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-- - - AssocIação para o Desenvolvlmernto da Imprensa Alternativa - ADIA í1 Ano 1 - Edição N° 1 Abril 2005 - R$ 15,00 Classes

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AssocIação para o Desenvolvlmernto da Imprensa Alternativa - ADIA í1

Ano 1 - Edição N° 1 Abril 2005 - R$ 15,00

Classes

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",",.PORTAL POPULAR.ORG.BR Política Debate Movimento Mundo Economia Meio Ambiente Amazônia Opinão Quem Somos

Em novembro de 1996, um grupo de militantes criou a ADIA como opção política, objetivando contribuir para a divulgação de idéias, no âmbito da diversidade de pensamentos da Esquerda Brasileira, e que possam servir não só para reforçar as lutas do Movimento Popular contra o neolibera­lismo, como também estimular e enriquecer o debate sobre o Socialismo no país e no mundo.

A ADIA, estatutariamente é uma Associação Sem Fins Lucrativos (não so­mos uma ONGl, cuja potencialidade é a militância no setor informativo. Neste sentido, começamos em 1996 publicando mensalmente o JORNAL NAÇÃO BRASIL, cujo nome era, ao mesmo tempo, herança e uma homena­gem ao combativo semanário Nação Brasil que havia deixado de existir em 1995 por motivos, sobretudos, financeiros. Em maio de 1998, transformamos o jornal em REVISTA NAÇÃO BRASIL e em junho de 1999, publicamos CONJUNTURA INTERNACIONAL, nosso primeiro suplemento trimestral de política internacional.

Em maio de 2000 publicamos a edição especial "BRASIL: Os Outros 500", e em setembro foi a vez do "Dossiê Meio Ambiente". Estas edições foram am­pliadas, em dezembro de 2002, com a versão em CD-Rom.

Em Fevereiro de 2001 lançamos este Portal Popular que pretende continuar sendo uma janela crítica e de análise da política nacional e internacional atualizada semanalmente e uma biblioteca com mais de 3.000 matérias. Agora o Portal já tem a edição ON Line de Revista Nação Brasil, Conjuntura Internacional e Critica Social.

Finalmente em Abril de 2003 publicamos o trimestral CRíTICA SOCIAL - uma revista com 120 páginas - pretendendo dedicar esta publicação ao debate teórico e a análise política da esquerda. CRíTICA SOCIAL é um banco de ensaio para quem estuda e quer trabalhar as ferramentas do socialismo no contexto brasileiro e latino-americano. Sem censura, sem centralização, apenas uma pauta e muitos colaboradores ligados ao Movimento Popular.

Esta é a ADIA, este é o www.portal popular

Atualizado em 06/03/04 Ed ição: 122

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ASSINATURAS

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REVISTA História & Luta de Classes N° 1 - Abril - 2005

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Sumario

4 - Apresentação

Marcelo Badaró Mattos

7 - Os trabalhadores e o golpe de 1964 um balanço da historiog rafia

Nildo Viana

19 - Acumulação Capita lista e Go lpe de 1964

Felipe Abranches Oemier

29 - A "Lega lidade" do Golpe: o controle dos trabalhadores como condição para o respeito às leis

Carla Luciana Si lva

43 - Imprensa e ditadura militar

Gilberto Calil

55 - Os integralistas e o golpe de 1964

Má rio Maestri

75 - O Escrav ismo Co lon ial: A revolução Copern icana de Jacob Gorender

Roberto Ramirez

101 - Os m ovimentos piqueteiros e o "Argentinazo"

Francisco Domínguez

11 1 - Blair, Bush y la guerra de Irak

RESENHAS

123 - Os quilombos na dinâmica social do Brasil (Adelmir Fiabani)

131 - A historiografia envergonhada (Mário Maestri e Mário Aug usto Jakobskind )

Organizadores ge ra is desse númcl"o: Mário Mal:S lri c Marcelo Badaró

Conselho Editoria l Provisório: Florcncc C:lrbon i, C:lr1a S il va, Gilberto Calil , Marcelo Badaró, M~írio Maestri , Théo L. Piiiciro

CUlIscllw d e M cm hrus F und:uJOI"cS

AdalhcrlO P;lr:ulhos (U FU) : Adclmi r Fi;lbnni (RS): Adriana F;u.: ina (UFF): A lvcllir de Almeida (FAC c l DEAU. RS);

Antonio de P:lclu<I nosi (U N IOEST E) : BC;llri z Loncr (UFPcl) ; Carla Lucianil Silva (UNIOEST E): Carlos Antônio G()J\allligo (Unipar): C buuir;! C lrdoso (UFI~GS) ; Ed ílsolJ

José Gradolli (UrU); Enriquc Serra Padr6s (UFRGS); Eu rel ino Cl lel lll) (UEr S- BA); Euzébio A ssurnpç;io (Facul ­dade de Osório) : Felipe Demicr: r emando Zelllor(RS); Flon':l1I.:e Car!lon i (U PF): Frilllcisco Dominguez (Midd lcscx Uni vcrsit y); Gilherto Cal i l (UN IOEST E): Isahel Grill i (URI); J:li l1le Cioro (U PF): Jorge Magasich (Bélgica): Jorge Nt'l voa (UFUA): K;l t i .. P:lranhos (UFU): Lu] ,. Carlos Amaro (RS): Luiz S;ív io de A lrneida (UFAL); Marcelo Bad:mí (U FF): rvl:trcclo Dorneli ... Cl rv ,tllwl (Unioeste); Maria Aparecida Ch;l ves Riheiro Pap:di (Uni vilp); Maria do C:lrmo I3razil (UFM S - DOlH"ados); M :tria José Acedo

Oel'Ol lllo (Un lvap): M ;írio M :lestri (UPF): Nildo Viall;t

(UEG); Noeli Woloszyn (Uni vcrsi(l<ldc do COJl tcstildll): Olg:írio Vogt (Uni se) ; Pau lo A . Z artli (Uniju í): Pedro Paulo Funa!'i ( Unic ilmp); Phi lomena Gcbr:Hl ( USS) ; I~obcrto

I~adllnz (Unisc- UCS) ; Rodolfo Borqucz Bustos (M éx ico) ; Romu,ddo Portela de Oliveira (USP): Soleni rressato (BA); Tlwís Janaillil WC/1t:zcnovicz (URJ ); Théu L . Pi iici ro (UFr); Valéria Zellclli de Almeida (Uni v;lp): Vi rgínia Fontes (UFF).

Distrihuição : his loriaclutadccJasse @uol.co ll1 .br ADIA, Pça Pio X, n"7 - 9" andr ·Sala Projctoad ia­CEP20040-020- Rio de Janeiro - TcleFax - (02 1) 2263-0 I X7 port;[ [email protected]

Pmjcru Gr:í ll cu, Oiagnllll:.l\·i"i u c III1IU'cssãll: A ssociação para o Desenvolvime nto d:1 Imprensa Alt e rnativa - ADIA

ror:lI11 iln pressos 1.000 exemplares 110 dia OX/04/2005

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4======================================== REVISTA História & Luta de Classes. N° 1

Apresentação

Em tempos de domínio social da barbárie neoliberal e de hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, com destaque para a área da História e das Ciências

Sociais, a REVISTA História & Luta de Classes procura servir como ferramenta de intervenção daqueles historiadores e produtores de conhecimento que se recusam a aderir e se opõem a essa dominação.

As diferentes manifestações dos conflitos sociais ao longo do tempo; a história social do mundo do trabalho; as propostas e processos revolucionários; os temas políticos e as contradições econômico-sociais atuais e passadas; a cul­tura vista por uma perspectiva materialista são alguns dos temas e áreas de estudo que serão abordados nos artigos publicados por REVISTA História & Luta de Classes.

Diante do atual predomínio das anódinas e pacificadoras histórias narrativas desprovidas, ao menos em forma explíci­ta, de referenciais conceituais, REVISTA História & Luta de Classes pretende também servir de canal para reflexão teóri­ca , particularmente para aquela orientada pelos ventos cons­tantemente renovados do marxismo. Nesse sentido, um dos seus objetivos será a retomada do debate sobre os sistemas, formas e modos de produção conhecidos através da história, tema semi-abandonado após a vitória da contra-revolução neoliberal de fim dos anos 1980, que proclamou prepotente o "fim da história" e o domínio atemporal do modo de produ­ção capitalista.

Nosso público alvo privilegiado é o dos estudantes e dos professores de História, bombardeados constantemente, em suas salas de aula, nas bibliografias de cursos, nos manuais, revistas e textos historiográficos pelos arautos de uma Histó­ria reduzida à narrativa do pitoresco e em geral reprodutora de uma história oficial, em que pitadas de culturalismo, de subjetivismo e episódios picantes formam uma receita valori­zada no mercado cultural, mas descartável pelos critérios acadêmicos científicos rigorosos e pela irrelevância social de suas propostas .

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================================================== 5 REVISTA História & Luta de Classes - N° 1

Inte ressa-nos, igualmente, ating ir outros universitários, não apenas dos d iversos ramos das Ciências Sociais, que cono sco compartilhem essa perspectiva crít ica . Pretende­mos, também, que a REVISTA His tória & Luta de C/asses sirva de instrum ento para os militantes engajados em movimentos e organi za ções comprometidas com a confrontação co m o mundo do capita l.

A REVISTA His tória & Luta de C/asses possuirá editor i­ais, dossiês, artigos de temas livres, resenha s, transcrição de docum entos , entrevistas e notíc ias. Como em qualquer outro periód ico c ientífico, haverá procedimentos de aná lise dos artigos por parece ristas e de adequação às normas editoriais da revista. Po rém, trata ndo-se de periód ico com comprom is­so s po líticos e sociais explíc itos, os artigos devem adequar­se à p ropos ta político -editoria l sintetizada nessa ap resenta­çã o .

Ini c i al m e nte , REVISTA História & Luta de C/asses organi­zou -se em to rn o de um pequeno núcleo de historiadores e c ient istas socia is que assumiram, tran sitor iamente, as fun­ções de ed itores . A partir desse núcleo organizou-se grupo de m embros fundadores sobre o qual repousa grande parte da responsa bilidade dessa iniciativa, através da proposta de artigos, da formu lação de parec eres, da divulg ação e ve nda da revista, da gestão de seus rumos e organização.

Esse p rim e iro número é dedicado, em forma dominante, ao debate do Go lpe de Estado de 1964, devido à ce leb ração, em 2004, d os quarenta anos daquele aco ntec imento.

Conselho Editorial Provisório

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História&. LnllLdc _CljlSS\'Ji

A proposta deste artigo é, primordialmente, acompanhar

a trajetória do debate sobre o golpe, comentando algu­

mas das principais formulações sobre aquele processo

produzidas ao longo dos últimos quarenta anos.(1)

O caminho escolhido para isso não foi o de uma análise

exaustiva de tudo o que foi publicado, mas concentrou-se

a atenção nas discussões sobre o papel da classe traba­

lhadora e suas organizações no período anterior à implan­

tação da ditadura, uma chave de entendimento valorizada

por diversos ângulos entre os que estudaram o período.

Os trabalhadores e o golpe de 1964:

um balanço da historiografia Marcelo 8adaró Mattos

Marcelo Baúaró Mattos é prores~or de História

do Brasil da Universidade Federal Fluminense.

instituiç:ío pela qual se doutorou.

omeço por situar-me em relação ao tema. O golpe milití1r sur­giu como um problemí1 em meu trabalho de pesquisa, quzmdo da elí1borí1ção de uma tese sobre o sindica­smo cariocano no período 1955-1988(2). Procurei en­

tender o novo sindicalismo, fenômeno surgido a partir de 1978, mas para isso julguei necessá­rio investigar as representações que ele fí1zia do período anterior a 1964, em confronto com uma análise mJis precisJ daquela fase, o que levou a um recuo do recorte cronológico dil investigJ­

pilra melhor compreensão do pré-1964. Depmei-me com uma profunda desilusão

em relação ilO papel dil classe trabalhadora no momento do golpe, por parte de muitos líderes sindicais e políticos que atuavilm na época, milS

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8· Os IraIJ all,QtlQrei' c o golpe de /964: um halal/ ço da hütoriografia

também de autores que escreveram nos primei­ros anos da ditadura e procuravam explicar por­que o projeto das o rgani zações vi nculadas à classe hav ia sido derrotado pela implantação do regime milita r.

Tais autores acabaram por construir uma análise da classe operária brasileira no nega ti­vo, caracterizada pelo que ela não era: não era consciente, nem autônoma, nem mobili zada e

organizada, etc. Por issó, para eles, apesar de muita expectativa em torno do Comando Geral dos TrabaU1adores (CGT), do poder s indical, da capacidade de res istência da classe trabalhado­ra, o golpe fora dado com muita facil idade.

Locali zemos en tão melhor a lite ratu ra espe­cia li zada sobre o assunto, produzida du rante a ditadura, começando por situar a própria dis­cussão sobre o gol pe militar.

As análises sobre o golpe nos primeiros anos da ditadura

A té a década de 1970, as interpretações aca­dêmicas mais comuns sobre o golpe gira­

vam em torno de do is pontos. De um lado, a questão econômica da crise de acwnulação. O modelo econômico dependente, montado prin­cipalmente com JK, vivia urna crise, cuja supe­ração exigiria do Estado urna intervenção que garantisse maior abertura para o capital es tran­geiro e wna políti ca dirigida a privilegiar ain­da mais o grande capital, que passava, inclusi­ve, por garantir tota l controle sobre as organi­zações e lutas dos trabalhadores, de fo rma a viabilizar o arrocho salarial. (3)

Muitas vezes ap resentada de forma combi­nada à prilneira, aparecin a tese que deri vava o golpe da cri se do populi smo. Este era entendi­do corno a base política da dominação de clas­ses naquela fase, sustentada n o equilíbrio ins­tável que garantiu a incorpo ração das massas à política pela via controlada do pacto popu li sta. Tal pacto entrara em crise, pois as massas que­riam ir além dos limites estabelecidos pelas clas­ses dominantes para suas concessões.

Nas palavras de Otávio lanni, o popul ismo envolvia diversas dimensões daquela etapa da trajetória brasileira, associadas em especial às contrad ições do desenvolvi mento capita li sta urbano-industria l e da entrada das massas no plano das d isputas de poder. "Assim pode-se afirmar que a entrada das massas no quadro

das estruturas de poder é legitimada por inter­médio dos movimentos populistas. Ini cialmen­te, esse populi smo é exclusivamente getuli sta. Depois adquire outras conotações e também denominações. [ ... 1 No conjunto, en tretanto, tra­ta-se de urna política de massas específica de urna etapa das transformações econômico-so­ciais e políticas no Brasil. Trata-se de um movi­mento político, antes do que um partid o políti ­co. Corresponde a uma parte fundamental das manifes tações políticas que ocorrem numa fase determinada das transformações ve ri ficadas nos setores industriais, em menor escala, í.1g rá­rio. Além disto, está em relação dinâmica com a urbanização e os desenvolvimentos do selor terciá ri o da economia brasileira. Mais ainda, o populismo es tá relac ionado tanto com o con ­sumo em massa como com o aparecimento d~l cultura de massa . Eln po ucas pala vra s, o popu li smo brasileiro é a fo rma políti ca assu­mida pela sociedade de massas no país." I')

A crise do populismo seria ent50 deri vada da exacerbação das con tradições do reg ime no governo Gou lart, com a amp liação da pa rtici­pação popula r. Segundo lan ni , GouL:!rt "t ra z consigo todos os compro"missos e ambigüieb­des da política de massas. Governa sempre sob as vári as pressões que caracteri zam (] hi stória do populismo. Agora essas pressões estão con­centradas, em fo rça e profundidade". Por isso

1 - Uma primeira versão deste texto fo i produzida para o Seminário 40 anos do golpe mil itar no Brasil. Pelotas-AS, Instituto Mário Alves/uCPEl , 01/04/2004. Uma alualização em dezembro de 2004 procurou incorpo rar novas contribuições ao deba te publicadas rec entemente. 2 - 2 Mattos, Marcelo Badaró. Novos e velhos sindicalismos no Rio de Janeiro: 1955-1988. Aio de Janeiro: Vício de leitura, 1998. Retomei algu ns aspectos dessa discussão em duas obras de síntese posteriores. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. Aio de Janeiro: Vício de leitura, 2002; O sindicalismo brasileiro 8pÓS 1930. Rio de Janei ro: Jorge Zahar, 2003. 3 - Uma excelente síntese das discussões que adotaram tal ponto de vista enco ntra ·se em Mendonça, Sonia Regina de. Estado 8 economia 1/0 Brasil: opções de desenvolvimento. 2 ed. Aio de Janeiro:Graal, 1985. 4 - IANNI, Otávio. O colapso do populismo no BraSIl. 4 ed. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1978.p. 207.

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mesmo, foram os conflitos sociais que desnu­daram aquelas ambigüidades "O populi smo terá s ido apenas uma etapa na histó ri a das re­lações entre as classes sociais. Nesse sentido é que se pode dizer que no limite do populismo está a luta de c1asses."{')

De uma forma gera l, esse marco inte rpre­tativo permanece importante, por enfatizar d i­mensões econômicas, políticas e sociais do gol­pe, entendido em meio à aná lise de um proces­so mais amplo. Lei turas reducionistas, que de­ram exagerado peso a apenas um desses con­juntos de fatores, foram criti cadas com razão, mas não constituíam o padrão das análises, que costumaram apontar para a nlúltipla causalida­de na explicação do processo que culminou com o golpe. No entanto, algumas das de rivações dessas interpretações para os estudos da classe trabalhadora eram ~astante problemáti cas.

Confo rme aquele marco, as organizações dos trabalhadores foram analisadas através do con­ce ito de s ind ica li smo populista. Numa s intese esquemática, o "s indical ismo populista" seri a caracteri zado po r: a) inconsistência organizatória (orga ni zações de cúpula - oficia is ou para lelas - seriam pri vil eg i­adas em relação às O rganizações po r Loca l de Trabalho); b) falt a de ques ti onamento à estrutura s indica l, inclus ive po r parte da direção comunista; c) falta de s intonia entre lideranças (com dis­curso e reivi ndicações nacionais e politizadas) e suas bases (mobil izadas apenas por questões sa la ri a is); d) pod er de mobi li zação concentrado nos tra­balhadores do Estado e escasso entre os empre­gados do seto r privado, em especial nos seto­res de ponta da grande indústri a; e) pri v ilégio ao Estado como interl ocul-or prin­cipal dos sind ica tos, subo rd inação aos políti ­cos po pulis tas e secunda ri zação d o conflito capital e traba lho(6). Na defi ni ção mais conhe-

5 - Id.ib. pp . 109·113.

cida, de Francisco Weffort, o s indica li smo popu­li sta "no plano da or ientação, subord ina-se à ideo logia nacionali sta e se \'o lta para uma polí­ti ca de reformas e de co laboração de classes; no plano da organização, caracteri za-se por uma estrutura dual em que as chamadas 'organiza­ções paralelas', formadas por ini ciativa da es­querda, passam a servir de complemento à es­trutura sind ica l oficial , inspirada no corporati­vismo fascista como um apêndice da estrutura do Estado; no plano político, subordina-se às viciss itudes da ali ança fo rmada pela esquerda com Coulart e outros po lí ticos fi éis à tradição de Vargas." (7)

No estudo que desenvolvi sobre o s indica­li smo carioca, como em viÍ ri os traba lhos pro­du zidos a partir do fim dos anos J990(8), tal con­cei to de "sindica li smo po pulista" era ques ti o­nado, po is fo ram enco ntrfJdZls ev idências mui ­to fortes que caminhavam em direção bem d i­feren te. Encontrei na pesquisa com as fontes do período, orga ni zações sindica is com "índi ­ces elevados de s indica li zação, va ri adas e a ti­vas o rganizações por loca l de trabalho, di ve rs i­dade de áreas de atuação I ... ] e só lidos laços de representati v id ade entre dirigen tes e bases. " Observe i também g reves "participativas, o rga­n izadas a part ir do loca l de traba lho e com uma in teg ração viável entre demandas po lí ti cas ge­rai s e bem sucedidos encaminhamentos de rei­vindicações econômicas". (9)

Isto não s ignifi ca que a es trutura sindicaln50 impusesse limites, como as in te rvenções fei tas pela Ditad ura logo em seus primeiros dias dei­xavam claro. Porém, apesa r desses limites, ha­via ação sindi ca l o rientada pelos inte resses da classe, com im pacto efet ivo na conjuntura . Ou seja, os traba lhadores agiam para si e com for­ça. Por isso o go lpe fo i necessário pa ra a classe dominante.

O momento do golpe é fundamenta l para este debate, po is a produção acadêmica o ri en-

6 - Para dois exemplos deste tipo de uso da noção de sindica lismo populista, ver Rodrigues, Leôncio Martins. fll(Juslriafizacão e aritllfcles operár")s. São Paulo: Brasiliense, 1970; WEFFORT, Francisco. Origens do sindica lismo populista no Brasil · a conjuntura do após ·guerra. Estllc/;s Cebrap. n 4. São Paulo. abri jun. 1973. Consi deramos as caracterizações feitas pelos autores convergentes , mes mo trabalhando o primeiro com explicações para o comportamento sindical baseadas na origem de classe dos operários e o segundo centrando sua argumentação nas opções políticas das direções. 7 _ WEFFORT, F. MO rigens ... M, p. 67. 8 - Ver por exemplo a obra coletiva de FORTES. Alexandre (e outros) . Na lura por rlireiros. Campinas : EdUnicamp, 1999 . 9 - MAnOS. M. B. Novos e velllOs (, .. ). ob. cit., pp, 21 8·9.

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10 - Os trablllltatlorcs c o golpe de 1964: ,,,,, balaltço da IlislIl riog r(/fitl

tada pelo modelo d o sindicali smo populis ta chegou a questionar a resistência dos trabalha­dores a tal po nto que n egou a té mesmo a concretização da g reve geral convocada pelo CGT para o dia d o golpe. Constate i que, no Rio de Janeiro, como Fernando da Si lva também observou em San tos(lO> (outros exemplos depen­dem de novas pesquisas), a g reve ocorreu e foi tão o u mai s a mpla que a s a nter io rmente convocadas pela intersindical. Mas, de fato, foi insufi ciente para conter o go lpe, até porque, como des tacou Lun dos principais líderes do sindicalismo brasile iro à época - Batis tinha - os trabaUladores agu ardaram a res istência nljlitar,

que não aconteceu: "Não tinha porque o traba­lhador, que nunca pegou em arma, pegar. [ .. . ] Não havia trabalho de res is tência armada dos trabalhadores. Havia a í ilusãode que as Forças Armadas iriam funcionar dem ocra ti camente e impedir o golpe [ .. . 1. A classe operária fez o seu papel, parou o Bras il(II>."

Assim situada a questão, em relação ao peso da aval iação negativa sobre a ação da classe no momento no período d o gove rno Goulart e no episódio do golpe, passo a comen tar a lgumas teses posteriores, com o compromisso de vol­tar com mais atenção, adiante, à questão da re­s istência no momento da derrubada de Coulart.

o golpe 20 anos depois. as teses de René Dreifuss

Não enfrente i na é poca em que produzi mi­nll a tese (1996) um debate COm a hi s torio­

g rafia especifi camente dedicada à an áli se d o golpe, publicada por volta de seus v inte anos (quando a ditadura aind n ex is ti a, clllbora aba­ladO) pela mobi lização redemocra ti zante). Até po rque concordava com as linhas gerais do tra­balho m a is impo rtante daq ue le momento (e podemos d izer do conjunto d a prod ução sobre o golpe), escri to por René Dre i(uss1'.

Drei fu ss d em ons trou que os empresá ri os brasileiros agiam politicamente de fo rma o rga­nizada e documentou o papel decisivo d o g ra n­de capital na a rti cul ação do golpe. Estudando o complexo lPES-l BA D - Instituto de Pesqui­sas Econômicas e Superi o res e Instituto Brasi­leiro de Ação Dem ocrática -, mostrou que seus participantes es taVaJll "no centro dos aconteci­m e ntos co m o h o m e n s d e li gação e co m o o rgan izadores do m ovimento civil -milita r, dan­do apoio materi a l e preparando o cli ma para a in te rvenção mil itar ! ... J. O ocorrid o em 31 de março de 1964 não foi um mero go lpe m ilitar. Foi [ ... ] UJll movi mento socia l civ il-mil itar(" >."

O ca ráter d e classe do go l pe e dos govern os

da ditadura é o centro de sua an á lise. Segu ndo ele: "As classes d ominantes, sob a lide rança do bloco mu ltinacional e associado em preenderam uma campanha ideo lógica e po liti co-mil itar em frentes di versas, a tra vés de uma série de insti­tui ções e organi zações de classe, mui tas das quai s eram parte integrante do s is tema polít ico populis ta." (" >

No pós-1964, "essa ve rd adeira e lite das clas­ses dominantes 1 ... 1 preservou a natureza ca pi­tO) li sta do Estado, uma tarefa que envo lvia séri­as restdções à orga nj zação autônoma d~s clas­ses trabalhadoras e a consolidação de 1 . .. 1 um tipo de ca pitalis mo tardi o, dependente, des i­g ual, m as também extensamente industri ali za­do, com uma economia principalmente dirigida pat'a um alto g rau de concentração de proprie­dade na indústri a c integração com o si s tema bancário." (1.")

É possível a rgumentar que a ex is tência de uma arti cul ação tão am pla quanto a demons­trada por Dreifuss não era s ufi ciente para ex­p lica r o go lpe em s i, que foi deslanchado por iniciativa imedia ta dos milita res e, como de­monstra a precipitada sa ída de Mourão Filho

10 - SI LVA. Fernando Teixeira da. A carga e a culpa: operários das docas de Santos: direitos e culWra de solidafÍedada. 1937-1968. São Paulo: Hucitec/Pref. Municipal de Santos, 1995. 11 - FIGUEIREDO, Betânia G. (o rg .). Balistinha: o combatente dos trilhos. Rio de Janeiro: CMFIAMORJ, 1994, p. 45. 12 - DREIF USS, Renê A. 1964: a co nquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981. 13 -Id.ib .. p. 397. 14 - Id.ib., p. 48 3. 15 - Id.ib., p. 485.

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J-l islÚria & {. /l/a tI l! Ch, .<ixc.{ -li

com suas tropas de Minas Gerais, não possuía luna única frente de conspiradores. No entan­to, o trabillho de Dreiffus tem um sentid o bem mais profundo do que a análise do aconteci­mento golpe enquan to fen ômeno imed iato.

Seu estudo nos posiciona sobre as condições que viabilizaram o sucesso da tomada do poder pelo movimento civil-mi litar c (1 natureza das políticas postas em prática nos anos seguintes.

A despeito desse acordo geral com a inte r­pretação de Dreiffu s, ressa lto que, como sua obra não se propôs a tratar o outro lado - O da res istência dos trabalh adores - em várias pas-

sagens seu livro acaba reforçando as formula­ções anteriores sobre a inex istência ou incon­sistência da capacidade de intervenção organi­zada da classe, dados os limites do sindica lismo de então.

Ass im, ainda que seu trabalho avançasse em relação à discussão de como fo i articulad o o golpe, qua l o caráter de classe dessa articu la­ção e dos govern os militares, mantinha-se em sua análi se o quadro geral do modelo interpre­tativo do "s indicalismo populista" para defin ir as re lações entre Es tado e trabalhadores e as organizações e lutas destes.

A historiografia do golpe nos seus trinta anos

Em meados dos an os 1990, porém, já se apre­sentavam também as novas teses sobre o

golpe, produzidas em torno de seus trin ta anos. Há algumas dessas que v i com grande preocu­pação e retomo aqui O ponto em que estávamos quando, citando Batistinha, me referi à expecta­ti va de res istência ao golpe entre os militares.

Mesmo que não fosse esse meu objeto cen­tra i de pesquisa, ques ti ona va aspectos daque­las análises que se construíam a part ir exclusi­vamente do depoimento dos militares go l pistas, agora di spostos a fa lar mais (embora suas v i­sões sempre tenham tido espaço dominante, via imprensa, pub li cações de memóri as e biogra fi­as), e que ap resentavam a visão de que o golpe fora dado sem ma iores resistências.

Pesquisando a greve contra o golpe, era pos­sível constatar a arti culação efetiva de lideran­ças s indi cais com mi litares que estavam dispos­tos a res istir para garantir o governo e as insti­tu içõcs consti tucionais, mas que não O fi zeram

porque lhes falto u O que é fundamenta l em sua instituição: ordens e comand o. Como demons­trava a ponte estabelecida por Paulo Mello Bas­tos, coronel reformado da Aeronáuti ca, d irigen­te da Federação dos Traba lhadores em Trans­portes Aéreos, do Sindicato dos Aeronautas e do CGT, com uma série de li deranças milita res da base de susten tação de jango, incl us ive no momento do golpe, mas que n50 resultou em

nenhuma ação concreta. (") Pelo lado dos mili­tares que apoiavam jango, o illmirante Aragão, dos Fuzileiros Nava is, afi rmou "Eu não prendi o Lacerda porque não tinha ordens nesse sen ti ­do, embo ra fosse a favor da invasão do Palácio Guanabara". já o então corone l av iado r Rui Moreira Lima, que comandava a aviação de caça na base de Santa Cru z, sobrevoou a co luna de Mourão Filho que se des locava para o Ri o, mas não ataco u as tropas go l pistas por falta de or­dem para tal. "Não res istimos ao go lpe porq ue é ramos d isciplinados. Ex istiam uma cadeia de comando e uma hie rarqui a. 1 .. -] Só atirar ia com ordens. Sou um militar, atiraria se es ti vesse cumprindo uma ordem." (17)

Partindo das análises que ganharam maior destaque nos anos 1990, destaco os resultados da pesquisa de um grupo do CPDOC da FGV­Rj a partir de depoimentos com militares. Dois tex tos publicados em 1994 podem ser tomados como exemplos de como os resultados dessas pesquisas caminhava m num sen tido inverso ao do que eu constatava, ao discutir a res istência possível ao golpe. Em reforço ao argumento dos militares go l pistas entrev istados, tenderam a afirmar que inexis tiu qua lquer poss ibilidade de res istência, já que o dispos itivo militar de j8ngo ca iu como um cas telo de cartas. Cabe aq ui, en­tretanto, confe rir maior atenção aos objeti vos gera is daquelas an áli ses, do que ao aspecto es-

16 - BASTOS, Paulo Mello. Salvo conduto. Um vôo na história. Rio de Janeiro: Garamond, 1998. 17 - Depoimentos regis trados por Moraes, Dênis de. A esquerda e o golpe de 64. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo. 1989, pp. 163 e 165.

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L.

12· Ox trrlb(tfIJntllJrl!.~ e (J golpe tle 1964: 11111 balanço tia histuriografia

pecífico da possibilidade de resistência ao go l­pe. O primeiro texto é de Gláucio Ary Soares, "O golpe de 64".(18)

O objetivo central do artigo é contestar as teses que atribuem a precedência expli cativa do golpe aos fatores econômicos mais gerais (re­solução da crise de acumulação capitalis ta) . Para o autor, buscar os atores seria essencial e entre eles, privilegia os militares, que afi nal de contas deram o golpe. A análise se faz quase que exclusivamente a partir do di scurso dos militares, o que gera um grave risco de queda na armadilha da "i lusão biográfica" e de falta de críti ca da fonte o ral, que como qualquer ou­tra fonte necess ita ser contextualizada. il9) O au­tor, em muitas passagens, toma aqueles depoi­me ntos como d ados, tr a táveis inclu sive quantitativamentc. C ontrapõem-se 3 5S Lnl, sem maiores problematizações, as memórias dos gol pis tas com as análises acadêmicas sobre o golpe e conclui-se pela correção das primeiras, identifi cando diretamente dos depoimentos os "motivos do golpe" como sendo: "]". Caos, de­sordem, instabilidade; 2". Perigo comunista e subversão; 3". Crise hierárquica militar; 4". In­terferência do governo nos assuntos, na llierar­quia e na disciplina militar; 5". Apoio popular ao golpe; 6". Corrupção, ro ubo de verba públi ­ca; 7". Sindicalismo, república sindica l." i2O)

O autor reconhece a conspiração militar para dar o golpe desde a saída de )ânio, mas enfati za que ela não possuía um comando orgânico. A partir dos depo imentos, tomados quase que como o es tabelecimento da versão definiti va sobre a participação militar, contesta as teses da historiografia, para ele resumidas às seguin­tes combinações: de uma conspiração dos gru­pos econômicos bras il eiros; de wna conspira­ção dos grupos econômicos brasile iros com apoio do governo ameri can o; de uma conspi­ração dos grupos econômicos brasileiros com

apoio dos milita res e das multi nac ionais e de wna conspiração dos grupos econômicos bra­sileiros com apoio das multinacionais. Escolhe a opção, apontada pela grande maioria de seus entrevistados militares de Lun a "conspiração dos militares com apoio dos grupos econômi­cos brasileiros." (2 1)

Trata-se de uma contrapos ição ~ s teses de Dreifuss de que o golpe fo i movido pela ação organizada do grande capital nacional e asso­ciado, com apoio militar e da política externa dos EUA .. Mas, o trabalho de Dreifuss é trata­do com respeito, apesar de questionado. Para Soares, os "grandes avanços, como o li vro hoje clássico de Dreifuss a respeito da part icipação dos grupos econômicos organ izados, requerem pesquisa detalhada, cuidadosa e cansativa". (22)

Sistematizava-se ali algo que aparcc il:l no' primeiro li vro com as entrevistas do mesmo projeto, segundo tex to a considerarmos. i") Na introdução desse último, aparece a idéia de que hav ia não um grupo dirigente, mas pelo me­nos dois grandes pólos go l pis tas entre os mil i­tares: o da "Sorbonne" e o da tropa. A ponta-se que os líderes (Costa e Silva e Cas telo Branco) só aderiram à cons piraç50 no últinlo momen­to. Faz-se também a s uges tão de Crí ti Gl b hi storiografia a partir da posição dos mili tares, em pelo menos dois pontos centrais.

O primei ro deles fi xa que a "op in ião milita r dominante define o go lpe corno resu ltado de ações di spersas e iso ladas, embaladas, no en­tanto, pelo clima de inquietação e incertezas que invadiu a corporação. Esta visão se cont ra põe à interpretação predominante entre os anal is­tas que até agora examinaram o episódio. PiJ ra estes, o golpe teria s ido produto de um amplo e bem-elaborado plano conspirató rio que en­volveu não apenas o empresa ri ado naciona l e os militares, mas também as fo rças econôm icas nlultinacionai s". (2-1 ) Já o segund o íJrgumCnl"o

18 --:- SOARES, Gláucio Ary . o golpe de 64. In SOARES, GJáucio Ary & ARAÚJO, Maria Celina O' (orgs.) 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 1994. 19 - Sobre a HiJusão biográficaH, ver o texto com esse título de BOUROIEU, Pierre em FER REIRA, Marreta de Moraes & AMADO, Janaína. Usos e ablJsos da hislória oral. Rio de Janeiro: FGV; 1999. 20 - SOARES, G. A., O golpe de 64, oh.cit., p. 30. 21 - Id.ib .• pp.34·35. 22 - Id.ib .• p. 37. 23 - ARAU JO. Maria Celina O', SOARES, Gláucio Ary Oilon e CASTRO, Celso. Visões do golpe. A memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume Durnará, 1994.

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U ;.\,ttíria & [. /lla de CtaHes -13

centra-se na constatação de que os "depoentes concordam que não havia um projeto de go­ve rno entre os vencedores: o movimento foi contra, e não a favor de algo". (25)

O primeiro ponto sugere o questionamento das análises hi stóricas baseadas em fontes que revelam as articulações e a partici pação do gran­de cap ital (e de milita res) numa conspiração gol pista, usando como única ev idência os de­po imentos dos que participmam do go lpe. Tais depo imentos, mesmo que fossem "sinceros", foram dados por oficiais que em 1964 ocupa­vam postos de segunda ordem (ca pitães, coro­néis) e, portanto, tinham papel secundá ri o na conspiração, como os próprios auto res ressa l­tam: "Os militares que aq ui depõem em sua maiori a não tiveram lima lideran ça dcstacadJ nos preparativos do go l pe." (26) Cabe en tão a per­gunta: se não tiveram li derança, como podem se r fon te usada pa ra contrapor-se às análi ses dos regis tros dos seto res que tiveram papel de liderança nesses "preparati vos"?

O segundo ponto também é ques ti onável quand o se consta ta que, logo nos primeiros meses de governo militar foi aprovada uma sé­rie de medidas que tinham s ido estudadas e s is­temati zadas pelo IPES antes (como demonstra Dre ifuss). E quem as executou foram ministros e outrns auto ridades que integravam, com des­taque, os quadros do mesmo IPES. Ou seja, ain­da que se possa ad mitir o ca ráter fragmentado da direção golp ista em 31 de marçoj]0. de ab ril de 1964, é difícil não perceber que o go lpe vi­nha sendo prepa rado de muito antes, por uma a rti cul ação que ia além dos militares, envo lvia os interesses de classe do grande capita l e isto se demonstra pela própria linha de inte rven­ção do Estado nos momentos segu intes.

Dessa mesma época (cerca de 30 anos após o go lpe) é o traba lho de Argelina Figueiredo l'7).

A autora também es tá preocupada em conl'es-

24 - Id.ib .• p. 16. 25 - Id.ib .• p. 18. 26 - Id.ib., p. B.

tar as análises anteriores, baseadas em exp lica­ções "estruturais" (econômicas, mas também políticas - como a idéia de crise institucional) e, principalmente naquelas interpretações "in­tencionais" - leia-se Dreifuss. Pa ra Argelina: "Este tipo de análise [ ... 1 falha em fornecer uma expli cação real, pois toma a mera existência de uma conspiração como condição suficiente para o sucesso do golpe político. Os conspiradores são vistos como onipotentes. Conseqüentemen­te a ação empreendida por eles não é ana lisada em re lação a outros grupos, nem vista como sendo limitada po r quaisquer constrangimen­tos ex ternos(28l."

Sua opção de análi se, em contrapos ição, é privilegiar os momentos críti cos do governo Goulart, empregando a teo ria da esco lha racio­nal. Tal refe rência teóri ca pode ser ava liada, numa leitura críti ca, apesar de sua anunciadJ relação com O nlarxismo, como uma va ri ante do individualismo metodológico, que toma o com­po rtamento dos agentes sociais como O dos in­divíduos dotados de margens ampl as de esco­lha c racionalidade direta na sua ação social. (2'.1)

A autora tenta prova r que hav ia um cami­nho parn refo rmas moderadas dentro da ordem democ ráti ca c que os "a tores" esco lheram maximiza r suas possibilidades, em detrimento dessa ordem: os reformistas querendo reformas amplas e os con trários às reformas d ispostos a tudo para ba rrá-Ias. Sua conclusão é explícita: "A lém dessas razões lum c6 lculo o portunis ta de van tagens em tencionar pelas reformas am­plas l, um outro fato r contribuiu para impedir a rea li zação de qualquer das duas poss ibilidades de combinar reforma e democracia, ou seja, j]

visão instrumentaJ de democracia, mantida tan­to pela direi ta como pela esquerda . De fato, os grupos esquerdi stas e pró- reformas buscavam essas reformas ainda que ao cus to da democra­cia. Para obte r as refo rmas, propunham e es l'a-

27 - FIGUEIREDO, Argelina C. DCIIIOCf<1ci,1 ou reform.1s? Alternativas democráticas à crise política: 1961 -1964. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. 28 - Id .ib .• p. 28 . 29 - A teoria da escolha racional é defendida, entre outros, por Adam Przeworski, orientador da tese de Argelina Figueiredo. Dele, em português, pode-se ler Capitalismo c social-d~mocracia. São Paulo : Cia. Das Letras, 1989 . Para uma critica desse tipo de concepção ver SENSAIO, Daniel. Marx, o jntempcsfivo. Gra ndezas e misérias de uma aventura crítica. Rio de Janeiro: Civilizaçáo Brasileira, 1999.

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r 14 - Os Iraballl adore.\' e o go lpe de J 964: um balall ço da hüloriog raf ia

vam dispostos a apoiar soluções não democrá­ticas. Aceitavam o jogo democrá tico somente enquanto fosse compatível com a reforma ra­dical. A direita, por outro lado, sempre esteve pronta a quebrar as regras democráticas, recor­rendo a essas regras apenas quando lhes eram úteis para defender interesses entrincheirados. Aceitavam a democracia apenas como meio que lhes poss ibilitava a manutenção de privilégios. Ambos os grupos subscreviam a noção de go­verno democrá tico apenas no que servisse' as suas conveniências'. Nenhum deles aceitava a incerteza inerente às regras democráticas(JO)."

Se as pesquisas sobre os militares acima ci­tad as tinham os mesmos alvos de críti ca à his toriografia ante rior que Figueiredo, o faz i­am sem caricaturar an álises como a de Dreifuss e parti am do pressuposto de que os responsá­veis pelo golpe fo ram os que o deram, procu­rando explicá-lo a partir daquele ator que teve a visibilidade do poder - os próprios militares. Foram importan tes, por apresentar as razões que militares alegaram para mover-se nessa di­reção, embora possamos achar que não tenham ido "além da aparência para explicar a essên­cia" do processo. Já Argelina Figueiredo atri­bui a responsabilidade pelo golpe tanto aos que o deram quanto às fo rças que defend iam as re­formas e foram atingidas pelo golpe.

Essa explicação é insustentável, porque, do ponto de vista teó rico, parte do pressu posto de que o Estado é um ator neutro, que paira acima das disputas da sociedade, podendo caminhar movido pelos dirigentes eleitos ou pelos que o assa ltam, como se es tes tivessem o papel de condutores de um veículo, uma máquina bu ro­crática cujo rumo é ditado pelo seu operador. Além d isso, toma a democracia como um tipo ideal, que atende a todos os interesses (mesmo que parcialmente ou periodicamente), se todos os atores concordarem com suas regras. (31)

Por outro lado, empiricamente, despreza o fato de que as reformas propostas não eram radica is, embora a retórica às vezes fosse, pois a reforma agrária - a principal reforma de base

30 - FIGUEIREDO, Argelina, Democracia ou { ... }., ob. cit., p. 202 .

proposta - foi uma tarefa cumprida pelos go­vernos burgueses na maior parte do mundo e o que se propunha no parlamento, sem encon­trar espaço para negociação com a maioria, era apenas garantir as condições para a indeniza­ção em prazo mais largo (sequer a expropri a­ção) dos latifundiários.

A Reforma Universitá ria concentrava-se em democratizar a gestão das instituições e ampli ­ar o acesso, tarefas já cumpridas em out ros pa­íses da América Latina desde o in ício do século xx. Já O controle da remessa de lucros poderia ser parte de um plano econômico de qua lquer governo menos comprometido com os interes­ses das multinacio-nais, sem signi fi car neces­sari amente um fechamento do mercado.

Além disso, não se leva em conta que as for­ças mais importantes da esquerda naquele pe­ríodo defendiam caminhar dentro da ordem democrática. O PCB, por exemplo, defend ia a tese terceiro-internacionalista da revolução de­mocráti co-burguesa, ou seja, da aliança com a burgues ia nacional para viab ili zar a primeira etapa capitahsta das transformaçôes pelas qua is o país deveria passa r, aceitando "as regras do jogo democrático" nos limites em que elas se apresentavam então.

Lúcio Fláv io Almeida demonstrou o quanto de equívoco haveria em, ao "avali ar os progra­mas do Partido Comunista frente 11 questão de­mocráti ca, atribui r-lhe uma concepção de de­mocracia que não era a dele", como as concep­ções de Norbe rto Bobbi o, o u a con cepção procedimental de Schumpeter, que parecem orientar algumas análises.

Ainda ass im, toda a linha política da "De­cla ração de Março", de 1958, do PCB, estava centrada na defesa de wna frente única, em que os comunistas apoia riam os "elementos nacio­nalistas e democráti cos" da burguesia brasil ei­ra e das políticas de Estado.

Isto, mesmo sendo possível d iscern ir naq ue­le contexto que o nacionalismo de algumas das lideranças apoiadas pelos com un istas estava longe de ser antiimpe-ria lista, sendo suas con-

31 - Sobre os limites da democracia contemporânea e a incompatibilidade entre o conceito clássico de democracia e o capitalis mo, ver WOOO, Ellen. Democracia contra capitalismo. São Paulo: Boitempo. 2003.

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vicções e prá ti cas democráti cas de "baixíssi ma intensidade".

A mobi li zação das classes populares no go­verno Coulart colocavam "na ordem do d ia três fortes itens da revo lução burguesa - as ques­tões agrária, naciona l c democrática".

O prob lema, po rtan to, não cst~H i a na falta de compromisso democrático da esqu e rd a identifi cada com essa mob il ização, mas ao con­trário, !li] cOlllp lcta ausência de sentido na pro­posta de uma revo lução burguesa pa ra uma burguesia que não precisaria de nenhuma re­volução para fazer va ler seu projeto de classe.!'2)

Na prática, a opção pela atuação nos marcos do s is tem" se ria demonstrada também pelos princi pais sind icatos li gados ao CCT, quando es tes rejeitaram, em fins de ]963, a tentati va de Jango de implanta r o Es tado de Sítio. O pró-

prio Jango, com apo io dos comand os militares, encaminhou a so lici tação do Es tado de Sítio ao Congresso Nac ional, aguardo u a resposta -negativa - e desistiu dn idéia, dClllonstra ndo que mesmo quando aind(l con tava C0l11 susten­tação nas Forças Armadas, não es tava disposto a ro mper com a lega lidade vigente.

Não se toma em conta também que aquc la democra ci21 era res trit a até mCSlllO parn os

parâmetros daquilo que bs vezes é adjetivado corno democracia "burgucsa-rcpresentati va-li­beral". O PCB não possu ía regis tro lega l, a es­trutura s ind ica l era a herdada da d itadu ra varguista, a polícia políti ca t~lInbém era uma pe.rmanência daquela fase e mostra va-se Gldi1 vez mais especinli zZldZl e atuante, apenas pJ rll listarmos alguns elementos que dizem respeito às organizações dos traba lhadores.

o debate em 2004

Nestes quarenta anos do go lpe, para quem acompanhou os seminár ios, cadernos es­

peciais da imprensa e publicações especia li ­zadas, parece ser ev idente que a lgumas teses de cerca de dez Zl nos Zl trás foram supervalori ­zadas, enquanto o acúmu lo anteri or de pesqui ­sas foi s is tematicamente negado. O que acabou por ge ra r uma reação, que revela a ex is tência de um debate forte entre setores uni vers itá ri os, alguns dos quais an tes caminha­vam no mesmo sentido e hoje pa recem trilhar rumos opostos.

As aná lises produzidas em to rno de 1994, nas pesquisils do CPDOC sobre mil ita res fo­ram exacerbadas po r traba lhos recentes, como O de El io Cas pari , que não SÓ nega qualquer mo tivação econõmi co-socia l, e qu al CJ uer n í­vel de co nsp irilç50 a rti culilda ("o exé rcito dormiu janguista e acabo u revolu cionário"), como at ri bui o gol pe e os caminhos da dil'a­dura ao jogo das indi v idualid"des dos pe r­sonagens - Ja ngo vac il an te ou os militares ma is moderados o u mais du ros por pe rsona-

lid ade - e às contin gências fac tu a isP3) Sem menosprezll r sua reda ção ca ti vante e a ap resen­tação de algumas fontes que confi rmam o u nc­gam propos ições antes mal fundamentadils, tra­ta-se da recuperação do melhor es tilo da hi stó­ria "acontecimental" do século XIX, cr iti cada pelos Al7alles.

Anólises e explicações causa is são substituí­das po r descrições de acontec imentos, movidos pelo sabor do acaso, desaguando em conclu­sões que beiram o paradoxo: "O levante se ap re­sentara como um mov imento em defesa da or­dem constitu cional, mas a essência dos aconte­cimentos negava-lhe esse caminho".I") O que é "a essênc ia dos acontecimentos"?

O mesmo senti do de aná lise centrada excl u­sivamen te nas poss ibilidades de ação e reação dos chefes políticos a limen ta a biografia de Jango escrita por Marco Antonio Villa.

Neste caso, um personageI11 ao qual se at ri ­bui uma responsabilidade nega tiva, po issegun­do o auto r, João Coubrt "pela posição que ocu­pava poderia te r imped ido" que se chegasse ao

32 - ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. Insistente desencontro: o PCB e a revolução burguesa no período 1945-64 . In MAZZEO, Antonio Carlos & LAGOA, Maria Iza be l (orgs .). Corações Vermelhos: os comunistas brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003. pp. 88,116,121 -2. 33 - GASPARI, Elio . A ditadura cnvcrgonhada. São Paulo: Cia das Letras, 2002. 34 - Id.ib" p. 111.

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r J tí • 0.1' 1f(lI}(lfll(uf(}re,~ e fI ga{JlC lle /964: .11/11 IJOlall ço da IJi sloriografia

impasse cuja saida foi o golpe. I~'I Caspari tam­bém retomou as teses de Argelina Figueired o, radicalizando-as. Não apenas inex istia o C0I11-

promisso da esquerda com a democracia (tanto quanto o da direita), como para ele "hav ia dois go lpes em marcha. O de Jango viria amparado no 'dispositivo militar' e nas bases sindica is, que cairiam sobre o Congresso, obrigando-o a apro­var um pacote de reformas e a mudança das regras do jogo da sucessão presidencial." I"1

Ta l radicalização dessas teses - não apenas inexistialn cOlnprolni ssos com a denlocracia, como também esquerda e direita caminhavam para o golpe - parece agora ter se tornado a tô­nica das análises que receberam maior destaque nos debates dos últimos meses. Jorge Ferrei ra, por exemplo, em mtigo para uma revi sta de d i­vu lgação que repetia argumentos de um texto de maior fô lego,!"1 anali sando os últimos dias do governo Coulart, afirma o seguinte: "O con­flito político entre esquerdas e direitas tomou novos rW)l OS. Não se tratava mais de saber se as reformas seri am ou não implemen-tadas. A ques­tão central era a tomada do poder e a imposição de projetos. Os partidári os da direita tentariam impedir as a lterações econômicas e sociais, sem preocupações de respeitar as instituições demo­cráticas. Os grupos de esquerda ex igiam as re­fornlas, Ina5 tanlbéln scnl vLl lori zar a dClllocra­cia. [ ... 11 Passa a citar Argelina Figu eiredo, e con­clui] . Entre a radicali zação da esquerda e da di ­reita, uma parcela ampla da populaç50 brasil eira apenas assistia aos conflitos - em s il êncio." 1"'1

Ou seja, segundo esse autor, esquerda e di­re ita lu tavam naquele momento pela tomada do poder, por vias não democráticas, como que nWl1a corrida em que largavam em igualdade de condições e objetivos idênticos, tratava-se de observar apenas quem fo i mais forte ou che­gou antes para definir o rumO do país. Além disso, defende que o momento era de radica li ­zação, mas o povo assisti u a tudo bes ti ali zado.

Centenas de milhares nas ruas com Jango, cen­tenas de milhares com "Deus pela Li berdade" contra Jango, greves em quan tidades cada vez maiores (38 greves em t rês meses só no Rio de Janeiro em 1964, quatro vezes mais que no mes­mo período do ano anterior), levantes dos bai­xa-patentes das forças ilnnadas, mil itares em marcha ... e "uma parcela ampla da popul ação" em silênci07 Ao acreditarmos nessa hipótese estaremos concordando que a di n5mica políti­ca é dada por esquerda e di reita em seu jogo pelo poder, pela via democrMica ou não. Es­querda, direita, "povo"; onde estão os empre­sários, os trabalhadores, os setores intermediá­rios: onde es tão as classes e seus confl itos?

Além d isso, também aqui onde encontramos o mesmo argumento de Argelina Figueiredo (ta l­vez um pouco mais simplificado), podemos le­vantar as mesmas pondcmções. Além de alguns d iscursos mais radica lizados, de lideranças como Bri zo la, Ju lião ou Prestes, onde estari am as evi­dências concretas de tal "golpismo" das esq uer­das, se os trabalhadores não pegaram em óJr J11as, os mil itares fiéis a CouJart evitaram o combCl te aguardando as ordens lega is e o próprio prcs i­dente reti rou-se ev itnndo a confrontação7

Caio Nnvar ro de ToJcdo, criti cando ta is for­Illlll ~çõcs, assin.:lla com prccis50 que j) "afirma­ção de golpislllo das esquerdas tem efeitos ideo­lógicos precisos; de imed iato, aj uda a rcfol\'"r as versões difundidas pelos apologetas do go l­pe político-militar de 1964. Mais do que isso: contribu i para legitimar a ação go l pista vito ri ­osa ou, na melhor das hipóteses, atenua as res­ponsabilidades dos militares e da direita civil pela supressão da democracia política em 1964.

A direita gol pista não pode senão aplaudir esta ' revi são' hi stori ográfi ca proposta por alguns intelectuais progress is tas e de esquerd a".!"'1 Re­ferind o-se a in telectu a is de esqu erda, Caio Navarro com certeza mira naqueles com passa­do de luta contra a d itadura que ago ra defe n-

35 - ALMEIDA . lúcio Flá vio Rodrigues de . Insistente desencont ro: o peB e a revolução burguesa no período 1945·64. In MAZZE O, Antonio Ca rlos & LA GOA, Maria Izabel (o rg s.) . Corações Vermelhos: os comunistas brasilei ros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003 . pp . 88 , 116, 121-2. 36 - GASPARI, Elio. A ditadura envergonha(la. São Paulo: eia das l etras , 2002 37 - VlllA. Marco Anto nio. Jango: um pe rfil (1945-1964). São Paulo . Globo. 2004, p.2 41. 38 - Gaspari, Elio . A ditadura r .. I . . ob. cit., p. 51. 39 _ FERREIRA, Jorge. Sexta-feira 13 na Central do Brasil. Nossa História. N° 5. Rio de Janeiro, Bibliot eca Nacional, março de 2004. As idêias centrais são apresentadas com maior vag ar em FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In FERREIRA , Jorge & DRAGADO, l ucília de Almeida Ne ves (orgs.) . O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2003. V. 13.

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dem a tese da resposta de direita ao go lpe pla­nejado pela esquerda. Algo que atraiu a aten­ção a té mesmo da grande imprensa, po is o de­bate ganhou as páginas dos jornais.

Dando foro de maior legitimidade à nova pro­posta interpretativa, por seu passado na luta ar­mada, Daniel Aarão Reis Fi lho, conforme a re­portagem do jornal O Globo, teria caracteri zado as esquerd as na res istência à ditadura C0l110 anti­

democráticas e afirmado que se vitoriosas fos­sem, poderiam ter gerado um confron to ainda pior e um regime de exceção mais violento: "Fa­lava-se em cortar cabeças, essas palavras não eram metáforas. Se as esquerd as tomassem o poder, h8vcria, provavelmente, a resistência das direitas e poder ia acontece r um confro nto de grandes proporções no Brasil. Pior, haveria o que há sempre nesses processos e no co roamento del es: fuzilamento e cabeças cortadas". I"')

Para que não tomemos como aná li ses do a utor a síntese de um jornal di á ri o, podemos reco rrer a um texto em publ icação acadêmica recente. Re is Fil ho pa rte do obje tivo de demo ns­trar que a atri buição de wn caráter de "resis­tência democrática" à ação das esquerdas no período da ditadura militar é uma invenção datada da fase da redemocratização, pois as esq uerdas da luta 3nl1ada seriam antidclllO­cráticas c vi sarialn a im plant'ação do socialis­

mo - por e las e nte ndid o co mo incompatível com a democracia - pela via revolucionári a. E

isso não seria, segundo o autor, ama novidade,

po is já n o in ício dos anos 1960 o des prezo pela democracia se manifestara nas esquerdas que " ineb ri adas pela v itó ria de agos to de 196:1 [a posse de Cou lart, após a re núncia de Jâni o Quadros l, passaram à ofensiva polí tica, e desa­fiavam abertamente a legal idade ex istente".

Dava-se assim o argumento que faltava para que a direita assumisse o discurso da defesa da legal idade, consegu ind o mobilizar um mov i­mento civ il de grandes proporções " para legi­timar posições favoráve is à in tervcnç50 milit·Llr golpista" .I41 ) Desse ponto de vista, que confun­de o objetivo estra tégico da cons trução do so-

40 - FERREIRA, J. Sexta·feira I ... ]. Ob. cit ., p. 35.

ciali smo, compartilhado pelos militantes de es­querd a, com um suposto uso cínico das ban­deiras de res istência democráti ca cont ra a dita­dura, acaba-se por reforçar O discurso dos mili­tares de que o motor do golpe foi a ameaça de uma ditadura comunista, permüindo a matéri­as jornalísticas aproximar acadêmicos "de es­

querda" e defensores d o golpe, na pcrspectiva de que ev itava-se um mal Inai or.

Tem razão neste sentido Marcelo Ridenti, que cri ticou a concepção de Reis Filho, defenden­do a idéia de que havia um componente assu­mido de resistência nas proposições de v6r ias d as organi zações de esqucrda daquele período e que ainda que muitas delas não prio ri zassem a "resistência democrática", o resultado de s ua ação foi o de uma Juta de resis tência contra a ditadura. Para Ridenti, o que os pesquisadores nem sempre aval iam é que "nos anos 60, antes e depo is do golpe de 1964, a ques tão da demo­cracia es tava no contex to da guerra fria, em que os Estados Un idos não hes itavam em apo iar golpes militares para garantir o poder de seus aliados na Amér ica Latina, ditos libe rai s e de­fensores da democracia ... "

Em seu argumento, se os es tud iosos não po­dem controlar o uso de suas pesquisas h;stór i­as nos embates políticos do presente, devem ao menos "estar conscientes de que o realce ana lí­ti co de alguns aspectos, em detrimento de ou­tros, pode leva r a interpretações equivocadas da realidade hi stórica como um todo".

As inte rpretações da "fa lta de democracia das esquerdas" acabaram por ser incorporadas "por aqueles que isentam seto res s ignifi ca ti vos da sociedade civil de cumpli cidade com a dita­dura - e até pelos que chegam a justificá-Ia", ainda que essa não fosse a intenção daqueles estudiosos. I") O que está em jogo nessa guina­da à direita de uma parte da historiografia aca­

dêmica sobre o go lpe de '1964, não pode se r di s­so-ciado d e um processo maio r de d o míni o conse rvador nas aná li ses hi stó ri cas e no pen­samento universi tário em geral, fruto em gran­

de medida do contexto neo libe ral de ava nço

41 - TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: golpismo e democracia. As falác ias do revisionismo. Crítica Marxista. No. 19 . Rio de Janeiro, 2004, pp. 44-45. 42 - O Globo. Rio de Janeiro, 29/03/2004. 43 - REI S FILHO, Daniel Aarão . Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In REIS FILHO, D. A. ; RIOENTI, Marcelo & MOTIA, Rodrigo Patto. O 90lpe e a ditadura militar 40 8110S depois (1964-2004). São Paulo: EdUSC, 2004. pp. 38-9. 44 - RIOENTI, Marcelo. Resistência e mistificação da res istencia armada contra a ditadura: armadilhas para pesquisadores. In Id. ib., pp . 62 e 64 ..

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18 - Os trabalhadores e o golpe de 1964: 11m balanço da historiografia

da ordem do capital nos anos 1990 e na déca­da em curso. Pode ser interessante pensar tam­bém como é importante para certos setores in­telectuais, neste momento do governo Lula, absolutizarem a dimensão formal da democra­cia representativa e o caminho da moderação nas reivindicações populares - mesmo as rei­vindicações de reformas limitadas são perigo­sas e o único caminho é a paciência dos de bai­xo para que, através das urnas, do parlamento e das leis, se desperte a possibilidade de con­cessões leves e graduais dos de cima.

Não deixa de ser triste observar como, nes­te seu vôo revisionista, aCJbam por somar-se ao coro dos que, desde 1964 querem absolver os golpistas para condenar os atin,gidos pelo golpe. Assim, nesta versão, o golpe não se deu

para controlar os trabalhadores e garantir o pro­jeto empresarial, mas foi decorrência de uma intransigência mútua, senão de wna maior res­ponsabilidade "das esquerdas".

No fundo, é a matriz mesma de explicação da história que se coloca em questão. Não ape­nas se quer apagar, ou estigmatizar como inexistente (por descompromisso com wna de­mocracia modelar, de resto distante da realida­de política do Brasil na época) a resistência con­tra o golpe militar e a ditadura por parte das organizações da classe trabalhadora e de ou­tros setores sociais. Pretende-se mesmo afastar de vez o fantasma das classes e da luta de clas­ses como centro da explicação da trajetória dos homens no tempo. Mas, o espectro não se can­sa de rondar. _

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la de Classes -=-,

A história do golpe de 1964 possui vários aspectos que são abordados sob os mais variados pontos de vista. A questão

da relação entre acumulação capitalista e golpe de 64 já

recebeu alguns estudos mas sob perspectivas que deixam

de lado o essencial, isto é, o processo de luta de classes a

nível nacional e internacional. É desta perspectiva que

analisaremos esse fenômeno no presente artigo. Para isto,

discutiremos o desenvolvimento capitalista e os regimes de

acumulação que estão na sua base e as lutas de classes

nacionais e internacionais. Assim feito, apresentaremos

nossa hipótese de que foram as lutas dos trabalhadores, no

contexto de crise internacional de um regime de acumula­

ção e busca de aumento da taxa de exploração, que pro­

moveram o golpe de estado de 1964.

Acumulação Capitalista e ~olpe de 1964

Nildo Viana

Nildo Viana é Professor da Universidade Estadual de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB. E-mail: [email protected]

ra compreender a relação entre anunulação capitalista e gol­pe de 64, é necessário enten­der a dinâmica do capitalis­mo mundial do pós-Segunda Guerra Mundial e a inserção do Brasil nesse contexto. A periodização do capitalismo

proposta por Benakouche [1980], fundada nos regimes de acumulação, é uma contribuição fundamental paia tal.

Esse autor considera que as fases do capita­lismo são marcadas por diferentes regimes de acumulação: "A mudança de formas é uma das características do modo de produção capitalis­ta. De fato, os modos c as formas da acumula­ção do capital e, portanto, os modos de extra­ção da mais-valia e as formas que assumem as

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20 - ACII"w!açiio (.i./püalhlt/ f! Golfll! lle 6.J

re lações sociais (inclusive as relações salariais) mudam em função de evolução do capitali smo. E, se os modos e formas de acumulação de ca­pital mudam com o tempo, seus elementos de articu lação, tais como os modos de extração da mais-valia, as fonnas das re lações sociai s, as formas da es trutura de produção ou a hierar­qui zação d o s is tema produtivo nacional, os modos e as formas de organização do processo de trabalho, o nível e o tipo de desenvolvimen­to das forças produtivas, as formas do Estado, a estrutura social ou os modos e as formas da luta de classes, os tipos e as fo rmas de domina­ção nas relações econõmicas internacionais I ... ] evoluem Ou mudam em função do grau atingi ­d o pelo desenvolvimento do ca pitali smo." IBenakou che, 1980, p. 24].

A periodização de Benakouche funda-se nos regimes de acumulação, que são produtos da internacionalização dos ciclos do capital. Con­cordamos com a idéia de que o capitalismo atra­vessa várias fases que caracterizam diferentes reg imes de acumulação. No entanto, não con­sideramos esse processo como sendo caracteri­zado por uma evolução linear e s im sob uma dupla arti culação entre o que podemos deno­minar de desenvolvimento espontâneo do ca­pitalismo, por um lad o, e luta operária, por outro. No primeiro caso, temos o movimento do capital, is to é, a ação do capital expressando o predomírtio do trabalho morto sobre o traba­Ul0 vivo; no segW1do, temos o movimento ope­rário, isto é, a ação do trabalho vivo contra o trabalho morto. A concepção feticl1ista da ciên­cia econômica enxerga apenas o primeiro mo­mento, isto é, o trabalho morto, o desenvolvi­mento espontâneo do capital, deixado ao seu bel-prazer. Na verdade, is to pode ser expresso como luna luta de classes, embora nessa luta haja o predontinio do capital, o que reforça a concepção feti chista que não ultrapassa a apa­rência do fenômeno.

Assim, o desenvolvimento capitalista é mar­cado pela ação do capital e pela luta operária com a primazia do primeiro, na maior parte do tempo, mas sempre sob a resistência proletária e as irrupções revolucionárias que aba lam tal desenvolvimento. Assim, existe tuna tendência do desenvolvimento capita li sta, que é espontâ-

nea, desde que se pense na ação do capital, sem a irrupção do movimento operiÍrio para além de suas lutas co tidianas. Essas leses são impor­tantes para compreendermos que as mudanças de regime de acumulação não são apenas pro­duto da concentração e centrali zação do capi­tal, mas também resul tado da Juta operári a.

A passagem de um regime de acumulação para outro é produto das lu tas de classes, não sendo portanto resultado de mera ação do capi­tal. Essa passagem dá-se na percepção das mu­tações do capitalismo, enquan to estratégias do capital, para manter sua reprodução, e da ação proletária, no sentido de impedir a vo racidade exploradora deste último, ntun primeiro momen­to, e buscar sua abolição, em um segundo.

A partir destas considerações gerais, pode­mos iniciar uma análise do descnvo lvinlento capita li sta. A conceituação dos reg imes de acu­mulação torna-se necessá ri a. Para nós, um re­gime de acumu lação caracte ri za-se por uma determinada forma de organização do proces­so de trabalho - uma determinada estratégia do capital para ex tra ir mais-va lor e uma configu­ração estata l dada - que define, por um lado, a ação do Estado e sua fo rma de organização e, por outro, UI11a deterllli néJda articul ação das relações internacionais, ou seja, Ulll determina­do modo de exploração cap ita lis ta mundial.

Partindo desta defini ção inici;:li , podemos seguir a periodização de Sam ir Amin (1977) e Rabah Benakouche, para expor as fases do ca­pitalismo. A fase de surgimento do capitalismo é marcada pela acumulação pr imiti va de capi­tal, que fornece as bases da acumulação capita­lista propriamente dita. Com o processo histó­ri co, surge a fase de consolid ação e expansão do mesmo, que vai da revolução industri al até a metade do século :I 9, formando o regime de acumulação ex tensivo, fundad o na extração de mais-valor absoluto como elemento central da acumulação capita li s ta.

Este regime de acumu lação é marcado por uma alta taxa de explo raç30 e entra em crise com a ascensão das lu tas operárias que provo­cam a diminuição da jornada de trabalho e cul­mina com a Comuna de Pa ri s, em 1871 . A rea­ção do capita l assume a forma de reorganiza­ção do processo de traba lho, com a implanta-

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1I i.((fÍr;f1 ,f.: 1. ,,((1 fi e C l aHeç · 21

ção do tay lorismo, que se caracteri za por utili­za r um processo de racionalização da organi­zação do traba lho objetivando o aumento da extração de mais-va lo r rel ativo. Esse período é aba lado com as tentati vas de revolu ção, no iní­cio do século 20 (Rúss ia, em 1905 e 19]7; Ale­manha, no fina l da década de 10 e início da dé­cada de 20; na Hungria, em 1919; na Iti.Í lia, em 1920; etc) e cu lmina com as Guerras Mundiais, em 19]4-]8 e 1939-45.

A fase seguinte do capitalismo é constituída após a Segunda Guerra Mundial, com a hege­monia norte-ameri cana e com o fordismo, que utili za a tecnologia para JUlnentJr a extração de mais-valor rela tivo, combinado com O au­mento da exploração mundial, através da ex­pansão transnaciona l. Esse novo regime de acu­mulação, intensivo-ex tensivo começa a entra r em crise nos anos 1960, tentando se reproduzir mas acaba sendo substi tuído pelo atual regime de acumulação, o integra l.

O regime de acumu lação integral funda-se na reestruturação produtiva, no neolibcralismo e no neoimperia lismo, e busca aumentar a explo ra-

ção tanto a ruvel nacional quanto internacional, intens ificando simultaneamente a ex tração de mais-valor abso luto e mais-valor relativo.

Esses regimes de acumulação se caracteri­zam não apenas por determinadas formas de organização do processo de trabalho, mas tam­bém por fo rmas estata is e de relações interna­cionais. Por exemplo, o Estado I ibera l foi a for­ma estata l do regime de acumulação ex tensi­vo; o regime de acumul ação intensivo teve como forma estata l o Estado Iibera l-democrMi­co; o regime de acumulação intensivo-extensi­vo poss uiu como forma es ta ta l o Estado integracionis ta ("bem estar social", "interven­cion ista"); o regime de acumu lação integral, po r sua vez, adota o Es tado neoliberal.

As mutações dos regi mes de acumulação também determinam mudanças cultura is, so­ciais, entre outras. Devido aos objeti vos do pre­sente trabalho, deixaremos de lado as determi­nações de cada regime de acumulação, pa ra foca lizar apenas o que tem importância crucial para nossa análi se do golpe de 64, ou seja, o regime de acumulação intensivo-extensivo.

A crise do Regime de Acumulação Intensivo-Extensivo

O regime de acumulação intensivo-ex tensi­vo marca uma nova etapa da exploração

internacional. No início do sécu lo vinte, o re­sultado das lutas o perárias nos países imperia­listas determinou um recuo da classe capital is­ta no processo de exploração in terna, compen­sada pelo au mento da explo ração ex terna.

O fordismo expressou uma tentati va de au­mento de extração de mais-valor relati vo atra­vés do uso da tecnologia objeti vando aumen­tar a produ tividad e. No entanto, o uso da tecno logia avançada também significa cus tos mais a ltos, o que faz com que os ganhos não fossem tão e levados. Além d isso, dev ido ao aumento da composição orgâni ca do capital (uso crescente de tecnologia e forças produti ­vas; uso decrescente de força de trabalho, gera­dora de mais-va lor) e a conseqüente tendência decli nante da taxa de lucro, se lançou mão da estratégia de desv iar a acu mulação de cap ital para a p rodução de bens de consumo, em de­trimento de meios de produção.

Sem dúvida, a ex pansão tecnológica fo i ex­tremamente elevada, mas isto fo i propo rciona­do pela expansão da produ ção de bens de con­sumo - que aumenta o mercado consumidor de bens de produção. Caso o investimento não tivesse sido pri orita riamente desv iado para a produção de bens de consumo, a composição orgânica do capital seda mais elevada c a taxa de lu cro teri a caído ainda mais rapidamente.

A expansão da produ ção de bens de consu­mo produz a necess idade de ampliação do mer­cado consumidor, o que provoca a integração de camadas cada vez mais amplas do proletari ­ado ao cí rculo do consumo, gerando que alguns denominaram "sociedade de consumo".

O Estado integracionista visa amortecer os conflitos de classes, com sua po lítica de bem es ta r socia l e cooptação da burocracia sindical, e desviar os investimentos para seto res de con­sumo e serviços. Entretanto, isso não é sufi ci­ente pa ra a reprodução do cap itali smo nos pa­íses imperi alistas c por isso a intens ifi cação da

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22 - Acumulação CapiJali.fta e Golpe de 64

exploração internacional torna-se fundamental. O processo de desco lonização foi acompanha­do pela expansão transnacional como ponto forte da exploração mundial .

Neste contex to históri co, temos no capita­lismo subordinado uma forma de acumulação capitalista diferenciada. Esse é o caso do Bra­sil, que possuía uma acumulação capitalista subordinada. Nos países imperialistas, além da exploração inte rnacional, ternos o predomínio do capital nacional. No capitalismo subordina­do, temos a chamada "tríplice aliança", isto é, a associação entre capital estatal, capital nacio­nal e capital transnacional [Gorender, 19881.

A diferença entre a acumulação capitalista dos países imperiaJjs tas e a dos países subordi­nados encontra-se na transfe rência de mais-va­lor que aumenta o processo de acumu lação em uns e diminui em outros. O Estado e o capital nacional são aliados subordinados do capita­li smo impe ri a li s ta e, portanto, do capita l transnacional. Assim, a acumulação capitalista subordinada é mais lenta do que a acumulação dos p aíses imperialis tas, pois, no primeiro caso, temos uma parte da acumulação transferida para o ex te rior e, no segundo, um incremento da acumu lação de capital, dev ido à transferên­cia para o interior.

Essa situação faz do regime de acumulação nos paises capita lis tas subordinados um ele­mento propulsor da acumulação imperialista e ao mesmo tempo faz com que ele seja deficitá­rio e mais lento do que nos países imperialis­tas. Após a Segunda Guerra Mundial, a implan­tação do regime de acumulação intensivo-ex­tensivo nos países imperialis tas se fez com al­terações nos pa íses subordinados. No Brasil, mais especificamente, ocorreu um processo de reconversão capitalista, denominado por alguns autores como "modelo de substituição de im­portações", marcada pela expansão industrial e por uma forma subordinada de integracio­nismo, ou seja, o populismo. Desde Vargas, o populismo brasileiro realizou uma certa con­cessão ao movimento operário, tal como expres­so pe la CLT, além de outras ações e elementos ideológicos, cultu.rais, entre o utros.

O desenvolvimentismo foi o complemento do populismo e o Governo Juscelino Kubitschek

11956 - 1961J cumpriu o papel de incentivado ' do capital transnacional e da expan são ind"s­trial. Esse processo marcou a inserç50 do Brasil na divisão internacional do trabalho sob a for­ma do desenvolvimento subordinado, manten­do seu papel na engrenagem do ca pitalismo mundial. O denominado "modelo de substitui­ção de importações" fo i a expressão da cons­tante reconversão capitali sta, reproduzindo a subordinação mundial dos países de capitalis­mo retardatário, subordinação essa caracte riza­da pela modernização e reprodução da explo­ração internacional.

"As medidas adotadas em 1955 pelo gover­no de Juscelino Kubitschek redunda ram de fa to na anu lação das limitações que se impun.ham à p enetração do capital es trange iro no Brasil. Com base nos decretos gove rnamentais e n a Instrução nU 113, a Superintendência da Moeda e do Crédito - SUMOC - concedeu às compa­nhias estrangeiras o direito de leva rem ao Bra­si I equi pamento obsoleto.

O governo bras ile iro assumia o compromis­so de considerar novo esse equipamento, tomá­lo na qualidade de investimen to direto em di ­visas, como valor declarado pela empresa in­vestidora estrangeira, que dava direito a quais­quer vantagens: à isenção do imposto alfande­gário para a entrada no país, dos impostos fe­derais e locais durante vários anos, a uma taxa especial e vantajosa para a troca do cru zeiro por dólar para efeitos de remessa de lucro para o exterior e assim por diante." [Michin, 1973, p.75J.

A reconversão capitalista expressa a moder­ni zação subordinada. Nesta últi ma, se repro­duz a relação de explo ração internaciona l atra­vés de irradiação de mudanças dos países im­peri alistas para os países subordin ados, em for­ma retardatária e reproduzindo a subordinação. Um exemplo clássico é o da índ ia, que produ­zia e vendia algodão para a Inglaterra, compran­do tecidos da mesma. Posteriormente, a índia passou a produzir e vender tec idos e comprar máquinas para realizar esta produção e assim sucessivamente. [Emanuel; J981; Dowbor, ]987; Viana, 2000J

O populismo expressava uma forma subor­dinada de integração da classe o perária. No

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lIi slIi r;a & 1,lI ra tl (' CJnsH' .f - 23

entanto, no caso brasileiro, a integração da cl as­se operária e de outros seto res sociais sempre foi débil, pois, nesse caso, o processo de extra­ção de mais-valor era mais intenso, devido à transferência de mais-valor para o ex teri or. Além disso, as re lações de produção não-ca pi­ta listas ainda ex istentes tinham que se inserir na nova dinâmica do país no interi or do capi­ta li smo mundia l. Ass im sendo, desencadeou­se o acirramento das lutas de classes, que ge­rou o golpe de :1 964, caracteri zado, por um lado, pe la a ascensão das lutas sociais e, por outro, pe la crise do regime de acumulação intens ivo­ex tensivo.

Embora atinja todo o bloco imperialis ta, a cri se do regime de acumulação intensivo-ex ten­s ivo ocorre exemplarmente na g rande potência imperialista mundial, ou seja, nos Estados Uni­dos. Entre 1950 e 1957, a balança comerci al no r­te-americana apresentou um défi cit de dezesseis

bilhões de dólares, agravando-se essa situação a partir de 1958. IGranou, ]9741 A partir dos anos ] 960, inicia-se a tendência mundial de aumen­to dos preços e da inflação IBenako uche, ] 9811·

Certamente que esse processo é apenas a antecâmara do que virá a partir da segunda metade da década de 60 e na década de 70. IMande l, :1 990; Benakou che, 1981; GrilllOu, 19741 No entanto, essa cri se marca a necess i­dade do aumento da exploração inte rn ac ional, que começa a se r gerado nesse momento e se intens ifi ca co m a forma ção da Co mi ssão Tri latcra l, culminando com a impl antação do regime de acumulação integra l, a partir dos anos 80 IVi ana, 20031·

O processo inicial de crise dos Estados Un i­dos e em todo o mundo capitalista, teve g rande importância no desenvo lvimento da soc iedade brasileira, sendo determinação fWldamental do go lpe de 1964, como proporemos adiante.

As lutas Sociais no Brasil e a Acumulação Subordinada

Já no final dos anos 50, as lutas dos trabalha­dores no Bras il exp ressam um ques ti ona­

mento do Estado popu lis ta. O desenvo lv i­men tismo do Governo Kubitschek com a expan­são da in fra-estrutura e a atração de capita l es­trangeiro marcou um processo de desenvolvi­mento capitalista fundado no crescimento do capital transnacional e no aumento da explora­ção da fo rça de trabalho, ao lado de várias ou­tras mutações que s ignifi cavam W11 avanço do ca pita lismo no país.

A expansão ca pitali s ta promoveu um a politi zação das lutas pela terra, pois as relações de produção não-capitalis tas eram destruídas devido à va lori zação das terras, motivada pela cons trução de rodovias lMartins, :1 986; Dowbor, "19871 e va lo ri zação do açúcar. Es te processo gerou a expu lsão dos foreiros e vári os mov i­mentos contestado res no campo, ta l como as revoltas e li gas camponesas da segunda meta­de da década de 50 IMartins, 1986J. Também ocorreu uma ascensão das lutas estudanti s, que promoveu uma mobili zação maior do que a de períodos precedentes IPoerner, 19791.

O movimento operá rio também atravessou um período de mobili zação crescente. O movi-

mento grevista cresceu a partirdo final dos anos 50 e continuou se fortalecendo no iníci o da dé­cada seguinte. liA esca lada in flacionária leva a umiJ esca lada das greves. Ano após ano os re­cordes de horas perdidas são batidos.

Em 1958, destaca-se a paralisação po r 7 dias da marinha 111ercante em todo o país, C0l11 a par­ti cipação de centenas de milhares de marítimos. Malgrado a il egalidade da greve, JK acabo u concedendo à maioria das reivindicações. Nos transportes urban os, a greve dos canis do Rio de Jane iro, apoiada por fortes e vio lentas ma­nifestações es tudantis, também te rmina vitori­osa." ICastro, :1 980, p. 691.

Ai nda em 1958, o movimento o perári o ar­ran cou 53(},;) de aumento salarial do govern o JK, aumento co rro ído pela infl ação que em dez meses chegou <l oitenta por cento. "Em 1959 não somente as greves se intensificaranl, como a desesperação pel a contínua erosão dos salá ri ­os provocou a mult ip licação de manifes tações de rua com choques vio lentos com as fo rças po li ciais. Protestos con tra a alta dos preços se­guiam-se freqüentemente de pilhagens de a r­mazéns. Em vários casos as forças poli ciais uti ­liziJ ram armas de fogo ou biJionetiJs pariJ repri -

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24 · AculIlulação Capitalista e Golpe de 64

mir OS manifestantes, provocando ferimentos e a morte de dezenas destes". [Castro, 1980, p. 70]

O ano de 1960 foi marcado pela continuida­de da luta operári a. Em 1959, ocorreram 954 greves e, em 1960, um milhão e meio de traba­lhadores aderi ram ao movimento grevista, sen­do que a greve geral da cidade de Santos foi o momento mais fo rte dessas lutas. No fina l de 1960, aumentaram os confrontos entre o gover­no e os trabalhadores do setor ferroviário, ma­rítin10 e portuário.

A ampla mobilização continuou e, em 1962, várias g reves foram desencadeadas pelos aeroviários e es tivadores, juntamente com gre­ves parciais, o que leva o Governo Goulart 11961 - 1964] a conceder aumentos sa lariais. Em ou­tubro de 1962, setecentos mil trabalhadores en­tram em greve em São Paulo, obtendo aumen­tos sa lari ais. [Castro, 1980]. Assim, a ascensão das lutas 'operárias, bem como das lutas estu­danti s e camponesas, difi cultava a concreti­zação dos interesses da classe capitalista: o au­mento da taxa de exploração.

Por wn lado, o processo de ascensão das lu­tas sociais a temorizava as fo rças políti cas institucionais conservadoras e, por outro, pro­vocava a intensifi cação da aproximação dos setores popu li stas com a população, radica l i­zando na medida do poss ível o seu discurso.

A história do salário mínimo dos operários (excluindo outros setores sociais) aponta para uma lógica de aumento da exploração reveza­da com diminuição da mesmo, segund o a força de pressão dos trabalhadores.

"Pode-se perceber claramente três fases no comportamento do salário-mínimo real: a pri­meira, entre os anos 1944 e 1951, reduz pela metade o poder aquisitivo do salári o; a segun­da, entre os anos 1952 e 1957, mostra recupera­ções e declínios alternando-se na medida do poder políti co d os trabalhadores: é a fase do segu ndo Governo Vargas, que se prolonga a té o primeiro ano do Governo Kubitschek; a ter­ceira, iniciando-se no ano de 1958, é marcada pela deterioração do sa lário-mínimo real, numa tendência que se agrava pós-anos 64, com ape­nas um ano de reação, em 1961, que coincide com o in ício do Governo Goulart". [Olive ira, 1987, p. 51-52]

Assim, temos wna alta taxa de exploração que possui momentos de ascensão e queda. Esta alta taxa de exploração é algo constante na his­tória bras ileira, pois a exploraç50 visa susten­tar não somente a acumulação interna como também rea li za r trans ferên cia de mais-valor para o exterior.

A ascensão ou queda ocorre no interior de um contexto permanente de alta taxa de explo­ração. É necessá rio ressaltar isto paTa não se cair na ilusão es tatística que utili za a comparação de um dado período com outro sem apresentar o que significa o período que é ponto de parti-o da, isto é, que ele já tem embu tido dentro de si uma alta taxa de exploração. No entan to, a lguns autores, como Moraes, questionam a segw1da fase apontada por Oliveira, co locando que os ,úveis salariais são mais elevados do que este autor afi rma. [Moraes, 19911·

Sendo assim, seja como coloca Moraes, seja como coloca Oli veira, há um revezamento en­tre altos e baixos salGrios dependendo das lu­tas dos trabalhadores. Isto sign ifica que temos uma taxa de exploração que não cresce linear­mente e ainda encontra obstáculos [ta l comu no caso de 1961, citado por Ol ive ira].

A partir de 1961, há uma expans50 do pro­cesso inflacionário e do défi cit es tatal, come­çando as dificuldades no processo de acwnu­

' lação capitalista subordinada no Brasil. Antes de continuar, seria interessante ca racteri zaT essa acumulação subordinada, tendo em vis ta que alguns autores procuram dar res pos ta a essa questão. Para eles, o grande problema da acu­mulação capitalis ta no Brasil res id ia no proble­ma da real ização, pois o processo de acumula­ção tornaria necessá rio uma "terceira deman­da". Essa é a posição de, entre ou tros, TavaTes e de Salama, citado por Moraes. [Tavares, 1973; Moraes, 1991]

A terceira demanda seri a constituída pelas camadas médi as, consumidoras de bens de con­sumo duráve is. Essa tese pa rte de uma incompreensão da dinâmica da aCLLmulação capitalista, iso lando e tornando um setor de consumo centro da reprodução do capital. Na verdade, houve uma expansão da produção de bens duráveis, que teve como pr incipais con­sumidores as classes auxiliares da burguesia

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l/i .Ç (lír ill & LU/li (/(' C/tl.\'.{/'x • 25 I

("classes médias" ) que aumentaram quantita­tivamente. Porém, pa rte desse processo de acu ­mu lação era reve rtido pa ra os países imperi a­lis tas e essa expansão proporcionava o cresc i­mento, ainda que em menor medida, de outros seto res.

A tese complementar presente em Tava res é de que o g rande problema, ao lado da deman­da, foi o financiamento. "A inex istência de um volume adequado de investi mentos, capaz de assegura r a man utenção de uma alta taxa de expansão econônücél, não se relaciona es trita­mente com limi tações da capacidade produti ­va [ ... 1, mas s im com problemas relacionad os com a estrutura de de ma nda e com o financia ­mento". [Tavares, 1973, p. 168 1

Para essa tese, o problema da demanda é complementado pe lo problema da incapacida­de de fina nciame nto. Para Tavares e José Serra, co-autor do capí tulo em que a autora aborda a prob lem ática, o problema d a demanda é deri ­vado do alto grau de concentração de renda e da escassa capacidade aq uis iti va dos "grupos médios". A solu ção seri a mudar a compos ição da demanda em favo r das "camadas médi as" e a ltas, beneficiadas com a redistribuição da ren­da pessoa l. Ass im, ocorre ri a um processo de "compressão, até mesmo absoluta, das remu­nerações à m assa de traba lhadores menos qua­li ficados"- [Tavares, 1973, p. 1691

Neste contexto, comprometi a-se o financia­mento de novos investimentos pri vados. A re­lação exceden te-salários comprometia esse pro­cesso, já que a escalada inflacionária do perío­do anteri or proporcionava um amo rtecimento das "tensões sa lári os-lucros" e urna taxa ilusó­

ria de lucros, que proporcionou novos investi­mentos, mas que acabou perdendo a funciona­lid ade.

"Com o descontrole de seus mecani smos de propagação, a inflação se ace lerou, perdendo s ua funciona lidade; nem as a ltas ta xas de cres­cimento poderi am diminuí-Ia . A maio r so lida­riedade d os preços relati vos imped ia uma trans­ferência intersetorial dos custos, desmistifi cava os lucros ilusóri os, es trangulava fin ~l1lcc iramen­

te as empresas. O acelerado ritmo do aumento d os preços

levou à intensificação das pressões trabalhis-

tas, enquanto os sa lár ios seguiam de perto os preços, limitando, ass im, as poss ibilidades de redistribui ção forçada". ITavmes, 1973, p. 1691

Por sua vez, o invcs titnento es tatal estava comprometido pela relação gas tos-carga fiscal. Ass im, o problema da demanda era re forçado pelo problema d o investimento público e pri­vado, gerando as causas da crise d o início da década de 60.

Essa tese apresenta vár ios probl e mas. A ques tão da demanda ganha a importân cia atr i­buída devido ao fato de Tavares setoriali zar e autonomizar os elementos componentes da pro­dução. Nessa abordagem, o seto r de prod ução de bens duráveis é iso lado e autonomizado, ao contrário do que oco rre na realidade concreta .

Podemos di zer que, como propõe Tavares, o capital transnaciona l era o principal, mas 1150

único, produtor de bens duráveis, e que as clas­ses au xili ares da burgues ia eram seu principal mercad o consumid o r. No entanto, o consumo de ben s duráveis ta mbém e ra rea li zado pela classe dominante, inclusive com um poder aqu i­siti vo 111uito mais elevado, e, em menor grau, por setores das classes ex ploradas com melho­res condições financeiras.

É necessá rio lembrar que há diferentes tipos de ben s duráve is, com preços mais e menos acess íveis. Além di sso, para comprovar o pro­blema da demanda, seria necessá ri o demons­trar que houve uma diminuição quantitati va das classes auxil iares ou, então, uma queda d e seu nível de renda, o que Tavares não fez . No en­tanto, a relaç50 salarial aponta para uma distri ­buição de renda fa vo rável às classes auxi li ares em detrimento do proletariado.

"A relação entre os sa lá ri os médios d os bu­rocratas e o dos operári os é de 1; 18 em ]949 e 2,23 em 1969, pa ra o total da indús tria de trans­formação. Da Inesma maneira, a taxa de cresci­

mento do salár io médio dos buroc ra tas supera em mais de duas vezes c meia a dos operári os

em ·1949-58 e em quase quatro vezes no perío­d o ]958-69 (o índice do va lor abso luto do salá­rio médi o dos operários passa de 100 em 1949, a 136 em 1969, enquanto que o dos burocratas passa do índ ice ]05 para 320, no mesmo pe río­do)." [Moraes, 1991. p. 361.

Além di sso, O p rocesso de buroc rati zação

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26· AClIlIlulaçiio Capjttlli.~t(l e Gol/JC de 64

crescente faz parte da dinâmica do desenvol vi­mento capita li sta, o que determina aumento quantitativo das classes auxiliares da burgue­sia. Como Tavares não apresentou nenhuma informação sobre a diminuição quantitativa dessas classes, não existe comprovação para o cllamado "problema da demanda".

Por sua vez, ao contrário do que di z Tavares, o processo inflaci on6rio não beneficia os traba­lhadores, criando taxas ilusórias de lucro. Isso só ocorreria caso se comprovasse que os aumen­tos dos preços foranl inferio res aos aumentos sa lariais, o que é desmentido pelas informações ap resentadas por outros autores . [Oli veira, 19871 Assinl, o suposto problema de demanda revela-se uma hipó tese não comprovada e que possui muitas informações que a contradizem.

Por conseguinte, o problema do financia­mento privado é inexistente, pois as taxas de 'lucro do período não eram "ilusórias" e sim rea is. O financiamento estatal derivado da re-

. lação custos-carga fiscal também não recebeu comprovação. E mesmo que os investimentos estatais tenham diminuído no período posteri­or ao Governo Kubitschek, seria necessá ri o de­monstrar que tal diminuição foi s ignificativa e, ainda, que ela provocaria efeitos poderosos no processo de acumu lação.

O problema geral da acumulação capitalista subordinada é a convivência de uma alta taxa de exploração com a transferência de mais-va­lor. Isso proporciona, por um lado, uma acu-

. mulação mundial elevada e, por outro, uma acumulação naciona l limitada, já que parte da acumulação é enviada aos países imperiali stas.

O principal entrave é a dificuldade em au­mentar a já intensa taxa de exploração e não problemas de demanda e financiamento, em­born eles possam difi cultar a reprod ução da acumu lação em determinados contextos.

Uma outra tese explica a crise do início da década de 60, não como de realização, mas a par­tir das lutas dos trabalhadores. Na época, teri a ocorrido um aumento da taxa de exploração que deprimia relativamente o consumo, sobretudo de bens não-d uráveis - vestuário, alimentação, ca lçados, etc. - dos trabalhadores e dos setores mais empobrecidos da população. Esse fenô­meno era acompanhado pelo crescimento da

"classe média", consumidora de bens duráveis. [Oliveira, 1987]

A cri se teria s ido gerada pel o ro mpimento com do pacto populista e pela luta dos traba­lhadores: "A luta que se desencadeia e que pas­sa ao primeiro plano político se dá no coração das relações de produção.

Pensar que, nes tas cond ições, poder-se-iam manter os hori zontes do cálculo econômico, as projeções de investimentos e a capacidade do Estado de atuar med iando o conflito e manten­do o clima institucional es tável, é vo ltar ao economicisnlo: a in versão cai não porque não pudesse reali zar-se economica mente mas sim por que não poderi a reali za r-se institucional­mente." [Oliveira, 1987, p. 63J

Sem dúvida, a luta dos trabaUladores foi fun­damentai para o desencadeamento do golpe de 64 e para as dificuldades de reprodução do ca­pitaLismo bras ile iro no in íc io da década de 60. Porém, essa abordagem esquece a especifici­dade da acumulação capitalis ta no Brasil, que res ide em seu ca rá ter subordinado.

A luta dos trabalhadores difi cultava a inten­sificação da taxa de exploração e, ao mesmo tempo, atemorizava os setores nlais conserva­dores. No entanto, isso não era suficiente para explicar o gol pe de J 964.

A rlificuldade na acumulação capitalista bra­sileira do inJcio da década de sessenta está Li­gada, por um lado, ao seu caráter subordinado e, por outro, à luta dos trabaLhildores .

A acumulação subordinada exige uma super­exploração dos trabalhadores que se intensifi­caria natura lmente, caso não houvesse res istên­cia. Mas C0l110 a res istência ex iste €, naquele contexto histó ri co, tornou-se mais forte, o pro­cesso de acumulação encontrou dificuldade para prossegui r.

A grande ques tão é que, naquele período histórico, não apenns a aClIlllU lação subordina­da no Brasil atravessava d ificuldades, pois este processo era mundial, tal como colocamos an­teriormente.

Essa crise do regime de acumulação intensi­vo-extensivo provocava a necessidade de au­

mento da exploração em escala mundial, o que significava aumentar o processo de exploração sem alterar o regime de acumulação.

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lIi.çt ti r itl ...I.'- 1. 11 ((1 dt~ C /(I.u ·cs . 27

Assim, as lutas dos traba lhadores criavam um obstácu lo ao processo de intensifi cação da exploração necessári a, por um lado, à acu mu­lação subord inada brasileira e, por outro, à acu­mulação norte-ameri cana. Assim sendo, os se­tores conservadores, ou seja, o ca pi tal no rte­mnericano c transn3cional, a burguesia brasi­leira e suas classes auxiliares, etc., un iram-se para combater essa res is tência. Ass im o fazen­do, poss ibil itariam uma intensificação do pro­cesso de exploração nacional, como efetivamente ocorreu, nos anos pos teriores ao go lpe de 1964, e o crescimento da exploração internacional, que gerou, na década de setenta, a Co missão Tri latera l.

Des taque-se que a grande preocu pação da Comissão Trilateral e ra o controle internacio­nal, I Asmann, J 979] que procu ra, por um lado, il so lu ção dil crise do regime de ilcumulação no seu interi or c, por outro, ao mesmo tClnpo, já ilIlu nciavil elementos que seri ilm desenvolvidos no regime de ilcumulação poste ri or, ex pressil n­do, assim, um período de transição.

Não fo i sem razão a ampla participação dos norte-americanos no desencadeamento do gol­pe de 64. Ela era uma necess idade do capita li s­mo norte-americano em crise, que precisava aumentar a exploração internacionLlI para com­pensar suas di ficu ldades de reprodução.

Desta forma, o golpe de 1964 foi p roduto da ofensiva cilpitalis ta rea li zada pelas potências imperia lis tils, com des taque aos EUA, com o apoio da burguesia brasileira e de out ros seto­res, que conseguiu produzir um amplo aparato repress ivo e desa lojar do governo setores popu­li stas e reformistas que tinham dificuldades em atacar diretamente os trabalhadores e aumen­tar o processo de exploração.

Portanto, o discurso segundo o qual o golpe foi realizado para evitar a formação dc luna "re­pública s indica lis ta", para combate r o comunis­mo, para acabar com a corrupção, não passíl de pretex to visando justifi car e legitimar um pro­cesso intensivo de repressão que procurava possibilitar processo igualmente intensivo de ex ploração.

Tud o isso pa ra aumentar o processo de acu­mulação capita li sta no Bras il , a fim de sus ten­tar as necessidades da burguesia brnsilcira e ;] transferência de mais-valor ex igidas pe los p.lÍ­ses imperiali stas, principalmente pe los Estados Unidos. Em síntese, fo i a ascensão da luta ope­rá ri a e de outros setores socia is que promoveu a necessidade de trans ição da democracia bur­guesa para a ditad ura, pois apenas esta última poss ibilita ria a ampliação da taxa de explora­ção naquele contexto hi stóri co, O que e ra ne­cess idade vita l do capital no período. +

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flor/açries au 1·{/ IJiIllIi.\'IIIO fil/(lI/cl'iro .

Ensai os sobre a Economi:l Brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Zall:lr. 1t,l71 . VIANA. Ni ldo. C:lpital. espaçu e desigual ­dílJe. Boletim Go iano de Geogr,l fial UFG VoL 20, nll 112. Dez. 2000. VIANA, Nildo. 1:.:.\'/(1(/0, {/('lIIoc/'{u;;a l' ci­

dtldanitl . Rio de J:lIleiro: Achialllé. 2003.

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is lú ',1 & Lulól de

o último governo populi sta da história da república bras i­

leira foi marcado por fortes cr ises na esfera pol ítica.

Os anos em que João Gou lart ocupou a Presidência da

República, seja sob o molde parlamentarista (setembro

1961 /jane iro 1963). seja sob o presidencia lista (janeiro

1963/março 1964), se rão sempre lembrados como um

período no qual diversos sujeitos soc iais encontraram-se

envolvidos em uma ferre nha d isputa política pautada por

distintos projetos de nação, com co nsequências

" fratric idas" para a estabi lidade social do país.

A "Legalidade" do Golpe: o controle dos trabalhadores como condição

para o respeito às Leis!!)

Felipe Abranches Demier

Pclipc Abranches Demier é gr~dll ado em Histúria pela

Universidade Pederal do Rio de Janciro. Organizou (J

l ivro "A.,' (rflfls!Ol"/I/{/rt}es do PT e os mil/os da Esq/U'r­

t/{/ 1/0 amsi/".

m dos componentes d esta g rave crise social e política que que ati ngiu em d,eio o governo João Coulart. fer indo-o de morte, foi o embate entre dois dos seus m ais importantes sustentáculos: uma par-

cela significati va da oficialidade "legali sta" das Forças Armadas e o movimento s indical orga­nizado, principalmente suas entidades "para­Iclns", como u Cumando Gera l dos Traba! hu­do res (CCT), Fórum Sindi ca l de Debates (FSD), Pacto de Unidade e Ação (PUA) etc.

Criadas em desobed iência à leg is lação sin­dica l de 1946, estas en tidades não se encontra­va m, portanto, tuteladas pelo Min istério do Tra­ba lh o, como ex ig ia a es trutura s indi ca l co rporativista então v igente.

Os estudiosos do Governo João Goulart, ten­do sempre em mente o fim trágico do mesmo c

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)0 . A "Lcgalültule "do Golpe

sua substituição por uma ditadura militar atra­vés de um golpe, empenharam-se - e empe­nham-se - em apontar, de formas diferencia­das, as razões do fracasso do último governo populista brasileiro. Todavia, entendemos que nenhum deles se dedicou prio rita ri amente a esse conflito entre os dois alicerces de susten­tação do governo Jango, que acabaria por oca­s ionar o enfraquecimento do mesmo. Tentare­mos nes te artigo, de forma sintéti ca, di scutir essa cri se político-milita r que consideramos ftmdamental para os interessados em se debru­çar sobre a crise do regime popuJis ta, e em es­pecial, do governo Goulart.

A importância da chamada "corrente"(2) " le­galista" nas Forças Armadas enquanto vital ali­cerce do governo Jango é faci lmente perceptí­vel aos olhos dos que se detém sobre esse perí­odo. Bas ta n os remetermos ao episódio da pos­se do pres idente Goulart para concluirmos que esta se deveu em grande parte ao papel desem­pen.hado pelos militares "lega li stas" após a renúncia de jânio Quadros (25 de agosto de 1961), quando os três minis tros militares - o ge­neral Odílio Denys, o brigadeiro Grünn Moss e o almiran te Sílvio Heck - empenharam-se feroz­mente para impedir que Jango ascendesse ao posto de pres idente da República, apresentan­do um veto no Congresso Nacional a sua posse.

O empenho da oficialidade " legali sta", de sentido contrário aos dos ministros militares, somou-se ao de entidades como a União Naci­onal dos Estudantes (UNE), partidos de esquer­da, sindicatos, inteJectuais c arti stas e, mesmo,

setores políticos conservad ores, poss ibil itando ass im que João Goulart assumisse o luga r que lhe cabia constitucionalmente - embora Goulart tenha assumido sob um regime parlamenta ri s­ta, solução "encontrada" para a crise, que lhe re ti rou parte de seus poderes como chefe da nação.

Além deste aspecto que remete às "origens" do governo Goulart, a importância da oficial i-

dade "lega li s ta" pode se r indicada por urna colocação mais estrutural, do ponto de vista da análise Estado-sociedade. A o fi cialidade "le­galista" é, naturalmente, parcela integrante e constituti va das Forças Armadas. O papel das F.F.A .A. enquanto agente mantenedor da ordem política estabelec ida é notório ao longo da his­tória contemporânea mundial, sejam essas or­dens políticas basead as em d itad uras ou em democracias liberais. No caso do Brasil, a im­portância desse garanti dor da o rdem - ainda mais de uma pa rce la confi ável aos oLhos do chefe da nação, como era o caso da relação Goulart-"legaJ istas" - potencial iza-se enorme­mente, tendo em vis ta o número alto de tentati­vas gol pistas - fracassadas ou não - na nossa recente histó ria política -1945, 1954, 1955, 1956, 1959, ]961 e, finalmente, 1964.

A importância do mov imento sindical, atra­vés de suas enti dades "pma lelas", enquanto alicerce do governo Gou lart era também cruciaL Tal como fi zemos no caso da o fi cialidade "legalista", podemos nos remeter ao papel do movimento sindical no episód io d a crise da le­galidade em agosto/setembro de 1961. Através da constante palavra de o rdem "greve geral", importantes líd e res s indi ca is, como Dante Pelacani, Hércules Correia, Oswaldo Paclleco, Roberto Morena, constitu íram um Comando de Greve dos Trabalhadores, fazendo com que uma parcela substancial da classe traba lhadora se aglutinasse, em :1961, na "Campanha da lega­lidade" que objetivava a posse de jango. (3) No ano seguinte, d uran te o IV Encontro Sindical Nacional, o Comand o de Greve dos Trabalha­dores se transformaria no Comando Geral dos Trabalhadores (CGT),14) mais importante entida­de "paralela" do movimento s indica l brasileiro e principal inimigo da oficialidade "legalista".

Podemos afirmar que a base socia l mais fie l ao presidente Gou lart era o movi mento sindi­caL Isso se devia não só ao fato de os interesses "nacional -reformistas" do último período de

1 - Este artigo tem como base o capítulo ~""'legaHsmo na política bras ileira (1954 -1964): um breve histórico· de minha monografia de gra duação na UFRJ (finalizada em 2004) intitulada ~Soldados x Or~ rários: o general Peri Constant Bevilaqua no Comando do 11 Exército em São Paulo (1962·1963f, orientada pelo professor Renato lemos. 2 - PEIXOTO, Antônio Ca rlos . -Exército e Polít ir:a no Brasil. Uma crítica dos modelos de interpretação~.ln: ROUaUIÉ, Alain (coord.) Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record, s. d. , pp. 34-35. 3 - VICTOR, Mário. Cinco anos que abalaram o Brasil: de Jãnio Quadros ao Marechal Castelo Branco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 436. 4 - MAnOS, Marcelo Badaró. TrabalflOclores o sindl~ · .. t f1<; no Brasil. Rio de Janeiro: Vício de leitura, 2002 . p.SS.

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/J ÜltÍr itl & I , llla de Clq\'\'es - 31

Jango - "reformas de base" - "coincidirem" com os interesses das entidades" paralelas" - esses porém, de tom mais extremado - , mas também il própria trajetória do políti co João Goula rt. Devemos lembrar que, desde os tempos em que fo ra min istro do Trabalho de Getúli o Vargas (1953-1954), Jango já estabelecera boas relações com os s indicalistas loca lizados mais à esquer­da - li gados ao Partido Comunista do Brasi l -PCB -, estimulando inclus ive a formação de entidades "paralelas", como a União Geral dos Trabalhadores (UGT).!') Durante seu governo, Jango chegou a fazer decla rações do tipo: ''[. .. 1 procurei assegurar a liberdade a todos os tra­ba lhadores bras il ei ros [ ... ] p rocure i organ izar os s indicatos"!6\ : o "Comando Gera l dos Tra­billhadores é o organismo superior da classe tra­billhadora no Brasi l". (7) Essa re lação bastante p róx ima entre os quadros s indicais e o poder executivo foi chamada por Francisco Weffort de Uintimidade palilci,.na". (8)

o embate entre esses dois importantes sus­tentácu los do governo João Coulart contribuiu para o en fraquecimento das suas es trutu ras socia is e políticas de sustentação, já que os mi­litares "legalistas" não toleravam, em hipótese algu ma, a ex is tênóa e a pro li feração dessas entidades "para lelas", consideradas por eles COlno Ui legais" e "subversivas", nCln as cons­tantes greves provocadas por elas, qua li ficadas da mesma forma. Acred itamos que as alterações ocor ridas no s istema sindical brasileiro na pri­meira metade dos anos sessenta, dev id o ao surgimento s ignificativo de ent idades "pa ra le­las" - CGT, PUA, FSD etc. - e da estreita rela­ção que elas mantinllam com o governo Gou lil rt, cond uzi ram a uma mudança no sentid o po líti­co nas intervenções de pa rte da o fic ia li dade "legalista", que passaram então a possuírem um

cará ter "reacionárj o", diferentemente do qLle ocorrera em ] 954,1955 e 1961, como veremos a seguir.

"Legalistas" contra os golpes do imperialismo

Sem sombra de dúvida, a ideo logia "lega­lis ta"!') é mais complexil do que pode apa­

f(~ntar. Sabemos que, em última instância, ela pro tege e assegura juridicamente a proprieda­de, a "mais-valia", a reprodução do capita l c das relações sociai s de produção. !iO)

Todavia, reduzindo-se - ou amp liando-se -o escopo il nalíti co para a influência da ideolo­g ia "lega lista" no processo político brasi leiro, isto é, para a sua uti l ização em meio às dispu­tas entre classes, frações e subfrações soc ia is pela hegemonia do aparelho estatal, nos depa­ramos com situações hi s tóricas d istintas, em fun ção dos diversos inte resses políticos e soci­ais perseguidos pelos personagens que dela fi-

5 - VICTOR, Mário. Cinco tinos { . ..}. Oh. cit., p. 436. ; 6 - Idem, p. 486. ; 7 - Idem, p. 453

zeram uso. Certa vez, Francisco Weffort ind a­gou: "[ ... [ que outro modo haveri a para dec i­frar a estrutura real das ideo logias senão indo às prát icas po líticas que elas inspiram?"!]])

Caso s igamos o método científico proposto por Weffort com O intui to de "decifrar a estru­tura rea l" da ideologia "legalista", no que diz respeito a sua inse rção no cenário político bra­s ileiro, encontraremos, decerto, algumas d ifi ­cu ldades.

Tomand o o plano genérico da organização prod uti va - lato senso - da sociedade bras il ei­ra, sabemos que a ideologia "legali sta" funcio­nou sempre como mantcnedora da nlesn13, isto é, inspirou práticas po lít icas que assegura ram,

8 - WEFFORT, Francisco Oemocracia e movimento operário: algumas questões para a história do período 1945/ 1964 . in Revista de Cultura Contemporânca, ano I, nO 2, pp . 3·12 (2~ parte), janeiro de 1979, p. 4. 9 _ Tratamos legalismo como uma forma de ideologia, no sentido atribuído por Marx, mais precisamente quando se dedicou à análise concreta das relações capitalistas adiantadas (os GrU/ldrisscs e O c.1pital, mais especificamente ). Ver lARRAIN, Jorge. Ideologia. i/l BOnOMORE, Tom (Org.). Dicionário do pcnsamento marxista Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 19 88. pp 183 ·7. Ver também GOODRICH, Peter. Positivismo jurídico. in BOnOMORE, Tom & OUTHWAITE, Willian. OiciOllârio do pCnSamfJllto social do século XX Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p. 597. 10 - ALTHUSSER, louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado: notas para uma investigação . il/ ZIZEK, Slavoj (Org.). O mapa da ideo/ogitl. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. pp. 105·2. 11 - WEFFORT, Francisco . Democracia e movimento operário. (3~ parte). Ob.cit., p. 14 .

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32 · A "Legalülade"tllJ Golpe

de uma forma ou de outra, as relações de pro­dução do sistema capitali sta nacional. Entretan­to, no que diz respeito às formas politicas pe­las quais a produção capitalista se organizou a partir dos anos 50, a ideologia "legalista" de­monstrou que foi um importante elemento nas disputas que acabaram ora por manter (1954, 1955, 1961), ora por substituir (1 964), os regi­mes políticos que comandavam o Estado bur­guê, bra, il eiro. Passando os olhos por um pe­ríodo recente da história politi ca do país (1954-1964), percebemos que a "defesa da legalida­de" fo i utilizada por grupos socia is distintos, e. até mesmo antagônicos.

No episódio do suicídio de Getú lio Va rgas, em 24 de agosto de 1954, capítulo final de uma crise po lítica que afligiu seu segundo governo, oriunda das crescentes contradições entre as novas formas de acumulação imperi a lista e o regime populis ta nacional, a defesa da ordem lega lmente co nstituíd a adquiriu um caráter "progress ista", encampando a luta pela manu­tenção do modelo econômico industri al de tipo nacionalis ta con tra o afã go l pista dos grupos ligados mais d iretamente ao capital estrangei­ro, associados a Carlos Lacerda e aos militares organizados no "Movimento 24 de Agosto". É necessários ressaltarmos que quando utilizamos o termo "progressis ta", em h ipótese alglUna lhe atribu ím os uma conotação positiva, no que diz respeito aos anseios da classe trabalhadora por elnanci pação.

Entendemos por "progress istas" as forças nacionali stas e populistas de esquerda que, ine­gavelmente, nes te período, possuíram contra­dições com o imperi ali smo e suas tentati vas de go lpe. Todav ia, não podemos trata r "naciona­lismo" e "liberalismo" de fo rma antitéti ca, es­tabe lecendo uma "separação radi ca l" entre ambos, já que, em questões es truturais, de clas­se, ambos estiveram de braços bem dados.

Em meio a outro ambiente gol pista, a 11 de novembro de 1955, um mov imento militar, que ganhari a como nome a data do mesmo - "Mo­vimento 11 de Novembro" -, liderado pelo ma­rechal Henrique Teixeira Lo tt, então ministro da Guerra demiss ionári o, ocupou prédios pú-

blicos, jornais e estações de rádio com o fito de garantir o cumprimento das normas constitu­cionais. Acusando o então presidente Carlos Luz de estar Li gado aos gol pistas, mais uma vez liderados por Lacerda, que objeti vavam impe­dir a posse de Jusceli no Kubitschek e seu vice Goulart - eleitos em 3 de outubro do mesmo ano (1955) -, sob o pretexto de que ambos des­frutavam do apoio dos comu nistas, o "contra­golpe preventi vo", para usa rnl 0S a terminolo­gia de Lott e seus segu idores, dos "legalistas" fez com que no mesmo dia a Câmara do Depu­tados Federais transferisse, por 185 a 72 votos, o poder presidencial para o presidente do Se­nado, Nereu Ramos, possibilitando ass im que o resultado eleitora l acabasse por ser respeita­do e que JK e Jango chegassem a Presidência e Vice-Presidên cia, respectivamente, pouco tem­po depois. (12

)

Referindo-se ao fa to, aparen temente parado­xal, de que a preservação da ordem legal foi as­segurada a pa rtir de atitudes il egais, como cercamento de prédios públicos, SkicLmore es­creveu: "A intenção de Lott e ra ga rantir as re­gras do processo eleitoral, porém, a ironia de sua devoção à ' legalidade' repousava no fato de que esta mesma 'legalidade' teve deser garantida por um ato arbitrário de um golpe militar."(13)

Contudo, mais uma vez, uma intervenção de cunho "legaJis ta" encerrava uma feição #pro­gressis ta", defendia com armas a permanência do regime populis ta contra a ameaça gol pista dos antigetuli stas libera is. O in teressante é que o próprio JK em seu governo, at ravés de sua política econômica de abertura ao grande capi­tal internacional, forta leceria os mesmos seto­res burgueses que articulariam o go lpe final contra o populismo em 31 de março de 1964 -inviabilizando, inclusive, a provável candida­tura de J K à Presidência em ] 965.

No entan to, a in tervenç50 "lega lista" mais emblemáti ca a inda es tava por v ir. Em 25 de agosto de 1961, o recém-empossado presidente da República, Jâni o Quadros, renunciou, pro­vocando uma grave crise institucional, política e milita r no país. Os três ministros militares anunciaram seus vetos à posse do vice-presi-

12 - SKIDMORE, Thomas. De Getúlio Vargas a Castelo Branco 11 930- 1964). 12 ed . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. pp. 194-7. 13 - Id. ib. p. 197.

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lI i.I"l ,íri(/ & 1./lla de ClanH - 33 I

dente João Goulart, que se enco ntr~v~ na Re­pública Popular da Chi na, contrar iando assim o artigo 79 da Constitui ção Federal de ·1946.

Herdeiro do período mai s nacional ista de Vargas (]951-1954), no q ual fo ra minis tra do Trabalho, Jango e ra líder do Partido Trabalh is­ta Bras ileiro (PTB) e, pela segunda vez, vice­presidente da República . Pelos mili tares con­servadores, er(l identificildo C0 l110 U Ill naciona­lista radical próxinlo aos cOITIun islas.

Após o veto da cúpula militar à posse de Jango e a ameaç~ de prisão do líder trabalh is ta, caso João Goulart pusesse os pés no p,lÍs, os grupos soóais favo ráveis à manutenção dd or­

dem cons titu cional , isto é, à posse de Jango, org~n i zmam-se rap idamen te. Liderados pe lo então governador do Rio Grande do Sul, Leo­nel de Moura Brizo la, as forças "lega listas" o r­ganizaranl UIll movi lncnto que fi caria conheci­do como "Campanha da Lega lidade". Brizob , que havia ocu pado militarmente a Rád io Guaíba e a Rádio Far ro upi lha de Porto Alegre pa ra transmiti r mensagens em p ro l da posse de Gou la rt - a chamada "Cadeia da Lega li dade" chegou a contar com até "104 es tações de ródio entre gaúchas, pamnacnscs c ca tarinenscs (1 4) -

dispunha apenas da Brigada Mi lita r gaúcha e de seto res da popu lação civi I que se armavam deficientemente para o provável conflito, a lém dos apoios "lega li stas" dos governadores de Goiás, Mauro Borges, e do Paraná, Nei Braga.

No entanto, desobedecendo às ordens do ministro da Guerra Denys de pôr fim ao mov i­mento de res istência " lega lis ta", bombardean­do, "se nccessill:io", o Pal6cio PiríJt ini, o C0J11an­dante do 111 Exército, general Machado Lopes, nfirmando que só acataria ordens pJutadtls peln Constituição, aderiu ao mov imento "legalista", proporc ionando a este um sa lto qua li tativo. Devido ao apoio bélico do 111 Exército, a co rre­lação de forças en tre "lega li s tas" e go l p is tas sofreu substanciais alterações.

O gene ra l M~ch~do Lopes contav~ com O

~poio do genera l Oromar Osó rio, da ·1" Divisão de In fanta ria,do genera l Benjamin Ga lhardo, da 5" Região Mi li ta r sediada no Paranó, a lém do general Peri Cons tant Bev il aqua, então co-

14 - VICTOR, Mario. Cil/co anos {. .J. Ob. cit, p. 355. I? - ldclII, p. 403.

mandante da 3!! Div isão de Infantari a sed iLld3 em Santa Maria, no Rio Grande do Su l. Este estado transfo rmou-se assim no grande bastião da legal idade, e seria por lá que João Gou lart chegar ia ao Brasil para, no d ia 7 de setembro de 196] , ser empossado como pres id ente da República, porém, sob um regi me p~r1amen ta ­

ri sta ins tituído pela emend~ constituciona l n" 4, so lu ção aceita por Jango e pelos ministros militares para pôr fim à crise.(I;;)

O caráter " progress is ta" do mov imento ci­vil -milita r de agosto/setembro de 1961 foi cla­ro. Amplos setores da popu lação, mi lit~res, tra­balh~d o res, estud antes, intelectu ais e arti stas posicionaram-se contra ma is U1nél tentativa de der ru bada do populi smo po r pa rte do grande c~pital estrangei ro arti culado com li be rais bur­gueses, setores méd ios conse rvado res e milita­res go l pistas que, como não poderia deixar de ser, contavam com o apoio de Carlos L~ce rda,

cnt50 governad or dLl Guanabara. Como em 1954 e "1 955, a defesa da Constit·u i­

ç50 c da democracia contrariava, no nível das

estruturas de poder, os interesses da burgues ia "cosmo pol ita" br~s ile i r~. De ·1 954 a ] 96·1, os mo­vi mentos "lega li stas" possuíram, de forma ge­rai, um sentid o "progressista", pró-popu l i s t~,

o que possibi li tou a ex tensão desses governos de "colaboração de classes" e de ímpeto naciona­li sta - moderados ou radicais - por mais tempo.

Somente nos anos do governo João Goul art é que começamos a ass istir a lima d iv isão subs­

tanc ial nas forças " lega li st~s", no que di z res­peito ao sentid o político da utili zação de ban­deiras como "defesa da lega lidade" e "defesa da Constitu ição". este momento, nos depara­mos com notó ri os "legali s tas" passando a se ~grupa r com seto res po líticos que aspiravam ao fim do reg ime populi sta . No en tanto, antes de passarmos ~o lega lismo à época do governo João Goulart, devemos ressa ltar que, mesmo no período ]954-196 1, o ~ rtifício da "defesa da le­g~ li dade" fo i também utili zado pe los gru pos li gados ao capital est rangeiro e setores canse r­vL1dorcs em gcrnl.

An teri ormente, na v itóri a de Va rgas nas elei­ções de ]950, a Un ião DemocrMica Nac i o n ~1

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34 - A "Legalidade"do Golpe

(UDN), liderada pelo deputado Aliomar Bale­eiro e contando com o apoio do jovem jornalis­ta Lacerda, buscou impedir a posse do presi­dente eleito alegando que este não alcançara a maioria absoluta dos votos (50% + 1 voto), con­dição essa, segundo os partidários da UDN, necessária para obter uma vitóri a respaldada pela Consti tuição vigente. Todavia, segundo as normas constitucionais relativas ao processo eleitoral, bnstaria apenas a maioria s imples dos votos para que o candidato fosse declarado pre­sidente. Ou seja, o candida to que possuísse o maior número de votos entre os demais seria eleito presidente da República.

Cumprindo a Constituição, O Tribuna l Su­perior Elei tora l (TSE) proclamou em dezembro Getúl io Vargas presidente (que hav ia obtido 48,7% dos votos) e Café Filho vice-presidente.

A alta hierarquia militar comandada pelo ge­neral Canrobert Pereira da Costa, ministro da Guerra do presidente Eurico Gaspa r Dutra, rb pei tou normalmente a decisão do TSE.

Em outubro de 1955, quando da vitória de JK nas urnas, a UDN chegara a votar interna­mente o intuito de contestar o resu ltado eleito­ral, alegando mais lUll a vez o fato de o candi­dato mais votado não ter alcançado a maioria absol uta dos votos. No entanto, como este mé­todo gol pista, apresentado como uma "inter­pre tação fiel da Constituição", já se mostrara fracassado, a tentativa não foi levada à frente.'l')

Grada tivamente, as forças antigetulistas perdiam as esperanças de alcançar o poder por caminhos eleitorai s, is to é, a partir das normas constitu cionais vigentes. Contud o, o discurso "legalista", mesnlQ que cOlno fachada, conti­nuaria a ser a lardeado por estes setores con­se rvadores.

Até mesmo em Wll momento no qual a Cons­tituição não deixava dúvidas quanto às medi­das a serem adotadas, como no episódio da re­núncia do presidente Jânio Quadros, em agos­to de 1961- o artigo 79 da Constituição de 1946 deixava claro que o vice-presidente deveria as­sumir - , a tentativa gol pista dos grupos antige­tulistas liderad os pelos ministros militares ca l­cou-se no di scurso da "defesa da legalidade" pélfa justificar suas atitudes arbitrárias.

16 - SKIDMORE, l hamas. De Getúlio Vargas f. . .]. Ob. cit. , p. 189.

Em uma situação na qual a divisão entre "legal istas" e gol pistas estava claramente deli­mitada, tendo inclusive o movimento de resis­tência ao veto dos ministros militares garlhado o nome de "Campanha da Legalidade" e o con­junto de estações de rádio que defenderam a posse de Jango o nome de "CadeiG da Legali­dade", os construtores da empresa gol pista não se furtaram de invocar parâmetros legais que "legitimariam" suas posições. O então lninis­tro da Guerra, Odílio Denys, um dos expoentes do movimento "legal ista" de 11 de novembro de 1955, explicaria seu veto à posse de Jango recorrendo a artifícios "Ieg;:lis".

Considerando Jango uma anleaça aos pode­res constitucionais, devido ao caráter "subver­sivo" do líder do PTB, e pauti1l1 do-se no ar tigo 177 da Constituição que atribuía aos militares o papel de defensores desses poderes, Denys, a o :r de W'l verdadeiro mali:lba rismo teórico realizado quase vinte anos depo is do ocorrido, afirmou ter s ido a posição tomi:lda pelos minis­tros militares dotada de conteúdo "legal":

"Tudo se exp lica dentro dos mais rigorosos princípios da boa fé. É só raciocinar com clareza e ânimo patriótico. Com efeito, João Goulart, quer conduzindo o seu partido, o PTB, para a extrema-esquerda, quer admitindo infiltrações de notórios comunis tas nos seus quadros e no seu comando, ou, ainda, promovendo alianças partidárias com os esquerdistas de todas as ma­tizes, desde a esquerda moderada e democráti­ca até a esquerda extremadi:l e revolucionária, tornou-se presa dos seus aliados, que por certo dele se utili zar iam, como o fize ram depois, como instrumento de seus pl i:lnos de implanta­ção no Brasil de um Estado estrangeiro [ ... ].

Aliados aos com unistas, vinculado a compro­missos que assumiu com eles, Goulart tornou­se tão perigoso, do ponto e vista da vivência das instituições democráticas quantos os comw1Ís­tas mesmos, de ta l maneira que sua investidura na Presidência da Republici:l podia, na verda­de, ensejar a investidura de com unistas, por via oblíqua, nos altos postos do governo [ ... J.

Ora, é sabido que a Constituição Federal de 1946, no seu art. J41, § :13, proíbe a organiza­ção, o registro ou o fu ncionGmento de qualquer

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lIis t tida & I.I/Ia de Cla.f.H! .~ - 35

partido ou associação cujo o programa ou ação contrarie o regime democrático, e que o art. 58, da Lei n.2.550, de 25.7.1915, que alterou dispo­s ições do Código Eleitoral, o rdena que se ne­gue o registro a candidatos que, pública ou os­tensivamente, façam parte ou sejam adeptos de partido político cujo registro tenha s ido cassa­do com fundamento no art.141 § 13, da Consti­tuição Federal.

Vale dizer que, no Brasil, o Partido Comu­nista está fora da lei, e que a lei eleitoral não permite sequer o registro de candidato comu­nista a cargo eletivo. Pois bem, a Constituição e a lei ordi nária que expressam essas proibições não podem permitir que exerça qualquer cargo e leti vo o cidadão que, embora eleito como de­mocra ta r como não-comunista, veio a tornar-se comunista depois de investido no ca rgo para o qual foi eleito.

Se os tex tos lega is expressam uma proibição, é ev idente, dentro dos mais rudimentares prin­cípios ju rídicos, que a inobservância da norma proibitiva conduz à nulidade o ato proibitivo.

Em outras palavras: se João Gou lart decl i­nasse sua convicção comunis ta r sua vinculação ao Partido Com unista, não seri a admitido a candidatar-se à Vice-Presidência, e portanto não teria ensejo de suceder a Jânio Quadros. Assim também, embora eleito vice-presidente da Re­pública, embora na posse do direito de assu­mi r a Pres idência quando Jânio Q uadros renun­cia, imped ido estava e le de exercer o cargo, pelo fa to de haver-se, depo is de eleito, vincu lado aos comuJli stas e ao Partid o Comunista, tornando­se ele mesmo um comunista, o que ev idente­mente o tornou incompatibilizado para exercer a Presidência. I ... ]

E porque na Cons tituição não se encontra remédio para tal aberração jurídica, O normal é que as Fo rças Armadas, que se des tinam, como expressa o art. 177 da Constituição Federa l, a defender a Pátri a e a ga ranti r os deveres consti ­tucionais, a lei e a ordem, o normal é que as Forças Armadas, na emergência de um comu­nis ta se investir na Presidência da República, a isso se oponham, a isso desaconse lhem 1 ... 1.

Assim sendo, quando as Forças Armadas, em agosto de 1961 , desaconselharam a posse de Goulart na Presidência da República, nada mais fi zeram que cumprir o mandato cons titucional do artigo 177, já invocado, pois na verdade, nessa emergência, elas só fizeram defender a Pá­tria, garantir os poderes constitllcionais, a lei e a or­dem." 117)

Podemos perceber como até mesmo as ações mais inconstitucionais c ilegais tinham a neces­sidade de serem expostas pelos sujeitos promo­tores das mesmas enquanto atitudes legais e constitucionais. O primado da lei no plano ide­o lógico da sociedade contemporânea, e mais especificamente, no da política brasi leira da época, tal como hoje, constitui-se em algo facil­mente observável nes te caso, da mesma forma que a maleabilidade e a inconsistência da dou­trina "legalista", passível de ser utili zada conco­mitantemente por grupos políticos rivais, pode ser verificada sem muitas dificuldades.

É bom lembrarmos que essas utilizações do di scurso "legali sta" enquanto promotoras de atos gol pistas por parte do grande capital estran­geiro e dos setores conservadores nacionais até o inicio do governo Jango não ocuparam, senão, urna posição marginal dentro daquilo que po­deríamos chamar de "campo legalis ta", isto é, daqueles que, de alguma forma, "fundamenta­vam" suas atitudes na defesa da lei e da Consti­tui ção. De forma geral, os membros deste" cam­po" tiveram seus posicionamentos políticos li­gados a interesses "progressistas", nacionalistas, direcionados para a defesa d os governos populistas legalmente eleitos entre 1954-1961.

No caso das Forças Armadas, a ligação dos "legalistas" aos interesses "progress is tas" pode ser percebida nas composições das chapas para a disputa da presidêncb do Clube Militar, nas ali anças que se fo rmaram entre "lega lis tas" e nacionalistas com o fito de derrotar os antigetu­listas liberais e gol pistas. A composição da cha­pa que teve como candida to a presidente do Clube Militar o general Peri Bevi laqua, em 1962, é exemplar des ta organização das fo rças po líti ­cas no interi o r das Forças Armadas. I I'>

17 - DENYS, Odílio. o ciclo revolucionário brasilciro, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1993, pp . 79 -8 1. Grifo meu. 18 - Ver PEIXOTO, Antônio Carlos. ·0 clube militar e o confronto no seio das Forças Armadas (1945-1964)- in ROUQUIÉ. Alain (coord). Os partidos mililarcs no Brasil. Rio de Janeiro: Aecord, s. d., p. 108.

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r

36 - A "Legalidade"do Go/pe

Se, nas Forças Arm adas, a aliança entre "legalistas" e nacionalistas pode ser entendida pelo fato de que a primeira corrente estava es­truturalmente ligada, desde sua gênese, à se­gunda;!(9) no plano politico gera l - incluindo obviamente também os militares -, o sentido "progress ista" das intervenções "legalistas" explica-se pelo fato de que, em todos os mo­mentos de cr ise instituciona l do regime populista no país (1954, 1955, 1961), a Consti­tuição estivera ao lado dos nacionalistas e "pro­gressistas". Em 1954 e 1961, cabia, segundo as normas constitucionais vigentes, aos vice-pre-

sidentes, Café Filho e Coul art, respectivamen­te, assumirem a Presidência da República, en­quanto que em 1955, cabia ao candidato eleito, JK, tomar posse. Faz-se necessário destacar, para compreendermos o apoio dos "legalistas" aos nacionalistas nesses episód ios, que em nenhum desses momentos críticos da institucionalidade esteve colocado, substan tivamen te, como o se~ ria durante o governo Jango, uma ameaça por parte dos trabalh adores de extrapolação da es­trutura sindical corpora ti va e do papel submis­so que lhes era destinado pelas classes domi­nantes brasileiras.

"legalistas" e golpistas contra os trabalhado res

Seria somente durante o governo João Coulart que a relação entre "legalistas" e "nacio­

nalis tas" começaria a se modificar. Insatisfei­tos pela aprox imação do Poder Executivo com as organizações sind icais "paralelas", conside­radas ilega is, alguns representantes do "cam­po legalista" passaram a fazer sucessivas críti­cas ao governo federal e estabelecer relações mais cord iais com conhecidos conservadores gol pistas.

A proliferação de entidades sindicais que escapavam à tutela do Ministério do Trabalho, como o CCT, o PUA e o FSD, fez com que seto­res "legalistas", tradicionalmente identificados com posturas "progressis tas", considerassem que a ordem, a lei e a Constituição encontra­vam-se ameaçadas. Sendo o "legalismo progres­sista", mencionado anteriormente, identificado e compatível com a estrutura sindical corpo­rati vista, ou seja, com o controle legal da classe operária pelo Estado burguês, em um momen­to no qual as organizações sindicais dos traba­lhadores livravam-se, ainda que débil e incom­ple tamente, das amarras dessa estrutura, come­çava a se desnudar o conteúdo anti-operário do "legalismo" .

O chamado" Poder Sindical", adjetivado pe­los "legalistas" e conservadores como o "quar­to poder", numa referência aos três poderes da nação: Execu tivo, Legislativo e Judiciário, sur­g ia como um elemento novo e desestabilizador

19 - Id.lb. pp. 103-4.

da estrutura social vigente na mente de muitos que se consideravam "defensores da legalida­de". Segundo os "lega li stas", seri a através do "Poder Sindical" que Jango, insatisfeito com as posturas p olíticas dos outros poderes, em ·es­pecial, o Legislativo, tentaria levar a cabo as chamadas" reformas de base" .

Nesse contex to, ser "legal ista", no sentido de defender a Constituição vigente, significa­va, para os "legalistas", uma ruptura com o go­verno legalmente co nstituído. O governo COulart, segw1do os "defensores da lei", igno­rava a Carta Constitucional de ] 946, permitin­do a manifestação do proletariado por sobre a legislação sindical corporativista que o enges­sava. Em outras palav ras: enquanto os sindica­tos encontraran1-se sob o controle da estrutura corporativista de matriz fa sc ista, criada pelo Estado-Novo e preservada intacta pela Consti­tuição "liberal" de 1946 - o que demonstra sua utilidade e efiCiência para atender aos interes­ses da burguesia brasileira, mesmo sob um re­gime democrático -, a lei, a ordem e a tranqüi­lidade estavam assegu radas.

Todavia, a par tir do momento em que a clas­se trabalhadora começou a se organ izar mais livremente por intermédio das o rganizações "paralelas", funcionando estas como instru­mentos de mobilização política para a defesa dos interesses "nacional-reformistas" de Jango, a legalidade, para os "legalistas", encontrava-

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I/i .a,;rill & f . /lta (/e C (tlnes - 37

se fer ida de morte. Como bem sa lientou Peixo­to, ser "legalista" sob o governo )ango, no sen­tido de defender o governo lega lmente existen­te, "representava, até certo ponto, defender o nacio nali s mo rad ica l. Quando o governo Coulart começa a ex igir uma revisão dos qua­dros constitucionais e a exercer seu poder fa­zendo aprova r as "refo rmas de base", a defesa da lega l idade constitucional é transferida para as mãos dos antigos 'golpistas'. "(20)

Os antigos gol pistas, que mais uma vez v i­savam a de rrubada de um governo democrati ­camente elei to, tinham agora a seu lado a com­panhia de antigos "legal istas". Se no que diz respeito aos gol pistas, a bandeira da "defesa da lega lidade" significava apenas a manutenção de uma pa lav ra de ordem de grande apelo con tra os naciona li stas e populis tas de esquerda, no relat ivo aos "lega listas", ela não representava nada mais do que a agonia de setores sociais dian te do estado críti co do mecanismo de con­trole dos trabalhadores por parte do Estado que até então hav ia funcionado re lativamente bem.

A ofensiva do movimento s indical contra os limites impostos a sua a ti vidade pelas amarras da legis lação s indica l vigente deu-se com enor­me intensidade sob o govern o de )ango. As or­gan izações "paraJelas" passaram a ser atores de primeiro plano na cena política nacional, prota­go nizando di versos episódios nos quai s de­monstraram tanto sua ca pacidade de reagir aos ataq ues do empresa ri ado qu anto suas pers­pectivas programáticas referentes ao país.

Para Marcelo Badaró Mattos, estudioso do movimento s indica l brasi leiro, essa ofensiva do movimento sindi ca l s ignificava uma tentativa de superação, ainda que de forma incomple ta, da estrutura sindical co rpora ti va: "A força pei­I íti ca, a trajetóri a g revista ascendente e o cres­ci mento no nível de mobili zação a lcançado pe lo s indicalismo entre 1955 e 1964 expli cam-se, em grande parte, pelo surgimen to de orga ni zações para lela ao s indica li smo oficial. Organizações paralelas de base (como as comissões sind ica is por empresa), inte rs indica is (como os pactos e

20 - ldelll, p. 109. 21 - MATTOS. Marcelo Badaró. Trabalhadores {...}. Ob. cit.. p. 60

as comissões regionais), ou de cúpula (como O

CGT), que representavam a tentativa de criar canais de mobilização para além dos limües da es trutura s indica l montada pelo Estado nas décadas de 30 e 40." (21)

Neste contex to, as greves adquiriram uma importân cia fundam ental enqu a nto pa pel conturbado r da ordem soci al. Constantes no governo )ango, assumiam um caráte r cada vez mais polít ico e menos "economicis ta".(22) Fo­mentadas em sua maioria pelas o rganizações "paralelas", as greves serviram de instrumen­tos políticos de agitação por parte dos "na cio­nal-rcformistasU e comunistas em vários mo­mentos críticos da institucional idade bras ilei­ra, como na troca de ministéri os e na polêmica criada em função da data do plebiscito. Em ju­lho de 1962, o movimento s indical combati vo, tendo à frente o CCT, construiu uma sign ifica­tiva pa ralisação dos trabalhadores contra a pos­se d o prime iro-mini s tro Auro de Moura Andrade, político conservador do Partido So­cial Democrático (PSD) e então pres idente do Senado. (23)

A mobili zação organizada pelo CCT foi um dos componen tes da crise política que fez com que Auro Andrade apresentasse, em menos de 48 horas, sua renúncia ao presidente Goulart. Em setembro do mesmo ano, uma greve geral foi convocada pelo CCT com fito de press ionar o Congresso para que o pleb isci to que decidi­ria sobre a continuidade do regime pmlamen­tar fosse rea li zado em outubro de 1962, como queri a Coulart. Inicialmelite, o plebiscito esta­va marcado para 1965, todavi~ )ango almejava realizá-lo ainda em 1962, o que foi v isto pelos conservadores como uma tentativa de go lpe.

O general Jair Dantas Ribeiro, comandan te do 1\1 Exército, sediado em Porto Alegre, telegra­fou ao ministro da Cu erra, general Nelson de Melo, av isando-o que não poderi a conte r o povo do Ri o Grande do Sul caso o plebiscito não fos­se rea li zado até outubro de 1962. Após uma sé­ria ameaça à ordem ins titucional do país devido às pressões vi ndas da esquerda e da direita, o

22 - WEFFORT. F. C. Os sindicatos na política: Brasil: 1954-1964. in Ensaios de Opinião, 1978, pp . 18-27, p. 26. 23 - Ver MAnOS, M. Badaró. Trabalhadoms I .. ,], Ob. cit., p. 59.

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38 - A "Legalidade"do Golpe

plebiscito realizou-se em 6 de janeiro de 1963, restabelecendo o regime presidencialista. (24)

A interferência rotineira na vida política do país por parte dos grevistas contribuiu para o aumento do temor, bastante difundido nos meios militares, de que ]ango, tal como fizera Perón na Argentina, poderia estar construindo uma "República Sindicalista" na qual os sindi­catos comporiam o alicerce central do governo em detrimento das Forças Armadas. Este temor, destacado por Skidmore(25) e Campos Coelho,(26) entre tantos outros autores, encontrava-se pre­sente nas Forças Armadas desde o segundo governo Vargas, no qual ]ango fora ministro do Trabalho, e crescera consideravelmente duran­te o governo Gou lart.

A experiência revolucionária cubana de 1959 constituiu-se em mais um elemento para o au­mento do receio por parte dos militares, entre eles os "legal istas", de serem desalojados de seu papel na sociedade. Esse medo por parte de al­guns setores das Forças Armadas de serem subs­tituídas por milícias operárias, tal como ocor­rera em Cuba, já se en contrava expresso no "Manifesto à nação" dos ministros militares em agosto de 1961: "Na Presidência da República, em regime que atri bl.li ampla autoridade e po­der pessoal ao Chefe de Governo, o Sr. João GouJart constituir-se-á, sem dúvida alguma, no mais evidente incentivo a todos aqueles que desejam ver o País mergu lhado na anarquia, na luta civil. As próprias Forças Armadas, infil­tradas e domesticadas, transformar-se-iam, como tem acontecido noutros países, em sim­ples milícias comunistas". (27)

Parecendo aterrorizados com o papel desem­penhado pelas orgarLizações sindicais "parale­las", suas greves e sua íntima ligação com o Poder Executivo, tradicionais "lega listas" come­çaram a passar para o campo dos críticos aos governos populis tas, entretanto, carregando nos braços, como não poderia deixar de ser, a Carta Constitucional de 1946.

o epicentro desse conflito entre "legalistas" e sindicalistas deu-se em São Paulo nos anos em que o general "legalista" Peri Constant Bevilaqua ocupou o Comando do II Exército (1962-1963), quando ocorreram violentos <:lto-,

ques entre as tro pas federa is paulistas e as or­ganizações sindicais. Defensor ardoroso da posse de ]ango na crise sucessória de 1961, Perl Bevilaqua assumiu o 11 Exército, em setembro de 1962, mal visto pelos setores conservadores pauli stas. Todavi a, invocando a "ilegalidade'" das organizações inters indicais que escapavam ao controle do Ministério do Trabalho, aproxi­mou-se imediatamente da burguesia industrial paulista, do governador Ademar de Barros e dos setores anticomun istas d o estado.

O general "legalista" fez declarações e bai­xou notas de instrução aos seus subordinados condenando o CGT, o PUA, o FSD e demais enti­dades sindica is, dlamadas por ele de "ajunta­mentos, il ega is e espúrios, serpentários de peçonhentos inimigos da Democracia, traido­res da consciência democrática". (28)

Com a repressão militar contínua do 11 Exér­cito sobre as mov imentações operárias, com destaque para as greves, Bevilaqua caiu nas graças das classes dominantes e dos setores gol pistas das Forças Armadas. Por conta de sua Nota de Instrução n" 7, que teve por fito atacar o levante dos sargentos em Brasil ia, ocasiona­do por acórdão do Supremo Tribunal Federal que confirmava a inelegibilidade dos mesmos, apoiado pelo CCT, Bev ilaqua recebeu uma quantidade infindável de congratulações por intermédio de cartas, telegramas e visitas ao II Exército. Industriai s, como José Ermirio de Moraes (FI ESP), pol íti cos, como A rmando Fal­cão, e militares, como Eur ico Gaspar Dutra,

. Álvaro Fiúza de Castro, Antõnio Carlos da Sil­va Murici, João Batista Figueiredo e Augusto Magessi, seu antigo adversário nas eleições para o Clube Militar, foram alguns dos que se soli­darizaram com Bevilaqua.

24 - Ver SKIDMOAE, Thamas. De Getúlio Vargas f. . .j. Ob.cit. pp. 271 -272 . 25 - SKIDMORE. lhamas. De Getúlio Vargas [...] Ob.cit. p. 257. 26 - COelHO, Edmundo Campos. Em busca de identidade: o exército e a politica na sociedade brasileira. Rio de Jane iro: Fo re nse Universitária. 1976. pp. 138-140. 27 - Ver VICTOR, Mário. Cinco anos { ... }. Ob. cit., p. 348. 28 - Nota de Instrução n07. baixada por Bevilaqua em 15 de setembro de 1963. Arquivo Peri Constant Bevilaqua, depos itado no Museu Casa de Benjamin Constant (1PHANI, localizado no Aio de Janeiro.

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lI i.l'l/írill & LIIllI de C/unes · 39 I

Considerando-o um "traidor", o movimen­to sindical exigiu de Goulart seu afastamento do Comando do 11 Exército, o que acabou por conseguir em dezembro de J 963, dando uma clara demonstração do peso pol ítico que pos­su ía no cenári o político nacional. A inflexão política do general Bevilaqua nos reve la muito sobre o desenvolvimento da prótica "legalista" ao longo dos momentos críti cos do regime de­mocrático instaurado em 1946.

Sua "virada" política é sintomáti ca da "v ira­da" do legali smo nos anos do governo Goulart. De combatente da legalidade em 196J, lado a lad o com o movimento sindical, passou, em pouco tempo, a inimigo intransigente dos tra­ba lhadores organizados, cerrando fi leiras com notórios gol pistas traves tidos de "legalistas".

O agrupamento destes últimos com figuras como Bevi laq ua é demonstrativo de que o an­seio de liberdade política e organizativa dos tra­balhadores brasileiros foi capaz de provocar al­terações s ignifica tivas no jogo político nacio­nal, fazendo com que os inimigos de ontem se tornassem os am igos de hoje.

Parte significa tiva dos "legal istas" não mais se chocava com os antivarguistas, liberais bur­gueses, setores conservadores e go lpistas em ge ral, mas s im, com as organ izações sindi cais "paralelas" c o governo "nacional-reformista" que lhes dava suporte. Es te arco de alianças em

que se viram envolvidos os "legalistas", tal como as conseqüências concretas acarretadas por este nos destinos do regime populista bra­sile iro, forneceram ao lega lis mo um sentid o político "reacionário" nos anos Goulart.

Acerca di sto, René Dreifuss afirmou: "Os políticos não chegaram a rejeitar as regras do pacto populista que proporcionava o terreno no qual eles existiam, mas condenavam o governo por ter inutilizado a ação política de rotinização econcil iação dos partidos ao permitir queas das­ses trabaUladoras fossem mobilizadas além dos seus métodos trad icionais de controle.

A radicali zação da cri se, isto é, sua transfor­mação em uma crise de domínio, provocou sig­nificativas mudanças no un iverso ideológ ico das Forças Armadas em direção a uma atitude intervencionis ta respondendo a di spos ições constitucionais e, conseqüentemente, dent ro do que era considerado um marco ' legal'.

O abandono de pos ições leais ao gove rn o e ao próprio pres idente por parte dos oficiais militares, bem como a genera li zação da atitu­de intervencionista dentro dos altos e médios escalões, dependiam de vá ri os fatOl·es [ ... Iuma grande parcela dos militares sent ia que o go­ve rno deixara de se comportar adequadamen­te em termos constitucionais, justificando sua própria intervenção como sendo "dentro dos limites da lei". I")

... Aos inimigos a lei

No caso da participação política dos "lega­listas" dUril nte o gove rn o João Goulart,

não se tratou mais sonlcntc de figu ras claramen­te identificadas com o capita l estrangeiro e pro­postas políticas conservadoras fazend o uso da bandeira da "defesa da legalidade" para alcan­ça r fins políticos e econômi cos previamente de­terminados, e s im, de renomados "lega li s tas" que, aterro ri zados pelo avanço político e organi­za tivo dos trabalhadores, passa ram a chocar-se com um governo populista de cunho "nacio­nal-rcformi stj)" que, de ccrti] forma, perm itia este avanço.

A defesa dos códigos jurídicos significava,

para os adeptos do legali smo, um fim em si mesmo, fornecendo as suas práticas políticas -referenciadas única c exclusivamente em lUllél

defesa intransigente das normas constitucionais - um aspecto tautológico. No caso de Bevilaqua, fora ass im, em J961, na "Campanha da Lega li ­dade", e ass inl fora de novo nos anos em que ocupara o Comando do 11 Exército.

A tentativa dos ministros militares de evi tar a posse de Jango em 1961 era, para Bevilaqua, por exemplo, tão absu rda e incons titucional quanto a ex istência de entidades como o CGT e as greves provocadas por elas.

Sem parecer importar-se com quem ganha-

29 - DREIFUSS, René. 1964: A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981 . p. 142.

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40· A "LegaJiJade"do Golpe

ria ou perderia com essa defesa inconteste da ordem legal vigente, parcela significati va da oficialidade "legalista" confrontou-se com um importante sustentáculo do governo Cou lart, o movimento sindical e suas organizações "pa­ralelas", atacando-o com os porretes da lei.

Este embate teria como resultado a "deser­ção" do campo governista de um importante contingente de militares "legalistas", que em um primeiro momento, por questões legais, eram favoráveis a j ango.

O tão falado "dispositivo militar" de jango, esperança de muitos reformistas da esquerda, mostrara-se sem nenhuma consistência. Enfra­quecido militar e politicamente, Coulart pare­cia contar somente com o "Poder Sindical", poder este que se mostraria mais fraco do que os próprios militares "legalistas" imaginavam.

Diferentemente de 1954, 1955 e 1961, a atua­ção dos "legalistas", ou pelo men os de parte substancia l destes, não mais corroborou a ma­nutenção de um governo de "colaboração de classes", populista. Seus aliados durante o go­verno jango não foram os mesmos de en tão, isto é, nacionalistas e até mesmo comunistas - refi­ro-me ao PCB, partido que nos momentos críti­cos da legalidade de 1954 a 1961 cerrou fileiras com nacional is tas e "legalistas", com o objeti­vo de que a ordem constitucional fosse preser­vada. Liberais, militares anti-varguis tas e de­mais porta-vozes do imperialismo, grupos es­ses que finalmente em 1964 sairianl vitoriosos, constavam agora na lis ta dos "companheiros de viagem" dos "legalis tas".

A participação política dos militares "lega­lis tas" nos anos 1962-1964 encerrou um caráter indubitavelmente reacionário: proporcionou o enfraquecimento de um governo democrático e nacionalista e sua substituição por outro de cunho econômico liberal, favoráve l ao capital estrangeiro e politicamente ditatorial.

Com efeito, por mais que as práti cas políti­cas dos adeptos do legali smo aparentem, em um primeiro momento, ser frutos da consciên­cia "li vre" de sujeitos que decidem sobre suas ações independentemente das condições estru­turais e conjunturais da sociedade, sabemos que as verdadeiras motivações destas práticas polí­ticas - e de quaisquer outras - podem ser en-

contradas nas cond ições objetivas da socieda­de, ou seja, no patamar em que se encontra, em determinado momento, a luta entre as classese frações de classe pelo poder do Estado.

O processo de "inflexão" sofrido pelo "cam­po legalista", isto é, a sua passagem a uma posi­ção reacionária durante o governo João Coulart, explica-se, objetivamente, pela correlação de for­ça entre as classes sociais no Brasil a partir dos anos sessenta, principa lmente no que tange ao fortalecimento da classe trabaUladora e sua trans­formação em ator político de maior peso, aspec­to que impulsionou um enorme temor subjetivo nas classes dominantes brasileiras.

A autonomia organizativa d a classe trabalha­dora, expressa pela construção das entidades "paralelas", como o CCT, constituiu-se em fa­tor substancial para a composição do novo qua­dro político no país. Associa-se a isso, o fato de que a classe trabalhadora organizada passava a servir de importante instmmento político para os interesses "reform istas" do populismo de Coulart, populismo que, enquanto modelo eco­nômico, político e social, lutava ingloria-men­te contra interesses de parcela significativa da burgues ia brasileira. A estrutura política repu­blicana bras ileira não poderia suportar a classe trabalhadora livre dos grilhões d a estrutura corporativista sindical criada por Vargas.

A "defesa da Consti tuição" foi utilizada pe­los "legalistas" - t50 confi áveis aos olhos da esquerda reformista - contra um governo legal­mente consti tuído, demonstrando assim que o controle da classe trabalhadora era condição ne­cessária para o respeito às le is. •

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UisllÍr ia & Lula de Classes - 43 1

Buscaremos neste artigo") apontar elementos sobre as re la-, ções entre a grande imprensa brasilei ra e a ditadura mi litar.

Esse fo i um momento de co nso lidação de uma tendência no

jorna lismo: a dos padrões norte-america nos que se vi ncula à

progressiva dependência do capital exte rno.

Fo i estabelec ido um " padrão de qua lidade", fazendo com que

o próprio trabalho jorna lístico se tornasse subm isso aos

interesses dos veículos de comun icação .

Imprensa e Ditadura Militar padrões de qualidade e construção de memória

Carla Luciana Silva

Carla Luci;lIw Si lvo\ é Professora do Curso de H istória da

Universidade Estadual do Oeste do Paran;í, Campus de M,ll'c(;/lill Candido Rondoll . É doutora em Hi stória pela

Universidade Fl uminense. carlal ss ilva @uol .com.br.

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fato de que os principa is veícu los da imprensa brasileros foram censurad os na di­tadu ra não implica e m que eles não tenham de diferentes formas apoia­do e legi timad o o regi ­me. Além disso, rcescrc--creveram sua versão sobre sua própria atuação

no proccsso, querendo se mos trar como críti ­cos da d itadura. No caso de Veja, a rcv ista tcm investido ainda em construir uma nlemória so­brc o go lpc que procura ame-nizá-Io, banalizá­lo c justificá-lo.

Um modelo de imprensa

U m marco histó ri co na imp rensa brasile ira é o pcríodo dos anos 1950, que possui dois

aspectos fundamenta is: a entrada de empresas Illu ltinacionais c do ciJ pita l es trangeiro, e as conseqüentes influências d os padrões norte­americanos de jo rna l ismo.

Naquela década, "o modelo norte-america­no se implantou no jornalismo nacional, pro­vocando n50 só a modernização das empresas e dos tex tos, mas também a profissionalização

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F"44~=- ~~~~~~~~~~~~~~~~/~"=,p=n=,,=sa~e ~D~~=,d~,,~ro~~~'~il~üa:r~~~~~~~~~~~~~~~~~=

dos jo rna li s tas e a cons titui ção de tod o um ideá rio sobre o que e ra o jornalismo e qual era a sua função social"P)

Com as reformas oco rridas nesse pe ríodo, demarca-se "a passagem do jornalismo po líti ­co-li terári o pa ra o jornalismo in fo rmati vo",!') o que se dá sob os parâmetros norte-a meri canos. A questão maior que estava em jogo e ra que "J

imprensa deixa de ser defin ida como um espa­ço do comentári o, d" o pinião e da experimen­tação esti I ística e começa a ser pensada como

I . d d " (5) um ugar neu tro, 111 epen ente. Talvez melh or seria d izermos q ue o pad rão

da suposta neu tra lidade passa a ser v isto como moderno, e to rna-se modelo para a im prensa em gera l buscando-se cons titui r como g rande empresa e empregadora de jormJ!is tas profissi­onais mas isso acaba abri ndo campo para sua a tuação pa rti dá ri a. Ao mesmo tempo, essas mudanças tornam as empresas jorn alísti cas pro­gress ivamente dependen tes do capita l ex terno.

Não se pode di zer que anterio rmente os jor­nais não possuíam víncul os com o capita l. Mas, o que os caracterizava era o vínculo à socieda­

de po lítica, sem preju ízo de sua ação de classe. O u seja, eram jo rnais ligados expl icitamente a partidos ou grupos políticos. A partir daqu i, o d iscurso d e que seria "info rmat·ivo" pe rmitiria ocultar sua ação partidária concreta_

As influências das concepções empresar ia is na imprensa brasileira passam a ser muito for­tes e incentivadas não apenas pelos jornais bra­s il eiros, mas também po r ó rgãos da imprensa norte-americana, que pagavam cursos para que jorna li s tas bras il eiros fossem em suas sedes conhecer sua fo rma de prod uzir jo rnal is mo, inclus ive o ferecend o bo lsas de es tud os para jorna listas brasileiros(6)

Essas influências permitiam oculta r a organ i­cidade da imprensa. Se o modelo anterior "de opinião" seri a relegado ao passado, o jornal esta ria livre para se co locar como "uma empre-

sa" . Isso implico u em criar a aparência de obje-­tiv idade e neu tra lidade, partindo da desvincu­lação d ire ta com a sociedade p o lítica, mas fi­cando l ivre pa ra agir partidariamente no senti­do de classe, embora os jorna is busquem sem­pre ocultar essa sua face_

A desvincu lação fo rmal de um partido polí­ti co atende exa tamente a esse inte resse, pois o jornal não de ixa de ser portado r de "opiniões", mas pode ass im di zer-se "independente".

O caráter empresar ial e ideológico do mode-­lo norte-americano é ev idenciad o por Nelson Werneck Sod ré, que conclui po r uma crise da imprensa, naquele período: "Na medida em que os monopólios norte-americanos se instalam e se expandem no Brasil, têm a necessidade, tam­bém, de estabe lecer, aqui, o contro le da opinião: esse controle deriva da penetração daqueles monopólios. O imperi a lismo, depois de domi­nar o mercado de coisas materiais, p rocura do­mina r o mercado da opinião e, ass im, depois que se ins tala, ins tala a sua imprensa_ E come-­ça essa imprensa a di fundir que ' a solução dos nossos problemas está nos Es tad os Unidos",. (1)

Não po r acaso, os exemplos dessa expansão citados po r Sod ré são as revis tas de histórias em quad rinho da ed itora Abril e a rev is ta Reali­

dade, que são a po rta de entrada desse modelo de fragmentação ed itoria l e de dominio ideoló­g ico. J. S. Fa ro vê também vá rios as pectos posi­tivos no lançamento des ta revis ta, bem como de todo esse processo em curso de profissiona­li zação. Para ele, a " nova organização empre­sa ri a l', que pe rmi te "a imprensa es tar moder­!lamente vincul "da à d inâmica cultural", e a qu alifi cação técn ica e fo rmação unive rs itária do profi ss iona l de im prensa, seriam fato res posi­tivos daq uele momento" )

Mas, no seu traba lho, f'1f' mos tra que mesmo Realidade, que passa a se Is ta como um mode-­lo de jorna lismo investig. 'o ·- ' ra a imprensa brilsileira, não fo i imune ao C' chamaríamos

• - Este artigo é uma adaptação do primeiro capítulo da Tese de Doutorado so bre a revista Veja de fendida junto ao Progran _ de Pós Graduação em História - UfF ~Vcja: o inde spensável partido neolibetal (1989-2002).

3 - RIBEIRO, Ana Paula Goulart . /mprcnsa e história no Rio de Janeiro nos anos .1 ('. Tese de Doutorado, UFRJ, Escofa de Comunicação, 2000. p. 8. 4 - Id.ib., p. 25. ; 5 - Id.ib., p. 26.

6 - SILVA, Carlos Uns. O adiantado da hora: a influência americana so bre o jornalismo brasileiro. São Paulo: Summus, 1991. pp . 79 e 86 . 7 - SODRÉ. Nelson. História da imprensa no Brilsil. 4 ed. Aio de Janeiro : Mauad, 199 9. p. 438. Grifas do original. S - FARO, J. S. Revista Realidade. 19 66 -1968: tempo da reportagem na imp rensa brasile ira. Porto Alegre: Age / Ulb ra, 1999. p. 75.

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His lária & Lula de C'aHe .ç . 45

de cons trução da hegemonia capitalista, que naquele momento era profundamente marcada pe lo anti comuni smo. Esse posic ionamento pode ser localizado no que o autor chama de "padrões de modernidade ocidental que o pós­guerra havia instituído" .(9)

O processo de transformação em grandes empresas acaba prevalecendo sobre as eventu­ais posições progressistas dos jorna listas, o que não ocorre sem conflitos nem acaba definitiva­mente com eles, mas estabelece limites bem definidos. Na medida em que a empresa cres­ce, as máqllinas e o próprio papel para impres­são são importados, e cada vez mais caros, pois s50 mais so fisticados, aumenta cada vez mais a dependência de fatores exte rnos como investi­mentos, emprés timos, incentivos fisca is, que muitas vezes acabam levando a comprometi­mentos políticos de todo tipo.(IO)

Aq ui entram também as agências publicitá­rias, que te rão papel fundamental para mante r esse padrão jornalísti co. Some-se a isso as agên­cias internacionais de notícia, que fazenl sua parte no sentido da unifi cação ideo lógica das diversas publicações, gerando urna verdadeira es trutura transnacional : "Só recentemente co­meçou a emergir com clareza a dimensão co­municação/publicidade/cultura como parte do ins trumental transnaciona l.

É cada vez mais ev idente que o s istema trans­naciona l de comunicação se desenvolveu com O apoio e a serviço dessa es trutura transna­cional de poder. É parte integrante do s istema, e por meio do qu al é contro lado o instrumento

fundamenta l que é a informação na sociedade con temporânea".(II) O pano de fundo é a entra­da de empresas multinacionais, também na área da comunicação, no Bras il.

A partir do final dos anos 1950, acelerou-se a expansão dos grupos Time Life, Reader's Digest, Washington Post (proprietário da Ncwsweck), em toda a Europa e também na Améri ca Latina.

Essa expansão se deu ou pelo lançamento de revistas ou pela associação com ed itoras locais. Como resu ltado, temos a entrada no Brasil de revistas como Marie-Clairc, Elle, Cosmopolitan, HOll se & Gnrdcn, Forbcs, BlIsiness Weck, Plnyboy e rev istas infantis de Walt Disney, sendo que viÍ ri­as fo ram editadas no Brasil pelo Grupo Ab ril. (" )

Segundo Mattelart, citando os editores nor­te-americanos, havi a uma aliança internacional, cujo objetivo se ri a "unir os homens que tomam as decisões no mundo empresa rial e os d irigen­tes políticos de todas as nações".(1 3)

Po rtanto, nada hav ia de casual ou de puro "entretenimento". Dois elemenl-os vêm junto com essa expansão: o padrão tecnológico que leva à dependência técnica externa; a dependên­cia de financiamentos e de palTocínios das em­presas multinacionais. E· também;] relação com os órgãos estatai s é dada por inte resses mútu­os, pois os jornais e rev ist;]s se co loc;]m como neu tros, possibi litando sua atuação p;],tidiÍria na defesa dos inte resses de ambos. E se consi­derarmos o atreldmento do Estado também ;]OS

interesses externos, indica remos uma simbiose entre imprensa, Estado brasi leiro e inl·e resses trnnsnacionais.

Multinacionais, cultura e ideologia

O acirramento da Guerra Fria nos anos 1960 ocorreu junto com a abertura das empre­

sas jorna lís ticas e de mid ia para o capital norte­ameri cano. Isso é demonstrado no trabalho de Ana Figueiredo sobre a pub li cidade das multi-

• nacionais no Brasil naquele pe ríodo, que arti-

9 - Id.íb. p. 209.

culnvam valores C0 l11 0 trabalho, ord em, famí­lia, propriedade, para vender gcladcirus, Ci1rros, telev isores, etc. Ao mesmo tempo em que anun­ciavam o produto, agiam no sentido d ;) produ­ção de consenso acerc;) de certas idéias arl"icu la-d ' . - d ·d d d (") as a cnaçao as necessl a es c consumo.

10 - Ver, por exemplo: WAIN ER, Samuel. Minha razão da viver. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 1987. 11 _ SOMAVIA, Juan. A estrutura transacional de poder e a informação internacional. In: MAnA, Fernando Reyes fOrg). A informação na flova orrIem inI(!fflacional. Aio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 35. 12 _ MATIELART, Armand. Multinacionais e sistemas de comunicação: os aparelhos ideológicos do imperialismo. São Paulo: Ciências Humanas, 1976. p. 200-9. 13 - Idem, p. 204. 14 - FIG UEI REDO. Ana. Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada. São Paulo: Huc itec, 1998.

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46 - Imprl!llJll e lJittUlllra MiliJar

As propagandas faziam, num primeiro mo­mento, com que a população se identifi casse com as multinac ionais e qui sessem que e las fossem implementadas, para o bem do "desen­volvimento nacional" . As empresas fariam, de acordo com a propaganda, com que " o progres­so chegasse ao fim do mundo".

Em seguid a, agiram no mundo do trabalho, promovendo a divisão entre tmba lho x laze r, abrangendo um cí rCLLio da produção capital is­ta: "O indivíduo, ansioso por al cançar a sa tis­fação que não encontrava em seu trabalho, es­forçava-se pam ascender dentro da fábri ca ou empresa em que traba lhava a fim de obter me­lhor renlunernção e, com ela, tanto o acesso aos

bens de consumo de massa que encerrariam os signos de s ua ascensão, quanto as cond ições para o desfrute de seu lazer. Desse modo, ele se tornava unl traba lhador ideal c, ao .n esmo tem­

po, um consumidor padrão - tudo o que o s is­tema capita li sta precisava para garantir indefi­nida e ininterruptamente sua reprodução,, (IS)

Finalmente, essa publicidade, e a imprensa de forma gera l, agiam no sentid o de não deixar dúv idas dos ri scos que a população "ordeira e pacífica" correria diante do "peri go comunis­ta", e que aba laria a possibilidade inali enável de p oder consumir, que seri a o marco da " li ­berdade" capita li sta e "p ro ibida" no mundo comu nista. Segundo Anamaria Fadu l, "as agên­cias de notícias cri adas especia lmente para tra­balhar na con tra-ofensiva ideo lógica foram ou­tro importan te elemento da Guerra Fria. 1 ... 1 Os países altamente industri alizados controlavam não somente a produção de mercador ias e sua dis tribui ção, como também a produ ção e dis­tribuição de notícias"''''

Mas, a encampação e di vulgação desses ide­ai s mais amplos ab rangem todos os grandes grupos de mídia. Com justificações semelhan-

15 - Id.ib. p. 86.

tes - padrão de qu alidade, desenvo lvimento témico, objetividade -, crescem e se desenvol­vem outros órgãos com fll1lções semelhantes: a Rede Globo e o Grupo Folha. Dentro dos pIa­nos de Médici, esses avanços temológicos tra­zidos no período da ditadura con tribuíam para a " idéia de que a vocação brasileira é tornar-se potência" 'I7) Tais idéias provinham de estados maio res. É re levante que lembremos da criação nos Es tados Unidos de uma forte lI1lião empre­sa ria l que a té hoje age como estado maior, o COll ncil Df Forcign Rc/ntions, e o COllncil for Latia Amcrican, que possuía entre seus planos, res­pectivamente, a criação de um projeto para os anos 1980, e a organização da atuação na Amé­ri ca Latina. Desses grupos partici pavam o pró­pri o g rupo Times In c.(l8)

Tinha como seus divulgadores no Brasil a Fundação Getúlio Vargas}'?) e como represen­tantes brasileiros em algumas de suas reuniões Mario Henrique Simonsen(20). Roberto Campos("),

que seriam recu perados pela rev is ta Veja nos anos J 990 como seus conselheiros e colll1listas, e também João Paulo dos Re is Vell oso}") ideali zador e coordenador do Fó rum Nacional no final dos anos 1980.(23)

É o estado maior em ação concreta: "Ao lon­

go de quase 20 anos de atuação em diversos países da Améri ca Latina, o COll1lcil utilizou um verdadeiro arsenal de recursos, inclus ive os da mídia oral, escrita e visual, definidas de acor­do com O público a ser ating ido e o tipo de pro­paganda - gera l o u seletiva - na telev isão, nos jornais diários, nas revistas semanajs, nos pro­

gramas de rádio, panfl etos, liv ros, revis tas especia lizadas, outdoors, etc. Dependendo do tipo de a lvo, a mensagem podia ser preparada nas estufas ideológicas do Council e p lantada nos meios de di vulgação, ou até encomendada às empresas especiali zadas, às elÜes congêneres

16 - FADUL, Anamaria . A inte rnacionalização da mídia brasileira. Comllnicação & Sociedade. Identidades comunicacionais. N. 30, 1998. p. 76 . 17- WAINBERG, Ja cques. Casa Grande c senzala com antena parabólica: telecomunicação e o Brasi l. Porto Alegre, EdiPUCRSSIFamecos, 2001 . p. 51. 18 - DREIFUSS, René . A Intcmacional Capitalista: estratégias e táticas do empresariado transnacional. 1918-1986. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1986. p. 111. 19 - Id.ib. p. 117. 10 - Id. ib. p. 165. 11 - Id.ib. p. 167. 22 - Id.ib., apêndice HQH.

23 - Dados em DREIFUSS, A Internacional Capitalista. Ob.cit. O Fórum 1em agido como intelectual coletivo das publicações da Editora Abril, conforme demonstra a investigação de minha tese de doutorado.

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f-1i. .. ttÍrit, & 1, /lIf1 til' C l a .\'Se .\' - 47

ou às associações empresa riai s vinculadas ao C LA"_(") Até o fina l dos anos 1980, a articula­ção se dava em torno da idéia de Guerra Fria. E nesse sentido, também Mattelart aponta dados que nos perm item estabe lecer ligações entre grupos norte-americanos e a realização de pes­quisas e publicação de publicidade de "comba­te ao comunjsmoN

,

Um exemplo é um questionário de pesquisa "pli cado a "formadores de opinião", pelo gru­po Gallup, no Chile às vésperas das elcições de 1970: 'l .. ] em sua opinião, porque o presidente João Gou lart foi demi tido (s ic] de suas fun ções? a) porque fora longe demais com suas medi­das de nacionalização das riquezas naturais do país; b) po rq ue n ão res peitou os pr incípios cons ti tucionais e trad icionais da nação; c) por­que identificou-se com os part idos políticos de esquerda, particu larmente com o partido co­munistaO yS)

Esse material se relaciona com um conjunto de o utros provindos da publicidade, que scgun-

do o autor, passa a ser um apêndice ideológico do Estado, inclusive através d" espionagem, que é sofisticado "quando o inim igo deixa de ser ex­clusivamente o concor rente industrial, para tor­nar-se mais político. Como sempre, esse inimigo é identificado com a etiqueta de 'terrorismo' e 'ex­tremismo'. Uma vez diagnosti cado, trata-se de neutralizá-lo COtn os meios mais adcquados". (2Ü)

Ou seja, demonstra-se que a publ icidade e o mater ial editorial não estavanl desvi nculados da li nha estratégica Inais Zlmplü norte-ameri cana,

naquele momento, o controle da Guerra Fria nos países latino-americanos. Têm implicaçõcs no mercado de comunicação brasil eiro e do padrão de qu"lidade, que passa ria " ser mais uma fo r­ma de estabelec imentü de consenso pel a gr"nde imprensa. E que, com isso, consol ida sua posi­ção empresa rial. Já nos anos 1990, o consenso passaria a ser busc"do em torno de outras ques­tões, ll1iJis "modernas", c esses grupos ütuür50

juntos nesse sentido. A "globalização" pilssa a ser a grande arti cu ladora desses ideil is.

Os padrões de qualidade e a "nova ordem" , E também no contexto de Ditadura e de abcr­

tura ao capital externo que se dá a inlp lan­tilção da Rede Globo de Te lev isão, com a entra­dil direta de capita l estrangeiro e ges tão pelo grupo norte-american o Time- Lifc. A ilega lidil­de desse fato gerou a Comissão Parlamentar de Inquérito, que acabo u inocentando a Rede Glo­bo, depois de vários vícios no processo.

Em q ue pesem as inLuneras i rregu laridades, a em presa foi abso lvida po r decreto do pres i­den te Costa e Silva, em 23/11/]968, com o arqui­vamento do processo. Isso ocorreu porquc os interesses estavam bem delineados: "A superfi­cialidade com que os minis tros da área eco­nômica trataram os problenlâs levantados n50 era, por certo casua l. O governo implantado em '1964 tratava de contornar as res istências que surgianl, inclus ive na área mi li tar, !nas mano­brava Rara garantir a implantação da TV Glo­bo, que se ria um inst rumento fundamenta l na

24 - Id.ib., p. 173 . 25 - MATIELART. Multinacionais e sistemas de com/Jnicação Oh. cit, p. 225. 26 - Id., Ib., p. 266.

política de intcrnaciona lizaç50 d<l econom ia através da criação de um mercado nacional de

produtos industri ai s sofisti cados. Robe rto Ca mpos e ra figura noto riamcn te

idcnt ifi cada com os intcrcsses do ca pital estran­geiro e também Octav io Gouvêa de Bu lhões, gue mais ta rde chegar ia a se r pres idente da poderosa l11ultinLlciollLl I Eri cson, d Ll indúslTi Ll

quc, juntamente com Standart Elctric e a Ni ppon Electric Company, contr o laram o mcrcado bra­sileiro de telccomun icLlções, criLld o com I11 Llci­ços investimentos do Governo após '1964".(")

Essa conjun t'ura foi dec is iva para gue a Abril pudesse abr ir-se pa ra os investimcntos neccs­s;:í rios pa ra uma rev ista do po rte dc Vcjn . Va le retomar Daniel Herz, que sc util iza como base O livro negro dn invnsão vrnncn, de João Calmon quc: "Falava também da chegada de Victo r Civita que cs ta va ins ta lando no Bras il ague la que hoje é a maior empresa ed ito ria l el a Amé ri -

27 - HERZ. Daniel. A história secreta da REDE GLOBO. 14 ed. Pono Alegre: Ort iz. 1991. p. 169.

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48 -IlIIprcl/Sa e Dit(ldllra Militar

ca Latina, a Edito ra Abri l: 'O Grupo da Editora Abri l edi ta esta rev is ta 'Rea lidade', que é a dé­cim a nona que lança no Brasil. O dono deste grupo chama-se Victor Civita _ Este homem nas­ceu na Itá lia, natura lizou-se norte-allleri cano. 1 ___ 1 Quando procurei apura r o que ele fazia nos Es tados Un idos, antes de vi r para o Bras il , sou­be que ele era empregado do grupo Time-Life_ Chegou ao Brasil sem dispor de recursos finan -

o • - • A t"" (28) ce,ros e o seu Hmao part,u para a rgen ma -Além djsso, ele aponta para o crescimento da Ed itora, em consonância com O que ocorria no México e na Argenti·na, onde a ligação com os grupo Time era apontada: "Dentro de pouco tempo o grupo da Edi tora Abril lançou deze­nove revistas no Bras i I, dezenove rev istas na Argentina e dezenove rev istas no México. Ou­tro detalhe interessante: a Editora Abril na Ar­gentina ed ita UI11a revista chanlada 'Panoranla' .

Em baixo do títu lo da rev is ta lê-se: ' um a rev is­ta do Edi tori al Abril e de Til1l c-Lifc'.

Na Itália, ex is te U111 él ou tra rev ista, com o mesmo tí tu lo, 'Panorama' embai xo do títu lo lê­se: ' uma edição de Tim e-Life e Monda tori '. O ra, é m ui ta co incidência. E é o grupo Civita na Ar­gent ina e o grupo da Edito ra Abri l que opera em três países. Creio que nenhum grupo brasi-

leiro terá capacidade finan ceira para manter dezenove rev istas, no Méxjco, na Argentina e no Brasil". I'" Herz caracteriza o grupo Time como sendo "da linha mais reacionária e mais retrógrada do Partido Republicano, exclusiva­mente interessado em manter, em pillses como

b . . 11 (30)

o nosso, ases antJcomUnlstas -A justi ficação ideológica muda ao longo dos

anos, pois desde os anos 1980 se inicia uma ten­dência de usar na ideologia da "globalização" as novas definições dos rumos que aparecem como inexoráveis. Além de negar alternativas, justifica positivamente os avanços do capital na sua rea­ção à crise de acumulação vinda desde os anos 1970. O sentido a ser preservado é o da acumula­ção. Ademais, é através dessas ligações que a Rede Globo recebe altos investimentos tecnológicos, ga­rantindo um elevado padrão de qualidade técni­ca, que é vista muitas vezes como avalista de uma suposta credibilidade, e tem como conseqüência o aumento das dividas das empresas da rrúdia brasileira, e seu progressivo atrelamento aos me­canismos de finan ciamento ex ternos e in ter­nos, estatais ou não. Em conseqüência, as rela­ções políticas se dão também levando em conta essas necessidades, sendo este um dos elemen­tos principais da ação partidária da imprensa.

Folha de São Paulo : padrão de qualidade e ação política

Além d a Rede Globo, teve v ida longa de des­taq ue, com LUTI projeto editorial e uma or­

ganização eln presari al "nl odern os", o jorna l Folha de São PaI/ lo. Gisela Taschner es tudou o conglomerado do qu al faz parte o jorna l, mos­trando que nos anos 1960 a empresa tomou uma série de medidas no senti do da centralização de capi tal, ao mesmo tempo em que se amplia­ram os inves timentos no seu setor produtivo.

Daí nasceu a junção entre Folha da M anhã,

Últill1a Hora e Notícias Pop l/lares: "O novo com­plexo fo i abordado a parti r do binômio centra­I ização-diversi ficação.

18 - Id.ib. p. 91.; 29 - l oe.cit. ; 30 - Id.ib. p. 93.

A centralização englobou, em di versos graus, todas as operações que fosse possível centrali­zar: produção e reprodução da me""';agem, dis­tribuição, vendas, publicidade, administração, serviços de apoio. A diversificação fo i feita com

I - d t ,, (31) re açao aos pro li os. O grupo não se restringe ao setor jo rnalístico,

seus proprietá rios têm investimentos em diver­sos tipos de atividade, "só a títu.lo de exemplo, Frias é um dos maiores g ranjeiros, se não O

maior, do país" .(J2) Mario Sergio Conti também cita investimentos do grupo na área rodoviári a. I'" Ou seja, são mu ito diversi ficados os in vestimen-

31 - TASCHNER, Gisela. Folhas ao vento: análise de um conglomerado jornalístico no Brasi l. Aio de Janeiro: Paz e Terra, 1992 . p. 156 . 32 - Loe. cit. 33 - CONTI , Mario Sergio. Notícias do Planalto. A imprensa e Fernando Collor. São Paulo: Companhia das l etras, 1999. p. 185.

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lI jqti ria & LI/ Ia de ClaHf\' - 49

tos e interesses do grupo que publica o maior jorna l impresso nacional. E isso deve se r leva­do em conta para entender seu posicionamento político. O caso da Folha de São Palllo é bas tante ilus trativo da relação oportunis ta com a Dita­dura, pois o jornal foi censurado, posteri ormen­te apoiando o movimento das Diretas Já Com isso cons truiu uma aura em torno de s i que até hoje lhe p ermite ser vis to como um jornal pro­gress ista. E é nesse mesmo contexto que o jor­nal cria e desenvolve o "projeto Folha", que es­tabelece o padrão de qualidade como premis­sa, em de trimento da au tonomia jorna lísti ca.

O mais relevante é que oculta, relega ao es­queci mento o apoio que deu ao go lpe e às med i­das repressivas já sob julgo militar. A Folha se adaptou aos rumos dn abertura, no 1l10mcnto cnl que a democracia se colocava como necessá­ria ao seu projeto de "modernização". O jornal buscou se construir como O "jornal das diretas". Mas com isso, oculta que não apenas Llpoioll a Ditadura, mas também ex igia ed itor ia lmente que o governo de Jango fosse der rubado. Sua postura fo i anti comunista, antipopu lista, elitis ta e, por conseqüência, pró-capitalista .(")

Vár ios editoriai s buscavam associar po pu­li smo a comunismo, e se buscavam coloca r O le i­tor em uma postura de superioridade diante das "massas" que apo iavam o governo. Além di sso, o jornal teve muitos lucros com O golpe, chegan­do no ano de 1965 a aumentar seu patrimônio vin te vezes com relação ao ano de 1964, o que se deveu b aquis ição dos demais jornais que perd i­am razão de ser com O fim do governo Coulart''')

Foram comprados os jo rnais Folha da Manhil, Últi/lla Hora e Notíc ias Poplllares. Es te ú lt imo "após o go lpe perdeu sua razão de se r, posto que havia s ido criado pa ra se opor à Úll irlla Hora". O crescimento trou xe também o end ivi­damento, o que levou o g rupo a uma posição fragilizada com relação ao governo. Além di s­so, o utro ins trumento essencia l naquele perío­do recebeu especia l atenção da publi cid ade es-

tatal e de Illultinacionais. Os editori ais passavanl a versar sobre temas

amenos, que n~o comprometessenl sua posição po lítica. E, na versão criada pela direção do jor­nal, a mudança enl prol da abertura ocorreria por "ex igência do público", como se antes não tivesse indicado a necessidade de apontar a d i­reção intelectua l de seus le itores.

Fo i no contexto de abertura que o jornal im­plemento u o Projeto Folha, que traz uma nova forma de enquad ramento jornalístico bras ileiro. Os avan ços tecnológicos permitem que a comu­nicação se dê de lima forma muito nlais rápida, o quc não impl ica necessarinmcnte em 1l1elhori a de qualidade e fided ign idade. A tecnologia é uSJda como Ullla form Ll de reforça r a idéia de credibilidade. Em algu ns casos, torna di spen­sável LI própria funç50 do jornalista, a Li , como di z Ramonct, " rebaixando-os ao n ível de rero­cadores de transmissões de agência" .{:\(')

Um dos e fe itos disso é a auto-censura por parte dos jornalistas, que se tornam cada vez

mais alinhados à linha editori al, ameaçados de perderem seus empregos se ass im não O fi ze­rem. José Arbex Junio r que foi jorna li sta da Fo­IIIa de São Pall lo, se refere ao Projeto Folha dessa fo rm a: "1 ... 1 sua implan tação introd uziu no Bra­s il , em ritmo acele rado, .wna lóg ica empresa ri ­al que a moderna imprensa cLlp ita l ista constru iu ao longo de vá rias décadas nos Estados Uni­dos e na Europa", adotando um "discurso para o J11ercado", adequa nd o-se à "cxp an s50 do neo liberali smo". O projeto, segund o A rbex:

"1. ". 1 caracterizava a notícia como lllerc.Jdo ri n, destinada a gerar lucros. Essa pe rspectiva ex i­g ia, obviamen te, o fim da ' polit·izaç50' da reda­ção, urna das característi cas mais fortes, do jor­nali smo até então prati cado no Bras il. 1 ... 1 A adoção do Projeto Fo lh a impunha, po rtan to, um 'saneamento ideo lógico' da redação""') Po rtan­to, nesse novo período, outras c rt:l lll LlS inovcJ­ções para que o jorna l atuasse po liticamente.

A justifi ca ti va de ser "prog ress ista", a lém do

34 - Esse material é discutido em: DIAS. Luiz Antonio. O poder da imprensa e a imprensa do poder: a Folha ele São Paulo e o golpe de 1964. Dissertação de Mestrado em Histó ria, UNESP. Assis. 1993 . 35 - Id. ib. p. 95. 36 - RAMONET, Ignácio. A tirania da Com/lnicação. Petrópolis: Vozes. 1999. p. 51. 37 _ ARBEX JA . José . Showffla/ismo: a noticia co mo espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2001. p. 142-3 e COSTA, Caio Tt'l lio. O relógio de Pascal: a experiência do primeiro ombudsman na imprensa brasileira . São Paulo: Siciliano, 1991 .

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50· Imprel/.m e Ditlldura Militar

fa to de ser a ltamente desenvolvido tecnologica- I 11lente, seri am as grandes Tn arcas que penllltt-

ri am desviar das implicações políticas desse novo programa para o jornalismo brasileiro.

Veja na abertura

A revista Veja passou por um processo bas­tante semelhan te, embora o grande ele­

mento que a permitiu se colocar propagandisti­camente como um veículo críti co tenha sido o impcachment de Fernando Collor. Veja fez o que es teve ao seu alcance para incentivar uma saí­da conci li atória, e apenas depois di sso se mos­trar imposs ível é que comprou a briga pelo il1lpeachl1lcnt, buscando dar a linha para que o processo se desse com o mínimo de fi ssuras sociais poss íveis. O fato de ter sido censurada na Ditadura contribuiu de forma decisiva para que ela não tenha fal ido nos seus pr imeiros anos, ela "benefic iou-se da censura, porque sem censura seri a mais di fícil d iferenciar-se das ou­tras publi cações existentes no país", fo i com isso que se "firm ou a imagem de independência" (3M'

No governo de Figueiredo, a abertura polí­ti ca se apresentava como inevi tável, devido às pressões socia is. Veja teve urna postura nl uHo coerente, apostando, ainda que timidamente, na possibilidade de eleição de Aure li ano Chaves, que m anteri a a coerência de seu antigo parti­do, a UDN(39'

Em edito ri al, no contexto da decisão de quem seri a o candidato, di zia que "enqu anto Maluf e Andreazza exibem bases di feren tes e programas semelhantes, Aurelian o parece buscar uma tri ­lha capaz de fazer renascer as velhas raízes de seu partido de ori gem, a UDN, Glvél lgando uma mistura de realidade com defesa das liberda­des públicas. Por isso, dispõe de uma biogra­fia. Foi um admin istrado r de contas respeitado pela oposição e o primeiro político do PDS a defender a anis ti a, em 1977". Como aponta Gazzotti, que cita o editorial, "a revista mante-

ve sua posição centrista, proclamando mudan· ças sem se chocar com o governo", mesmo que fosse uma posição derrotada.

O elo de ligação teórica entre o programa de abertura econômica e o regime militar parece es· tar vinculado à figu ra da "iminência parda" de Golbery do Couto e Silva, que viria a ter ligaçãe; estreitas com Elio Gaspari, editor da revista. E relevante que, na eleição de Tancredo, mesmo no contexto de abertura, a revista abriu espaço para Médici C40, e a Golbery, com a intenção de recupe­rar "momentos positivos" da ditadura(4J,

Freitas cita um editorial de 1974 em que se dizia que "quando a his tória oferecer seu juízo sereno à administração Médici, muitos haverão de ser os acertos e os erros [ ... ] ta lvez ele venha a ser o governante que, mantendo a política na geladeira, impediu que ela fosse a tirada ao quintal [ ... ]".c", As entrev istas fo ram publicadas "às vésperas de o Colégio eleitoral escolher para a presidência entre Paulo Salim Maluf (PDS) e Tancredo Neves". Médi ci falara "com exclusi· vidade para Veja, concedendo uma entrevista formal ao repórter que freqüentava sua casa e conhecia seu pensamento ao longo dos anos sem publicar uma só palavra para o conheci· mento do leitor" .c",

Quanto a Golbery, a entrevista já es tava pron· ta para ser publ icada quando a revis ta quises· se, também por influência do editor Élio Gaspari que "freqüentava o ex-minis tro poderoso, mas que até então não havia escrito nenhuma linha de matéria com informações atribuídas ao ex­chefe da casa civil de dois governos militares e mentor intelectual da revolução de 1964".c" ,

Mesmo ass i.m, a revista apoiou a Canlpanha

38 - FREITAS, Jorg e Rob erto Mart ins. A entrevista nas pâginas amarelas da revista Veja: a imagem do milagre econômico sob o ponto de vista do prime iro IIcwmagazine brasileiro. Mestrado em Comunic ação, UFRJ, 1989, p. 151 e 152. 39 - GAUOTTI, Jutiana. Imprensa e ditadura: a revis ta Veja e os governos militares (1968 ·1985) . Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. São Carlos, UFSC, 1998 , p. 39, 40. 40 - Citado por FREITAS, p. 117. 41 - E, segundo Freitas, Mdcmolls trou euforia com os msultados anunciados pelo então presidente~ . (p. 11 5). FREITAS. A entrevista /. ./. Ob.ciL 42 - Carta ao l eitor, 9/1/1974, p. 24. 43 - ld.ib. p. ' 12.; 44 - Id.ib. p. 115.

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lli.çl /ír in & I.ula d e C ta Bu - 51

pelas Diretas, em clara oposição à Rede Globo de Televisão. Para Veja se tratou do "maior mo­vimento po pular da Histó ria do Brasil", ind ican­do que para ela, o importante neste momento era o p rocesso "democrático" para possibil itar aprofundar as reformas liberais. Mas é altamen­te relevante a complementação: "1 ... 1 jll stamcntc por tcr amadurccido nes tes vin te anos, o país sc acha pronto para escolher seu presidcntc. ,,(<5)

É evidente que, dessa forma, o próprio golpe de 1964 fica jus tificado, pois se tratava de um país "imaturo". Em inúmeros momentos se tra­ta do Golpe com amenidade a pa rtir das referên­cias de desprezo ao governo de Jango. A ci tação em des taque é de uma entrev is ta de Ne lson

Rodrigues: "Tomaram o poder e esse poder lhes foi imposto pela inépcia, pela burrice, pela im­becilidade das esquerdas. As esquerdas fizeram tudo isso e co locaram as Forças Armadas na obrigação elementa r de intervir sWl1ariamente porque o Brasil de Jango foi o Bras il do caos, de caos mais idiota, mas estéri l, mais infecundo, que não cond uziria a nada a não se r ao próprio caos".<46) Esta é a "express iva passagem que en­cerra a primeira amarelinha",(47)

A edição aponta para um sentimen to que seri a repetido ao longo dos anos sobre a "inép­cia" de um governo de esquerda e os "riscos pa ra o país", que são associados à figura de Jango como fraco e portado r do caos.

Veja reconstruindo a memória do golpe

O principal marco recente da reconstrução da memória sobre o golpe de 1964 é o con­

junto da obra de Élio Gas parj/") que fo i ed itor de Veja. E a base de sua inte rpretação é utili za­da pela revis ta, em idéias como: a fraq ueza de Jango; a possibilidade de um golpe comunista; a grandeza do país sob o regime. Pinço em se­gu id a alguns exemplos de como isso se dá nas páginas de Veja, embora o tema mereça ainda maio res pesquisas. Idéias repetidas em matéri­as como: "O golpe na estrada: deflag rado n 11 1'1'1

rompante dc dois generais de segundo cscalão, o golpe dc 1964 sc consolido ll por inércia c sem cn­fren tar resistência. ,, (49)

Q uando foram publ icadas obras que com­provavam o envolvimento da C1A com O golpe milita r no Brasil, Veja abriu espaço para o d ire­to r da CIA e embaixador dos EUA no Bras il apresenta r sua versão. Reitera-se a tese sobre a ameaça de um golpe comunista, ao que Lincol n Gordon responde: "1 ... 1 para mim, a melhor so­lução era mesmo a subs ti tuição do pres idente Goula rt. Temia mu ito que ele fosse engolido pelos comunis tas, a quem d e dava as maiores

45 - Carta ao l eitor, 18/4/1984. APU D GAZZOTII, op. cil. p. 43 .

liberdades".(·" ) A seqüência é atribui r as atroci ­dades da d itad ura aos excessos de a lguns ofici­ais descontrolados: "1 ... 1 o Exército cometeu ex­cessos vergonhosos no Recife e no Rio ele Ja­ne iro. I ... 1 Uma vergonha. Mas, pa ra quem aclla­va que uma guerra civil era iminente, posso con­siderar como pacífico o go lpe que derrubo u Goulart,, -'51)

Po rtan to, primeiro ele cria o a rgumento de um go lpe iminente, depo is, utili za-o para di zer que as coisas não teri am sido t50 ru ins, embora aponte a lguns supos tos desvios. Está clara a posição que Vcja quer p riv ilegiar, não a das ví­ti mas da Ditadura, mas dos pró prios a lgozes. A concl usão é explici ta: "Veja: Mesmo ass im o senho r aclla que a queda de Goula rt fo i um bem para o Bras il ? Gordon: Como amigo do Bl'asil, acho s inceramente que s im. Goula rt certamen­te daria o autogo lpe. Como era um sujeito fra ­co, a Histó ri a mostra que logo o poder se ri a surrupiado pelos seus ali ados comunis tas, por a lgum líder mais capaz do que ele, a lgum mar­xista, sehTUidor de Fidel Castro". (SO)

Ass im se encerra a entrev is t'a, fixando as

46 _ Nelson Ro drigues entrevistado por Fernando Mercadante. na primeira entrevista das páginas amarelas da revista, 4/6/1969. op . cit., p. 125. 47 - loe .cit. 48 - Ver resenhas no presente numero de História e luta de classes. 49 - Veja. 30/3/1994, p. 38 a 45. 50 _ Uncoln Go rdon. Entrevistado por Eurípedes Alcântara. O embaixador e o go lpe. Veja. 15/1 0/ 1997. p. 42 . 51- ld. p. 43. 52 - (d ..

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52 - Imprellsa e Ditadura Mjlitar

1l1Csn13S idéias-chave: a fraqueza de Jango, a ameaça comunista. Em sintonia, há LIma idé ia muito batida, de que a Ditadura, quase sempre dlamada de regime, caiu por anacronismo, c que, portanto, haveria sempre uma ameaça velada de que voltasse, como se depreende da ci tação: "Era moda, no velho regime, falar da d istância entre o governo e a sociedade. O apare lho governa­menta l v iv ia num mundo e a população do país vivia em outro, em conseqüência, basicamente, do g rande defeito de fabricação do regi me - o fato de não ser legítimo nem representativo. Pura verdade. Só que, devolvida a democracia ao Bras il se verifica que muitos ocupantes de ca rgos públicos da Nova República conseguem 1 ... 1 mante r-se tão distantes da sociedade quan­to os seus antecessores da VeUla".I"1

Portanto, teriam sido os militares, por sua própria ação que "devolveram a democracia", o que pode ser vi sto como uma forma de co rrigir O "defe ito" da d itad ura, redu zida b falta de representati vidade. Naquele contexto aumenta­va o embate da revista contra O funciona lismo

público. Ela completava, su postamente em nome de "todo o pais": I ... ] ta lvez tenha chegado a hora de fazer alguma coisa. Chegou mesmo - como chegou, um dia, "o descrédi to qlle mandoll o velho regime para casa".l541 O clima de insegurança e a necessidade de planejar uma ação futura es ta­vam co locad os~ c a Ditad ura apa recia vclada­mente como algo que poderia ai nda voltar. Nos dois momentos em que se refere à Ditadura, o seu fim aparece como algo alheio aos movimen­tos sociais que a abalaram: a democracia foi de­vo lvida" o descréd ito mandou-o para casa". Fi ca assegurad o, além disso, que ele não "desapa re­ceu", es tá fiem casafl

, c pode voltar à cena se vo l­ta r a " te r créd ito" , Assi m, "embora a vo lta ao governo não fosse intenção da maio ria dos mili­tares, a publicação periód ica de reportagens dei­xando entrever o contrário produzia grande im ­pacto e lançava suspeitas quanto aos rumos da

53 - Carta ao leitor. Veja. 1/3/1 989, p. 17. 54 -Id.

· _ I'·" (55) translçao po Itlca . Na seqüência, ao falar do que considerava

absu rda g reve de funcionários públicos, eles são associados à selvageria. I561 E completa que "es­ses absurdos, cometidos p o r um sindicalismo irresponsável, representam um abuso selvagem do legítimo d ireito de greve,,{57)

A ameaça vinha em seguid a: 'l .- ] a selvage­ria não leva à conquista de re ivindicações sala­riais e muito menos ajuda na consolidação da democracia. Em setores vitais, com o o do trans­porte e da saúde, ela apenas penaliza ainda mais os traba lhadores de renda mais baixa, além de ad icionar um perigoso elemento de tensão na vida bras il eira".I"'1

Há uma ameaça aos movimentos sociais: o regime " foi para casa", mas pod eria voltar a qualquer momento se não houvesse a "colabo­ração de todos". Veja está alertando e contribu­indo para a manutenção do medo. Sua posição no período da abertura fo i de sempre ameaçar que os militares "podiam voltar", se a "sacie-­dade civil" não se comportasse.

Para justifi car o golpe, se apresenta a imagem de João Goulart como um "incapaz", um "fra­co". Essa pos ição pode ser percebida nesse tre-­cho em que Veja reitera seu apoio a Fernando Henrique Ca rdoso, cujo governo é considerado um "elevado momento nacional": "Faça-se a crí­tica que se deseja r ao presidente da República, mas reconheça-se que ele imprime um rumo ao seu governo, coisa que parece banal mas não é. Jânio Q uadros, um alucinado na Pres idência, nunca teve rumo algum, a não ser p romover pirotecnia política. JoãoGoulart, um homem fra­co, governou dividido no seu intimo e também dividiu o país. Nada há a dizer sobre os gover­nos militares, que devem ser avaliados por ou­tros critérios. Seu rumo era o da ditadurau(

59)

A ditad ura apmece como a lgo indiscutível, como se ne la não ex istissem re presentações de classe e interesses defend idos inclusive pela

55 - AGUIAR, lei la Bianchi. ~Não se trata de uma ameaça, mas .. H, Um estudo das declarações dos ministros militares durante o governo Sarney. Te x-Ias CPDDC, n. 34, 1999, P. 3. 56 - As greves que só prejudicam. Ca rta ao leitor. Veja. 12/4/1989, p. 27 . 57 - loc.cit. 58 - l oc.cit. 59 - Um ano depois. Veja. 17/1 / 1996, p. 31.

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lIi .\"ttÍria & Lllta de çla ue~ - 53

imprensa. Neste momento acnda se rea firmava qu e quanto a C ard oso, "desde jusce lin o Kubitschek, nenhum pres idente deu mais es­perança ao Brasil". (60) O conjunto d o tex to é tra nsparente: apenas Cardoso teria s ido bom para o Brasil, " reconheça-se". Todos os outros são desqualificados. jango, a exemplo do que diria também sobre Lula nas campanhas pres i­denciais, é v i sto como a lguém que " dividiu o país", o u seja, não se ria alguém que es tava numa s ituação em que o país estava de fato di­v idido. Com isso também se pe rmite atribuir à sua " fraqueza", o próprio Golpe.

Ao ana lisar a candidatura de Lula, de novo a associação: "1 ... ] não dá para comparar nem com Getúlio Vargas nacionalis ta de 1950, nem com O João Goulart aventureiro levado ao Planal to depo is da renúncia de jan go em ]96] ".(61)

Repare-se a fo rma com que jango, que fo i e leito vice-presidente é tratado: um "aventurei­ro levado ao Planalto". Essa afirmação serve cla­ramente para legi timar o go lpe mi lita r de 1964.

A frase permite descartar o fato de que os d o is casos remetem a presidentes e le itos em processos democrá ticos - regra supostamente defendida pela imprensa liberal. E a remissão aos do is presidentes que foram vítimas de go l­pes não era ocasional, ficava um alerta para o

caso de Lula se mostrar um "aventureiro". In­siste-se mais uma vez na v isão sobre jango: fra­co e incapaz, portanto, está implíci to que ele não teri a mesmo condições de governar o país.

Por outro lado, os homens da Ditadura, e mais especialmente, o general Geisel recebe adjet ivos opostos: "[. .. 1 o ditador esclarecido: num li vro ex­cepcional, Geisel conta como vi veu, amou, cons­pirou e exerceu o poder,, (61) Os elogios e o pon­to de onde se fala, justi ficando a Ditadura, são claros: "1 ... 1 é um li vro extraordinário, feito por um homem cônscio de ser diferente da maiori a, que tem a co ragem de atacar as eleições diretas e justificar a tortura em alguns casos". ".1)

A idéia a incutir era que se jango era cova rde, Geisel seri a o seu oposto, e justamente pela sua capacidade e "coragem" de justifi ca r a tortura, permitindo-nos inferir que para Veja, Geisel fez "o que tinha que ser feito": "1 ... 1 c/c era o general mais bem preparado para o cargo e o que tirlha lllais clareza do que queria"/'" e ainda ma is: "1 ... 1 o mais esclarecido dos ditadores: um general podero­so, autoritári o, bem fo rmado e complexo, co ra­joso no seu reacionarismo, di vertido em a lgu­mas opiniõcs, e cuja obra presidencial foi des­feita pe lo tempo e pel a sociedade". Portanto, caberia a obras como es ta resenhada, e à pró­pria revista, recuperar essa memóri a.

A censura ocultando a ação política

N ão ex is te qua lquer dúvida de que a im­prensa brasil eira fo i du ramente censura­

da d urante o período militar. Várias foram as fo rmas de exercício da censura, desde a presen­ça de censores na redação, a censura prévia, a ap reensão de jorna is e revistas nas bancas, ou mesmo o empaste lamento de bancas inteiras. Mas a censura ex istiu n1uito mais por atuação dos profissionais jornalistas(65) do que pela linha ed ito ri a l dos grandes veículos de comunicação.

O que há de efet ivo é a pos tura de jornalis­tas que se colocaram contrá rios ao Golpe, e não a pos tura s is temáti ca de seus jo rnais. Estes não

60 - Loc.cit..; 61 - Id.ib. p. 44.; 62 - o ditador esclarecido. Veja. 22/10/ 1997, p. 42 . 63 - Loc.cit.

tinham intenção de contestação ao regime mi­litar, sua forma ção, suas implicações e sobretu ­do, seu sentido econôm ico. Mas, pos teriormen­te os grandes jorna is usaram o fato de seus jor­na listas terem s ido pe rseguidos como forma de atestar sua suposta independência, ocu ltando as formas de apo io ao go lpe e à Ditadura.

Portanto, a ccnsurn não pode serv ir pil ra oculta r a o utra face do processo q ue foi a trans­fo rmação de alguns jo rnais e rev istas em ver­dadeiros mitos, como se fossem até "de esquer­da" por terem sido censurados. A censura atin­giu a todos os jornais e revi stas, fossem identi -

64 - Id.ib. p. 44.; 65 _ JORGE, Fernando. Cale a boca, jornalista! 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1990; MARCONI, Paolo . A censura política na imprensa brasileira. 1968-1978. 2 ed. São Paulo: Global, 1980. Também sobre o tema: KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo : Boitempo, 2004.

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S4. Imprensa e Dilatlura Militar

d d· . (66) fi cados com esquer a ou com a >relta.

No entanto, o que chama atenção é que so­mente os g randes, identificados com O projeto da Ditadura, sobrev iveram, c ai nda lucraram com O fato de terem s ido censurados. Já os pe­quenos, os alte rnativos, estes n ão conseguiram sobrev iver às investidas da censura, que os desestru tu rou economicamente.

te-ame ri cano, vem sendo usado com o justifi· ca ti va de uma suposta credibilidade da imo prensa. Mas a exis tência dos g randes jo rnais e rev istas só é poss íve l com o es tabe lecimen· to de relações entre empresas jorna lísticas e ó rgãos fin anciado res, sejam privados ou es­ta tai s, inte rnos ou externos.

As re lações en tre imprensa e Ditadura ape­nas in iriam a ser questionadas e estudadas de forma slo temática. É necessá ri o que sejam fei­tos trabalhos de fundo, que analisem as pos i­ções editoriais para além das manchetes e das capas, o que permitirá encontrar as efetivas pos ições desses veículos/empresas.

Essas relações desencadeiam uma atuação política partidária concreta da imprensa para a manutenção dos interesses conjuntos (de quem a financia) e de suas empresas.

A relação com a Ditadura tem que ser com­preendi da para a lém da cens ura e prejuízos pontua is que os g randes veículos sofreram. É necessário que o pesquisador atente para a per· manente construção de memória sobre a histó' ria, pois esses órgãos a reescrevem, ocultando que apoiaram e sustentaram a Ditadura. Por se colocar como portadora do " rascunho da his­tória", essa imprensa permite que sejam igno· rados fatos sobre seus posicionamentos concre­tos nos embates políticos. •

Há que ir além do texto ed ito ria l e, partindo dele, descobrir as relações de classe que sus­tentam a g rande imprensa brasi leira. Ela tem sido o ma is ativo e e fi ciente partido político atu ­ante na democracia existente no Bras il.

O padrão de qua li dade, legado da pro fi s­s iona li zação, da tecnologia, do padrão no r-

66 - AQUINO. Maria Aparecida. CensurIl, imprensa, Estado Autoritário (1968-1978 ): o exercíc io cotidiano da dominação e da resistência. O Estado de São Paulo e Movimento. Bauru: EdUSC, 1999 ..

AQ UINO, Maria Aparecida. Cellsura, imprens{/, Estado A IItoritfÍri o ( 1968-1978): o exercício cotidiano da domina­çiio c da resistênci a. O J:;,I"f(It!O de Süo Pall lo e Movimentu. Bauru. EDUSC, 1999. ARIlEX JR . José. Slwl\lrIlalismu: a notí­cia como cspct.Íl: ulo. Suo Paulo. Casa Amarela,200 t. CONTI. Mario Sergio. Notícia.\" do P/a ­fI {f(tO. A imprcnsa e Fernando Collor. Suo Pau lo. Companhia das Lctras. 1999. DIAS, Lu iz Antonio. O poder da imfJrell ­

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amílise de um conglomerado jornalísti co no Brasil. Rio de Jane iro. Paz e Terra, 1992. WA INER , S.unuc1. Minha razllo de vi­ver. 6" ed. Rio de Janeiro, Record , 1987.

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o objetivo deste artigo é discutir a participação do movi­

mento integralista no processo de mobilização política e de

articulação civil e militar que desencadeou o golpe de Esta­

do de 1964_ De início, ressalta-se a perspectiva de compre­

ender o golpe de 1964 não como mera conspiração militar,

mas como produto de uma vasta mobilização e articulação

que envolveu os principais segmentos da classe dominante

brasileira e suas mais destacadas organizações no âmbito

da sociedade civil e da sociedade política, com apoio direto

dos Estados Unidos_

Hislória & Lula de Classes - 55 1

Os Integralistas e o Golpe de 64' Gilberto Calil

Gilberto Calil é Proressor Adjunloda Univers idade Es­tadual do Oeste do P;uaná c Doulor em Históri a pela Universidade Federal Fluminense.

ertamente não é possível aqui discu­tir O sentido hi stórico mais geral do golpe, sua relaç30 com a crise de acuIllulaç50 ca pital ista no Bras il e com o desenvo lvimento da luta de cl asses. Ainda ass im, é impo rt ante des tacar o

acirramento da luta de classes durante o perío­do do governo Coula rt, com ev identes desdo­bramentos nas diferentes organizações da so­ciedade civil.

Desta forma, se por um lado as mobil izações operárias adq uiriam crescente autonomia, os trabalhadores furais avançavZl nl em sua orga­nização enfren tando os ditames do latifúndio e aS mobi li zações es tud an ti s po liti zava m-se crescentemente, por outro, também a burgue­sia, em suas d iferentes frações, se movimenta­va, agia poli ticamente c constituía instru men­tos de in tervenção - como O IPES Il ns tituto de Pesquisas Econõmicas e Superiores] e o IBAD Ilnstituto Brasi leiro de Ação Democrática J-, con­tando com financiamento norte-americanoPl

É neste contex to que se inseriu a intervenção gol pista do movimento in tegralista, constituído na década de 1930 através da Ação lntegral ista Brasileira (1932-1937) e atuando desde 1945 atra­vés do Partido de Representação Popu lar.

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56. o~· IlIlegrali~'las e (J Golpe de 64

o integralismo no processo político brasileiro

O mov imento in tegra li s ta foi lançado em 1932 por Plínio Salgado com a publica­

ção do "Man ifes to de O utubro". Constituiu-se como um movimento fascista de mélssas, regis­trando-se como partido político em 1934 e che­gando a contar com mais de quinhentos milmi­litantes. Cons tituía-se como o rganização alta­mente centralizada, lnantendo treinatncnto mj­litar, uniforme própri o e uma vasta ritualísti ca.

Seus militantes juravam fideli dade absoluta e incondicional él Plíni o Salgado, "Chefe Nacio­na l" dos integra li stas. Defendia uma reo rgani­zação corporativi sta do Estado, de acordo com os moldes fascistas, utili zando-se de um di s­curso radi ca lmente anticomunista, antilibcml c ultranac iona lista, com fo rte conteúd o es piri ­tualista.

O movimento integrél li sta teve importante pa rtici pação no processo que desencadeou o go lpe que ins taurou o Es tado Novo em novem­bro de 1937. Ainda ass im, a Ação Integralistél Bras il eira teve seu registro cél ncelado jun to aos demai s partid os políticos, pélrél decepção da direção integrél lis tél. Após uma frustradél tenta­tiva de acordo, os integrali stéls paSSélram él cons­pirar contra Vargas, culminando na chamada " Intentona In tegrali sta" de maio de 1938, quan ­do tentaram tomar o Pal ácio do Catete.

Após a de rro ta do movimento, di versas li­derél nças integralis tas foram presas e Salgado partiu para o exíli o, não sem antes lança r um manifesto aos integra lis tas ped indo-lhes que se élbsti vessem de élgitações e hipotecassem apo io ao gove rn o Vargas. Salgado pe rmaneceu em Lisboa entre ] 939 e 1946.

Co m a redemoc rati zélç50, o mov imento integrali sta rea rti culou-se e organizou-se como pélrtido po lítico, através da fundação do Parti­do de Representélção Popular, em setembro de '1945. Em consonância com O novo contex to político, Salgado passou él nega r o caráter fas­cista do movimento, apresentando-o como "de­mocráti co". O PRP abandonou a característi ca abertamente insurrecio nal da AIB e os aspectos

s imbólicos que mais claramente denunciavam seu caráter fascista - uniforme, saudação, jura­mento de fid elidade ao "Chefe Nacional", etc.

Manteve-se, ainda assin1, como movimento fortemente anti comunista, propugnador de um conceito abe rtamente e liti sta de democraci a, segundo o qual o regime democrático deveria fundamentar-se nas "verdades reveladas" do cri stianismo, as quais não poderiam ser subme­tid as ao sufrágio universa l, qualificado como "arbítrio das massas inconscientes".

A adaptação ao novo contexto político mo­difi cou o papel desempenhado pelo movimen­to . Enquanto nos anos trinta o integraJismo se constituía como propugnador da ins talação de um Estado fascista e concretamente contribuiu para o processo de centralização política, ain­da que a opção de Vargas te n11a s ido po r uma cent rali zação que descartava a mobili zação po­I ítica de massas através de um partido único, a parti r de 1945, impossibilitados de propugnar abertamente ta l perspectiva, os integra listas passaram a desempenhar claramente um papel de "cães de guarda" da ordem es tabelecida, seja através da defesa de restri ções ao exercício da democracia, seja através da propagand a e mobili zação anticomunista.

A ace itação forma l da "democracia represen­tati va" não impedia os integralistas de defen­derem posições abertamente repressivas - cen­sura política e moral, intervenção em entida­des sindicais e estudantis, res trições às liberd a­des públicas, etc. Ao contrário, consistia em um recuo tático que se tornara necessário em vista do novo contexto político, mas não implicava em uma efetiva él lteração do ideá ri o integ ralis ta, a inda que dete rminasse alterações nos métodos e ins trumentos de sua intervenção.

Em termos gerai s, durante todo o período da chamada Quarta República (1945-1964), os integralistas desempenharam um papel de "cães de gua rda" da o rdem estabelecida, através da intervenção do Partido de Representação Popu­lar e também de ou tras organizações voltadas à

1 - Este artigo foi produzido a partir de material integrante da tese de doutoramento NO integralismo no processo político brasileiro (1945-1965) ", defendida junto ao Programa de Pós Graduação da Universidade Federal Fluminense, sob orientação da Prota. Ora. Virginia Fontes . 3 - Ver a respeito DREIFU SS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes , 1981.

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lI i.\' t ó r ja & Luta d e çla .\'.\·e~ - 57

juventude, às mulheres e aos trabalhadores, e ainda de jo rnais de circulação nacional, regio­na l e municipal e de wna editora. O as pecto mais destacad o dessa interven ção e ra o anti co­munismo. O combate ao comunismo pelos inte­gralistas d ava-se de diversas fo rmas: di ssemi­nação de pro paganda anticomunis ta através de panfle tos, folhe tos, programas radiofônicos; discursos pa rlamentares e comícios públicos; produção e publicação de obras anticomun.istas; campanha s is temáti ca de denúncia de supos­tas atividades comunistas e manute n.ção de um vasto serv iço de espionagem da ação dos co­munistas, socialis tas e militantes s indica is, es­tudan tis e sociais.

Sua base social era cons tituída fundamental­mente po r segmentos da pequena burgues ia ur­bana e rural (entendida de acordo com as pro­posições apresentadas por Poulantzas, engloban­do tanto a " pequena burgues ia tradicional" -pequenos comerciantes, pequenos proprietári­os rurais, artesãos -, quanto a u nova pequena burguesia" - traba lhadores assa la ri ados impro­du tivos, d o setor públ ico ou privado).(')

Dentre os e le ito res do Partido de Represen­tação Popula r destacavam-se os pequenos pro­prietários ru ra is, particula rmente das regiões de colonização germânica e italiana no Ri o Gran­de do Sul, Santa Catarina, Paraná e Espírito San­to, comerci antes, trabaUladores do comércio e serv iços e p rofi ss ionais li berais. Seu núcleo di­rigente nacional e e ra predominantemente cons­titu ído p o r p ro fi ss ionais libera is (advogados, méd icos, engenheiros), a inda que também con­tasse com integrantes de outras frações da pe­quena burg uesia.

A participação de setores operá ri os e ra pou­co express iva e a de trabalhado res rurai s assa­la ri ados, pra ti cam ente inex istente. Também a pa rt ic ipação direta de integrantes da burgue­sia nos ó rgãos dirigentes integralistas era pou­co exp ress iva, embora não tota lmente irre le­vante. A composição majoritariamente peque­no-burguesa d as diversas instâncias da direção

partidária, da militância e do eleito rado inte­g ra lista, ainda que em proporções di ferencia­das, nos obriga a refl etir acerca das condições que envolvem sua atuação política, em especi­al sua tendência à heteronom.ia, ou seja, SUZl incapacidade de produzir e sustentar um pro­jeto próprio e autônomo frente às classes fun­damentais.

De acordo com Gramsci, a pequena bu rgue­sia "se caracteriza precisamente pela inCZlpiJci­dade orgânica de criar para si uma lei, de fun­dar um Estado", muitas vezes levando a uma subse rviência frente à burgues ia: "A pequena burguesia, meSlllO nes ta sua última encarn iJção po lítica que é o 'fascismo', revelou definitiva­mente sua verd adeira natureza de serViJ do Cil­

pita li smo e da p ro priedade agrá ri a, de agente da cont ra-revolução. Mas revelou também que é fundamenta lmente incapaz de desempenhar qualquer tarefa histó ri ca". (' I

A pequena bLUguesia define-se sempre, por­tanto, "enl liltilTIiJ instância, em fun ção do con­flito principa l", po is "os g rupos médi os não constituem um dos agentes sociais da oposição entre as classes; assim, sua prática polítiCJ deve aceita r a defin ição, es tabe lecida pe las classes antagônicas, das linhas gerais do conflito prin­cipa]",(6) em virtude da "contradição ideológica pró pria da classe méd ia: enquanto expressão privilegiada da di visão capitalista do traba lho, tende a ser atraída pa ra o campo ideológico da burgues ia: enqu anto classe traba lhado ra, ten­de a se solida riza r com o pro leta ri ado".(7)

Ta l constatação não s igni fica que sua inte r­venção po lítica seja pouco relevante, mas ape­nas que es ta se dá sempre arti culada ou subor­dinada a lima das classes fundamenta is. Assim, a intervenção de um 1l1ov iment"o que arrcg i­menta e mobi l iza seto res da pequena bu rgue­s ia pa ra um projeto antio perório e subordi na­do à o rdem vigente é um fenômeno da maio r importância nZl luta de classes, em um contexto no qual, a despeito da situ ação de clandes tini­dade do PCB, ocorri a uma aproximação entre

4 _ POUlANTZAS, Nico s. As classes sociais fi O capitalismo hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 1975; POUlANTZAS, Nicos. As classes socia is. In: ZENTENO, Raul Benítez. As classes sociais na América Latiaa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 91 ·116. 5 _ GRAMSCI, Antonio. O povo dos macacos f2.1. 1921). In: Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. V. 2. p. 32-33. 6 _ SAES, Décio. Classe média e sistema político no 8rasil. São Paulo: T. A. Que iroz, 19 79. p. 18. 7 _ SAES, Décio. Classe média e política. In: FAUSTO, Bóris forg). História geral da civilização brasileira. Tomo 111 : O Brasil republicano. V. 3: Sociedade e Política 1930-1964. 5 ed. Rio de Janeiro: Bertand, 199 1. pp. 449-506, p. 452.

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58 - Os IlI tegralistas e o Golpe de 64

setores da pequena burguesia e o proletariado em alguns setores, como era o caso do movi­mento estudantil e o si ndica lismo do setor terciário (bancários, comerciários, etc).

A subordinação dos in tegra listas aos gru pos dominantes também é evidenciada pelo es ta­belecimento de vínculos orgânicos com grupos e entid ades de classe representativos de di fe­rentes frações da grande bu rgues ia.

O seman ário integralista de âmbito naciona l A Marcha, que circu lou entre 1953 e 1965, teve dentre seus princi pais anuncian tes regulares grandes insti tuições financeiras - Banco Mauá, Banco Hipotecário Gramacho -, companhias aé­reas - Cruzeiro do Sul, Varig, Pan air - e lojas de depar tamento - Lojas Drago, Casa Va lentim . Ressalte-se o ca ráter abertamente partidário do jornal, o que permite que se compreenda a pu­blicação desses anúncios como forma de apoio político. Ainda mais direto fo i o apoio de inte­grantes da bu rgues ia na constitu ição da editora integralista Livraria Clássica Bras ileira, destacan­do-se o banqueiro Gas tão Vidigal e o industrial Euva ldo Lodi dentre seus principais acionistas.

A Livra ri a Cláss ica Brasil eira publicou as principais obras de Salgado e dos demais auto­res integralistas e trad uziu e ed itou dezenas de obras an ti comunistas, reunidas na Coleção Es­trela do Ocidente. Algumas destas obras eram compradas em grande quantidade pelo Servi­ço Social da Ind ústria pa ra distri buição entre seus associados. A existência des tes vínculos não significa que o PRP fosse a opção preferen­cia l de qua lquer fração da burguesia bras ile ira, mas apenas que cum pria um papel que atendia aos seus interesses, particularmente pela disse­minação do anticomunismo.

Em termos mais estri tamente pa rl amentares e eleitorais, o PRP teve im portantes oscil ações

táti cas dman te o período de sua intervenção, ainda que mantendo os aspectos centrais de seu projeto. Durante os primeiros anos, es tabeleceu alia nça preferencia l com o PSD, apoiando a can­didatm a e o governo do general Eurico Dutra. Em 1950, co ligou-se à UDN, apoiando a candi­d atura pres idencial do brigade iro Edu ardo Gomes, recebendo em troca o apo io u denista à candidatura de Salgado ao Senad o pelo Rio Grande do Sul.

Nas eleições estaduais, o apoio do eleitora­do integralista, que oscilava entre cinco e oito por cento no Ri o Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Espírito Santo, Bahia e São Paulo, era muitas vezes decis ivo, e os integralis tas o ne­gociavam em troca de secretarias de estado, re­cursos financeiros para campanha eleitoral ou apoio em eleições municipais. Entre 1952 e 1955, o PRP seguiu uma linha de "independência pa rtidária", lan çando candidaturas próprias, inclusive a cand idatura de Plínio Salgado à pre­sidência da República em 1955, a qual obteve 714.379 votos (8,3%).

Em 1957, passou a apoiar explicitamente o governo de Kubitscheck, recebendo em troca a pres idência do In stituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC), que conservaria a té 1962.

Neste período, rea li zou diversas coligações com O PTB, com destaque para a coligação que elegeu Leonel Brizola governador do Rio Gran­de do Sul e o integralista Guido Mondin para o Senado, tendo integrado o governo Brizola en­tre 1959 e 1961, ocupando as secreta rias da Agri­cultura e das Obras Públicas e a presidência do Banco do Estado do Rio Grande do Sul .

Em 1960, apoiou a cand idatura pres idencial do Br igadeiro Lott (PSD-PTB). Ainda ass im, passou a apoiar o governo de Jân io Quadros, permanecendo na pres idência do INIC.

o PRP e o governo João Goulart

Durante a crise política aberta com a inespe­rada renúncia de Jânio Quadros, a 25 de

agosto de 196] , os in tegra listas man ifes taram publicamente suas posições e buscaram inter­vir na sua resolução. No mesmo dia da renún-

cia, Salgado d iscursou no Congresso Nacional defendendo o "apoio a todas as med idas pro­postas à Casa no sentido de preserva r a d igni­dade do Poder Legislativo" .(8) Três dias depois, após o pronunciamento dos ministros mi lita-

8 - SALGADO, Plínio. Defesa do Congresso Naciona l, 25 .8. 1961. In: Discursos Parlamentares. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982. p. 165.

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/lis t ó r;a « l.uta d, C/anu - 59

res vetando a posse de João Coulart, Salgado escreveu urna longa carta ao Ministro do Exér­cito, marechal Odylio Denys, sus tentando que um golpe de estado deveria ser evitado, pois serviria aos propósitos do Partido Comunista:

"No atual momento bras ileiro, vejo o Parti­do Comunista organizado de forma a poder atuar no sentido de uma desordem generali za­da, cujos efeitos não podemos prever em toda a sua plenitude. Senão vejamos: 1) Do ponto de vista politico: levam os comunistas a vantagem de desfraldar a bandeira da legalidade e de pugnar pelo cumprimento da Constituição. 1 ... 1 Isto pode criar um dima dos mais propícios à ação dos agentes de Moscou, dada a tendência do nosso povo para examinar as ques tões su­perficialmente e para submeter ao seu incorri­gível superficialismo todas as questões que se Lhe oferecem ; 2) Sob o ângulo das dife rencia­ções regionais: o caso da posse, ou não, do atu­ai Vice-Presidente da República, será certamente transformado numa reivindicação do Rio Cran­de do Sul, inflamando as paixões regiona listas 1 ... 1; 3) 1···1 Há cerca de cinco anos e com o re­crudescimento desde a instalação d o comunis­mo em Cuba, estão funcionando no Brasi l es­colas de guerrilhas, segundo a técnica e a sis te­matização de Mao Tsé-tung r ... ); 4) Em re lação à situação social: não se pode negar o descon­tentamento popula r, pelo encarecimento do custo de vida, o que gera d isposição para o in­gresso de grandes massas em qualquer movi­mento de desordem; 5) Apreciando o ato de re­núncia: vê-se daramente, quer na alegação das causas ('vencido pe los g rupos reacionários'), quer no apelo ('operá rios e estudantes'), que o ex-Presidente, conhecedor da aparelhagem po­lítica acim a enumerada, sabe quais os efei tos de suas palavras". (9)

Alegando sua experiência de "velho lutador contra o comunismo", sugeria ao Marechal que permitisse a posse de Coulart para evitar uma "revolução comunista", impondo- lhe como condições O estabelecimento de uma política

externa anticomunista, a formação de um "mi­nis tério de concentração nacional do qual par­ticipem todos os partidos políticos" e a ace ita­ção das Forças Armadas como fiadoras de tais compromissosYO)

Salgado acrescentava que "em relação à pes­soa do atual Vice-Presidente da República, dou meu testemunho pessoa l de que se trata de um homem equil ibrado, que muitas vezes manifes­tou sua índole e pensamento conservadores" . (11 )

Esta carta foi lida po r Salgado na Tribuna da Câmara dos DeputadosY2) A posição então as­sumida por Salgado visava garantir a manuten­ção da ordem institucional vigente, e com ela os espaços de intervenção conquistados pelos integralistas, além de ga rantir a participação do PRP em um eventual minis tério de conci li ação.

Naquele contexto, uma ruptura ins titucional rad ical não parecia necessá ri a nem se apresen­tava vantajosa aos integralistas, sendo preferí­vel obter compromissos de Coula rt. Ass im, é compreens íve l o apoi o entus ias mad o dos integralistas ao golpe parlamentarista, limitan­do os poderes de Cou lart, mas preservando a ordem ins titucional vigente. Com a posse de Coulart, os integralis tas sa íam forta lecidos, sus­tentando que Salgado foi um dos autores da proposta de emenda parlamentarista, o que era confirmado em decla rações de parlamentares de outros partidos. Ao mesmo tempo, enquan­to via a ascensão de João Coulart à presidência, não perdia oportunidades de lembrá- lo que os votos integralistas foram decisivos para sua elei­ção em 1960, bem como da carta enviada por Salgado ao Ministro do Exército, assegurando que Coulart seri a "democrata e anti comunista" .

Efetivada a posse de Cou lart, a 7.9.61, e cons­tituído seu primeiro Cabine te, chefiad o po r Tancredo Neves, no dia segu inte, o PRP tratou, mais uma vez, de buscar a conquista de postos governamentais. Em entrevista ao Correio I3ras i­li ense, Salgado voltou a refutar as vinculações de Coulart com o "comunismo": ''[. .. 1 acaso o vice-pres idente da Repúbli ca, hoje presidente,

9 _ Correspondência de Plínio Salgado a Odyio Denys. sJd. IArquivo Público e Histórico de Rio Claro - Correspondências Políticas: Pprp 62.00.00/94) . IO- ld.ib. II- Id.ib. 12 _ SALGADO. Plínio. Carta ao Marechal Odylio Oenys sobre a posse do Vice-Presidente da República João Goulart. 28 .8.1961. In: Discursos Parlamen­tares. ob.cit .• p. 168.

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• 60 - Os I ntegralistas e o Golpe de 64

é um agitador perigoso? Não. E dissemos não porque o sr. João Goulart é um homem de bom senso, tem a mentalidade patriarcal dos estanci­eiros do Sul e que muitas vezes revelou sua ca­pacidade para contornar crises e tranqüilizar o Pa ís. Mas, nesse caso, podemos ainda pergun­tar: o s r. João Coulart adota a ideologia comu­nista? Também não, pois todos o conhecemos".cI3)

Ao mesmo tempo, c riticava a "a mbição desordenada dos chamados 'grandes partidos', deixando à margem e descontentes os chama­dos 'pequenos partidos"'.!")

A indicação de làncredo Neves era entusias­ticamente aprovada: "A escolha do sr. Tancredo Neves para o cargo de Primeiro Minis tro do novo regime que se inicia foi uma das mais acer­tadas. Homem reservado, de atitudes comedi­das e pronunciamentos serenos, dignos e opor­tunos, inspira a confiança de todos. Pelas suas qualidades de jurista e virtudes de caráter está predestinado a um desempenho condigno com o alto cargo para o qual foi indicado"Y')

Em 23 de setembro, o PRP formalizou seu apoio ao novo governo, reafirmando a propos­ta de formação de "uma concentração naciona l em que participassem todos os partidos".(16)

A diretriz afirmava que o pa rtido deveria "adotar a linha do bom senso neste período de transição [ ... 1, não pretendendo se pratique no momento um rigoroso parlamentarismo clássi­co, cerceando demasiadamente o Presidente da República"; denunciava os que pretenderiam "implantar no País uma s ituação de desordem"; reafirmava que uno atual instante a maior amea­ça contra nossa Pátria é o comunismo"; e deter­Ininava que unão devemos nos manifestar iso­ladamente em relação ao Governo Central, aos Governos dos Estados ou aos partidos".CI7)

A pre tensão em ampliar sua pa rticipação no governo fo i frustrada, mas o partido conseguiu conservar a presidência do INIC, considerado estratégico pela sua importância política e pelos

inúmeros cargos de Bvre nomeação que possuía. Parcialmente contra riados em suas expectativas, os integraBstas diminuíram o entus iasmo de seu "apoio" ao governo, passando a ve icular algu­mas críticas. Em novembro, editorial do jornal integralista registrava: "o novo Governo vai en­trar no seu segundo mês de exeró cio e o povo já começa a dar mostras de impaciência quanto à parcimônia exagerada de sua atividade"Y')

Um mês depo is, o integra li s ta Raimundo Barbosa Lima fo i nomeado presidente do lnsti­tuto de Previdência dos Servidores Públicos (IPASE). Em resposta, os integraBs tas passaram a elogiar Cou lart e seu governo, embora ressal­vando a política exte rna independente por ele adotada . No decorrer de 1962, no entanto, os integra li stas enfrentaram crescentes dificulda­des, com a não liberação de ve rbas às autarquias que d irigiam e a divulgação de denúncias de corrupção contra os dirigentes do INIC.

Este descontentamento incentivou-os a acir­rarem suas críticas à política externa. Ainda em 1961, um Conclave Nacional do PRP definiu que o partido deveria desencadear mais uma "vasta campanha anticomunista nacional", tendo como primeiro ponto "prossegu ir, com maio r intensi­dade, a campanha já deflagrada durante o go­verno do sr. Jânio Quadros, contra a po lítica ex­terior, continuada pelo atual Gabine te, cujas con­seqüências se evidenciam no entusiasmo e no su rto interno do comunismo em todo o Brasil". CIO)

A campanha seri a desenvolvida a través de comícios confe rências, mani fes taçôes públicas, discursos parl amenta res e denúncias contra a "infiltração comunis ta" na adminis tração pú­blica. A cam panha fo i inaugu rada com um dis­curso proferido por Salgado na Câma ra, tratan­do do "mais grave de todos os assuntos de que tomou conhecimento esta Câmara na presente legis latu ra": "o reatamento das relações di p lo­máticas do Bras il com a Rússia Sovié tica".(20)

Salgado a rgumentou que "no plano ve rme-

13 - Entrevista concedida por Plínio Salgado ao Correio Brasilicnsc. sJd. Original Datilografado IAPHRC·FPS 091.003.004). 14 - A palavra de Plínio Salgado em Palestras com o Povo. A Marcha. Rio de Janeiro, 15.9.196 1, p. 2. 15 - O premier. A Marcha, Rio de Janeiro, 15.9.196 1, p. 1. 16 - Diretrizes da Presidência Nacional do PRP, 23.9. 196 1 (APHRC·Pprp 23 .09.61/3). Grifos meus. 17 - As Diretrizes foram public adas no jornal partidário; Diretrizes do PRP sobre o regime parlamentarista. A Marcha, Rio de Janeiro, 5.10.196 1, p. 3. 18 - O Governo existe? A Marcha, Rio de Janeiro, 2.11 .196 1, p. 1. 19 - PRP comanda ofensiva anticomunisla no país. A Marcha, Rio de Janeiro, 9. 11 .1961 , p. 1. 20 - SALGADO, Plínio. Reatamento de relações diplomáticas com a URSS, 29.11 .1961. In; Discursos parlamentares, ob. cit., p.411.

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H; \· ttÍr; a & I.ula (/e C l a.uc .\· - 61

lho para as Américas, o Brasil ocupa lugar de especia l destaque", concluindo que "o reata­mento das re lações diplomáticas com a Rússia revelou a existência em nosso País de um pen­samento digno dos acomodados, dos negligen­tes, dos o po rtunistas e dos fatali stas".!2I)

Na Câmara, o deputado integralista Oswaldo ZanelJo (PRP-ES) acirrava a crítica, pedindo abertamente às "classes armadas" que impuses­sem uma mudança na política externa: "Resta­nos nesta ho ra de luto nacional, ape lar para o patriotismo d e n ossas classes armadas, a fim de que resguardem nossas maís puras tradições de bras ilidade, procurando reprimir e da fo r­ma mais viril a infiltração comunista no Brasil e nas Amé ricas, ex ig indo do governo, como responsável pe la manutenção da o rdem inter­na e da segurança da Nação, que o Brasil se in­tegre novam ente no s istema pan-ameri cano, rompendo su as re lações com O regime sangui­ná ri o, tirânico e opresso r de Fide l Castro. O Brasil confia nas suas classes armadas e sabe que elas não lhe fa ltarão".(22)

Em novo di.scurso, Zanello afirmou que "o governo está mancomunado e orientado pe los comunis tas", " facili tando-lhes a ação subversi­va, criando n o pa ís uma ambiência periculosa Is ic] de d omínio vermelho ou amarelo", e ex i­gia a demissão d os comunis tas do governo, dos cargos públicos, d as cátedras, das classes arma­das, dos s indicatos, do Pa rlamento e do meio estudantil, a p roibição da venda de livros "sub­vers ivos" , e a pró pria qu ed a d o governo: "Derrubá-lo é a maior obra de patriotismo que a Câ­mara poderá fazer. Que os deputados providen­ciem isto antes que esse governinho que está a í tenha tempo de d es tru ir nossas ins titui ções democráti cas". (23) O de putado Abel Rafael (PRP­MG) quali ficava o reatamento com a União So­viética como um "crime contra o Bras il " e afir­mava que "os russos estão fazendo o que que­rem em nosso pa ís". (24) Esta tese era difund ida por A M archa, que denunciava a entrada em

21 - Id .ib., p. 423, 432 e 425.

massa de agentes soviéti cos no Bras il, apelan­do para "o pres idente da República e o Conse­lho de Ministros cham arem à razão este irres­ponsável chanceler San Tiago Dan tas". 12')

A críti ca à po lítica ex te rna do governo Goulart, que em termos gerais seguia e apro­fundava a "política externa independente" inau­gurada no governo Jânio Q uadros, teve uma função relevante para o PRP no período em que ele parti cipava do governo, po is e ra utilizada como uma compensação oferecid a aos seus militantes que di scord avam do apo io àquele governo e, ao mesmo tempo, visava impedir que a UDN monopoli zasse a críti ca de dire ita contra o comunismo e sua suposta "i nf iltração" no governo. No entanto, a pa rti cipação do par­tido no governo, à frente do INIC e do IPASE, to rnou tal discurso cada vez mais contrad itó­ri o e insustentável, gerando um impasse cres­cente, só resolvido com O rompimento definiti­vo, às vésperas das eleições estaduais de ·1962.

A partir de junho de 1962, quando o Gabine­te chefiado por Tan credo Neves entrou em cri­se, o PR P passou a criti car abertamente o go­verno como um todo, não se restringindo mais à políti ca externa, embora ainda tenha conser­vado os cargos que detinha no governo por mais três meses. No in ício daq uele mês, Abel Rafae l defendeu a queda do Gabinete: "Eu quero der­rubar O Gabinete. A casa não quer. Cada qual tem um emprego a ped ir, uma verba a li berar, uma estrada a abrir. Enquanto houver institu ­tos, houver empregos, etc., não se derruba nin ­guém".!" ) Com a demissão do Gab inete chefia­do po r Tancredo Neves e a ind icação de San Tiago Dantas para o ca rgo de Primeiro Minis­tro, os integralistas radica li za ram sua oposição. Salgado discursou criti cando o "esquerd ismo" de sua gestão no Minis té rio das Relações Ex te­riores e encaminhou a decla ração de voto do PR P con tra a aprovação de seu nome, ass inada pe lo cinco deputados federais do pa rtido.(27)

De acordo com A Marcha, "não é de hoje que

22 _ Apelo de Oswaldo Zanello às Forças Armadas. A Marcha, Aio de Janeiro, 1°.3. 1962, p. 2. 23- Discursos Parlamentares. A Marcha, Aio de Janeiro, 15.3. 1962, p. 2. Grifo meu. 24 _ Discursos de Ab el Rafael, Oswaldo Zanello e Arno Arnt.A Marcha, Aio de Jane iro, 24 .5 .1 962, p. 2. 25- Política de San Tiago trampolim para a invasão bolchevista no Brasil. A Marcha, Aio de Janeiro, 3t.5.1962, p. 1 e 6. 26 _ Discurso de Abel Rafael sobre a Moção de Censura ao Ministro San Tiago Dantas. A Marcha, Aio de Janeiro, 7.6.1962, p. 2. 27 _ Declaração de voto da bancada do PAPo 28.6.1962. In: SALGADO, Plínio. Discursos parlamentares. ob . cit., p. 197-198.

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62 - Os IlIlegraljslas e o Golpe de 64

o deputado Plínio Salgado, coerente com a dou­trina integra lista, vem ad vertind o a Nação para o peri go que representa, em potencial, este ho­mem que até hoje nada fez pelo Brasil a não ser causar-lhe prejuízos morais e materi ais" .{2B)

O voto pela rejeição da indicação de Dantas represento u um passo importante na articula­ção do PRP com o conjunto das forças de dire i­ta, reunidas na Ação Democrática Parl amentar, a qua l, contando com 158 deputados federais, dentre os quais os cinco do PRp, fechou ques­tão na rejeição de seu nome.(29)

A formação dos dois g randes blocos pa rla­mentares que polari za ri am a d isputa política no Pa rl amento nos do is anos seguintes - Ação Democráti ca Pa rlamenta r e Bloco Pa rl amenta r Nacionalista - levou ao a linhamento natural dos integra li stas ao bloco de d ireita - ADP -, tor­nando irreversível seu afastamento do gover­no Goula rt. A rejeição da ind icação de San Tiago Dantas pela Câma ra deu ori gem a urna crise política, cujo passo seguinte foi a indicação, por Goula rt, do nome do deputado conservador Auro Moura And rade (PS D-S P) para o ca rgo de Primeiro Ministro, apoiada pe los pa rlamen­tares integra li stas . A aprovação do nome de Andrade fo i recebida com grande sa ti sfação pelos integrali stas, pois determinaria uma gui­nada conservadora do governo Go ulartPO)

No entanto, a fo rte reação po pular levou à renúncia de Andrade e apro fu ndou a crise po­lítica. Goulart retomou a iniciati va, indicando Francisco Brochado da Rocha (PTB-RS) à Che­fia d o Gove rno, pa ra descontentamento dos integra li stas. A ap rovação do Gabinete por ele chefiado, contra o voto de apenas 58 deputa­dos, fo i uma derrota para o PRp, levando ao seu rompimento definiti vo com Goubrt.

Dias depo is, A M archa res ponsabil izava Goula rt e Brodlado pela "subversão da ordem", supos tamente confi gurada na campanha pela antecipação do plebiscito: "O plebiscito, de rei­vindicação ju sta, passou, nas bocas e nas mãos dos ag itadores, a mero pretexto de con fu são,

demagogia e le i to rei ra e abe rto convite à baderna, à mazorca, à convulsão nacional". ~I)

Confirmada a an tecipação do Plebiscito, mar­cado para 6 de janeiro de 1963, os integralistas passaram a defender o não reconhecinlento do Plebiscito e o voto nulo: 'l .. ] debaixo de pres­sões de todos os gêneros e modos, o Congresso capitulou, marcando a consulta ao povo para 6 de janeiro. E os integralistas? Só têm uma ma­neira para se conduzirem em tal plebiscito, não se manifestando nem por urna forma nem por outra. Apenas escrevendo na cédula a palavra I nteg ralismo". (2)

O últinlo gabinete parlamentarista, liderado por Hermes Lima, também teve acirrada oposi­ção dos integ ralistas. No decorre r do segundo semestre de 1962, os integralistas questionavam diretamente a legitimidade daquele governo e denunciavam a existência de um su posto" plano golpista" que seria executado pelo governo ou com sua cumplicidade, argwnento que seria de­senvolvido durante o ano seguinte e até o golpe de Estado em ]964. Naseleiçãesestaduais de ]962, os integralistas alinharam-se daramente com os demais grupos conservadores nos principais es­tados, apoiando as candidaturas de Adhemar de Barros (PSP/SP), lido Meneguetti (PSD/ RS), Lomanto Júnior (UDN/ BA), Pau lo Fernandes (PSD/Rj), Virgílio Távora (PSD-CE), João C1eofas (UDN/PE), todos contrários a Goulart.

Em São Paulo, Rio Grande do Sul e Bahi a, a votação proveniente do eleitorado integrali sta foi decisiva para a vitória dos candida tos apoi­ados pelo PRp, pois a d iferença de votos foi in­ferior à votação recebida pe la bancada parla­mentar do partido. Especialmente expressiva do rompimento com os setores governi s tas era a partici pação do PRP na coligação conservado­ra constituída no Rio Grande do Sul para en­frentar o candidato do então governador leo­ne l Brizola, de cujo governo o PRP pa rti cipara por quase três anos, posição mantida nas elei­ções municipais de ]963, sob a diretriz de "man­ter a Ação Democrática Popula r e só em último

28 - Com Jànio e depois com Jango o PAP sempre ficou contra San Tiago Dantas. A Marcha, Rio de Janeiro, 28.6 .1962, p. I. 29 - Por que a AOP velou San Tiago. A Marcha, Rio de Janeiro, 28 .6.1962, p. 2. 30 - Comunistas derrotados com a vitória de Aura. A Marcha, Aio de Janeiro, 28 .6. 1962, p. 1. 31 - O Brasil precisa andar. A Marcha, Rio de Janeiro, 13 .9. 1962, p. 1 32 - O plebiscito. A Malcha, Rio de Janeiro, 22 .11.1962, p. 3.

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/lislaria & Lulq d e ClaHe .f - 63

caso, realizar coligação com o Partido Traba­lhista BrasiJeiro".(33) O PRP participou do go­vemo lido Meneguetti, assumindo as secretari­as da Administração e da Fazenda, as pres idên­cias do Banco do Estado do Rio Grande do Sul e do Instituto de Previdência do Estado, e direto­rias da Comissão Estadual de Silos e Armazéns, do Departamento de Imprensa Oficial, da Junta Comercial do Estado e da Caixa Econômica Es­tadual.(34) Em São Paulo, o apoio a Adhemar de Barros era justificado em nome do anticomu­nismo: "A vitória eleitoral de Adhemar de Bar­ros em São Paulo [ ... ] significará um golpe de morte no processo de bolchevização por que passa O país", sustentando que" com Jânio elei­to, o Brasil correrá perigo de sangue". (.1$)

O PRP participou do governo Adhemar ocu­pando a Secretaria do Trabalho, lndústria e Co­mércio e a presidência do lnstituto de Previdên­cia do Estado, mas teve sua participação redu zi­da no decorrer do governo. Em junho de 1962, os integralistas lançaram um Manifesto criando

o "Movimento de Reconstrução Nacional", já anunciando uma mobili zação mais agressiva contra o governo Goulart: "Considerando que não se pode mais perder tempo com a política med íocre dos partidos I ... J propomos neste ins­tante à Nação Bras ileira um movimento no sen­tido de reconstruir tudo o que sentimos destruí­do em nossa Pátria, lançamos o Movimento de Recons trução Naciona l. I ... J Conclamamos O

povo de nossa terra principalmente os pais de famíl ia, que pela sua formação cristã são dla­mados ao bom combate para ev itar, enquanto é tempo, as desgraças iminentes que ammçam o Brasil e ver cerrar fil eiras em torno da nossa ban­deira em que inscrevemos a trilog ia sagrada: Deus, Pátria, Fam.Ília ." (.\6)

Este Movimento não prosperou, mas o tom de seu InanHesto de lanç.:uncllto marcarin a i.ll­te rvenção integralista a partir de então, quando os integra listas passa ri am a propugnar abe rta­mente pe la derrubada v io len ta do (;ove rn o Goulart, através de um go lpe de Estado.

A campanha anticomunista e a defesa do golpe de Estado

O PRP teve uma intervenção relevante no processo que conduziu aO go lpe civi l-mi­

litar de 1" de abril de 1964, ainda que esta seja praticamente descons iderada pela hi s torio­grafia. Esta intervenção se efetivou tanto atra­vés das manifes tações públicas do partido nos meses que antecederam o golpe, utilizando-se de manifestos, notas públicas e discursos par­lamentares, quanto pela articulação concreta de lideranças integralistas com outros grupos go l pistas, sempre tendo como tônica principal o anticomunismo.

A restaUIação do presidencialismo, determi­nada pela esmagadora vitória obtida pelo gover­no no plebiscito de jane iro de 1963, constituiu­se em marco para a adoção de um novo patamar de radicalização do oposicionismo integralista.

A partir d e então, o governo Goulart seria tratado como um inimigo perigoso, sempre as-

sociado ao comunismo, mot ivo pelo qual jamais se poderia conciliar com ele, tornando progres­sivamente exp lícita a opção dos inte(; rali s tas pela alternativa gol pista . Reunido em Conven­ção Nacional em maio de ·1963, o PRP produziu uma Nota Oficia l "considerando ext remamen­te grave a situação bras il eira", propondo "uma alta política de bom senso e de equ il íbr io", para evitar "que o País venha a ca ir nas mãos da de­sordem ou na de uma o rdem que suprilll a as liberdades democráticas" e permitir que (ossem restaurndas "a ordem econômica, n ord em fi­nanceira, a ord em social, a ordclll política, n ordem adminis trativa, a ordem moral, a disci­plina e iI hie rarquia dos va lores".!")

Em setembro do mesmo ano, a Ba ncada do Partido na Câmara Federal lançou o utra Nota, apelando diretamente pa ra a inte rvenç50 das Forças Armadas: "A Bancada do Partido de

33 _ Orientação sobre as eleições municipais de 1963, 9.12.1962 (Centro de Documentação sobre a Ação Integ ralista Brasileira e o Partido de Representação Popular- Documentação do Diretório Regional) . 34 _ Participação do PRP no governo gaúcho. Boletim do PRp, Porto Alegre, out. 1963, p. 1. 35 _ Adhemar e Lacerda unidos contra o comunismo. A Marcha, Rio de Janeiro, 26.7.1962, p. 1. 36 _ Plínio em Bauru preconiza a reconstrução do país. A Marcha, Rio de Janeiro, 14.6.1962, p. 1 e 3. 37 _ Nota Oficial da Convenção Nacional do PRP, 21 .5.1963 (Centro de Documentação sobre a AIB e o PRP - Documentação do Diretório Nacional).

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64 . Os IlIlc/:Ta!istnJ e o Golpe de 64

Representação Popular na Câmara Federal denun­cia à Nação Brasile ira a ex istência e funcionamen­to de um Sovict em nosso País, nos moldes exatos do que se instalou em Petrogrado em 1917, aqui sob o pseudõnimo de CCT. [··· 1 Nestas condições, a bancada do Pa rtido de Rep resentação Popular apela para o pundonor, o brio, a honra, o patriotis-1110, das Forças Armadas, para que evitem, a todo o tran se, as desgraças que se prefig uram para a Na­ção brasileira e alerta o povo de nossa Pátria para que em união sagrada levante nesta última opor­tunidade de que depende a salvação nacional" .(38)

A partir de então, as manifestações dos inte­gralistas contra o govern o Coulart sucederam­se em ritmo ace lerado. Na semana seguin te, Salgado d iscursou na Câmara, responsabilizan­do o pres iden te pe lo clima de "agitação" e "de­sordem": "Desde que Sua Exa. assum iu a Pre­sidência da República, recrudesceram as agita­ções políticas de estudan tes, comícios promo­vidos pelo próprio Pres idente da Repúbli ca e ga rantidos po r forças do Exército pa ra lançar o País no campo das paixões, da confusão e da ruína, ou temos greves sucessivas que trazem prejuízos de bi lhões à Nação. 1 ... 1 Se ex iste al­guém responsável pela desordem reinante, al­guém responsável peLos preju ízos acarretados ao País, pelas greves sucess ivas a que estamos assistindo, esse responsáveL é o Pres idente da República. [ ... ] Fa lta autoridade no "tual mo­mento naciona l, falta ordem, fa lta sentido de responsabi li dade. 1 ... 1 Falta ao Chefe da Nação autor idade mora l para p retender aco rdos entre patrões e empregados ou para intromete r-se na v ida do Legis lati vo".I")

No d ia segui nte, Sa lgado encaminhou o voto contrário da Bancada do PRP ao projeto gover­namen ta l de reforma agrárin, qua lificando-o como ten tativa de destru ição da agricultu ra e da pecuária brasileiras: "Esta é uma horiJ dolo­rosa em que o princíp io de auto ri dade es tá com­pletamente combalido; em que já não há mais

hierarquia e nem di sciplina; em que assistimos a inversão dos valores; em que ouvimos teóri­cos e doutrinadores, metafísicos ou românticos, trazendo mais achas à fogueira em que arde a Nação. Esta ho ra em que v emos a dissolução completa da o rgânica brasileira e, agora, ainda se pretende, depois de sucessivas greves alimen­tadas pelo pró prio poder constituído, ainda se pretende destruir a única coisa que ainda tem alguma organização no Bras il; a nossa lavoura e a nossa pecuária. Este é um momento doloro­so da nossa Nação".I'O)

O deputado Oswaldo Zanello protestou con­tra a concessão da condecoração do Marechal Tito, apontado como "o n ovo Nero, o maior per­seguidor da Ig reja", e apresentou um projeto de Lei declarando-a sem efe ito.14I) Na mesma semana, Salgado posicionou-se contra a solici­tação governamental de decretação de Estado de Sítio, qualifi cando-a como "preci pitação dos Ministros Militares", "mesmo amenizado por essa ado rável Irmã Paula que aparece em todas as ocasiões em nossa Casa Legislativa, com suas fó rmulas conciliatóri as, ou trazendo o espara­d ra po para cura r fe ridas - o PSD" .(42) Os depu­tados pe rrepistas se revezav am nos discursos contra Coula rt. Zanel lo acusava que "nunca, ja­mais, em tempo algum, hou ve nesse país go­verno faccioso, medíocre e irresponsável como esse que aí está a infelici ta r a Nação e desespe­rar o povo brasileiro"I") e Abel Rafael Pinto con­siderou a administração de Coulart "n u la" .!")

Salgado, po r sua vez, sustentava que "o que se está passando no Brasil é abso lutamente idên­tico ao que se passou na Rússia em 1917", agra­va d o pela "presença em nosso Pa ís de uma embaixada cujo governo tem, como ponto de programa, a im plantação do comunismo no mundo".I") Ainda em outubro de 1963, Salga­do enviou uma "Mensagem ao Povo Caúcho", sustentando que ex istiri a uma "ampla infiltra­ção comu nista" no governo federa l: " Homens

38 - Nota Oficial da Bancada do PRP na Câmara Federal. 24 .9.1963 (APHRC-FPS 018.004.002). Grifo meu. 39 - SALGADO, Plínio. Pronuncia-se contra a demagogia governamental, 30.9.1963. In: Discursos parlamentares, ob. cil., p. 234-235. 40 - Discurso de Plínio Salgado na Câmara dos Deputados em 10 .10.1963. Anais da Câmara dos Deputados, 1963, p. 163. 41 - Discurso de Oswaldo ZanelJo na Câmara dos Deputados em 1°. 10. 1963. Anais da Câmara dos Deputados, 1963, p. 7495 (APHRC-FPS 015.029.009) . 42 - SALGADO, Plínio. A desordem no sistema presidencialista e o Estado de Sítio, 7.10.1963. In: Discursos Parlamentares, ob. cit., p. 236-237. 43 - Discurso de Oswaldo ZanelJo na Câ mara dos Deputados em 10. 10.1 963. Anais da Câmara dos Deputados, 1963, p. 7662. 44 - Discurso de Abel Rafael Pinto na Câmara dos Deputados em 10.10.1963. Anais da Câmara dos Deputados, 1963, p. 7669-7672. 45 - SALGADO, Plínio. Advertência às esquerdas, 24.10.1963. In: DiscUfsos Parlamentares, ob. cit., p. 239-247;

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reconhecid am ente comunistas ocupam altos postos no Governo, desde os auxiliares di retos do Presidente da República, aos ministros e pre­siden tes d e autarquias. O meio estudantil está dominado pela União Internacional dos Estu­dantes, com sede em Praga, e subord inada ao Consom ol, uma das mais importan tes seções do Kominform. O operariado está dominado pela ditadura de um sovie te que entre nós tem o nome de CGT. A infiltração na imprensa de elementos vermelhos é notória. Nos cí rculos do professorado su perior e secundário é tão gran­de a influência de elementos de Moscou, que recentemente num manifesto vibrante de patri­otismo, urna centena de professores uni versi­tários denunciou à Nação as ativ idades de mes­tres no sentid o de formarem em seus a lunos uma mentalidade comunista". (46)

A tese de que havia um a revolução em curso fundamentava a argumentação em fa vor do gol­pe, tornando necessário o forjamento de um "pe­rigo revolucionário iminente", ainda que para isto fosse necessário denunciar conspirações inexistentes, como fica evidente em um episó­ruo relatado pelo perrepista Anton io Pires, en­tão Secretário da Administração do Rio Grande do Sul: o C hefe da Casa Civi l, Plínio Cabral de­nunciou à imprensa, em janeiro de ] 963, que "estava em marcha um movimento revolucioná­rio, tendo seus articuladores até marcado data para ecIodi-lo, adiando-o por duas vezes", sus­tentando que "o Governo do Estado havia abor­tado o golpe com medidas que tomou de forma secreta, m as que os aventu reiros pretend iam levá-lo a cabo no inido de janeiro".''')

A declaração gerou uma crise política, já que a Assembléia Legis lativa convocou os secretá­rios da Justiça e da Segu rança Pública para pres­tarem esclareci mentos, o que foi recusado pe­los mesmos, visto que sabiam que a denúncia era forjada. Mesmo assim, Pi res ofereceu-se para responder pela Secretaria de Segurança

Pública e comparecer à Assembléia, junto com José Antonio Zuza Aranha, que passou a res­ponder pela Secretaria da Justi ça, confo rme re­lata Pires: "Fui preparar-me para o embate que ocorreu dia 8 de janeiro. Os subsídios forneci­dos por Plínio foran1 apoucados. Hav ia tiros de festim e escassa munição. O importante era aproveitar a oportunidade para agitar idéias e pregar na ofensiva. Assim procedi, como relataram os jornais da época. 1 ... 1 No Lm ico e Ligeiro encon­tro entre eu, José An tonio Zuza Aranha e Plínio Cabra l para ajustamento dos ponteiros, acordou­se que se fosse necessár io nominar o chefe da conspiração, este seria chamado de Otáv io. Zuza, no seu depoimento que antecedeu o meu em um dia, confundiu-se e nomeou Osvaldo em vez de Otáv io. Tive de confirmá-lo ... O certo é que rIllYI ­

ca existi" nem Oswaldo nem Otavio. Foi coisa de fértil imaginação ... O relevante é que termos ap ro­veitado a oco rrência da opin ião públi ca para o que se passava Is icl. Foi um alerta".''')

Nos três primeiros meses de ·1964, os depu­tados federais do PRP proferiram dezo ito dis­cursos anticOlllunistas c antijanguistas, de acor­do com levantamento da Assessoria Parlamen­tar do PRP' (49) Em fevere iro, Salgado seguia afir­mando que "no Bras il se processa a preparação de uma guerra civil" ."O)

O Diretório Regional do PRP no Rio Crande do Su l reagia, em Nota Oficia l, contra os dec re­tos pres idencia is anunciados por Coula rt no comício da Centra l do Bras il, conside rados pe­ças "de um terrível esquema de aniqui lação da Nação Brasileira": a encampação d~s refinari as de petróleo visaria "da r aos subvers ivos as con­dições necessá ri as à para lisação do pa ís em 24 horas e entregá- lo à sanha revolucion6ria dos esquerdistas de todos os mati zes", enquanto o Decreto da Superi ntendência da Refo rma Agrá­ria te ria "como objetivo essencia l a agitação, o atropelo da propriedade privada e o desmante­lamento da produção". ''')

46 _ Plínio Salgado ao Povo Gaúcho. Boletim do PRP, Porto Alegre, out. 1963, p. 1. 47 _ Citado por PIRES, Antonio . Pelo PRP na politica gaúcha: Depoimento para o CDAIBPRP. Porto Alegre: mimeo, 1997, p. 92 . 48 - Id.ib., p. 93. Grifos meus. . 49 _ Discursos parlamentares anticomunistas da banca da federal do PRP na crise antecedente à Revolução de março-abril de 1964 (20.1 a 31.3. 1964 )

IAPHRC·FPS 015.026}. 50 _ SALGADO, Plínio. O Povo Brasileiro, a reforma agrária, o voto do analfabeto, a Guerra Revolucionária e a legalização do Partido Comunista, 28.2.1964. In: Discursos Parlamentares, ob. cit., p. 252. 51 - PRP abre baterias contra os decretos presidenciais. Diário de Notícias, Porto Aleg re, 13.3.1964 (CDAIBPRP-Recortes) .

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66 - Os IlI legrtllÚ'lfU' e o Golpe de 64

Uma manifestação especia lmente impo rtan­te no contexto do imediato pré-golpe fo i o Ma­nifes to da Bancada do PRP, lançado dez d ias antes do desencadeamento da ação militar, "de­nunciando" "o agravanlcnto da s ituação polí­tica nacional, tornada mais aguda pelos episó­di os que se desenrolaram no Estado de Gua­naba ra no dia "13 do co rrente", e dirig indo-se à Nação para "a le rtá-Ia sobre os perigos que a allleaçam c informá-Ia sobre a inequ ívoca posi­ção que adota em sua defesa e das instituições por que se rege": "O Bras il se encontra em esta­do de semi-ocupação pe lo Pa rtido Comunista, organi zação intern ac iona l a servi ço do ilnperi­ali smo s ino- russo, de caráte r ideológico, eco­nômico e mi litar. Os agentes das potências es­trangei ras comandam o assa lto fina l ao Poder. [ ... 1 Denunciamos ao Povo Brasile iro, ao seu juízo e ao ju ízo da His tó ria, o atual detento r do Poder Executi vo da Repúb li ca, s r. J050 Goulart, como o principa l responsável pela s ituação aci­In;] descrita c pelas conseqüências trágicas que dela decorrerão para o Povo Bras il eiro. É hoje o pres idente da República e lemento dlave uti ­li zado pe lo Pa rtido Comunis ta ao assalto ao Poder. A B do mês corrente, no Estado da Guanabara, o detento r do Pode r Executivo da Repúb li ca, comparecendo a um conúcio orga­n izado por agitado res, em loca l proib ido, pra­tico u ato c<lp itul<ldo como crime contra a Segu­rança do Estado, por lei em p lena vigência. É a segunda vez que o faz. Ali o uviu , ap laudiu , aprovou e secundou, com suas próprias pala­v ras, pro nun ciamentos sedi c iosos cont ra a Consti I·u iç50 e a o rdem juríd ica es tabelec ida nas leis votadas pelo Povo, leva nd o a intranq üi­lidade, a angústia e o pânico aos lares bras ilei­ros. 1 ... 1 Não reconhecemos no atual detentor do poder Executivo, auto ridade a qualquer tí­tulo, pa ra nos im por, como pre tende, a sua VOI1-

tade, no que tange à solução de problemas da mais alta complex idade com que se defronta a Nação; nem lhe reconhecemos credenciais pró­prias ou induzidas. Já não há, portanto, uma dúvida razoável. Os atos e procedimentos do detentor do Pode r Executivo da República não se condicionam mais à Constituição, seja como Lei Orgânica, seja como ins trumento de governo, seja como limitação do Poder. I· ·· ] À violência arbitrária, responderemos com a força do Di­reito, que legitima a força no Direito. Por isso mesmo advertinlos: ao lado do povo brasileiro, defenderemos até o últinlo alento a liberdade que pretendem roubar-nos. De cidade em cida­de, de rua em rua, de casa em casa, palmo a palmo, di sputaremos o mão deste pa ís. A qual­quer preço e por todos os meios. I ... I Nem o terror de uma ditadura comunis ta, nem caudilho al­gum tripud iará sobre o brio, a honra, o sangue e as lág rimas desta Nação". !")

Desta forma, em nome da manutenção da "democrac ia", que esta ria ameaçada pela per­manência de Goulart no poder, os integralistas construíam uma justi ficação para a ruptura institucional, através da "força legítinla", o que foi refo rçado no dia 31 de março, em um dis­cu rso de Abel Rafael Pinto, jus tificando e soli­citando abertamente o uso da força para a de-­posição de Gou lart. !"')

A cons tante e crescente manifes tação dos integrali s tas nos últimos meses d o governo Goula rt inseriam-se, certamente, em um contex­to mais amplo de mobilização e manifestação dos diferentes g rupos de direita. Ainda que muitas vezes as críticas dos integralistas se confundis­sem com as de outros gru pos, em especial, a UDN, deve-se, no múúmo, reconhecer que a in­tervenção do PRP contribuiu pa ra a obtenção do apoio ao golpe em parcelas da sociedade civil, em especial junto à pequena burg uesia.

A participação integralista nas articulações e mobilizações golpistas

PtH81Cla mcntc aos discursos parlamentares, proclamações e notas públicas contra o go­

verno Gou lart, os integra l istas procuravam es­tabe lecer laços e se arti cularem com outras fo r­ças go l pis tas, visando uma ação conjunta.

No que se refere especificam ente aos parti -

dos políti cos, a e leição de 1962 nos estados foi um momento decis ivo do estabe lecim ento des­ta arti culação, não apenas através do apoio a cand.idatos da UDN e dos setores antijanguislas do PSD para os governos da m a io r pa.rte dos estados, mas, a inda, com o finan ciamento de

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/fi ó ia ~ ul d as - 67

candida turas parlamentares do PRP pelo com­plexo I PES / IBAD, que financiaram candidatu­ras antijanguistas nas eleições de 1962 e coor­denaram a articulação gol pista na sociedade civ il. Em junho de 1962, uma longa carta confi ­denciai e n ão assinada, dirigida a Teixeira Coe­lho, chefe d o "Gabinete Militar" de Plinio Sal­gado, re latava as a tividades do complexo IPES / IBA O, sugerindo que o PRP tirasse proveito do esquema: "Agora vau lhe contar O 'mapa da mina' e admiro que vocês aí no Rio não saibam disso. Po r isso, este assunto é confidencial. Logo que foi aprovado, na Câmara dos Deputados, o chamado projeto de remessa de lucros (que con­tém dis pos itivos a rroch ados), as chamadas 'classes conservadoras' ou forças da produção (Ass. Comercial, Centro das Indústri as, Fede­ração das lndústrias, etc) daqui de São Paulo se a larmaram e se entenderam com as congê­neres daí do Rio e de Belo Horizonte. Reuni­ram-se aqui e deliberaram enfrentar o proble­ma, estruturando entidades, pa ra o público, de estudos e pesquisas sociais. Aqui em São Paulo é o IPES (lnstituto Paulista de Estudos Superi­ores), aí no Rio, O INES (Instituto Nacional de Estudos Superiores) e em Minas o IMES (Ins ti­tuto Mineiro de Est. Sup.). Para uso externo, convi dam m aiorais, políticos, governadores, etc. para palestras e confe rências e fazer-lhes senti r as suas preocupações, em face da Frente Parlamentar Nacionali sta, de nítida tendência esquerdista e, daí, os receios deles, dessas clas­ses conservadoras. Entretanto, há lima atividade in terna: financiar candidatos, de quaisquer legendas, desde q1le seja 100% anticonwnistas. A principio, e na primeira reunião, desses capitães de em­presas, daqui, eles fizeram uma 'vaca' que ren­deu 300 milhões, e os planos são para atingir um bilhão . Estabeleceram me io po r cento, taxa tivo, sobre os lucros líquidos apurados nos respectivos ba lanços dessas empresas, desses empresá rios e maiorais da indús tria e do co­mércio, daqui . Aqui, o ' homem', encarregado de centralizar essa atividade reservada é o ban­quei.ro Leopoldo Figueiredo. Aí no Rio é O ci-

dadão Ruy Gomes de Almeida. Em B. Hori zon­te, é um cidadão Pierruti, ou nome parecido. [ ... 1 Eu mesmo tive oferecimento de uns 3 ou 4 milhões, para disputar por Mato Grosso. [ ... J O homem (de certo cumprindo orientação geral deste grupo reacionári o, de direita), exige que o candidato assine um compromisso escrito, de seguir a orientação que eles querem ... [ ... 1 Pe­las minhas ligações, estava eu tentando um au­xílio substancial, da ordem de 10 a 20 milhões, para o IJ.QS5Q homem, candidato a federal, por aqui, neste pleito [Plínio Salgado l. Acontece que este chefe fez uma brilhante expos ição, peJa te­levisão, há cerca de dois a três meses I ... ] e saiu­se, para nós, brilhantemente. Mas, - acred ito -não foi brilhante para essa turma reacionária de direita, pois o nosso candidato declarou, cla­ro e sinceramente que o projeto (respondendo pergunta) de remessa de I ucros teve a votação de nosso partido ou melho r, dos deputados do nosso partido 1 ... 1 Isso, por certo, abespinhou a turma reacionária de direita que está esfri ando quanto às poss ibilidades de auxílio. 1.·. 1 Aí no Ri o, também há o ' homem', Ruy Almeida, mai­oral do INES que, internamenl"e, tem os mes­mos propósitos de combate an ticomunista, au­xiliando candidatos. Também em Minas, o IMES tem os mesmos propósitos. E, assim, em conclu­são, sugiro que você entre em ação aí, - arranje uma ligação dire ta com O cid ad ão Ru y de Almeida (há um companhe iro nosso, do Diretório Nacional que é vice-pres idente da As­sociação Comercial, e ele lhe poderá abri r a por­ta, para este assunto). Aliás, em Minas, você po­derá ter uma conversa séria com O deputado Abel, qu e, como deputado, tem credenciais para apresentar-se, e deve conhecer, melhor que eu, a posição do IMES, de Belo Horizonte. 1··· 1 É pre­ciso descobri r ri I chave' do problema c como abrir

a porta; conseguido isso, julgo que a Ma rcha terá um amparo financeiro regular, séri o, por via de aux ílio ou de recomendações de publicidade. O momento é oportuno, pois a infiltração comu­nista que tanto os atemori za, e que estó levando nosso país a um pl ano in c lin ado pa ra o

52 _ Bancada do PRP lança manifesto sobre a gravidade da situação nacional. Diário Popular. São Paulo, 21.3 .1964. p. 1 (APHAC·FPS 114 .005.REC 64).

Grifos meus. 53 _ Discursos parlamentares anticomunistas da bancada federal do PRP na crise antecedente à Revolução de março-abril de 1964 (20.1 a 31.3 .1964)

IAPHRC·FPS 015.0161.

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(iH . Os IlIfcgralisl(l.~ e o Golpe de 64

esquerdismo proporciona recursos idôneos Isic1, com que A Marcha poderá contar, para um com­bate ideológico, sério, à penetração vermelha".I")

Ainda que tal correspondência revele que na­quele momento o PRP ainda não tinha uma vin­culação maior com o complexo IPES/IBAD, indi ­G10 rumo que seria buscado pela liderança inte­gralista em busca de financiamento, além de ev i­denciar que uma I iderança integral ista de S50 Paulo estava bas tante entros<.1da no esquema, su­gerindo v árias possib ilidades para que o PRP fos­se beneficiado. Uma delas, pelo menos, produ­ziu resultado efetivo: o financiamento da candi­datura à reeleição do deputado federal Abe l Rafael, pelo IBA D, que se tornou públ ico em agos­to de 1963. Abel Rafael. em face de provas irrefutnveis, admitiu as ligações com o IBAD, e tentou cxplicá-Itls, de fonn3 "crintivn", IIdizcndo que estas se limitaram ao recebimento de uma ilju­da em sua campanha eleitora l, a fim de poder en­fren lar o predomínio econômico de cerlos capilalislas Isicl e de uma turma de pelegos que sempre usou o governo e as nomeaçôes do governo, o Banco do Brasil, a LBA e os institutos, a seu ta lante".I")

Admitiu ter recebido "o auxílio de cédulas, cartazes, fai xas, poucos programas de rádio", C

ainda acrescentou que o lBAD "n50 é tão po­deroso assim, porque se o fosse já teria com­prudo seus acusadores Isic]" .ISG)

Não encontramos registros de outros candi­datos do PRP financiados diretamente pelo com­plexo IPES / IBAD, mas deve-se ressa lva r que é pouco provável que eventuais reg istros de ou­tras transilçõcs ti vessem subsistido na documen­tilç50. Além disso, provavelmente são proveni­entes do complexo IPES/ IB AD as ex press ivils verbil s pagas por Adhemar de Barros em troca do apoio integralista a sua cand idatura em 1962, verbas que foram empregadas para a reeleição de Salgado à Câmaru dos Deputados. Adhemar

pagou CR$ 3.000.000,00 (57) e o dleq~e nominal a Salgado foi publicado pelo jornal Ultima Hora.

Os integralis tas tentaram minimizar sua im­portância, afirmando que tal va lor cobria ape­nas parte de seus gastos eleito rai s: "Era natural e lógico que o candidato a governador preci­sasse da propaganda da nossa agremiação, pelo que ela representa como força política e moral.

Acontece que, para uma propaganda de re­lativa envergadura, o PRP não dispõe de gran­des recursos. A despesa to tal d e propaganda para governador, vice-governador, senadores, deputados fed erais e estaduais, efetuada pelo nosso Comitê, foi de CR$ 8.527.650,00. Era com­preensível que o sr. Adhemar de Barros, como candidato ao ca rgo cuja publicidade era a mais cara, contribuísse com alguma coisa. Assim, re­colheu à caixa do comitê, em prestações, a quan­tia de 3 (três) milhões de cruzeiros, parcela in­significante em face do vulto da campanha".~

Também em outros estados candidatos con­servadores, apo iados pelo IPES/ IBAD, direcio­naram recursos ao PRP, sem que isto tenha se tornado público. É o caso da Guanabara, onde candidatos apoiados pelo PRP a vice-governa­dor (Lapa Coelho-PSD) e ao senado (Gilberto Marinho-PSD e Juracy MagaUlães-U DN) paga­ram CR$ 515.000,00 ao PRP, o que representava 65% do total arrecadado pelo partido para a campanha (CR$ 794.250,00), conforme relatório finance iro interno do Partido. IS9)

Em maio de 1963, Salgado esc revia a Egon Renner, deputado estadual do PRP no Rio Gran­de do Su l e um dos maiores industriais do esta­do, prevendo o desenvolvim ento de um con­fronto armado: "O momento bras ileiro é de ex­trema grav id ade. A pretexto duma reforma agrária demagógica e sem nenhum senso práti­co, prepara-se uma revolu ção armada".I60-

O combate aberto ao projeto de reforma agrá-

54 - Correspondência sem remetente para Teixeira Coelho, 7.6. 1962 (APHRC, Pprp 62 .06.07/ 1) . Grifos meus. 55 - Deputado diz que o auxilio do IBAD ajudou-Q a enfrentar os pelegos. Folha da Tarde. Porto Alegre, 9.8.1963 (COAIBPRP _ Recortes) 56 -Id.ib ..

57 - Aproximadamente RS 160.000,00 em va lores dezembro de 2004, conforme conversor disponível em www.fee .lS.gov. brlsftefee/pt/content/servicos/pg atualizacao valores. php. Este conversor realiza atualização de valores de acordo com a inflação acumulada segundo o índice Geral de Preços _ Disponibilidade Interna (lGP-Dl) da Fundação Getúlio Varg as. 56 - PRP explica o cheque de Adhemar a Plínio. Última Hora. São Paulo, 23. 1.1963 (APHRC-FPS 114.004.REC 1963). 59 - Resumo do Relatório Financeiro correspondente às eleições do dia 7 de outubro de 1962 no estado da Guanabara fAPHRC-FPS O 17.009.002 ). Seg undo o relatório, l opo Coelho teria pago CR$ 100.000,00; Juracy Magalhães CR$ 215.000,00 e Gilberto Marinho 200.000,00. 60 - Correspondência de Plínio Salgado a Egon Renner, 5.5.1963fAPHRC-Pprp 63.05.05/4).

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Uist úria & I. u la d , e lQ sser - 69

ria de Goula rt v iabilizou que Salgado fosse tra­tado como interlocutor respeitável por setores do latifúndio, como exemplifica o telegrama de Paixão Côrtes, Presidente da Associação Rural de Bagé (RS), uma das mais importantes do Ri o Grande do Sul, a Sa lgado: "Apelamos eminente homem público espírito cívico e patriótico sen­tido evitar com vossa influência seja a lterado texto Cons tituição impedind o através da já pro palada re fo rma agrá ri a a modifi cação do nosso regime democrático onde produtores do campo fi cariam mercê dos partidos políticos"fGl )

Os integra listas voltaram a receberam expres­sivo apo io de integrantes da grande burguesia para a sus tentação de um programa semanal de televisão e o relançamento do jo rnal A Mar­cha, cuja circulação fora suspensa em 1962.

O programa te levis ivo fo i ao a r, semanal­men te, entre maio e agosto de 1963. Seu a lto custo te ri a s ido financiado pelas "classes con­servado ras", embora o apo io tenha sido insufi­ciente para mantê-lo no ar: " Resolvi parar o pro­grama. C us ta a quantia de600 mi l cru zei ros por mês, para dez minutos por semana. Um amigo daí es tava a rrecadando fund os pa ra man ter o programa. Mas a sabotagem no estúdio é incrí­vel. [ ... ] Além disso, O amigo que est<:Í promo­vendo os me ios financeiros não tem tido as fa­cilidades que supunha".(·')

Em jane iro de 1964, Salgado re latava a um corre ligionário que "como nossos companhei­ros não compreendem a importância do nosso jorna l estoll providenciando amigos estranhos nos­so movimento allxílio mensal para poder tirar nosso semanário", (63) o que pode indica r re lações com o complexo I PES/ IBAD.

Em carta a um militante, Salgado defendeu veementemente a ação do IBAD, mesmo afir­mando que não tinha recebido nenh um financi­amento do ó rgão: "Um dos objetivos [dos co­munis tas ] é desmora liza r o u destruir todas as organ izações que dificultam a caminhada ver-

melha. Vem daí a guerra contra o IBAD. Posso fa lar insuspeitamente e de cabeça erguida, pois não recebi auxílio algum dessa entidade para a minha eleição. Essa fo i custeada por um grupo de amigos e ajl/dada pelos candidatos majoritários ql/e o nosso partido apoiol/ . Posso, pois, falar a ver­dade sobre essa infame campanha contra o IBAD. A finalidade é apresentá-lo como corruptor, pelo fato de ter ajl/dado homens pobres, mas de bem, ini­migos do com l/nismo. Eu penso que isso foi servi­ço à Pátria, numa hora em que os candidatos comunistas esbanjavam dinheiros públicos, dos Institutos de Previdência, da famigerada SUPRA, da Novacap, da moscovita Petrobrás Isic]. Isso, s im, é corru pção, é roubo dos dinheiros do Povo, é desavergonhada maroteira".(64)

Ao mesmo tempo, hav ia a preocupação em acompanhar a movimentação dos setores mili­ta res que se opunham a Gou lart, bem como es­ta be lece r ligação co m os mes mos, co mo explicita uma ca rta recebid a po r Sa lgado em fevereiro de 1964: "Confirmo minha Carta de 23 do mês passado e envio-lhe com es ta um exempla r de um Man ifesto que recebi de ami­go. [ ... 1 Pelo que ouvi de um Capi t50 do Exérci­to - católico, anti comun ista, fi lho de integra lista e nosso sim pa ti zante - pa rece haver dentro do Exérci to, um como que arrobmento dos ofi ci­a is que não vêem com bons olhos a atitude do Governo e certamente pa ra um fi m determina­do, talvez dentro do p lano do Man iFesto de que lhe fa lei acima" .(~')

Em discurso profe ri do dez anos depois, Sa l­gado sustentou que a inda em '1963 "con Feren­cie i com O General O lympio Mour50, combi ­nando um mov imento milita r apoiado pe la opinião conservado ra do Brasil".("") No entan­to, não encontramos comprovação des te con ta­to na documentação partidári a. A parti ci pação de Mourão na conspiração gol pista - muitas ve­zes considerada anedóti ca ou irre levante pela hi s to ri ografia - é considerad a decis iva po r

61 _ Correspondência de Paixão Cortes a Plínio Salgado, 6.5.196 3 (APHAC-Pprp 63.05.0Sn!. 62 _ Correspondênc ia de Plínio Salgado a Paulo Paulista de Ulhôa Cinlra, 26.8.1963 (APHRC, 63.08.26/15) . 63 _ Te legrama de Plínio Salgado a João Voltarelle, 22. 1.1964 (APHRC-Pprp 64.01 .22/91. Grifos meus. 64 _ Co rrespondência de Plínio Salgado a João Zulian, 23.9.1963 (APHRC-Pprp 63 .09 .23/ 181 . Grifo meu. 65 _ Correspondência de Caetano Souza a Plínio Salgado, 6.2.1963 (APHRC-Pprp 63.02 .0613). _ 66 _ SALGADO, Plínio. Despedida do Parlamento: Discurso proferido na sessão de 3.12 .74 pelo Deputado Plínio Salgado. Brasília: Centro de Documentaçao e Info rmação - Coordenação de Publicações , 1975, p. 15.

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70 - Os IlIlet:rtl[is tas e o Golpe de 64

Hélgio Trindade: "O o rganizador, ex-chefe da mil ícia integralista, autor do Plano Cohen e ex­capi tão do serviço secreto do Exército, Olympio Mourão Filho, é a figura chave do processo de conspiração e do desencadeamento do go lpe mil itilr. Sua conspirilção soli tári a e obsessiva começou em Silnta Maria (RS), desde in ício de 1962, quando assumiu o comando do 3" Regi­mento de In fantaria, após a posse de Coulart como presidente. I ... ] A partir daí começa o pro­cesso de conspiração, denúncia e articulação junto a setores militares e empresariais que prosseguiria, durante o ano de 1963, em São Paulo e Minils Gerais, até o desenlace do golpe a partir de Jui z de Fora. Em suas Melllórias, não hesita em afirmar que 'meu verdadeiro e prin­cipa l papel consis tiu em ter articulado o mov i­mento em todo o país e depois ter começado a revolução em Minas. Se nós não O ti véssemos feito, ela não teriil sido jilmais começadil'."I(,7)

Out ril ev idência dil relevante parti cipilção integra li sta no desencadeamento do go lpe apre­sentada por Salgado é o fato de que fo i "outro oficia l ex- integrillis ta que desencadeou a pri ­meira ação armada no contex to do go lpe". Tra­til-se do almirante Hasselman, que enfrentou, "em 25 de março, de metralhadora em punho, um grupo de marinheiros revoltosos que, com a bandeira nacional à fren te, se dirigia ao portão de saída do Ministério da Marinha com O obje­tivo de aderir aos seus colegas de armas que estavam no Sindicato dos Meta lú rgicos".I'"1

Embora os eventua is contatos entre Salgado e os conspirado res militares não es tejam docu­mentados, pa rece cla ro que ao menos nas se­manas an terio res ao golpe a direção integralista estava info rmada, acompanhava de pe rto c se inseria na articulação c mobilização go l pistas. Em 20 e 21 de março ocorreu uma reuni ão se­creta do Di retório Nacional: "Grupo pil ul is ta va i pagar passagens líde res Estados sem recur­sos norte c no rdeste. Além disso pilssagens es-

tados Sul fi carão mais baratas. Re união indis­pensável entretanto informal para simples troca idéias sobre grave momento atravessamos. Comunique es tas expli cações di zendo també m reunião convocada tem caráter secreto evitando qualquer repercussão pública". IGO)

A reunião deu-se em circunstâncias suspei­tas: as passagens te riam sido pagas por um "grupo piluJista" não identificado; não consta registro algum da reunião no livro de atas do Diretório Nacional, além d o fato que parece absurdo de que uma reunião convocada em caráter secreto fosse paril "simples troca de idéi­as" . Todos es tes indícios refo rçam a hipótese de que es ta reunião tenha debatido abertamen­te a iminência da intervenção militar e efetiva­ção do golpe de estado, e articu lado o apoio e participação dos integra lis tas para s ua consu­milção. Estil hipó tese é reforçad a, ainda, por uma matéria publicadil meses de pois pelo Bole­tim do PRP do Ri o Grande do Sul, que reme­morava: "Em conseqüência da gravidade do momento, o Diretório Nacional do PRP, sob a pres idência de Plínio Salgado, convocou, nos dias 20 e 21 de março do corrente ano, uma reu­nião da Bancada Integralis ta n o Senado e na Câmara Federal, bem como dos Presidentes dos Diretórios Regionais e integrantes dos Legisla­tivos Estad uais. A s ituação bras lle ira foi ampla­mente debatida, deliberando-se lançar um ma­nifes to que, pela sua s ignifi cação e o portu­nidade, obteve intensa repercussão em todo o território nacional".(70)

Outra rewlião do Diretório Nacional, desta vez convocada oficia lm ente, ocorreu a 30 de março. A brevíssima ata deve ser inte rpretada com precaução, pois há indícios de que tenha s ido redigida posteri ormente, po is, ao contrá­ri o do hab itual, as interven ções pessoais não forilm transcritas e a discussão foi s umariamen­te res illllida: "O s r. Presidente em a lo ngada ex­posição abordou a atual conjuntura nacional,

67 - TRINDADE. Hélgio. o radica lismo militar em 64 e a nova tentação fascista. In: SOARES, Gláucio Ary Dillon & O'ARAÚJO, Maria Ce/ina (org5.). 21 anos de regime milirar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 1994. p. 123-141, p. 130-1. A participação de Mourão na conspiração é discut ida também em DRE IFUSS, oh. cit .. 373·396 (~A maior conspiração das Américas~ do Genera l Olympio Mourão Filho). 68 - Id.ib., p. 132. 69 - Telegrama de Plínio Salgado a Sebastião Navarro, 15.03.1964 (APHRC-Pprp 64.03. 15/ t 1 I. Grifos meus. 70 - PRP previu o desfecho da crise e a vitória da Revolução Democrática - Manifesto Integralista de Março. Boletim do PRP, Porto Alegre, jun. 1964, p. 4. O manifesto. transcrito na seção anterior, foi assinado pela Bancada federal. já que a reunião não tinha caráter oficial e, portanto, não podia produzir deliberações.

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[Us / ó r ia & Luta de C /anu • 71

apreciando-a de todos os ângulos e concluindo apresentar-se ela em termos de ex trema grav i­dade, parecendo mesmo, no seu entender, ser imposs íve l fi xa r quaisque r previsões válidas para o próximo pe ríodo, eis que nos encontra­mos em m om en to de defini ção de rumos, tudo indicand o que esta definição não se faria tar­dar, o rientando-se ou no sentido de uma tota l cubanização d o Pais, ou na rota de uma reação fulminante contra o s tatus quo atual. Solicita­va, em conseqüência, de todos os companhei­ros, especialme nte daque les que participava m das altas resp onsabilidades de integrar O D.N. do Partido, urna a titude de vig il ân cia, di scri­ção e di sciplina, pa ra bem servirem ao Bras il em qualque r em ergência que se lhe afigure pró­xima. Nad a m a is havendo a trata r, o s r. pres i­dente decla ro u ence rrada a sessão às vin te e quatro ho ras"- (71)

Como a reu.nião foi iniciada às 21 horas, pa­rece pouco pla us íve l que tenha se resumido à "a longada expos ição" de Plínio Salgado, em­bora não h aja nenhum outro re lato. Ressa lte-se a ênfase na tese de que havia um go lpe em cur­so ("cubanização do país") e na conseqüente caracte rização d o go lpe como um sendo um "contra-golpe", exa tamente confo rme a versão difundida pelos go l pistas, tan to durante a pre­paração do golpe como em sua jus tifi cação pos­terior. Esta tese é propalada a té hoje, como se verifi ca, p o r exempl o, na pos ição de Élio Gaspari : "Havia do is golpes em marcll a. O de Jango viria amparado no dispositivo militar ' e nas bases s indicais, que cairiam sobre o Con­gresso, obrigando-o a aprova r um paco te de reformas e a mudança das regras do jogo da sucessão presidencial. [·· ·1 Se o golpe de Jango se destinava a mantê-lo no poder, o o utro des­tinava-se a pô-lo pa ra fora. A árvore do regime cstava caindo, tratava-se de empurrá-Ia para a direita ou para a esquerda". (72)

A intervenção dos integral is tas fi ca eviden­te na articulação d as "Marchas da Família po r

Deus e pela Liberdade", que mobilizaram par­celas da sociedade civil em defesa do golpe de Es tado. A própria denominação das marchas remete ao lema integra lista " Deus, Pátria e Fa­míli a". As passea tas de Belo Horizonte e São Pau lo fo ram as duas maiores mani fes ta ções públ icas contra Coul art rea lizados antes do go lpe, já que as marchas no Rio de Janeiro e outras cap itais ocor reram depois de consuma­do O golpe.(7J)

Em ou tras cidades, como por exemplo Porto Alegre, a Marcha fo i suspensa, "a pedido das autoridades loca is", po is conforme a Ação De­mocrát ica Feminina, teri am "desaparecido os moti vos para sua efeti vação, com vista;) v itó­

ri a das fo rças democrá ti cas Is icl". Da a rticul a­ção da marchí.l m inci rn parti cipar.J1ll di rett:l nlcn­

te o deputado federa l Abe l Rafae l e os depu t-a­dos estaduais do PRP Aníba l Teixeira e Sebasti ­ão Nava rro. Já em São Pau lo, Sa lgado foi um dos oradores principais da marcha, tend o em seu discurso ape lado pe la in tervenção do 11 Exé rcito para a depos ição de Coula rt, o que, segundo ele, "causou pasmo nos homens res­ponsáve is, m as v ibr()n tcs ap lnusos n íJ mult i­dão", (74)

Ainda antes da rea lização d<:l m arch a, SiJ lga­

do lançou um "mani fes to às mu lhe res pau-lis­tas", elogiando a iniciativa a c!as atri buída c conclamando pa ra a pa rticipação no ~to.

"Eu vos cnvio esta 1l1cnsagcm de ca loroso ent·usiasmo. É um entusiasmo conscqücnt·c da leitu ra do vosso mani festo ao povo, conel a­mando-o para a grandc mardlél das FalÍlí lias, por Deus e pela Liberdade. Ass inam este docu­mento histó ri co tri nta e três associações femi ­ninas, O que representa belíssima vit·ória de Lllna arregimentação cxecutado, acima de tudo, pe­los vossos corações. 1 ... / Os audaciosos agentes do comunismo, in filtrad os nos órgãos gove r­namentais, dominando os sind icatos operá rios e as organi zações es tu dant is, va lendo-se das franquias das li berdades, q ue e les mesmos pre-

11- Ata do Diretório Nacional, 30.3. 1964 - l ivro de Atas do Diretório Nacional e do Conselho Nacional do PRP (APHRC-Pprp 021 .002.002). n _ GASPARI, Élio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das l etras, 2002, p. 51-52. 73_ Cf. FlACH, Ângela. ~Os vanguardeiros do anticomunjsmo~: o PRP e os perrepistas no Rio Grande do Sul(196 1-1966). Dissertação em His tória do Brasil. Porto Alegre: PUCRS. 2003. p. 71. 14 _ Correspondência de Plínio Salgado a Oswaldo Sá, 24.5.1964 (APHRC-Pprp 64.05.24/38).

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72- Dl' Jlltegralisul.\' e o Golpe de 64

tendem abo lir, chegaram a extremos des respei­tos a tudo quanto representa a honra e os brios nacionais. Atingindo o clima propício ao desen­cadcamcnto da "guerra revolucionária", nlinLl­ciosamente planejada por Moscou, resolveram não mais se conter nos limites dos debates do Pa rl amento; ou das polêmi cas de Imprensa: fo­ram para as praças públicas propor O fechamen­to do Congresso, a convocação de u ma Consti ­tuinte, exatamente C0l110 Len ine fez !li] Rú ss ia;

ex igi r o vo to dos analfabetos para desmorali ­zar o sufrágio democrático e subverter a hie­rarquia dos va lores; reclamar a lega li zação do Partido Comw1is ta; pos tular reformas que pra­ticamente extinguem os dire itos à pro prieda­de; lança r ind iscipl ina nos quartéis, e tudo com o prestígio do próprio Chefe da Nação. Imensa foi a perplex idade do povo brasileiro, do ver­

dadeiro povo brasileiro [s ic], que não é rep re­sentado pelas assembléias dos comícios subver­s ivos, mob ili zados, condu zidos e a li mentados à custa dos dinhe iros públicos, mas s im pelas fam ílias cri stãs que no labor das cidades e na faina rura l, sustentam o teor hi stóri co das vir­tudes da raça e dos sentimentos do cri stianis­mo. Mas eis que ouvinlos urna grande c1ari­

nada. São as mu lheres paulis tas que se levan­tam. São as intérpretes de um sentimento que não é apenas dos paulistas, mas de todos os brasileiros. A significação do vosso des fi le va i se r compreend ida por todo O Brasil, quando se ap rox ima a hora em que deve se r decidido o desti no da PMria". (75)

Em 28 de março, Salgado remeteu a Alfredo Buzaid, out ro in tegra li sta com destacada pa rti ­cipação na a rticu lação do go lpe, o "Manifes to às Mulheres Brasileiras", c afirma viJ estar con­

cluind o o utro man ifesto, que se ria pub li cado como se tivesse sido escrito por es tudantes de Direito: "O outro Manifes to já es tá escrito, mas depende de correções datilográficas e ligeiras alterações, pelo que lho envia rei dentro de dois dias. I··. ] Creio que ficou wn bom trabalho, à al­tura de W11 documento de alunos de Direito, não abastardados pela subm issão ao CG1: às med i­ocridades da UNE e à demagogia de semi-ana l-

fabetos que empestam o País. Com o disse, den­tro de 2 dias remeterei. Não será preciso dizer que tudo is to deve ficar em absoluto sigilo, en­tre nós dois. É possíve l também que lhe envie um esquema da organ ização feminina." (76)

Sa lgado escreveu outros documentos cuja autoria foi atribuída às mulheres. Consumado o golpe, sua intenção e ra apropriar-se do mo­vi mento para constituir uma entidade integra­lista, denominada Confederação das Familias por Deus e pela Pátri a.

Manifesto da entidade publicado logo após o golpe, a 5 de abril reivindicava "o poder da mulher quando se ameaçam os fundamentos do Lar, da Religião, dos Dire itos Humanos e da Soberania Nacional", reproduzindo claramen­te a concepção integra li sta sobre as "diferen­ças" entre Homem e Mulher, ressa ltando a "in­tui ção feminina", e p ropondo uma "ação per­manente" das mulheres: "Nossa intu ição femi­nina [sic] precedeu a tomada d e posição hoje ev iden te, dos homens de nossa Pátria. A intui­ção possui sua lógica pró pria, superior quase sempre à do raciocínio em seus asp ectos for­mais. Por isso, podemos dizer que os homens, em face dos fatos ocorrentes e das circllilstân­cias que os rodeiam, formulam pensamentos dos quais procuram deduz ir conclusões, ao passo que as mulheres, por uma sensibilidade inerente ao seu modo de ser, não precisam re­correr à arti cu lação de premissas e construir silogismos: a verdade lhes vem ins tantânea, por um processo direto de inte rpre tação. Não pre­cisam de argumentos demas iados, provas con­cretas, evidências excess ivas; suprem-se de im­pressões e percepções e com estas e laboram, subjetivamente, um quadro de rea lidades que escapa ao dominio da lógica formal. Podemos dizer que o homem é objetivo e a mulher subje­tiva . O homem rea li za, mas a mulher o desper­ta para a real ização. E fo i isso o que vimos a partir do início des te ano de ] 964. [ ... ] Deve­mos organizarm o-nos para uma ação perma­nente, uma cons tante vigília, uma campanha de escla recimentos do Povo Bras il e iro, incitando, cada vez mais, nossos maridos, nossos filh os,

75 - SALGADO, Plínio. Mensagem às mulheres brasileiras. Diário de São Paulo, São Paulo, 19.3. 1964, p. 7 (AP HRC·FPS 114 .4.REC 64 ). 76 - Correspondência de Plínio Salgado a Alfredo Buzaid, 28.3. 1964 (APHRC·Pprp 64.03.28/ 1 I.

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U i ritÍ r;a & Luta d~ Cla urs - 73

nossos p a is, nossos irmãos, para que não d ur­mam, para que se conservem alerta na defesa da Pá tri a. Com es te mani fes to, lançamos a Con­federação d as Famílias po r Deus e pela Pátri a. É uma e ntidade de âmbito nacional. Conela­mamos nossas patrícias pa ra que venham coo­pera r nesta o rganização, que es tabelecerá tare­fas e missões específi cas às associadas e gru­pos femininos que irão constituí-Ia em todos os Es tad os." (77)

O d ocumento es tá datado como " Domingo da Ressurre ição de ]964" . O estilo de redação e o conteúdo d o m anifesto indicam que pode ter sido escrito p o r Salgado. Além di sso, se ri a es­tranho que t ivesse s ido rea lmente escrito por mulheres, po is a rgumenta que as mu lheres "não precisam d e a rg umentos" e expõe premissas para afirma r que as mulheres "não precisam recorre r à a rticulação de premissas".

Outro manifesto, que também parece ter sido escrito por Salgado, sustentava que "a revolução das armas está finda; mas a revolução das almas, encetada pelos movimentos femininos de Minas, de São Paulo, da Guanabara, do Ri o Grande do Sul e de outros estados, há de prossegu ir". r 'l

Formad a a Confederação das Famílias por Deus e pela Pá tria, seus Estatutos definiam como fi nalidade principal "fortalecer os sentimentos da fa mília e promover-lhe a defesa como grupo natural da socied ade bras ile ira". (7'1

A participação dos integra lis tas na a rticula­ção go l pis ta p ode se r observada também pela sua movimentação no Ri o Grande do Sul, em especial através d o então Secretário da Admi­nistração Antonio Pires, que desempenhou fun­ções tanto d e a rticulação nacional das fo rças anti-Goulart, com o na organização do movi­mento conspira tó rio no es tado: "Um dos mais acérrimos lutad ores que conheci contra a situ­ação política e mpo lgada pelos esquerd is tas ra­dicais fo i Linha res, líder do PRP do Paraná. Tomando conhecimento da minha presença na Assembléia n as cond ições antes refe ridas, con­vidou-me para um contato pessoa l com o Ge-

11_ Sem título . Orig inal Datilografado, 5.4.1964 jAPHAC·FPS 006 .007.005) .

neral Aldév io Barbosa, Secretário de Seguran­ça de São Paulo, com quem ele mantinha liga­ção. Lá esti ve. Trocamos idéias.

Aj ustamos os ponteiros. São Paulo tornara­se, efeti vamente, um centro de res istência. Pou­co depois - sempre no início de 1964 - Plín io Salgado convocou-me à capital pauli sta para um encontro com O Governador Adhemar de Ba rros, na mesma l inha contra a possíve l bolchevização do Brasil. 1 ... 1 Fui recebido por Adhemar de Barros, no Palácio dos Bandeiran­tes, imed iatamente após ele ter conferenciado com O Governad or Carlos Lacerda, encontro pa ra O qual, diga-se de passagem, Plí nio muito se empenhou, por entender que, apesar da ri ­va lidade entre ambos, suas posições contrá ri as ao quad ro naciona l os aprox imavam. Aqui che­gando, fu i logo convidado pelo Dr. Oscar Car­ne iro da Fontoura, então presid ind o a FA RSUL, pa ra um almoço no reservado do restaurante do Pa lácio do Comércio, com a presença de Fá bi o de Ara új o Sa n tos, pres id ente d a FEDERASU L; de Coelho Borges, representan­do a direção da FARSUL; e do pres idente do Sindicato dos Bancos, cujo nome não lembro mas recordo que e ra Diretor do Banco da Pro­vín clLl .

Declinando a razão do encontro, Dr. Oscar di sse que os presentes e suas entidades es l·a­va m preocupadíss imos com O pano rama po lí­ti co e d ispostos a faze r a lguma coisa. Pensavam em criar Uln a entidade para se opor à onda es­querdo-comunis ta, e pa ra tanto di spensari am o necessá rio apoio fi nanceiro. A res pe ito dessa idéia, queri am ouvir-me, dada a min ha conhe­cida a tuação. 1 ... 1. Ponderei que cria r uma enti ­dade n50 era o melhor caminho. Seri a um ent'e s u s pe ito , pe ra nte a s oc ied ad e, d <l es ta r labo rando apenas em defesa de seus pró prios interesses, nem sempre bem vistos por ce rtos segmentos socia is. O idea l, segund o meu en­tend imento, seria que as entidades a li represen­tadas apoiassem, de fo rma eficiente mas d is­creta, aq uelas pessoas e aq ueles organismos que

18 _ Manifesto da Confederação das Famílias por Deus e pela Pátria, sJd. Orig inal datilografado jAPHRC·FPS 019 .013.003). 79 _ Estatutos da Confederação das Famílias por Deus e pela Pátria, sido jAPHAC·FPS 019.01 3. 01 3). aO- PIRES, ob. cit. , p. 96-9B.

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I 74- Os 1llfegra!ülas e o Golpe de 64

já es tavam em ação. Como exemplo concreto e imediato citei as providências preliminares que estavélll1 send o articuladas para rea lizar aqui a 'Marcha da Familia' - à semelhança do que ocor­ria em São Paulo e outros lugares. Os represen­tantes das Três Federações concordaram com minhas ponderações e prontifica ram-se a reco­lher o numerário necessário. [ .. . ] Fui autoriza­do a transmitir às organizadoras da 'Marcha da Fa mília' o conveniente respaldo finan ceiro, ponto de partida para outros apoios. Só que a 'Ma rcha' não chegou a reali zar-se, porque an­tcs as tropas de Olímpio Mourão Filho marcha­ram sobre o Rio de Janeiro e a Nação toda lc­vantou-se em 31 de março para F de abril." (BO)

A escolha de Pires para a intermediação do repasse das verbas dimcnsiona a importânda quc desempenhou na arti cul ação go lp ista na­quelc estado.

O integrali sta Dolmy Tarasconi, que então e ra Diretor Gera l da Secretaria da Administra­ção, relata a participação integraJi sta na orga­nização das marchas, ind icando que Pires foi seu coordenador estadual : 'l .. ] antes da revo­lu ção teve o movimento da 'Marcha da Famí­lia', o Pires coordenava aqui no Rio Grande do Su l. Aquelas mard1as no intcrior, eu mcsmo fui coordenar em Es teio, Sapucaia" .(81)

Ainda de acordo com Tarasconi, Pircs fo i elcmento chave da articulação golpista no inte­rio r do gove rn o, chegando a acumular várias secrctarias de estado: "Antôni o Pires, que era secretário da Administração, foi obri gado a as­sumir a Secre taria da Segurança Pública, [ ... 1 a Secretari a d a Fazendn e mais a Secretaria da Agri cultura no governo do Mencguetti. Ele as­sum iu quatro sec retarias cOlno inte rino, mais a Ad mini stração. [ ... 1 Aí elc foi defcnder o gove r­no, durante o movimento revolucionário" .<t~2)

Consolidado o golpe, Pires foi ÍJ1dicado para in tegrar a Comissão de Expurgos no estad o, o que evidencia quc seguia contando com a con­fiança dos se tores gol pi s tas . O integrali s ta Umbcrto Pergher, que era Engenhei ro-Chefe de

80 - PIR ES, ob. cit., p. 96-98 .

uma empreiteira, na cidade de Bagé, colocou à disposição do exército caminhões, dinamite e gasolma, e participou da formação de uma mi­lícia, que deveria enfrentar a Brigada Militar caso esta mterviesse em favor de Goulart.{&l)

Outro integra lista da mesma cidade relata­va a Salgado sua participação na conspiração e na formação daquela milicia: "Foi realizado em Bagé um Movm1ento de Resistência Democrá­tica, em princípios de Março, para cujo Movi­mento fomos convidados. Este Movimento era dirigido por 18 membros, a fim de fazermos através da I mprensa escrita e falada o combate ao comwusmo e ao passado desgoverno de João Goulart. Com grande satisfação, tenho a infor­mar ao Chefe que os dois elementos que mais se destacaram pela sua combatividade ao co­munismo e ao desgoverno passado foram jus­tamente os doi s mtegralistas que dele faziam parte: dr. Telmo CaJ1diota da Rosa, por smal convidado para presidir o Movin1ento, e este seu modesto mas sincero e leal seguidor. [ ... ] Durante os dias da Revolução, estive de arma na mão, no aquartelamento feito na sede do Jó­quei C1ub, pertencente à Associação Rural de Bagé. A coisa aqui esteve muito feia com o caso dos sargentos, e os quartéis não tendo seguran­ça interna, nós que estávamos armados na Ru­ral era quem fazíamos a revi são nas estradas das saídas e chegadas da cidade, revisaJ1do to­dos os veículos que por lá passavam. Foi um graJ1de serviço prestado pela Associação Rural de Bagé à Revolução. [ ... ] O companheiro Pe rgher, inclusive, pôs os caminhões da Rodopav à disposição do Exército, o que feLiz­mente não foi necessá rio. Éramos um total de apenas 80 homens, mas constava que éramos 500,1000 ou mais. [ ... ] Passamos 3 dias e 3 noi­tes sem do rmir, de vigília permanente, até que chegou a tão almejada vitória." (8')

Consumado o golpe, Salgado passou a vei­cular uma versão fantasiosa, sustentando que toda a mobilização e articulação que redundou no golpe foi conduzida pelo integralismo. Esta

81 - CAlIL, Gilberto, SILVA, Cát ia e BATISTA, Neusa. Depoimento de Dolmv Tarasconi. Porto Alegre : COAIBPRP, 2000, p. 45. 81 - Id.ib., p. 46. 83 - Cf. CALJL, Gilberto, SILVA, Carla l ucia na & BATISTA, Neusa . Depoimenfo de Umberto Pergher, Porto Alegre, CDAIBPRP, 1998, p. 41 . 84 - Correspondênc ia de Antonio Carlos Belló a Plínio Salgado, 26 .5.1964 (APHRC-Pprp 64.05.26/1) .

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UÜl ór;a & L uta d e C laHu . 75

versão está presente em di versas cartas e tele­gramas, trazendo a lgumas informações plaus í­veis mis turadas a evidentes exageros. Segundo ele, "tudo o que foi feito salvação nacional teve origem integralismo". I&') Os eventos de Minas Gerais eram ressaltados, tan to no que se refere à construção de um ambiente favorável, como ao desen cadeamento da ação militar: "Nosso companheiro integralista Mourão tomou inici­ativa Minas onde te rreno preparado compa­nheiros Abel Rafael e Anibal Teixeira".IIJ6)

Os trechos d e uma correspondência aba ixo exemplificam seus principais argumentos: "An­tes de mais nada, falem os da revolução vitorio­sa. Foi obra· exclusivamente dos integralistas. Faz mais de um ano que venho tendo entendimen­tos com o nosso companheiro general Mourão, que foi o chefe do estado maior da milícia dos camisas-verdes, quando capitão. Ele preparou tudo n o Rio Grande do Sul, quando comanda­va naquele estado. Transfe rido para São Paulo, como Comandante da 2" Região Militar, encon­tramo-nos numerosas vezes, tudo preparando em nosso Estado. Tendo o Jango transferido Mourão para Jui z de Fora, ali arti culou todas guanuções d e Minas. Ao mesmo tempo, os de­putados Abel Rafael e Aniba l Teixeira, com dis­cursos e conflitos de rua, cri a ram o clima pro­pício entre os mineiros.

Concomitantemente, nossos companheiros Pi res e Hoffmann, secretários de Estado no Go­verno Meneguetti, agita ram o Ri o Grande do Sul, arti culando o movimento. Na mesma oca­sião, agiam os companheiros do Paraná, de Pernambuco e do Ceará, com g rande êx ito.

osso companhe iro Coronel Astrogildo, da reserva do Exército, viajou por todos os esta­dos, articulando.

Na Marinha, o nosso companheiro Almiran­te HasseIman trabalhava a tivamente, ali se ex­tinguindo as dissensões oriundas dos aconte­cimentos de novembro de 1955, unindo-se to­dos os grupos inclus ive o do Almirante Heck, que se tornou nosso aliado. Conversei com os governadores Meneguetti e Adhemar, que es-

tavam firmes em suas decisões, assim como com Juscelino e Carl os Lacerda. Quando Coulart co­meteu a insensatez do comicio de 13 de março, a Bancada do nosso Partido na Câmara Federal fo i a única que lançou um Manifesto à Nação, de tal maneira corajoso e violento que nos ar­ri scávamos a ser incursos na Lei de Segurança. Em seguida fui a São Paulo, e na mardla de um milhão de pessoas, quando todos os oradores falavam em termos vagos, pronunciei um dis­curso apelando para as Forças Armadas e par­ti cularmente para o 2° Exército. Segui para o Ri o, onde fi z a articulação dos sargentos, va­lendo-me da circunstância de serem os três pre­s identes dos Clubes de Sargentos (Ma ri nha, Exército e Aeronáuti ca) nossos companheiros, bons integra listas. Isso de tal so rte que, ex is tin­do no Rio 12 mil sargentos, só compareceram na homenagem ao Jango 150. Fa ltava a iniciati­va. Quem a tomou foi O Genera l Mourão, nos­so compan heiro de idea l. Arriscou sua ca rreira e sua vida. Levantou Minas Gerais em peso. Cumpre dizer que o comandante da Força PÚ­blica em Minas, co ronel Geraldo, é velho cami­sa-verde". (87)

A despeito dos exageros, diversas in forma­ções arroladas no relato de Salgado expressam a efeti va participação dos integralistas na arti cu­lação do golpe. Os diversos militares citados por Salgado - Mourão, Hasselman, As trog ild o -, eram efetivamente integralistas e é provável que esti vessem de fa to em con tato com Salgado.

Da meSma fo rma, a pa rti cipação de inte­gralis tas nas mobilizações em favo r da depos i­ção de Goula rt fo i relevante, em especia l em Minas Gerais, São Paulo e Ri o Grande do Su l, da mesma forma que a intervenção dos inte­g ra lis tas no debate parlamentar contribuiu para o acirramento do confron to.

A participação dos integrali stas no processo de des legitimação do governo Goular t, nas ar­ticulações gol pistas e nas mobilizações que cri­aram um clima propício ao desencadeamento do golpe militar é um e lemento a mais a ser considerado na análise da ampla coali zão for-

65 _ Telegrama de Plínio Sa lgado a Tarquinio, 14.4.1964 (APHRC-Pprp 64.04.14/ 17). 86 _ Telegrama de Plín io Salgado a Ra imundo Rubes, 14.4.1964 (APHRC·Pprp 64.04. 14/ 131. 87 _ Correspondência de Plínio Salgado a Castorino. 23.4.1964 (APHRC·Pprp 64 .04.23/2).

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76 - Os IlIlegra/istas e o Golpe de 64

mada para a derrubada do governo Coulart e imposição de uma nova ordem ditatorial, con­tand o com ramificações na soc iedade civil , envolvimento de grupos po líticos diversos e conspiradores militares, além do apoio finan­ceiro, político e diplomático estadunidense.

mente pouca visibilidade e seja normalmente desconsiderada pela rustori.ografia, foi relevante e efetiva, cumprindo importantes funções na conspiração gol pista. •

Embora tal intervenção tenha tido relativa-

DREIFUSS, RClléArrn'lIld. 1964: Acon­quisla do Estado. Ação política, poder c golpe de dassc. PctrüpoJis: Vozes, 19R I .

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H"stil "a &

Em 1978, em O escravismo colonial, Jacob Gorender apresentou as leis

tendenciais do modo de produção escravista colonial a partir da crítica

categorial-sistemática da formação social escravista brasileira, pondo fim

à dicotomia feudalismo-capitalismo.

A concomitante retomada das lutas sociais no Brasil abriu espaço para a

forte repercussão nas ciências sociais daquela obra. A flexão do movi­

mento social e a posterior vitória da contra-revolução mundial deu-se no

contexto de ofensiva objetiva e subjetiva contra o mundo do trabalho.

No mundo acadêmico, empreendeu-se ataque sistemático àquela inter­

pretação que teve como ponto nodal o debate sobre a brecha camponesa.

o Escravismo Colonial A Revolução Uopernicana de Jacob Gorende

Mário Maestri

Agradecemo s a leitura e crítica da lingüista Florence Carboni, do jornalista Duarte Pereira,

do historiador Théo Lobarinhas Pineiro e o apoio documental do dr. Antônio Ozaí da Silva ..

Mário Macstri , 56 . é doutor em hist6ria pela Ue L, Bélgica, c professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, RS.lIlaest ri @v ia-rs. nct

acob Gorender nasceu em 20 de jan eiro de 1923, em Salvador, onde viveu sua infância nos co rti ços habitados pe la comunidade pobre daqu ela cid ade. Seu pai, Nathan Gorender, judeu ucra­niano socialista e anti-s ionis ta, emigra­ra após as jornadas revolucioná ri as de 1905 para a A rgentina, onde vivera por

cinco anos. A seguir, talvez atraído pe la peque­na comunidade judaica de Sa lvador, parti u pa ra a Bahia, onde viveu e trabalhou humildemente como vendedor a pres tação.

Após concluir os es tudos primári os na Es­cola Is raelita Brasileira Jacob Dinenzon, de ] 933 a 1940, Jacob Gorender prosseguiu os estudos g inasiais e o preparatório no Ginásio da Bahia, esco la pública de grande prestígio, freqüenla­da habitu almente pelos filh os da elite ba iana.

Em 194], matri culou-se na Faculdade de Di­reito daquela cidade, onde se manteve até "1943. Militante da União de Es tudan tes da Bahi a, em inícios de 1942, foi cooptado para pequena cé­lula unive rsitária comunista fundada po r Má­rio Alves e Ariston Andrade, que secund avam no meio es tudantil a rearti culação do PCB na Bahia empreendida po r Giocondo Dias.

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r 78 - o Escravismo Colonial

Os jovens estudantes comunistas part icipa­ram ativamente da mobilização pela entrada do Brasil na II Guerra, que cresceu fortemente com os torpedeamentos de navios brasileiros. Seis décadas após os fatos, Gorender lembra a emo­ção despe rtada pelos cadáveres de passageiros que chegavam às costas baianas. Nesses anos, trabal hou como repórter nos jornais O Impar­cial e O Estado da Bahia. (2)

Em 1943, Gorender, Ariston Andrade e Mário Alves arrolaram-se na FEB, em resposta ao desa-

fio lançado pelo general Demerval Peixoto, co­mandante da VI Região Militar, aos estudantes que exigiam nas ruas a declaração de guerra. Mário Alves foi, porém, reprovado no exame médico. Na viagem para o Sul, Gorender conhe­ceu a bordo de pequeno navio transporte a des­preocupação acintosa dos oficiais com os praças, obrigados literalmente a alimentar-se com carne crua, motivo de uma quase revolta em alto mar, que Gorender contornou ao interceder junto aos oficiais pela melhoria no tratamento alimentar.

Partindo para o front

Com 21 anos, em Pindamonhangaba e no Rio de Janeiro, Gorender recebeu treinamento

mil itar como membro do corpo de comunica­ções, partindo a seguir para o porto de Nápo­les, no su l da Itáli", onde chegou em setembro de :1944. No fronte de batalha, participou dos ataq ues ao Monte Castelo e a Montese, no ou­tono-inverno de 1944, acompanh"ndo a ofens i­va ai iada até o fim da guerra.

Gorender lembra que, durante a campanha, não raro, era acordado, com seus companhei­ros, à noite, sob o frio in vernal, para elllprCCn­der operações na chamada terra de ninguém, es­tendendo ou remendando cabos de comunica­ção part idos. Estacionado em Pistóia, freqüen­tou a sede do Partido Comunista I taliano, pre­sen ciando d iscurso de Palmiro Togli atti, secre­tário-gerai do PC! e ho mem de confiança de JosefStalin na Itália. De vo lta ao Brasil, na Bahia, retomou o CLl[SO universi tário, que abandonou muito logo para militar profiss ionalmente no PCB, lega lizad o em 1945. Em fins de ·1946, já no Rio de Janei ro, Gorender ingressou na redação do semanário comunista A Classe Operária e

no secretariado metropolitano do PCB. A Guer­ra Fria ensejou o abandono da política de cola­boração do PCB com as elites nacionais, por I i­nha semi-insurrecional de confronto direto com o Estado e co m O governo conservad o r de Eur ico Gaspar Dutra [1946-50J - Manifesto de Luís Ca rl os Prestes, de agosto de 1950.

A o ri entação esquerdista prosseguiu, aos menos reto ricamente, mesmo após a v itória de Getú li o Vargas, em fins de ]950. Em :1951 -3, Gorender transferiu-se para São Paulo, entran­do no Comitê Estadual do PCB, novamente na ilegalidade, desde maio de 1947. (3)

De vo lta ao Rio de Janeiro, em 1953, parti ci­pou da organização dos "cham ados C/lrsos Stalin", destinados a militantes e dirigentes co-1l1unistas. (4) Nesses anos, trabaU1 0U no diári o

comunista Imprensa Popular e conviveu com a geração de ferro stalinista brasileira, 11" qual destacavam-se Carlos Marighella, João Amazo­nas, Diógenes de Arruda Câmara e Pedro Foc

mar, que se entregavam sem reservas e grandes inquietações teórico-intelectuais à revolução, como lembrar ia anos mais tarde. (:;)

Nova Política

Em novembro de 1954, Gorender foi eleito membro suplente do comitê central, no lV

Congresso do PCB, rea lizado em São Paulo, que reaf irm ou o caráter do Bras il conlO "país

semicolonial e semifeudal " e a " luta por Ulll

govern o democrático e popular" dirigid o por "Frente Democrát ica de Liberação Nacio nal". Apesar da linha dura, o PCB apoiou nas cle i-

2 - Cf. TOlEDO, Caio Navarro de. Natas sabre Jacob Gorender: a engajamento intelectual SEM IN ÁR IOS, No. 2, São Paulo, Arquivo do Estado/lmprensa Oficia l do Estado, maio 2003; MAESTRI, Mário. Da Europa, o ollJar crítico sobre o Brasil. IEntrevista a J. GorenderJ. DIÁRI O DO SUl. Porto Alegre, Rio Grande do Sul. 91 10/1987; Entrevista em 7/12/2003, na residência de J. Go render, em São Paulo. 3 - Cf. MAESTRI. Entrevista cita da.

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/-fi çt ó ria & Lu ta tl e ClOUH - 79

ções de outubro de 1955 a aliança PDS-PTB que apresentou Juscelino Kubitsd1ek e João Coulart à presidência e vice-presidência [1956-61 l.

Em 1955, Corender integrou a segunda tur­ma brasileira a cursar a escola superi or de for­mação de quadros do PCURS, em PUSd1kino, na antiga sede da Inte rnacional Comunis ta, a Lms trinta quilôm etros de Moscou. A pesar do seu baixo nível teórico e cultural, O curso permiti­ria-lhe dominar o russo e, mais tarde, traduzir ao português a lguns dássicos do marx ismo sta­linista. Durante a escola, iniciou seu relaciona­mento com a companheira de toda a sua vida, uma das dez comunistas que seguiam a escola. Idealina da Silva Fernandes era fi lh a do operá­rio eletricista Hermogênio da Silva Fernandes, um dos fundad ores do PCB, em 1922.

Em Moscou, os comunis tas bras ileiros foram notificados p a rc ia lm ente d o rela tó ri o de Kruschev sobre Stá liJ1, em 1956, que Corender pode ler, na su a totalidade, em edição reserva­da aos funcionários do PCURS. As revelações de Kruschev lançaram o movimento comunis­ta na confusão e apressaram o retorno dos bra­sileiros de M oscou, em meados de 1957. (6)

De volta ao Bras il, no Rio de Janeiro, di rigiu a Imprensa Popular e, a seguir, o semanário Voz Operária, onde hav iam sido abertas co lunas de debates sobre a s ituação do PCB, algo inusitado até então. Em 1958, com a aprovação de Prestes, C iocondo Dias reuniu pequeno g rupo de diri ­gentes -A lberto Passos Cuin1arães, Mário Alves, Armênio Cuedes, Jacob Corender - para redigi­ram documento substil·uti vo à orientação ofi ci­ai, à margem do Comitê Central, onde tinham fo rça stalinistas como João Amazonas, Dipognes Arruda, Pedro Ped ro Pomar e Maurício Crabois.

Publicado na Imprensa Popular e a seguir como li vrelo, o documento conhecido como a "Decla ração de Março" materi ali zou a definiti­va subs tituição da po líti ca esquerdi sta que re­gera o pa rtido após sua ilega lização por pro­pos ta de direita, de ali ança com a bllrgllesia na­cional e progressis ta. Por pr imeira vez, propunha­se a poss ibilidade da conquista pacífica do po­der, materi al ização no Brasil da nova oricn tll­

ção mundial da burocracia soviéti ca de coex is­tência pacífica. O carMer da revolução bras il ei­ra, diz ia o documento, era antiimpcri <:l l ist·a c antifeudal, nacional e democr5tico.

Burguesia progressista

A nova política es tava sendo aplicada des de o apoio do PCB à candid atura Jusce li­

no Kubitsd1ek. Apoio que, segund o Corender, teria tido impo rtância talvez decis iva na elei­ção de JK, devido aos quinhentos mil votos de­cisivos advindos d o PCB. A nova guinada le­vou à saída de Maurício Crabois e João Ama­zonas da Comissão Executiva e ao ingresso na mesma de Giocondo Dias e Mário Alves.

Em setembro de 1960, no V Congresso, rea­lizado na Cinelândia, no Rio de Jane iro, em semi-legalidade, Jacob Corender, com 37 anos, fo i eleito m embro pleno do Comitê Central do PCB e Má rio Alves e Ca rl os Mari ghella, des ig­nados para sua Comissão Executi va. O encon­tro aprofundou a po lítica de apo io à "burgue­sia nacional": "As tarefas fundamentais I···J são

4 - Cf. TOlEOO. Ob.cit. 5 _ Cf. MAESTAI. Entrevista citada.

a conquista da eman cipação do país do domí­ni o imperialista c a climinaç50 da cstrulul"il agrár ia atrasada 1 ... 1 o estabelecimento de am­plas liberdades democráti cas e a melho ri a das condições de vida das massas pO]JLli ares." (7)

• Com a renúncia de Jânio e a posse de João

Coulart 11961-641. ap rofundou-se radica lmen­te o atrelamento da direção do PCB, comanda­da por Prestes, à política po pu lista e il pro pos­ta de mod ifi cação da Constituição, para a ree­leição de Jango, em um momento em que se precipitava a crise política e social. Ao contrá­ri o do ocorrido durante o gove rno JK, era d ire­to e freqüente o contato da d ireção po lít ica do PCB, em geral, e de Pres tes, em parti cu la r, com João Coulart e com seu governo. Nesse contex­to, fortaleceu-se no PCB seto r defendendo mai-

S _ DIAS, GiocondoA vida de um revolucionário: meio século de história política no Brasil. 20 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1993. p. 190. l- DIAS. Ob.cit. p. 210 .

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xo - o E.\'cral'ismo Colonial

or aprofundamento da lu ta social e au tonomia diante do bloco social dominante no governo.

Em 1962, na N Conferência, Marighell a, Má­rio Alves e jover Telles, da Comissão Executiva, criticam os "desvios de direita" da d ireção, pro­pondo a "substituição do f ... 1 governo por outro nacionalis ta e democrático, do qual esti vessem excluídos os elementos conciliadores". (")

Em 1959-61, a vitória da revolução cubana ga lvanizara a esquerda revolucionári a latino-

americana com sua proposta de conquista ime­d iata do poder através da formação do foco guerrilheiro.(') No mesmo ano, a modificação da designação de Partido Comunista do Brasil para Partido Comunista Brasileiro [PCB), com o objetivo de facilitar a legalização do Partido, ensejou que João Amazonas, Pedro Pomar e Mau rício Grabois comandassem fracionamento do partido e fundação do Partido Comunista do Brasil.

Virada à esquerda

Nesses anos, o PCB era a única organização de esquerda com rea is raízes no mov i­

mento social. Num sentido sociológico gera l, no contexto e nos limi tes da cu ltura política stalinista, sua facção de esquerda sofr ia a influ­ência dos segmentos class istas da classe traba­lhadora em contradição com a política de cola­boração de classes da direção do PCB.

Em jane iro de 1958, Jacob Gorender publica­ra os ensa ios "Correntes socio lógicas no Bra­s il", na rev ista ESTUDOS SOCl A IS; em janeiro de 1960, "A ques tão Hegel", na mesma rev ista e, em janeiro de 1963, "Contradições do desen­vo lvimento econômico no Brasi l", na Revista PROBLEMAS DA PAZ E DO SOCIA LISMO. (lO)

Em 1961 , trad uziu, com Mário Alves, o Ma­nllal de economia política, da Academia de Ciên­cias da URSS e, no ano segu inte, Fundamentos do marxismo-leninislIIo, obra coletiva de sta li­ni stas soviéticos, ambos publicados pela Ed i­tora Vitó ri a, do PCB. (li)

Em 1964, a grande desmora li zação da d ire­ção do PCB, dev ido à vitória do go lpe militar, em 1 de abril, sem resistência, fo rtaleceu a opo-

sição de esquerda do PCB, na qual participavam Apolônio de Carvalho, Carlos Marighella, Jacob Gorender, Joaquim Câmara Ferreira, Manuel jover TeIles, Mário Alves, Miguel Batista do Santos, entre outros. Porém, em 1965-6, a dis­puta pelo controle da direção do partido seria vencida pelo grupo prestista. (12)

A oposição de esquerda foi expulsa do PCB, sem nem mesmo poder defender suas posições no VI Congresso, em dezembro de 1967. A di­reção comunista tomara a "decisão de proibir a participação dos delegados e suplentes da opo­sição: Carlos Marighella, Mário Alves, Manoel Jover Te lles, Joaq uim Câmara Ferreira, Apolônio de Carvalho, Jacob Gorender e Miguel Batista dos Santos." (13)

A política recessiva implementada pelo go­verno Castelo Branco, em respeito às exigênci­as do grande capital financeiro, ensejou forte reação e rea rti culação popular, sobretudo a par­tir de 1967, aprofundando a crise e o fracio­namento do PCB em organizações, em geral influenciadas pela vitória da Revolução Cuba­na e pela revo lução vietnamita.

Renovação revolucionária

Em abril de 1968, no Rio de Janeiro, o Pa rti- I PCBR-foifundado,sob a direçãodeMárioAlves, do Comun.ista Bras ile iro Revolucionário - Apolônio de Carvalho, Jacob Gorender e outros

6 - Id.ib. p. 111.

9 - Cf. Oebret, Reg is. Revolution dans la réva/urion? Lutte armée ef luue politique en Amérique Latine. Paris: Fra nçois Maspero, 1967. 10 - Cf. GORENDEA, Jacob. Correntes sociológicas fiO Brasil. ESTUDOS SOCIAIS, n. 3-4, Rio de Janeiro, 1958; -A questão Heger. ESTUDOS SOCIAIS, n. 8, Rio de Janeiro, 1960; Contradições do desenvolvimento econômico no Br8sil. PROBLEMAS DA PAZ E DO SOCIALISMO, n. 2, Rio de Janeiro, 1963. 11 - Cf. PEREIRA, Duarte. Marxis mo sem classe operária. Princípios, nO 56, São Paulo, fevereiro/abril de 2000, pp. 12-21. 12 - Cf. Mário Alves de Souza Vieira. Secretário-Geral do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). www.torturanuncamais.org.br/mtnm morl mor desaparecidos/mor mario vieira.htm . -13 ~ CI. DIAS. Ob .c it. p~ 166. -

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His t tÍ ria & Luta d e C/aoUf' .ç - HI

comunistas de esquerda . A nova organização propunha "renovação" revolucionária do antigo PCB, como sugeri a o nome que assumia . 1141

Marighella e Câmara Ferreira, ao contrário, hav iam fundado aALN, grupo guerrilheiro que se afas tava de qualquer versão político-parti­dári a le ninis ta e marxis ta. Diversos comunis­tas abandonaram o PCB para ingressar no PC do B., ou para fund ar e pa rticipar em outras o rganizações militaristas - VPR, Var Palmares, MR8, POC, etc.

O PCBR constituiu o rganização híbrida, com alguma força no Rio de Jane iro, no Paraná, no Espírito Santo e no Nordes te. No plano políti­co, rejeitava a aliança com a burguesia, mas negava a luta direta pe lo socia li smo. No plano táti co-o rganizacional, defendia a luta soc ia l e s indica l, que fora desprestigiada pela derrota da esquerda diante dos militares em 1964, as­sociada à luta armada no campo, fo rtemente pres ti giada pela recente vitó ri a cubana, em 1959-61, e pela luta vietnamita, então em curso.

o caráter híbrido do PCBR contribuiu para que fosse rapidamente destru ído, já que manti ­nha a organização anterior, necessária à inter­venção no movilnento de massas, seln assutllir estrutura organizacional ri gidamente estanque dos g rupos mi litaris tas, impresc indível para resistir por maior tempo aos ataq ues policia is. Em 12 de janeiro de 1970, iniciaram-se as que­das que desorganizaram a direção histórica do PCBR. Mário Alves, secretário-geral do PCB R, caiu no Rio de Jane iro, sendo executado após torturas inomináveis.

No dia 20, em São Paulo, depois de seis anos na clandestinidade, Jacob Gorender era preso e igualmente torturado. Na ofensiva policia l fo­ram detidos Apolônio de Carvalho e outros d i­rigentes da "velha guarda", ensejando que a nova direção aprofu ndasse a via militarista definida na fundação do grupo. Em abri l de "1 969, o PCB R iniciara operações de "propaganda armada ur­ban a", sob a pressão de m.ilit5ncia que dcixavJ J

organização por gru pos Inilitaristas 1l1ais ati vos.

Fora da linha

JaCOb Gorender divergira da o rientação guer­rilheíra, apoiada por Mário Alves, mantendo­

se à margem das ações armadas, apontando a "he­mo rragia" em que vi via a esquerda armada, en­vo lvida n o ciclo vicioso ações armadas-quedas que lhe esgotava as forças e os quadros. Já então, Gorender dedicava-se à investigação sobre o ca­ráter da formação social brasileira e da revolução brasi lei ra. (I;;)

Na prisão, Gorender apresentou, sob forma de curso, primeiro plano de sua interpretação da for­mação social brasileira que defendia a transição da sociedade brasileira, do escrav ismo ao capita-

lismo, sem passagem pelo feudalismo. Essa in­terpretação, se corrctJ, determinava ti nccessidJ­

de da luta direta pelo socialismo, desca rtando conseqüentemente a etapa anti feudal, apoiada na burguesia progress ista, defendida pela Decla ra­ção de Março, de 1958, que o próprio Corender ajudara a produzir. Em outub ro de ·197"1, Jacob Corcndcr concl uiu os dois .:111 05 de cnCll l"ccra­

menta a que fora con'denado. Fora da prisão, ja-111ais vo ltou à m.ilitância rcvolucion6ri o orgânica, tendo se inscrito tard iamente no PT, em meados dos anos :1 990, sem participar ativa mente da sua vida interna ou de alguma de suas tendências. 1"1

A redação de O escravismo colonial- Uma Revolução Copernicana

E m fin s de ] 97"1, em libe rd ade, Jacob Gorender manteve-se com o traba lho de

traduto r, dedicando-se na medida das possibi­lidades a sua investigação sobre a formação so­cial bras ileira. Em 1974, aos 51 anos, com o apo io

econômico de a lguns amigos, entre e les José Adolfo Cranvill e e Jacq ues Brey ton, francês e ex-resistente, ded icou-se plenamenle à redação de O escravismo co lonial, qu e comple tou do is anos mais tarde, em 1976, a inda em plena di ta-

14 _ CARVALHO, Apo lônio. Vale a pena sonhar. 2a ed. Rio de Ja neiro: Roeco, 1997. p. 200. 15 - Id.ib. 203. , 16 _ GORENDEA, Jacob. Combate nas trevas. 5(1 ed. Ver., ampliada e atualizada. São Pa ulo: Atica, 1998. pp. 20 1 el seq. ; PEREIRA. Ob.cil.

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82 - o Escravismo ColOllial

dura mil itar [1964-85]_ (17) Em 1978, depois de demorado exame, O escravismo colonial era lan­çado pela Edjtora Ática, de São Paul o_

Para surpresa do autor e dos editores, tama­nho foi O sucesso da volwnosa obra no mundo acadêmko que a edição esgotou-se rapidamen­te após o lançamento, ensejando W11a segunda ed ição illnda no mesmo ano. A tese com cerca de se iscentas páginas e fetuava revo lu ção coperrucana nas ciências sociais brasileiras. Efe­ti vamente, ao apresentar exaus tivamente a defe­sa do caráte r escravista colonial do passado bra­sileira, superava a falsa polêmica passado feudal­passado capitalista que dividira por décadas as ci­ências sociills e a esquerda brasileira. AIgw1s dos mais ásperos debates político-ideológicos no

Brasil haviam se centrado sobre essa questão. A origem do impasse teórico era antiga e ti­

nha raízes complexas. A hegem onia stalirusta sobre o marxism o e o movimento operário ensejara que as sociedades extra-euro péias fos­sem necessariamente enquadradas em um dos estágios da linha interpretativa marxiana do de­senvolvimento europeu - comunismo primiti­vo-escravismo cláss ico-fe ud alismo-capi ta­lis tamo-socialismo. Em 1928, quando do VI Congresso da Inte rnacional Comunis ta, esse procedimento teórico dogmático transformou­se em política oficial para o mundo colorual e semicolorual, sendo implementada no Brasil e na América Latina pelo Bureau Sul-Americano da IC, sed iado em Montevidéu. ( 18)

Diplomacia soviética

Essa leitura não constituía erro ou desvio de aplicação de método marx ista. Era orienta­

ção política da burocracia soviéti ca que impul­sionava a pacificação do movimento social dos países do Terceiro Mundo, submetendo-o às bur­guesias nacionais e às necess idades conjunturais da diplomacia do Estado soviético.

Expressava e apo iava-se também em segmen­to sociais proprietários, das classes méd ias, da burocracia sindical e da elite operária interes­sados nessa colaboração. A defini ção do cará­ter co lonial, semi-colonia l, feudal e semi-feu­dal das nações de capita lismo atrasado justifi ­cava a po líti ca de alian ça e de s ubmi ssão programática dos trabalhadores as suas burgue­sias nacionais, em frente anti impe riali s ta e anti ­latifu ndiária que excl uía a luta anti-capitalis ta.

Apenas vencida a etapa democrát ica da re­vo lu ção, se ria empreendida, a lgum di a, ago ra sob a direção opcrór ia, a lutiJ pela superação socia lis ta do capita lismo. No Bras il, para cor­roborar essa v isão, a intclcctualidadc orgâni­ca comunis ta in te rpreto u a luta socia l no pas­sad o bras ile iro a partir do confronto entre o camponês pobre sem te rra e o latifundiário semi-feudal.

17 - GORENDEA. Jaco b. o escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978 .

O intelectual e militante comunista Alberto Passos Guimarães criou arbitrariamente uma sociedade camponesa desde o início da coloni­zação, forma tando literalmente o passado e a his­tória nacionais às necessidades dessa interpre­tação_ Em seu livro Quatro séculos de latifúndio, de grande repercussão, o pensado r comW1ista propunha: "Jamills, ao longo de toda a história da sociedade brasileira, esteve ausente, por um instante sequer, o inconci li ável antagonismo entre a classe dos latifundiári os e a classe cam­ponesa, tal como igualmente sucedeu em qual­quer tempo e em qualquer parte do mW1do." (191

Entretanto, no Brasil, por séculos, dominaria a produção escravis ta co lonia l e a qu ase inexis­tência de um campesinato propriamente dito. ~Ol

Em lº de abril de 1964, a política de aliança anti imperialista e anti-lati fundiária mostrou sua inconseqüência objetiva quando, sem qualquer prurido, a burguesia nacional, delllocrática e pro­gressista integrou a vanguarda social do movi­mento militar que impôs seus interesses estra­tég icos de super-exploração e destru ição de conquistas históricas do mundo do trabaUlo, em associação com o imperi alismo, com o capital financeiro e com o latifúndio.

18 - LAPA, José ~oberto do Amara l [Org .] Modos de Produção 8 (ealidade brasileira. Petrópo li s: Vozes , 1980. p. 11 . 19 - Cf. GUIMARAES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio: 3 ~ ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, sd. p. l la. 20 - Cf. MAESTRI , Mário. A aldeia ausente: índios. escravos e imigrantes na formação do campesinato brasileiro.

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/J i .ç tÚria & l.ula de C laHes - 83

Esquerda marxista

Grupos m arxistas revolucionários frágeis -Organização Revolucionária Marxista-Po­

lítica Operária, pequenos grupos trotsldstas, etc. -, em oposição ao projeto nacional-desenvolvi­mentista burguês, propunham programa socia­lista para a revolução brasileira. Porém, deduzi­am a corre ta caracterização capitalista do Brasil da cons ta tação sumária de determinações gerais da ordem mundial e da sociedade bras ile ira. Evacuava-se a questão do caráter da antiga for­mação social com definição sumária do domí­nio de relações capitalistas desde a Colônia. (21)

Em "Programa Socialista para o Brasi l", de 1967, a OMR-POLOP deduziu o caráter socia­lista da revolução no Brasil da situação mund i­al da luta de classes, pautada pela contradição entre o capital imperialista e a revolução socia­lista, que definia em fase sua conclus iva. "Vi­vemos na é poca do confronto final entre o ve­lho regime capitalista e as forças que lutam pelo

. I· [I " (22) socla lsmo .... Mesmo nos "países subdesenvolvidos", "par­

te do mercado capitalista munclial", "onde não"

estava "suficientemente amadurecida a contra­dição" capital-trabalho, impunha-se a lu ta soci­alista, dev ido à contradição maior e estarem es­sas regiões imposs ibil itadas "de repetir o pro­cesso de desenvolvimento trilhado pelas nações capitalistas avançadas". Portanto, pouca impor­tância tinham as "diferenciações sensíveis" exis­tentes entre nações ameri canas que "passaram por fases de industrialização, possuindo um pro­letariado desenvolvido" e os "países que conti­nuam a viver praticamente da monocultura de produtos tropicais". A dominação imperialista, o geral, determinava para qualquer nação, o par­ticular, a luta anti-capitalista direta.

O Brasil era definido como "país cap itali sta industrial", de "desenvolvimento, bloqueado", "em processo de integração com o sistema im­perialista", com contrad ições com a "explora­ção latifundiá ri a do campo", às quais se hav ia "acomodado", já que o latifúndio "nLlda" Hnha de "feudal", já que "desde o período co lonial" fornec ia bas icamente "arti gos para o mercado", a fim de obter "lucro" .

Passado capitalista

O corte integracion is ta (23) da aná li se da OMR-PO não deixava espaço para refle­

xões sobre a formação social brasileira, no pas­sado e, portanto, suas tendências dominantes no presente. No docu mento há referências à "herança colonia l" e regis tro que, "pelo menos a pa rtir de 1930", a burgues ia não e ra mais "clas­se marginalizada do poder". Era muito sumá­ria a abordagem d o golpe de 1964, "decorrên­cia necessária da crise do regime burguês-lati­fundiário", certamente porque a luta socialista c armada independia deste e de outros suces­sos contingentes.

Nesses a nos, para a q uase totalidade dos militantes revolucionários, a história do Brasi l

iniciava praticamente com a Revolução de 1930, já que apenas então se podia cons tatar inter­venção nacional, ainda que frági l, da c1ilsse o pe­rária do Bras il. Evacua vam-se os períodos co­lonial, imperia l e a Repúb li ca Velha como ques­tões teóri cas, so lucionando-se ass im il impos­sibilidade de análise daqueles séculos com ca­tegorias próprias à produção capitali sta .

Em contexto de g rande pragmatismo, em pi ­rismo e propagandismo, militantes das o rgani­zações brasileiras com prog rama socia lis ta ou de li bertação nacional, em geral mu ito jovens, estudavam e d iscuti am com dedicação as expe­riências sov iéti ca, cubana, chincsiJ, vicl"rlamitLl,

argelina etc., despreocupados com a hi stóri a e a

21 _ Cf. PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966; FRANK, A. G. Capitalismo e o miro do feudalismo 110 Brasil. Revista Brasiliense, n. 51. São Paulo, 1964. 22 _ REIS FILHO, O.A. & SÁ, J. F. de. IOrg.1 Imagens da revolução: documentos políticos das organizações c/andestillas do esquerda dos alias 1961 -1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985. p. 89-117. 23 _ "1 .. . 1 Lógica do Integracionismo: A operação se efetua segundo o axioma de que as relações de dominância são sempre relações de integração idemificadora' o termo subordinado integra-se no termo dominante e, desde logo, tem a mesma identidade substantiva dele. ~ GORENDER, J. O escravismo Colonial. 401 ed. Rev. E ampl. São Paulo: Ática, 1985. P. 307

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84- o Escra vÚ'mo ColOllia l

rea.lidade brasileiras. Boa parte dessa mili tância permaneceu à margem da d iscussão que se es­tabeleceu, em 1978, em torno de O escravismo co­lonial, inconsciente do sentido e das decorrên­cias profundas daquele traba lho.

Em O escravismo colonial, Jacob Gorender su­perava a tradicional apresentação crono lóg ica de cunho hís tor icista do passado do Bras il para definir em fo rma categori al-s istemá ti ca sua es­trutu ra escrav ista colon ial. O u seja, empreen­d ia es tudo "estrutural" daquela rea lidade, para pene trar "as aparências fenomenais e revelar"

sua "estrutura essencial" . Isto é, seus elemen­tos e conexões inte rnos e o movimento de suas contradições. (24)

Ao apli car cri ativamente o método marxista ao passado brasile iro, o auto r demarcava igual­mente a necessidade de investigação exaustiva que rea lizasse a exegese de seu cará ter singular e, po rtanto, dos ritmos objetivos de seu desen­volvimento, a partir das suas contradições ob­jeti vas inte rnas. Propunha, ass im, superação epistemológica radica l da interpre tação da for­mação socia l brasileira.

Contradições interna

Dor primeira vez, empreendia-se em fo rma .1.- s is temáti ca a inte rprct;:,ção do passado pré-Abo li ção a pa rtir de suas con tradições fund amenta is, a o pos ição entre o tr;:,b;:,lhad or escra v izado c o cscrav izad or. A té então, as mais e l;:, bo rad ;:,s inte rpretações d ;:, antiga fo r­mação soc ial brasi le i ra apon ta vam co mo demi urgos soc ia is o senhor-de-engenho - na le itu ra de Gilbe rto Frey re, de 1933(") - e o e m p resá ri o cap i talis ta d o ca fé, d o oes te pa ulis ta. Essa ú ltima inte rpre tação, da Esco­la Pauli s ta de Socio logia, de 1950-60, pro pu­nha o despo ti smo d a esc rav idão, uma fo rma de "capita li smo incomple to" e a impotência histó rica do traba lhado r escrav iz;:,d o. (2(,)

Fernando Henrique Cardoso s inte ti z;:, a v i­são da impotência socia l servi l: "A libe rdade desejada e imposs íve l ap resent;:, va-se, po is, como mera necess idade subjeti va de a firma­ção, que não encontrava condi ções pa ra rea li -za r-se co nc re ta me nte. f ... 1 houve fu g;:,s , manumissões e reações. [ ... 1. A li berdade as-s im consegu ida o u outo rgada não imp licava em nenhum momento, porém, modificações na estrutura bás ica que definia ;:,s rel ações entre senho res e escravos f ... I." (27) O u seja, ao me-

nos n a escrav idão e no Brasil, a his tó ri a não fora p roduto da luta de classes .

Um dos pontos altos da inte rpretação de Gorender e ra a apresentação do traba lhador escrav izad o como "agente subjetivo do proces­so de trabaUloN, e não como Umáquinas" ou "outro bem de capital", ao igua l do formula­d o po r a uto res co m Ca io Pra d o Júni or, Werneck Sodré, Fe rnando Henrique Cardoso e Ciro Flamari ón. Po rém, esse último autor, ao contrário dos ana lis tas ante rio res, propôs em fo rma cl a ra a domin ân cia n o Bras il de modo de produ ção escravis ta colonia l e ja­mais desco ns ide ro u o ca rá te r s ubje ti vo do agi r serv i I. (28)

O caminho para a interpre tação radical e sis­temáti ca d o passad o bras ile iro d e Gorender não se de ra em espaço vaz io. Ele fo ra aberto po r m ovimentos teó ri cos em desenvolvimen­to no plan o nacional e in ternaciona l, anteri o­res e contemporâneos àquela inves tigação.

No Brasil, interpretações his to ri cis tas ou sis­temáti cas sumári as defendiam a exis tência de sistema escravista e a oposição entre o senhor e o cati vo como a contrad ição fund amental na pré-Abolição, com destaque para os trabalhos

24 - GOREN OER, Jacob. HO conceito de modo de produção e a pesquisa histÓricaH

• LAPA, José Roberto do Amaral lOrg.J HModos de produção e realidade brasileiraH

• Petró polis: Vozes, 1980. p. 45. 25 - Cf. FREYRE, Gilberto. ~Casa grande & senzala: formação da falllilia brasileira sob o regime de economia patriarcar . I 4a ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1969.2 v.

26 - Cf. FERNANDES, Florestan. ~M!Jdanças sociais fiO Brasir. São Paulo: Difel, 1960; HA integração do negro na sociedade de classcs H• 3a ed. São Paulo:

Ática, 1978; IAN NI , Octávio. ~As metamorfoses do escr.1vo~. São Paulo: Dife l, 1962; CA RDO SO, EH. -Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do s ur . São Pa ulo: Difel, 1962. 27 - Cf. CARDOSO, f. H. Ob .cit. p.14D-2. 28 - Cf. GORENDER, Jacob. -Questionamentos sobre a teoria econômica do escravismo cofoflial. ESTUDOS ECONÔMICOS~ , Instituto de Pesquisas Econõ. micas, IPE, São Paulo, 1311/. jan. -abril 1983, p. 16.

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H i,t llíria &: Lula de C/auu - 85

de Bejarnin Péret, de 1956 (29), de Clóvis Moura ~O), de 1959, J. Stanley Stein (31), de 1961, de Emi li a Vio tti da Costa, de 1966 (32), de Décio Freitas, de 1973 . (33)

No cen á rio inte rnacional, desempenhou pa­peI essen cia l na interpretação de Gorender o renascime nto d a discu ssão sobre a plura­li dade de mod os de produção das formações sociais não européias, ensejado pelo enfraque­cimento d a hegem onia mundial do stalinismo,

pe rmitida pe la forte retomada da revolução mundial. Essa discussão cen trou-se iniciahnen­te na proposta de Marx e Engels de "modo de produção asiático", com explo ração classista e sem apropriação privada dos meios de pro­dução. (34)

Quando do lançamento de O escravismo co­lonial, havia muito que se consolidara no Bra­s il a di scussão sobre a divers idade de modos de produção na história e na América La tina. (35)

Economia política da escravidão

Em sentido mais específico, no contex to da d iscu ssão d as razões da guerra de Seces­

são, Eugene D. Genovese apresentou estudo sobre o escravismo no sul dos USA onde de­fendeu a análise dessa realidade social a par­ti r de su as dinâmi cas, es truturas e contradi­ções inte rnas. (36)

Nesse traba lho germinal, Genovese apontou a existência no sul dos USA de sistema social escravista que subordinava as outras formas de trabalho, d estacando seu caráter necessariamen­te colonial . Com pertinência, ressaltou a impro­priedade d e definir como capitalista qualquer sociedade d ominada po r relações mercantis. Essas propostas fo ram ampliadas e aprofun­dadas em O escravismo colonial.

O histo riado r estadunidense jamais propõs a existência de modo de produção escrav is ta colonial no su I dos USA e vaci lou entre inter­pretação m ate ri ali sta e ideali sta da realidade. No momento em que defendia que o mundo escravista possuía sua lógica, moral e ideo lo-

gia próprias, deduzia mais de uma vez a d inâ­mica essencial dessa sociedade da visão m'islo­crática dos escrav izadores.

Na introdução de seu magis tra l t raba lh o, Eugene D. Genovese propunha: "Tenho cons­ciência que, em fim de contas, os verdadei ros problemas são de o rdem ideológica e ps icoló­gica. Não se morre por nenhum in teresse m;)te­ri a l, suponde-se que algum o mereça, o que não é evidente." (37)

A seguir, o histo ri ado r abandonmia g rande pa rte das pro postas revolucionárias q ue enun­ciara em Economia política da escravidão. Porém, elas foram re tomadas ou estavam sendo de­senvo lvidas por outros estudiosos, com des­taque para O historiador Ciro Flamar ion Car­doso, já citado, que publicou em ]973 do is ;)r­ti gos germinais sobre as fo rm ações socia is escrav istas ameri canas, escritos no con tex to do desenvo lvimento de sua tese de do uto ramento sobre a Guian a Francesa, rcdigidíl na França, em 1967-7"1. (38)

29 _ Cf. PÉRET. Benjamin. Que loi o quilombo de Palmares? Revista Anhemb i, São Paulo, abril e maio, 1956; __ o O quilombo de Palmares . Org .. ensaios e comentários de Mário Maestri e Robert Ponge. Po rto Alegre: EdUFRGS, 2002. 30 _ Cf. MOURA. Clóvis. Rebeliões na senzala: quilombos. insurreições. guerrilhas. São Paulo: Zumbi. 1959. 31 _ Cf. STE1N. J. S. Grandeza e decadência do café no vale do Paraíba: Com referência especial ao município de Vassouras . São Paulo: Brasifiense. 1961 .

IOriginal em inglês 1957) 32 _ Cf. COSTA. Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 2a ed. São Paulo: Ciências Humanas. 1982. 33 _ Cf. FREITAS. Décio. Palmares: a guerra dos escravos. Porto Alegre: Movimento. 1973. lPrimeira edição espanhol, 1971.) .. 34 _ Cf. SOFRI. Gianni. fi modo diproduzione asiático. Torino: Einaudi, 1969; SOFRI. ~O modo de produção asiático: história de um cOlllfovérsia lIU)rxlstn-. RIO de Janeiro: Paz e Terra. 1977; GOOEUEA/MARX/ENGElS, Sobre el modo de producción asiOfico. Barcelona: Martinez Roca, 1977. 35 _ Cf. ASS AOOURIAN. C.S. et ai. Modos de producción en América Latina. Buenos Aires : Siglo XXI, 1973; GEBRAN, Philomena 10rg.) Conceito de //Iotlo de produção. Rio de Janeiro : Paz e Terra , 1978; MEll lASSOUX, Claude. L 'esclavage en Afrique precoloniale: dix-sepr études présemées par. . . Paris: François Mas pero. 1975; MIERS, Suzanne & KOPYTOn, 19or. SIavery in Africa: historica! and anthropo!ogica! perspectivas. Wisconsin: Unlverslty of Wisconsin. 1977; GODEUER. Maurice. Sobre as sociedades pré-capdalistas.lisboa: Seara Nova, 1976. . 36 _ Cf. GENOVESE, Eugene. The po/itica! economy Df slavery. New York : Pantheon Books, 1965; GENOVESE. Economie po/itique de I' esc/fJVag . Paris: Ftançois M aspero, 1968; ,G ENOVESE. A economia política da escravidão. Rio de Janeiro : Pallas~ 1976. 37 _ Cf. GENOVESE, Eugene. Economie politique de "esc/avage. Ob.cit. p. 20. ITraduzimos do frances I . . . 38 _ Cf. CARDO SO, Ciro F. S. fI modo de producción esc/avista colonial en América. Assadourian et AI. C.S. et a!. Modos de producción en Amenca l atma. Ob.cit.; CA RDO SO, Ciro F. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasi liense, 1987. p. 31 ..

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r K6 - o Escra~islllo Col(Jflial

leis Tendenciais da Produção Escravista Colonial

Em O escravismo colonial, Jacob Gorender em­preende crítica ca tegorial-sistemática da pro­

dução escravista americana considerada como modo de produção hi stori camente novo, dev i­do ao seu caráter dominantemente mercant il, que extremou qualitativamente determinaçõcs secun­do:írias ou pouco desenvolvidas da produção pa­triarca l e pequeno-mercanti l do escravismo greco-romano. [.19) Gorender propõe que a escra­vidão co lonial tenha determinado essencialmen­te todas as sociedades americanas onde assumiu

papel dominante. Portanto, a fundamentação de sua investigação no caso bras ileiro deve-se tam­bém ao (ato de ter si do a li que a prod ução escravista colonial alcançou o mais acabado de­senvolv imento - longevidade, espaço geográfi­co, variedade de produtos, número de cativos importados, influência na formação social, etc.

Ao empreende r a aná li se crítica da li teratu­ra teó ri ca e da historiografia sobre o Br<Jsil escra­vista, através de rigorosa ap li cação do método marxis ta, associa criativamente os níveis histó­ri co, lóg ico e metodológico de análise. Utili za como paradigma a apresentação das le is ten-

denciais da produção capitalis ta, em O capital, por Karl Marx, sem se negar a refutar referênci­as marxianas ao escravismo moderno conside­radas incorretas ou pouco desenvo lvidas.

Em capítulo dedicado a "refl exões metodoló­gicas", Gorender inicia sua tese cUssociando-se da leitura a lthusseriaJl a da história e do ma DOS­

mo, então em voga. (<<l) Dedica a "Primeira Par­te" à definição do escrav ismo colonia l como ca­tegoria hi s to ri camente nova, no contexto da impu lsão do mercado inte rnacional e dos avan­ços materiais da época - transpo rte, moendas, etc. A seguir, apresenta as "categorias funda­mentais" desse modo de produção, destacando a "categoria escravidão" e a "forma plantagem de organização da produção escravis ta". (<l)

Na "Segunda Parte", aborda a gênese his­tóri ca da formação escravis ta luso-brasileira, através da crítica do espaço sócio-geográfico português, nativo e colon ial. Portanto, trata-se de processo de exposição que v io lenta consci­entemen te a o rdem de investigação para em­preender apresentação que parta do geral, para o parti cular, do abstrato para o concreto.

leis tendenciais

A longa "Terceira Parte" é dedicada 11 discus­são das leis "monomodais", excl usivas do

modo de produção escravista colonial, em opo­s ição às leis "plurimodais", comuns a diversos modos de produção. As leis específ icas do escravismo colonial seriam: lei da rcnda mone­tária; lei da inversão inici<lJ da aquisiç50 do tra­

balhador escravizado; leis da rigidez da m50 de obra escrav izada; lei da correlação entre econo­mia mercanti l c economia natural na plantagcm escravista e lei da população escravizada. (42)

Nas quarta, quinta e sexta partes e em adendo final, discute respectivamente o "regi­me territorial c rcnda da terra", as "formas par­ti culares de escravidão", a "circulação e repro­dução" no escrav ismo moderno e "as fazendas

escravistas do oeste de São Pau lo". A definição do caráter escrav is ta da cafeicultura do Oeste paulista constitu i refutação da proposta do ca­ráter empresa ri al capita lista dos cafe icultores dessa região apresentados, como vimos, como dem iurgos da revolução burguesa no Brasil.

Apesa r do caráter multifacetad o da produ­ção esc ravista colonial, pa ra Gorender, seu pólo dominante encontrava-se na g rande plantação escrav is ta - plantagel/l -, cujas ca racterísti cas descreve em fo rma minuciosa, ass im como as parti cularidades e as forças p rodutivas que a sustentaram. Nesse processo, destaca a coexis­tência estrutural na plantagem de correlação d ialética ent re esfera de produção, na tural e subordinada, e outra, mercantil e dominante.

39 - Cf. MAESTRI, Mário. Breve história da escravidão. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. 40 - Cf. GORENDER. O escravismo colonial. Ob.cit. pp. 1-30 . 4i - Ci. id.ib. pp. 37·98. 42 - Cf. Id .ib. pp. 45·370.

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J1 isltÍria & Lula d e Cla \'.f f \' • S7

Era antiga na hi storiografia da escravidão a discussão sobre o ca ráter benigno ou despóti­co do escravismo americano. Durante decêni­os, a interpre tação patricarcalista de Gi lberto Frey re, que re tomava interpretações das pró­prias classes escravistas, fora vi são his toriográ­fica semi-oficial no Brasi l, tendo s ido o brilhante sociólogo agraciado pelo Estado com fundação para melhor desenvolver e pe rpetrar sua visão pacificadora e consoladora do passado c do presente brasileiros. (43)

Jacob Gorende r apresenta so lução teó ri ca estrutural para essa questão, ao lembrar que as característ icas patriarca is, consid eradas por Gilberto Frey re como a essência do escravi smo luso-bras ileiro c brasileiro eram, ao contrário, secundárias, já que se originam sobretudo na esfera natural de produção, sempre subo rdina­da aos ritmos e sentidos da es fera mercantil, comandada essa última pelas inexoráveis ex i­gências e determinações da produ ção para o mercado mundial.

o geral e o particular

Essa compreensão de Gorender ressa ltava a imperiosa necessidade da aná lise dos fenô­

menos sociais e hi stó ri cos no contex to da tota­lidade das est ruturas e form ações sociais em que se apresentam, para que se desvelem cor­retamente seus nexos e de terminações gerais e essencia is. Ou seja, a necessidade de não gene­raliza r o fenômeno histórico particular ou par­ticu larizar o fenômeno geral.

O escravismo co lon ial nã o co ns ti tu ía monografia acadêmica iso lada, parte de divi­são e especialização e rudita d o saber que se frustra ou se reaJl zâ, ao suprir, mais ou menos plenamente, as exigências de plano semi-anár­quico do avanço do conhecimento, sempre de­termi nado pe las necess idades objetivas e sub­jetivas dos inte resses sociais hegemônicos. PIa­no em geral exterior ao processo de produção do investigador e, não raro, mais ou menos à margem de s ua consciência.

A inquirição sociológica de Jacob Corender, em O escravismo colonial, desenvolvi a-se "na perspectiva d o marxismo crí ti co e dialético" que considera, no contexto de sua "autonomia re­lativa", "o trabalho intelectual" como "d imen­são das lutas políticas e ideo lógicas que per­passam a sociedade capita lista".I" ) Portanto, um

trabalho teóri co profundamente influenciado pela co rrelação objetiva de forças entre o Ill un­do do trabalho e o mundo do ca pital.

Estritamente, trata vLl-SC de invcsti gaç50 com O objetivo de es tabe lece r bases Illetodológicas sólidas para a interpretação da lnodcrn a forma­ç50 social brasileira, para podcr transform<J ·la em sentido revolucionár io. Essa reflexão teve seguimento sobretudo em dois outros estudos fundamentai s, desenvo lvidos apenas sob fo r­ma de ensaios s intéticos - Gênese e desenvolvi­mento do capitalismo 110 campo iJrasileim e a Bur­guesia brasileira.!'''' Port~nto, toda essa refl ex50 desenvolveu-se no contexto da ·1 F Tese el e Marx, sobre Feuerbach, de J 845, o u seja, par~ "interpretar" O mundo social c, ass im, iljudar a "transfo rmá-lo", ao agir no sentido das fo rças tendenciais libertadoras. I"')

NUIll sen tido mais amplo, ao empreende r eco nomia po líti ca do modo d e prod uç50 escrav ista co lonial , Corcndcr contribuía para a construção de economia po lítica dos modos de produção pré-capitali sta s, capitali stas c pós­cap it ~li sta s, ao lado de obras como ~ Novo eco­nomia, do econo mis ta sov iéti co trotski sta E. Preobrazhensy, de Mulheres, ccll'iros & capitois, de C1~ude Meillassau x, entre outras. I")

43 _ Cf. MAESTRI, Mário. Gilberto Freyre: da Casa grande 80 Sobrado: gênese e dissolução do patriarcalismo escravista no Brasil. CADERNOS IHU, ano 2, n. 6,2004, Instituto Humanitas Unisinos, Unisinos, São Leopoldo. 31 pp . 44 - Cf. rOLEDD. Ob.cit. 45_ Cf. GORENDER. Gênese e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 19 67; GO RENDER. "'A burgue si a bra sile i·

ra". São Paulo: Brasiliense. 1986. 4S _ MERKER Nicolao. 10rg.) MARX & ENGELS. E2 ed. ia concezione materiaJisticadella storia. Roma: Riuniti, 1998. p. 52 . 41_ Cf. PREOBRAZHENSKY, E. 119261. ia IIuava economia. -México: Era, 1971-; MEIllASSOUX, Claude. Mulheres, celeiros & capitais. Porto: Afrontamento, 1917; OAllA VECCHIA. Agostinho Mário. As lIoites e os dias: elementos para uma economia política da forma de produção semi-servil filhos de criaçlio. Pelotas: EdiUfPEl, 200 1.

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88 - o Escravismo Colollial

o escravismo colonial - apogeu e crise

OS importantes sucessos sociais, políticos, culturais e ideológicos gerais ocorridos no

Brasil e no mundo em fins da década de 1970 per­mitem compreensão mais precisa do SI/cesso cien­tífico e acadêmico de O escravismo colonial, no mo­mento de seu lançamento, e durante o decênio segu inte, e a radical reversão de sua receptividade e legitimação acadêmica, nos anos 1990.

Em 1977-8, O Milagre Brasileiro pertencia ao passado e a sociedade nacional ingressava na depressão econômica tendencial na qual ainda se mantém. Naquele então, a inda no contexto do afluxo do movimento social mundial, a vio­lellta decadência das cond ições da vida da po­pulaç50, devido à expropriação salarial - infla­ção e arrocho - , determinada pelo início do pagamento incondicional da dívida financeira, ensejava o renascimento do ativismo sindical, pondo fim ao longo período depressivo que o movim ento social ingressara em 1969.

Em 1979, muito duras mobilizações popula­res na cidade e no campo agitaram o Brasil, assi­nalando objetivamente o caráter social e políti­co protagonista dos traball1adores, negado pelo

nacional-desenvolvimentismo burguês do PCB, antes de 1964, e pelo militarismo pequeno-bur­guês - VAR, PCBR, ALN, VPR, etc. - nascido sobretudo nas fi las comunistas e entre os seg­mentos de classe média radicalizados, após 1967.

No mundo das representações, O escravismo colonial materializava as necessidades das mo­bilizações classistas dos traballladores de inter­pretação radical da formação sodal brasileira, a partir da ótica do mundo do trabalho, que su perasse as falsas visões do passado, nas quais se haviam apoiado as estratégias populistas, d i rei tis tas e esquerdistas, derrotadas em mea­dos dos anos 1960 e nos inícios de 1970. (48)

O forte avanço dos trabalhadores de fins de 1970 - greves operárias e ocu pações de lati­fúndios, com ápice em 1979; fundação do PT anticapitalista, em fevereiro de 1980; fundação da CUT class ista, em agosto de 1983 - abria es­paço social para o reconhecimento acadêmico e científico de obras como O escravismo colonial, de 1978, que empreendiam e apoiavam leituras radicais da formação social brasileira exigidas pelo desenvolvimen to da luta social.

Hegemonia conservadora

Entretanto, a ofensiva do mundo do trabalho brasileiro, de fins dos anos 1970, sofreu ime­

diatas e múltiplas respostas, de todas as ordens, de parte das forças sociais proprietári as ascen­dentes e descendentes, que jamais deixaram de manter a hegemonia nacional e internacional. Essas respostas abran geram igualmente as ex­pressões daquele impulso social no mundo das representações.

Nessa operação destacou-se vasto movimen­to de deslcgitimação científi ca e acadêmica de O escravislllo colonial, inicialmente em forma in­d ireta e transversal, mais tarde em forma direta e frontal, que se mobilizou para soldar a fratu­ra causada pela apa ri ção de obra que colocava o traba lhado r e a luta de classe no centro da interpretação da formação social brasileira.

A campanha processou-se sobretudo através

48 - Cf. KORSH, KarL Marxismo e filosofia. Porto: Afrontamento, 1977. p. 79.

de dois movimentos. Enquanto procurava-se s istematicamente argumentação que questio­nasse, nem que fosse no mundo das aparênci­as, elementos essenciais daquela interpretação, esforçava-se para manter à margem do mundo acadêmico os defensores do novo revisionismo historiográfico, em geral, e Jacob Gorender, em especia l.

Quanto ao segundo movimento, é exemplo paradigmático a trajetória profissional do pen­sador marxis ta baiano, após o lançamento de sua obra. Apesar da profunda erudição regis­trada em O escravismo colonial, as portas da aca­demia, espaço ideal para a atualização, corre­ção e ampliação daquela interpretação do pas­sado mantiveram-se fechadas pa.ra ele, sob a justificativa de não possuir título univers itário.

Nesse sentido, o pensador radical foi indis-

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U ist6rla f.I!: "/lta d e C la .He.f - 89

cuti velmente punido por te r preferido comba­te r militarmente o naz i-fascismo, como praci­nha, em ]942, e o capitalismo, como militante profissional, após 1945, e ter-se, ass im, descu-

rado de formação superi or, que lhe teriam ga­rantido as exigências formais para ingressar na Academia ou carreira burocrática respe itadora das ins titui ções e da simbologia do poder.

Finalmente doutor

N os anos segu intes à publicação de sua tese, pa ra manter-se, Jacob Gorender trabalhou

na Abril C ultural, coordenando a coleção "Os Economistas", que apresentou mais de meia centena de autores e vendeu, inicialmente, um milhão e meio de exemplares. 1491 Nessa co le­ção, pubücou uma "Introdução" e uma "Apre­sentação" a dois volumes de obras de Marx. 1!i()1

Em 1989, escreveu longa "introdução" à Ideolo­gia alemã, de Marx e Engels. 1"1

Apen as em 7 de abril de 1994, dezesseis anos a pós a publicação d e O escravismo colonial, Gorender foi agraciado com o títu lo de Douto r Honoris Ca l/ sa, pe la Universidade Fede ra l da Bahia, quando da reito ri a do dr. Luiz Fclippe Pe rret Serpa, em obediênc ia à reso lu ção do Conse lho Unive rsitário de 27 de outub ro de 1992. 1"1

Em ] 994-6, atuou como professor vis itante no Instituto de Estudos Avançados da US I~ re­digindo o ensaio "Globali zação, tecno logia e re lações de traba lho". IOJI Em 29 de agos to de 1996, por propos ta do Departamento de I-Iis tó­ria da USP, recebia o título de especia lista de

Notório Saber, pela Congregação da Facu lda­de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da mesma uni versidade, o que lhe permitiu parti ­cipar como examinador de bancas de mestrado e doutorado.

Em 1997, ministrou discipli na em curso de pós-graduação do Departamento de His tória da mesma instituição - "Históri a c marxismo: a prova prática no século XX (aná li se científica e aspirações utópicas)." Esse limitado reconhe­cimento científico institucional muito honra as institui ções e os promoto res que se desdobra­ram para efetivá-lo .

A exc lu são a cad êmi ca o b rigo u Jaco b Gorcndcr a empreender, em form a quase isola­da, sem apoio instituciona l, i.1 pÓS suas at ivid a­des profissionais, nos momentos roubados ao lazer, a resposta aos va ri ados questi onamentos de sua interpretação do passad o, p rodu zidos em gera l por intelectua is ded icados p ro fi ss io­na lmente à produção inte lectua l, sus tentados e apoiados po r suas institui ções, po r bo lsist;:,s, por seu orientandos, pe la g r;:,nde im prensa na­ciona l e regiona l, etc.

Escravismo Colonial: Ouestionamentos

A pós a publicação de O escravismo colonial, Jacob Gorender inte rve io sobretudo com

d o is e nsa ios -- na imp o rtante di scuss ão ensejada por sua obra - "O conceito de modo de produção e a pesquisa his tórica", de 1980, e "Questionamentos sobre a teoria econômica do

49 - Cf. MAESTRI. Entrevista.

escrav ismo colonia l", de 1983. 1ó41 Em 1985, pu­blicou uma quarta ed ição revista e amp li ada de O escravismo colonial. Em 1990, um ano após a consolidação da con­tra-revo lução mundi a l - Q ueda do Muro el e Berlim -, po rtanto, em uma conjuntura po líl i-

50 _ GOAENDER, Jacob. Mlnt rodução~. MARX, Karl. Para a cdrica da economia política: salário. preço e lucro; a rendimento e suas fontes. São Paulo: Abril Cultural. 1982. pp. VIJ -XXtJI; GORENDER MApresentaçãoM. MARX, Karl. O capital: critica da economia política. São Paulo: Ab ril CuHural, 1983. pp. VII ·LXX II ; 51 _ Cf. GORENDER, Jacob. Mlntrodução-. O nascimento do materialismo histórico . MARX & ENGElS. A ideologia alemã. São Pa ulo: Martins Fontes, 1989; 52 _ Cf. Diploma expedido em Salvador, 07 de abril de 1994 lxeroxl . 53 _ GORENDER, Jacob. Globalilação. tccnologia e relações de trabalho. ESTUDOS AVANÇADOS, IEA-USp, São Paulo, 11 (291 , janei ro-abril de 1997, pp .311-361. 54 _ GORENDER. O conceito de modo de produção e a pesquisa /Jistórica. LAPA, José R. do Amara llOrg.1 Modos de produção c realidacle brasileira . Petrópolis: Vozes, 1960. pp. 43·63. GOAENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990. 55 _ GORENDER. "Que stionamentos sobre a teo ria econômica do escravismo colonial

M. ESTUDOS ECONÔMICOS, Instituto de Pes quisas Econômicas, IPE,

São Paulo, 13 111 , jan. -abriI1983, pp . 7·39.

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90· o IJscroviHl/O Colollial

ca, cultural e ideológica rad ica lmente adversa, esc reveu o li vro A escravidão reabilitada(~'I, res­posta exaustiva à criticaria organizada em tor­no de O escravismo colonial. Em forma gera l, essa produção demarcou as diversas fases da pode­rosa operação revisionista es tabelecida em tor­no de sua tese.

Em 1980, o artigo "O conceito de modo de produção e a pesquisa histó ri ca" 1561 registrava o impacto de O escravismo colonial sobre a co­munidade intelectual. Na " Introd ução", José Roberto do Amaral Lapa ass inala que a coletâ­nea pretendia retomar debate interrompido havia "quinze anos", reunindo os textos "mais representativos" da "in terpretação da realida­de his tórica brasileira através do conceito de modo de produção". Portanto, constitu ía ten­tativa de organização da polêmica entre inter­pretações que utili zavam "conceito teó rico mar­xista axia l" em fornla, no ugeral, discord ante",

apesar de "substanciais aproximações" em al­guns casos.

Pretendia-se que se desse no "universo conceitual" do "modo de produção" e "forma­ção social", correlacionado com "suas catego­rias básicas [ ... ], relações de produção, forças produtivas, classes sociais, luta de classes, cons­ciência de classe, etc" 1571

O texto de Gorender abre o ensaio, seguido por ensaios de Antônio Barros d e Castro, Flamarion Cardoso, Werneck Sodré, Octávio lanni, Peter Eisenberg e Theo Santiago, apresen­tados em ordem alfabética.

O organizador lembra a ausência de autores essenciais para a polêmica como Caio Prado, Celso Furtado, Fernando Novais, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes e José de Souza Martins, por motivos "perfeitamente compreensíveis". (SB)

Teoria geral

Em seu texto, Gorender empreende a defesa da proposta da construção de uma teoria ge­

rai dos modos de produção singu lares; reafirma as categorias sociais como expressão da real ida­de empírica; assinala a dominância da esfera eco­nômjca, necessariamente associada à esfera ex­tra-econômica; lembra a necessidade do desen­volvimento de teoria da formação socia l, em ge­ral, e da formação social capitalista, em especia l.

Na terceira parte do texto, retoma a defesa do caráter hi storicamente novo do modo de produ­ção escravista colonial, em relação à produção escrav ista patriarcal da Antiguidade, ressa ltan­do sua dependência ao mercado externo não­escravista. Daí seu caráter colonial, "na acepção econôlllica do termo".

Fenômeno do qual não decorreria - como pretend iam as visões integracionistas, entre elas a Teoria da Dependência - a detenninaç50 e integração do modo de produção escravista co­lon ial pelos modos de prod ução dominantes

mundialmente. Dedica a parte final do texto à propos ta de um amplo processo de investiga­ção, geral e s istemático, exig ido pela caracteri­zação da gênese da produção capitalis ta no Bra­si l, não a partir do feudalismo, mas do escra­vismo colonial, sobretudo após a Abolição, com particularidades no que se refere ao desenvol­vimento de quatro grandes regiões: São Paulo, Rio de Janei ro, Sul e Nordeste.

Avança igualmente a defesa da não d omi­nância imed iata da produção capitalista "no fi­nal e o escravismo e após a Abolição", devido à gênese e à expansão, de "formas camponesas pré-capita li s ta co mbin adas à es trutura da plantagem e do latifúndio pecuário".

Essa interpretação seria apresentada no en­saio "A gênese e desenvolvimento do capitalis­mo no campo brasileiro", transcrição de confe­rência à 31 Reunião Anual da SBPe, em 13 de ju lho de 1979, em Fortaleza, que conheceu di­versas edições. 1"1

56 - GORENDER. o conceito de modo de produção e a pesquisa hist6rica. Ob .cit. GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. Ob.cit. 57 - LAPA. Int rodução ao redimensionamento do debate. LAPA. Modos de produção 1 ... 1. Ob.cit. p. 15. 58 - Id.ib. pp. 10 e 3.

59 - Cf. GORENDER. Gênese e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987; ~A gênese e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro H STÉDILE, João Pedro IOrg .l. NA questão agrária hojeH

• Porto Alegre: EdUFRGS, 1994. pp. 15-44 .

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• Ui.ftÚia & I.u.ta dr ÇJanes • 91

Burguesia conservadora

D a transição da produção escravista colo­nial. portanto mercantil, apoiada em for­

mas alodiais da propriedade da terra, à produ­ção capitalista, Gorender deduz o caráter con­servador da burguesia nacional, que jamais en­con trou "obstáculo para adquirir a proprieda­de de terra e teve na especulação fundiária uma das suas fontes de acumulação original do ca­pital". Lembra q ue ela não aprofundou sua "contradição com os latifundiários", incorpo­rando, ao contrário, "o latifúndio à estrutu.ra do capitalismo no Brasil, onerando", assim, seu "desenvolvimento ( ... 1 com O peso exorbitante do preço e da renda da terra [ .. .]". (60)

Quanto à dinâmica social e à trans ição interrnodal, propõe que são "as variações nas forças produtivas (na medida em que progridem ou, mais raramente, na medida em que retroce­dem) que estabelecem uma não-correspondên­cia com as relações de produção ex istente e con­duzem, no final de contas, à sua substituição por

outras relações de produção e ao surgimento de um novo modo de produção." (61 )

Proposta correta do ponto de vista da episte­mologia marxista, na medida em que se com­preenda o impulso à variação ascendente das relações sociais de produção, sempre no con­texto de forças produtivas histori camente da­das, como determinação da solução da contra­dição entre produtores diretos e controladores, detentores ou proprietários dos meios de pro­dução. Como em O escravismo co/.onia/, nessa apresentação geral e na proposta de investiga­ção sistemática sobre a formação socia l bras i­leira não há referência s is temáti ca e explícil·a à luta de classes como determinação principal do devir social. A abordagem mais s istem6tica des­sa ques tão pelo autor daria-se em resposta iI acusação de ignorar essa instância do devir hi s­tórico, lançada por autores em gera l defenso­res da indeterminação objetiva da aç50 subjCli ­va das classes sociais.

Refutação sistemática

Salgo engano, no artigo "A economía políti­ca, o capitalismo e a escravidão", Antônio

Barros de Castro apresentou a primeira tentati­va de refutação estrutural da proposta do modo de produção escravista co lonial, ao retomar a defesa da singularidade do capita lismo como modo de produção capaz de ser apreendido sob a forma de economia política, pois apenas nele a "lógica econômica" determinaria o socia l. ((,2)

Apoiada em apresentação superficia l do feu­dalismo e do escravismo clássico, a tese de Barros de Castro choca-se com as determinações econô­micas do escravismo colonial, anal isadas com maior rigor, paradoxo argumentativo evacuado com a proposta de que "o moderno escravismo" leria "importantes traços em comum com O capi­talismo" e "o escravo" constituiria "antecipaç50

do moderno proletário". Essa visão rea lizava ver­dadeiro retrocesso analítico, ao retomar o enfoque

60 _ GORENDER. o conceito de modo de produção [ ... ). Ob.c it. p. 64. 61 - Id.ib. p. 51.

da Escola Sociológica Pau lista de um "capitalismo escravista" ou de um "escravismo capit"alista". ((~1)

Portanto, para o autor, o escrav izador es ta­ria "submetido a uma engrenagem econômicJ", enquanto o trabalhad or escravizado n50 teri a o "caráter social efetivamente moldad o pelo regime de produção". Ou seja, segund o o ana­lista, as condições servi s de ex istência n50 ser i­am condicionadas pelas condições de produ­ção. O que ensejaria que pouco importasse ao cativo ser deslocado da coz inha da casa-gran­de para o cito açucareiro '

Mero "cativo", o traba lhado r escravizado se­ria ajustado, "bem ou mal", "ao aparelho de pro­duç50 ( ... 1 por uma combinação mais ou menos eficaz de violência, agrados, persuasão, ele" Em contexto de "classes explicitamente antagôni ­cas", sobretudo "na passagem do século XV III para o XIX", quando a produção assumiu ori-

62 _ CASTRO, Antônio Barros de. A Economia Política, o Capitalismo fI a escravidão. LAPA . . Modos de produçáo 1 ... /. Ob.cit. pp. 67-107. 63 - Id.ib. p. 91. ;

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92· o Escravismo C% fl ial

entação merca nt il, as sociedades escravistas avançariam a partir do confronto social explí- I

cito e da consciência dos senhores d o das g randes massas servis. (fi4)

perigo

o escravo que negocia

Essa lei tu ra dua lista propunha não assentar a dev ir histórico da escravidão na oposição

mas sobretudo na acomodação entre escraviza­dores e escravizados, já que a orientação social dependeria "da intensidade, direção e êx ito da resis tên cia e/ou luta aberta dos escravos, bem como das respos tas encontradas pelos proprie­tários C homens livres eln gemi, para assimilar,

acomodar e abafar a presença hostil e o poten­cia l de rebeldia" serv il. «(")

Os atos de "de rebe ld ia declarada e aberta" SerialTI "como O vapor que escapa ruidosamen­

te da maquina", " índi ce de pressão" no interi­or da sociedade escrav is ta. Conscientes desse fato, os senhores adaptariam-se "social, políti­Gl c militnrnlcntc à conv ivêncin" con1 os cat i­vos, "busczmdo meios e med idas para atenuar a combativ idade, ou desviar" sua "agressiv i­

dade", ensejando que "o regime social" tenha cedido aos cativos "transformando-se sob O im­pacto de sua presença." (fi (,)

O autor concl ui propondo investigações so­bre fenômenos que não ter iam despertado "grande atenção" na hi stor iografia brasi leira, como os registrados pela proposta do "Tratado

de Paz", dos cati vos do "Engenho Santana de Ilhéus", em 1789 (fi7), a concessão s istemática de glebas servis no Brasil (fi8), o aproveitamento das "oportunidades mercantis" pelos trabalhadores escrav izados, etc. , que consti tuiriam expressões das lutas servis para "construir um espaço pró­prio" na escrav idão. Segundo ele, a importân­cia desses atos encontrariam-se no fato de que não expressariam "apenas o esforço dos escra­vos no sentido de negar as condições que os opri­mem", mas sobretudo o processo de "acomoda­ç50" à escravidão que se mobilizaria pela con­qu ista por pa rte dos ca ti vos do "reconhecimen­to da sua existência e lugar na sociedade." I&!)

Desde esses anos, até hoje, com ma ior ou me-­nor sucesso, centenas de his to riadores esforça­ram-se pa ra seguir as recomendações de Bar­ros de Castro sobre a necessidade de assentar a interpre tação do devir da sociedade escravista na acomodação ao s istema escravis ta e não nos ritmos e determinações da produção e da resis­tência servil. Em 1989, Eduardo Silva e João José. Reis tenta riam uma s istematização dessa visão em Negociações e conflitos: a resis tência negra no Bras il escravista. (70)

A brecha camponesa

Em J983, Jacob Corender apresentou respos ta sistcmáticZl aos principJis "Questiona­

mentos sobre a teoria cconôm.iGl do cscrav islllo

colonial", em artigo publi cado na Revista Estlldos Econômicos, do IPEA da USP

Mais uma vez, ab ria o doss icr dedicadu in ­tei ramente à esc rav idão, que con to u com a p rese n ça de Flam a ri on Cardoso, Pe te r

64 - Id.ib .. p. 94. 65 - Id.ib. p. 105. 66 - Id.ib. p. 98.

Eisenberg, Manu el Corre ia d e Andrade, en­tre outros es pec iali s ta do te m a. (71)

Esse tex to ensejaria debate his to riográfico, articulado em torno da "brecha camponesa" que, dev ido ao seu caráter pa radjgrnático, será ana lisado em fo rma m ais s is tem ática.

Na parte três do ensaio - "Escravismo colo­nial e economia camponesa" - , Corender abor-

67 - Cf. SCHWARTZ, Stuart 8. Resistence and accomodation in eighteenth-century 8r81l1: lhe s/aves' view af sfarevy. The Hispanica American Historica} Review, Duke Univers ity Press, 57(1); fev. 1977; 68 - Cf. CARDOSO, Ciro F. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis : Vozes, 1979. ca po 4. 69 - Id.ib. p.IOO 70 - Cf. SI LVA, Eduardo & REIS, João. Negoc;ações e conflitos; 8 resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das l etras , 1989. 71 - GOAENDER. Questionamentos I ... J. pp. 7·39.

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Ri ... tiiria & Luta de Classe~' . 93

da esse fenômeno na escravidão, apresentado em forma ampla por Flamarion, em 1979, em capítulo do livro Agricultura, escravidão e capita­lismo. (72)

Em "A brecha camponesa no sistema escra­vis ta", Flamarion retornara a proposta de Tadeusz Lepkowski da "economia independen­te de subsistência" dos quilombos agrícolas e dos "pequenos lotes de terra concedidos em usufru­to, nas fa7.endas, aos escravos não-domésticos", corno "atividades que, nas colônias escravistas, escapavam ao sistema de plantation".

Para o autor, no caso do Brasil, aos qui lom­bolas e cativos devia-se agregar os "lavradores arrendatários das 'fazendas obrigadas'" dos en-

genhos e os "moradores" e os "parceiros"- No século XVII, no caso das Antilhas, o mesmo de­via-se fazer com os "indentured servants" e "engagés", que obtinham nesgas de terras ao ter­minarem os contratos, mesmo que a expansão da plantagem corroesse essa economia campo­nesa. No ensaio, apenas se refere à agricultura quilombola, centrando a discussão no fenôme­no do "protocampesinato esc ravo", conceito proposto por Sidney Mintz, de quem se dissocia no que se refere à di sso lução das categorias "escravo" e "modo de produção escravista", já que defende que o cativo poderia ser escravo e campones, ao viver, em forma alternada, as duas "relações de produção".

Um só modelo

I nicialmente, Flamarion propõe sua visão ge­ral do fenômeno: o domínio das re lações

escravistas sobre as "atividades camponesas" servis; o objetivo escravista de "minirnizar o custo de manutenção e reprodução da força de trabalho" com a concessão; o recuo da agricul­tura autônoma dos cativos nas "épocas de co­lheita e elaboração dos produtos"; a importân­cia "econômica e psicologicamente" para o "es­cravo"; a compreensão do escravizador do ca­rá ter "revogável" da parce la, "destinada a li­gar" o cativo "à fazenda e evitar a fuga".

A pós reconhecer a existência" de um SÓ modelo de sistema escravista na América" e propor a abor­dagem do fenômeno a partir do "conjunto dos casos observados", mesmo reconhecendo que ele " não foi pesquisado igualmente a fundo em to­das as regiões escravistas", propõe que "a atri­buição aos escravos de parcelas de terra e de tem­po para cultivá-las" constituísse" característica universal do escravismo americano" e queo "aces­so dos escravos aos meios de produção e ao tem­po" tenha tendjdo "a transformar-se em um d i­rei to de fato e, em certos casos, fixados pela lei".(7J)

Essa última proposta apoiava-se substanci­al m ente na concepção do caráter contratual do Hescrav ismo" onde, u como em qualquer regi-

me econômico-social, se estabelece entre a classe dominante e a classe explorada um acordo contratual - lega l ou consuetudinário - que garante para a classe dominada, pe lo menos de fato, certos direitos cuja infração traz consigo O

perigo de alguma forma de rebeLião"- (74)

As decorrências da proposta de "brecha cam­ponesa" na escravidão americana eram claras. Propunha-se a existência de relações de produ­ção camponesas sistêmicas, isto é, nccessórias

e universais, no inter ior do escrav ismo coloni­al, determinando, corroendo e dissolvendo esse modo de produção. A apresentação da documen­tação probatória das proposições avançadas ini­cia-se pelo reconhecimento de que, no Bras il, "a pouca atenção prestada I ... ! pelos historiadores à 'brecha camponesa' pareceria indicar certo ce­ticismo relativo à sua importância" f")

Entretanto, apesa r dessa constatação objel·i­va, o autor não retém a poss ibilidade de a es­cassa Uatcnção" nascer de escassa importância do fenômeno ou de suas decorrências diretas e indiretas no escravismo bras ileiro. Ao contrá­rio, antepõe-se, s implesmente, crença oti mista ao "ceticismo" gera l: "Acredit·amos que, ao de­senvolver-se, o estudo [ ... 1 reve lará o grande peso do que chamamos aqui a 'brecha campo-

7Z - CARDOSO, Ciro F: -A brecha camponesa no sistema escravista~. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis : Vales, 1979. pp. 133·54 .72 -

73 -Id.ib. p. 138. 74 - Id.ib. p. 137. 75 - Id.ib. p.13B.

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I L--.J

94. o ESCTUI'Ü'1II0 Colollial

nesa' 1 ... 1." (16) Confiança desmentida pelos es- I últimas décadas que reafirmaram o caráter re­tudos hi stori ográficos especiali zados das duas sidual e não estrutural do fenômeno no Brasi l.

Documentação sumária

A sumária documentação probatória apre­sentada sobre o Bras il reduz-se a pouco

mais do que referências a André João An toni l, Jorge Benci, Luís dos Santos Vilhena e a es tu ­do de Stuart Schwartz, o mesmo ocorrendo para o sul dos USA, onde se afi rma que "estava bem assentado" o "hábito de conceder aos escravos lotes de terra em usufruto e o tempo pa ra trabalhá-los" e que existiriam "algu ns indícios de que a posse sobre a parcela e a ga rantia do trabalho li vre eram direitos amplamente reco­nhecidos 1 ... 1"

A abordagem do fenômeno nas Cuianas fran­cesa e inglesa e nilS Antilhas, feita il partir de informnção relativamente mais rica, ass inala LI

existência de dois lotes se rvi s, um perto da ca­bana, o ou tro em geral em terreno montanho­so, mais afastado. Regis tra-se igualmente o movimento dos cativos, em algumas regiões, quando dil abolição da escravatura, pela com­pra-aluguei dos lotes servi s. Referências espar­sas são apresentadas para a Venezuela, Cuba, Porto Rico, etc

A partir da comprovação da existência qua n­to muito lacuna r e des igual desse fenômeno na América escravista, conclui-se afirmando a uni-

versalidade do fenômeno e, paradoxalmente, desa utori zando re lativame nte seu caráter s istêmico: "1 ... 1 em todas as colônias o u regiões escravista - embora em proporção variável -, muitos dos escravos dispunham de lotes em usufruto e do tempo para cultivá-los [ .. .]".(77)

Nas pág inas finais do ensaio, Flamarion ap resenta o timi s ta ava li ação d e corte impressionista da produtividade da produção da agricultura autônoma servil, sobre a qual não se tenta es timativa con cre ta . Em "Saint­Domingue" IHaiti], "na horta próxima" à "ca­bana, plantavam árvo res frutiferas e legumes, além de criar galinhas e ocasionalmente tam­bém perus, po rcos e cabras. Nos te rren os co­muns, plantavam bananas, milho, raizes (man­dioca, batata-doce, inhame, etc )."

A avaliação positiva é estendida também ao seu caráte r e rentabilidade mercantil Propõe­se que na Jamaica "os escravos também culti ­vam, por sua conta, café, gengibre e alguns p ro­dutos meno res de ex portação" que, na Venezuela, além de produtos de subsis tência, os ca tivos "preferi amN plantar "cacau", consti­tuindo verd ad e iras "pequenas fa zendas -haciendillas - dentro da fazenda maio r" .(18)

Pequenos banqueiros

N a "Gu iana Francesa", os cativos "monopo­li zavam quase totalmente o mercado inter­

no de cassave (preparação da mandioca) e aves, tendo em seu poder grande parte da moeda que circulava na colônia". Na Jamaica, os cativos te­riam chegado a "possuir 20'Yo da moeda em cir­cu lação, e a legar, em seus testamentos infor­mais, até duzentas libras esterlinas!". (19) Após reafirmar que "em todas as colônias a inserção dos escravos nos circuitos mercantis era seme-

76 - Id.ib. p. 139. 77 - Id.ib. p. 145. Destacamos. 78 -Id.ib. p. 146. 79 - Id.ib. p. 148. 80 - Id.ib. p. 14 7.

Ihante", propõe-se como "finalidade primordi­al" dessa produção "obter suplementos de ali­mentação e vestimenta de melhor qualidade (in­duindo jóias [sicl e sapatos), tabaco e bebidas". (111)

Uma rea lidade que se estende ao Brasil, ao acei ta r-se sem retenção a proposta d e Stuart Schwartz de que os trabalhadores escravizados do engenho de Santana "eram capazes de pro­duzir um excedente comerciali záve l" e "parti­cipar diretamente na economia de mercado [sicl

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Ui .f(Úria & L/llt! de C'a .HU - 95 I

e acumular capital [s icr'! Produção serv il que eventualmente negaria a proposta histori o-g rá­fica da inexistência de um verdadeiro "merca­do interno" colonial apontando em direção do "desenvolvimento industrial" !('!)

Na "conclusão", propõe-se retenção nas con­clusões sobre o fenômeno totalmente ausente no

corpo do texto: em geral, as parcelas" não chega­vam a garantir a total idade" da subsistência ser­vi l; muitas vezes prevalecia lia forma ex trema da lógica" plantacionista; "nem todos os cativos se bcncficiaran1 com O sistema"; nenl todos os cati­

vos tinham energia ou d isposição para empregar SlIas pOLlG1S horas de repouso nessa ati vidade.

Crítica metodológica

I nicialmente, em "Questionamentos sobre a teoria econ ômica do escra vismo co lonia l",

Jacob Gorender propõe que Flamarion aborde aquela questão "sem recorrer às catego rias de formação social e de modo de produção"_ Ou seja, que assimile modos de produções diversos, do­minantes e dominados, coex is tcntcs em uma mesma formação socia l. Lembra que nas for­mações sociais escravistas da Antiguidade e dos Tem pos Modernos, ao lado do modo de pro­dução escravista dom.inante, subs ist iram "va­riados tipos de atividade camponesa", "depen­den tes o u não"_

Assina la que definira em O escravismo colo­nial a ex is tên cia de "modo de produção dos peque­nos cllltivadores não-escravistas", "secundário na

formação socia l escravista", "no qua l se agru­pavam os s itiantes minifundiários, os posse i­ros e os agregados ou morado res". Esses traba­lhadores ficariam excluídos "de todo" na "con­side ração da chamada ' brecha camponesa"'. 112

Quanto aos " lavrado res, p roprietários ou a r­renda tários, que se incumbiam de plantar cana­de-açúcar pa ra fornecê-la a engenhos alheiros" "eram escravi stas, e até grand es escrav istas",

"organicamente integrados no modo de produ­ção escravis ta co loniaJ" .

Q uanto aos quilombos, ass inala que se s itua­vam "fora" do âmbito do escrav ismo colonial, apesar deeventualmente manterem "vínculos de

intercâmbio" com ele. Não introduzindo "qual­quer al teração no modo de produção escravista colonial em si mesmo", os quilombos não eram, conseqüen temente, "a rgumento em fa vo r da su­posta 'brecha camponesa'." (1l1) Pa rI-anta, "as fo r­

mas camponesas n50" representl.1ril.1 1n "brecha alguma no modo de proelução escravista domi ­nante, sejZl pZltriarcZl I corno coJoniZl I, 1I11U/ vez qlle

YlI70 fnziml/ /7I1r /c de SI/a estm tl/rn "(l'l)

Ao contriÍrio, "o cul ti vo autônomo el c lot·es de terra pel os esc ravos dentro do âmb ito da plantagem" constituía fenômeno da "es trutura do modo de produ ção esc ra vista co lonia l" su­jeito à necessári a nn6 lise. Sobre essZl rcnl idade, Corender afirma : "Ca rdoso resume as refe rên­cias da bibliog rafia secund6ria sobre o assunto e conclui que sc tral"Ou de práti ca gencml izZldZl nZlS d iversas regiões do cscravismo amcricano",

"com d iferença de amplitude para cada região". Pa ra Co rendcr, esse "cu Il ivo de gêneros", "ati ­

vidades de co letoras", "criação de pequenos ~111i ­mais", etc, para au to-consumo" ou, eventual­

mcntc, para a venda, tcri ZIITI sido reduzidZ\s nos USA, "pois as plantagens mantinham culti vos própri os a fim dc ali mcntzlI·" os cativos, c "móJ i­

ar desenvo lv imento" no C"ribe, onde se reg is­traria "apreci6vel parti cipação cOll1 cr}:i al dos próprios escravos com a venda ele seus prod u­tos e um g rau de estabilidade no usufruto dos lotes, que pe rmiti a mesmo IegiÍ-los".

Deb ate ant igo

Gorende r lembra que ao con trá ri o do pro­posto por Flamarion, vários "histo ri ado-

81 - Id.ib. p. 148. 81-83-l d.ib. p. 19 . 84 - Id.ib. p. 18.

res e sociólogos abordaralll, conquanto, elll cer­

tos casos, apenas de passagem" " questão. As-

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f

--

o E SC fllVÜlt/O Colonial

sinala que tratara igualmente em O escravismo colonial o fenômeno, a partir de uma dezena de fontes pri márias e quase o mesmo número de estudiosos. Em 1978, naq uela obra, refutara am­plam ente a tendência a universali zar e a supe­restimar a produtividade das roças servis e, so­bre tud o, a proposta de Passos Gu imarães, dos anos '1960, em QlIatro séclIlos de latiflíndio, do tra­balhador escrav izado se r em parte esc ravo e em parte servo-camponês, devido ao contro le de glebas servis. Aquele autor defendera também a extensão da concessão de terras ao cati vo. (8.")

Gorender resenha a seguir a visão apresenta­da em O escravisrno colonial sobre a questão. A prática teria sido transportada pelos portugue­ses da ilha de São Tomé, nas costas da África, no século XV, para o Brasil, sendo aplicado em for­ma "extremamente irregular na área da produ­ção açucareira"- Engenhos não concediam lotes e outros avançavam no tempo livre dos cati vos durante a safra, "quando as jornadas de traba­lho podiam prolongar-se até dezoito horas e os dias de desGlJlso eram muito espaçados". (86)

Em 1996, João José Reis confirmaria a propos­ta de Gorender. Para O conhecid o his toriador baiano, "no Brasil o sistema [brasileiro] aparente­mente não foi assim tão difundido [ .. -l". Nos engenhos açucareiros, após o grande "boom" do produto, escravis tas teriam passado a alimen­tar os trabalhadores. Reis lembra: "Um estu­do recente de B. Barickman conclui que, en­tre 1780 e 1860, nos engenhos a alimentação esc ra va fi cava principalmente por conta do senhor." (87)

A prática da plantação de gêneros alimentí­cios ou, até mesmo, comerciáveis, em peque­nas parcelas, nos " domingos e dias santos de guarda", teria sido maior nas plantagens de al­godão e café, possivelmente devido a menores ex igências do "processo produtivo" nessas ex­plorações, em relação ao açúcar. Sobretudo na cafeicultora, lembra estar documentado "a ali­mentação" servil, "no fundamental, pelas plan­tações e criações dos próprios fazendeiros", contribuindo a exploração dominical de lotes com "recursos acessórios" aOs cativos.

Direito ao descanso

C obre a origem última da prática, COl'ender Uaceita que pode ter s ido iniciativa dos cati ­vos, mas ass inala que sua introd ução constituiu um retrocesso em relação à conqu ista da "dis­pensa do trabalho nos dias feri ados, durante o escravismo antigo", "favorilvcl (l O senhor, uma vez que obrigava o escravo j] trnbzt1har mesmo no d ia consagrado ao descanso a fim de suprir uma parte do produto necessá ri o à auto-sub­sistência", elevando o "grau de exploração do traba lho escravo".(")

Fenômeno que determinava o entrosamento orgânico dessa prática "na estrutura do modo de prod ução escravis ta colonial, não se tratan­do de dois s istemas, porém de um ún ico". Uma integração semelhan te a ex is tente no feudali s-

85 - GORENOER. o escravismo colonial. 4u ed. São Paulo : Ática, 1985. p. 263.

mo entre o trabalho para o senhor, na reserva senhorial, e do servo para si, na g leba que de­tinha. "A concessão de um lote ao escravo não passou de uma forma variante, i nessencial e con­dicional, do segmento de economia natural, po­dendo inexistir ou ocupando apenas uma par­te desse segmento." (89)

Mesmo acei tando que os cativos esforçavam­se para ampliar o "espaço de autonomia que o usufruto do pequ eno lote lhes co ncedi a", Gorender ressa lva o grau elevado de exploração do cativo na produção de açúcar, na América escravista, com jornadas infernais de trabalho que ensejavam uma "extrema estreiteza e a pre­cariedade do culti vo autônomo do escravo". (?J)

Lembra que o direito à formação de pecúl io

86 - Id. ~Que s t ioname ntos ] .. . ] .~. p. 20. REIS. João José. -Escravos e coitei ros no quilombo do Oitizeiro: Bahia, 1806-, In REI S & GOMES. 10rgl . Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das l etras, 1996 . p. 336 . 87 - REIS, João José. Escravos e coiteiros no quilombo do Oitizeiro: Bahia, 1806. In REI S & GOMES. ]Org l. liberdade por um tio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1996. p.336 . aa -Id.ib. p. 11. a9 - Id.ib. p. 24. 90 -Id.ib. 23.

I I

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lIistária & Lula de Cla Hes . 97

pelo trabalhador escravizado, comum na Anti­guidade européia, fora tardio e limitado no escravismo brasileiro. Rejeitando as visões gen­tis da escravidão, assinala que no escravismo

ameri cano "dev ia preva lece r, em proporção esmagadora, a massa de escravos agríco las con­denada à impiedosa ex ploração e sem outra perspectiva que não a morte na escravidão" . (9I)

Ouinta edição

Como assinalado, em 1985, nove anos após ter concluído a redação de sua tese, Jacob

Gorender revisou e ampl iou, "em cerca de dez por cento", o texto original quando da quarta edição de O escravismo colonial, que se tornaria sua segunda e definitiva versão. Em depoimen­to a José Tadeu Arantes, que o entrevistara, em 1978, para o semanário Movimento, após o lan­çamento de O escravismo colonial, assinalou que a revisão reafirmava a Uestruturau c as "teses" essenciais da obra através de "fundamentação mais profunda, mais fl ex íve l e mais ricas de várias" de suas "teses". (92)

No "Prefácio à quarta edição", enfatiza igual­mente que as "modificações introduzidas" man­tinham e reforçavam "em conjunto todas e cada uma das teses da primeira edição". Os temas ampliados foram "trabalho escravo e alto cus­to de vigilância", "plantagem escravis ta e pro­g resso técni co", "características d o tráfi co afri cano" "escravismo patriarcal c antigo", "a lei da po pulação escrava", "a a lforri a", o "tratamen­to dos escravos", "lavradores e evolução da ren­da da te rra", "a escravidão em Minas Gerais", "escravidão e industrialização", "os pequenos escravistas", a "escravidão no setor cafeeiro". (93 )

Na entrevista, Gorender refe riu -se à influ-

ência, "nos últimos vi ntcs anos", "das co rren­tes his toriográfi cas estad unidenses no Brasil", com destaq ue para a inte rpretação do neo­pratiarca lismo representada pelo "ex-marxis­ta" Eugene Genovese que, inspirando-se em "Gi lbe rto Freyre", apresentava "os escra vos amcri czmos como a cl asse trabalhadorn melho r tratada do mund o, do ponto de vista mate ri al, em s ua é poca". Sobretudo e m Sobrados c 11Il1cmnbos : decadência do pntriarcwdo rur,1I e desenvolvimento urbano, publicado têm ]936, Frey re empreend e verdade i ra apo log ia das condições de v id a dos traba lhadores escr;w i­zados do No rdes te, tran sfo rmando a Aboli ção em verd adeiro drama social para os traba lha­dores escrav izad os. (1)4 )

Nesse cenário hi stori og ráfico nac i o n~ l onde dominava a "revivescêncin da in fluência de Gil ­berto Freyre", sobretudo a tr~vés d ~ his to ri o­g rafia estadunidense, propunha que n50 "seria de estranhar que chegássemos ao cen tenó ri o da Abolição" "com uma rmb ilit~ ção também do escravismo brasileiro". Tese que serin desenvol­vida, em forma sistemática, em 1990, em A escra­vidão reabilitada, que teve influência mmcnnte na inte rvenção de Go rend er na d iscuss ão do escravismo, como veremos opo rtunamente.

A brecha camponesa

Em 1987, Escravo ou camponês? O proto­ca mpesinato negro nas Américas, C iro

Flamarion Cardoso retomou O debate sobre a proposta de brecha camponesa, em resposta ex­tremamente ácida à refu tação de Gorender, de quatro anos antes, em "Questionamentos sobre a teo ria econõmica do escrav ismo colonial".{"')

91 - Id.ib. p. 224, 26 .

No li vro, descreveu a crítica como eivélda de "erros" hi s to ri ográ fi co e produto de "vi são monolítica" e "c1assificatóri a" da história, ";) miJ­

neira dos velhos manuais do marx ismo". Como assinalado, Gorender traduzira manua is d ~ Aca­demia de Ciência da URSS nos anos 1960. rX,)

Escrito por um dos primeiros e mais bril han-

92 _ AR ANTES, José Tadeu. ~O esc ravismo colonial revisado· [Entrevista a Jacob Go rende r.llE1A, dezembro de 1985. p. 22 -3. 93 _ GO RENDER. Jacob. ·Prefácio à quarta edição·. O escravismo colonial. 5a ed. ver. e ampliada. Ob .cit. p. IX - X. 94 _ FREYRE, Gilberto . Sobrados e mucambos: decadência do patriarchado rural no Brasil. São Paulo: Companhia Ed ito ra Nacional, 1936. 405 pp. 95 _ GORENDER, Jacob. -Questionamento [ ... 1: · : 96 _ Cf. CARDOSO, C. F. Escravo ou camponês? Ob.cil. p. 111.; 97 - ld .ib. pp. 97, 109. ; 98 - Id.ib. p. 63 ; 99 - Id.ib., p. 64.; 100 - Id.i b. p. 65

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9X . o E.\·crll~i.HIIO C%"ial

tes defensores da categoria escravislllo colonial, a resposta de Flamarion obteve grande repercus­são acadêmica. O breve ensaio Escravo 0 11 calll ­pOllês?d iv ide-seem três partes. Na primeira, de­senvolve-se proposta de apresentação, explica­ção e correção de sua leitura sobre o escravismo americano. Nas duas seguintes, empreende-se defesa geral da propos ta da brecha camponesa como fenômeno "estrutu ral", de orientação mer­cantil, no Brasil e na América escrav is tas. (97)

Para tal, apresentam-se incidências da "bre­d la camponesa" no sul dos USA, no Caribe bri­tânico, francês e espanhol, apoiado sobretudo enl relato de viajantes, tratadistas co loniais c tra­balhos hi storiográficos isolados, o que faci lita a descrição de paisagens otimistas sobre aquele fe­nômeno e as condiçôes de existência servil.

No relativo à Carolina do Norte, o autor es­creve: "A lém do que produzissem em suas par­celas, os eSCravos recebiam abundantes rações

de a limentos, provenientes da prod ução da pró­pria plantation pertencentes a Pettigrez: peixe, ca rne, arroz, milho, farinha de trigo, eventual -

mente frutas ." 98 Sobre a Virg inia: "Muitos [ ... ] ev itavam tal traba lho extra e viviam só das ra­ções. Estas eram tão abundantes que os negros negociavam com partes delas, comprando aos domingos, a brancos pobres da redondeza, uis­que que consumiam às escondidas [ .. .]."(99)

A situação no sul algodoeiro seria a mesma: 'l .. ] também lá os negros e ram bem alimenta­dos, além de possuírem parcelas, galinhas e chi­queiros, cujas produções vendiam (comprando, entre outras coisas, farinha de trigo), além de venderam o produto da caça." (100)

No mesmo sentido, supervaloriza-se a pro­dutividade e a o rientação mercantil da "econo­mia autônoma" dos trabalhadores escravizados, sem apoio de d ocumentação conclus iva: "O produzido nas parcelas (às vezes incluindo al­godão), criando animais e em atividade extra­tivis ta, era, normalmente, vend ido: com O di­nheiro obtido, os escravos compravam roupas, fumo tecidos e outros objetivos (jó ias [s ic], brin­quedos para as cri anças, anzóis, utens ílios de cozinha, etc.)." (101)

Lotes minúsculos

Cenário que contradita com o reconhecimen­to de que os lotes eventua lmente concedi­

dos aos cativos eram 1l1inúsculos - "não eram g randes" -, possuindo, habitualmente, no Caribe francês dois ares per capita. Ou seja, qua­renta metros quadrados l No Car ibe britânico, o te rreninho podia ser de 25 a 30 pés quadra­dos: uns oitenta metros quadradosl (102)

A limitZlda ex tensão de tcrri:.1, os rú sti cos ins­trumentos de trabalho e o pouco tempo livre que gOZi:lVam os cativos delimitavam materia lmen­te a produção possível dessas g lebas. O que recomenda retenção no que se refere a genera­li zações de casos exempl ares de cativos, para que não di storçam a descri ção essencial do fe­nômeno em discussão. En tretanto, o auto r não opta pela retenção, em sua inte rpretação.

Em Escravo 011 call/ponês?, citam-se traba lha­dores escrav izados que lega ram "a té duzentas

101 - ld.ib. p. 66. 102 - Id.ib. p. 69. 103 - Id .i b. p. 75,81. 104 - Id.ib. p. 84.

libras esterlinas!" e reafirma-se que "graças às suas atividades comerciais, [ .. . ] cI1egaram a pos­suir 20% da moeda em circulação". Afirma-se que" os negros exerciam, em Saint-Domingue, um grau cons iderável de poder econômico". (103)

A sugestão de a ltíssima produtividade des­sas parcelas é rei terada em afirmações como: "Num caso, um hecta re e meio de te rra, culti­vado por três homens e três mulhe res, rendia, em média, vi nte francos por di a! O ganh o mé­d ia anual que se podia esperar de um lo te indi­viduai era estimado va riavelmente entre 200 e 800 fra ncos." (lU')

A apresentação otimista da p rod ução possível dos micro-lotes, nas escassas ho ras de trabalho pennitidas, com meios de traba lho precár ios é viabilizada comumente por descrições impressio­nistas produzidas com a aglutinação de ativida­des de diversas micro-glebas, através do uso de

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-II Ú/âr;a & I.II/a d e C/il HU - 99

vírgula substituta da preposição aditiva "e", ali o nde devia de rigor usar-se a conjunção alternati­va "ou". "Os cativos plantavam em seus lotes mandioca, bananas, batatas, inhames, legumes d iversos, árvores frutiferas. Criavam galinha, co­elhos, porcos, ovelhas, às vezes mesmo vacas e cavalos I .. ,), Também praticavam O artesanato, cortavam madeira e fabricavam carvão, coletan­do forragem para vender, pescavam, etc" (I "')

Paradoxalmente, após as longas apresenta­ções otimistas, lembra-se que "Tomich chama a atenção, sensatamente, para o peri go do exage­ro: eram poucos os escravos realmente próspe­ros; havia muitos vivendo na penúria mais ex­trenla; existiam, ainda, aqueles que recusavam a continuar trabalhando nas horas e di as livres, ou não agüentando fa zê- Io, pre fe rindo receber rações dos senhores." (1IJ6)

Sem avançar

A réplica de Flamarion limita-se a reafir­mação e radicalização do proposto, sem

re futação dos questionamentos metodológicos a presentados por Gorender. Não há também ampliação sistemática do m a teria l empíri co apresen tado. Boa parte da documentação na q ual se apoiara fora já utilizada e ci tada po r Jacob Gorender em Escravismo colonial.

No relativo ao Brasil, os poucos casos reg is­trados de concessão de nesgas de terras refe­rem-se sobretudo à economi a açucarcira e à p ropriedades rurais de ordens reli giosas.

Mais comumente, eles reafi rOlam o caráte r aleató rio e não sistêmico da prática. Em 1700, Jo rge Benci registra que "alguns senhores" da­va m "u m dia" aos cativos para produzirem mantimentos. Em 1711, Antoni l afirmava tam­b é m que" alguns senhores" cos tumavam con­ceder "um dia em cada semana pa ra plantarem para s i". No final do sécu lo 18, Vi lhena reafir­ma o caráter não orgânico da prática e, em me­ados do século seguinte, em Vassou ras, fa zen­de iros "recomendavam " a su a ad oção como fo rma de diminuir a res istência servil. (107)

No relativo ao Bras il, não se empreende a super-es timação da produtividade dessas pa r-

ce las rea li zada pa ra os Es tad os Unidos e o Caribe . Po rém, co mo ass inalad o, ace ita-se acriticamente a pro pos ta de Schwartz de que os cativos do engenho de Santana "eram capa­zes de produzir um excedente comercializável" e "participar diretamente na economica de mer­cado Isicl e acumu la r capital Is icl'"

Proposta que não compreende a economia servil como miserável poupança moncl"á ri a,

capaz, no melhor dos casos, de, após décadas, vi abili zar a alforr ia de um produtor enve lheci­do, como registra ad nall sean a documentação, mas sugere, ao contrári o, uma dinâmica eco­nomia que ensejaria verd adeiro "mercado in­

terno" e apontaria, quem sabe, em direç50 do "desenvolvimento industri a l", através da p ro­dução de "capital", como já ass in <:l lado! (JIlK)

Em alguns casos, ao contrári o do de fendi ­do/ a documentação aprcscntLld <J ilponta pLlra íJ prática extrao rdiná ri a daquele hábi to . Como é O caso do es tudo da escrav id50 em Goi6s, em que Eurípides Funes encontrou registro docu­mentai de roças de cativos em menos de dez por cento das propriedades regis tradas ' O u seja: mais de noventa po r cento poderiam n50 co­nhecer esse fenõmeno. ( I ~J)

Generalização do singular

Dortanto, baseado em documentação Incunar ... - que não raro in firma o proposto, sem di s­cuti r as refutações metodológ icas apresentadas,

105 - Id .lb. p. 83 ldestacamos l. 106 - Id.ib. p. 84 . 107 - CARDOSO. Escravo I ... ). Ob.cit. p. 108 - (d.ib. p. 109. 109 - (d.ib . p. IOZ.

propõe-se que o fenômeno teri a se co nve rtido "cm costume cadil vez majs íJ rra igado e difun­

d ido", "indispensável" ao escrav ismo bras il ei-

a

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100 - o Escravismo C%nial

ro_ Em inversão arbitrária da realidade objeti­va, afirma-se terem s ido "casos individuais" e "conjunturas variáveis" aqueles nos quais "cer­tos senhores puderam preferir e impor O s iste­ma de rações"! (110)

Flamarion e, salvo engano, nenhum autor que defendeu na época a alta produtividade, o cará­ter mercantil e a generalização da brecha campo­nesa no Bras il tentou responder sistematicamen­te as questões incontornáve is decorrentes da proposição. Entre elas, por que os escravi zadorcs não distribuíram as terras entre os trabalhado­res escravizados e limitaram-se à cobrança de renda, repetindo nas Américas a trans ição do escravismo ao feudali smo, através do colonato, já que era tão elevada a produção desses "peda­cinhos de terra" explorados com instrumentos rústicos e escasso gasto de tempo?

Transição que seria também aconselhada re­forçada pelo fato de que essas prMicas contri ­bu iriam para a paz na senzala, reduziriam os gastos marginais de segurança, poriam fim à hemorragia de recursos ex igida pela renova­ção das esc ravarias di z imadas na produção, através do tráfico. Como se sabe, o camponês, com alguma terra e autonomia, pare filhos como coelhos! Finalmente, se, nas últimas dé­cadas da escravidão, a concessão de parcelas

de terras e a consolidação do controle servil sobre ela cresceu - e não diminuiu -, por que não se conheceu no Brasil mobilização multitudinária po r seu controle, no contexto da luta abo licionis ta, como em regiões da América escravista onde o fenômeno assumiu importância?

Ou seja. Por que os cativos abandonaram as fazendas em que viviam, com tanta facilidade, procurando comumente a libe rdade nas cida­des ou relações assalariadas em outras propri­edades, não empreendendo res is tência aberta ou velada pelo controle das hortas que, segun­do se propõe, explorariam maciçamente, com tanta felicidade? (1 11)

Nos últimos quinze anos, as investigações sobre o escravismo colonial no Brasil te rmina­ram solucionando pela negativa as questões em discussão. Hoje, não há mais dúvidas sobre o caráter não sistêmico da concessão de hortas aos cativos, o Limite da produtividade dessa p ro­dução e sua orientação dominante para a satis­fação das necessidades de subsistência dos pro­dutores . Em ge ra l, como propusera Jacob Gorender, em 1978, em O escravismo colonial: "No regime escravista, a economia pró pria do escra­vo nunca representou peça indispensável, sem­pre foi acessória e condicional." (112)

Ninguém é inocente

e mo sugere o título, A escravidão reabilita a, de 1990, constituiu duríssima resposta

às críti cas contra a interpretação escrav ista co­lonia l do passado brasileiro que alcançavam en­tão verdadeiro apogeu, caracterizadas explici­tamente como "reabilitação" da escravidão e re­finamento das teses patria rcalis tas de Gilberto Freyre. Partindo do princípio que o "trabalho histo riográfico nunca é inocente", o autor apon­tou as raízes ideológico-socia is profundas das obras que analisa, caracterizando o forte viés social-democrata do revis ionismo historio-grá­fico sobre a escravidão então em curso: "1 ... 1 se foi poss ível e viável a conciliação de classes

110 - ld.ib. p. ll0.

entre senhores e escravos [ ... 1 muito mais pos­sível e viável, vem a ser a conciliação entre ca­pitalista e assalariados." (1 13)

Como já assinalado, quando da edição de A escravidão reabilitada, em 1990, vivíamos a ápice da vitória histórica da contra- revo lução mun­dial, da dissolução da URSS e dos estados o pe­rári os degenerados do l .es te euro peu e da vaga neoli beral que varreria conquistas hi stó ri cas do mundo do trabalho em todo o mundo, através de avassalador movimento de privatizações, destruição de conquistas sociais, dissolução de partidos e organizações operárias, etc. Ou seja, processava-se já o dramático re trocesso do

111 - Cf. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura fiO Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INl, 1975. 112 - GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 4~ ed. rev. e amplo São Paulo: Ática, 1985. p. 258-9; 254-64; 2363. 113 - Cf. GORENOER. Jacob. A escravidão reabilitada. Ob.cit. p. 43.

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lIi lõ 16ria & l.ula de C[au o · IIH

mundo do trabalho diante das forças do capi­tal, no qual vivemos até hoje.

A crítica de A escravidão reabilitada, apresen­tada sem nuanças formai s em momento em que se aprofundava abismalmente o dominio das fo rças sociais nacionais e internacionais que apoiavam as tendências irracionalistas nas ci­ências sociais, ensejou a formação de ampla e sólida frente de oposição acadêmica contra o auto r e sua interpretação, num momento em que se vivia refluxo quantitativo e qualitativo das pesquisas historiográficas nacionais sobre

sobre o mundo social, em geral, e sobre a es­cravidão, em particular. (114)

A "resenha" de Sidney Chalhoub A escravi­dão reabilitada é exemplo pa rad igmáti co desse movimento. O autor procura dep"rar o debate sobre o escravismo de qualquer sentido polí ti­co e ideo lógico, tornando-o mero tema acadê­mico, despido de transcendência epis temoló­gica e social. Nesse sentido, registra não com­preender "o porquê" da "histori a da escrav i­dão" ser para Gorender "uma questão e impor­tância tão transcendental" .

Complô escravista

N a resenha, Gorender é acusado da mesma "monomania classificató ria" do "médico

alienista, de Machado de Assis "que com suas expe riências científi cas lançou o terror entre os habitantes da vila de ltagual" . Apenas no pre­sente caso, as vítimas seriam os "histori ado res que se atreveram a escrever sobre a hi stóri a da escravidão e da abolição", contra os quai s o autor utilizaria o mesmo método "abrangente e a te rrador" do alenista-alienado.

A escravidão reabilitada seria produto da mente de um autor que se tomava po r "vítima de um co mplô urdido nas hostes rev is ion is tas". Gorender não teria autoridade cientifica e ética, já que "nunca" teria feito "uma pesquisa históri­ca prolongada nos arquivos da escrav idão bra­sileira - limito u-se, até hoje, a ler alguns docu­mentos [s ic) impressos c livros de viajantes". Seguindo no mesmo sentido, Gorender é acusa­do de fundamental "seus proced imento de críti ­ca historiográfica no truque e na pilhagem."

Pra ticamente limitando sua referência ao li ­vro resenhado ao "si c" pospos to após o Wulo, Chalhoub conclui o arrazoado retomando ~ crí­tica de Gorcnder defender em O escravismo colo­nial a visão do "escravo-coisa" - ureprescntd­ção acadêmica segundo a qual os escravos só conseguiam pensar o mundo, c atuar sobre e le, a partir dos s ignificados socia is impostos pelos senho res" -, de ixando-se assim "sedu zir" "com­pletam ente pela lógica dos escravocratas". Ou

seja, além de maluco, seria negreiro! No longo e árido contex to social caracte ri­

zado pelas propostas de fim da história, encerra­ram-se praticamente as d iscussões so bre a multiplicidade de modos de produção, já que a própria proposta de compreensão tendencial do passado foi anatcmati zada C01110, no nlín imo,

visão ideológica de uma prá tica h istoriogrMi ca dirigida para campos mais gentis e menos ten­sos, como a hi stó ri a da v ida privada, da cultu ­ral, das menta lidades, das festas, dos scntimen­tos, dos costumes, dos háb itos, do scxo como desvio, etc., sobretudo das elites do passado c do presente.

Na décad a seguin te, reduzido a um mcro campo de estudo dos fcnõmcnos s ingula res da formação socia l bras ileira, desconcctado de in­tc rpretação totali zante dos fenõmenos cm dis­cussão, a historiografia da escrav id50 cl ecli cou­se sobremaneira i:l aniÍ li sc das propus tas dos pa ctos e consensos entrc cati vos c scus escravizadores e da defesa da exis tência s istc­máti ca da família escravizada no Brasil, fJ S últi ­nlfJS estratégias de reconstit-uiç50 do consenso cstrutural da escrav idão proposto pel os cscra­vis tas, quando da escra vidão, e pelos inte lec­tu a is o rgânicos das e litcs bras il e iras, após a Abolição.

Nos anos novcnta, comumcnte, DS bibliogra­fias de dissc rtações e teses sobrc a esc rav idão brasilei ra não mais arrolaram O escravislIlo colo-

114 _ Cf. CHAlHOUB, S. Gorender põe etiquetas nos historiadores. Jornal Folha de Sao Paulo, 24 novo 1990.; GORENOER, J. Co mo era bom ser escravo no Bras il. Folha de São Paulo. (réplica), 15/ 12/90; lAAA, S. Gorender esc raviza a História. Folha de São Paulo (tréplica). Caderno letras, jan. 199 1.

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t

-

102. o Escrall;slIIo C%lljal

nial, numa prepotente tentati va de comprova­ção dn superação fina) da fratura ocorrida no

mundo das representações dominantes ocorri· da no já dis tante ano de 1978. •

Algumas obras de .Jacob Goerender

GORENDER, Jacoh. "Correntes soci ­ológicas no Bras il ", ESTUDOS SOCI­AIS, n. 3A. Rio de Janeiro. 1958. GORENDER. " A questão Hegel", ES­TUDOS SOCIA IS, n. 8, I~io de Janei· ro. 1960. GOR EN DER. "Contradições do desen­

vo l vimento econômi co no Brasil", PROBLEMAS DA PA Z E DO SOC IA· LlSMO. n. 2. Riu de Janeiro. 1963. GOREN DER. Jacob. O {'.w.:ravislllo 1:0-

IOl/ial. SJo Paulo: Aliea , 1978. GORENDER. Jacob. " Int rodução", MARX , Karl. J-'ora (I (: ,-ílico da l!l:O­

flOmia polít i ca; salário, pn'('o {' II/cm;

O rel/dimcllIu e .\'U{u !ullles. São Paulo: Abril Cul tural. 1982. pr. VII-XXI II.

GORENDER "A prese nta ção", MARX. Karl. O (;0l' il(1/: crítica da eco­nomia polít ica. São Paulo: Abril Cul­tural. 19X3. pp. VII -LXX II. GORENDER, Jacob. Questionamentos sobre ~l teoria econômica do escrav ismo colonial. ESTUDOS ECONÔM ICOS, Institulode Pesquisas Econômicas, IPE, São Paulo, I3 rll , jan.-abri l 1983. GORENDER. Jacoh. O escravismo co ­

IOllial. 4 cd. rev. e ampl. São Paulo: Ática , 1985 . GORENDER. A Imr}:lIt:sia brasileira. S:in Paulo: Brasi liensc, 1986. GORENOER. Gêllese (' dOt:flvot.J;-

11/(' 1110 do capitalismo /lO campo bra.\'Í­Ic:im. Porto Alegre: Mercado Abcrto, 19~7.

GORENOER, Jacob. " Introdução. O nasc imcnto do materiali smo hi sI6rico·'. MARX & ENGELS. A id('ologia ale­mÜ. São Paulo: Martins Fontes. 1989. GORENOER. J'lcol1. A t:.Kmvit!iio re­(I!Jililm!a. São Paulo: Áticil. 1990. GORENOER, Jacob. Com/mie lias Ire­\ltl.\'. 5 ed. ampliada e atua lizada. São Paulo: Ática, 199X. GORENDER , J . Como era hom se r cs­cravo /lO Brasil. Folha dI: Silo Paulo. (rép li ca). 15/ 12/90;

GO RE NDER , Jacob. "Globalização, tccnolog ia e rel ações de traba lho". ES­TUDOS AVANÇADOS.IEA·USP, S"O Pau lo , 11(29), janeiro-abril de 1997, I1p.3 11-36 1. BENOIT, Hecto el aI. Marxismo e ci-

êne ias soc iais. São Paulo: Xamã, 2003 . pp. 130· 149.

O ut n ls ohr:ls não cit :ulas de Jaeob Gorcnder:

GOREN DER, Jacoh. "Notas sobre lima questão de éti ca in telec tual" . EST U­DOS ECONÔM ICOS. S"O Pau lo, IPE· usr. 1984.2 ( 14) GORENDER, Jacoh. " A partici pação do Brasil na 11 Guerra Mundial e SU:1S conseqiiências." SZM RECSANYI , T. & GRANZIERA. R.B. [Org. ) Getúlio \.ohr}:ll.\' e (l eC:OIwmitl contemporânell.

Campinas: UN ICAM P, 1986. GOREN OER , Jacob. "A revol ução bur­guesa c OS comunis tas." O' INCAO, M.A. [Org. 1 O .\'llber miliuJIlte: esaios sobre FloreSI,ln Fernandes. São Pau lo: E<I.UNESP· PAZ e Terra. 1987. GORENDER, J acoh . "Coerção e consendo na políti c a" ESTUDO S AVANÇADOS. S"O Paulo , IEA·USP, 1988. 3 (2) GORENDER, Jacob. " A face escra va da co rt e impe ri al bras ileira". Azevedo, P. C. & LlSSOVSKY, M. [Orgj. E.<cm·

1'0 .... bm.\·ileims: do século XIX na foto· grafia de Chi sti,lIl o J r. São Paulo: Ex Libris, 1988. pp. xxxi ·xxxv i. GORENDER. Jacob. " Do pec:1do ori­gina i ao desastre de 1964." O' INCAO, M.A. [Org.) H Ülúritl e ideal: e nsaios sobre Caio Prado Jlínior. São Paulo: EdUNESP-Brasi liense. 1989. GOREN DER , Jacoh. "Crise morta ou reeonstruçJo'!" T EOR IA & DEBATE. São Paulo, 1989. "8. GOREN DER . Jacob. "Teoria econômi­ca c po líti ca revol ll ciomíria no marxis­mo russo" . BUK HAR IN. Ecoflmllitl.

São Paulo: Áti ca, 1990. [Coord. FI. r ernandes. J GOREN OER , Jacob. " rim uo milên io ou rim da hi stória". LPM - Revista de Hist6ria . Ana is do VII Encont ro Regi­on:11 da ANPUH -Mo. Minas Gerais , 199 1, I (2).

GOREN DER , Jacob. " La Améri ca por· tu guesa y e l esc la vis mo colo ni a l" . BON ILLA , Hercacl io. [Org.] Lo.\· COII ­

qllis/(ulos. 1492 y la poblac ión indíge-

na de las Améri cas. Bogotárrerce r Mundo/Flacso/Libri Mundi , 1992, GORENDER, Jacob. " A escravidão re­abil itada". LPM - Revis ta de História. Seminário ''Tendências contcmporfine­as da historiografia brasi le ira". UFOP, deze mbro, Minas Gerais , 1992, I (3). GORENDER, Jacob. O fim dtl URSS: origens e frae<lsso da pereslroika. SJo Paulo: Atua l. 1992. GORENDE R, Jacob. Marcill o e Libc:rltu/ore: di<llogos sobre marxismo, socia l-democ racia e libera li smo. São Paulo: Áti ca , 1992. GORENDER, Jacob. "Liberalismo c ca pitali s mo re :1I ". NÓVOA , J orge, lOrg. ] A hi.\·lór ia ti deriva: um bulanço c.J e fim de século . S'll vado r: UFBa, 1993.

GORENDER, J<lcob. " O proletariado e sua missfio hi s tórica". ALMEIDA , J. & C ANCELLI . V. [Org. ] / 50 tinos de Manifes to Comunista . São Pa ulo: Xamã: SNFPPT. 1998. pp. 19·28. GORENDE R, Jacob. M a rxümo sem

utop ia. São Paulo: Álica, 1999. GORENDER, Jacob. IJrasil em preto

& branco: O passado escra vis ta que não passou. São Paulo: Ed iSENAC, 2004. f Li vre pensar, 4 j.

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=

is ú o',

Nos anos de 1990, a Argentina começou a se r co nhec ida

no mundo por uma palavra diferente das corriquei ras

" tango" ou "Maradona". A palavra "piqueteros" , que deno­

mina os movimentos de trabalhadores desempregados,

atingiu uma identidade finalmente internac iona l quando em

19 e 20 de dezembro de 2001 aconteceu o "Argentinazo", a

grande rebelião que provocou a queda do presidente

Fernando de la Rua e abriu uma crise do regime po lítico e

de suas instituições, principiando também uma nova etapa

po lítica no país.

Os movimentos piqueteiros e o U Argentinazo" Situação, problemas e debates de um movimento social do século XXI

Roberto Ramírez

(Tradução de Adrián Pablo Fanjul)

Roberto Rarnircz é editor da rev ista Socialismo o Barbaric

(www.socialismo-o-b • .ubarie.org) c militante do Movimicnto

ai Socialismo - Argentina.

ucles momcntos, os olhMcs d <l A méri CLl Llltina e do mund o inteiro volt<l ­rtJ m-sc pLl ra a A rgcnti -ní:l. Ambos, o Argenli ­n<lzo C os piq uelcros, for<lm produlos, po r uma parte, de UIllZl ct)­

tástrofe econômico-soci<ll, e por outra p<l ,t e, eb resposta de mobili zação que der<lm os sctores mais gra vemente prcjudi C<ld os.

Embora, como expJjc<lrcmos, ambos rcfletcm combinaçôes peculi ares da formação econômi­co-social da Argentina c d<ls tr<ldi çôes de org<l­nização e de lu ta dos setores sociais envo lv idos,

também expressaram e exprcssam situaçôes co­muns da Améri ca Latina e dos países da peri fe­ria. Nessa margem habita 85% da humanidad c. Porém, não somente ela recebe apenas v intc por

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I

104 - Os I/Iovimentos piqllcteiro.\' e o "A rgclllitw!.O"

cento da renda mundial bruta, mas também essa miserávcl fatia ainda tende a diminuir [dados do World Bank, 20021·

É devido a esse contexto que tanto as rebeli­ões que inauguraram o século XX I (na Améri ca Latina, sucess ivamente as, do Equador, da Ar­gentina e da Bolívia) quanto os diversos tipos de movimentos sociais emergentes, não devem ser considerados como fatos "excepcionais".

Na verdade, sc no capitalismo globalizado con tinuam dominando as atu ais tendências à

polarização social e ao empobrecimento, fenô­meno que se percebe nos próprios USA, essas rebeliões e movimentos dizem muito respe ito às perspectivas para o atual século. Nesse sen­tido, são de alguma maneira um " laboratório" político e social, onde esforçados ensaios de "tentativa e erro" têm sido efetuados.

Portanto, em relação ao Argentinazo e aos piqueteiros, há de se levar em conta que são parte de uma história que ainda está sendo es­crita ... por vezes, com sangue.

"Bem-vindos à América latina"

Até há pouco menos de duas décadas, a for­mação econômico-social da Argentina

apresentava uma peculiaridade importante em comparação à maioria dos países latino-ameri­canos: nunca houvera, nesse pais, wna grande percentagcm de população "excluída": "Duran­te décadas, a Argentina foi uma sociedade rela­tivamente bcm integrada do ponto de vista so­cial. Em termos gerais, cssa integração aconte­ceu em um contexto de abundância de empre­go, a tra vés dc um conjunto de instituições que poss ibi li ta ram a incorporação de um amplo se­tor de traba lhado res urbanos cm tcrmos dc di­re itos sociais, proteção socia l c es tabilidade no trabalho." [Svampa e Pereyra, 20041

Muitos a rgcntinos, espccia lmcnte da classe média po rtenha, ou seja, da capital, região de maior riqucza re lativa no pa ís, tinham sido edu­cados sob a idé ia de quc scu pa ís fosse uma fi li al, embora um pouco mais pobre, da Euro­pa, e não uma ruinosa scmi colônill latino-ame­ri cana. Essa ideologia condizia, no entanto, ZI

certos n íve is da rca lidadc. A industriali zação por substituição dc importaçõcs tinha sido, a té ]976, is to é, até o começo da última ditadura militar fina li zada em 1982/3, "a ati vidade cen­traI e d inâmi ca da cconomia" . IBasualdo, 20021 Esse prcdomínio poss ibi litou a constituição de um fo rtc proletariado industrial c também de UJ11a éUllpla "classe 1l1édia" de aparência "euro­péia", identificação cu ltu ra lment·c facilitada pela sua origem nas migrações do vclho continente.

No entanto, essa indus tri a li zação, cujo ciclo, com altos e baixos, tinha começado nos anos de ]930, carecia de alicerces sólidos. Já na déca-

da de sessenta, quando estava no seu apogeu, o hi storiador marxista Mildades Pena caracte­rizava-a acertadamente como uma "pseudo-in­dustrialização", frágil e profundamente dife ren­te daquelas dos países centrais. [Pena, 19641

A ditadura militar instaurada em 1976 prin­cipia uma mudança que nos seus inícios seria evolutiva, para finalmente, nos anos 1990, sob a "democracia", sofrer um salto de qualidade, provocando uma "explosão de pobreza" seme­lhante à do resto do continente. [Katz, 20021

A indústria por substituição de importações foi sendo prog ressivamente esmagada, estabc­lecendo-se um "novo padrão" de acumu lação com "central idade do endividamento ex te rno" e uma concentração e centralização do capita l em um reduzido conjunto de "grupos cconô­micos". [Basualdo, 2002; Inigo Carre ra, 2002, Azpiazu, 20001 Tudo isso acabou gerando lml

vcrdadei ro te rrcmoto socia l. Como afirmávamos em um trabalho nosso

já publicado IRamírcz, 20011, praticamcntc des­dc antes da Scgunda Guerra Mundia l, depois da crise dos anos de ]930, a Argentina não co­nhecera um alto índice de desemprcgo, ape­sar de os traba lhadorcs empobrecercm a cada al1 0, a partir da década de setenta, COI11 cresci­

mento da exploração e degradação do sa lá ri o e das condições dc trabalho. Havia osc ilações, mas o desemprego gerado em cada conjuntura recess iva era depois reabsorvido, cmbora um grandc seto r dc trabalhadores começassc a fi ­car exduído, rel egado ao trabalho autônomo.

Na década de 90, tudo mudou . O processo deixou de ser 'evolutivo' e, bruscamente, mi-

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U h/lírio & l I/ta de C I({uc\' - 105

lhões perderam o emprego, dessa vez sem es­peranças de recuperá-lo . As primeiras cifras já antecipavam o desastre. Enquan to a econo­mia crescia quase nove po r cento ao ano, o de­semprego também começava a aumenta r em ritmo acelerado, uma co isa que teria s ido m ­concebível em outras épocas.(I)

O desemprego foi alimen tado por várias fon­tes: pela falência da ant iga indús tria e de ou­tras empresas, que não se 'adaptaram' à J~ber­tura econ õ mica'; pelas pr ivatizações das empre­sas públicas, com demissões em massa de seu pessoal; pe la ' reconversão' das indú stri as so­brevjventes, que reduziranl vagas; pela bancar­rota da maiorja das dlanladas "economias re­gionais" em províncias do interio r do país, etc.

Assim, em ou tubro de ] 991, a taxa de desem­prego era de seis po r cento. No mesmo mês de 1994, ano em que ho uve crescimento de oi to por cento, ela tinha subido para quase treze por cento. Em maio de 95, chegava a 18,4%. Desde aquele ano, depo is de ca ir alguns pontos, vo l­tou a subir com a depressão econõmica de 2001 . A taxa de subemprego era igual ou maior.

Devido ao desemprego e ao subemprego, em

escala ainda mais anl pl il por afetar também os "autônomos" supostamente "ativos", a ma io­ria da sociedade afunda bruscam ente sob ní­veis de pobreza e indigência nunca antes co­nhecidos na Argentina. Um estudo reali zado pouco depois do Argentinazo, aponta que: "I n­corporaram-se 3,4 milhões de novos pobres e ],5 milh ões de novos indigentes à massa preexistente de 14 mi lhões de pobres 1 ... 1 que incluem 4,9 mi lhões de ind igentes (que n50 podem adquirir uma cesta bás ica de alimentos). A Argentina tem a metade de sua populaç50 (37 milhões em 2000) afundada na pobreza e está entre os 15 países com pior di s tribuiç50 da riqueza do mundo I ... ] A depressão acrescen­tou um milhão de novos desempregados à me­don ha percerttagem de 40% dil popu lação de­sempregada ou subempregada. Desde a cri se de :1 930, n50 se viil uma ciltástrofe semelhante em um país que n50 passou por gucrríJs ou CLl­taclismos naturais." IEDI , 2002, I

É nesse contexto que nascem e se desenvol­vem os movimentos "piqueteros", e que em 19 e 20 d e dezemb ro de 200:1 es to u ra o JlArgentinazo".

Várias rebeliões em uma só r

E tema de um debate não concluído entre os marx is tas argentinos a "defin ição" do

Argentmazo. Por exemplo, na época, mu itos o caracterizaram cOln o uma "revolu ção operária

e socialista". Do nosso ponto de vis tas, cremos que precisamente o g rande p rob lema é que não chego u a ser um processo desse ca ráter.

Socialmente, a 1l1a ioria da classe trabalhadora

empregada, como tal, não entrou em luta, à ex­ceção d e setores m inori tários, mo lecularmente, na qualidade d e "vizinhos" e outros como ocu­pantes de empresas fal idas que os própri os tra­ba lhadores co locavam em funcionamento. [Cruz Bernal, 20031 Por sua vez, po liticamente, não houve uma radica lização de se to res de massas em direção a pos turas socia listas. Cre­mos que é mais pertinente definir os fatos como uma rebelião que indicou O começo de um pro­cesso revo lucionário.

Como todo aco ntecimento dessas dimen­sões, o A rgenünJzo apresentLl UnlJ combin a­

ção desigual e peculi ar de causas, processos e suje itos sociais e políticos. A "exp losiío de mi ­sério" já descritLl, ogra vodLl pcl~ depress50 do economio, combinou-se com o inud im plêncio

do pró pri o Es tado, com a ex prop riação das pau panças da classe méd ia pelos bancos, por decreto do próp ri o governo, e com uma grave "cri se de leg itimid ilde" do regime .. i emocrMi ­co-burguês e de suas institui ções - Poder Exe­cuti vo, Legislativo, Judicijrio e partidos po líti ­cos. Assim, O A rgentinozo combinou, simulto­ncamcnte uma "rebel ião dJ fomc", um<1 "rebc­

li ão por trabalho", uma rebel ião de seto res mé­dios defraudados pelos bancos e, no conjunto, uma "rebel ião demacriltica cantro II 'democrll­

ciil ' e contra o poder polít ico" ISáenz e C ru z Bernal 2002' 1.

1 _ SaNO indicação contrária, as cifras referidas ne ste artigo são do Instituto Nac ional de Estadística V Censos (IN DEC l, centro estatístico do Estado argentino.

2

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I

106 - Os lIIovimcnlOJ piqueteiros e o "Argenti1lazo"

Esta rebeli ão democrática das bases sociais contra a If democracia" expressou-se na famosa palavra de ordem "que se vayan todos" (todos fo ra l ). Ela resumiu, à vez, a abrangência e os limites do Argentinazo. Era muito certa como fó rmula de rejeição contra a "democracia para os ri cos", mas carecia de uma perspectiva que indicasse como transcendê-Ia, como passar para além dela. Isso implicava que, "para poder sus­tentar suas ini ciais mo tivações democráticas sem que invo lucionem ou sem que sejam traÍ­das, a rebe li ão popular deve progredir para a lém delas, ir em um sentido anticapitalista e socialis ta [ ... 1. É avançar ou recuar". [Sáenz e Cru z Bernal, 2002'1·

E, ·efetivamente, O recuo aconteceu. Ao não "avançar", quer dizer, ao não entrarem na Juta os setores ocupados da classe trabalhadora e tam­bém ao não ocorrer urna radicalização política maciça, mas apenas de sectores de vanguarda, começou um processo de "lenta reabsorção de­mocráti co-burguesa da crise". [Sáenz, 2004J

A vi rada nessa direção aconteceu depois de uma outra data importante para a hi stória do A rgen tinazo: a feroz repressão aos movimen­tos piqueteiros, em 26 de junho de 2002, quan­do da chacina da Ponte AveJlaneda, em Buenos Aires. Os se is meses anteri ores tinham sido con­turbados. O gove rno "inte rino" de Duhalde, que tomara posse em 10 de janeiro daquele ano, nomeado pelo Congresso, depois da queda de três pres identes em doze dias, pensou que re­verte ria o processo reprimindo o núcleo "d uro"

do Argentinazo, os movimentos piqueteiros. Houve um resultado já "clássico". A repressão, em lugar de amedrontar, foi estopim de gran­des protestos e mobilizações. À beira do abis­mo, o "presidente interino" fez uma virada política: anunciou que adiantaria sua saída e convocou eleições.

As urnas conseguiram aquilo que as balas não puderam. A chave desse sucesso está nos limites que já apontamos como traço do pro­cesso em geral. Por parte da ampla vanguarda mobili zada no Argentinazo, majoritariamente piqueteira, mas também de trabalhadores de empresas ocupadas, assembléias de bairros, etc., não chegou a haver, como expljca Yunes, "urna alternativa própria para a crise global em um terreno também global, de projeto de pais, quer dizer, politico [ .. .]. Se isso não começava a vin­gar, a pura negatividade do 'que se vayan to­dos' acabaria dissolvendo-se na esperança de 'que venha o menos ruim'. A política, sabe-se, sente horror do vazio". [Yunes, 2003)

Diga-se de passagem que essa modabdade de desenvolvimento "em tesoura", entre a magnitu­de das lutas sociais, e a limitação e fraqueza da representação e influência política das vanguar­das que lideram as mobilizações, vem sendo um problema comum dessas rebeljões do século XXI na América Latina. Não nos deteremos aqui na análise desse importante fenõmeno, mas aponta­mos que ele é comum não apenas ao Argentinazo e às rebeljões do Equador e da Bolívia, mas tam­bém aos movimentos e lutas de outros países.

Os piqueteros antes e depois do Argentinazo

O processo eleitora l combinado com um ci­clo ascendente da economia depois da

depressão de 2000-2002 ab riu um período de cstabilizaç50 e de retorno ir "norma li dade" do regime democráti co-burguês. I RamÍrez, 20031 Como apontara Sáenz, Ll "cri se ilguda" tinh<l s id o encerrada . ISáenz, 20041 No entanto, isso n50 significou lima volta à década de noventa, nem no que tange à s ituação geral, nem quanto às relações socia is de fo rça. Não estamos já no pe ríodo "convulsivo", de cri se e mobilizações quase que diár ias dos primeiros seis meses do Argentinazo. Mas, em um sentido mais amplo,

não foi fechada a etapa política aberta em J 9 e 20 de dezembro de 200J.

Essa continu idade da etapa se expressa de diversas maneiras, como caracteriza Sáenz: "[ ... 1

ad ministração de um mecanismo de conquis­tas, concessões e armadi lhas sobre setores am­plos das massas e da vanguarda (na maio ria dos casos, migalhas). Esse é um fenômeno tremen­damente contraditório que expressa a pressão das massas sobre o governo e sobre a burgue­s ia. E, ao mesmo tempo, sua utilização por par­te do governo como ins trumentos de domínio e de domesti cação." [Sáenz, 20041

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II Ü·tlÍr;a & 1. 1110 (l I! C/auer . 107

Diferentemente disso, a década de 90 não foi um tempo de "concessões" enganosas, muito pelo contrário, de esmagamento direto dos se­tores da classe trabalhadora que tentaram en­frentar as privatizações e os planos neo ljberais.

É que existe um importante elemento de con­tinllidade do Argentinazo que, segundo pa la­vras de Kirchner, faz com que a Argentina ain ­d a não seja um pills "normal". É a ex istência de uma vanguarda ampla, que, em sua grande ma ioria, está organizada nos diversos movi ­mentos piqueteros, mas que agora também tem expressão crescente em setores de trabalhado­res empregados. Há estimação de ex istirem, no país, mais de cem mil ativistas, espalhados em uma diversidade de agrupações.

O que a burguesia e a mídia ex igem per­m anentemente ao governo é terminar com essa "anormalidade", que se manifesta, por exem­p lo, no fato de Buenos Aires fi car, "vira e mexe", parada, devido à interrupção do trânsito em pontes e avenidas. E vale esclarecer que essa ci dade é a capital de um país centra li zado, não fed e ral como o Brasil, e que, para a Argentina, e la representa qualitativamente mais do que a so ma econ ôm ica e po lítica de São Paulo e Brasília representa para o Bras il.

'A palavra "piquetero", de "pique te", come­çou a ser utilizada a partir da explosão social de Cu trai Co, cidade da provincia de Neuquén, e m junho de 1996. Era um povoado da Pata­gô ni a , d e dicado à ext ração de pe tróleo. A privatização da empresa nacional de petró leo, a YPF, deixou grande pa rte de sua popu lação sem emprego. Depois, houve rebeli ões seme­lha ntes em outras cidades petro le iras do su l -P laza Huincu l - e do norte da Argentina -Mosconi e Tartagal -, na província de Salta . De s uas o rigen s naquele dis tante interior, os mo­v imentos piqueteiros foram des locand o seu centro de ação para a Grande Buenos Aires, periferia urbana da Capital Federal.

Ass im descrevem Svampa e Pereyra a for­m ação do movimento: "O movimento pique­teixo reconhece duas fontes afluentes funda­m e ntai s : por uma parte as ações abru ptas, efêmeras e por momentos unifi cadoras, dos

piquetes e insurreições do interi or, resultado de uma nova experiência SOCill l conlunitária vin­culada ao co lapso das economias regionais e à privati zação das empresas públicas rea li zada na década de 90; por outra parte, remete à ação territori al e organiza ti va ori ginada na Grande Buenos Aires e relacionada às lentas e profun­das transformações do mundo popu lar, produ­to de um processo de des industriali zação e de empobrecimento crescente da sociedade argen­tina que começou na década de 70."

Os mesmos autores prosseguem a apresen­tação do fenômeno: "A primeira dessas fontes nos co loca na perspecti va da ruptura, tanto quanto a segunda tende a marcar a perspectiva da continu idade. Em ri go r, poderíamos dizer que o movimento piquete iro nasce a li onde a desa rti culação dos contex tos sociais e de traba­lho acontece de maneira abru pta e verti g inosa, ali onde a ex periência da descoleti vização ad­quire um ca rLÍtcr mass ivo, iJ li onde o dcsLlrra i­

go e o desemprego reúnem, em um feixe só, um conglomerado heterogêneo de ca t·egorias sociais 1 ... 1. Nesse sentido, é necessá ri o desta­car que os primeiros piqueteiros provinham dos (ex) traba lhadores melho r pagos do (ex) estado de bem-estar, com uma ca rreira es tável que in­cluía famílias e gerações completas sociali za­das no contexto da estabilidade e do bem-esta r social. Os primeiros bloqueios de estrada, ini ­ciados em 1996-97, l"i ve ram um caráter multi ­seto ria l e a posteri or repressão 1 ... 1 deflag rou verdadeiras insurreições popula res. Dia nte do reclamo de cri ação de emprego genuíno, o go­verno nacional respondeu a través de uma sé­rie de políticas que combinam - at·é hoje - a re­pressão di spersa e se le t·iva com a cooptação política e, de modo mais genera li zado, a atri ­bui ção de "planos sociais'" ilss isLencill is." (2)

ISvampa c Pereyra, 20041 É possível, então, entender por que a Argen­

tina fo i e é, na Améri ca LD l"ina C mund it:l lmcntc,

O país dos grandes movimentos de desempre­gados. Não surgiram a partir de seto res secu­larmente "pobres" e/ou "excluídos", nem de "multidões" como as que pro põe Toni Negri ou de "identidades" sem sexo defin ido, ao esti lo

2 _ Os referidos planos consistem em entrega de comida e pagamento de um auxílio ao desemprego. IN. do rI

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lOS - Os movimelltos piqueteiros e o "Argcnlilwzo"

de Laclau, mas de uma classe trabalhadora que ficou maciçamente desempregada faz relativa­mente pouco tempo. Essa classe traz podero­sas tradições de organização e lu ta s ind ical, com milhares de antigos ativ istas e ex-representan­tes de seção ou de oficina. Além disso, embora nas bases predomine politicamente a consciên­cia atrasada peronis ta(J), no ativismo sempre exis tiram fortes correntes localizadas mais à esquerda, entre elas, o trotskismo.

A emergência dos movimentos piqueteiros, espec ia lmente no seu desenvolvimento na Grande Buenos Aires, refletiu também o desa­bamento parcial da colossa l estrutura político­organiza tiva do "peronismo" como rede de con­tenção da miséria e da protesta social.

Com efeito, sob a "democracia", o Partido justicialista (peronista) desenvolveu um gigan­tesco complexo organizativo territorial nos bair­ros pobres da Grande Buenos Aires_ Articulada

I d . d /I 11(4) . pe os enomma os punteros ,essa orgam-zação clientelista é, à vez, um aparato eleitoral, um aparato de controle social e político, e tam­bém um órgão de assistencialismo miserável .

A irrupção dos movimentos piqueteiros abriu uma fenda no controle territorial desse aparato com traços mafiosos. A luta dos movi­mentos piqueteiros obteve do Estado diversas concessões, principalmente, auxílios econômi­cos e cestas básicas. Mesmo sendo parcas, es­sas concessões ficaram por fora do controle dos "punteros" do aparato peronis ta.

Heterogeneidade, reivindicações e política

A partir de diferentes co rrentes, foi desen volvendo-se o que a lgu ns caracterizam

como um "movimento de movimentos" pa ra fazer referência à heterogeneidade do movi­mento piqueteiro. ISvampa e Pereyra, 2004]

Essa heterogeneidade obedece a vários fato­res. E sobre eJa também age o governo para coopta r dirigentes e domesticar os movimen­tos. Não se trata de uma origina lidade argeJ1ti­na. Mutatis mutand is, acontece a mesma coisa com o res to dos movimentos sociais latino­americanos que emergiram c/ou entraram em cena na década de 90.

A heterogeneidade tem d iferentes causas. Por uma parte, nos mov imentos en trecru zam­se todo tipo de pressões e problemas socia is e políticos. Por outra parte, os movimentos não são a lheios aos g randes debates estratégicos que atravessam a vanguarda na Argentina e em todo o mundo - reforma, revolução, autonomismo, partido, movimento, etc. É que esses movimen­tos, a inda que reúnam dezenas de milhares de desempregados, n50 deixa ram de ser movimen­tos de uma g rande vanguarda, embora às vezes localmente mobilizem setores de massas.

In icialmente, os movimentos nasceram como

movimentos de Juta de trabalhadores desem­pregados. Como caracteriza Sáenz, são movi­mentos "reivindicativos" na m edida em que juntam seus integrantes, pelo menos no come-­ço, em torno da satisfação de suas necessida­des mais imediatas, principalmente a fome que ameaça milhões de trabalhadores. [Sáenz, 2003] Porém, dife rentemente do que acontecia em outras épocas do capitalismo argentino e mun­dial, essa Juta reivindicativa vira política quase sem mediações: o afastamento entre a lu ta reivindica tiva e a política tem muitas menos possibilidades materiais do que no passado.

As demandas não se encaminham, geralmen­te, a um patrão, mas ao poder político. O prin­cipal método de luta é fazer piquetes para im­pedir pontes, estradas e avenidas, gerando as­s im um fato político: desafiando o estado, é in­terrompida a "livre circulação" de mercancias e de pessoas, essencial para o funcionamento "normal" do capitalismo.

Quase "automaticamente", o movimento adquire ass im um caráter reivindicativo-políti­co, sócio-político ou político-social. Mas, a par­tir disso, abre-se um Jeque de opções, que tem a ver com as diferentes respostas a uma sim-

3 - Os referidos planos consistem em entrega de comida e pagamento de um auxílio ao desempreg o. (N . do T.) 4 - Em termos gerais, consciência herdada do Hperonismo·, movimento populista de origem na década de 40 (N. do 1) 5 - lideres de pequenos territórios urbanos. dedicados à promoção de ca ndidatos nas eleições, e cujo reconhecimento na · freguesia· provém dI! sua possibilidade de obter e distribuir assistencialis mo. O nome ·puntero· remete à liderança na obtenção de votos . (N . do T.)

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a

L

lIi ~ / ória & I . /t ltl f/ e C/a Hp - 109

p ies pergunta: que política adotar? Isso, que poderíamos denomi nar como o Os movimentos também são, s imultanea- cará ter que assume o movimento como ta l,

mente, "uma ' cooperati va' de reparto e micro- entrecru za-se com a questão política (!acrescen-prod ução [ ... 1. Uma 'cooperati va de di stribui- ta fo rtes tensões pró prias; já q ue, contra as ção' do obtida mediante a luta. E de produção, idea li zações feitas especialmente pelo autono-em pequena escala de mÍcro- empreendimen- mismo, cremos, que, em verdade, organiza-se tos. " [Sáenz, 20031 a "distri buição da miséria".

Movimentos e problemas em debate: cooptação, marginalidade autonomista,

"pobrismo", "piqueteirismo" e unidade de classe

Pa ra u.m observador que acabasse de chegar a Buenos Aires, esse "movimento de movi­

nlcntos" apresentaria uma primeira imagem ca­ótica. Seguramente, poderia pe rder-se nos labi­rintos das dezenas de sig las. No entanto, não há caos nenhum, mas uma lógica que tem a ver com as "coo rdenadas" que acabamos de apontar.

Essas "coordenadas" determinaram um ri co debate teórico e estratégico sobre o mov imento p iq ue te iro . Da mesma maneira, é em função das mesmas que pode estabelecer-se uma classifi ­cação desses movimentos. A relação de organi­zações e d e correntes que faremos a seguir n50 será exaus tiva, já que seria longa demais, mas inclu irá as principais. 1. Há, em primeiro lugar, os que optaram por entrar na cooptação-domesticação que promo­ve Ki rchner Qunto com a repressão seletiva con­tra os refra tá rios) para ir acabando com a van­gua rd a h e rdada do Argentinazo. Esse se to r pode ri a ser caracteri zado como de " piquetei­ros fi s io lógicos". Não apenas recebem fund os do go verno, mas também seus dirigentes fo ram recompensados com cargos públi cos.

As d uas principais correntes nesse seto r s50 a Fede rac ión de Tierra, Vivi end a y Hábita t (FTV), diri g ida pel o ago ra d e putad o Lui s D' Elía, e Barrios de Pie, cujo principa l d irigen­te, Luis Ceballos, hoje é um alto funcioná ri o do Min is té ri o do Trabalho. A FTV é a ag rupação de d ese mpregad os da CTA (Centra l de los Trabajad o res Argentinos), uma das três centrais traba lhi s tas, que mantém estreitas relações com a C UT brasile ira e com o PT, com os que se iden­tifi ca po líti ca e ideologicamente. "Barrios de Pie" é um movimento orientad o po r " Patri a Libre" , U.ma o rganização política de esquerd i;1 que, d o " nacional.ismo popular revolucionári o" de r ivo u n o apoio incondicional a Kirchner.

Nesse seto r "fi s iológico", loca lizam-se outras co rrentes menores, a lgumas qu e provém do autonomismo, que ana lisa remos depois. 2. Com um pé no apoio ao governo c outro na oposição a Kirchner, encontra-se um outro mo­vimento piqueteiro importante, a CCC (Corriente Clasista Combati va). Ela é orientada por uma tendência maoíst·a, o PCR (P.1 rhdo Comun ista Revolucionari o). As posições oscilantes da CCC têm a ver com as esperanças incri velmente alen­

tadas pelos maoístas em um~ "bu rguesia nncio­nal progressista", da que Kirchner seria repre­sentante. A concl usão po líti ca é n50 fazer opos i­ção frontal ao governo, mas press50 para que "enfrente" o imperi alismo e o FM I. 3. As co rrentes autonomistas que, sob o nome de MTD (Movimiento de Trabajadores Desocu pados) foram possivelmente maiori a na Grande Buenos Aires, nas vésperas e nos p rimei ros meses do Argentinazo, merecem um trecho especial.

É importante constZlta r que, como aconteceu

com O autonomismo em outros lugares do mun­do, depo is de um rápido e importante cresc i­mento, houve uma crise c uma d ispers50 igual­mente velozes e ev identes. Hoje, fazer uma re­laç50 de todos os MTDs ex istentes e suas su­cess ivas divisões de d ivisões scri<J U ll1 iJ tarcfeJ intermin ável.

O autonomismo piq uete iro levou ao mov i­mento as teo ri as de John Ho lloway e do zapa­ti smo, sobre "muda r O mund o sem tomar o poder", o antipartidi smo e também a idea li­zação do "micro empreend imento". Como já apontamos, os movLmcntos 550 uma espécie de "cooperati vas" de di s tribu ição de " pl anes sociales" (auxílio) e de alimentos, e tam bém de pequena produção. Isso, que é conseqüência da lamentável necess idade de não morrer de fome, transforma-se em virtude para os autonomis tas.

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lJO - Os IIIovimclllos piqueteiros e o "Argefl/illazo"

Assim é fi rmada, como define Sáenz, "a u to­pia reacionári a da construção de relações soci­ais 'paralelas', de 'economias alternativas', que se considera que signifiquem bases materiais para a emanei pação dos trabalhadores, enquan­to as principais alavancas das forças produti­vas são deixadas em poder dos capita li stas." ISáenz,2003J

A orien tação do autonomismo leva o desem­pn.:gauu LI aceitar como definitiva sua mélrgi- I11.1-

ção da produção e portanto da classe traba lha­dora. Ela tenta a construção de uma economia da marginalidade, da qual faz acirrada defesa.

Mas a explosão do autonomismo teve a ver mais com uma "redução ao absurdo" de suas concepções "anti política" e "anti partido". Os­ca r Wi lde fa lava sobre "o amor que não se atre­ve a dizer se u nome". As organizações autonolllistas costumam ser, em verdade, par­tidos, organizações políticas, que não se atre­vem a reiv ind icar-se como tais. Dessa moncirLl,

cada um dos MTDs e/ou suas frações, como partidos "de fato", foram adotando posições políticas enfrentadas. Assim, por exemplo, parte do autonomismo, como é o caso do MTD Ev i­ta, aderiu ao governo de Kircluler.

Em gera l, hoje os diferentes MTDs, onde se encontra um arco-íris de posições do autono­mismo radical e o anarco-socia lismo até varian­tes populistas-peronistas e guevaristas, têm uma atitude que não é de apoio, mas também não é de enfrentamento em relação ao governo.

O Movi miento Territorial de Liberación (MTL), cujos dirigentes pertencem ao Partido Comunista, loca li za-se no campo da o pos ição ao governo. A pesar de não ser autonomista, o MTL também estimula e idea l iza a micro- pro­dução. Isso tem a ver com a orientação política do Partido Comunista de um "frente amplo" que inclua as PMES (pequenas e medianas em­presas). Mas a conversão dos desempregados em "pequenos e medianos empresá ri os" não parece atingir mais sucesso do que as "econo­mias a lternativas" p romov idas pelos d isdpu­los de Holloway e pelo comandan te Marcos.

O Movimiento lndependiente de jubi lados y Desocupados - IAposentados e desemprega­dosJ (Ml j D) é hoje uma das mais importantes co rrentes piqueteiras. Colocado na oposição ao

governo, seu d irigente, Raúl Castells, foi recen­temente preso duran te vári as semanas. O MIJD reúne e reflete os seto res socialmente mais m ar­

ginais do movimento, isto é, os desemprega­dos que já perderam seus v ínculos com a p ro­d ução e com a classe traball1adora. Em conse­qüência, Castells substitui as catego ri as de clas­se pelas de "pobres" e "ri cos". Essa espécie de "pobrismo" assume como absoluta a tendência ao empobrecimento que hoje existe na Argenti­na e em grande parte do mundo.

Sem reconhecer-se como membros d esem­pregados de uma ún ica classe trabalhadora, o Mlj D não desenvolve uma politica de unidade com os trabalhado res hoje empregados. Tam­bém não dá relevância ao reclam o de novos empregos, menos a inda à reivindicação de di ­minu ição da jornada de trabalho. O movimen­to de Caste IJs limita-se quase que exclus ivamen­te ao reclamo de auxílio econômico e de alimen­tação na sua po líti ca tanto em relação ao go­verno quanto a empresas como supermercados, cass inos ou McDonalds.

O Po lo Obrero é também um importan te movi mento. É o rien tado pe lo Partido O brero (PO), organ iz ação trotskista que tem afinidade com O PCO brasile iro. O PO desenvolveu uma co ncepção co nhecid a n a Argentina como "piqueteirismo", tema de po lêmica tanto nos movimentos de desempregad os qu an to n o movimento operá rio em geral e na esquerda.

Trata-se da teoria da "classe o perária pique­tei ra". Melh o r, de que os piquete iros cons titu­em, por si, a "vanguard a política" da classe tra­ba lhadora. Parafrasean do um d os seus prin­cipias ideó logos, seri am inclusive " um guia histórico para a classe operári a do mundo todo" e "a expressão histórica mais profunda que pro­duziu o mov i.mento operári o argentino". Para

essa concepção, os pique teiros passarão a re­presentar, sem poss ibi lidade de nenhuma con­corrência, a d ireção do movimento, já que são "os operár ios com consciência de classe". IAltami ra, 20021

Cremos que os movimentos de trabalhado­res desem pregados tiveram e têm uma im por­tância imensa. No en tanto, nem na Argentina nem seguramente em nenhum outro lugar do planeta, a classe trabalhadora ocu pada va i ad-

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.. lI isI6ria & Lllla c/c C / llUI'I' - III

mitir os desempregados como direção política, social e de suas lutas. A s ituação da classe tra­ba lhadora argentina é de fragmentação, em primeiro lugar entre empregados e desempre­gados, e depois, entre as clive rsas categorias de e mpregados - servidores públ icos, precá ri os, te rce irizados, etc. Na sua consciência cncontra­se profundamente fincada essa fragmentação, e por isso, é difícil, para muitos, reconhecer-se como urna classe só. O problema n50 reso l vido d a unidade de classe faz-se, em conseqüência, c ru cial. E os piqueteiros são parte, também, de u.ma vanguarda que se encontra a grande d is­tân cia das massas trabalhadoras.

O governo e a mídia têm tirado hóbi l pro­veito d essa brecha. Há uma campanha perma­nente que mostra os piqueteiros como lumpens q u e querem viver sem trabalhar, vagabu ndos q u e, com seus bloqueios de pontes e de estra­das impedem os bons traba lhad o res de irem para o serv iço. Essa campanha teve grande su­cesso nas classes méd ias e entre muitos traba­lhadores. A verd ade é que, longe de se rem a "vanguarda" ou a "direção" do mov imento ope­rá rio, os piqueteiros estão hoje perigosamente isolados. E logicamente, a auto-procl amação p iqueteiris ta não contribui para superar essa g rave s ituação.

O utros dois importan tes movi mentos com d ireção d e co rrentes trots kistas s50 o MST (Mov imiento Sin Trabajo "Teresa Vive"!"), diri ­gido pelo Mov imi ento Socia lis ta de los Tra­bajadores e a Frente de Trabajadores Comba­tivos (FTC), ori entada pe lo MAS (Movim iento a i Socia lismo). Dife rentemente das outras co r­ren tes reformi stas, autonom istlJ$, maoístas,

trots ki s tas, e tc. que agem entre os piqueteiros, o MST não desenvolveu uma reflexão sobre os problemas estratégicos e mesmo teó ri cos que se a presentam nes tes novos mov imentos soc i­a is. E le adota, então, um curso cr r6ti co, que na

p r á tica re du z esse m ov ime nto à lu ta "corporativa" por auxíl ios e comida.

A FTC e o MAS, pe lo contrári o, desenvo lve­

ra m uma concepção "antipiquete rista", que tem com o e ixo o prob lema da luta pe la uni dade de classe, começando pela unidade dos traba lha-

6 _ por Teresa Rodríguez, piqueteira assassinada pela repressão em Cut ra l Co.

dores com e sem emprego. Partem do pressu­pos to "cláss ico" de qu e se os setores fu nda­mentais da cl asse operári a ocupada não cntrn­rem em movimento, nenhuma "vanguard Ll pi­queteira" pode subs titUÍ-los. Nesse sentido, fo i e é uma preocupação central do FTC a luta por emprego genuíno e não meramente po r auxílio ao desemprego e po r comida.

Ass im, a FTC é a principal organização pi­queteira que apóia o Mov imicnto Nrlcional por la Reducción de la Jo rnada de Trabajo a 6 ho­ras. Esse mov imento fo i constituíd o neste ano, em to rno dos melrov i6ri os de Buenos Aires. Mediante uma greve que pa rali sou o Iranspor­te duran te ccrCíJ de umn scnKlna, conscgu irnm

impor a jornada de 6 ho ras sem redu ção sa la ri­n!. A conseqüênciLl imedinl-LI foi LI cri Llç50 de 500

novos empregos no mClrô. Depois desse triunfo, os traba lhado res do

melrô, junto com oulras exp ressões do s ind i­calismo class ista, organizações de desemprega­dos e pa rti dos de esquerd n, chamaram a desen­vo lver uma campanha nacion;)1 pelas 6 horas. O fato é que enquanlo qu ase a metade dos Ira­ba lhad o res argentinos es tá desempregada ou subempregad a, a maio ri a dos que lêm empre­go cumprem jo rnad;)s absurdas de doze e até dezesseis horas.

A g rande massa de desempregados é um ra­to r de pressão sobre os que a in da têm emp re­go, para e les não rec lamarcm pelo sa lário (que jil so freu uma perdn rCiJl de mLlis de Iri ntll po r

cento desde a desva lorização do peso em 2000 1), nem pe las cond ições de semi -esc ra,vi­d50 trrlbLll histrl . É uma iniciutivLl llluito impor­

tante de um se to r da vanguard;) oper6r ia de form ul rl r uma dcmLlnd Ll comulll tLl nlo pnrLl os traba lhadores com emp rego q uanto pa ra os desempregados. Se esse mov imento gnnhZl f

impulso, poderó começa r a se r reso lvida a pc­ri gosZl situnç50 dc iso lnlllcnl o LI que chcgLl rLl m

os mov imentos piqueteiros. •

~ __ ~ ____________________________________________________ ~C

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• História & Lula I , .. 'S -

Se as razões de Bush para invadir o Iraque são mais que

conhecidas, os motivos de Blair para apoiar as aventuras

im periais americanas são m enos óbvios.

Este artigo busca explicá-los, a partir das transformações

recentes no trabalhismo britânico.

Blair Bush y la guerra de Irak Francisco Domínguez

Francisco Domínguez cs Jcfc de I Deplo de Estud ios Lali noil lll c ri canos Y dirige eJ Ce nt ro de Est udio s

13rasilciios de In Univcrsidad de Middl escx.

17 Octubre de 2004, peri ódi co inglés n/c IndcpcndclIl publi có el artículo " EI juicio fina l" don­de se inform" cI resul t" do de las cxhaLl sti vLlS invcstig<lC io­nes dei I raq Su rvcy C rou p, la comisión designada por e1 presidente Bush encargada de

determinar si había o no nrmtlS de dcsl ru ccit'l n lll i1si va en I rak.

La conclusión cs !Zlpid Zl ri a: no scenconlraron

!li Zl rm as biológicLlS, ni quÍmiG1S, ni n~lcl cLlreS, !li sistelllas pa ri] dctollarl t.1 s o lJll ziJ rl as, !li pro­

g ri.l1nas para dcsarroll<:n l<J s, !li ningún lipo de armas prohibidas por las decisiones dei Consejo de Seguridad de b s Naciones Unidas. Como se d ice en Cran Bretafía: "Not a sausage'" (iN i siquiera una salch icha!). Es deci r, la guerra rue total mente innecesa ri a, se justifi có sobre b"ses totalmente b isas, y tanto Bush como Blai r y sus respectivos sccuaccs, sinlplclllcnte Ic minticron a sus parlamentos, a los ciudadanos de sus pa­íses, a las Naciones Unidas, "I mundo todo.

EI daiío político de es tas ' revclilcioncs' para Blair, guien repiti ó majadera y l11end azmenle

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114· llIoir 1311 .\'" Y /a guerra de /rak

que las inex is tentes arm as d e d es tru cc ión mas iva de Saddam podían ser des plegadas y d isparadas a los centros nerviosos dei Occiden­te como Londres en 45 minutos, es irreparable.

Blair se ha conve rtido en un cadáver políti ­co cn busca de Ull ataúd nlás o menos cÓmodo. Las verdaderas razo nes de Bush para invad ir I rak son conocidas, apoderarse de una de las fu entes de petróleo más importantes dei mun­d o co mo parte dei obje ti vo d e hegemo nía norteameri cana mundial to tal que fu e fonnu­lada en el "Proyecto para el Nuevo Siglo Nor­te-ameri cano" y publicada en 1997 y firmada por los fa náti cos n eocon servad ores de la adm ini s trac ión Bu sh como Dic k C he ney, Donald Rums feld, Pau l Wolfowitz, jeb Bush, Ell io t Abrams, Dan Quayle y Francis Fukuya ma e ntre o t ros. La cues ti ó n es Lcuá les son las razones d e Tony Blair, líde r Laboris ta, para plegarse tan entus iastamente a la cru zada de la extrema dcrecha norteameri cana contra Irak?

Para res ponder a esta pregunta es necesa rio comprende r a Blair y sus actos políticos en el contexto de la evolución dellaborismo britá ll.i co en los últimos anos. EI proyecto de Bla ir se inscribe en la lógica de derechi zación sos tenida de la bu rocracia política y s indi ca l labori s ta luego de las consecuti vas derrotas ideo lógicas y c1ectorales que el laborismo sufrió en ·18 afios de d o mini o co nse rvador d es d e ]979 co n Margaret Tha tche r y su sucesor, John Major, hasta la e lecc ió n de Blair en 1997. Es ta derechi zac ión acumulati va ha prod ucido una especie de contra rrevo lución ideo lóg ica en la que c l labo rismo se ha desecho incluso de los ropajes fo rma les que lo hadan una co rriente 'socia li sta' como la Cláusula IV de los estatu­tos dei pa rtid o que le compro melía a "nacio-

nalizar todos los m ed ios de producción, di s tribución e inte rcambio", y que implicó, además, el abandono de las tímidas políticas de redistribución de la renta con las que ellaborismo ha estado asociado historicamente en el pais.

Es este proceso e l que produce a Tony BI a ir. Bla ir no es laborista. Por sus instintos, s us predilecciones, su ideología y sus reflejos, Blair es un conservador casi de extrema derecha.

En esencia, e l 'b lai ris mo' cons is te e n la adopción g loba l de las concepcion es dei ' th atche ri s mo' d e recha zo a las políticas redistributivas dei pasado que financian e l es­tado de bienestar y que inc1uyen el derecho universal de la población a la atención de saJ ud gratis, el derecho a la educación prima ria y se­cundaria gratis, además de una ampLia variedad de beneficios sociaJes para los jubilados, las ma­dres solteras, los minusváLidos y otros grupos sociales.

EI 'blairismo' acepta la dicotomia reacciona­ria que considera la empresa privada eficiente y a la empresa pública ineficiente y despilfarra­dora, y que está a la base deI ceIo privatizador de Blair. Por último, el 'blairismo' consiste en una capituJación total - genuflexiva - ai impe­rialismo más fuerte en política internacional.

Para lograr esto último Blair cuenta con la relación militar especial entre Cran Bretana y Es tados Unidos que se remonta a los fines d e la Segunda Guerra Mundial cuando fue es tablecida por Winston Churchill y FrankJin Delano Rooseve lt. Los voceros d e i blairismo reconocen y admiten esta de rechización pero se apresuran a senalar que fue la que logró que e1 laborismo re tornara a i gob ie rno con una abrum adora mayoría parlam e ntaria qu e aumentó en la elección de 2001 .

Antecedentes: razones dei triunfo electoral

Un ti tul a r de The Econom is t, vocero dei ca­pital financiero británico, resumió con exactitud el momento político de la elección de Tony Bla ir yel Pa rtido Laboris ta ai gobiern o en 1997: " Los Tor ies me recen pe rder, cl Labori smo no mere­

ce triunfar" (7 Mayo, 1997). Es decir, los Con­se rvadores se habían d esacreditad o tanto y es taban tan divididos inte rna mente que e ra

impos ible que gana ran la e lección general de ]997. El descrédito provenía de tres fuentes. Los altos niveles d e corrupción s imbolizados por los juicios contra altos dirigentes dei partido Tory como jonathan Aitken, Minis tro d e Adqu isiciones de Defensa, quien te rminó con un a condena de cá rce l de 18 meses p o r corrupción, O jeffrey Archer, extravagan te Vice

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.. f-lixtária & I . ltla d e Cla s .H:.~ - 115

Presidente dei partido, ferviente thatcherista, candidato a Alcalde por Londres y otros im­portantes puestos en ai partido y gobierno, e inveterado mentiroso, que está todavía en la cárce l por perjurio. En segundo lugar, las colosales divisiones dei gobierno y dei partido respecto de la integración británica en la Unión Europea llevaron ai gobierno de John Major prácticamente a la parálisis.

En realidad, las divisiones por causa de Eu­ropa son tan profundas que exis te hasta ahora un estado de guerra civil inte rno larvado en aI partido, y que aflora toda vez que el asunto de Europa salta a la palestra. La tercera razón, p robablemente la más importante, era la enor­me impopularidad de las políticas económi cas derechistas deI gobierno de Jonh Majo r en relación al estado de bienestar, la educación, la salud, los impuestos, y casi todas lo demás á re­as de la vida nacional.

Retrospectivamente, el factor decis ivo que selló la derrota electoral conservadora de 1997 fue el Miércoles Negro, el 16 de Septiembre de 1992, cuando Norman La.mont, Minis tro de Econonnia de Major, con una pai idez mortal en e l rostro anunció ante las câmaras de TV que G ran Bretaiía se veíaen la obligación de retirarse d e i Mecanismo de Tasas de lntercambio (Ex change Rate Mechanism) de la Unión (entonces Comunidad) Europea (Times O nline, Septiembre 16, 2003). Desde ese mo­m e nto, los días de gobierno Co nservador es tuvieron contados.

A s í en Mayo de 1997 e l regocijo popular llenaba las calles de Gran Bretaiía con la notici a dei tri unfo abrumador deI Laborismo no tanto por la excitación de la L1egada de Tony Blair aI gobierno, sino fundamentalmente por la der­rota de los Tories. EI último de los gobie rnos lab o ris tas antes de Blair había terminado estre­p itosamente como consecuencia de i lI amado "Invierno deI Descontento" en 1979 en el cua l e l pais estaba dominado por huelgas obreras q ue se oponian a la política de austeridad que e l gobierno de James Callaghan trataba infructuosamente de imponer (Blake: 1997).

EI Laborismo se pasó toda la década de los 1980 repensándose estratégicamente y auto­enmendándose políticamente a fin de recu pe-

ra r lo que a juicio de sus líderes era una e lus iva e lcc tabilidad. G ran parte de ese pro fund o examen de conciencia Iabo ris ta apuntaba a b creación de pactos electorales, principalmente con los Liberalcs, partido burgués de centro, hi s tó ri camente hegemóni co en la burgues ía has ta 1913, fecha deI fin de su supremacía polí­ti ca y elcctoral (Dangerfi eld : 1997).

Se trataba de crea r una ali anza lo sufi ciente­mente amplia que no só lo ga ranti zará e l triun­fo electora l sobre los conservado res, s ino que su amplitud debía ev itar la ' ro tah va' en el gobierno entre Conservadores y Laboristas que supues ta mente habría predominado desde la segunda guerra mundial.

Thatcher lIega a i gobierno con una inmensa mayo ría parbmentar ia y enfrenta a un Labo­rismo desmorali zado, deso ri en tado ideo lógica­mente, a la defens iva en e l terreno políti co, y con una p ro po rció n s ignifi ca ti va d e la clase trabajado ra ca lificada que no só lo lo ha aban­dOllndo clcctoralmclHc sino que adcmás íJpOyD aI Conservadurismo.

Por otro lado, debido a la desastrosa políti ­ca económi ca de rechis ta de Ca ll aghan, los sectores tradicionales de i mov imicnto obrero y s indi cal - mineros, s iderúrg icos, empleados púb li cos y de la salud, por ejempl o - ti enen en 1979 una profund a d esco nfi an za hacia el

Laborismo y se han desplazado, críti camente, a la izquie rda. Thatcher recibe un es tado con una profunda cri s is fi sca l.

Montada en eI caba llo ideo lógi co moneta­rista, T hatchcr llcva rl:.í a céJbo una contrZl rrcvo­lución económica que tendrá profu ndos y retró­g rados efectos en la distribución fi sca l entre las c1 ascs, la relación entre empresa est-ata l y priva­da, el financiamiento dei estado de bienestar y la protección tradiciona l dei es tado hacia los sectores más desva lidos de la población como pens ionados, madres so lteras, desemplm dos, inmigrantes y los pobres en general.

Las políticas dei gobierno de Thatche r son, asimismo, enormemente benefic iosas pa ra el capita l nacional e internacional. Se trata de apli ­car el Marxismo ai revés, a saber, lograr una transferencia substancial de la riqueza y deI poder político desde los pobres a los ri cos. Lógicamente, el di scurso de Thatche r expresa

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116 - Blair IJush y la guerra de lrak

esta contrarrevolución e n la ideología que promueve y que se puede resumir en dos fra­ses que ella emitió e n sendos congresos dei Conservadurismo inglés: "EI derecho a ser de­sigual" y "Ia sociedad no ex iste, so lo e l individuo existe".

Los cambios estructurales introducidos por Thatcher y la facilidad con que los logra imple­mentar son asombrosos. EI ceIo contrar-refor­mador de su gobierno es intenso: todo lo que se puede p rivatiza r se privatiza, desde los ferro­carr iles, hasta la compaiiía d e te léfonos, induyendo el gas, eI agua potable, la elcctricidad, parte dei transporte público, el acero, indusive la vivienda barata estatal, una de las conquistas más importantes de la dase obrera y de los po­bres de Cran Bretafia (Hall & jacques: 1983).

Las reducciones presupuestarias a los gobiernos locales fueron bajo su primera ma­gistratura también extremadamente drásticas, ai mismo tiempo que se introducía legis lación para aplicar severas penas financieras a las municipalidades que intentaran compensar los deficits presupuestarios, así ocasionados, con impuestos locales. Simultáneamente, el go­bierno imponía reducciones a los subs idios a las industrias en declinarniento y buscaba cer­rar todo empresa que pudiera.

Coherentemente con lo anterior, cl gobierno introdujo legislación que res tringía draconiana­mente la acción de los s indicatos, entre las cuales se destaca la prohibición específica de hacer huel ga en so lidaridad co n otros trabajadores en confli cto. Thatcher triunfa de­cis ivamente en sus esfuerzos por debilitar ai mov imiento obrero organizado en 1984-85, fe­cha en que logra derrotar ai contingente más combativo, más radica l y mejor organizado dei si ndicalismo británico, los mineros dei carbón (Cambie: 1994).

Las consecuencias, como era de esperarse, fueron devastadoras. Amplias ca pas de tra­bajadores vieron su futuro completamente ar­ruinado debido a un aumento in crescendo deI desempleo. Para mediados de 1980 la cifra dei desempleo bordeaba los 6 millones.

Como ' incentivo' a los desempleados a en­contrar empleo, se redujo drásticamente los beneficios d ei estado de bienestar a los oficial-

mente registrados en las listas de parados. EI objetivo declarado de las políticas y la acción deI gobierno explicado por teóricos Conserva­dores como Keith joseph, mentor político-inte­lectual de Thatcher, era lograr el aumento de la riqueza producida a través de la reducción de los impues tos, lo que lIevaría a un incremento de la inversión productiva.

En otras palabras, se argumentaba que el país estaba en crisis debido a los altos niveles impositivos por causa deI gasto estatal, defi­nido como improductivo. En breve, para que eI país saliera adelante era necesario sino des­mantelar e l estado de bienestar por lo menos reducirlo s ignificativamente. Es decir, la solución estriba en que el rico fuese más rico y cl pobre más pobre. Una vez que el cre­cimiento económico ocurriera, el chorreo y las oportunidades ofrecidas ai individuo por el funcionarniento deI mercado haría mas prós­pera a toda la sociedad.

Sin embargo, para 1996-7 la total falta de cred ibilidad de los conservadores se aprecia en la descripción hecha por un perspicaz ob­servador que describió el momento deI triun­fo de Blair: "Cerca de un millón y medio de duefios de vivienda se encontraban comprimi­dos por los saldos negativos resultados de la caída dei valor d e sus casas más abajo que eI dei creciente valor de sus hipotecas. Por lo menos otro mi lIón han descubierto que sus privatizadas pensiones era un muy mal nego­cio. Muchos otros se preocupaban por sus pers­pectivas personales en un mercado de trabajo a medio tiempo crecientemente informalizado, o veía impotente la descomposición de la sa lud pública y la educación.

La arrogancia y la corrupción de los dipu­tados Conservadores, la auto-induJgencia de los patrones de las industrias recientemente priva­tizadas y, lo más importante de todo, las p ro­fundas divis iones sobre la unión monetaria eu­ropea, exp li can también la hemorragia dei apo­yo electoral Conservador." (B1ackburn: 1997, 4).

Por eilo, no sorprende que en la elección de 1997, los conservadores hayan obtenido apenas e132% dei voto popular, su peor resultado d es­de 1832 (Blackburn: 1997,3).

Blair hereda una nación completamente

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• lIiíllíria & I rlla de CltlHt! .~ - 117

transformada en la cua! el peso dei paradigma neoLiberal tanto e n lo ideológico como en lo económ.ico es abrumador. Las transformaciones

estructurales resultantes de 18 afios de gobierno Conservad or han metamorfoseado la sociedad, la políti ca, y la economia.

Principales componentes intelectuales dei 81airismo

L a idea central que ha animado la propagan da y gran parte de las políticas de Blair en

e l gobierno ha sido la de que el crecimiento eco nómico basado en e l funcionamiento dei mercado producirá los recursos que finan­c iarían una deseada, pe ro nunca definida, modernización .

Tal postura rompe con la tradi ción intelec­tual dei Laborismo. Ya en 1996, algunos obser­vadores indicaban cómo la adopción de la herencia neolibera l Tory por parte de Blair y s us partidarios iba a significar la matención de la su premacía dei mercado por sobre cualquier con s ideración social a objeto de aumentar la eficiencia productiva dei capital británico y as i incrementar su competitividad e n la a rena in­ternacional. Para esa fecha daba la impresión de que Bla.ir hada esfuerzos infructuosos para diferenciarse de los Tories y se argumentaba por algunos críticos de la izquie rda que e l Labo­rismo se auto-imponía restricciones en el ámbito económ.ico lo que resultaría en la no implemen­tación de s u programa d e modernizac ión (Coates: 1996, 3).

Si la modernización basa da en el libre funcionam iento dei mercado iba a producir el d eseado crecimiento económico que la finan­cia ría, ello no reduciría la enorme brecha entre ri cos y pobres nj las agudas diferenciaciones regionales, especialmente en tre el Norte y el Sur dei país. Este es otro aspecto de la ru ptu ra con los princ ipios tradicionales dei Laboris mo británi co, a saber, inte rvenci ó n es tata l para aminorar las diferencias sociales ex is tentes, mucho más necesarias y urgentes luego de cas i dos décadas de políticas económicas y sociales Con servadoras.

La verdad es que la adopción de la herencia Tory no resultó por force majeure s ino por que el equipo d.irigente que rodea a Blair concue rda profundamente con esos principios. Ya en 1994 los partidarios dei 'b lairismo' preparaban las bases intelectuales de la contrarrevolución en

e l pen sa mi e nto eco nó mi co so cia l d e i Labo ri smo. EI 'think-tank' Ins tituto para la In ves ti gación de las Politi cas Públicas (IPPR ­Instituto for Public Po li cy Research), preparó, e ntre mu chos o tros, d os d ocumentos, The justi ce Cap (EI Tamafio de la Injus ti cia) y Soci­al justi ce in a Chang ing Wo rld (La justi cia So­cial en un Mundo Cambiante) en los cuales se comb ina los conceptos de 'comunid ad ' y de ' oportunidad ' a objeto d e trata r d e hace r los principios dei 'Nuevo Laborismo' o ' blairi smo' co mpa tibles con aqu é ll os de i thatche ri s mo (Cohen: ·1994, 7).

En estos panfl e tos se consid em la opo rl·u­nidad de un Irabajador de conseguir un empleo bien pagado (algo cada vez mós raro para la inmensa mayoria de los prolcl"arios dei mundo) con la de un capitali sta o in vcrsioni s t~ p~r3 quicn

'una oportunidad' pucdc significiJr la ganzmcia de millones de libras esterlinas o dólares, como idénti cas. Los resultados d es ig ua les d e es ta ' igualdad de oportunidades' se justifi ca a los ojos de los blairis tas porque depende de las dec i­sioncs ' Iibres' dei indi viduo. Por e llo, nadie, es­pecialmente el eSI·ado, debe inmiscuirse en esle asunto tratando, po r ejemplo, de redislribuir d ingrcso pucsto que Zlten taría grLIvclllcnlc conlTil

el principio de la libertad . Aunque por caminos tortuosos y des pués de

aso mbrosas co nto rs io ncs inte lcc tuales los blairi s ta s lI egan a las mis mas conclus io nes reaccionarias que los partidari os de Von Hayc k o de Milton Friedmann : cua lquier inlenlo de redistribución a fa vor y como consccucnci" de la pres ión políti ca de los g rupos soc ia les c n desventaja quc crca la economia de mcrc"do, pone en peligro la li bc rt"d indi vid ual.

Por dlo, el Nuevo Laborismo rechaza un" política de impuestos progres ivos a fin de man­tener, mucho menos aumenta r, los servi cios y prestacioncs dei estado de bienestar. Subyacc en este argumento la idca de que, como en una economia de mercado la libertad y la igualdad

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IIK · IJla ir JJll.~")' la guerra de Imk

es tán en contradicción constante, eI principio más importante es la li bertad por lo que no to­das las desigualdades son injustificadas. Así, los prime ros g ru pos en se r atacados por las reducciones presupuestaria de Blair fueron los minusvá lidos y los pensionados, a los primeros de los cuaJcs eI gobierno quiso dejar sin bene­ficios socia les por medio de una redcfinición le­ga i de lo que es la incapacidad y, a los segun­dos, por medio de la abolición dei vínculo entre ingresos c inflación, lo que ha signifi cado una reducción drástica en sus pens iones (Jones: 1999).

Frank Fie ld, minis tro nombrado por Btnir para hacerse cargo de este aspecto de la lI amada moderni zación, es un admirador público dei sistema de pens iones privados en Chile, ai que regul a rmente elogia (Marquese: 1997, J27). EI Nuevo Laborismo de Blai r "es ta l vez mejo r entendido como thatcherismo 'suav izado' por eI Old Labour (Viejo Laborismo). Acepta, cas i enteramente, las po líti cas de i gob ie rno de Thatcher: la privati zación, des regu lación, mer­cados de trabajo ' f1 ex ibles', baja ca rga impo­sitiva, ' re formas' s in fin dei s istema educacio­nal, la caza de ' parás itos' de la seguridad social - más o menos la totalidad dei programa neo­libera l, en verdad, en a lgunos aspectos New Labou r ha ido más Iejos que los Conservado­res" (McKibbin: 2000).

Blair recibió aclamación cuando en uno de sus discursos electora les antes de "1 997, anunció que en su gobie rno hab ría tres pr io ridades "educa ti on, ed uca ti on and educa tion, in that o rde r" ("educación, educación y educación, en esc orden"). Sin embargo, ya en 1998, había presentado proposiciones detalladas a fin de e li minar la gra tuidad de la educación uni ver­s itari a, incluyend o la abo li ción de las becas universa les a la que los ciud adanos tenían de recho por ley. Ni s iq uie ra Thatche r, qu e tambi én rechaza ba la gratu id ad en toda la educación, no sólo la univers itaria, se atrev ió a cambiar es te principio igualitario por eI cual los individuos, independientemente de su ingreso, pueden tener acceso a la educación superi or. Ta les propuestas creadan dos tipos de sistemas univers itarios: uno elitista, en donde univers i­dades ta les como Oxford y Cambridge podrían cobra r los prec ios que quis iesen, mientras

muchas de las restantes uni vers idades de i país entrarían en un proceso inexorable de deca­dencia financiera que terminará en su quiebra total. (Watts: J 998)

Además, desde sus inicios e l gobierno de Blair adopta una política económica 'pruden te' bajo la dirección dei ministro d e econ omía, Gordon Brown, quien en ]997, anunció que de allí cn adelante la tasa bás ica de interés sería decidida por el Banco Central renunciando con ello a un instrumento clave para determinar la política económica de la nadón. Eddie George, Jefe dei Banco, nombrado durante e l pe ríodo Conservado r, se inclina po r una tasa de interés que beneficie a i capital financiero, lo que opera en perju icio de todas las dem ás dase sociales dei país, incluyendo el capita l industrial, y con consecuencias económkas negativas ya muy conoc id as de des in centiv o invers or, baj a tecnología y debilidad industrial .

Brown también se comprometió a mantener los planes de gasto de Kenneth C larke, ministro de economía dei gobierno Conservador de John Major (Blackburn: 1997, 9). Además, desde an­tes de la elección, Blair se había comprometido a no aumenta r los niveles de impues tos ni s iqu iera para aq uéllos individuos de ingresos exorbitantes, porque supuestarnente garanti­zaría la lea ltad e lecto ral de los trabajadores calificados que habían emigrado e lecto ralmente a los Tories y que en 1997 votaron masivamente por el Laborismo. En real idad, es apenas una velada excusa para mantener niveles impositivos escandalosamente favorables a los ricos.

Intelectualmente entonces, e l bla irismo es un intento de reacomodo ideológico deI labo rismo a i neo-l iberalismo thatche ris ta . No es más que una ' thatcherización' de las a ltas cúpulas dei Partid o Laboris ta . Es ta ope rac ió n po lí ti ca reacc io na ri a ha tenido va rios hitos entre los cua les es tán e l abando no de la pos ición de desarmamiento unilateral. Durante la década de 1980, la administración Reagan desplegó una nu eva generac ió n de mis il es ba lís ti cos in tercontinentales en Eu ropa Occidental a ob­jeto de pone r presión económico-miLitar con­tra la URSS y el bloque sovié tico lo que creó un movimiento de masas g igantesco: la Canlpaiia por e l Desarmamien to Nucl ear (C ND),

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T l-f iqtÍri" & L U((l (h CIO H l' .f

fuertemente apoyada po r el grueso dei Labo­rismo . Sin embargo, a objeto d e ha ce r a i labo ris mo 'elegible', Ne il Kinnock, líder en­tonces y que había sido un ferviente unilate­rali s ta, logró que e l Laboris mo a poya ra la posición norteameri cana de despliegue de los mis iJ es. La pos ición 'multilate ra lista' - desa r­rnamiento nuclear sólo cuando todos los demás se desarmasen - fue formulada por la corri ente laborista conocida como 'atlantiei sta', es dec ir, pro-norteameri cana. He aquí uno de los ante­ceden tes d e i pro norteamericanismo de Tony Blair. Por supuesto, no es e l úni co.

Tra dicionalmente, la je rarquía labo ris ta británica, especialmente cuando ha estado en cl gobierno, h a a poyad o a i impe ri a li s mo nortcamericano, como por ejemplo con el sóli­do a poyo que otorgó la admin is tració n de Haro ld Wilson a la guerra de Vielnam en los ·1970 aunq ue nunca ai nive l que lo ha hecho Blai r.

Parte dei programa blairis ta de ' moderni ­zaeión' es la "devolution", es deei r, el auto-go­biemo de los países (o regiones) que conforman el Reino Unido, a saber, Ing la terra, Escocia, Gales y eJ Norte de Irl anda. Luego de muchí­simas propuestas y planes, se ha logrado un parlamento en Gales en y Escoeia con poderes bas tante lirnüados en el terreno fi sca l, educaci­ona l, político y econÓmico.

Pese a su timidez, no se puede desconocer el progreso logrado por las demás nac ionalid a­des dentro dei estado-nación. En parte la razón de estas reformas cons titucio na les - que se asem ejan a la regionali zación dei estado esp,,!'io l con las Autonomias en Gali cia, Cata luíia y el País Vasco - e ra el desafio electo ral representa­do por el Partido Nacionalista Escocés (Scotti sh Nationalis t Party) y po r e l Partido Nacionali sta Ga les (Plaid Cymru) a las fo rtun as parl a­men tarias de i Laborismo.

En re lación a Gales debe destaca rse que Tony Bla ir impidi ó la expresión dem ocráti ca de i Laborismo e impuso su propio candidato, Allun Michacl, quien cas i pierde la eleceión de pres i­dente d e la asamblea parlamentaria de Ga les debid o al ausenti sm o e lectoral d e las bases laboristas, indi gnadas con la inte rfe rencia blairis ta, y que luego fue obligado a renuncia r. Finalmente, ellaborismo galés logró que su can-

didato, Ro rhi Mo rga n, re presentante de la izqu ierel a, fu ese elegido como presidente de la asamblca ga lesa, pos ició n que ocupa h"sta hoy día. En Irlanda dei Norte pese a la creación de una Asamblea Guberna ti va, poco progreso se ha log rado deb id o funda menta lm ente a la int rans igencia de los protes tan tes.

De todas fo rmas, la "devoluti on" en Irlanda de i No rt e la comenzó e l go bi e rno el e John M"yor, no el de Tony Blair. As i y todo, pese a rc form~H llSpcctos ccntralcs de la constitución el el Reino, la moderni zación de Tony Blai r en este aspecto es basta nte moderada pues el po­der gubcr namcnl Ll I real co ntinú LI cn Wes tmin s te r, es dec ir, en la Cas" de los Comunes, donde ha res id ido tradiciona lmen­te. Por élltimo, en e l terreno de la re forma cons­tituciollJI, cl gobic rn o hLl cumplid o con $ U

co mpromiso de crca r UIl Ll AS Llmb lcLl y UIl

Alca ide elegidos po r voto d irecto en Lo ndres. EI candidat o mós popular para este impo rt·ante puesto po lít ico e ra (y es) Ken Livi ngsto ne, labo rista de izquierd a, que ocupó una pos ición s imila r en la Municipa lidad de Londres bajo el gob ierno de Thatcher desde la cual reali zó una labor de efecti va o posición a las po líticas con­sc rvadorZl s, di scriminLltor ias, rZlci stZl s y ele aus te ridad thatchc ri stas (en rcalidad, precisa­mente po r esa labo r es que Livingstone es tan po pu lar hoy). Blair dirigió una feroz campalía po líti ca pa ra imp ed ir que c l lab o rismo nombrara a Livin gs lone como s u cand idato para Londres, hasta cl punto de manipular los resultados, imped ir votos, prohib ir m()ciones de nt ro d e i parti do lab o ri s ta e n Londres, obligando a Livi ngstone a presentarse como independientc cn una elección en que triu nfó <:lm pli':lIn cntc. Su rcc lccción en 1Z1s pr6x ill1<:ls clcccioncs cs cas i segou rL"L

La 'devolution' de Bla ir busca terminar la rcs po nsab il idad el el gobi erno cen tra l " n las cuesti ones económ icas y presupuestarias rela­cionadas con la ca pital y las regioncs. Afortu ­nadamente, en la cap ital, es tos objehvos han s id o fru s trad os g rac ias a la e lecc ió n co mo Alcaide de Ken Li v ings tone, pos ición desde la cua l ha hecho una oposición sostenida a i con­junto de los fines neo li be ra lcs de i gob ic rno incluyendo S ll S esfue rzos pa ra pri vatizar el

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12n - mair Dush y la g/l erra de lrak

transporte público. Los esfuerzos privatizado­res de Tony Blai r ya se expresaba n en 1999 cuand o intentaba que e l Labo ri smo y e l go­bicrn o aprobJran sus In iciativas de Financia­miento Pri vado (Priva te Funding Initiatives) que apuntaban a obtener invers ión privada en los servic ios púb li cos, hos pitalcs, escue las, empresas, etc (Mortimer: ·1999).

Debid o a la impopu laridad de las PF I, Blair d ec idió reno mbrar las y lI ama rl as 'P PP ', Sociedad Púb li co-Pri vada (Pr iva te- Publi c Partnership), que cl mov imiento obrero orga­ni zod o y el prop io Labor ismo co ntinúan rechozando (véase "London Lobour says no to PPP for tube", Socia lis t Campaign Croup News N"160, December 2000).

No l"Odo e l prog rama modern izado r de Blai r es rcaccionari o, sin embargo. BIJir anu nció la democra ti zac ión de i s is tema pa rl amentorio británico proponiendo la abo li ción de los "Iores hereditarios" de lo Casa de los Lores, la cámara a lta, no e lecta, dei parlamento .

La inme nso mayo rí<1 de los "Io res he redita rios" son Conservado res y rC<1cciona­ri os y han tradi cionalmente bloque<1do toda legisl<1ción progresista o radical proveniente de la Casa de los Comunes, la cámara de los dipu t<1d os elegidos en elecciones democrntic<1s.

El pl<1n origi na l apunt<1ba <1 que luego de la aboli ción de los "heredita ri os", la Casa de los Lores fuese com pletamente elccta en elecciones norma les. Sin emb<1rgo, Blair no hizo abso lu ta­mente nada a i respecto hasta eI 2001 cuando la pres ión de las bases labo ri stas se hi zo t<1n in ­tenso que le obligó a present<1r la leg isi<1 ción prometida, pe ro lo h izo de tal manera, que re­sulto en um fars<1 . EI gobie rno dejó en li bert<1d de acc ión <1 los d iput<1dos para vot<1 r como quis iesen y pefm itió que se presentaran varias propuestas de cómo real iza r la reforma si n re­comendar ninguna, producicndo una increíblc confusión paro deleite de los Conservadores y de los "Iores heredi tarios" y sus partidarios.

I ncl uso con promesas enormemente popu­lares ta les como la abol ición de la caza de la zo rra - un 'deporte' no sólo bruta l y sanguinario sino que profundamente reaccionario y feudal, incluid a en e l progra ma electoral de 1997 - el gobierno di ó tantas volteretas y esqui vó el tema

po r tantos anos, que la ley que terminó su pri­miendo esta práctica antediluviana sólo se logró pese, y no gracias, ai gobierno. Cuando de tra­ta de cuestiones progresistas el ceio moderni­zador de Blair deja mucho que desear.

Con respecto a Europa Blair se comprometió a un referéndum a objeto de adoptar la moneda única, el Euro. También se prometió adoptar los estándares ecológicos de la Unión Europea así como los principios y normas dei Capítulo So­cial de la Unión Europea. Como en otras áreas, la política dei gobierno con respecto a la Unión Europea no ha hecho mucho progreso, todo lo contrario. Blair, no se ha atrevido a o rganizar el anunciado referéndum y, aunque ha anunci­ado la rea li zac ión de tal refe réndum, lo h a hecllo, en nuestra opinión deliberadamente, en eI peor momento político posible.

Luego de la guerra de Irak y las diferencias con Francia y Alemania ai respecto y su postu ­ra servil hacia el gob ierno Bush, es improbable que la integración de Cran Bretana en la Unió n Eu ropea ocurra antes de la próxima e lección general en 2005. En Europa, Blair ha apoyado las pos iciones más reaccionarias com o s u oposición a esquemas franceses de creación de empleos en J 997 acusándoles de Euroesc1erosis (Marquese: 1997, J 27) Y promocionando la fl exi­bi lización de los mercados dei trabajo ai resto de Europa. Su de rechismo se notó tambié n en la alianza con Azna r y Berlusconi, representan­tes de la extrema derecha europea, con quien es Blai r se s iente mucho más a tono que con s us camaradas socialdemócratas.

En lo que respecta a los inmigrantes tanto dei Tercer Mundo como de Europa Oriental, la política dei gobierno Blai r se ha ido d e reclli ­zando en la misma medida en que la res is tencia dei movimiento obrero ai desmantelamiento dei estado de bienestar se ha ido endureciendo, a i punto de que en muchos aspectos es difíci l distinguiri a de la política dei National Front o dei British National Party, organizaciones fas­cistas y racistas de extrema derecha, cuya prin­cipal acti vidad es organizar ataques fís icos en contra de individuos o famiJias de colar y hacer campa;;a para que los inmigrantes, especia l­mente los de piei oscura, sean repatriados.

Co mo e n Francia bajo e l mini s te ri o d e

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lJiçl ó ria & Lu /a d I! Cfaueç -12Il

Pasqua, el cabaJlo de batalla deI gob ierno ha s ido e l 'gravísimo' problema de la inmigración 'masiva' _ Activistas anti-racistas como Kumar Murshid, concejal laboris ta y dirigente de la Asamblea Nacional Contra el Raci smo, ya en 1998, con apenas un afio de gob ierno Bla ir, denunciaba los intentos legislativos dei go­bie rno de limitar los derechos de los extranjeros que solicitaban as ilo en el país (Murshid: 1998).

Desde entonces, la línea dei gobierno se ha drechizado sos tenidamente hasta el punto de que el min.istro de I interior, Dav id Blu nkett, propone que los extranjeros que soliciten asi lo en Gran Bretaiía fuesen enviados lejos dei pa ís, probablemente a Marruecos, Argelia, M oldova o Albania, a campos de detención especialmente creados para este efceto (The Gllardinn, Octubre 11,2003).

La democracia inte rna deI partido laborista que, aunque d e ninguna manera perfec t·a, existía y era bas tante vigorosa y vibran te. A su lIegada aJ lide razgo dei partido en 1994 Bla ir introdujo cambios estructurales cuyo objetivo era exti rpar y e rradicar las ins tancias de demo­cracia inte rna que se remontan aI ori gen hi stó­rico deI Laborismo. Según un observador, " Ia dirección labo ris ta parece decidida a establece r un grado de contro l dentro de su partido s in precedentes en la historia moderna británica". Peter Mair (2000, 21)

EI control burocrático de Elair sobre el par­tido Laborista es tal que Mair lo equipa ra en forma, a la concepción mussol ini ana de "un parti to, una voce" (op.cit., 26), y ha ll evado a algunos de sus ex partida rios a sugerir que 13lair es un "control freak", que traduce más o me­nos como "fanático anormal de i co ntro l" (Hutton: 2000), y a los partidarios dei peri ód i­co de la izquie rda laboris ta, Socia li st Campaign Gro up News, a d en unciar la pe rsec ució n 'macarthys ta' de Blair en contra de concejales, diputados y miembros de la izquierda dentro dei partido (N"133, Junio de 1998).

En los h echos, Blair ha logrado bu rocrat izar el funcionamiento deI partido en áreas cruciales ta les com o la e lección de I Comité Ejecuti vo

adonal, tradicionalmente foco de opos ición a la djrección debido a que tiene representan­tes de los sindicatos afiliados a I partid o, de

va ri os g rupos de p res ión (muje res, mino rías étni cas, gays), y de los grupos loc<lles dei part i­do, y que previo a la 'modern ización' tenían el derecho de cues ti o na r las propues tas de la dirección, presentar propuestas a lte rnativas y defenderi as en el congreso anua l. Los grupos loca1cs, adc!11 ás, tenían cl dcrccho excl usivo ~

e legir el candidato a diputado de su di strito. La dirección ha también reforzado la d isci­

plina de los d i putados labori stas cuanel o se trata ele vo tos importantes rela c io nados co n reducciones de i gasto público a la educación, saluel, o pensiones. La impo rtancia y cJ peso de los s ind icatos afiliad os en el funcionam iento inte rn o dei pa rtielo y el peso ele su voto en el congreso anua l han s ido reeluciel os. Esto es de­cisivo en la lcgitimación ele elccis iones relacio­nilelas con el estaelo ele b ienestilr y c1 sector pú ­bli co en general.

EI gab inete tilmbién estó sometido a una di s­c iplin a de hierro y no hil y es paci o pa ra la di sens ión, eleba tes e incluso dudas. 13lilir exige lea ltad tol"a l y absolu ta. Hasta hace poco, e l contro l el e Blai r sob re el gab ine te era Wn abso­luto que las reun iones semana les de gab inete dUfwban norma lmente jl11cdia horw!

EI p rog rama ele Blai r, s in e mbargo, hacc necesaria no só lo el estrangulamiento de la de­mocracia interna dei Labo ri smo, s ino que la democracia libera l en el estado mismo. EI obje­tivo de Blai r y sus secuaces es la des- ideo lo­g izació n el e \;] po lí ti ca britónica as í como la marginali zación el el Labo ri smo mismo el e lils deci s iones po líti cas y económicas cruciales (en­traela a la Unión Europea, elesman telamiento eld Estaelo ele 13ienes tar, la alianza milita r es trat é­gica con los Estaelos Unidos, el ecis ioncs sobre s i apoyar O no la polít ica guerrcris ta de i imperi o nortcameri cano, etc). Se trata el e hacc r lo mós bo rrosas pos ibles las diferencias ieleo lóg icils Y políti cas entre los partiel os. EI éx ito el e es ta cstrateg ia pcrmitirÍíJ gilranti z.Jr nlayo ríil s pa rlamcntarias de rechi s tas que c ru cen las barrcras partidariLls tradiciona lcs.

Blair busca obviar la o posició n elel Labo­ris mo Inismo a su progriJ lnZl dcrcchistLl )'Z1 sca cn su forma parlalncntZlriJ, sindical o de I;) b<lsC dei partido. Sigu ienel o la misma lógica dere­chista y anti -elemocráticJ, Blair trató el e ev ita r

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122 . Biair /Jus" y la guerra de lrak

por todos los medios la di scus ión parlamentaria sobre s i apoyar o no la g ue rra contra Irak. Fue ron solamente las masivas manifestaciones de oposición, tan to dentro como fuera dei par­lamento, las que le obligaron a ello.

Como se sabe, más de 2 miUones marcharon contra la guerra contra I rak el 15 de Febrero de 2003, en la marcha más grande de la historia dei país; la o posición parlamentari a sobrepasó los 200 d ipu tados y fue sólo gracias a los votos de los diputados Conservadores que Bla ir logró rnayoría. Además, 81air - hasta ahora sin éx ito­ha propuesto que los pa rtidos sean financi ados centralmen te por el estado y no por sus afi lia­dos. Significaría cl fin de los partidos políti cos de masa bajo algún tipo de control y escrutínio democrá ti co que es la consecuencia lógica (y conscient'e) de i objetivo perseguido por Blair: el surg imiento de un s is tema políti co d es­politi zado y des-ideo logizado (Abbolt: 2002).

Los med ios de comuni cac ión bri tánicos se han a ulo-convencido y proyeclan la imagen de que pese a i derechismo de Bla ir cl electorado nacional continúa apoyándo le, o, temiendo una vuelta de los Conservad o res y prefi ere aceptar más o menos pas ivame nte la po líti ca d e i

gobierno actual. La verdad, como lo demuestra la oposición a la guerra contra lral<, es bastante diferente. Partes importantes dei electorado tra­di cional laborista en los bastiones obreros d ei norte dei país o en los distritos pobres d e las grandes ciudades, combate ai blairismo abste­niéndose de votar. EI número de votantes en la elección que eligió a Blair en 1997 fue más o me nos un 50%, tota l dei cual e l labori s m o obtuvo apenas el 43%.

Estas cifras no refl ejan una aprobación e u­fóri ca de la política o ideología de Blair. Más aún, en las e lecciones a i parlame nto europeo dei 10 de Junio de 1999, el Laborismo recibió só lo e l 28% d e los votos en una e lección en donde apenas el 23'Y., de i e lectorado se d ig nó votar.

Peor aún, en la e lección complementaria a diputado por Hartlepool, en el norte de Ing la­terra, en Octubre 2004, e l candidato laboris ta triunfó con una mayoría inmensamente redu­cida d e 2003 votos. Hartlepool es un bas tión obre ro d e i laborismo cuya mayoría e ra de '14 .571 votos (Ande rson: 1999). La razón fun­dame ntaI es e l des pres tigio d e Blair y s u gobierno por la guerra contra I rak.

EI Blairismo, Europa y los Estados Unidos: la guerra permanente

EI apoyo total, absolu to e incondicional de Blair a la po lítica guerreri s ta de la admi­

ni strac ión Bush en Ira k confirma el carácter pro­fundamente reacc ionario de la posición dei lí­de r labo ris ta .

En 1997, algunos ingcnuos pensaban que cl gobi crno de Blair, d e a lguna mancra, repre­sentaba una ruptura con e l thatche ri smo, e l neo libera li smo y con la po líti ca exteri or pro­nortcamC'ri ca na. Se cs pcraba Ul1 giro drásti co de Blai r hacia Europa y un d istanciamiento de los peo res as pec tos d e la políti ca ex te ri o r nortc8mcri caniJ.

Sin emba rgo, ya e n 1998, secto res d e la izquierda laborista notaban con preocupación cI apoyo irres tri cto de Bla ir ai bombardeo de Sudán, luego de ataques terrori stas a las emba­jadas no rteame ri canas en Na iro bi y Dar-es­SaJaam (Benn: 1999). Pre-anunciando su apoyo a Bush, la política de Blair en relación a Kosovo

fue idéntica a la de Clinton: intervención por medios económicos y principalmente milita res en los Balcanes esencialmente contra Se rbia a objeto d e d es membrar completame nte la Fede ración Yugoslava. Blai r también apoyo el bombardeo de Yugoslavia en Ab ril de 1999 pese ai enorme descontento y oposición expresado po r los diputados labo ristas y las mu ch as manifestaciones en contra.

Es inte resa nte contrastar e l ce io anti ­dictatorial de Blai r en relación a Milosevic y su cas i completo distanciamiento en la práctica dei deba te re lacionado con la ex tradi c ió n de Pinochet. En forma típica, Blair, recurrió a una re tó ri ca críti ca en e l ano 1999 cuando e n e l cong reso an ua l d e i labori smo se refirió a Pinochet como una persona 'incalif icable' y a los Tories como el ' partido de Pinochet', po r cl apoyo que éstos le brindaron ai arrestado ex­di ctador. Como sabemos, el dictador fue envia-

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IIÜ / tÍria & LU/li de C/anl')' . 123 I

do de vueIta a C hile gracias a las man iobras legales y po liticas de Blair y su ministro de Rela­don es Exte riores, Jack Straw quien había hecho activa campana en e l pasado en contra de las violadones de los derechos humanos en Chile (O'Shau ggn essy: 1999). Y por si hu bo alguna dud a respecto dei carácte r de la política de Blair, la p rolon gadón innecesaria de la detención dei ex-dictad or chileno Augusto Pinochet en Lon­dres po r 18 meses se explica fáci lmente por la decisión po litica deI gobiem o de Bla;r de tratar de no senta r un precedente que permitiera ex­tra di ta r y juzga r a indi viduos culpables de violadones de los derechos humanos.

Esto aplica principalmente a altos personeros de adminis traciones no rteaJne ri canas pasadas y presentes que han cometido de litos de lesa hurnanidad en el mundo, como por ejemplo, Henry J(jss inger, quien como Ministro de Re­laciones Ex te rio res de Nixon, fu I.' cl ave, entre otras pred osuras, en el m ontaje de la Operación Cóndor, o rien tada a coord inar los es fuerzos de las dictaduras argen t ina, bras ilciia, pa raguaya, u ruguaya y chilena, para acres ta r, desapa recer y ases inar a o ponentes de esos regímenes que residian en esos países en los 1970.

Por supuesto que Blair apoyó incond icio­nalmente y con tropas la invas ión no rteame­ri cana de Afganistán luego de la voladu ra de las to rres gem elas en Nueva York 1.'1 "1 ·1 de Sep t i e mbre de 200] . Com o sa bem os, e l derrocarniento dei Ta libán po r las fuerzas com­binadas de EE. UU. y C ran Bretat'ia, !levó a la Coalició n d e i Norte, dominadas por sci'iores de la gu e rra y traficantes de o pi o, ai poder en 1.'51.'

pa upérrimo pa ís, lo que ha p roduci do una fragmentación pre-feudal dei país en territori os o regio nes controlados po r caciques mili ta res que 50n tan o m ás reaccionarios que cl TDlibán.

Los nive les de v io lenc ia han aumen tado enormem ente en e l país, en donde en la prácti ca predomina la ley dei más fuerte y en donde uno de los únicos índ ices pos itivos de la s ituación presen te es e l a umen to g iga ntesco de la prod u cción d e o p io. Afganistán proveI.' 75% de la hero ína que se consume en el mu ndo (TI1c Gllardian, N o viembre 26, 2001 ).

BJa ir representa un marcado giro a la derecha y que se resume en e l intento de terminar con

el socialismo pa rl amen tar io que ha caracte ri ­zado la ex is tencia de i Laborismo desde su fundación en 1900. Blai r está metamo rfoseando 1.'1 soc ialismo pa rlamenta ri o de i Labo ri smo haciéndolo cada vez mós pa rl amen tar io y cada menos socialista (Pa ni txh & Lcys: 1997). Bla;r ­a i igua l que Thatcher - ex presa la ap remiante necesidad dei cap il·al fi nanciero bri tá ni co de desmantelar el estado de bienestar a objeto de ser más competitivo tanto en el terreno europeo como en la concurrencia con Estados Unidos y el japón.

EI gob ierno Blair y su Nuevo Laborismo 1.'5

un intento vcladamente d is fra zado de conti ­nuidad con 1.'1 thatcherismo, e! neolibcral ismo y e! apoyo a la al ianza 'a tlanti cis ta ' en lre los Estados Unidos y Cran Bretalla.

EI problema es que tan lo e l desmante la­miento dei estado de bicnestar, como la guerra de Irak se csl"6n convirticndo cn la sepu lt ura en que van a terminar reposando los huesos dei cadáver polí tico de! otro ra todopoderoso Tony Blai r. Su situación po lít ica es crili ca y los d ipu­tados y d irigentes s indica les labori stas hablan ab iertamente de la neces idad de recmplaza rlo como Primer Min istro.

La cuestión es (anles o después de la próxi ­ma c1ección genera l en Mayo de 2005? Luego dei reciente congreso de! partido labor ista - que estuvo dominado por 1.'1 raplo de Ken l3igley, trabajado r britán ico que fu I.' finalmen te decapi­tado po r sus captores irakíes - Blair fue tralado quirllrgicamcntc por arriLmij) ca rcliaG:L

EI periód ico TI1c Inrlcpcndcnt dei 2 de Oclubrc de 2004, in fonnaba de i hccho con una folo de un Tony Bla ir sonrien le y p rctend idamen le sa ludable y despreocupado con eI tilular: " EI esta de vue lt·a ... (Pero por cuando tiempo?" Como todo pu lil icastro acabado y p rofunda­mente desacred itad o, Blair se aferra a s u puesteci lo con todo lo que !"iene y se embarca, prácticamente cuda SemiJllw, cn .1 lgulla inicií)li ­

va I mayor ', a objeto de cvitiJr cl tCIllLl I rllk, aLlIlque con resu ltados miserables. I3lai r se ha convertido en una figura lament·ablc que hoy está pretend iend o que se interesa por África, ma llana por los pens ionados britán icos, ayer por ei problema de la obesidad en C ran Bretai;a, incluso ha comprado una residencia de lujo en

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124 - lllair IJush )' III guerra de lrak

el centro de Londres de 8.65 millones, lo que sea, con tal de que no se hable de Irak. Mientras antes se vaya aI basurero de la histori a tanto mejor para la humanjdad .

hi s to ri a d e la humanidad ha pasad o por d urisimas pruebas.

EI Laborismo, la izquierda, los trabajado res y todos los elementos progresistas de la nació n tienen la posibilidad no sólo de deshacerse de Tony Blair, un pobre diablo que parecia ofrecer una alternativa estratégica ai thatcherismo y que es apenas un lacayo despreciable, s ino que la hi storia les ha ofrecido la increíble oportunidad de romper o seve ramente reducir la subordi­nación britárUca a la alianza transatlántica con los Estados Unidos. Seria la mejor contribución deI pueblo británico a la cons trucción d e un mundo mejor. •

Lo que está realmente en juego, es la relación especial transatlántica entre Gran Bretafia y los Estados Unjdos. Nunca an tes esta relación im­perialista y militarista se había visto sometida a nive les d e tens ión y de despresti g io como ahora con la guerra de Irak.

NU.nca d esde la Segu nda Guerra Mundia l Estados Unidos hab ía s ido tan impopular en un pa ís cuya fidelidad como sacio menor de I imperialismo más poderoso y más brutal de la

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• HistÚria & Luta de Classes - 1251

RESENHAS

A historiografia envergonhada

Mário Maestri e Mário Augusto Jako bsk ind

Nas duas últimas décadas, produziu-se uma ri ca bibliografia sobre o perío­do militar, em que se destacam as obras acadêrn icas, os ensaios memori a­listas e, o que não é comum, traba lhos científi cos produzidas por protago­

tagonistas dos fatos. Ainda não contamos, porém, com um trabalho de fô lego que sintetize e aprofunde essa rica produção, explicitando o seu sentido profundo.

Compreende-se portanto a expectativa. Sob a prestigiosa d lancela da ed itora Companhia das Letras, Elio Gaspari, jorna lis ta de grande des taq ue e influência, apresentou ao público bras ileiro os dois primeiros dos cinco vo lumes de sua hi s­tória da ditadura bras ileira, produto de 'luase 20 anos de pesquisa e do mergul ho em arquivos e depoimentos privi legiados, por sinal ced idos g raciosamente por dois relevantes protagonistas do período que o auto r aborda: Ernesto Geisel, um dos generais d e plantão do pós-64, e o co ronel Go lbery do Couto e Si lva (e n50 general, com o a m.ídia o intitu la erradamente), uma espéc ie de eminência parda dos governos CasteUo Branco e do próprio Geisel, para não falar dos primeiros anos da gestão d o ditador João Batista Figueiredo.

Apesar de Elio Gaspari afirmar que em "nenhum momento" passou por sua cabeça "escrever uma história da ditad ura", a ambiciosa iniciativa bibliogrMica constitui nos fatos um ensaio de inte rpretação geral do reg ime militar, de 1964 a 1979, centrado em uma g rande e candente questão: as razões essenciais do i ng res­so e da salda do regime ditatorial. (pág. 20)

Q ualidades e id iossincrasias

O volume A ditadllra envergonhada discute o go lpe mil ita r e os governos Cas tcl lo Branco e Costa e Silva. A ditadllra escancarada, o governo Médici, e a consolidação da repressão e da tortura à luta armada. Os tomos finais contarão "as vidas de Geisel e Golbery, a trama que os levou de vo lta ao Plana lto e os quatro primeiros anos do governo de Geisel" (pág. 20).

A ditadura envergonhada abre-se com In trodução, que antecipa momento da tra­ma central do trabalho, a ser esmiuçada nos volumes fina is. Ou seja, a deposição

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126 - Re.fenllO: A hisloriogmfia envergonhada

do ministro da Guerra Sylvio Frota, episódio singular da consolidação do projeto de "abertura lenta, gradual e segura" de Geisel e Golbery.

Para surpresa geral, no final da Introdução O autor apresenta a tese geral de sua interpretação. Ou seja, as razões profundas que crê terem levado ao fim da ditadura: "Para quem quiser cortar caminho na busca do motivo por que Geisel e Golbery desmontaram a ditadura, a resposta é simples, porque o regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem, era uma grande bagunça" (pág. 4]).

No momento em que a produção capitalis ta em consolidação erodia a ordem feudal, a história politica explicou os fatos históricos como produto da ação pro­videnciaI de protagonis tas excelentes. Num reflexo da crença na capacidade prometéica do indivíduo, a história foi vista como o resultado da ação e da von­tade de protagonistas singulares, como fora anteriormente compreendida como expressão da vontade divina.

A Revolução Francesa dissolveu a visão da ação providencial do homem na his tó ri a ao explicitar a trama social e o comportamento humano como produtos de forças sociais profundas das quais os protagonistas têm apenas consciência parcia l. Desvelar e explicar esses nexos subterrâneos tornou-se função perspícua da historiografia científica.

Portanto, é com surpresa que os leitores penetram nessa espécie de máquina do tempo que os projeta em um universo analitico quase oitocentista, onde os fatos históricos resolvem-se sobretudo a partir da decisão, das qualidades e das idioss incrasias dos grandes atores políticos. Um cenário em que as massas popu­lares não aparecem nem mesmo como fi/,'Urantes.

Simplismo constrangedor

Visão da história que leva o autor, ao modo da literatu.ra romântica do século 19, a traça r breves perfis psicológicos dos grandes homens, para deduzir deles sumariamente seus comportamentos políticos e, assim, assentar a explicação de momentos históricos singulares das idiossincrasias pessoais dos personagens ex­celentes.

Entre as razões da vitória do golpe de ] 964 estariam a decisão dos gol pistas e a pachorra de Goulart que, a pa rti.r de duas referências bibliográficas e uma frase de efe ito, é retratado como ser político vacilante e mediocre, quase abjeto. "Sua biog rafia raquíti ca fazia dele um dos mais despreparados e primitivos governantes da his tória nacional. Seus prazeres estavam na trama política e em pernas, de cavalos ou de coristas" (pág. 46).

No mesm o sentido, o furacão guerrilheiro que varreu as Américas nos anos 1960 e 1970, nem sempre impuls ionado pela Organização Latino-Americana de Sol ida riedade, é apresentado como uma espécie de iniciativa pessoal de Fidel Castro, preocupado em conqu istar maior destaque individual e exorcizar uma vida monótona.

"O g rande plano da revolução continental dava-lhe uma plataforma de políti­ca externa que ga ranti a a Cuba uma projeção internacional [ ... ]. Assegurava a Fidel um relevo que o co locava na primeira fila dos governadores do Terceiro Mundo e o afastava do perigo de uma monótona existência de prefeitão grisalho de uma ditadura caribenha, fantasiado de rebelde." (pág. 197)

Nessa narrativa de um simplismo às vezes constrangedor, o golpe de ]964 deixa de ser a imposição radical pelas classes hegemônicas de novo padrão de acumulação, em detrimento dos trabalhadores, projeto que já fracassara, em ] 954

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• 1I j.\' t Órill & L //la ti!' C lll BI' .\'

e 1961, d evido à insurre ição popu lar nascida do suicídio de Cetúlio e do movi­mento pe la Legalidade. Elio Caspari praticamente absolve o empresariado nacio­nal da responsabilidade po lítica da conso lidação da ditadu ra, transformando-a em um su cesso essencialmente militar (pág. 236, 11 ).

Elogio áu li co

Perfilhando a velha apologia gol pista, a ditad ura de 64 é apresentada como resposta preventiva ao golpe esquerdista em preparação: "I-b via do is golpes em marcha. O de jango viria amparado no 'dispositivo mili tar ' e nas bases sindi cais, que cairiam [s ic] sobre o Congresso, obrigando-o a aprova r um pacote de re fo r­mas e a mudança das regras do jogo da sucessão pres idencia l" (pág. 5"1), argu ­mento este que indica também em que campo ideo lógico o autor se s itua.

Elio Caspari não apenas igua la arbitra ri amente as partes em confronto como pronuncia-se por uma delas, ao explica r o golpe como reação m ili tar compreens í­vel: "A revo lta dos marinheiros, na semana anter ior, e o discurso de jango [ ... 1, na véspera, d esestabiJizaram as Forças Armadas. A organização mil itar, basmda em princípios simples, claros e antigos, estava em processo de disso lução. Hav iam s ido abalad as a di sciplina e a hierarq uia" I pág. 91 1·

O movimento popular seria um sedutor matreiro pronto a atent ar às castas v ir­tudes cívicas de oficialidade que, d ian te do perigo, levantou-se briosamente pa ra p ô r fim à "desmorali zação" que conheciam as forças a rmadas. Interpretação quase bucólica construída sobre a obliteração das décadas anterio res de conspiração por parte dessa mesma oficialidade contra as forças e os interesses popu lares.

No desenrolar da p roposta da intervenção correti va, de objeti vos democráti­cos, p a ra p ô r fim à "bagunça" popula r, o auto r entoa contido mas pode roso elo­g io áu.lico ao ditador Castello Branco, personagem que resplandece fortemente ao ser contrastado com O pe rfil vil e debocho que se traça de João Coubrt, o presidente expatri ado.

JlG uerra pre ve ntiva"

Se Jango e ra rústico, inculto e femee iro desbragado, espécie de lago da políti ca nacional, "Caste llo e ra um homem de hábitos s imples, porém refinados, li a Anatole France e o uvia Mendelssohn" (pág. 139). Mais ainda, almoçava "no póJlácio La­ranjeiras com o poeta Manue l Bandeira, ia às peças de teatro de Tônia Ca n cro, freq üentava as chatas sessões de posse" na ABL (pág. 221) .

Para jus tifica r as violências castelli stas, Caspari surra nas vagas das conjeturas arbitrárias. Devido à " radica lização que levara o confli to para fora do círcul o estr ito das cúpulas política e milita r, a vitóri a não podia ex tinguir-se com a depo­sição do presidente. Fosse qual fosse o lado vitori oso, ao seu triunfo co rresponderia um expurgo po lítico, milita r e administrati vo" (pág. 121).

A equação proposta é simples. Se Jango Cou lart ti vesse vencido seu hipotéti co golpe, teria pra ticado hipotéti cas violências contra os vencidos. Portanto, as vio­lências imag inadas de jango jus tificam as violências reai s do caste llismo como "parte do jogo bruto p rovocado pela radica lização dos últimos anos" (pág. 132).

A compreensão do devir his tórico como resultado da ação dos grandes prota­gonistas impede qualquer contextua lização efeti va do governo Castello Branco e, mais grave ainda, das rupturas e superações materializadas pela ascensão de Costa e Si lva e de Médici ao governo, determinadas e determinantes das forças sociais e econômicas em tensão.

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128· Resenha: A hisloriografia envergonhada

As justificativas de Gaspari de alguma forma remetem ao contexto atual da "guerra preventiva" do presidente norte-americano George W. Bush em sua in­cursão militar contra o Iraque. Para evitar que o outro lado ataque justifica-se urna ação militar preventiva. Ou seja, "as violências imaginadas de Jango justifi­cam as violências reais do castel1ismo" ... O que é isso se não a própria justificati­va do bote para a chamada guerra preventiva?

Tropeço político

Imediatamente após lembrar que as "contorções institucionais do regime de 1964 pouco deveram às característ icas dos generais-presidentes", Gaspari acres­centa que Castello era homem culto e refinado e "Costa e Silva se orgulhava de só ler palavras cruzadas. Médici freqüentava estádios de futebol com um radinho de pilha no ouvido e um cigarro na boca" (págs. 139, 128, Il) .

Já foram desveladas as razões fundamentais da fragilização da base de apoio do governo Castel10 Branco. Seguindo o receituário ianque, ele impôs O arrodlo salaria l; cortou subsíd ios; restringiu o crédito, liberou as remessas de lucro etc. Essas medidas ensejaram recessão, desemprego, queda do poder aquisitivo, que­da da taxa de acumulação de capita is.

A orientação liberal castellista, que sonhava com a privatização das empresas públ icas, determinou forte descontentamento dos segmentos populares opos tos ao golpe e das classes médias que o hav iam apoiad o. Motivou a oposição de capitais industriai s nacionai s, grande sustentáculo da regime. Tudo isso enquan­to o mundo aprestava-se a explodir embalado pelos sucessos franceses de 1968.

Para Elio Gaspari, o prosseguimento da ditadura após Castel10 Branco é uma derrapagem fun cional militar sem conteúdo e a reação social de 1967-8, urna crise política evacuada analiticamente com algumas orações bem torneadas. "Quando o consulado de Castello Branco começava a apagar suas luzes, a panela do movi­mento estudantil explodiu, e o governo teve [sic] de sai r às ruas de cassetete na mão" (pág. 232). "O país sangrava em virtude das punições de 1964 e das mutila­ções eleito rais de 65" (pág. 278).

A co mplexa metamorfose da ord em libe ra l-autoritário em ditatori a l desenvo lvimenti sta, embalada pela cri se econômico-social, é apresentada como resultado da ação de protagonistas que determinaram os rumos do Brasil, devido ao que fizeram ou deixa ram de fazer. "Castello sofria [s ic] procurando preservar alguma forma de lega lidade, mas Costa e Silva, seu sucessor, numa só vacilação, precip itou o país na ditadura [ .. ]" (pág. 139).

A rad ica l transição do regime libera l-autoritário ao autoritário-desenvolvi­menti sta - apoiado no capi tal mundial, no mercado externo e na superexploração do traba lho - torna-se tropeço político de ditadura que se queri a provisória (en­vergon hada) em ditadura que se pretendi a eterna (escancarada). Tudo devido à radicali zação da esquerda civi l e da direita militar. "O que se deu no Araguaia fo i o paroxismo do choque dos radicalismos ideológicos que [ ... ] influenciaram a v ida política brasileira por quase uma década" (pág. 406, 11).

Inesperados desvios morais

A negação rad ica l da central idade dos sucessos sócio,econômicos - o "milagre econômico" - na radicalização e consolidação da ditadura, por um lado, e na derrota da oposição de esquerda, por outro, no início dos anos 1970, característi­ca marcante da narrativa de Eli o Gaspari, constitui elemento necessário ao qua-

...

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e

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ciro analítico e à explicação essencial dos fenômenos propostos. A ignorância das transformaçôes estru tura is ensejadas pela ditadura viabili za

a apresentação de sua dissolução, não como fenômeno complexo nascido do es­gotamento do novo padrão de acumulação, quando da crise capita li sta mundial de meados de 1970, mas como mero resultado d;] vontade de Geisel e Go lbery, paladinos d o enredo gaspariano, desgostosos com a "bagunç;]" militar dos anos Costa e Silva-Garrastazú Médi ci! Ei s aí uma s implific;]ção hi stóri ca não mramen­te repetida pe los ideólogos de 64, protago nistas ou não dos acontecimentos d;]­quele período.

Nessa altura da narrativa, com eça a ficar cld ro que a propos ta "bagunç;]" t;] l­vez não se encontre nos fenômenos his tó ri cos, mas na su;] representação. "Resta­beleceu -se a ordem com Geise l porque, de todos os pres identes militares, ele foi o único a perceber que, antes de qualquer projeto pa I íti co, era preciso res t;]be lece r a ordem militar" (pág. 142).

Elio Gaspari paga caro a ignorância da complexidade do processo hi stó ri co objetivo. A ditadura escancarada, segundo tomo d;] su;] longa narrativ;], ded ic;]do sobretudo ao governo Garrastazu Médici, to rna-se rel ato da luta arm;]cld d;] es­querda, da repressão da direita e do início da lut;] contm ;] tortur;], de grande aridez, mesmo em re lação ao primeiro vo lume.

A queda de inte resse da narrati v;] não se deve ;]0 f;] to de que a opos ição ;] rr11él ­

da, a repressão e a tortura já tenham s ido ;]bo rd;]das, em fo rn", ex;] usti vas, em trabalhos mag níficos, como o clássico Combate nas trevas, de Jacob Gorender, e o monumental Projeto Brasil: nunca ruais. Essas ques tôes se rão ainda objeto de mül ­tiplas análises m onog ráficas e sínteses gera is cri at ivas.

Esse empobrecimento deve-se sobre tudo a uma descrição circuns tanciada d;] luta armada, d a repressão, da tortura e de seu combate desp id ;] de seus sentidos e conteúdos sociais e históri cos profundos, quase como se fossem inespe r;]dos desvios m o rais o u comportamentais da no rmalidade.

Caçando bruxas

Esse vo lume quase ignora a população. Isso, pilra não falar dos es te reót ipos assacados contra um d os lados da contenda ideo lógicil (a esq uerda). O autu r ig ua la os que optaram pe lo caminho da contestação a rmada, muitas vezes até por falt·a de outras poss ibilidades em função do fecham en to total do reg ime de 64, aos m ovimentos te rro ri s tas qu e surg iram ao longo do tempo. Pe la co ncepção gaspariana, fatos hi stó ri cos como a Revolução Francesa, por exemplo, não pnssa­riam de um "movimento terrori stzl" , du mesma forrna que ns lutas de indepen­dência dos o primidos pe las potências co loniais. Nem mesmo o herói d;] hi stóri a brasileira, Tiradentes, seri a poupado em su;] luta contr;] os im postos d;] Coroa Portuguesa. Ou o q ue fal ar da epopéia da res is tência anti fascis ta na Itólia, n;] França, na Grécia e as lutas de um modo gera l con tr;] forças de ocupação estran­geiras? A diferença entre ta is movimentos e a luta armada do início do anos 70 é que os acontecimentos acima mencionados foram vi tori osos, e aq ui no Br;]s il o esquema militar conseguiu desbaratar os contestadores através de uma violenta repressão. A con cepção gaspariana, que é a versão d icia l dos que se julgam ven­

cedores, ig nora o beabá da hi stó ri a segundo o 'lual para que uma novn ordem se estabeleça é necessária a ruptura, que pode muitas vezes ocorrer de formas não

tão pacíficas. As razões propos tas para a radica li zação da esquerda são s implistas e e liti stas.

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130 - Resenha: A his toriogra fia envergonhada

Procurando "despoliti zar as uni versidades", Castello extinguiu a UNE, o que colocou "gradativamente o movi mento estudantil na clandestinidade, juntando-o aos partidos comunistas, ao radicalismo brizolista e, sobretudo, às centenas de sargentos e subofidais que haviam sido expulsos das Forças Armadas" (pág. 226).

A fi xação obsessiva na abordagem da tortura, presente no segundo volume, parece nascer da sua compreensão como o grande pecado capital de regime cri ticado, não pelo que fez, mas pelo modo que o fez. "Durante todo o ano de 1968 a máquina de informações e repressão do governo patrocinou O seu próprio terrorismo e edificou o go lpe do AI-5, mas não cuidou da segurança nacional" (pág. 354).

Não se denwlCia lun regime autoritário, ao qual se reconhecem justificativas sociais, mas sim O fato de ter superado o que se julga moralmente permitido e, sobretudo, de se ter pro longado além do tempo aval iado como necessário: "O governo acreditava em bruxa, elas efetivamente exis tiam, e ele se dispunha a caçá-las, mas o problema não estava nas bruxas, nlas s im na maneira como as caça,-,:am" (pág. 222).

Horror ao desvio --

Também a linguagem de Gaspari registra o corte liberal de discurso que realiza o elogio da destruição da "bagunça" nacional-desenvolvimentista por Castello e a apolo­gia da obra de Geisel e Golbery. Um discurso que retoma amiúde vocábu los e conceitos paridos e fec undados pelos ideólogos da direita de então e, assim, seus conteúdos essenciais.

Os sindica tos e associações são "fi locomunistas" e "monitoradas pelo Partido Co­munista" (págs. 81, 11). A esqu erda "desmoralizava" e promovia a "anarquia" e a "indi sc iplina" nas fo rças armadas, obri ga ndo "oficiais" a suportarem "situação vexató ri a" (págs. 50, 91, 11). A mobilização dos marujos é "baderna dos marinheiros"; os sargen tos (antigo lpistas, uma "sargentada"; a mobilização popular, uma "grande bade rna" (págs. 140, 84, 227) . A Tricontinental, uma "grande quermesse [ ... 1 do esquerdismo latino-americano" (pág. 197).

Há lapsos lingüísticos quase saborosos, como a adoção da retórica da repressão - "A FNFi, no Rio de Janeiro, fora um dos mais agitados ninhos de subversão universitária" - e a concessão à ditadura do ca ráte r "revolucionário" que acalentou possuir - 'l .. ] a ordem revo lucionária teve de conviver tanto com os corruptos como com os torquemadas 1 .. 1" (págs. 224, 135).

Com A ditadura envergonhada e A di tadura escancarada, Elio Gaspari inicia ambicioso projeto de recuperação historiográfi ca de cunho liberal da ditadura militar. Procura sepa­rar o núcleo central, que vê como positivo - O inicio do fim da Era Vargas; os governos Castell o Branco e Geisel -, do secundári o e acessório, que aponta como nega tivo - o govern o desenvolvimentista de Costa e Si Iva e Médici, os excessos da repressão.

Para não deixar dúvidas sobre sua filiação ao princípio do direito absoluto da circu­lação dos capitais, registra na Ex plicação inicial seu horror ao desvio desenvolvimentista ao liberali smo casteJli sta: "[ ... 1 por conta da insana política de reserva de mercado, os dois primeiros Icomputadores utilizados para redigir as obras] dlegaram à minha mesa pe­los desvãos da alfândega" (pág. 18).

Homenagem aos qitadores

O poder da frase de efeito é poderoso recurso para sugeriF desdobramentos comple­xos que o texto jornalístico, dev ido a sua curta extensão e a sua abordagem superficial, não é obrigado a desenvolver. Na narrativa jornalística, que navega em geral no mar da trivialidade, a abo rdagem da essência dos fenômenos é normalmente objetivo apenas

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l/i$lória &: l.ul a d e C/auo

enunciado_ Para não se envergonhar, a narrativa historiográfica deve desenvol­ver seu relato perseguindo inexoravelmente a reconstitui ção dos fatos e a expli­cação dos seus nexos profundos_ Nesse percurso, a so lução literári a é fo rma de expressão que não expunge a imprescindível exigência do desventramento dos conteúdos_

A conclusão da leitura dos dois presentes livros permite ao leitor responder à pe rgunta inicial do autor sobre as razões de Geisel e Go lbe ry guardarem e entre­garem a e le seus arquivos, concedendo-lhe o privilégio de um longo convívio e demoradas entrevistas_ Possivelmente sonhavam com a coroação de suas obras pessoais por biografia parida por escritor de recursos solidári os com suas ações_ E sequer essa homenagem faltou aos ditadores_ •

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li sli> ri , ,", u la d' Iasscs - 1331

RESENHAS

Os quilombos na dinâmica social do Brasil

Adelmir Fiabani

Em 2001, a EDUFAL publicou tardiamente o li v ro Os quilombos na dinâm ica social do Brasil, coordenado por Clóvis Moura para celebrar o transcurso dos 300 anos da destruição da confederação dos quilombos de Pa lmares.!' )

A publicação não teve o mesmo sucesso de Liberdade por 11111 fiam, escrito prati ca­mente na mesma época e publicado um ano após aquele transcu rso. O fato do lançamento ter passado em boa parte despercebido não diminui sua qualidade e justifica esse comentário tardio.

São 378 páginas escritas por diferentes autores que Clóvis Moura agrupa em três partes. Na primeira, "Textos Introd utórios", temos v isão geral dos qui lombos através diversas Ciências Sociais visão geral dos quilombos; na segunda, "Os qu ilombos do século XV I ao século XIX", registra-se a presença do trabalhador escravizado em diversas regiões do Brasil ; na última, "A herança qui lombola", aborda-se a questão dos remanescentes dos qui lombos como uma "continuidade viva das lu tas que os escravos rebeldes detonaram durante o transcurso da escra­vidão". (3)

Atemos nosso comentário às duas primeiras partes, visto tratarem mais direta­mente a questão his tórica do quilombo.Em 1948, o sociólogo Clóvis MouriJ ini ­ciou pesquisa sobre a luta dos trabal1ladores escrav izados no Bras il, concluindo seu trabalho em 1952. Entretantu, Rebeliões da senzala: quiJombos, insurreições, guerrilhas fo i publicado apenas em 1959, pela ed itora Zumbi. Em seus trabalhos, Moura assinalou a presença dominante do trabaUlador escravizado na fo rmação do passado colonial brasileiro, classificando sua luta como luta de classes.

a sumária "apresentação", Clóvis Moura propõe que "o problema dos qu i­lombos no Brasi l poucas vezes fo i tratad o como um processo permanente que expressava a luta de classes no contexto escravista, mas simples man ifestações de

1 _ MOURA, Clóvis. (Org.1 Os quilombos na dinâmica social do Brasil. Maceió : EdUFAI, 200 1. 378 pp . 2 _ REIS, J.J. & GOMES, Flávio dos Santos. (Org.(. Liberdade por um tio: história dos quilombos no Brasif. São Paulo: Companhia

das letras, 1996. J _ MOURA, Clóvis. 10rg.1 Os quilombos na dinâmica social do Brasil. Maceió: EDUFAl. 200 1. p. 8.

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134 · Rese"ha: Os quilombos na di nfl mica social do Brasil

volta às ins titui ções africanas, expressões cultura is e formas através das quais o africano reconstruiu aqui as suas diversas cu lturas". !')

Uma visão sobre o passado colonial brasileiro que contrapõe a tradicional matriz culturali sta, parcialmente retomada na última década.

Na primeira parte do livro, publicou-se tex to, de 1953, do antropólogo Edison Carne iro, ced ido por dona Madalena Ca rneiro, que abre as di scussões sobre o tema. Por sua vez, o antropólogo Kabenguele Munanga discorre sobre a origem do qui lombo em Áfri ca, subsidiand o a análi se da trajetória do q1lilombo no Brasil. Para ele, o quilombo bras ileiro é uma "cópia do quilombo africano recons truído pelos escrav izados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela implantação de uma outra es trutura po lítica na qual se encontraram todos os oprimidos".!')

O antropólogo e historiador Carl os Magno Guimarães e a bióloga Juliana de Souza Cardoso traba lharam a arqueologia do quilombo, abordando, entre outras ques tões, a arqui tetura, a alimentação e a arte no quilombo, mais precisamente em Minas Gerais. O historiado r Waldir Freitas Oliveira escréveu sobre a "Econo­mia de Pa lmares" d ialogando com au to res como ClÓvis Moura, Décio Freitas, Duvitil iano Ramos, Édison Carneiro, Ivan Alves Filho. Ele propôs o ca ráter pre­cá ri o da economia quilombola, ou seja, "que os cons tantes ataques sofridos pelos quilombos, visando sua destruição e forçando seus habitantes a abandonarem, com freqüência, seus campos de cultivo, os quai s, uma vez conquistados, eram, imed ia tamente que imados, teriam impedido essa abundância, que poderia, con­tudo, haver ex istir em épocas especiais".!")

O geógrafo e hi storiado r Manuel Correia de Andrade discorreu sobre a "Geo­grafia do quilombo", concluindo que, no in ício, os quilombos eram "bem mais iso lados", passando com O tempo a loca liza r-se próximo às aglomerações urba­nas, milrcando todo o território naciona l. "É fa lsa a idéia de que o quilombo era uma sociedade fechada, sem contatos exteriores, sendo formado por negros". (7) Correia de Andrade propõe que o isolamen to garantiu a existência de comunida­des iso ladas a inda hoje.(8)

O his toriador Luiz Sávio de Almeida discorreu sobre o "Quilombo e Política", enquadrando-o no contexto da luta de classes. Para ele, "os quilombos foram cons truídos para enfrenta rem a sociedade senhori a l e branca", comprovando, po rtanto, condição política, já que "toda luta quilombola foi conscientemente a rti cu lada e arq uite tada". Havia duas vias pa ra o trabalhador escravizado, "com­por-se ou rebelar-se" .!')

Sáv io a fas ta-se da corrente cu lturali sta ao afirmar que o quilombo pressupõe forma determinada de organização, constituindo um "modo complexo de o pera r o enfrentamento pressupondo uma sociedade que deveria negar o senhoria l pe­Jos seus fundiJlncntos c nisto se demonstrava como êl lternativa e em oposição".(IO)

Luiz Sáv io de Almeida propõe que "não se pode pensar o quilombo compon­do; deve-se operar com a realidade do quilombo se contrapondo".!II)

Es tabelece-se uma tese: "1···1 a forma de luta va ria conjunturalmente, de acor-

4 - Id ib. p. 7.

5 - MUNANGA. Kabenguele. ~Origem e histórico do quilombo em África~ . In MOURA. Os quilombos f. . .]. Op cit. p. 30. 6 - OLIVEIRA, Waldir Freitas. -Eco nomia de Palmares·, In MOURA. Os quilombos [. . .]. Op til. p. 68. 7 - ANDRADE, Manuel Correia de. -Geografia do quilombo·, In MOURA. Os quilombos [. . .}. Op cit. p. 8lo 8 - Id ib. p. 85. 9 - ALMEIDA. Luiz Sávio de. -Quilombo e política-. ln MOURA. Os quilombos [. .. }. Op cit. p. 89. 10 - Id ib. p.90. l1 - Loccit.

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• I!i.ttória & I.uta d i! çla .B'I~ ç

do com os rumos que vão sendo assumidos pela sociedade bras il eira e, a í, o pró­prio quilombo passa a revelar-se como um processo estratégico". "O quilombo e ra uma sociedade cujo aparecimento estava diretamente implicado com a ordem estratégica das forças contrapostas" .!I2)

Clóvis Moura escreveu a "quilombagem como expressão de protesto rad ic" I". Para ele, "o quilombo era uma sociedade alternntiva e paralela de trabalho li vre encravada no conjunto do escravismo colonial que cons tituía a sociedade m"ior institucionalizada".(13) A radicalidade proposta por Moura confirma a negação do quilombola quanto à apropriação violenta de sua força de trabalho.

Segundo Moura, "o quilombo aparecerá como unidade de protesto e de expe­riência social, de resistência e reelaboração dos valores sociais e cu ltur" is do es­cravo em todas as partes em que a sociedade latifundiário-escravista se manifes­toU".(I4) O quilombola era "um ser novo, contraposto ao escravo e que somente enquanto quiJombola podia assim pensar e sobretudo agir". I") Pa ra o sociólogo, "o quiJombola é o homem que adquire, pela sua posição radica l, a sua liberdade".I")

Cada quilombo linha suas singularidades

No entanto, alguns elementos lhes eram comuns: a produção e o trab" lho comunitário. A mais importante função social do quilombo seri " "a ruptum radi­cal, em todos os níveis, com o sistema co lonial-escravi sta, os seus representantes, a sua economia e os seus valores radicai s e ideológicos". II7)

Não poderíamos portanto compreender O quilombo sem ser "v isto na sua to­tal idade de negação radical ao s istema" .(I8)

Moura entendeu que "economicamente o seu sistema de trabalho executado por homens livres é outra negação ao traba lho escra vo praticado nos engenhos, nos latifúndios e fazendas. [ ... ] é também uma negação à monocultura de expo r­tação, produzindo uma policultura para o consumo".(19)

Moura ve ta a possibilidade da negociação. A liberdade plena passaria pe lo rompimento com o escravismo. Negando sua condição de ca ti vo, no uni verso quilombola o trabalhador escrav izado "se integrava completamente na essência plena de sua cidadania e tinha a sua humanidade restaurada e resga tada" . A de­cisão radical de romper com o ca ti veiro por s i só a fas ta a poss ibilidade de nego­ciação, pois, NO acordo com o inilnigo era a primeirJ etapa da sua rccscfi1 vizlJç50, da vo lta ao cativeiro".(2U)

Na segunda parte, apresenta-se síntese da guerra aos quilombolas no Gr50-Pará, realizada por Vicente Sa lles. Maria Raimunda Araújo rea li zou traba lho su­mário sobre os quilombos no Maranhão; Martiniano J. Sil va, sobre os quilombos no Brasil Central; Josemir Camilo de Melo, sobre os quilombos do CatLl c~, em Pernambuco; Ariosva ldo Figueiredo, sobre os quilombos em Sergipe; Pedro To­más Pedreira, sobre os quilombos baianos; Aécio Villar de Aq uino, sobre os qu ilombos na Paraíba; Mário Maes tri sobre os quilombos no Ri o Grande do Su l.

11 - Id ib. p.95. 13 - MOURA, Clóvis. -A Quilombagem como expressão de protesto radicar~ . ln MOURA . Os quilombos f. .l. Op cit. p.103. 14 - loc cit.; 15 -Id ib. p.104. 16 - Id ib. p.106. 17 - Id ib. p.105. 18 - loc cit 19 - Loc err. 20 -loc cito

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136 . Resellha ; Os quilombos na dinumica social do Brasil

Tal abo rdagem ressalta que o fenômeno abrangeu todo o território bras ileiro, produto incontestável da res istência do trabalhador escravizado a uma mesma estrutura social escravista. Quanto aos quilombos em São Paulo, Clóvis Moura identificou o fenômeno e assina lou as diferentes fases, propondo que nos mo­mentos finai s do escravismo "os escravos que fugiam, por meio da proteção e da ação dos ca i fases não tiveram liberdade de vender sua força de trabalho de forma independente, li vre, sim, através de intermediários que estabeleciam as normas, inclusive o valor do salário, de acordo com os inte resses dos fazendeiros".(21)

Dispos ição transitória da Constituição de 1988 determinou a titulação das ter­ras de remanescentes de quilombos no Bras il, ensejando nos anos seguinte movi­mento pe la rea li zação dessa dete rminação em forma mais ampla possível. Ou seja, que não excluisse as comunidades rurais negras de origens históricas não­qu i lombolas. Uma realidade que propiciou verdadeiro processo de invenção da tradição, ao propor a literal defini ção como quilombo de toda e qualquer comuni­dade rura l negra nascida antes ou após a Abolição.

Na te rce ira parte, o li vro aborda di ve rsas ins tâncias do movimento pela ti tulari zação das terras quilombolas. Em a "herança quilombola", Eliane O'Dwyer abordou os remanescentes na fronteira amazônica e Lúcia M.M. Andrade, na ba­cia do ri o Trombetas. Neusa de Gusmão discute a "herança quilombola: negros, terras e direitos"; Dimas da Silva, o "problema jurídico das comunidades negras remanescentes de qui lombos"; Maria Guimarães, os "mecanismos legais para titulação das te rras do remanescentes do quilombos" e Walter Ceneviva, os "quilombos na Constituição" •

21 - MOURA, Clóvis . "São Paulo: da qui lombagem rad ica l à conc iliaç ão abolicionista", In MOURA. Os quilombos {...}. Op cit. p.181.

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, Resenhas ': Os quilombos na dinâmica social do Brasil (Adelmir Fiabani) • , A historiografia envergonhada (Mário Maestri e Mário Augusto Jakobskind)