo bateram na vida de Maria Luiza: Do nada, a sogra passou a implicar com a nora por motivos banais. Ora, era por causa de um enfeite deixado fora do lugar. Ora, um livro que não foi devolvido à biblioteca. Depois, por um som que estaria muito alto, ou uma peça de roupa que não seria adequada para uma senhora casada. Em seguida começaram as fofocas sempre pincela-das de “mentirinhas” que a sogra soltava a seu res-peito para o filho, que tirava satisfações com a es-posa, culminando em discussões e brigas. Aliado a isto, Jorge Castro tinha pouco tempo para ela, sem-pre envolvido em seus negócios, em suas reuniões, suas viagens a trabalho, etc. E o pior; desconfiou que estava sendo traída por ele. Em pleno período de conturbação descobriu-se grávida.

Quando a alegre Maria Luiza contou ao mari-do a novidade, o contraste foi evidente. Jorge Castro transmutou-se e com ar entre surpreso e incrédulo soltou:

— Já? Tem certeza que este menino é meu?

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Vida B

O pequeno apartamento de dois quartos lo-calizado no Guará, estava em festa. A felicidade do casal Felipe e Maria Luiza era evidente. Afinal, não é sempre que se têm filhos gêmeos, e aqueles bebês recém-nascidos podiam ser considerados a coroação de um relacionamento que parecia fadado ao insu-cesso, contudo, hoje, era patente a comunhão entre eles, com os dois cada vez sentindo-se mais compro-metidos um com o outro.

Apesar de todos os empecilhos – principalmen-te familiares – Maria Luiza, determinadamente, viu que só poderia ser feliz ao lado de Felipe. Quando a situação se tornou insuportável em presença das atitudes dos genitores, principalmente da mãe dela que, explicitamente, usava dos recursos à mão ou dos mais inimagináveis pretextos para destruir seu rela-cionamento, aceitou os pedidos constantes do namo-rado para que fossem viver juntos. Discretamente, financiaram pelo Banco Real um apartamento situa-do no Guará II, e muito discretos, ao mobiliá-lo. Fi-zeram algumas prestações, mas dentro de seis meses podiam habitá-lo.

Eloísa, informada pela filha que dentro de cinco dias abandonaria o lar paterno para viver com Felipe, quase teve uma síncope. Primeiro resmungou, bri-gou, ameaçou, depois chantageou, relacionando tudo que já fizera pela filha; os sacrifícios, a criação esme-rada que lhe proporcionara e, finalmente, aparentou

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desmaios. Todavia, nada enfraqueceu a veemência da decisão de Maria Luiza que no tempo aprazado mudou-se “de mala e cuia” para o apartamento do Guará.

Os dois primeiros anos foram de batalhas e sa-crifícios, pois tiveram que sobreviver apenas com o salário de Felipe (que não era grande coisa) enquan-to Maria Luiza estudava para concursos. Por sorte, quando os gêmeos vieram encontraram a mamãe devidamente empossada no Tribunal Federal da 1ª Região.

Quatorze meses depois da decisão de viver jun-tos, Maria Luiza foi ao ginecologista para confirmar uma certeza do coração. À noite como se nada qui-sesse deu a notícia ao marido:

— Estou grávida!A expressão de Felicidade estampada no rosto

de Felipe comoveu a companheira que se viu abra-çada aos beijos repetidas vezes. Depois, as mãos do companheiro afagaram sua barriga em busca do que ainda não era possível, e sorrindo lhe disse:

— Não dá pra perceber nada... Seu bobo!Naquela noite se amaram como nunca.

Vida A

Maria Luiza, nos nove meses que se passaram esperou algum afeto do marido, que não aconteceu, mas isso não lhe causou maiores desencantamentos.

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A decepção só veio mesmo quando nenhum carinho ele foi capaz de demonstrar pelo filho recém-nascido, e – numa atitude que lhe pareceu tomada para afron-tá-la – uma semana depois foi vasectomizado.

Antes de saber-se grávida chegou a pensar em pe-dir a separação, mas ajuizou que a atitude não seria justa com o filho, porque estaria privando-o dos primeiros contatos com o pai. Depois, envolveu-se nos cuidados com a criança e adiou a ruptura do casamento.

Quando Jorginho completou três anos, decidiu que era hora de trabalhar. Apesar da oposição de Jor-ge Castro, bateu pé firme e voltou a estudar num cur-sinho preparatório para concursos. Quase dois anos depois foi aprovada num concurso do Supremo Tri-bunal Federal

Seis anos depois a tragédia marcou e modificou sua vida para sempre. Em um domingo à tarde Jor-ge encarregou-se da buscar o filho que se encontra-va na casa dos avós maternos. Por volta das dezoito horas retornava à casa paterna, quando pouco antes de chegar à altura da segunda ponte, o carro que vi-nha em sentido contrário invadiu a via em que ele se encontrava e abalroou o seu. Jorginho que estava no banco da frente e não usava o cinto de segurança foi arremessado contra o para-brisa espatifando a cabe-ça. A morte foi instantânea. Jorge Castro teve apenas escoriações leves.

O casamento na resistiu à tragédia, porquanto, Maria Luiza só o mantinha pelo filho. Dois meses de-pois estavam definitivamente separados.

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Vida B

No aniversário de cinquenta anos de casados (no papel eram quarenta e sete), os filhos gêmeos de Maria Luiza e Felipe organizaram a festa de bodas de ouro contando com a contribuição de seus filhos que eram netos e xodós do casal aniversariante.

A vovó Maria Luiza que já era uma senhorinha de setenta e quatro anos mostrava-se um tanto alque-brada, pois ao longo daqueles anos teve alguns pro-blemas de saúde que foram abrandados pelo compa-nheirismo e carinho do marido que sempre presente e disposto nunca a deixou na mão.

Felipe que era três anos mais novo que a espo-sa mostrava-se vigoroso e dinâmico. Quando en-trou na igreja para renovar os votos do casamento, um filme passou em sua cabeça e na película viu a mocidade que foi embora e não lhe pareceu tão distante. Recordava-se claramente do dia em que conheceu aquela moça descolada que pintava o ca-belo e adorava cantar Sampa. Aquela moça obsti-nada que saiu da casa dos pais para com ele viver. Aquela moça que se tornou mãe, depois avó e nos momentos difíceis caminhou ao seu lado. Juntos foram alegres e tristes. Juntos trabalharam e cria-ram os filhos. Juntos venceram as dificuldades e o desafio mais difícil, quando um dos filhos aos nove anos de idade adoeceu e quase morre. E, agora, unidos como sempre se preparavam para receber a benção do padre.

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Depois da cerimônia religiosa abriram a fes-ta dançando ao som das valsas Vienenses. Quando brindaram embalados pelos “Parabéns a você”, os olhos da vovó Maria Luiza estavam marejados de lágrimas, recordou da mãe lhe pedindo perdão pou-co antes de morrer e admitindo que fizera a escolha certa ao se casar com Felipe.

Vida A

Depois que se separou de Jorge Castro, por acordo, Maria Luiza além do carro, ficou apenas com dois apartamentos, um na Asa Norte e outro na Asa Sul no qual foi morar. Daquele casamento nada pre-tendia levar, mas o ex-marido mostrando-se genero-so insistiu para que ela ficasse com aqueles bens.

Chegava aos sessenta anos com poucos relacio-namentos no currículo. Após a separação teve apenas dois namorados, mas por culpa que sabia sua, não deram certo. Nunca esqueceu o filho e por anos a dor foi apaziguada por sua dedicação ao trabalho, que também abrandou a solidão.

A mãe falecera a alguns anos culpando-a pelo casamento não ter dado certo, mágoa que não conse-guia arrancar do peito.

Amizades mantinha apenas com duas amigas, uma viúva, outra solteira, que ao longo do tempo tornaram-se inseparáveis. Nos últimos quatro anos sempre planejavam e viajavam juntas, geralmente em janeiro, e foi por sugestão de Carla Santana que fize-

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ram o cruzeiro pela costa brasileira. Agora, embarca-das, apreciavam e se divertiam com as atrações e op-ções proporcionadas durante a viagem. O navio era um colosso dividido em quatorze decks, com bares, boates, danceterias, restaurantes, área de piscina, etc.

Um dos locais mais apreciados por Maria Luí-za era o bar do deck 7 e foi lá que, pela terceira vez, ela viu aquele senhor e julgou reconhecê-lo. Agora estava acompanhado por um rapaz que pelas feições certamente seria seu filho, deduziu. Quedou-se mais alguns minutos tomando coragem e o abordou:

— Boa tarde! Por acaso o senhor não é o Felipe?— Boa tarde! – responde num átimo o homem.

Somente depois a olhou e tomado pela surpresa fran-ziu a testa e seu cérebro em instantes acessou arquivos bem guardados que lhe foram remetidos pela ima-gem que tinha à sua frente. Aí, julgou reconhecê-la:

— Maria Luíza? É você mesma? – pergunta como se não pudesse acreditar para receber um afir-mativo balançar de cabeça. – Que prazer em vê-la. Como vai? – diz abrindo um largo sorriso que não deixa dúvida sobre a satisfação daquele encontro para em seguida abraçá-la e ser correspondido.

Convidada para se sentar à mesa, Maria Luiza não se faz de rogada. Felipe apresenta o filho que, em seguida, os deixa a sós. A conversa se inicia um pouco tímida, porém, logo depois de tomados alguns drinks, demonstram a intimidade dos grandes ami-gos. Embevecida, Maria Luiza sorve as palavras da-quele senhor cordato que um dia foi seu namorado, e

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O P R E C O N C E I T U O S O

parece ter deixado para trás qualquer impulsividade da juventude.

Felipe conta a Maria Luiza que seu primeiro casamento durou apenas sete anos, e que Júnior (o rapaz que ela acabara de conhecer) é fruto dessa pri-meira união. Depois, viveu mais dois anos de uma relação muito conturbada com outra pessoa, que não dando certo, praticamente, o tornou um solteirão convicto. A ex-namorada lhe narra todos os seus de-sencontros durante a vida. Os maus-tratos recebidos de Jorge Castro. A implicância da sogra. A morte do filho e os relacionamentos sem amor.

Nos quatro dias restantes do cruzeiro se encon-traram, conversaram, dançaram, almoçaram, jan-taram juntos e riram um do outro e de si mesmos. Mas, para ambos, o melhor foi quando se beijaram e sentiram a mesma emoção do primeiro beijo que trocaram há anos um tanto longínquos.

Mais tarde, na cabine de Felipe, se amaram a noite toda de onde enxergavam milhares de estrelas que embelezavam o céu.