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O Globo e Ultima Hora em agosto de 1954
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Faculdade Cásper Líbero
As vozes e VargasO Globo e Ultima Hora em agosto de 1954
Alexandre Aragão
São Paulo / 2009
Faculdade Cásper Líbero
As vozes e VargasO Globo e Ultima Hora em agosto de 1954
Alexandre Aragão
São Paulo / 2009
Monografia apresentada à Faculdade
Cásper Líbero, como resultado de pesquisa
de Iniciação Científica desenvolvida no CIP
— Centro Interdisciplinar de Pesquisa, sob
a orientação do Prof. Dr. Cláudio Novaes
Pinto Coelho
À Amanda
Resumo
Análise da posição ideológica dos jornais O Globo e Ultima Hora durante o
segundo governo de Getúlio Vargas (1951-54). Por meio de textos publicados nos
diários em junho de 1953 — tendo como referência a posse do ministro do
Trabalho João Goulart — e agosto de 1954 — após o Atentado da rua Toneleros
—, utilizando os conceitos de Louis Althusser, situamos ambos os jornais como de
situação (Ultima Hora) e de oposição (O Globo). Também há uma breve
contextualização da situação dos jornais brasileiros na década de 1950. Com
técnicas norte-americanas, havia uma tendência à modernização gráfica e
editorial.
Palavras-chave: Getúlio Vargas, história da imprensa, O Globo, Ultima Hora
7
Introdução: a modernização da
imprensa na década de 1950
De São Borja ao Catete
Ultima Hora
O Globo
Considerações finais
Anexos
p. 11
p. 19
p. 37
p. 59
p. 77
p. 83
Introdução: a modernização
da imprensa na década de 1950
Mesmo com o momento político conturbado, os jornais produzidos durante
a década de 1950 se destacam não apenas pelos assuntos que tratam, mas
também pela maneira com que tratam tais assuntos. O desenvolvimento
tecnológico das gráficas, aliado às novas técnicas jornalísticas introduzidas no
Brasil, fez com que os jornais dessem um salto qualitativo enorme em
comparação ao que era feito nos anos anteriores. Vamos mostrar este salto
utilizando não apenas os jornais que são objeto de estudo deste trabalho, como
também outros exemplos pertinentes.
Além desta introdução o trabalho mostra o contexto histórico em que O
Globo e Ultima Hora se puseram em lados opostos do jogo político — e quais
eram os grupos interessados em cada lado. Nos capítulos seguintes, através de
textos retirados dos jornais, é feita uma análise de como cada ideologia é
defendida na disputa pela hegemonia. Para entendermos como O Globo e Ultima
Hora se posicionam perante os acontecimentos de agosto de 1954 — o que o
presente estudo se propõe a fazer —, é necessário compreendermos as mudanças
pelas quais a imprensa da época passa.
De acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), citado por Ribeiro, na década de 1950 cerca de 10% dos
jornais de todo o Brasil eram feitos na cidade do Rio de Janeiro. Apesar disso, é
perceptível uma queda no número de periódicos. Em 1953, dos 254 jornais
brasileiros, 29 eram cariocas (11,4%). No ano seguinte, a proporção diminuiu: 26
cariocas de um total de 261 (9,9%). Após a morte de Getúlio Vargas, em 1955,
mais jornais cariocas deixaram de existir — eram 20, de um total de 235 no País
Introdução: a modernização da imprensa na década de 1950
13
(8,5%)1. Esses dados mostram que o mercado jornalístico, principalmente na
capital brasileira, estava passando por um período de refinamento.
Os jornais brasileiros da primeira metade do século XX eram dominados
por “escritores”, não por “jornalistas”. Com forte influência do jornalismo francês
da época, as notícias eram apresentadas com longos trechos de “nariz de cera”:
textos com pouca informação e muita pompa. Nas palavras de Pompeu de Souza,
do Diário Carioca, citado por Barbosa, “ninguém publicava em jornal nenhuma
notícia de como o garoto foi atropelado aqui em frente sem antes fazer
considerações filosóficas e especulações metafísicas sobre o automóvel”2.
Nesse mesmo momento, os jornais de William Hearst e de Joseph Pulitzer,
a yellow press norte-americana, publicavam textos curtos e informativos, tendo a
objetividade como um dos ideais máximos. Apesar da veracidade não ser um dos
pontos fortes dos jornais da yellow press, as técnicas que utilizavam eram
inovadoras, e definiram as feições do jornalismo da segunda metade daquele
século. Foram essas empresas que desenvolveram os conceitos de lead, copy-desk
e style book. Três conceitos que, mais tarde, acabaram incorporados aos jornais
brasileiros — e ganharam nomes aportuguesados: lide, copidesque e manual de
redação.
O lide consiste em exibir, no primeiro parágrafo do texto jornalístico, as
informações mais importantes (“o quê”, “quem”, “quando”, “onde”, “como” e “por
quê”, não necessariamente nesta ordem). Isso aumenta a objetividade à medida
que diminuem os rodopios até o que, de fato, é notícia. A técnica de copidesque
pressupõe uma equipe responsável por ela, normalmente formada por jornalista
As vozes e Vargas
14
1 RIBEIRO, A. Imprensa e história no Rio de Janeiro dos anos 1950. Rio de Janeiro: E-papers, 2007. p. 58
2 BARBOSA, M. História cultural da imprensa — Brasil 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p. 159
experientes. As pessoas responsáveis por copidesquear os textos do jornal devem
fazer com que haja uniformidade e coerência interna no jornal. Desse modo, são
retirados vícios de linguagem e traços do estilo pessoal de cada redator.
O manual de redação tem a finalidade de definir todas as características
descritas acima. É um livro que reúne como os textos do jornal devem ser
escritos, tanto do ponto de vista estilístico quanto da técnica. Outra prática
incorporada aos textos jornalísticos da yellow press é a pirâmide invertida, que
hierarquiza as informações apresentadas em escala, e apresenta as mais
importantes primeiro, deixando as menos importantes para o “pé” do texto. Isso
facilita a edição, uma vez que o responsável pode apenas “cortar o pé da matéria”
caso não caiba mais texto na diagramação. Ajuda também os leitores, que podem
ficar inteirados do mais importante apenas com os primeiros parágrafos.
As mudanças foram assimiladas facilmente e aprovadas pelo público, que
não tinha o mesmo tempo disponível para a leitura dos jornais. O ciclo de
crescimento econômico que teve início nos Estados Unidos após a segunda metade
da década de 1930 fez com que a “velocidade” da vida aumentasse. Cada vez mais
carros eram vistos nas ruas, a urbanização era crescente, a população operária
aumentava. Por isso, a leitura das principais notícias não poderia requerer
grandes reflexões e horas de atenção. As técnicas e conceitos apresentados acima
foram vitais para que os jornais se adequassem à nova realidade.
O Brasil da década de 1950 passava por mudanças análogas às que os
Estados Unidos passou anos antes. O primeiro jornal a perceber esta
movimentação e tentar se aproximar do modelo de jornalismo norte-americano foi
o Diário Carioca, dirigido por Danton Jobim e Pompeu de Souza. Ambos eram, a
propósito, professores do curso de jornalismo da Universidade do Brasil, atual
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da disciplina “Técnicas de jornal
Introdução: a modernização da imprensa na década de 1950
15
e do periódico”. O ensino de comunicação no Brasil também está ligado à
modernização da imprensa, e teve início em 1947 com o curso de jornalismo da
Faculdade Cásper Líbero — seguido, em 1950, pela Universidade do Brasil. Antes
de se tornar uma profissão, o ofício de “jornalista” era exercido, em geral, por
bacharéis e intelectuais, e era considerado uma atividade secundária.
Pompeu de Souza morou nos Estados Unidos por anos, e voltou ao Brasil
em 1943. Foi quando percebeu o quão antiquada era a imprensa brasileira em
relação à norte-americana. O único canal pelo qual poderia aplicar o que vira na
América do Norte era o jornal em que passou a trabalhar, o Diário Carioca. A
primeira pista de que Souza está mudando a situação aconteceu em 1945, com a
publicação das “Cartas a um foca”, no Diário. Trata-se de várias dicas e caminhos
a serem seguidos por um jornalista iniciante (no jargão jornalístico, “foca”).
Apesar de não serem assinadas, suspeita-se que tenha sido escrita por Pompeu de
Souza. O aprimoramento das “Cartas” foi publicado em 1950, as “Regras de
redação do Diário Carioca”, o primeiro manual de redação da imprensa
brasileira, esse sim, assinado por Pompeu de Souza. A obra continha orientações
acerca das técnicas da yellow press e do estilo a ser usado no DC — como tratar
um político, quando usar números em arábico e quando por extenso, etc.
Mais um fator de progresso para a imprensa brasileira foi o
desenvolvimento da vanguarda artística da “Semana de Arte Moderna de 1922”.
A liberdade estética dos escritores dessa geração e das seguintes fez com que a
linguagem utilizada nos jornais se aproximasse da oral. Desse modo, um prédio
passava a ser situado na avenida Paulista nº 900, e não mais à avenida Paulista
nº 900. A leitura se torna mais simples e “natural”, aumentando o interesse das
classes baixas pelos diários. Exemplo disso é que a tiragem do Diário Carioca
subiu para números em torno de 40 mil unidades diárias, atingindo picos de 45
As vozes e Vargas
16
mil3 , após as mudanças, padrão alto para os anos 1950, levando em conta a
população brasileira, 51 milhões de pessoas4. Mesmo assim, o Diário não tinham
uma das maiores tiragens da cidade — apesar de manter uma importância
político-ideológica destacada.
A linguagem visual dos jornais também é revolucionada durante o período.
O grande expoente destas mudanças é o Jornal do Brasil5 , que, a partir de 1956,
retirou fios, blocos de texto quase encostados uns nos outros e aumentou a
quantidade de fotografias nos jornais. As mudanças fizeram com que o jornal, que
era “quase ilegível e pouco atraente”6, melhorasse substancialmente a fluência de
suas informações. Com isso, o JB perde seu antigo apelido, “jornal das
cozinheiras”, que havia sido ganho décadas antes, quando o diário começou a
publicar uma pequena chamada na primeira página cercada de diversos anúncios
classificados. Esta fórmula durou até a reestruturação gráfica da publicação.
A trajetória de mudanças do Jornal carioca começou com o lançamento do
“Suplemento Dominical do Jornal do Brasil” (“SDJB”), que se tornaria o
“Caderno B”, em 1960. Trata-se do primeiro caderno inteiramente dedicado a
assuntos culturais de um jornal brasileiro. As inovações, porém, tomaram corpo
apenas no ano seguinte, 1957, com a vinda de boa parte da equipe do Diário
Carioca para o Jornal do Brasil. A influência do artista plástico Amílcar de
Castro é evidente: a diagramação do “SDJB” é cartesiana, organizada, utiliza os
espaços em branco de forma inteligente; a informação, entretanto, é o mais
importante, e acaba privilegiada junto com a estética. O maior número de fotos
Introdução: a modernização da imprensa na década de 1950
17
3 RIBEIRO, A. Op Cit. p. 60
4 HUGON, P. Demografia brasileira. São Paulo: Atlas, 1977. p. 205
5 FERREIRA JR. J. A linguagem gráfico-visual dos jornais brasileiros. Núcleo de pesquisa semiótica da comunicação, XXV Congresso anual em Ciência da Comunicação, Salvador, 2002.
6 BAHIA, J. Jornal, história e técnica: história da imprensa brasileira. São Paulo: Ática, 1990.
melhorou também a qualidade das informações, que tornaram-se mais claras,
levando em conta que a linguagem visual é imediata, ao contrário da escrita.
As cores de Ultima Hora podem ser consideradas expoentes das melhorias
visuais no jornalismo brasileiro. O logo azul era marca registrada do periódico, e
o destacava nas bancas em relação aos concorrentes, que eram impressos apenas
com tinta preta. Outro ponto importante de ser destacado no Ultima Hora é a
utilização de fotografias na primeira página do jornal, algo totalmente inovador.
Apesar de não ter sido o único ciclo de modernização da imprensa
brasileira, a década de 1950 foi, sem dúvidas, a mais importante nesse aspecto.
Até hoje os jornais brasileiros utilizam técnicas introduzidas e refinadas durante
aquela época. Posteriormente, no final da década de 1970, mais mudanças
gráficas seriam introduzidas principalmente pelo Jornal da Tarde e, nos anos
1990 e 2000, técnicas jornalísticas diferenciadas seriam impostas pelos jornais
Valor Econômico e Correio Braziliense.
A controvertida figura de Getúlio Vargas foi o principal tema de cobertura
política na primeira metade da década de 1950 pelos jornais. Ex-ditador do
Estado Novo, Vargas ressurgiu através, exatamente, da imprensa, em entrevista
a O Jornal. Para que fique claro como esse processo foi possível, iremos ver uma
breve análise da trajetória política do “líder de massas”.
As vozes e Vargas
18
De São Borjaao Catete
Para termos a real dimensão dos eventos que aconteceram em agosto de
1954, é necessários que compreendamos o processo que levou Getúlio Vargas de
volta ao poder quatro anos antes. Mais que isso, é necessário que seja levado em
conta todo o histórico do líder petebista, desde a Revolução de 1930, passando
pelo Estado Novo, até a deposição, em 1945. O intuito do presente capítulo é
apresentar de maneira sucinta esta visão da disputa entre Vargas e as várias
correntes oposicionistas, e como esses movimentos tiveram influência em 1954.
A influência de Getúlio Vargas na política brasileira no período que vai da
Revolução de 1930 à sua morte, em 1954, é inegável. Mesmo durante o tempo em
que não esteve, de fato, no poder, Vargas e os partidos criados por ele, o Partido
Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), são grandes
participantes do jogo político e eleitoral nas décadas de 1940 em diante.
A imagem de ditador é imposta a Vargas após a renúncia forçada, em 1945.
A construção desta imagem é, segundo Hélio Silva, feita pelas “elites”, com a
ajuda da “grande imprensa”. Essa ideia vai ao encontro do pensamento de Louis
Althusser, que apresenta o conceito de Aparelho Ideológico de Estado (AIE)7. Para
o francês, qualquer instituição que não faz parte do Aparelho Repressivo de
Estado (a saber: exército, polícia, judiciário, etc.) é, por conseguinte, um Aparelho
Ideológico de Estado, que serve para reproduzir as relações de produção
perpetuando a dominação de uma classe em determinada sociedade. Desse modo,
para Silva, é possível que se misturem, “na mesma ação, militares e civis, liberais
e pan-americanistas, patriotas sinceros e representantes dos interesses
estrangeiros, para forçar a renúncia de Vargas, sob o pretexto de impedir o
continuísmo”8. A ideologia, portanto, é capaz de fazer com que diferente grupos
De São Borja ao Catete
21
7 ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 67-73
8 SILVA, H. 1954: um tiro no coração. São Paulo: L&PM, 2004. p. 27
ligados às classes dominantes se movimentem de maneiras distintas, para que o
Aparelho de Estado seja adquirido. Em 1954, a dimensão ideológica da disputa
entre UDN e Vargas é não apenas importante, como crucial para que os eventos
se desenrolem, e as partes se articulem no jogo político.
Mesmo após deixar o mais alto cargo da República, Getúlio Vargas
contraria o movimento contra ele e mantém uma vida política ativa. Assim nasce
o PTB, partido pelo qual o ex-presidente se elege, no pleito de 1945, senador por
dois estados (Rio Grande do Sul, mandato pelo qual optou em dezembro de 1946,
e São Paulo) e deputado por nove.
Na eleição do presidente general Eurico Gaspar Dutra (PSD), em dezembro
de 1945, o apoio de Getúlio Vargas e do partido em que seria afiliado até o resto
de sua vida, o PTB, é decisivo para a vitória9. Após o pleito, o partido de Dutra é
flagrantemente majoritário, com a maioria no Congresso, a Presidência da
República e diversos cargos no Executivo.
Mesmo assim, para a sucessão de 1949, um acordo interpartidário se
mostra necessário para que o PSD continue no poder. A União Democrática
Nacional (UDN), cujo candidato, brigadeiro Eduardo Gomes, fora derrotado em
1945, vê na aliança com o PSD uma oportunidade de, finalmente, chegar à
Presidência.
Apesar de, historicamente, a UDN ser identificada com ideais direitistas,
as raízes do partido são muito mais amplas. Maria Benevides explica: “A UDN
surgiu como uma frente, organizou-se como um partido e identificou-se, também,
como um movimento (o udenismo)”10 . A formação de uma ampla frente de
As vozes e Vargas
22
9 Idem. p. 34
10 BENEVIDES, M. A UDN e o udenismo: ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1981. p. 12
oposição a Vargas é o que ocasiona o surgimento do partido. Para Benevides,
apenas o contexto de desagregação de fins do Estado Novo possibilita a reunião de
elementos tão distintos em um mesmo grupo. A criação de um partido nacional e
coeso, segundo a autora, pode acontecer somente com “a polarização em torno de
um inimigo comum, ou herói comum. A futura UDN os tinha, ambos”11,
respectivamente: Getúlio Vargas, o “ditador”, e brigadeiro Eduardo Gomes.
Enfim: com a UDN, “adversários de tempos imperiais, velhos inimigos, desafetos
jurados, reúnem-se com a finalidade única de apressar a queda de Vargas e
suprimir seu regime”12.
A desavença política entre Eduardo Gomes, e sua UDN, e Getúlio Vargas
fica clara nas opiniões expressas pelo militar na obra “Campanha de libertação”,
publicada em maio de 1946. O livro reúne diversos discursos proferidos pelo
candidato à Presidência da República, entre 16 de junho e 18 de dezembro de
1945, durante a campanha. Na obra, Eduardo Gomes destila todo seu ódio contra
o golpe de 1937. Nos vários excertos, ele ataca não apenas pontos “maiores”, como
a política econômica (em textos como “Papel-moeda não cria riqueza” e “Soluções
financeiras primaciais”), mas também problemas considerados menos
importantes, como o sistema de educação implantado por Vargas (críticas
presentes em “O fascismo na educação” e em “Desamparada a criança brasileira”,
entre outros). Na primeira citação do nome de Getúlio Vargas na obra, retirada de
um discurso proferido em São Paulo — o primeiro da campanha —, tem-se ideia
do que vem a seguir:
De surpresa, ante o pasmo das correntes de opinião, valendo-se de
providências excepcionais solicitadas pelas classes armadas ao
De São Borja ao Catete
23
11 Idem. p. 23-4
12 Idem. p. 28
Parlamento para defender a legalidade, realmente enfraquecida desde que
se restringe a esfera dos direitos dos cidadãos — o sr. Getúlio Vargas
vulnerou, de frente, o estatuto constitucional, substituindo-o por uma
carta de sua outorga, e investindo-se, por via dela, no cargo cujo
preenchimento se convocara o país à competição das urnas.
Essa Constituição, ninguém o ignora, foi um tapume quase
imprestável para encobrir a miséria das ambições personalistas. Não
houve quem pretendesse praticar o novo texto, o qual se podia limitar à
regra de um só dos seus artigos, que dava ao Presidente da República,
'autoridade suprema', a direção da política interna e externa.13
Apesar do acordo interpartidário que se desenha, a linha política
independente traçada pela UDN não sofre desvio dos outros partidos envolvidos.
O acordo é homologado em 22 de janeiro de 1948 e junta, além de PSD e UDN, o
Partido Republicano (PR). A independência de cada partido fica clara na minuta
do acordo, assinada pelos presidentes dos três partidos, uma vez que no
documento é “ressalvada a autonomia das respectivas organizações”14.
Com o acordo consumado, começa a ser desenhada mais claramente a
sucessão do presidente, o general Eurico Gaspar Dutra. Porém antes mesmo de
UDN, PSD e PR se unirem, Vargas já excursiona pelo Brasil em campanha pelo
PTB. O ex-presidente viaja e discursa não como candidato, mas, “rompido com o
governo, durante o ano de 1947 Vargas alinhou-se na campanha eleitoral ao lado
do PTB (…) Em linhas gerais, seus discursos centraram-se: a) na crítica ao
governo federal; b) na defesa de seus quinze anos de governo, sempre com ênfase
nas conquistas econômicas e sociais; e c) na propaganda dos 'ideais do PTB'”15. A
eleição é para a escolha dos governos estaduais e assembleias legislativas.
As vozes e Vargas
24
13 GOMES, E. Campanha de libertação. São Paulo: Martins, 1946. p. 11
14 SILVA, H. Op. Cit. p. 279
15 FONSECA, P. Vargas: o capitalismo em construção. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 340
A aproximação de Getúlio Vargas ao PTB tem várias interpretações
possíveis. Uma delas é exatamente a de que o alinhamento das ideias de Vargas
com os tais “ideais do PTB” era evidente. E fica cada vez mais claro com o
decorrer das deliberações da Assembleia Constituinte, já que está em discussão a
extinção de algumas leis trabalhistas. Fora isso, mesmo após ter deixado o cargo
de Presidente da República, Vargas continua a se dirigir, em seus discursos, ao
“povo” ou aos “trabalhadores”. Apesar de, à primeira vista, essa atitude poder ser
encarada como apartidarismo, na verdade ela faz parte da própria ideologia
petebista16.
Como explica Jorge Ferreira, “Getúlio Vargas, até então, era maior que o
PTB. Sem grandes líderes em nível nacional e estadual, desprovido de máquina
partidária como as outras agremiações, os petebistas tinham algo nada
desprezível: o que, na época, era definido como 'getulismo'. Contudo, o partido não
crescia, limitado e cerceado por uma liderança incontestável, verdadeiro mito
político vivo”17. As práticas adotadas por Vargas, bem como seu discurso, a
princípio faziam parte do “getulismo”. Entretanto, a postura é incorporada ao
PTB de maneira arraigada, fazendo com que parte das práticas de Getúlio Vargas
sejam atribuídas aos políticos do PTB como um todo.
O discurso varguista de apoio aos trabalhadores é parte de um processo de
dominação. Mesmo fora do Aparelho de Estado, Vargas continua a exercer,
através da produção de bens simbólicos — dos quais falaremos mais adiante —,
parte do imaginário popular e, portanto, continua presente na mente dos
eleitores. Uma vez fora do Aparelho de Estado, essa construção simbólica se vê
De São Borja ao Catete
25
16 Idem. p. 334
17 FERREIRA, J. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 204
dificultada. Mas de volta ao poder, em 1951, Vargas tem poderes suficientes para
criar um jornal chapa-branca, o Ultima Hora, o tornando capaz de retocar sua
imagem como bem entender.
Os opositores de Vargas, por sua vez, também produzem propaganda
contra o ditador. Por serem instrumento de reprodução da ideologia dominante,
os Aparelhos Ideológicos de Estado constituem campo de batalha ideológica. O
fenômeno é possível de duas maneiras: entre classes e intraclasse — esta última
representa a disputa entre projetos discordantes dentro da classe dominante, o
que, veremos adiante, é o caso de 1954. Fora isso, as disputas no interior das
classes dominantes muitas vezes têm vínculo com as relações entre dominantes e
dominados. Isso também ocorre em 1954 — já que Vargas defende políticas
trabalhistas mais liberais, enquanto o projeto udenista prevê supressão de
direitos aos trabalhadores. Em ambos os casos, os AIE são utilizados como
“ponte” para a obtenção dos Aparelhos Repressivos de Estado. Tanto em 1947,
quando não é candidato, quanto em 1950, quando se elege presidente, Vargas
utiliza os Aparelhos Ideológicos de Estado de maneira hábil para chegar aos fins
que desejava.
O contexto às vésperas do início da corrida eleitoral de 1950 é o seguinte: a
UDN se une, mais uma vez, em torno do nome de Eduardo Gomes. Entre o PTB
permanece a indecisão, apesar de Getúlio Vargas ser lembrado ocasionalmente. O
PSD, esse sim, é o mais indefinido. Três linhas principais se combatem dentro do
partido: a primeira, que ainda leva em conta o acordo interpartidário, pretende
apoiar a UDN de Eduardo Gomes; a segunda, solidária ao presidente Dutra,
deseja aguardar a decisão dele; e a terceira, mais popular, se volta para o nome
do ex-presidente Vargas18. Como maior partido em número na Câmara, o PSD é
As vozes e Vargas
26
18 SILVA, H. Op. Cit. p. 62
um apoio importante tanto para o PTB quanto para a UDN, e a indecisão deixava
em aberto o contexto para a escolha do novo Presidente da República. Nenhuma
das três tendências terminou por se sobressair, já que, por fim, o mineiro
Cristiano Machado foi escolhido como candidato próprio do PSD à presidência —
mesmo não sendo uma decisão unânime. A principal discordância parte da ala
gaúcha do PSD, encabeçada por apoiadores de uma possível candidatura de
Nereu Ramos — que viria a se tornar Presidente da República posteriormente,
por um curto período de tempo. A pendenga termina por criar uma dissidência do
partido, o Partido Social Democrático Autonomista (PSDA), formado por ex-
integrantes do PSD gaúcho, mas não trouxe maiores danos à candidatura de
Cristiano Machado.
O panorama da campanha à Presidência da República — e o subsequente
desfecho — se mostra claro apenas quando levada em conta a movimentação
política de Getúlio Vargas nos anos anteriores. Ao contrário do que muitos
autores afirmam, o ex-ditador não se afasta completamente da política. “Já na
primeira manifestação pública após sua deposição, em São Borja a 10 de
novembro de 1945, Vargas conclamou os trabalhadores a aderirem ao PTB,
'herdeiro e continuador dos postulados da Revolução de 30'”19. Principalmente em
nível regional, Vargas continuou falando “ao povo” ou “aos trabalhadores”, já
claramente alinhado à ideologia petebista, deixando o PSD de lado.
Apesar da dura campanha pela Presidência da República, Vargas inicia seu
segundo período como presidente nomeando ministros de todos os partidos.
Mesmo assim, o único representante da UDN, João Cleofas (Agricultura), não
pode ser pensado como representante do seu partido — uma vez que os outros
De São Borja ao Catete
27
19 FONSECA, P. Op. Cit. p. 333
políticos udenistas viram com maus olhos a aceitação do convite20 . Um dos
nomeados, Ricardo Jafet, presidente do Banco do Brasil, seria de suma
importância para o financiamento do jornal de Samuel Wainer. As bases para que
o capitalismo brasileiro se consolide são plantadas principalmente a partir de
1937, e, com a população urbana em grande número a partir de 1950, Getúlio
Vargas vê suas bases eleitorais constituídas principalmente na ideologia
trabalhista.
Em linhas gerais, a política econômica durante o período em que Vargas
está à frente do País é coerente. Mesmo assim, não há projeto de longo prazo,
apesar de, a princípio, o presidente sempre optar pelo capital nacional em
detrimento do capital estrangeiro, e buscar investimentos na área de infra-
estrutura e na indústria de base21 . A composição de seus ministérios com os
partidos conservadores (uma cadeira para a UDN e quatro para o PSD) não
muda, e substância, na reforma ministerial de 1953. A principal mudança, que
teve influência inegável na opinião pública, foi a escolha de João Goulart para
ocupar a única cadeira petebista, do Trabalho.
Mesmo defendendo a industrialização brasileira, Vargas não quer que a
agricultura seja esquecida. Há uma busca pela modernização e mecanização do
campo, que acompanha e aumenta a velocidade de processos demográficos dos
quais falaremos adiante. É exatamente neste ponto que os projetos udenista e
petebista entra em conflito. A UDN apóia o capital estrangeiro, como forma de
alavancar a industrialização e, por conseguinte, a economia brasileira. Além
disso, a opção por privilegiar as indústrias de base também não é apoiada pela
bancada oposicionista, uma vez que os lucros de empresas como a Petrobras só
As vozes e Vargas
28
20 SILVA, H. Op. Cit. p. 98
21 FONSECA, P. Op. Cit. p. 354-9
viriam no longo prazo. A disputa ideológica acontece principalmente por causa
desses dois projetos de desenvolvimento. Mesmo com o projeto de Vargas sendo
implantado durante a primeira metade da década de 1950, a UDN conseguiria
reverter o quadro e pôr em prática suas ideias no governo de Juscelino
Kubitschek.
Para que tenha apoio não apenas político, como também do “povo” a que
tanto se refere, o presidente eleito tem que trabalhar o símbolo Vargas. A criação
do jornal Ultima Hora está inserida, principalmente, nesse contexto — de
construção da imagem de Getúlio Vargas. A UDN, que anteviu a movimentação
política do PTB e de Vargas, se viu encurralada, como explica Jorge Ferreira:
Incapaz de competir com a aliança PSD-PTB, com um projeto excludente
e conservador, derrotada desde 1945, a UDN, ao apresentar Vargas como
a desgraça do país, estava descrevendo, na verdade, a matriz de seu
próprio infortúnio político. (…) O conflito entre trabalhistas e liberais,
contudo, era travado em águas mais profundas e girava em torno de
projetos alternativos de desenvolvimento econômico para o país e de
cidadania política para os trabalhadores.22
A construção da imagem de líder conferida a Getúlio Vargas deveria ser
feita de forma gradual e com linguagem inteligível a essa classe, para que seja
absorvida pelo senso comum. A “difusão orgânica de um modo de agir e de pensar
homogêneo”23 — a ideologia trabalhista — é feita por um “centro homogêneo” — o
Ultima Hora —, e, complementar a isso, são recorrentes os símbolos e ideias que
ligavam Vargas à figura heróica que se confirma após o suicídio. Claro, contribui
também para a construção desta imagem os inúmeros ataques da oposição ao
De São Borja ao Catete
29
22 FERREIRA, J. Op. Cit. p. 172
23 GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, vol. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 205
presidente, inclusive os difundidos por O Globo. De pouco em pouco, o ferrenho
processo de descrédito de Getúlio Vargas e, em menor grau, do PTB, — operado
por Carlos Lacerda e a UDN — fez com que o tiro no peito se tornasse,
instantaneamente, o ponto final de um martírio. Pelo menos aos olhos do “povo”,
ou dos “trabalhadores”.
O embate entre a UDN e Vargas representa, de maneira ampla, o embate
entre dois projetos de desenvolvimento para o Brasil. Desde 1930, quebrada a
hegemonia dos cafeicultores sobre a política nacional, não existe uma classe forte
o suficiente para subir e se manter no poder. Esta característica se torna, daí
para frente, preponderante na política brasileira, até o Golpe de 1964. É o que
explica Guita Debert:
A Revolução de 30, o Golpe de 37, e a reabertura de 45 não seriam a
expressão do processo de ascensão de uma nova classe hegemônica ao
poder de Estado. Ao contrário, se a Revolução de 30 põe fim à hegemonia
da burguesia do café, o que caracteriza a nova forma política é a ausência
de uma nova classe que pudesse assumir papel hegemônico.
(…) isso permite uma rápida rearticulação das oligarquias não
vinculadas ao café com diferentes áreas militares que se opunham ao
acordo entre as cúpulas do Exército e os setores cafeeiros.24
Desse modo, com interesses distintos em disputa, o nacional-desenvolvimentismo
do PTB e de Vargas não é condizente com os planos udenistas de abertura ao
capital externo. Esse é o principal motivo pelo qual, através de Aparelhos
Ideológicos de Estado, como os jornais, UDN e Vargas travam uma batalha
ferrenha pela máquina de Estado. A “República do Galeão”, instaurada logo após
o Atentado da rua Toneleros, é um exemplo de como a oposição legitima-se, por
As vozes e Vargas
30
24 DEBERT, G. Ideologia e populismo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979. p. 20
breve momento, como poder legítimo — tomando o aparelho de Estado. Como que
em um Estado paralelo ao de Vargas, que está, à essa altura, afundado no “mar
de lama”.
Entretanto, para que Vargas ponha em prática o plano político da chegada
ao poder em 1951, mudanças sócio-econômicas que tomam parte na sociedade
brasileira durante as décadas de 1940 e 1950 são cruciais. Somadas às mudanças
nos jornais, que falaremos mais adiante, as mudanças na sociedade são vitais
para que a ideologia trabalhista tenha espaço para se difundir. Para explicar a
importância dessa plasticidade social, Guita Debert, citando Francisco Weffort,
faz um paralelo entre os conceitos de coronelismo e populismo — a ideologia do
PTB se encaixa neste último, afirma a autora, baseada na trajetória política de
outro gaúcho, Leonel Brizola:
Embora tanto o líder de massas como o coronel se apóiem em relações do
tipo afetivo, de confiança e de dependência social, [Weffort] considera que
populismo e coronelismo são fenômenos basicamente distintos. No
coronelismo, 'temos contatos nos limites sociais e econômicos sob o
domínio do senhor rural (…)
Por outro lado, o mesmo autor considera que o populismo só pode
ser entendido como fenômeno de massas em determinadas circunstâncias
históricas. No Brasil, teríamos o que o autor chama de 'massificação
prematura' ou 'antecipada'. Este conceito serve não para negar o conteúdo
político da presença das massas, mas, ao contrário, para afirmá-lo. A
massificação, aqui, não teria significado basicamente a pulverização das
classes portadoras de uma tradição política e ideológica, mas a ascensão
à vida urbana e aos processos políticos das camadas do interior e do
campo.25
De São Borja ao Catete
31
25 Idem. p. 2
A industrialização do Brasil, fora os óbvios impactos econômicos, ocasiona
mudanças geográficas importantes na distribuição da população. Apesar da
região sudeste ser, desde a década de 1890, a mais populosa, sua taxa de
crescimento populacional aumenta bruscamente a partir de 1950. Os reflexos
desse aumento são visíveis principalmente nas décadas seguintes: entre 1950 e
1970, o número de habitantes da região sudeste sobe de 22 milhões para pouco
mais de 41 milhões de pessoas — um crescimento de 86%26. O dado mostra que, a
partir da década que Vargas toma posse, diversos fatores aumentam a velocidade
do crescimento populacional.
A mobilidade interna dos habitantes faz com que muitos migrantes
venham ao eixo Rio-São Paulo, principalmente da região nordeste, que apresenta
saldo migratório negativo de 936 mil pessoas em 1950. O êxodo rural foi
acentuado pelo aumento do número de indústrias no país. O fenômeno ocorre não
somente inter-regionalmente, como também de maneira intrarregional, ou seja,
com população rural se deslocando em direção aos centros urbanos da mesma
região em que vivem.
Os critérios para classificação da população em urbana ou rural são
subjetivos. A depender da metodologia adotada em cada país, são levados em
conta fatores administrativos, número de habitantes ou ocupação da população.
Deixando de lado essa discussão, levaremos em conta os critérios adotados pelos
recenseamentos feitos no Brasil. Entre 1940 e 1950, a população urbana aumenta
45,5%, enquanto a rural apenas 17,4%. Entre as décadas seguintes, 1950 e 1960,
a diferença percentual é maior: 72% contra 13,3%27. Mesmo com as taxas de
As vozes e Vargas
32
26 HUGON, P. Op. Cit. p. 173
27 Idem. p. 205
natalidade das áreas rurais sendo maiores, há crescimento acentuado nas regiões
urbanas, o que indica uma movimentação interna em direção a elas.
O progresso técnico nas plantações é um fator de repulsão dos
trabalhadores. Com máquinas para colher, plantar e arar a terra, a oferta por
empregos nas zonas agrícolas desenvolvidas diminui e parte da mão-de-obra fica
ociosa, levando a um excedente de população ativa. Até 1946, são utilizados seis
mil tratores no Brasil. Entre aquele ano e 1954, outros trinta mil, importados,
chegam às lavouras brasileiras28.
A relação entre a população urbana e a população rural do Brasil, em 1950,
indica que o país ainda era essencialmente agrícola: 64% das pessoas viviam no
campo. A tendência de fuga em direção às cidades se consolidou, e, em 1970, a
economia brasileira já é considerada industrial, com 56% dos habitantes vivendo
nas cidades.
Durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, tanto houve
mecanização das zonas agrícolas quanto fomento à industrialização. Além disso,
várias grandes obras são realizadas na capital federal, abrindo um grande
número de vagas na construção civil. O projeto da avenida Presidente Vargas é
um exemplo. Pensada durante a presidência de Washington Luís, a obra
desapropriaria grande parte dos prédios entre as ruas São Pedro e General
Câmara, e se chamaria avenida das Bandeiras29 , em homenagem aos
bandeirantes paulistas. Por motivos diversos, entretanto, o projeto não é posto em
prática até o governo de Getúlio Vargas, que concede seu nome à nova via.
De São Borja ao Catete
33
28 Idem. p. 194
29 HENRIQUES, A. Ascensão e queda de Getúlio Vargas — o Estado Novo. Rio de Janeiro: Record, 1966. p. 51-2
O contexto em que Vargas assumiu a presidência pela primeira vez, em
1930, é de crise econômica, com o principal produto brasileiro, o café, em brusca
queda de preços no mercado internacional. Apesar do estouro da crise da
economia cafeeira só ocorrer durante a égide de Vargas, de toda a produção
cafeeira de 1927 a 1929, apenas dois terços foi exportado30 . As principais medidas
do governo para combater o problema são a compra e queima dos estoques.
A política econômica brasileira a partir de 1930 visa à superação do modelo
agroexportador, e não sua perpetuação. Desse modo, representa uma quebra em
relação às políticas econômicas anteriores31. O mercado consumidor interno se
torna, pouco a pouco, tão quanto ou mais importante que o externo. O volume de
exportações também diminui graças a uma política econômica de substituição de
importações, tornando a economia brasileira menos dependente. A acumulação de
capital é decisiva para o aumento do parque industrial no Brasil, assim como a
intervenção do estado, que cria empresas como a Companhia Siderúrgica
Nacional (CSN) — fundada em 1941 —, dando base para uma posterior
implantação, nos anos 1960, de indústrias de bens de consumo.
O golpe do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, dá poderes
praticamente ilimitados a Getúlio Vargas. Com o apoio dos militares, o ditador
fecha todas as casas parlamentares do Brasil e passa a nomear interventores nos
estados. A presença estatal na economia aumenta, com uma tendência
centralizadora, e a industrialização passa a ser a linha mestra da política
econômica. A atuação do governo de Vargas a partir do Estado Novo, portanto,
pode ser interpretada como um aprofundamento das medidas tomadas durante o
As vozes e Vargas
34
30 FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 1979. p. 183-5
31 FONSECA, P. Op. Cit. p. 147-8
governo provisório32 . No discurso que profere no dia em que toma o governo, o
ditador diz que o aparelho de Estado que existia até então “não se ajustava às
exigências da vida nacional; antes, dificultava-lhe a expansão e inibia-lhe os
movimentos”.
Portanto, a partir do Estado Novo — período que consideramos crucial
para que o capitalismo brasileiro se consolide, anos depois — são criadas as
condições para que as mudanças ocorridas na distribuição geográfica brasileira de
1950 em diante acontecessem. O processo, analisado em termos gerais, é claro.
Os moradores das cidades são o público leitor do que viria a ser o jornal Ultima
Hora, criado por Samuel Wainer com a ajuda do presidente. O apoio de Vargas é
indispensável para que Wainer possa sustentar seu novo empreendimento; por
outro lado, o apoio de Wainer é indispensável para que Vargas possa governar por
mais tempo. Por esse motivo, é preciso analisar as trajetórias do jornalista e do
jornal, que estão inseridas no contexto da modernização da imprensa durante a
década de 1950. Este é o assunto que trataremos no próximo capítulo.
De São Borja ao Catete
35
32 Idem. p. 147-50
Ultima Hora
A criação do jornal Ultima Hora está ligada diretamente à boa relação que
existe, em 1951, entre Samuel Wainer — o dono do diário — e o então presidente,
Getúlio Vargas. Apesar disso, a trajetória profissional de Wainer se cruza em
diversos pontos com o período anterior de Vargas no governo, apenas de maneira
inversa: como adversário, não como aliado.
O primeiro órgão da imprensa passível de citação pelo qual o jornalista
passou é Diretrizes, uma revista fortemente influenciada pelas vanguardas
artísticas do início do século XX e berço de uma intelectualidade emergente. No
quadro de Diretrizes estão figuras como Rubem Braga, Astrogildo Pereira — um
dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro (PCB) — e Azevedo Amaral.
Antes, Wainer trabalhara na Revista Contemporânea, publicada pela editora de
Caio Prado Júnior, que possui ideias alinhadas às da Aliança Nacional
Libertadora (ANL), que Getúlio Vargas desfez em 1937, durante a ditadura do
Estado Novo.
Durante a década de 1940, Diretrizes sofre censura prévia do
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo. Apesar disso, até
1940, a publicação nunca tivera problemas com seu conteúdo. É naquele ano que
o DIP impõe o afastamento de Maurício Goulart, dono e colunista da revista.
Wainer passou a ser o proprietário de Diretrizes, e o DIP, momentaneamente, se
torna mais tolerante quanto ao conteúdo publicado. Mesmo assim, duas
reportagens são as responsáveis pelo declínio da revista. A primeira, uma
entrevista com Fernando Lacerda — tio de Carlos Lacerda e um dos mais famosos
integrantes do PCB —, rende ao entrevistado e a Wainer 28 dias de prisão. A
segunda e derradeira é mais uma entrevista, com o general Miguel Costa, um dos
comandantes da Coluna Prestes. O resultado, segundo o novo dono da revista,
não pode ser pior:
Ultima Hora
39
No dia 4 de julho de 1944, mandei o material para o DIP. Poucas horas
depois, recebi um aviso que significava uma sentença de morte para
Diretrizes: por ordem do diretor do DIP, a revista perdera o direito à cota
de papel que garantia sua impressão. (…)
Comuniquei ao pessoal da redação, por telefone ou pessoalmente, o
que acabara de ocorrer, e recomendei a todos que se dispersassem.
Tomadas essas providências, tomei um táxi e me refugiei na embaixada
do México. (…) Assim, quando o embaixador do México comunicou ao
Itamaraty que eu pedira asilo, emissários do governo esclareceram que
aquilo era desnecessário — eu obteria um visto de saída sem maiores
complicações.33
Após o período conturbado, Wainer viaja aos Estados Unidos, em exílio. O
jornalista se sustenta como correspondente de O Globo, veículo que, em 1954, se
tornaria adversário declarado do vindouro Ultima Hora. É, também, durante o
exílio que Wainer cobre o Julgamento de Nuremberg — o julgamento dos oficiais
nazistas —, sendo o único brasileiro no evento histórico. Além disso, entre 1945 e
1947, realiza diversas entrevistas e coberturas na Europa, como o julgamento dos
chefes de governo de Vichy34. De volta ao Brasil, já com fama e credibilidade
consolidadas, Samuel Wainer é contratado como chefe de redação de O Jornal,
um dos principais veículos dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. E é
neste jornal que realiza a entrevista que mudou os rumos de sua carreira.
Acompanhado de um fotógrafo de O Jornal, Wainer viaja a São Borja, Rio
Grande do Sul, a trabalho. Aqui há uma bifurcação na história: em sua auto-
biografia, Wainer afirma que havia sido enviado à cidade para escrever uma
pauta sobre a produção de trigo local. Segundo esta versão, falar com o Getúlio
As vozes e Vargas
40
33 WAINER, S. Minha razão de viver — memórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record, 1987. p. 67
34 Idem. p. 90-5
Vargas, então um ex-presidente recluso na fazenda Itu, teria sido ideia do próprio
Wainer. Apesar disso,
a versão de que fazer a entrevista tinha sido decisão sua [Wainer] e não
uma ordem de Chateaubriand, no entanto, é contestada por todos os seus
colegas de direção dos Associados na época — Carlos Castelo Branco,
Austregésilo de Athayde e Freddy Chateaubriand, entre outros — que
sustentam que o patrão o enviou ao Sul com a missão específica de
entrevistar Vargas. A tal reportagem do trigo teria sido, segundo esses
depoimentos, um mero pretexto para justificar a viagem do repórter ao Rio
Grande do Sul.35
Ainda de acordo com Morais, antes do encontro em São Borja, Wainer e Vargas
haviam se visto apenas ocasionalmente, nos corredores do senado.
Não fazendo diferença de quem foi a ideia, fato é que a entrevista, escrita
por Wainer e publicada em O Jornal, fez com que Vargas reaparecesse no plano
político nacional — apesar de, reiteramos, nunca ter deixado de exercer forte
influência no plano regional.
Após a eleição de Getúlio Vargas, o presidente convida Samuel Wainer a se
tornar dono de seu próprio jornal. Essa e a versão do próprio Wainer, em suas
memórias, segundo a qual o barão Assis Chateaubriand teria ficado muito
irritado com a decisão do então repórter de O Jornal. Em “Botando os pingos nos
is — as inverdades nas memórias de Samuel Wainer”, o ex-assessor de imprensa
de Vargas, Rivadávia de Souza, conta que, na verdade, o próprio Wainer deu a
Ultima Hora
41
35 MORAIS, F. Chatô — o rei do Brasil. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2001. p. 495
ideia ao presidente36. Dito por não dito, não demorou para que Wainer começasse
a se articular para viabilizar a existência de Ultima Hora.
A redação do Diário Carioca, um jornal essencialmente anti-Vargas, ficava
na avenida Presidente Vargas. Lá também ficava a editora “Érica”, que pertencia
ao jornal e tinha um dos parques gráficos mais modernos do Brasil. Mesmo com
uma equipe de redação moderna e com técnicas trazidas do jornalismo
estadunidense, o Diário Carioca passava por uma situação financeira ruim.
Samuel Wainer ficou sabendo disso, como conta em suas memórias, através de
José Jobim, irmão de Dantom Jobim, redator-chefe do DC. Assim sucedeu-se a
compra da empresa “Érica”: com dinheiro emprestado dos banqueiros Walter
Moreira Salles e Ricardo Jafet (presidente do Banco do Brasil), e do industrial
Euvaldo Lodi, Wainer adquire todo o parque gráfico que pertencia ao Diário
Carioca. No contrato de compra e venda, estava prevista a impressão, por dois
anos, do DC, garantindo a subsistência do periódico. Graças à boa qualidade da
gráfica, era possível imprimir Ultima Hora com o logo azul, “da cor dos olhos do
dono”, como havia prometido o diagramador André Guevara a Samuel Wainer.
Perante a maneira como os fatos ocorridos em agosto de 1954 são
noticiados pelo Ultima Hora, é possível determinar quatro movimentos que têm
como intuito a defesa do PTB e de Getúlio Vargas.
O primeiro, e mais importante, é o descrédito empregado aos adversários
da imprensa, nominalmente citados: Diários Associados, de Assis Chateaubriand;
Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda; e O Globo, de Roberto Marinho. Na
contramão do primeiro movimento, aparece a exaltação das qualidades de
petebistas, principalmente Lutero Vargas, João Goulart e, claro, o presidente
As vozes e Vargas
42
36 SOUZA, R. Botando os pingos nos is — as inverdades nas memórias de Samuel Wainer. Rio de Janeiro: Record, 1989.
Getúlio Vargas. Com o passar das investigações, e o envolvimento de Gregório
Fortunato com o Atentado da rua Toneleros, a maneira como as notícias são
colocas tende a desvincular a imagem de Vargas da imagem do ex-guarda; além
disso, os outros acusados são tratados como criminosos profissionais. Em todos os
momentos, até mesmo após o suicídio do presidente, os militares — tanto os
presentes no governo, como ministros, quanto os ausentes — foram tratados como
aliados.
Ao longo das próximas páginas, mostraremos cada um dos quatro tópicos
apresentados no parágrafo anterior, através de textos publicados no Ultima Hora
em agosto de 1954. Apesar dessa delimitação temporal, a posse de João Goulart
como Ministro do Trabalho, em 19 de junho de 1953, também foi considerada,
para fins de exemplificação.
Ultima Hora
43
Os adversários
Como dono da Tribuna da Imprensa, nada mais esperado que Carlos
Lacerda, udenista fervoroso, ataque Vargas e seu governo através do diário. Desse
modo, Lacerda é o principal adversário de Wainer e do Ultima Hora. Apesar
disso, como vítima no Atentado da rua Toneleros, o político da UDN não é
atacado de forma direta nos textos do jornal de Wainer — ao menos até a morte
de Vargas, em 24 de agosto.
O descrédito da imagem de Carlos Lacerda está diretamente vinculado ao
crédito dado ao major Ruben Florentino Vaz, que morrera no atentado. Em todas
as passagens em que ferimento no pé de Lacerda é citado, a morte de Vaz vem
logo em seguida, quase como um lembrete de que o udenista não fora o maior
prejudicado:
Foram de intensa movimentação as últimas quarenta e oito horas no
Palácio do Catete, em consequência dos inesperados e surpreendentes
rumos que tomaram as investigações em torno do bárbaro crime da rua
Toneleros em que perdeu a vida o major Rubens Vaz e saiu ferido o
jornalista Carlos Lacerda.37
Além disso, petebistas, como Lutero Vargas, negaram publicamente que o
jornalista tenha levado um tiro38. Levando em conta os padrões sociais da década
de 1950, o comportamento masculino perante uma situação de perigo deveria ser
corajoso — o que, como os textos de Ultima Hora insinuam, não foi o caso de
As vozes e Vargas
44
37 Ficaram acesas até tarde as luzes no Palácio do Catete. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 9 de agosto de 1954. p. 2
38 RIBEIRO, J. A era Vargas — agosto 1954. Rio de Janeiro: Casa Jorge, 2001. p. 9
Lacerda. Esse argumento é usado mais uma vez em chamada na primeira página,
em frase atribuída ao pistoleiro João Alcino: “Enquanto o major Vaz procurava
revidar, Carlos Lacerda corria para a garagem”39.
Através da voz oficial do coronel Adil de Oliveira, responsável pelo
Inquérito Policial-Militar (IPM) que investigou o assassinato de Vaz — a
conhecida “República do Galeão” —, o Ultima Hora confere descrédito à briga do
dono da Tribuna da Imprensa com Vargas. Sob o sub-título “Lacerda briga com
muita gente”, é atribuída a seguinte frase ao militar: “Lacerda briga com muita
gente, prosseguiu o coronel Adil de Oliveira. E não só com gente do governo”40.
O descrédito à Tribuna da Imprensa é sempre personificado à imagem de
Carlos Lacerda. Durante todo o mês de agosto, há apenas um ataque direto ao
jornal concorrente. Mesmo assim, ele é feito contra o seu dono. O texto aproveita,
ainda, para ligar a Rádio Globo — outra adversária de Vargas e Wainer — à
Tribuna da Imprensa e a Lacerda.
[Carlos Lacerda] Confessou, ontem, pela “Rádio Globo”, que há vários
dias já sabia que Lutero não era o mandante do atentado da rua
Toneleros, mas continuou divulgando, na “Tribuna da Imprensa”, essa
mentira consciente.41
O verbo utilizado neste caso, “confessar”, é cuidadosamente escolhido, uma vez
que, para “confessar” algo, é necessário ter culpa.
Ultima Hora
45
39 Declara o pistoleiro Alcino no seu depoimento. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1954. p. 1
40 Primeiras fotos dos pistoleiros!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1954. p. 2
41 Lacerda sabia que Lutero não era o mandante!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1954. p. 1
Ao citar um caso de informação falsa, ou “mentira consciente”, do Tribuna
da Imprensa próximo a uma citação da Rádio Globo, o texto do Ultima Hora
acaba por atribuir os mesmos valores aos dois veículos. Ou seja: se um mente, o
outro também. Mesmo que não sendo um ataque direto, a passagem é uma das
formas de descreditar também O Globo e todos os veículos de Roberto Marinho.
Há apenas um ataque direto, dentre os textos analisados, direcionado à
família Marinho. Em 3 de junho de 1953, uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) é instaurada para investigar a relação entre o Ultima Hora e o
Banco do Brasil, através da resolução número 313. Concomitante a essa
investigação, é realizada uma outra, por meio da resolução 314, que pretende
investigar a relação do banco estatal com os jornais impressos em geral. Ambas
as CPIs foram encerradas em novembro daquele ano — chegando à conclusão de
que as empresas jornalísticas tinham regalias como um todo. Mesmo assim,
talvez no afã de reverter a campanha que Vargas e seu jornal sofriam, Wainer
publica, na mesma edição citada acima, as dívidas de O Globo e dos Diários
Associados nas páginas do Ultima Hora.
Finalmente, ontem, após laborioso parto, foi dado à publicidade pela
mesa da Câmara dos Deputados, o relatório da Comissão Parlamentar de
Inquérito sobre as transações do Banco do Brasil com a imprensa falada e
escrita do país.42
Mesmo que houvesse dívidas do próprio Ultima Hora, há uma tentativa de
justificar a publicação apenas das dívidas alheias:
As vozes e Vargas
46
42 Divulgadas as dívidas dos “Diários Associados” e do “Grupo Roberto Marinho” no Banco do Brasil. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1954. p. 4
Tratando-se de um documento muito extenso, divulgamos hoje aqui
apenas a parte referente aos dois grupos jornalísticos e radiofônicos, cujas
dívidas com o nosso principal estabelecimento de crédito assumem
proporções mais vastas: o “Grupo Chateaubriand” e o “Grupo Roberto
Marinho”.43
O texto ainda chama a atenção para a “atitude covarde e indigna do
presidente da Comissão Parlamentar, o deputado Castilho Cabral”, do Partido
Social Progressista (PSP), “que, contrariando os objetivos dessa comissão, não
exigiu de seus componentes, inclusive o relator Guilherme Machado”, da UDN,
“conclusões sobre o caráter irregular dessas operações”44. É necessário lembrar
que Carlos Castilho Cabral, o presidente da CPI, fora fundador da União
Democrática Nacional, antes de se filiar ao PSP. Em outubro de 1954, se elegeria
deputado pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN).
Três empresas relacionadas ao “Grupo Roberto Marinho” são mencionadas
no relatório publicado: Rádio Globo S.A., com uma dívida de 36.574.945 cruzeiros;
Viúva Irineu Marinho e Filhos (e Outros), devendo 3.103.573 cruzeiros; e,
finalmente, Empresa Jornalística Brasileira S.A., com débito de 16.606.976
cruzeiros.
Ultima Hora
47
43 Idem.
44 Idem.
Os militares
Apesar de os livros de história apontarem, genericamente, os agentes
militares da crise, que organizaram a “República do Galeão”, como adversários
políticos de Vargas, em nenhuma momento o Ultima Hora expõe os generais e
brigadeiros dessa forma. Na verdade, os textos coletados deixam explícito apenas
cautela e respeito no tratamento dispensado a eles. Além disso, tentam
aproximar tanto Getúlio quanto Lutero Vargas das “causas” supostamente
defendidas pelos militares — principalmente a defesa de legalidade.
Em carta publicada imediatamente após o Atentado da rua Toneleros,
Lutero Vargas ressalta, em diversas passagens, que serviu na Segunda Guerra
Mundial como médico da Aeronáutica — a mesma arma, afinal, da vítima fatal do
tiroteio, o major Rubens Vaz. Após discorrer sobre a confiança que tem nos
tribunais brasileiros, o deputado federal e presidente do PTB no Distrito Federal
vai direto ao ponto:
Como segundo tenente da Aeronáutica, classe a que me liguei mais
fraternalmente nos campos de batalha da Itália, onde servi como médico
do Primeiro Grupo de Caça, manifesto mais uma vez os meus sentimentos
de pesar pelo ocorrido, recordando hoje com mais emoção do que nunca
todos os momentos em que, como um só homem, estivemos lado a lado na
luta por ideias comuns.45
Citar seu passado militar é uma forma que Lutero Vargas encontra de criar
empatia nas Forças Armadas, principalmente na Aeronáutica. No meio de uma
As vozes e Vargas
48
45 “Enquanto meu pai for presidente da República, eu me empenharei para que Carlos Lacerda não sofra qualquer atentado”. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 6 de agosto de 1954. p. 1
crise política latente, permeada de diversos elementos de colisão — mas que,
àquela altura, ainda não havia eclodido completamente —, ter os militares como
opositores era algo, como se vê, totalmente indesejável.
Outro ponto importante da abordagem dada pelo diário de Wainer aos
militares é o uso da voz oficial dos integrantes da “República do Galeão”. O
general Caiado de Castro, chefe do Gabinete Militar da Presidência da República
— e um dos principais responsáveis pelo IPM —, por exemplo, é consultado como
fonte em uma extensa reportagem publicada no dia 19 de agosto. Além disso, o
Ultima Hora, ao utilizar a voz oficial de outro coronel, Adil de Oliveira, aproveita
para desacreditar, mais uma vez, a imagem de O Globo:
Ao iniciar sua palestra com os jornalistas, o Coronel Adil referiu-se
indignado às publicações de “O Globo”, nas quais foram publicadas
declarações suas apontando como mandante do crime uma alta figura da
República.
— Eu próprio não sei quem teria mandado assassinar o major,
afirmou diante da reportagem de todos os jornais, o coronel encarregado
do inquérito.46
Além de “indignado”, o coronel Adil de Oliveira fez suas afirmações “diante da
reportagem de todos os jornais”, o que, em tese, aumenta a credibilidade do que
foi publicado, uma vez que há testemunhas.
O tom oficial do que é dito pelos militares ainda é aproveitado para
desfazer supostos boatos — que, não necessariamente, sejam boatos. A apreensão
das cartas do ex-chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas, Gregório Fortunato,
foi noticiada de maneira tímida pelo Ultima Hora, com uma pequena nota
Ultima Hora
49
46 Primeiras fotos dos pistoleiros!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1954. p. 2
localizada no canto inferior-direito de uma página interna do jornal. O texto, na
íntegra, é o seguinte:
Na manhã de hoje, o coronel Adil de Oliveira, representante da
Aeronáutica no Inquérito Policial-Militar para apurar o crime da rua
Toneleros, esteve no Palácio do Catete, acompanhando o investigador João
Valente, sub-chefe da extinta guarda pessoal da Presidência da República
que está preso incomunicável sob a vigilância imediata de um tenente da
Aeronáutica e de duas praças.
O objetivo da diligência foi o de levar todo o arquivo de
correspondência particular do tenente Gregório, constituído de milhares
de cartas. A diligência foi rápida, durando apenas cerca de 10 minutos.47
Ao ler as explicações dadas pelo mesmo Adil de Oliveira, dois dias depois, é
preciso nos questionarmos se, levando em conta a relevância da notícia acima — e
o modo como foi publicada —, Vargas não estaria perdendo as rédeas dos
acontecimentos até mesmo no Catete:
Esclarecendo a apreensão, no Palácio do Catete, do arquivo onde se
continha a correspondência particular do tenente Gregório, o coronel Adil
disse que não foi feita uma diligência invadindo o Catete, como se quis
fazer crer. Mas, sim, foram postos à sua disposição pelo general Caiado de
Castro, esses arquivos que poderiam ser elementos úteis a apuração dos
fatos.48
Ainda como modo de aproveitar o que é dito pelos militares, os textos
publicados no Ultima Hora ressaltam que, segundo os coronéis da “República do
As vozes e Vargas
50
47 Apreendida, esta manhã, no Catete a correspondência particular do ten. Gregório. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1954. p. 3
48 Primeiras fotos dos pistoleiros!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1954. p. 2
Galeão”, Getúlio Vargas e o Palácio do Catete estão dando total apoio às
investigações — em consonância com o que é dito por Lutero Vargas em 6 de
agosto. Desse modo, as claras desconfianças que recaem sobre o governo, porque o
adversário Carlos Lacerda fora o principal alvejado no atentado, seriam
infundadas. Ou seriam, pelo menos, equivocadas. Mais uma vez, fala o coronel
Adil de Oliveira:
— Como poderia, portanto, estar eu apontando como mandante uma alta
figura do governo? Quanto ao deputado Lutero Vargas, cada vez acredito
menos na sua culpa. A comissão não tem elementos que o apontem como
suspeito. A imprensa é que o acusou como possível mandante.
E mais adiante, frisou incisivamente o Coronel Adil de Oliveira,
respondendo a uma verdadeira saraivada de perguntas que lhe faziam os
repórteres:
— O deputado Lutero Vargas apresentou-se espontaneamente à
Comissão de Inquérito Policial Militar, e suas informações foram de
máxima utilidade na elucidação dos fatos. Várias investigações foram
feitas baseadas nessas informações.49
A única exceção dentre os aspectos atribuídos aos militares, no que diz
respeito a uma voz oficial endossando o que é afirmado pelo jornal, é o motivo pelo
qual o Inquérito Policial-Militar, a “República do Galeão”, é tão fechada em si.
Apesar de citar, mais uma vez, o coronel Adil de Oliveira, o texto faz uso da voz
passiva, que aumenta a subjetividade.
Diante da estranheza dos repórteres, sobre a vigilância e o aparato bélico
em que se encontra a Base Aérea do Galeão, o que dificulta a cobertura
jornalística, esclareceu o Coronel Adil que, além da própria segurança em
Ultima Hora
51
49 Idem.
torno do inquérito, há necessidade de se estabelecer segurança para os
presos, que assim exigem. Daí não considerar, ele, como excessiva, aquela
vigilância, mas sim necessária.50
O discurso de que o governo está empenhado em encontrar a solução do
inquérito vai ao encontro do modo com que os acusados são apresentados pelo
jornal petebista. Com o passar dos dias, fica clara uma tentativa de afastar os
acusados das figuras do Palácio do Catete — principalmente o acusado mais
próximo, Gregório Fortunato.
As vozes e Vargas
52
50 Idem.
Os acusados
“Capturado vivo na selva o assassino do major Vaz!”51 É assim que, em 17
de agosto, o diário de Samuel Wainer noticia a prisão de João Alcino do
Nascimento, o atirador que matou o major Vaz. Não tarda para que, com o
desenrolar da investigação, Alcino aponte Climério Euribes de Almeida, que
compõe a guarda pessoal de Getúlio Vargas, como a pessoa que o contratou para
disparar. Uma coisa leva à outra e, logo em seguida, o chefe da guarda pessoal,
Gregório Fortunato, o “Anjo Negro”, também vai preso, assim como João Valente
de Sousa, outro integrante da guarda pessoal.
A preocupação do Ultima Hora, em relação aos acusados, é distanciá-los o
máximo possível de Getúlio e Lutero Vargas — desacreditando, assim, a hipótese
de que o presidente ou de que o deputado federal sejam mandantes do atentado.
— A ordem para a concretização do crime não partiu do governo. Governo
é governo; Catete é apenas uma residência, na qual encontram-se
cozinheiros, motoristas e servidores outros, por cujas ações ninguém
poderá responsabilizar o governo.52
Um dos principais problemas para a sustentação da tese de que Gregório
Fortunato havia agido por interesse próprio é o dinheiro dado ao atirador João
Alcino. Não há dificuldade em explicar isso também:
Ultima Hora
53
51 Capturado vivo na selva o assassino do major Vaz!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1954. p. 1
52 Primeira fotos dos pistoleiros!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1954. p. 2
Como lhe fosse perguntado a impossibilidade de Gregório, como simples
serviçal, com ordenado de apenas mil cruzeiros, ter financiado a fuga e os
gastos na execução do atentado, informou o coronel Adil:
— Gregório é um homem de negócios. É um homem rico.
Fazendeiro. E eu, como gaúcho e seu vizinho, conheço muito bem sua
situação financeira. Acredito, porém, que, além de Gregório, haja mais
alguém na história. Posso, entretanto, afirmar que nada existe contra
Jango Goulart, Lutero Vargas ou Benjamin Vargas.53
Todos os pontos apresentados anteriormente têm um único objetivo:
proteger o PTB e, principalmente, Getúlio Vargas. Apesar dos subterfúgios para
mascarar tal fim, o Ultima Hora não se fez de desentendido e também defendeu o
presidente de maneira aberta, como veremos a seguir.
As vozes e Vargas
54
53 Idem.
Os aliados
O anúncio de João Goulart para o cargo de ministro do Trabalho
desencadeia a reação contra-varguista da UDN. Apesar de Carlos Lacerda e os
udenistas fazerem oposição ao governo desde o primeiro minuto após a eleição, 19
de junho de 1953 é uma data que explica em grande parte o desenrolar dos fatos
no ano seguinte.
Influenciados pelo macartismo nos Estados Unidos, em plena Guerra Fria,
os udenistas veem Jango como uma ameaça à Nação. O discurso do novo ministro
do Trabalho vai além do discurso de ajuda aos trabalhadores de Vargas. Jango
defende, por exemplo, o fortalecimento dos sindicatos — ideia que estremece os
setores reacionários da sociedade brasileira. No discurso de posse, Goulart
pronuncia, com todas as letras, que não tem “outros compromissos senão com o
povo, no mais amplo sentido da expressão, e especialmente com o proletariado,
em cujo meio” tem o orgulho de contar “com inúmeras amizades”54.
A maneira encontrada pelo jornal para amenizar o discurso radical é
apelar para o apoio popular. No primeiro parágrafo da notícia, o leitor é
preparado para o que está por vir:
A posse do ministro do Trabalho João Goulart constituiu um ato festivo
para os trabalhadores. Porque, muito antes das 17h, já estavam
superlotadas as salas do seu gabinete. Inúmeros operários, dirigentes
sindicais, representações oficiais, funcionários do Ministério do Trabalho,
jornalistas e amigos de Jango estavam ali presentes para cumprimentá-lo.
Quase não se podia andar no oitavo andar do Palácio do Trabalho. Em
Ultima Hora
55
54 Mobilização das massas através do sindicato. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19 de junho de 1953. p. 2
frente ao Ministério, trabalhadores faziam espoucar foguetes. Eram
marítimos, estivadores, operários das fábricas, metalúrgicos, portuários,
enfim, membros dos mais variados setores profissionais foram
homenagear o jovem líder petebista.55
Por sua vez, para defender Lutero Vargas, o Ultima Hora chama a atenção
pela notícia sobre a abdicação dos direitos especiais que o petebista teria como
deputado federal. Além disso, o fato de ser médico e ex-combatente de guerra
também soma à credibilidade de Lutero Vargas — levando em conta a sociedade
brasileira da década de 1950. Até mesmo a chamada de primeira página, “Lutero
Vargas renuncia às imunidades para que surja toda a verdade!”56 , mostra quais
são as supostas motivações do petebista, a solução do caso. Outras manchetes, na
mesma primeira página, evidenciam outros aspectos da decisão do deputado
federal:
Num gesto inédito na história de nosso Congresso, Lutero não quer ser
tratado pelas autoridades nem como deputado, nem como filho do
presidente da República. — “Estou disposto a ir até as últimas
consequências para que a Câmara atenda o meu apelo” — Durante dois
dias Lutero lutou com os seus companheiros de direção do PTB, que não
concordavam com a sua decisão — Getúlio aprovou comovido a atitude do
filho — Sereno e despreocupado, Lutero mostrou-se ansioso por enfrentar
seus detratores.57
As vozes e Vargas
56
55 Idem.
56 Lutero Vargas renuncia às imunidades para que surja toda a verdade!. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1954. p. 1
57 “Trama urdida pretende atingir a meu pai através do meu nome”. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1954. p. 1
A passagem acima deixa clara dois aspectos da sociedade e da política brasileira
da época: o favorecimento dos familiares, já que “nem como filho do presidente da
República” Lutero Vargas quer ser tratado — a frase pressupõe que o filho do
presidente deveria ter regalias —; e, através do apelo pai-e-filho, a importância da
honra masculina, uma vez que Getúlio Vargas ficou emocionado com o filho, não
com o deputado federal nem com o presidente do PTB no Distrito Federal.
Por fim, a defesa de Getúlio Vargas é posta como quase-óbvia pelo Ultima
Hora durante toda a crise. O presidente da República é apresentado como aquele
que tenta trazer justiça social ao Brasil. Uma notícia totalmente alheia à crise
política, sobre os funcionários públicos extranumerários, deixa clara a imagem
semi-messiânica que é atribuída a Vargas. O título dá a dimensão: “Vargas
beneficiou milhares de famílias, efetivando os extranumerários da União”. Para
endossar o que foi dito, o texto traz uma fonte oficial:
A propósito, ouvido pela ULTIMA HORA, o líder Lycio Hauer, presidente
da UNSP, e também candidato a deputado federal, assim se expressou:
— “Foi uma grande vitória da classe. O sancionamento do decreto
de efetivação dos extranumerários pelo presidente da República veio
beneficiar milhares de famílias brasileiras, aproximadamente umas cento
e trinta mil. (...)”58
O texto omite apenas um detalhe: Lycio Hauer, além de presidente da União
Nacional dos Servidores Públicos, concorria a uma vaga de deputado federal pelo
PTB — e acabaria eleito.
Ultima Hora
57
58 Vargas beneficiou milhares de famílias, efetivando os extranumerários da União. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1954. p. 2
Considerações finais
A propaganda política foi um importante instrumento durante o Estado
Novo. No governo de Vargas durante a década de 1950, Ultima Hora pode ser
visto como a maneira que o presidente encontrou para manter a prática de
propaganda política, mas de maneira não-institucional. Com o total apoio de
Wainer, Getúlio Vargas tinha a garantia de que, no mínimo, um jornal iria apoiá-
lo.
O alinhamento à ideologia petebista, entretanto, não tira os méritos
jornalísticos do diário de Samuel Wainer. Ao aproximar-se da zona norte carioca e
aumentar a cobertura esportiva, por exemplo, Ultima Hora se insere no contexto
da modernização da imprensa — ao contrário de O Globo, que não foi pioneiro
nessas mudanças.
A batalha que se travou na imprensa em agosto de 1954 só foi possível
porque os dois lados — duas ideologias, representando um choque entre as
classes dominantes — estavam representados. Ultima Hora representava, como
foi explicado, o projeto petebista de desenvolvimento para o Brasil; por outro lado,
diversos outros jornais, principalmente Tribuna da Imprensa e O Globo, queriam
ver implementado o projeto udenista, e se esforçavam para que, através deste
campo de batalha que se tornara a imprensa brasileira, convencessem o
eleitorado.
As vozes e Vargas
58
O Globo
Para analisarmos a posição de O Globo nos episódios ocorridos em agosto
de 1954, ao contrário do que acontece com Ultima Hora, não é imprescindível
uma retrospectiva histórica ampla do diário. O jornal petebista, apresentado no
capítulo anterior, é criado como um instrumento de dominação e criação da
hegemonia de Vargas; é criado como um Aparelho Ideológico de Estado, pura e
simplesmente. No caso de O Globo, não — o periódico de Roberto Marinho não foi
criado com o intuito claro de obedecer a uma demanda ideológica. Por esse
motivo, o panorama apresentado a seguir é propositadamente enxuto.
O Globo não foi o primeiro jornal fundado por Irineu Marinho. Em 1911, A
Noite chega às ruas cariocas. Apesar do relativo sucesso do diário, “em 1924,
aproveitando-se de que Marinho estava na Europa em tratamento de saúde, seu
sócio, Geraldo Rocha, passou-lhe a perna e tomou-lhe o jornal”59. No ano seguinte,
em 29 de julho, O Globo se torna realidade. Talvez tarde demais, uma vez que, 21
dias após o debute, Irineu Marinho é encontrado morto pelo seu filho Roberto,
após um enfarte.
Roberto Marinho, então com 21 anos de idade, sugere que Euricles de
Matos, secretário de redação de O Globo, assuma a direção do jornal. Segundo
Ribeiro, entretanto, a ideia de que o diário fosse assumido por Euricles de Matos
teria vindo de Francisca Marinho, viúva de Irineu, por considerar Roberto ainda
muito inexperiente60. Até então, Roberto Marinho só trabalhara como copidesque
do jornal. Matos é incumbido de ensinar a Marinho as artimanhas de comandar
uma redação. Alguns anos depois, em maio de 1931, com a morte de Euricles de
O Globo
61
59 CASTRO, R. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 115
60 RIBEIRO, A. Op. Cit. p. 90
Matos, Roberto Marinho se sentiria pronto a assumir, finalmente, o segundo
jornal fundado por seu pai.
O principal exemplo de que O Globo, ao contrário de Ultima Hora, obedece
mais a anseios mercadológicos que ideológicos, é a campanha pró-Aliança Liberal,
na década de 1930. Com Getúlio Vargas e João Pessoa como candidatos, em
oposição a Júlio Prestes, O Globo apóia Vargas. Roberto Marinho, na época,
chegou a participar do conselho do Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP)61 . Em 1954, com o ex-ditador novamente no poder, a posição do jornal seria
diametralmente oposta.
O ponto é que O Globo define sua postura editorial a depender dos grupos
hegemônicos e das disputas que acontecem pelo poder. Esse comportamento, se
comparado ao comportamento do jornal de Samuel Wainer, é totalmente distinto.
Ultima Hora é um jornal petebista, desde sua criação até sua extinção. O Globo
não apóia a UDN por possuir uma vinculação direta com a UDN, mas por
concordar parcial ou integralmente com a ideologia do partido.
Os textos que analisaremos de O Globo compreendem o mesmo espaço
temporal dos textos analisados de Ultima Hora. Assim como no capítulo anterior,
abriremos a exceção para os dias 18 e 19 de junho de 1953, durante a reforma
ministerial arquitetada por Getúlio Vargas, que julgamos ser relevante para o
objetivo da pesquisa. Além disso, a exemplo do texto assinado por Lutero Vargas
publicado em Ultima Hora na edição do dia 6 de agosto de 1954 — a data do
Atentado da rua Toneleros.
Na conjuntura de 1954, “era no espaço dos jornais que se dava a luta
política”. Mas, apesar disso, o principal adversário de Getúlio Vargas perante a
opinião pública, Carlos Lacerda, “deixou-se levar pelo talento retórico
As vozes e Vargas
62
61 RIBEIRO, A. Op. Cit. p. 90
extraordinário, especializando-se nas tiradas irônicas mas sem conteúdo, no jogo
de palavras e no sofisma, o que pode ter contribuído para a relativa
desimportância de suas ideias”. Por isso, conclui Bernardo Kucinski, “essa
dimensão da luta entre Lacerda e Wainer pode parecer inexplicável para o leitor
não familiarizado com a história da imprensa brasileira. Pode ficar a impressão
de que o jornal de Lacerda era importante, quando não era”62.
Levando em conta, portanto, que a Tribuna da Imprensa não tem fôlego
suficiente para travar uma campanha anti-Vargas sozinha — principalmente se
compararmos as tiragens daquele jornal às da Ultima Hora —, a ideologia
udenista conta, necessariamente, com o apoio de outros veículos da imprensa. No
Rio de Janeiro, O Globo cumpre o papel de propagar a voz de Carlos Lacerda,
dando maior visibilidade aos ataques contra o presidente da República na capital
federal.
O apoio do jornal de Roberto Marinho à UDN não é comparável ao apoio do
periódico de Samuel Wainer ao PTB. Em Ultima Hora, fala-se abertamente de
como o projeto do presidente da República é bom para o povo, para os
trabalhadores. Em O Globo, o projeto udenista aparece principalmente pela voz
de Carlos Lacerda, nem tanto através do próprio O Globo. Em síntese: o principal
apoio dado por O Globo para a campanha de Lacerda é aumentar o alcance da voz
do político udenista.
Durante a reforma ministerial de 1953, o estardalhaço em volta da
indicação de João Goulart, petebista de São Borja, como Vargas, não é mera
preocupação eleitoral. Em plena época do macartismo norte-americano, com a
consolidação da Guerra Fria, o avanço do comunismo na América Latina é uma
O Globo
63
62 KUCINSKI, B. A síndrome da antena parabólica. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998. p. 156-60
preocupação real. (Essa preocupação atingiria o auge na década de 1960, após a
Revolução Cubana.) Desse modo, um ministro que fala em “reivindicações do
operariado”63 faz arrepiar a espinha dos partidos conservadores.
Mesmo assim, em 19 de junho de 1953, a principal notícia de O Globo não é
a posse de João Goulart, e sim a posse de Oswaldo Aranha, novo ministro da
Fazenda. Disso, é possível depreender dois pontos importantes: o público leitor de
O Globo, comparado ao de Ultima Hora, é mais elitizado — porque questões como
entrada de capital estrangeiro e comércio exterior, tratados na reportagem, não
fazem parte do cotidiano dos trabalhadores —; e o projeto udenista de
industrialização do Brasil através da entrada de capital externo já era apoiado
pelo jornal no ano anterior à campanha de Lacerda.
A escolha do novo ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha — que combatera
Getúlio durante o Estado Novo —, é encarada como boa pela publicação, pesando
o apoio à oposição. O título do texto, uma frase atribuída a Aranha, é positivo:
“Servir ao Brasil sem dele me servir”. Além disso, em diversas passagens da
reportagem é possível ver temas relacionados ao projeto udenista e que,
aparentemente, terão apoio de Oswaldo Aranha. Abaixo dos sub-título “Situação
de devedor” e “Capitais estrangeiros”, vem o seguinte trecho:
O sr. Oswaldo Aranha comentou com os presentes, na biblioteca, a atual
situação do Brasil, que é de devedor para quem, consequentemente, tudo
corre difícil. Temos de vender por menos e comprar por mais, e muitas
vezes sujeitar-nos a nada receber. (…) Manifestou-se o sr. Oswaldo
Aranha, no decorrer da conversa, sobre o problema dos capitais
estrangeiros. É favorável à aplicação desses capitais.64
As vozes e Vargas
64
63 Mobilização das massas através do sindicato. ULTIMA HORA. Rio de Janeiro, 19 de junho de 1953. p. 2
64 “Servir ao Brasil sem dele me servir”. O GLOBO. Rio de Janeiro, 18 de junho de 1953. p. 6
Podemos perceber que, apesar de ser favorável à escolha de Aranha para a pasta
da Fazenda, o jornal acredita que mudanças devem ser feitas na política
econômica adotada por Vargas. Porque, como “tudo corre difícil”, os capitais
estrangeiros — que são pouco utilizados, em detrimento do capital nacional —
são um “problema”.
É preciso também observar que, enquanto um ex-opositor de Vargas leva
grande destaque, a mudança ministerial mais importante, dada a conjuntura — a
de Jango —, aparece apenas no 13º sub-título do texto, o penúltimo. E, mesmo
assim, o último sub-título volta a tratar da posse de Oswaldo Aranha.
O Globo
65
Toneleros
Como não poderia deixar de ser, após o ataque a Carlos Lacerda e ao major
Rubens Vaz, O Globo se posiciona a favor das vítimas — porém toma certa
distância, e não ataca Lutero e Getúlio Vargas logo nas primeiras edições. Em 5
de agosto, dia do atentado, a capa do jornal traz uma frase atribuída ao
brigadeiro Eduardo Gomes. “Para honra da nação brasileira, confio que esse
crime não ficará impune”65. O principal ponto a observarmos é que, mesmo sem
nenhuma ligação direta com o atentado, o udenista Eduardo Gomes, que
concorrera com Getúlio Vargas à presidência, dá sua opinião sobre o fato. A
ausência de fontes ligadas ao presidente Vargas também é indicativa de que O
Globo está alinhado à oposição.
Ao descrever o atentado em si, a reportagem do jornal também é parcial.
Apesar de Carlos Lacerda ser, indiscutivelmente, a fonte mais importante neste
caso, o espaço dedicado ao relato do “combativo jornalista” é desmedido. A seguir,
transcrevo a íntegra do Atentado da rua Toneleros de acordo com Carlos
Lacerda, versão que foi adotada por O Globo como verdadeira, ao dedicar tanto
espaço ao udenista:
Assim palestrando, chegamos à porta de minha casa. Notei, então, sem
maiores preocupações, que próximo à esquina da rua Hilário Gouvêa,
quase em frente ao edifício onde resido, um homem pardo, magro, estava
parado na calçada. Quase em frente ao edifício, do outro lado da rua,
outro homem, este pardo e gordo, mantinha-se na mesma atitude.
Observando que havia esquecido as chaves do edifício no bolso de outra
As vozes e Vargas
66
65 “Para honra da nação brasileira, confio que esse crime não ficará impune” — declara Eduardo Gomes a O Globo. O GLOBO. Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1954. p. 1
roupa, pedi a meu filho que solicitasse ao garagista que abrisse a porta
para nós. Sergio saiu, entrou pela porta de serviço e eu permaneci
conversando com o major Rubens até que ele voltou para comunicar que o
garagista iria abrir a porta. Despedi-me do major, à porta do seu
automóvel e voltei-me na direção da entrada. Vi então o homem pardo e
gordo caminhar para mim, abrir o paletó. Tive a impressão exata de que
ia sacar uma arma, o que ele de fato fez, começando a atirar.
Agarrando meu filho, saquei por minha vez de meu revólver e
atirei enquanto procurava abrigar Sergio, correndo em direção à garagem.
Ali chegando, disse-lhe que corresse para cima e dispunha-me a voltar
quando meu filho abraçou-se comigo, procurando impedir-me de enfrentar
os assassinos. Levei-o para a escada e corri novamente para fora, a tempo
de ver o homem pardo e gordo fugir em direção à rua Paula Freitas. Atirei
contra ele e ele atirou contra mim outra vez. Descarreguei todas as balas
de minha arma. Meu filho voltou à rua. Percebi que, a despeito da fuga
do criminoso que eu enfrentara, alguém continuava atirando. Voltei à
garagem com Sergio. Subi pedindo-lhe que fosse avisar amigos e vizinhos
e mais uma vez descia à rua, já pelo elevador social.66
Afora a descrição dos atiradores ter elementos que, nos dias atuais, depõem
contra o politicamente correto, o relato de Lacerda leva a crer que ele foi, de fato,
“combativo”. E, nos momentos em que esteve ausente do tiroteio, o jornalista tem
uma justificativa: a segurança de seu filho Sergio, de 15 anos de idade. Para o
leitor de O Globo, não é difícil depreender, deste texto, que a vítima central do
atentado é o udenista — e que, provavelmente, esse atentado tem motivação
política, dada a conjuntura que se construía e se consolidou exatamente a partir
desse fato.
A única vítima fatal do tiroteio, o major Ruben Vaz, da Aeronáutica, é
tratado como verdadeiro herói de guerra pela cobertura do diário. O discurso
O Globo
67
66 O atentado contra Carlos Lacerda. O GLOBO. Rio de Janeiro, 5 de agosto de 1954. p. 1
beira o sentimental, ao ser relatado que “às 3h30, chegava ao Hospital Miguel
Couto a senhora Rubens Vaz, amparada por duas amigas. Ignorava que o marido
houvesse morrido. Vinha do Hospital Central da Aeronáutica, onde um dos
quatro filhinhos do casal se submetera a uma intervenção cirúrgica”. Como não
poderia deixar de ser, a senhora Rubens Vaz entra em desespero ao saber da
notícia: “Debulhada em lágrimas, exclamava: — Meu marido! Por Deus, quero ver
meu marido!Mostrem-me meu marido!”67.
O Globo não fica apenas no plano emocional, e vai para o político. A
repercussão da morte de Vaz dentre os militares é mostrada e, mais uma vez, um
udenista aparece como fonte central, desta vez é o brigadeiro Eduardo Gomes.
Como desdobramento da repercussão negativa na Aeronáutica, de acordo com o
jornal, a instituição faz um “apelo à população para que compareça em massa aos
funerais, como uma demonstração coletiva de repúdio ao atentado”68. Ou o major
Vaz teve mais de um funeral, ou O Globo aumentou a contagem de corpos
propositadamente.
Duas passagens do texto principal ainda fazem referência à UDN. Uma é a
carta assinada por Maurício Joppert da Silva, presidente do diretório carioca do
partido, em que ele garante que “só os criminosos pilhados em flagrante delito
comum seriam capazes do cerco que fizeram à casa de Carlos Lacerda”69. A
referência a um “delito comum” é uma forma de atacar o PTB e, principalmente,
Getúlio Vargas, uma vez que pressupõe-se, com a frase, que o atentado foi um
episódio da guerra política. Em outra passagem, o texto traz o sub-título “A UDN
reúne-se para exigir punição”, em que há o prenúncio do Inquérito Policial-
As vozes e Vargas
68
67 Idem. p. 6
68 Idem.
69 Idem.
Militar que se seguiria, ou seja, à “República do Galeão”: o partido quer que o
crime seja solucionado “com um inquérito fora da influência e alçada policial,
confiado inteiramente à Justiça”70.
A parte do texto que coroa as relações entre a UDN e O Globo, entretanto,
ainda está por vir. Talvez em um exercício de parapsicologia, o major Rubens Vaz
teria previsto que o atentado contra Carlos Lacerda se desenhava. É o que diz o
sub-título “Há um mês atrás o próprio major Rubens Vaz denunciara o 'complot'
contra a vida de Lacerda”. Confira abaixo:
Por uma impressionante coincidência, foi precisamente o major Rubens
Vaz quem, há cerca de um mês, procurou o vereador Mario Martins para
cientificá-lo de que havia recebido uma denúncia de pessoa idônea,
altamente colocada, de que se tramava um “complot” contra Lacerda.
Imediatamente, o vereador carioca procurou o presidente da ABI, Sr.
Herbert Moses, que, por sua vez, se comunicou com o ministro da Justiça,
Sr. Tancredo Neves, reclamando garantias de vida para o diretor da
“Tribuna da Imprensa”.
O próprio Sr. Moses também procurou logo Carlos Lacerda,
advertindo-o de que deveria tomar precauções. Este, porém, respondeu-lhe:
— Moses, eu também já soube. Mas, que fazer? Agora mesmo vou
para Bangu falar num comício. Os assassinos poderão aproveitar a
oportunidade.
O major Vaz, ao procurar o vereador Mario Martins, estava
acompanhado de vários oficiais da Aeronáutica.71
O que em nenhum momento é posto — talvez fosse pressuposto — é que Herbert
Moses, além de ser o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI),
O Globo
69
70 Idem.
71 Idem.
acumulava o cargo de diretor-vice-presidente de O Globo. O texto também tem
outras funções, como reiterar a bravura de Carlos Lacerda, que foi a um comício
mesmo sabendo que “os assassinos poderão aproveitar a oportunidade”. Para
sustentar toda a trama, o falecido Vaz teria sido informado por “pessoa idônea,
altamente colocada” e estava acompanhado de “vários oficiais da Aeronáutica”,
quando procurou o vereador Mario Martins, eleito pela, adivinhe, UDN.
As vozes e Vargas
70
Os militares
Após a morte do major Vaz, era de se esperar que os militares, em especial
a cúpula da Aeronáutica, já não muito simpáticos ao governo de Vargas,
decaíssem ainda mais à oposição. Logo após o atentado, no dia 9 de agosto, as
movimentações começaram a se desenhar nas páginas de O Globo. Na capa
daquela edição, estão “reunidos os brigadeiros”, que “procuram examinar a
situação do País”. Como não poderia deixar de ser, “presente o sr. Eduardo
Gomes”72. Em nenhum momento o texto faz referência ao conteúdo da conversa
que os 17 oficiais da Aeronáutica tiveram em “reunião secreta” no salão nobre do
Ministério da Aeronáutica. De acordo com a reportagem, todos os presentes se
recusaram a comentar o assunto em pauta — como se não fosse de conhecimento
público.
Na mesma edição, em uma página interna, “o general Juarez Távora
explica a reunião em sua residência”73. Segundo o udenista, o encontro entre ele,
o brigadeiro Eduardo Gomes e o general Canrobert Pereira da Costa foi “apenas
para tratar das homenagens fúnebres” ao major Vaz. “A política não ocupou
nenhum capítulo de nossa conversa”, garantiu Távora. Além de fazer parte do
quadro da UDN, Juarez Távora também era comandante da Escola Superior de
Guerra (ESG), que tinha grande influência entre os militares.
Para completar as Forças Armadas, só falta a Marinha. É do que um dos
sub-títulos do texto sobre Juarez Távora dá conta. O Globo se apressa em
O Globo
71
72 Reunidos os brigadeiros. O GLOBO. Rio de Janeiro, 9 de agosto de 1954. p. 1
73 O general Juarez Távora explica a reunião em sua residência. O GLOBO. Rio de Janeiro, 9 de agosto de 1954. p. 6
desmentir que a Marinha esteja de prontidão, “aguardando os acontecimentos
paralelos ao inquérito que ocorre na Polícia Civil sobre o assassinato do major
Rubens Vaz”. De acordo com o ministro da Marinha, Renato Guillobel, a
participação de oficiais da Marinha no Clube da Aeronáutica “trata-se de uma
solidariedade que é prestada, em caráter individual, por oficiais da Marinha aos
da Aeronáutica. Não é um ato oficial. É, apenas, um ato pessoal, individual, aliás
muito compreensível”.
Dali a quatro dias, em 13 de agosto, uma nota publicada no jornal vinha
assinada por “oficiais da Aeronáutica”. Talvez a investida mais incisiva até então
contra o inquérito que investigava o Atentado da rua Toneleros. “Há oito dias foi
covardemente assassinado o major Rubens Florentino Vaz. Eliminado por
facínoras, não lhe foi dada a mínima chance de defesa. Morreu inocente.
Exigimos justiça”, diz a nota.
As vozes e Vargas
72
A guarda presidencial
Com o avanço das investigações, o envolvimento de Climério de Oliveira e,
mais tarde, do “tenente” Gregório Fortunato no atentado contra Carlos Lacerda
fica cada vez mais evidente. Essa ligação com o governo só aumenta a virulência
dos ataques contra o PTB e Vargas. Em 11 de agosto, após a extinção da guarda
presidencial, O Globo noticia o fato com desvelada ironia, levando em conta que
Gregório, o “Anjo Negro”, não deixaria o Catete. Segundo a nota, “o 'tenente'
Gregório Fortunato, sabe-se agora, continuará no Catete, como servidor do
palácio. Exerce ele as funções de camareiro do Chefe do governo”74.
O mais grave ataque de O Globo contra o governo aparece no dia seguinte,
12 de agosto. Grave não apenas pelo teor do texto, mas também porque o ataque
mistura opinião e jornalismo — uma mistura comum na época, mas que contrasta
com os preceitos que estavam sendo implantados por outros jornais brasileiros,
como o Diário Carioca e o Correio da Manhã. Ao lado de um editorial de primeira
página — conteúdo opinativo —, uma foto, legendada, de um carro da campanha
de Lutero Vargas — conteúdo jornalístico. “O povo ataca, furiosamente, o carro
em que se fazia a propaganda da candidatura do sr. Lutero Vargas”75, é o que diz
a legenda da foto, mais explicativa impossível. É relevante destacar, também, o
uso do termo “povo”, que faz parte principalmente do léxico petebista. O que O
Globo faz é uma apropriação de uma imagem tipicamente usada por Vargas para
atacá-lo.
O Globo
73
74 Ficará no Catete o “tenente Gregório”. O GLOBO. Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1954. p. 6
75 O feixe das varas e a união das classes armadas. O GLOBO. Rio de Janeiro, 12 de agosto de 1954. p. 1
O editorial possui intertextualidade com o texto do dia 5 de agosto,
referente ao Atentado da rua Toneleros. Uma semana após o ataque a Lacerda e
a morte de Vaz, O Globo reitera que havia um complô para assassinar o
parlamentar, dessa vez de maneira “oficial”, por meio de um editorial:
Já não há mais dúvidas sobre a existência de uma “societas sceleris”76,
que longamente premeditou a eliminação de Carlos Lacerda e a proteção
posterior dos responsáveis pelo crime.77
Como se não fosse o bastante, a continuação do texto vai direto ao ponto: não
importa se Lutero e Getúlio Vargas foram ou não mandantes do crime, o governo
deve ser responsabilizado pelos atos da guarda presidencial:
Não é, porém, necessário atribuir ao sr. Getúlio Vargas nem mesmo a seu
filho Lutero Vargas a ordem de fuzilar traiçoeiramente o jornalista da
oposição, para que se configure, em plena luz, a responsabilidade do
Governo na obra dos assassinos do major Rubens Vaz, quanto mais não
seja pela manutenção de sicários arregimentados numa guarda
presidencial.
O texto pretende, ainda, construir uma imagem popular do brigadeiro
Eduardo Gomes. Logo nas primeiras palavras, o editorial deixa claro que o
Atentado da rua Toneleros atinge não apenas as classes dominantes do País.
Apesar disso, “a nação está longe de convalescer do choque emocional que a
tragédia da rua Toneleros provocou em todas as classes sociais”. A convocação
As vozes e Vargas
74
76 Termo em latim comumente usado para designar uma associação criminosa.
77 O feixe das varas e a união das classes armadas. O GLOBO. Rio de Janeiro, 12 de agosto de 1954. p. 1
final para o apoio a Eduardo Gomes — e, consequentemente, à UDN — possui até
uma referência histórica, o levante tenentista de Copacabana, em 1922.
A figura do brigadeiro Eduardo Gomes mais uma vez se afirmou na
confiança popular, pela sua nobreza, energia e espírito cívico. Os anos não
arrefeceram, no herói de Copacabana, a chama que lançou na praia,
quase inermes, os jovens tenentes de 1922.78
O Globo
75
78 Idem.
Considerações finais
A Tribuna da Imprensa, dirigida por Carlos Lacerda, não teria fôlego
suficiente para atacar e manter em voga um ataque a Getúlio Vargas por tanto
tempo. Nesse aspecto, O Globo desempenha papel imprescindível para o aumento
e relativo sucesso dos ataques udenistas — principalmente após o Atentado da
rua Toneleros. O jornal de Roberto Marinho é a principal voz da oposição. E a
oposição fala, principalmente, pelo discurso de Carlos Lacerda.
A ideologia pró-capital estrangeiro da UDN é condizente com a posição das
Organizações Globo que, anos depois, em 1962, assinariam um contrato com a
empresa norte-americana Time-Life. Desse modo, de fato, O Globo apóia um
projeto de governo alheio a o que estava sendo implantado por Vargas no início da
década de 1950. As falas do ministro do Trabalho João Goulart, expostas
principalmente no capítulo anterior, são flagrantes de que os projetos udenista e
petebista são antagônicos.
Por outro lado, não se pode dizer que Vargas fazia parte das classes
trabalhadoras, muito pelo contrário. A disputa entre PTB e UDN representa
divergências entre as classes dominantes. Nos anos seguintes à queda de Vargas,
a economia brasileira seguiu, mais e mais, projetos semelhantes ao udenista. Já
durante a presidência de Juscelino Kubitscheck, apesar do nacionalismo, o
capital estrangeiro participou de maneira relevante. A total implantação de um
projeto com o udenista só aconteceria em 1964, com o Golpe Militar.
Tendo as proposições acima em mente, não é de se admirar que O Globo,
atuando como um Aparelho Ideológico de Estado, aumentou progressivamente
sua influência dentre os jornais brasileiros nos anos seguintes.
As vozes e Vargas
76
Considerações finais
O embate que aconteceu durante a década de 1950 entre os diversos
jornais do Rio de Janeiro, principalmente no contexto de 1954, foi saudável do
ponto de vista jornalístico. Levando em conta a história da imprensa brasileira
como um todo, a morte de Getúlio Vargas foi o momento em que os diários
tomaram partido de uma causa — seja ela a udenista ou a petebista — de
maneira mais ferrenha. Esse movimento foi crucial para a construção de um
espaço público de debates.
O Globo, de acordo com a definição do Anuário Brasileiro de Imprensa de
1955, citado por Ribeiro, era “um jornal combativo, opinando com veemência
sobre política nacional, com posição clara e definida, ainda que apartidária”79.
Talvez no calor do momento, não tenha ficado claro para os editores do anuário
que a posição do jornal não era apartidária. A defesa do ponto de vista da UDN,
nesse caso, parece velada por causa das técnicas jornalísticas introduzidas na
época. Portanto, O Globo estava longe de ser um jornal apartidário, porém
parecia ser um, por causa da maneira com que defendia o partido oposicionista.
Por outro lado, o Ultima Hora “não tardou em disputar com O Globo —
vespertino de maior circulação — o primeiro lugar em tiragem da capital da
República”80. Está aí outro viés para explicar o porquê de o jornal da família
Marinho apoiar os oposicionistas. Com o diário de Samuel Wainer sendo,
notadamente, pró-Vargas — e o principal concorrente de O Globo no mercado
jornalístico dos leitores —, é de se esperar que Roberto Marinho e companhia se
posicionem de maneira oposta no jogo político.
Se a disputa política foi salutar para a imprensa brasileira, por ter agitado
o mercado jornalístico e promovido o enraizamento das mudanças introduzidas
Considerações finais
79
79 RIBEIRO, A. Op. Cit. p. 92
80 Idem. p. 127
por Diário Carioca na década anterior, o campo político em si, por outro lado,
acabou prejudicado por essa disputa. A busca de Carlos Lacerda em eleger o
Brigadeiro Eduardo Gomes — e a própria postura de Eduardo Gomes, conivente
— fez com que se discutisse menos as ideias e as ideologias e mais os aspectos
pessoais. Nesse ponto, Vargas saiu prejudicado, uma vez que estava na posição
quase indefensável de ex-ditador.
Talvez prevendo que não teria um governo fácil, Getúlio Vargas promoveu a
criação do Ultima Hora por Samuel Wainer. Foi uma jogada política semelhante
às que fizera durante o Estado Novo — o Ultima Hora, assim, pode ser encarado
como ator da propaganda política pró-Vargas. Porém, apesar de o povo ter “posto o
retrato do velho outra vez” na parede, a base de apoio político de Vargas não era
tão sólida quanto antes, principalmente por causa dos militares, que estavam
divididos.
Frustrada com duas derrotas consecutivas para PSD e PTB,
respectivamente, a UDN viu nos militares grandes aliados para desestabilizar o
governo. E assim, quem sabe, obter a hegemonia política. A rachadura que os
ministros militares — principalmente o da Aeronáutica — representavam,
principalmente após a morte do major Rubens Vaz, é crucial para entendermos
como foi possível a instituição da “República do Galeão”, um Estado paralelo.
A “República do Galeão” é o melhor exemplo de como os jornais O Globo e
Tribuna da Imprensa serviram de Aparelhos Ideológicos de Estado, mesmo sem a
UDN ser, de fato, um Estado institucionalizado. O Brasil e, principalmente, o Rio
de Janeiro ficaram em uma situação curiosa: dois Estados, utilizando Aparelhos
Ideológicos de Estado diferentes. O PTB e Vargas ficaram com Ultima Hora. A
UDN, por outro lado, fez uso eficiente de O Globo, dos Diários Associados, além, é
claro, da Tribuna da Imprensa.
As vozes e Vargas
80
Mesmo com o apoio de boa parte dos industriais brasileiros81, Vargas se viu
acuado com as investidas udenistas. Por fim, o poder dos AIE utilizados pela
oposião se mostrou muito forte, e Vargas optou por uma saída política da crise —
um tiro no coração. Está aí o ato que, talvez, tenha atrasado os planos político-
econômicos da oposição para o País.
Apesar de uma maior abertura econômica durante o governo de Juscelino
Kubitschek, os planos da UDN de entrada do capital estrangeiro não foram
concretizados. Após a saída de JK, novamente a UDN não conseguiu pôr em
prática seus planos, mesmo integrando a situação, no governo Jânio Quadros. A
concretização desses planos só aconteceria em 1º de abril de 1964, com o golpe
militar. E, apesar de fazer parte da base de apoio dos militares, Carlos Lacerda e
a UDN não conseguiram chegar ao poder, como almejavam, e se viram em uma
cilada política.
O ano de 1954, em suma, foi crucial para o que aconteceria tanto no campo
jornalístico quanto no campo político do Brasil nas décadas seguintes. Os diários
brasileiros se modernizaram — e a crise política serviu como incentivo —, e a
construção de um espaço público de debates aconteceu. Na política, a disputa por
hegemonia fez com que os planos udenistas fossem adiados, apesar do poder que
ganharam, e deu sobrevida aos presidentes seguintes, previnidos de um latente
golpe militar.
Considerações finais
81
81 DORETTO, M. Kasinsky — um gênio movido a paixão, a história do fundador da Cofap. São Paulo: Geração Editorial, 2006. p. 288
Anexos
Todas os fac-símiles de O Globo pertencem ao acervo da Biblioteca Nacional
Todas os fac-símiles de Ultima Hora pertencem ao acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo
Bibliografia
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