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As Vozes do Mudo uma antologia mínima de uma literatura das margens Ferréz Paulo Lins Marçal Aquino Organização Ary Pimentel Ricardo Pinto confraria do vento Faculdade de Letras

As vozes do mudo

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Ary Pimentel, Ricardo Pinto

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AsVozesdoMudo

uma antologiamínima de

umaliteraturadasmargens

FerrézPaulo LinsMarçal Aquino

Organização

Ary PimentelRicardo Pinto

confrariado vento

Faculdadede Letras

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Copyright © 2005 seleção e apresentação, Ary Pimentel eRicardo PintoCopyright © 2005 desta edição, Faculdade de Letras / UFRJ

“O ônibus branco”, “O plano”, “Baseado em fatos reais”, “Hojetá fazendo um sol”, “Um dia eu vi” © 2002 Ferréz,reproduzidos com permissão do autor.

“Destino de artista” © 2005 Paulo Lins, reproduzido compermissão do autor.

“Balaio” © 2001 Marçal Aquino, reproduzido com permissão do autor.

REALIZAÇÃO:Faculdade de Letras da UFRJ

PROJETO GRÁFICO:Confraria do Vento (www.confrariadovento.com)

APOIO EXECUTIVO:Martha Suely Simas | Maria Cristina Ramos | Virgínia de Oliveira Silva

As imagens da primeira e quarta capas e as ilustrações internassão grafites pintados nos muros da Av. Presidente Vargas (Riode Janeiro). Fotos de Ary Pimentel.

Pimentel, Ary & Pinto, RicardoAs vozes do mudo: uma antologia mínima de

Ferréz, Paulo Lins e Marçal Aquino/ Ary Pimentel eRicardo Pinto, orgs. – Rio de Janeiro: Faculdade de Letrasda UFRJ e Confraria do Vento, 2005.

50 p.; 18 cm.ISBN: 85-87043-53-6

1. Literatura brasileira – História e crítica. 2. Escrito-res brasileiros – Crítica e interpretação. 3. Contos bra-sileiros - coletânea.

I. Pimentel, Ary, 1965II. Pinto, Ricardo, 1978

B.869.09V977

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ÍNDICE

Apresentação

FerrézO ônibus branco

O plano

Baseado em fatos reais

Hoje tá fazendo um sol

Um dia eu vi

Paulo LinsDestino de artista

Marçal AquinoBalaio

25

5

131721

31

45

9

29

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A LITERATURA DA VIOLÊNCIA E AVIOLÊNCIA DA LITERATURA

Em 1997 quando surgiu Cidade de Deus, a maioriadas matérias na mídia chamava a atenção para o

fato de Paulo Lins ser uma legítima “voz do morro”.Os espantos, nem eles são neutros, e por trás destaespécie de encanto com o fato do morro ser capaz deproduzir uma voz (finalmente!) havia a suposição deque lá não era lugar em que voz fosse produzida. Como passar dos anos ficou cada vez mais claro que aimportância da obra de Lins não era uma concessãodos de fora do morro, mas sim uma imposição daqueleromance do morro sobre o resto da sociedade, e maisque isso, uma representação adequada da identidadedaqueles que estão lá dentro e lá fora. Foi necessárioaceitar algo que até então era difícil de se admitir:falando do morro, falava-se do Brasil. Seriam os bárbarosuma solução?

Durante séculos a literatura excluiu as camadas maispobres e os marginalizados sociais que começam aaparecer no texto narrativo como resultado deconquistas alcançadas no último século, processomarcado pelo menos por três momentos. Numprimeiro momento, após centrar-se no mundo dospróprios homens de letras, a literatura transforma oOutro em “objeto da escrita”1. Há pouco mais de umséculo, o pobre, o negro e o mestiço proletário, depoisde aparecerem como problema para a sociedade daépoca, aparecem como tema para o romance naturalistarepresentados por um olhar estigmatizante. Estespersonagens que povoam os espaços marginais da cidadee da sociedade levariam ainda algumas décadas paraadquirir voz no processo narrativo e para conquistarum espaço protagônico no texto literário. Mas mesmo

1BOSI, Alfredo. A escrita e os excluídos. In: ___.Literatura e resistência. São Paulo: Companhiadas Letras, 2002, p. 257.

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após estas conquistas que configuram o segundomomento, ainda aparecem no universo artístico comoprojeção de um olhar do Eu, daquele que tem voz eque hegemonicamente é responsável pela representaçãode seu próprio mundo e do mundo do Outro.Ressalvando-se casos isolados como o de Lima Barretoou João do Rio e exceções a toda regra como CarolinaMaria de Jesus, podemos talvez dizer que vivemos nofinal do século XX e inícios do século XXI o terceiromomento da relação entre a literatura e a alteridade: aemergência do Outro no campo literário como “sujeitodo processo simbólico”2

O panorama sintética apresentado acima configurauma das maiores violência da literatura: o nãoreconhecimento da capacidade do Outro de seautorepresentar e o emudecimento para a representaçãoliterária de uma imensa parcela da população.

Talvez derivada desta violência da literatura bemcomo do rastro de barbárie que o processo civilizatóriofoi deixando pelo caminho surge uma literatura daviolência, uma literatura que expressa implacavelmentea violência social. Projetam-se agora no mundo dasletras os ecos de um grito longamente silenciado,produzido solitariamente no outro lado da cidade: aliteratura dos ex-cêntricos, dos periféricos com textosque propõem um novo olhar a partir de outros locaisda cultura.

A idéia central desta literatura das margensliteratura das margensliteratura das margensliteratura das margensliteratura das margens ouliteratura margliteratura margliteratura margliteratura margliteratura marginalinalinalinalinal talvez seja a de deslocamento doolhar, numa atitude que leva o foco da representaçãopara o cotidiano dos pobres, para as margens dasociedade, para o mundo da diferença, uma diferençaque traz a marca do monstruoso e do violento. Essa éuma literatura caracterizada pelo que deixa ver dosinvisíveis urbanos. Um de seus objetivos principais é

2 Ibidem, p. 259.

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des-velar o espaço dos habitantes das comunidadespopulares. E nisto temos um ato político que choca amuitos leitores que não gostariam de ver o que está aoseu lado e estes textos insistem em mostrar-lhes: oinvisível que se torna obsceno ao mostrar-se narepresentação literária. Paradoxalmente o que os autoresdesta geração fazem é meter a realidade na ficção paraque ela se torne mais próxima do leitor que com elaconvive.

Opõe-se o jogo bruto da literatura ao jogo brutodo real, para expô-lo, denunciá-lo, agredir com arepresentação da violência os que permanecemimpassíveis ante a violência real.

Percebemos, portanto, que o caráter explícito decontato entre realidades também marca esta novaliteratura. Aproximação dos diferentes e aproximaçãodo leitor de um cotidiano brutal que está cada vezmais próximo dos que continuam a defender a lógicade uma sociedade de ilhas é uma dimensão recorrentenestes textos.

Alguns dos autores desta geração trazem arealidade tatuada na pele; periféricos eles próprios, lêemo texto tatuado nos corpos periféricos. Ante a realidadeque os convoca, autores como Ferréz se propõem arepresentar o cotidiano violento da periferia em textoscomo “O ônibus branco”, verdadeiros retratos da vidaurbana sem artifícios, sem concessões. O seu, como ode Paulo Lins e Marçal Aquino, é um texto que interpelao leitor, inquieta, angustia e não oferece soluçõesprontas, apenas perguntas.

A literatura marginal é, ao mesmo tempo,exper imental e política, manifestação contra opredomínio do mercado e da mídia na legitimação ena circulação da produção simbólica contemporânea,no sentido de superação das restrições impostas a outras

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vozes, bem como concretização da utopia de que umoutro olhar é possível, menos burguês, menos elitista,menos distanciado das margens da sociedade, menoscentrado no universo da Casa Grande.

Contribuição para a reflexão sobre a realidade esobre a representação da realidade, essa literatura étambém um grito, expressão da revolta da periferiasilenciada durante tanto tempo. E não só a periferiatem voz, mas o morro, e o interior, e os milhões sememprego e outros tantos fora das luzes das novelas, dasrevistas e dos jornais, o país que aparece apenas naspáginas policiais ou como massa de manobra para apolítica e para a caridade. O interior do país que formouo interior da cidade, seu nervo e carne nervosa, todosestes Estados Gerais da mudez, na verdade têm voz.Falam há algumas centenas de anos sobre tudo, e falamcom arte e com beleza, de modo que o que falta nãosão propriamente línguas, mas um novo olhar para oreal que é essencialmente político.

Os três autores presentes nesta edição são mestresna grande arte de construir pontes: ao longo de suascarreiras vêm se esforçando para que o silêncio sejasuperado, e se isto por si já lhes daria grandeza, fazê-locom o difícil dizer da literatura, com a responsabilidadeda reflexão e da profundidade, tornam-nos tambémpessoas que aceitaram o risco de ir além de clichês ede lugares comuns, e fazer o mudo falar com todacomplexidade que sua falsa mudez exige. Esperamos,então, que este livro esteja à altura das pontes já lançadas,e que seja ele também mais uma ponte. E, finalmente,que sobre os abismos que as pontes superam, possa estaralgum germe do futuro. Assim, sejam bem-vindos auma nova literatura brasileira.

Ary Pimentel e Ricardo Pinto

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Ferréz

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FerrézFerréz, nome literário de Reginaldo Ferreira da Silva, é umahomenagem a dois grandes heróis populares brasileiros:Virgulino Ferreira, o Lampião (FERRE) e Zumbi dos Palmares(Z). Filho de uma empregada doméstica e um motorista, nasceuem 1975, em São Paulo. Autodidata ferrenho e leitor voraz detudo que encontrava nas bibliotecas púbicas, sebos e bancas dejornal, Ferréz começou a escrever antes dos dez anos de idade,mas só em 1997 lançou seu primeiro livro, um volume depoesia intitulado Fortaleza da desilusão, edição independentepatrocinada pela empresa Ética Manpower, onde trabalhava.Antes disso, sem nunca se separar dos livros, exerceu váriosofícios. Entre trabalhos fixos e temporários em uma padaria,vendendo vassouras ou camisetas, como balconista delanchonete, arquivista ou lixando paredes na Av. Paulista,continua a ser um freqüentador assíduo das bibliotecas públicasonde pega emprestado livros de autores que influenciariamsua prosa: Dostoievski, Herman Hesse e Gorky. A notoriedade,contudo, só viria em 2000 com o lançamento de Capão pecado(Labortexto), romance ambientado na periferia paulista, maisespecificamente no Capão Redondo, comunidade da ZonaSul da capital onde Ferréz cresceu e continua morando mesmodepois de ter sido reconhecido como uma das maioresrevelações da literatura brasileira das últimas décadas. Em seusegundo romance, Manual prático do ódio (Objetiva, 2003),aperfeiçoa suas habilidades narrativas, unindo experiência,observação e imaginação em um novo mergulho no cotidianoviolento da periferia paulista. Projeta-se com estas primeirasobras, que logo se seguiriam de Amanhecer esmeralda (Objetiva,2005), uma voz radical que relata diretamente do gueto overdadeiro “negro drama” dos moradores da periferia. Ligadoao movimento hip hop, em 1999 funda o 1DASUL, movimentocultural que atua nos bairros da periferia. O nome alude àidéia de que os participantes do movimento são todos iguais,são todos “um” lutando pelo mesmo ideal de inclusão edignidade na Zona Sul. Cr iado no gueto, investiuincansavelmente em sua vocação, mas percebeu logo que acaminhada não podia ser solitária. Resolveu resgatar outrasvozes que tivessem o mesmo berço humilde e se expressassematravés da literatura marginal-mente. Tornou-se, então, criador,organizador e editor do projeto Caros Amigos/LiteraturaMarginal, revista que reúne textos e desenhos de moradoresdas periferias de cidades brasileiras (No 1 em 2001, No 2 em

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2002 e No 3 em 2004). Mais recentemente, este esforço assumiuuma dimensão ainda maior, e Ferréz organizou o volumeLiteratura marginal: talentos da escrita periférica (Agir, 2005).Criador e guerreiro, dedica-se hoje exclusivamente à literaturae à luta por transformar em realidade sua utopia de um mundomais justo e menos desigual. A paixão de narrar funciona comouma possibilidade de salvação. Para Ferréz, a salvação está emlevar os livros para a periferia e a periferia para os livros. Ostextos presentes nesta edição, publicadas ao longo do ano de2002 na revista Caros Amigos, são uma boa introdução para aleitura de seus romances. Neles encontramos a violência e atristeza, a exploração bárbara dos mais pobres pelos mais ricos,a morte e a luta contra o sistema.

Eu quero ter o belo prazer subversivo de cantar meu rap, euquero ter o direito arbitrário de escrever minha literaturamarginal, eu quero ser preso, mas por porte ilegal deinteligência, antigamente quilombos, hoje periferia, o zumbizumbizando a elite mesquinha, Záfrica Brasil um só por todosnós, somos monjolos, somos branquindiafros, somosClãnordestino, a peste negra, somos Racionais, somos NegroDrama (...).

Raciocino à luz de velas, leitura feita nas proximidades docórrego, pequena biblioteca cheia de livros cancerígenos noquartinho da escola, o grêmio que é massacrado pela diretoraque veio do outro lado da ponte, que não conhece uma vieladepois dos muros da escola, o exemplo do Estado começacedo, pois eles não suportam isso, eles só suportam e querem ocontrole e contenção.

Além dos condomínios existe vida real, há muito tempofalamos, ninguém ouviu, filmes são vistos, livros são lidos, discosforam ouvidos, mas não entenderam ainda o que queremos.Respeito. Só respeito como seres humanos, ponham muros, subamcom tropas, cerquem, discriminem, invadam os barracos (... ).

Ferréz

(Texto publicado na revista Caros Amigos)

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O ÔNIBUS BRANCO

Entrei, já estava lotado, não havia notado a semelhança dos passageiros, eu estava esgotado, não

sabia mais por onde correr, os dois inimigos atrás demim não acertaram os tiros, estou intacto fora o cansaço,nem vi de onde eles saíram, vieram cobrar treta do caraerrado, eu num tinha nada a ver com aquelas fitas, vousumariar tudo isso hoje mesmo quando chegar na quebra.

Olhei para o lado e vi o meu parceirinho, nãoacreditei, Marquinhos ali do meu lado.

— E aí, parceiro, como vai?

— Tamo indo, mó saudade Nal, me dá um abraço aqui.

— Claro, só você mesmo pra me chamar de Nal,porra, mó saudade, por onde tinha andado?

— Ah! Desde aquele dia da pizzaria que meu anjoda guarda se distraiu eu fiquei por aqui, tô nesse ônibus,junto com outros, olha lá o China, já tá tentando abrira porta, o motorista fica que fica louco.

— Pode crê! Oi, China...

— E aí, Ferréz?

— Meu, como vai você, cara?

— Tô indo, essa porra desse motorista num abre aporta, eu vou zuar ele.

— Meu, mas você e o Marquinhos no mesmoônibus, aí já é coincidência demais.

— Nada é coincidência, Ferréz, como tá indo meuirmão lá, e o meu velho e minha mãe?

— Tão bem, eles ficaram bem triste, né, mas tãoindo, o Chininha tá lá, andando de moto como sempre,ele anda muito com o Dentinho.

— Fala uma coisa pra ele, véio.

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14 FerrézFerrézFerrézFerrézFerréz

— Falá o que, China?

— Fala que num compensa, num compensou pramim, eu tô com saudade, abraça eles pra mim.

— Pode deixar, esse ônibus tá indo pra onde?

— É bom você num sabê.

— Mas Marquinhos...

— Ferréz, se liga quem tá lá no banco da frente.

— Quem?

— O Wilhiam.

— Porra, num acredito, chama ele aqui, fomos todoscriados juntos, num acredito que ele tá aqui também.

— Só tem um problema, ele num pode passar praessa parte do ônibus, ele tem que ficar lá na frente, cêsabe, né, ele aprontou um pouco.

— Num tô entendendo, Marquinhos, como assim?

— Bom, lá com ele tá o Rodriguinho, o Tatá, oDunga, o Edinho.

— Puxa, tá todo mundo aqui, o Rodriguinho eutenho que ver, ele foi um dia depois que tomamosrefrigerante e comemos mó churrascada em frente àpadaria, queria perguntar pra ele se...

— Nada disso Ferréz, a gente num pode falar comeles, mas o ônibus tá lotado de amigo nosso até lá nafrente, vai reparando...

— Pode crê! Olha o Peixe lá, eita mano firmeza,olha o Boca de Lata, que legal, putz o Ratão tinha quetá aqui, os parceiros dele tão de monte aqui também,mas como tá todo mundo junto assim se...

— O barato é esse, Nal, desculpa, agora é Ferréz, né?

— Pode chamar de Nal mesmo, nóis num tem essa.

— Então manda um abraço lá pra minha irmã

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Fabiana, pra Ana Lucia e pra Mimi, diz pra minha mãese cuidar que eu amo ela de montão, e vê se lembradisso, eu vou voltar, quando você tiver a maior alegriada sua vida, o resto dos parceiros não pode falar comvocê, eles sempre escolhem um pra falar, então é isso,agora chegou sua hora de descer, irmão, já deram o sinal.

— Mas eu queria te dizer que...

— Desce, Nal, eu sei que você sente minha falta,nós sentimos a sua também, mas este ônibus porenquanto não tem destino pra você, tchau Nal.

Desci, andei por uma rua escura muito tempo, atéachar uma claridade, parei e me dei conta de que amaior alegria da minha vida vai ser quando meu filhonascer, fechei os olhos e abracei todos os meus amigosque se foram.

Cheguei em casa e ainda não consegui parar dechorar, pois sei que o ônibus vai continuar tendo novospassageiros, sempre, sempre, sempre.

O ônibus branco

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O PLANO

O esquema tá mil grau, meia-noite pego oônibus, mó viagem de rolê pra voltar, o trampo

nem cansa muito, o que mais condena o trabalhador éo transporte coletivo. Muita gente no buzão, muitas demaquiagem pesada, mas muitas também com oscadernos no braço, mulher de periferia é guerreira,quero ver achar igual em outro lugar.

O plano vai bem, dois manos de cadeira de rodasno final do Capelinha, um outro de muleta, um cegoentra logo depois, essa porra é ou não é uma guerra?

Os pés descalços, sujos como a mente da elite, oplano vai bem, todos resignados, cada um, uma seqüela,chamados desgraçados, nunca têm no bolso o dobrode cinco, nunca passaram na rua da Confluência daForquilha, e se passaram, pararam, entraram nosapartamentos, fritaram rosbife, prepararam lindos pratose em casa nem o ovo é esperado, cuidam da segurançados outros e em casa nem isso sonham ter.

Não me admira que o plano funcione, ospensamentos são vadios, afinal essa é a soma de tudo.Quem? O rei do ponto? Esse tá sossegado só contandoo dinheiro. Informação? Não! O povo é leigo, nãoentende, então não complica, o assunto na favela é sóCasa dos Artistas, discutir na favela só se o Corinthiansé campeão ou não, nada contra, sabe, mas futebol não éarte, futebol é bola e homens correndo. Pra mim numpega nada, desculpa quem gosta disso, mas é simples, éa regra da vida em simples lances, eu quero mais, queroregras complicadas, quero traços que tragam uma épocaque talvez não vivi, mas sinto, quero palavras que geremvida, desculpa aí, meu, mas eu não gosto disso aí, pramim nunca vogô nada, nunca entendi, nunca participei,

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18 FerrézFerrézFerrézFerrézFerréz

só sei que muitos de que gostei morreram por isso, masnunca entendi por que morrer por isso.

O meu povo é assim, vive de paixão, o idealrevolucionário também é pura paixão, muitos amamLucimares, muitos amam Marias, Josefas, Dorotéias, ena transubstanciação da dor um tiro mata umempresário no posto, o plano funciona.

E quer saber?

Ninguém é inocente em São PNinguém é inocente em São PNinguém é inocente em São PNinguém é inocente em São PNinguém é inocente em São Pauloauloauloauloaulo.....

Somos culpados.

Culpados.

Culpados também.

O mundo em guerra e a revista Época põe oBam Bam do Big Brother na capa, mas que porra depaís é esse?

Ah! É verdade, o plano funciona.

Tô no buzão ainda e um maluco me encara, vai sefoder, você é meu espelho, não vou quebrar meu reflexo,mas a maioria quebra, faz o que o sistema quer.

Quem gera preconceito é só quem tem poder, umsem o outro não existe, o ônibus balança que só a porra,tenho até desgosto de continuar a escrever, mas comigoo plano não funciona.

Finalmente o ponto, a porta abre bruscamente,desço, todo mundo no pau, o motorista mal esperadescer e sai em disparada, ando até em casa, já táserenando, pizzaria aberta:

— Chega aí, Ferréz!

— Vô não, irmão, tenho que resolver algumas coisas.

Chego em casa, deixo a bolsa, pego o livro do Dr.Lair Ribeiro, tenho vontade de rasgar, mas vou deixarlá na biblioteca, deve servir pra alguém, sei lá, vai saber,

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tem louco pra tudo, né não? Pego o Memórias de umsobrevivente, do Luiz Alberto Mendes, isso é livro deverdade, começo a folhear, decido ir pra casa do André,vou cerrar um café por lá mesmo, um outro, o meuantigo parceiro pipocou, me decepcionou, se entregoupor pouca coisa, que se foda então, ficá perto de fracodá fraqueza, subo a rua, chamo, ele aparece e diz que táindo pra casa do Duda, decidimos ir, chegamos lá, aDona Geny já começa a fazer o café, a gente senta noconfortável sofá da sala, a Mel vem brincando, quecachorrinha da hora, a Fabiane liga a tv e o planocomeça a funcionar de novo.

O plano

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BASEADO EM FATOS REAIS

MarMarMarMarMarcelocelocelocelocelo

9 anos

— Vamos sair, Marcelo?

— Pra onde?

— Jogar bola.

— Num posso.

— Por que?

— Tenho que cuidar deles.

— Deles quem?

— Minha vó e meu tio, eles estão de cama, elesnão andam.

— E sua mãe?

— Foi internada pra ganhar meu irmão.

— E ainda não voltou?

— Não, deu uns problemas com a cabeça dela lá.

— E seu pai?

— Cê esqueceu? Morreu quando eu tinha quatro anos.

AparAparAparAparAparecidaecidaecidaecidaecida

13 anos

— Vem gatinha, cadê meu beijo.

— Tá aqui, meu gato.

— Vamos fazer hoje, meu amor?

— Mas já, acho que não.

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22 FerrézFerrézFerrézFerrézFerréz

— Por que, se eu te amo?

— Eu também te amo.

— E aí?

— Tenho algo pra te contar, meu amor.

— O que, minha princesa?

— Eu não sou mais assim.

— Assim como?

— Cê sabe.

— Virgem?

— É.

— Como? Com quem você fez?

— Sabe aquele negócio de minha mãe mudar parao alojamento?

— Sei, mas o que tem a ver?

— É que o engenheiro que escolhia as casas...

— Mas num tinha a ver com o metrô?

— É, só que eles trabalham para o metrô, e ele iaarrumar nossa situação.

— E daí?

— Calma amor, é que pra ele dar as casa ele pediapra sair com nóis.

— E você foi?

— Minha mãe mandou.

— Puta que o pariu, eu mato ele.

— Mas ele é rico, a gente num pode fazê nada...

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FFFFFerererererrézrézrézrézréz

27 anos

— E aí truta, tudo pela ordem?

— Tudo, de onde eu te trombo mesmo?

— Lá do Jardim Ângela, cê deu uma palestra naminha escola.

— Pode crê.

— Então Ferréz, eu queria te trombar mesmo oh!

— E o que pega trutinha?

— Tem uma história pra ti, é curta mas foi comigomesmo que aconteceu.

— Truta, eu posso tá ouvindo, vamos tomar umrefri ali no bar.

— Tá legal.

— E essas marcas aí no teu rosto?

— Isso tem a ver com a história.

— Coca-cola ou guaraná?

— Dolly que é mais barato e vem dois litros.

— Certo, mas e aí, o que tá pegando?

— É o seguinte, minha mãe tá desempregada né, ecê sabe que a gente tem que fazer uns corres aí pra viver.

— Mas você ainda é novo.

— Que nada já tenho 16, e nessas eu tava fazendoumas fitas lá naquele mercado grande.

— Vixi! Mó barato sinistro, heim.

— Pra cê vê, tava pensando: se eu roubar uns baratomiúdo eu viro um dinheiro pra coroa, então pegueilogo um litrão de whiski.

Baseado em fatos reais

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24 FerrézFerrézFerrézFerrézFerréz

— Ahã.

— Logo o gerente me pegou no flagra.

— E aí?

— Me levou pra trás do galpão dos estoque, disseno telefone que era um código X-10, isso quer dizerque eles devem chamar todo mundo da loja pra ver.

— E foi todo mundo te ver?

— Isso num é vergonha, só que ele começou a meesmurrar, truta ele me deu um soco tão grande na caraque o resto eu nem senti.

— Filho da puta.

— E os gambé do mercado só olhando, ele mepegava pelo pescoço e gritava: “Você é louco? Vemroubar meu mercado?”. Eu nunca pensei que ia apanhardesse jeito, no rosto dos funcionários eu ainda notei odó, porra! Até eu tive dó de mim.

— E aí, como ficou?

— Depois ele passou para os gambé bater também,só que um era preto que nem eu e teve meio dó, davaumas porradinhas meio na moral.

— Sabia que isso dá processo, trú.

— Dá nada, Ferréz, essas lei aí é só pra eles, tôerrado mesmo, só que se um dia eu trombo um sóparecido com ele, eu arrebento.

— Pensa assim não, trú, faz o seguinte, deixa onome dele comigo, na hora certa nóis faz ele passaruma vergonha grande, uma pá de gente vai saber quemé esse patrão bom batedor.

— Só que ele não é dono nem nada, o mercado éde um boyzão, aquele que tá andando com o presidente,e o maluco aí era só gerente.

— Eu sei trú, isso é o que mais dói.

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HOJE TÁ FAZENDO UM SOL

Marquinhos foi baleado aquela noite, na pizzaria.Hoje tá fazendo um sol de rachar, e já era pra ele

ter acordado cedinho, ter pegado seus algodões doces ejá era pra tá bem longe tentando vendê-los.

Seu pai os fabrica até hoje, na mesma casa, nomesmo quartinho, lembro que, quando éramos crianças,afinávamos vareta juntos, suas irmãs também, logo demadrugada. Ele tinha mó vergonha de eu entrar na suacasa, toda vez que eu entrava era à força, ia abrindo oportão e gritando: “Cadê meu café?”

Deu uns anos, e ele começou a tocar violão, iavender algodão e jogava todo o dinheiro em fliperamaspelo caminho, seu pai ficava doido com ele, viviapedindo pra eu interferir, mas sabe como é que é,moleque sem responsa.

A gente começou a estudar junto, estudávamos na3ª série do 1º grau, colégio Euclides da Cunha, tododia seu pai ia ver se ele estava indo à aula, o apelidodele na sala era turista, faltava à beça e punha a culpano trabalho.

O que era mais legal era que sua família inteira éevangélica, e ele era proibido de ver televisão, por issovocê podia vê-lo na casa de todo mundo na favela, iapassando de casa em casa vendo a programação, adoravao Chaves, ficava vidrado na telinha.

Sabe, mano, o Marquinhos tinha uma qualidademuito boa, ele era extremamente humilde, daquelescaras de dividirem o que tinha na mão, podia ser umpedaço de pão seco, que ele passava na nossa banca e dividia.

Teve uns tempos que ele começou a tocar violão,

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26 FerrézFerrézFerrézFerrézFerréz

comprou um velhinho, todo remendado, que hoje tácomigo, ele gostava de cantar Legião, aquela música doEduardo e Mônica e vivia tocando Faroeste caboclo,cantava ela todinha, sem errar uma parte, na frente daminha casa foram muitas as vezes que ele tocou Umhomem na estrada, do Brown.

O Marquinhos era o último amigo da infância queeu tinha aqui no Capão, e ainda me chamava peloapelido de criança, ele tava compondo bastante, e tinhao sonho de mandar as músicas pro Zezé Di Camargo,vivia pedindo o telefone pra mim, e eu vivia dizendoque um dia eu ia apresentar ele pro Zezé, emborasoubesse que era algo muito distante daqui.

De vez em quando, ele passava pela minha casa egritava: “E aí, Nal, tá trabalhando?”

Eu parava de digitar e ia pra beira da janela,conversava com ele um pouco e perguntava se queriaentrar, ele dizia que não ia me atrapalhar e que tava prasair com uma mina nova que tinha arrumado.

O moleque era mó sofredor, e virou homemsofrendo também, o acesso ao trabalho ficava cada vezmais difícil e ele tava tendo que viajar pra trabalharfora, ia pro Rio de Janeiro, trabalhava um mês seguidode ajudante de instalação, eles saíam daqui nuns trintacaras, tudo pra montar loja em outros lugares, depoisde um mês eles voltavam.

Naqueles dias o Marquinhos tava no Rio, e tiroudois dias de folga, seu patrão disse que, como ele nãoconhecia o Rio, era melhor voltar pro Capão, ele aceitoue veio gastar um pouco de dinheiro que tinha ganhado,num domingo ele reuniu a família e foi pra pizzariaaqui do lado, eu nem o vi chegar do Rio, tava doidopra dizer que meu livro tava quase terminando, afinalele era personagem também.

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Sabe, ele foi baleado aquela noite na pizzaria, nafrente do sobrinho, das irmãs, da namorada e dos amigos,ele tava saindo do banheiro e não viu que a pizzariatava sendo assaltada, os ladrões o estranharam eefetuaram um disparo, que levou sua vida, dizem quefoi descuido do anjo da guarda, sua família fala que foiporque ele se afastou da igreja, mas eu só sei que perdium amigo.

Sabe, mano, agora eu tenho contato com uma páde músico, e podia estar indicando o trabalho doMarquinhos pra eles, mas ele se foi, mais uma vítimadessa guerra, que pende sempre pro lado mais fraco.

Meu último amigo de infância que sobrou aqui jáfoi, a última testemunha de toda uma batalha pelasobrevivência, sabe, mano, muita coisa mudou por aqui,mas até o céu cobra água pra chover e o processo deevolução tá sendo muito lento.

As letras tão guardadas, o violão tá parado, a gentefica sentado na calçada e direto falamos dele, lembramosdos sorrisos, das madrugadas jogando conversa fora emvolta do Postinho, dos sonhos que foram levados porcausa de 40 reais, apenas quatro notas de papel quevalem a vida de um amigo, um cara que vestia ahumildade. Há vários casos, há vários exemplos, esse éum de alguém que conheci muito bem, um cara queapesar de todo o sofrimento amava a vida, e a queriamais um pouco.

Hoje tá fazendo um sol

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UM DIA EU VI

Um dia eu vi.

Vi e não gostei nada.

Nada poderia explicar aqueles olhos.

Olhos tristes de uma dor.

Dor que não podia ter explicação.

Explicação que seria fácil demais para algo tão doloroso.

Doloroso foi quando chegou ao hospital e lhe deram

uma notícia.

Notícia que jamais podia prever desse jeito.

Jeito estranho de falar que havia falecido seu pai.

Pai esse que fizera de tudo para lhe dar o mínimo que

era o estudo.

Estudo que hoje aprendeu a valorizar e a entender.

Entender era difícil naquela situação, soltava uma pipa.

Um pipa que voava e tentava planar a dor que sentia.

Sentia uma dor muito forte no peito.

Esse mesmo peito que tinha um coração igual ao do pai.

Pai que tanto havia trabalhado até ficar desempregado.

Desempregado, sempre visto como fracassado e sujeito

a humilhação.

Humilhação para o pai, homem negro, forte, era ver o

filho fumar.

Fumar era algo feio para o filho, mas ele precisava de

algo novo.

Novo era o coração que o pai precisava, mas sem

convênio não dava.

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30 FerrézFerrézFerrézFerrézFerréz

Não dava para viver aquela vida estranha, sem dinheiro,

sem futuro.

Sem futuro para quem sempre trabalhou.

Trabalhou de vigilante por mais de dez anos.

Dez anos de um pouco de fartura.

Fartura que servia para uma boa comida, roupas e diversão.

Diversão que para o pai era beber e jogar bilhar.

Jogar bilhar o filho aprendeu, mas gostava mais de soltar pipa.

Soltar pipa para ele naquele dia era até um alívio.

Alívio era ver a pipa voando, os olhos enchendo d’água.

Enchendo d’água sua casa sempre estava em dias de chuva.

Dias de chuva traziam ao menos a lembrança.

Lembrança de estar com seu pai tomando chuva na viela.

Viela que agora parecia vazia e sem um grande homem.

Grande homem simples, que começou a morrer quando

perdeu o emprego.

(Este texto é dedicado ao Luizão,

mais uma vítima de São Paulo)

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PauloLins

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Paulo LinsPaulo Lins nasceu no Rio de Janeiro, em 1958. Criou-se noEstácio e na Cidade de Deus, comunidades onde sedesenvolveram respectivamente a velha e a nova marginalidade,o malandro nobre e o traficante violento. Esta transição é umdos seus temas preferidos, servindo inclusive para estruturarseu romance Cidade de Deus. Estudou Letras na UFRJ eparticipou da Cooperativa dos Poetas, um dos muitos gruposde poetas ativistas da década de 80. No final dessa décadacomeçou a atuar como entrevistador para a antropóloga AlbaZaluar em sua pesquisa sobre a cultura da marginalidade naCidade de Deus. O material e os relatos que reuniu nestaépoca serviram como ponto de partida para seu romanceCidade de Deus (1a ed. 1999, 2a ed. 2002), um dos livros maisimpactantes dos últimos anos e que tornou visíveis váriasoutras obras que já vinham tratando do tema da violênciaurbana. Em seu romance Paulo Lins trata do nascimento edesenvolvimento do bairro/neo-favela Cidade de Deus, asangústias, desejos, loucuras, grandeza e perversidade de algunsde seus habitantes, especialmente a bandidagem local, desdeseu início mais ou menos tímido na década de 60 até aviolência do tráfico nos anos 80. Lins é sem dúvida um dosescritores mais importantes dos últimos anos. Conseguerealizar o que o teórico Mikhail Bakhtin chama de “romancepolifônico”, um tipo de obra em que as várias vozes queformam uma cultura se misturam de forma produtiva e crítica.Assim, podemos encontrar em Cidade de Deus recursos etemas que nos remetem a Dostoiévski e a Guimarães Rosa,mas também ao samba enredo e ao cordel, ao neo-realismoitaliano e à cultura televisiva. Em 2001, o romance foi adaptadopara o cinema, alcançando enorme repercussão no Brasil eno exterior. Talvez uma medida da importância da obra sejao fato de Paulo Lins ter conseguido somar ao imaginárionacional outros territórios da cidade além de Copacabana eIpanema. Atualmente, trabalha em seu segundo livro. O contopresente nesta edição nos dá uma boa idéia do estilo de PauloLins, especialmente de sua ironia. Outro traço importante é aquestão ética, a transitividade entre bem e mal, consciência einconsciência, uma das preocupações roseanas que Paulo Linsadotará. Paulo Lins, andarilho do Rio de Janeiro, narrador ecombatente do mal, homem r idente, negro genial, épossivelmente o primeiro nome de uma nova literaturabrasileira. Paulo Lins é escritor profissional.

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DESTINO DE ARTISTA

No dia em que o enredo foi distr ibuído nareunião da ala de compositores, Azeitona saiu

radiante: seu filho havia feito um trabalho escolar sobrea Transamazônica, exatamente o enredo daquele ano.

— Pra mim, vai ser mole, é só pegar o trabalho daescola do meu filho e dar uma guaribada — repetiaAzeitona, entre goles de cerveja.

Empadinha saiu da reunião apreensivo. Depoisdaquele dia, rodava pelos cantos, brigava com Valdirenepor besteira, passou a ter insônia, enfiou-se na cachaça,porque achou o enredo muito difícil, ruim de se fazerrefrão. Arriscava uma melodia ou um verso, e mandavaa Transamazônica para a puta que o pariu. Tudo porquenão sabia nada sobre a estrada que o diabo do governoestava fazendo no Amazonas. Não iria sair de bibliotecaem biblioteca lendo sobre o assunto. Não gostava deler e muito menos de ir à biblioteca, lugar de silêncio,coisa que ele odiava. Optou pelas notícias de jornais,pelas revistas da barbearia, das biroscas e de casa, mas osamba não saía... O enredo estava mal escrito, com poucainformação sobre a infeliz da estrada.

Num domingo, viu um grupo de amigos tocandoinstrumentos e Azeitona cantando o seu samba numchurrasco organizado na porta do bar do Tom Zé.Fingiu que não viu e saiu de fininho, deprimido até opescoço, com a possibilidade de não fazer samba naqueleano. Subiu rápido o morro e foi golpeado duas vezesquando viu Caramba e Brasão cantando os seus sambasem biroscas e os amigos ouvindo-os atentamente.Imaginou que todos os compositores da escola jáestavam com o samba pronto, mostrando a criação aos

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amigos, distribuindo a letra do samba mimeografadapelomorro, e ele nada sobre a Transamazônica.

— Se o enredo fosse a Bahia, esses putos iam terque me engolir! — dizia pra si mesmo.

Era verdade. Apesar de nunca ter sido vencedor,sempre chegava à disputa final quando o enredo era aBahia, porque seus pais eram baianos e contavam dasfestas populares de lá, falavam dos costumes, docandomblé, das histórias de pescadores e de tudo mais.Não era como essa Transamazônica, da qual só ouvirafalar algumas vezes.

E o que mais o afligia era que, nesse ano, a disputaseria honesta, porque Amendoim havia morrido esempre era ele quem ganhava com qualquer samba, nãoporque comprasse os jurados, mas pela violência.Amendoim já havia matado 95 pessoas e duas delaseram compositores de samba vencedor. Daí em diante,ganhou todas as disputas, até morrer com quatro tirosnuma quebrada do morro.

Empadinha via a possibilidade de comprar umterreno em Lídice, lugarejo da Costa Verde do Estadodo Rio de Janeiro, onde passaria a velhice criandogalinha, colhendo a salada de cada dia em sua própriahorta e tomando banho de rio à hora que bem quisesse.

Faltando três dias para os compositores entregarema fita cassete para a diretoria escolher as dez composiçõesque disputariam o prêmio de melhor samba, Empadinhateve a idéia de ir à escola do filho de Azeitona com aintenção de achar um estudante que também tivessefeito um trabalho sobre a Transamazônica.

— Caralho, como não pensei nisso antes?

Ainda eram 9 horas. Queria que o tempo passasserápido para encontrar o estudante e fazer logo o samba.Não tinha sono, resolveu ir à birosca beber alguma coisa.

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35Destino de artista

Tomou duas doses de Parati, bebeu uma cerveja e, porfim, mandou para dentro um rabo-de-galo. Voltoucambaleando para casa e se jogou na cama de roupa e sapatos.

Não eram nem 7 horas quando ele esperava que asturmas formassem para localizar a do filho de Azeitona.Marcou bem o rosto de dois meninos e de três meninas.

Quando deu a hora da saída, o compositor seprecipitou para o primeiro estudante de quem guardaraa fisionomia:

— Você também fez trabalho sobre aTransamazônica?

— Fiz.

— Você pode me emprestar?

— Olha, eu sei muito bem pra que o senhor quero meu trabalho...

— Como assim?

— O senhor não é compositor da escola?

— Isso.

— Então, todos os compositores vieram aqui pedirtrabalho pros alunos, e esses otários aí deram.

— Você não vai me dar, não?

— Lógico que não, se quiser vai ter que comprar.

— Comprar? E quanto é o trabalho?

— Cinqüenta cruzeiros.

— Ah, tá muito caro, vou achar outro aluno...

— Olha, eu tirei 10, hein? E tá todo mundovendendo agora. E o meu preço é o melhor.

— Tá a fim de me enganar, rapaz, tá pensandoque eu nasci ontem?

— Tudo bem, mas depois não vem atrás de mim,que eu não vou vender, não.

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36 Paulo LinsPaulo LinsPaulo LinsPaulo LinsPaulo Lins

Empadinha caminhou um pouco e se voltoupara o menino.

— Tá bom, tá bom, toma aqui o dinheiro.

— Vamos lá em casa que eu te dou o trabalho.

Era esplêndido o trabalho do menino. Empadinhaficou maravilhado com a Transamazônica que lheaparecia descrita em letras juvenis em folhas de papelalmaço: a extensão, o objetivo de ser criada, o dinheiro

investido, os lugares por onde a estrada passaria, osconflitos e também a cultura do Estado do Amazonas,como a lenda da mãe-d’água, da serpente boitatá; avida dos seringueiros, dos índios, as cachoeiras, os riose as cascatas. Enfim, o trabalho tinha tudo o que faltavaao enredo.

— O moleque é bom, rapaz! Tem habilidade! Fezum trabalho de mestre, tem um monte de coisa aquique não tinha no enredo. Agora não tem pra ninguém— disse Empadinha a Valdirene.

— Você vai fazer o samba quando?

— Já terminei, já terminei, olha só.

E cantou feliz:

Vejam que belezaA história que vamos contarSobre a Amazônia distanteEsse sertão fascinanteTerra igual essa não há

Contam que a mãe-d’águaDentro de sua lenda e tradiçãoAo ver o pescador se aproximarCantava uma linda canção

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37Destino de artista

No barulho das águasSurge uma serpenteÉ o boitatáApavorando gente

Índio guerreiro, caçadorSeringueiro extraía a borracha Vaqueiro cantava canções de amor

Hoje o progresso chegouDentro da cultura e expansãoSurge a TransamazônicaOrgulho de nossa nação.

— Mas fala muito pouco sobre a estrada...

— Mas, na reunião, o carnavalesco falou que eraimportante também falar sobre a Amazônia, mais im-portante do que a estrada.

— Por quê?

— Pra fazer as fantasias, é bom falar dos índios, dosseringueiros, vaqueiros, sabe qual é? O importante éque o samba tá pronto e agora é só gravar e mandar afita pro corte.

Empadinha deixou a esposa, foi procurar Jorgedo Cavaco, Dirceu do Repique e Celso do Tamborimpara gravar o samba e mandar a fita para a diretoriaavaliar.

Quarenta sambas foram cortados. Entre os dez quecompetiriam na quadra estavam o samba de Azeitona eo de Empadinha.

Empadinha chorou no dia do resultado, nenhumsamba havia sido mais difícil de fazer do que aquele.Ficou tão feliz por não ter sido cortado que, no dia

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38 Paulo LinsPaulo LinsPaulo LinsPaulo LinsPaulo Lins

seguinte, foi à porta da escola procurar por Mauricinho,para lhe mostrar o samba e agradecer por lhe ter ven-dido o trabalho escolar.

Mauricinho escutou o samba atentamente e disse:

— Esse samba é de rima fácil, rima serpente comgente, distante com fascinante... A pesquisa foi mal usada,tá cheio de jargão! Samba exaltação digno do golpe de64, samba pra emudecer a razão. Muito fraco! E praque cantar a Transamazônica? Pra que cantar? Ondeestá a novidade das estradas, tirando a fuga, a esperançada partida e o inesperado do destino? Sempre numaestrada vai ser melhor a certeza da volta do que aesperança da partida, e, no entanto, criamos caminhossem volta... Sabemos que a utopia é o fraco do huma-no e é ela que nos faz criar caminhos, que são tantos,que se cruzam, que se chocam... Caminhos que sem-pre fazem um humano querer voltar para casa, enquanto

um outro quer sair... Caminhos que nos envelhecem,que matam nosso tempo! Caminhos que nos fazemabandonar o chão da infância... Deus me livre de serum viajante, pois o viajante é aquele que chegaanunciando a partida: tem pés que batem num chão,enquanto o coração, no chão de outro lugar.

Empadinha ficou surpreso com as observações deMauricinho. Tentou argumentar alguma coisa, mas ficousem palavras diante do rapazola, que continuava:

— Não fica assim, não. Eu tô brincando. Viajar émuito bom, a gente conhece gente nova, os pratostípicos de cada região, os costumes. Imagine a gentedentro da floresta amazônica, vendo os animais, os índios,o rio Amazonas e os seus afluentes, né? Viajar é bom.

— Não tô entendendo! Primeiro, você me diz queviajar é ruim, agora diz que é bom.

— Eu só coloquei dois pontos de vista, mas na

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39Destino de artista

verdade eu estou mesmo é muito puto com essa estrada...

— Por quê?

— Essa estrada está sendo criada pelo presidenteMédici, esse assassino... Ééé... É mais um projeto-impacto dele... Eles acham que vão tentar integrar oBrasil abrindo estradas, que ela vai ser um modelo deassentamento do trabalhador rural, mas na verdade elesvão foder com tudo, porque a condição socioeconômicada população tá a pior possível! Tá uma violência danadapela posse de terra, entre os grileiros a serviço depoderosos interesses econômicos, posseiros e índios! E,além do mais, eles estão depredando tudo, não têm amínima preocupação com o meio ambiente, e a escolade samba cantando como se fosse a melhor coisa domundo. Um monte de alienado tecendo elogios prauma coisa horrível dessas! Meu trabalho falava dissotudo, mas o senhor nem ligou e fez esse samba alienado.

— Que que é alienado?

— Sem nenhuma reflexão política, sem saber oque está por trás das coisas. Ficam um monte de bobõesfazendo samba exaltação pra esse governo corrupto,assassino, enganador. Eu tenho vergonha de vocês.

Empadinha ficou com cara de palhaço triste, vendoMauricinho se afastar com um monte de livro amarradonum cinto. Realmente o moleque tinha razão. Era omais infeliz dos idiotas em cada passo que o levava devolta para casa. Um garoto... Um garoto que poderiaser seu filho estava mais por dentro das coisas do queele. Sentiu a força do conhecimento, do estudo, sentiutambém vontade de não desfilar, de retirar o samba dacompetição. “Será que poderia voltar a estudar?Teriacabeça para encarar os livros?”

Não. Mas não iria bater palmas para maluco dançar,não iria dar mole para o governo que quer que a escola

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venda uma boa imagem da porra da estrada. Entrouem casa e Valdirene foi logo perguntando:

— E aí, falou com o menino?

— Falei e não vou mais disputar o samba, não.

— Tá maluco? O que aconteceu?

— Eu não sou alienado!

— Que troço é esse de alienado, Empada? Vocênão trabalha, vive de biscate e do dinheiro que euganho... Vive em função de ganhar um samba-enredopra gente sair desta merda, sofreu que nem uma vacano matadouro pra fazer o samba e, agora que passou naeliminação da fita, me diz que não vai mais disputar!Que que esse menino te disse?

— Ele me disse que eu sou burro, que o meu sambasó tem mentiras, que a Amazônia tá acabando, e ogoverno tá contribuindo com isso e que...

— Eu tô pouco me lixando com o diabo daAmazônia, eu quero uma casa em Lídice, eu quero sairdesse morro!

— Desiste, mulher, eu não vou mais disputar.

— Então ruma logo um emprego, que eu não voute sustentar mais, não!

Empadinha passou a tarde com a cabeça em pro-funda confusão. Se o enredo fosse a Bahia, tudo estariaresolvido, mas o carnavalesco de merda inventou umenredo de merda pra um governo de merda se benefi-ciar. A noite foi de insônia. O descobrimento de queera um alienado o maltratava, mas, se tirasse o samba dacompetição, teria que encarar um emprego, acabaria aboa vida de acordar a hora que bem entendesse, de nãoter que aturar patrão, daria adeus ao jogo de futeboldas 3 e meia da tarde, a sinuca das manhãs, oaseado de depois do almoço. Tinha uma mulher que o

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41Destino de artista

sustentava simplesmente pelo fato de ser artista, e, exa-tamente por isso, possuía a oportunidade de virar a vidade uma vez, mandando a miséria para a casa do cha-péu, se seu samba fosse campeão.

Às 5 da manhã resolveu esquecer o diabo da alie-nação e seguir em frente na disputa. Saiu cedo e com-prou mil folhas de papel para rodar a letra nomimeógrafo. Passou a semana cantando o samba nasbiroscas do morro, foi à casa dos amigos, dizendo quepagaria a cerveja se eles cantassem o samba na hora dovamos ver. Prometeu dinheiro ao mestre da bateria paraque ele a comandasse com mais afinco na hora de suaapresentação. Tudo isso contava muito na decisão dojúri: bateria afinada e empolgação na quadra.

E, assim, o samba de Empadinha foi passando naseliminatórias até chegar à final, justamente com o sam-ba de Azeitona.

Empadinha e Azeitona eram amigos de infância,andavam sempre juntos e por isso ganharam esse apeli-do. Azeitona o levou a compor e com ele fez os seusprimeiros sambas, mas, por causa de brigas no futebol,estavam de relações cortadas havia mais de seis meses e,além do mais, sempre houve certa rivalidade entre osdois. O pior era que sentia que o samba de Azeitonavinha empolgando mais os componentes da escola,porque realmente era melhor, mais bem-acabado, maisritmado e com letra mais profunda. Não havia jeito deganhar. Teria de arrumar um jeito para derrubar o rival,que na certa olharia para ele, dizendo com os olhos:“Tá vendo, seu otário? Sou melhor que você”. Isso lhedoeria mais do que perder a grana que receberia casofosse campeão.

No dia antes da disputa final, foi bem cedinho àcasa de Azeitona.

— Que que você quer?

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42 Paulo LinsPaulo LinsPaulo LinsPaulo LinsPaulo Lins

— Olha aqui, Azeitona, a gente sempre foi irmão,sempre compôs juntos, e agora a gente tá aí, disputandouma final de samba-enredo brigados, sem se falar. Euvim aqui dizer que eu gosto tanto de você que, se euperder, vai ser uma honra... Se você ganhar, eu tambémvou me sentir campeão. Queria te dizer que eu tenhosentido muito a sua falta. E, agora que a gente vaicompetir aí, eu queria fazer as pazes contigo. Eu queroretomar a amizade, antes da gente ir para a quadra de samba.

— Que bom, Empadinha, eu queria te falar amesma coisa, tava era sem coragem, pensando que vocêiria me virar a cara.

Os dois se abraçaram longamente e depoisEmpadinha convidou:

— Então é o seguinte: vamos almoçar lá em casaamanhã. Vou mandar a mulher fazer uma buchada de bode.

— Pode mandar fazer que eu vou lá.

O povo da escola ficou surpreso quando Azeitonadisse que estava indo para a casa de Empadinha pegar a bóia.

— Que espírito esportivo, espírito de competição!Que coisa bonita! Que demonstração de ami-

zade!— falavam

Por volta das 13 horas, Azeitona chegou para oalmoço. Beberam cerveja e batida de limão, cantaramos seus velhos sambas. Valdirene serviu a comida e teveque insistir para os dois sentarem para comer, eles nãoparavam de cantar, de se abraçar e de brindar a amizadea todo instante.

Por fim, começaram a comer com muito apetite,mas logo depois Azeitona começou a passar mal e, emseguida, Empadinha. Os dois tiveram o mesmo tipo deconvulsão. Valdirene chamou os vizinhos para ajudar alevar os dois para o hospital, onde chegaram mortos.

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43Destino de artista

Depois da autópsia, o pessoal ficou surpreso com acausa mortis de ambos: parada cardíaca porenvenenamento. Mas tudo ficou esclarecido quando oenfermeiro trouxe dois vidros de ratofudex queencontrara no bolso de cada um: veneno fulminantepara ratos.

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MarçalAquino

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Marçal AquinoMarçal Aquino nasceu em Amparo (SP), em 1958. Tem umalonga lista de obras publicadas. É possivelmente o contista maistalentoso entre os escritores que surgiram nos últimos anos,não sendo exagero dizer que é um dos poucos mestres vivosdo gênero. Escreveu para a série Vagalume obras de literaturainfanto-juvenil, o que lhe garantiu alguma notoriedade mesmoantes de lançar seus trabalhos mais importantes. Começa a setornar um autor essencial na nova literatura brasileira a partirdo livro As fomes de setembro (1991). Em seguida viriam MissDanúbio (1994), O amor e outros objetos pontiagudos (1999)e Faroestes (2001), todos volumes de contos, além de Cabeçaa prêmio, um romance de 2003. Adaptou vários textos seuspara o cinema, sendo responsável pelos roteiros de Osmatadores, Ação entre amigos, Nina e O invasor. Sua literatura,especialmente os contos, é de uma elegância e de uma perfeiçãoeconômica comparável apenas àquelas de Graciliano Ramos,de Rubem Fonseca ou de João Antônio, referências brasileiraspara seu trabalho. No entanto, é na literatura noir americana,especialmente em nomes como os de Dashiel Hammet ouJames Elroy, ou na ironia de Philip Roth que vamos encontraras raízes de suas pequenas obras-primas. O universo literáriode Aquino é marcado pela descrição de uma São Paulo quemistura boemia, abandono, violência e errância. Cria umamarginalidade um pouco distinta daquela que aparece na obrade Paulo Lins ou de Ferréz, em que a dureza da realidade nãose revela propriamente na ação alucinatória, mas sim em sutistransformações que os personagens expressam em palavrassempre poucas e exatas. Seu universo não é tanto o da pobrezadas favelas e periferias, mas sim o de uma classe média baixasem perspectivas e luzes, porém com muito desejo e desespero,seja nos subúrbios das metrópoles, seja no interior profundodo país. Narra um sofrimento mudo, enterrado, que, quandoaflora, resulta em choques e traumas. Seus grandes temas são osegredo, o engano, o reprimido. O conto “Balaio”, do livroFaroestes (São Paulo, Ciência do Acidente, 2001) , é um dosexemplos de seu domínio da arte da narrativa curta. No Balaio(uma espécie de truco) ecoa um outro jogo, de vida e morteagora, que os personagens estabelecem entre si, marcado tambémpelo blefe, pela invenção, e, finalmente, pela violência. MarçalAquino, revelador da obscenidade dos sofrimentos calados,narrador de uma São Paulo devoradora, voz da vida escassa.Marçal Aquino é escritor profissional.

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BALAIO

Apareceram dois caras estranhos no bair ro, tirando informação sobre o Tiãozinho. O pessoal

se fechou. Não demorou e vieram falar comigo, sabiamque eu tinha andado com o Tiãozinho muito tempo.

O começo foi manso. Eu estava jogando balaio comuns chegados, quando os dois entraram no bar. Balaioé um tipo de truco que inventamos, mais agressivo, quedava ao vencedor o direito de ser o primeiro a atirarno próximo sujeito que a gente fosse derrubar. Eles mechamaram de lado, abriram cervejas. Sentei com eles.Explicaram que a ficha do Tiãozinho era encomendade um grandão da Zona Norte. Não sabiam o motivo.

Eu disse que assim ficava difícil.

Um deles comentou que talvez o grandão quisesseas informações para decidir algo positivo em favor doTiãozinho. Tinha a pele cor de pastel cru. Parecia umadessas pessoas que nunca comem carne.

O outro era preto. Três rugas no rosto: duas quandoria, ao redor da boca; a outra aparecia na testa, na horaem que ficava sério. Impossível saber a idade dele.

O branco prosseguiu aventando: Quem sabe oTiãozinho não está pra assumir uma posição importantecom o homem?

O preto emendou: É, e se ele estiver pra casar coma filha do homem? O Tiãozinho não seria capaz de umnegócio desses?

O grandão é bicha?, eu perguntei.

O preto: Não, claro que não.

E o outro: Por quê?

Porque o Tiãozinho é capaz de qualquer coisa, eu

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48 Marçal Marçal Marçal Marçal Marçal AquinoAquinoAquinoAquinoAquino

disse. Inclusive de estar casando com esse grandão aí.Os dois riram. O que foi bom: vi que o pessoal, quecontinuava firme no jogo, deu uma relaxada.Perceberam que era conversa amistosa.

Essa é boa, o branco ainda ria. E o que mais vocêpode contar sobre ele?

Mais nada, eu falei. Me digam o motivo ou então agente pode mudar de assunto.

Eles se olharam, contrariados. O branco pareceusentir mais o golpe. Era aquele tipo de homem queadora ser contrariado – em casa, no trabalho, no trânsito,em todo lugar. Só para poder explodir.

Foi ele quem falou, se controlando: Bom, entãoacho que temos um problema aqui. Um problemão.

O preto tentou amaciar, a ruga atravessada na testa:Você podia facilitar as coisas pra todo mundo. Veja bem:temos ordem até de pagar pelas informações se forpreciso.

Batuquei com as unhas no copo de cerveja. Faziamuito tempo que eu não via o Tiãozinho. A últimanotícia era que ele andava amigado com uma donaasmática, que ele quase matava todas as noites, porquenunca sabia se ela estava gozando ou tendo uma crisede falta de ar.

Os dois esperaram, achando que eu considerava olance do dinheiro. Mesmo jogando no campo doadversário, pareciam seguros. Era uma noite fria e ambosvestiam casacos. Dava para adivinhar que estavamarmados. Com coisa pesada.

Acho que vocês deviam dar outra volta pelo bairro,eu disse. Talvez apareça alguém disposto a vender algumainformação.

Você está complicando um negócio simples, falou

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49Balaio

o branco. Em vez disso, podia ganhar um bom dinheiro.

Vamos fazer o seguinte, eu disse e me curvei,apoiando os cotovelos na mesa. Vocês descobrem porque esse grandão quer as informações sobre o Tiãozinhoe voltam aqui pra me contar. Aí eu falo de graça, que tal?

Tenho uma proposta melhor, o branco colocou salno meu copo e mexeu com o dedo. Você vai com agente e conversa direto com o homem lá na ZonaNorte. Eu prometo que depois a gente traz você devolta direitinho.

Eu ri: Não vai dar. Eu odeio sair do bairro.

Você vai com a gente, o preto disse e tirou as mãosde cima da mesa.

Foi um gesto rápido, muito rápido. Se tivéssemosgente assim do nosso lado, eu pensei, nossa vida ia serbem menos complicada. Olhei para ele com atenção eme descuidei do outro. E era exatamente o queesperavam que eu fizesse.

Percebi isso quando o branco se mexeu, a mão soba mesa, e falou: Tenho uma 45 apontada para a suabarriga. Não tem jeito de errar.

O Tiãozinho deve estar metido em algum rolomuito grande, eu disse. Ou então vocês dois são meiomalucos.

As mãos do preto continuavam debaixo da mesa.Na certa, com duas armas também apontadas para mim.

Nós vamos sair daqui bem devagar, o brancoanunciou. Você vai na frente, com muita calma, e é bomnão fazer nenhuma besteira.

Eu permanecia apoiado na mesa e não me mexi.Disse a eles que bastava eu tossir para que aquele pessoaltodo puxasse as armas.

Vou levar um monte de gente comigo, o preto disse.

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50 Marçal Marçal Marçal Marçal Marçal AquinoAquinoAquinoAquinoAquino

E você será o primeiro.

Uma vez, quando era mais novo, vi um sujeito abrircaminho à bala num puteiro cercado pela polícia. Foi aúnica vez que vi alguém atirando com duas armas aomesmo tempo. O cara tem que ser muito bom pra fazerisso. Aquele sujeito era e conseguiu furar o cerco.

Vou pedir a conta, o branco avisou. Daí, a gentevai sair na boa, combinado?

Eu endireitei o corpo, mantendo as mãos sobre amesa. O preto acompanhou meus movimentos comatenção. Ouvi o ruído quando ele puxou o cãodos revólveres.

Você tá armado?, ele perguntou.

Estou, eu menti.

Atendendo ao aceno do branco, Josué veio até amesa e informou o valor da conta, satisfeito. As mãosdo branco reapareceram, segurando uma carteiramarrom. Enquanto ele escolhia as notas, olhei para Josué,que sorriu para mim.

Era um bom sujeito, costumava ajudar muita genteda comunidade. Às vezes, quando nossos jogosavançavam até tarde da noite, Josué ia para casa e deixavaa chave, recomendando apenas que a gente nãoesquecesse as luzes acesas ao sair. Eu gostava dele.Lamentei que as coisas se complicassem justo no seu bar.

E elas se complicaram mesmo. Mas não do jeitoque eu esperava.

A viatura estacionou na porta do bar e os quatropoliciais entraram, olhando primeiro para o pessoal quejogava balaio e depois para a mesa em que a gente estava.Três deles usavam sobretudo e carregavam escopetas.No comando, um tenente que eu conhecia de vista.Gente boa.

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51Balaio

Ele interrompeu o jogo e mandou que todo mundose colocasse com as mãos na parede. Pensei que o tempoia fechar: ali dentro tinha mais armas do que na vitrinedas lojas de caça do centro. Os rapazes obedeceram,movendo-se com lentidão. Estavam esperando algo.Uma fagulha.

Quando o tenente se dirigiu a nós, eu me levanteida mesa e me juntei aos meus companheiros. O branco

e o preto não se mexeram. Ambos estavam com apenasuma das mãos sobre a mesa. O tenente achou aquilocurioso e avaliou a situação por alguns instantes. Umdos policiais afastou-se em direção à porta, procurandoum ângulo mais favorável.

Gostei da cena. Claro que armamento grosso servepara dar confiança a um sujeito. Mas eu nunca tinhavisto caras tão frios como aqueles dois. E pelo jeitonem o tenente, que recuou lateralmente e colocou amão no coldre.

Josué sorriu para ele e disse: Não precisa nada disso,tenente. Conheço todo mundo, é gente daqui do bairro.

O tenente cuspiu o chiclete que mascava eperguntou: E esses dois?

Conheço eles também, tenente, Josué falou. São amigos.

O preto mantinha a vista baixa, evitando encarar otenente. O branco olhava para lugar nenhum. Ia explodira qualquer momento.

O tenente ainda analisou os dois por mais algunssegundos. E então relaxou.

Você tem visto o Tiãozinho?, ele perguntou a Josué.

Tem tempo que ele não dá as caras por estas bandas,Josué disse. Deve estar circulando em outra área. Eleaprontou alguma?

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52 Marçal Marçal Marçal Marçal Marçal AquinoAquinoAquinoAquinoAquino

Estamos na captura dele, o tenente fez um gestopara os policiais e eles baixaram as escopetas.

Tiãozinho devia mesmo estar metido em algumlance muito grande, eu pensei. O tenente colocou outrochiclete na boca, olhou mais uma vez para a dupla namesa e para nós. Daí saiu, acompanhado pelos policiais.

No exato momento em que a viatura arrancou, osrapazes puxaram as armas. Os dois continuavam imóveis,as mãos ocultas pela mesa. Ia começar a queima de fogos.

Pedi que Josué saísse e baixasse a porta do bar. Ele

ez isso, depois de lançar uma expressão triste para obalcão e para as garrafas nas prateleiras.

Magno, que estava ao meu lado, me entregou umdos revólveres que carregava, um 38. Éramos quatrocontra os dois.

Como é que vai ser?, eu perguntei.

O preto trocou um olhar rápido com seu companheiro.

Por mim, a coisa já tá resolvida, ele disse. Você ouviu:a polícia vai cuidar do Tiãozinho pra nós.

O branco sorriu.

Mas se você quiser partir pra festa, ele disse, nóstopamos. Vai ser um estrago bem grande.

Eu sabia que bastava um movimento brusco e osdois se levantariam atirando. Então baixei o revólvercom cuidado e disse:

Ninguém vai ganhar nada com isso. Vamos fazerum trato: vocês dois saem sem problema e nunca maisaparecem por aqui.

O preto ainda tripudiou:

O que você acha?

O branco continuava sorrindo.

Me parece justo, disse. Assim, ninguém abusa de ninguém.

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53Balaio

Eu avisei aos rapazes que os dois iriam sair e que agente não ia fazer nada. E caminhei até a porta, para abri-la.

Os dois sairiam e provavelmente nunca maisbotar iam o pé naquele bair ro. Mas eles eramprofissionais e com esse tipo de gente convém nãofacilitar. Por isso, a um passo da porta, eu parei e alcanceio interruptor, desligando as luzes do bar.

O tiroteio durou meio minuto, se tanto. Quandoreacendi as luzes, o preto estava com a cabeça tombadanuma poça de sangue sobre a mesa. O branco caírapara trás, arrastando junto sua cadeira. Eu me aproximeie vi que, apesar de estar com um ferimento feio acimadoolho direito, ele ainda gemia. Mirei na cabeça e puxeio gatilho, mas as balas do revólver tinham acabado. Umdos rapazes me empurrou para o lado e completou o serviço.

O que vamos fazer com eles?, Magno perguntou.

O de sempre, eu falei.

Olhei o sangue espalhado pelo bar. Eu não queriaque o Josué tivesse motivo pra se queixar da gente.

Vamos lá, eu disse. Depois ainda temos que voltaraqui pra fazer uma boa faxina.

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Este livro foi composto em Bembo corpo10/16 e impresso em papel Pólen Bold90g (miolo) e cartão supremo 250g (capa)pela gráfica Sir Speedy, em novembro de2005, para a Faculdade de Letras da UFRJ.

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