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III Semana de Ciência Política Universidade Federal de São Carlos 27 a 29 de abril de 2015 ATOS SIGILOSOS DE ESTADO E O DIREITO FUNDAMENTAL À INFORMAÇÃO Guilherme Gonzaga Bento 1 RESUMO: O Segredo de Estado tem se tornado um tema cada vez mais presente em tempos de constitucionalidade democrática, sendo homologado por vários diplomas normativos em todo o mundo, e, aqui, no Brasil, aparece com traços fortes na Lei n. 12.527/11(doravante Lei de Acesso à Informação), e posto como prática governamental na figura do Executivo, acolhendo elementos estruturantes da teoria da Razão de Estado. Nessa esteira, o presente artigo se propõe a (re) pensar alguns pontos diante dos paradoxos existentes na Lei 12.527/11 (Lei de Acesso à Informação). Pensar o direito fundamental de acesso à informação a partir da ótica do princípio republicano da publicidade (art. 37, CF/88) é talvez, romper com as amarras da Razão de Estado, e suas implicações (secretismo), ocasião em que seria necessário estabelecer uma ruptura com o modus operandi do sistema político vigente (projeto político de poder) que se fundamenta em teorias antidemocráticas, reduzindo o espaço de fiscalidade e consequentemente a possibilidade de participação dos sujeitos constitucionais. PALAVRAS-CHAVE: Segredo de Estado. Democracia. Direito à informação. Lei de acesso à informação. 1 Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Triângulo Mineiro da Universidade de Uberaba e acadêmico do 3º período de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro . Pós- graduando em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUC/MG. [email protected]

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27 a 29 de abril de 2015

ATOS SIGILOSOS DE ESTADO E O DIREITO FUNDAMENTAL À

INFORMAÇÃO

Guilherme Gonzaga Bento1

RESUMO: O Segredo de Estado tem se tornado um tema cada vez mais presente em

tempos de constitucionalidade democrática, sendo homologado por vários diplomas

normativos em todo o mundo, e, aqui, no Brasil, aparece com traços fortes na Lei n.

12.527/11(doravante Lei de Acesso à Informação), e posto como prática governamental

na figura do Executivo, acolhendo elementos estruturantes da teoria da Razão de Estado.

Nessa esteira, o presente artigo se propõe a (re) pensar alguns pontos diante dos paradoxos

existentes na Lei 12.527/11 (Lei de Acesso à Informação). Pensar o direito fundamental

de acesso à informação a partir da ótica do princípio republicano da publicidade (art. 37,

CF/88) é talvez, romper com as amarras da Razão de Estado, e suas implicações

(secretismo), ocasião em que seria necessário estabelecer uma ruptura com o modus

operandi do sistema político vigente (projeto político de poder) que se fundamenta em

teorias antidemocráticas, reduzindo o espaço de fiscalidade e consequentemente a

possibilidade de participação dos sujeitos constitucionais.

PALAVRAS-CHAVE: Segredo de Estado. Democracia. Direito à informação. Lei de

acesso à informação.

1 Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Triângulo Mineiro da Universidade de

Uberaba e acadêmico do 3º período de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro –. Pós-

graduando em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG.

[email protected]

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1 O SEGREDO NA DEMOCRACIA – UMA INTRODUÇÃO

O Segredo de Estado tão pouco discutido têm sido objeto de incursões práticas

na sociedade, por meio de diversos fatos ocorridos no Brasil e no mundo. Entretanto, tema

tão afeto ao cotidiano político e social do país, não tem sido motivo de grandes estudos

pela comunidade acadêmica.

As sessões e votações secretas no Congresso Nacional, talvez sejam o exemplo

mais presente neste estado de ocultações do segredo. 2 O tão famigerado voto secreto na

cassação do mandato parlamentar, agora extinto3 ensejou inúmeras discussões éticas

acerca da crise de representação na democracia participativa. Por outro lado, ainda em

âmbito legislativo o Segredo de Estado se faz presente em instituições seculares4, que não

deixam de encarnar suas tradições em detrimento de um estado efetivamente democrático.

Na esteira de tentar demarcar o tema dos atos sigilosos na democracia, e o objeto

do nosso estudo, é fundamental colocar o surgimento da Lei de Acesso à Informação (Lei

12.527/11) que vislumbrou, após anos de cipoal normativo sobre o tema, estabelecer um

marco jurídico sobre o direito fundamental à informação.5 A relação entre os atos

sigilosos de Estado e o direito fundamental à informação presente no referido diploma

normativo, sem dúvida será o objeto do presente artigo. A Lei de Acesso à Informação,

de antemão, cria um paradoxo em suas diretrizes e objetivos, contrastados com sua

procedimentalidade.

2 Tal questão foi objeto de estudo por nós em outra ocasião, na qual analisamos a presença do segredo de

Estado no Congresso Nacional. Os resultados foram apresentados no XIV SEMIC-UNIUBE intitulado de

Sessões Secretas na Teoria da Constitucionalidade Democrática. 3 Extinto pela emenda constitucional nº 76/13. 4 Faz-se referência as prerrogativas ainda existentes para que o Senado Federal escolha Ministros do STF,

Presidente do Banco Central e exonere o Procurador Geral da República, por meio do voto secreto. 5 Inúmeros foram às legislações que trataram sobre o segredo e o acesso à informação. Entre elas nos

destaca Juliano Heinen (2014, p.44) a Lei 9.051/95 e os decretos 4.553/02 e 5.301/04, este último que

regulamentou a MP 228/04 e o primeiro denominado de Lei do Sigilo Eterno.

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Dessa forma cabe pontuar que a presente pesquisa foi realizada por meio de uma

revisão de literatura que nas palavras das professoras Silva e Menezes (2001, p.37) resulta

do processo de pesquisa e análise das referências bibliográficas sobre a temática e o

problema de pesquisa escolhidos. Dessa forma, analisamos e cruzamos vasta bibliografia

tanto pátria como estrangeira.

É necessário debater nas próximas linhas as origens teóricas em que se origina e

evolui o sigilo e contornar os aspectos que permeiam o direito fundamental à informação

em tempos de projeto do Estado Democrático.

2 RAZÃO DE ESTADO: O SEGREDO SE LEGÍTIMA

Na concepção do jurista português Miguel Lopes Romão em sua esclarecedora

obra A Bem do Estado – Publicidade e Segredo na formação e na divulgação das Leis, o

marco histórico do inicio do segredo está na necessidade dos monarcas absolutistas em

proteger o poder que possuem ou ainda na aquisição de um poder existente, “[...] todo o

segredo político é, em certo sentido, um ‛segredo de Estado’, porque visa, em última

análise, proteger o poder ou adquirir o poder” (2005, p.73).

O que daria na lição de Romão, base para o uso do segredo dentro da esfera e

dos atos estatais seria a “Teoria da Razão de Estado”, que proporciona ao governante

(príncipe) base legal para suas ações com vistas à aquisição ou manutenção do poder em

suas mãos.

A visão colocada, e da qual compactuamos, nos leva em referência aos

ensinamentos de Nicolau Maquiavel, em seu clássico O Príncipe (2009, p.75), em que

guia os Príncipes (governantes) na manutenção do poder após sua conquista. Os atos

sigilosos de Estado entram nessa esteira como medium de se manter o poder nas mãos de

quem o detém.

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Falamos, portanto, da doutrina ou teoria da “Razão de Estado” como base teórica

inicial, em termos históricos, que dará sustentação a inserção do segredo na orbita estatal,

como forma justificada de manter a segurança interna do Estado, do que na verdade é

uma maneira de se perpetuar no poder.

Em obra organizada por Michelangelo Bovero, intitulada Teoria Geral da

Política – A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos, Norberto Bobbio (2000, p.399)

escreve:

Durante séculos, foi considerado essencial para a arte de governo o uso do

segredo. Um dos capítulos que não podiam faltar nos tratados de política, num

período que dura muitos séculos (de Maquiavel a Hegel) e que se costuma

chamar de razão de Estado, referia-se aos modos, formas, circunstâncias,

e razões do sigilo.” (grifo nosso)

Como muito bem acentua Norberto Bobbio em seu dicionário de Política “[...] o

problema real, nem sempre de fácil solução, de distinguir entre comportamentos

diversamente motivados, que usam como pretexto ou álibi a Razão de Estado [...]” e

completa brilhantemente “a Razão de Estado é uma mera ideologia, que serve para

encobrir o interesse das classes políticas governantes em manter a todo custo o poder”.

(2007, p.1068, grifo nosso)

Pontua bem a literatura de Martim Albuquerque quando afirma que “[...] se

inscreverá o segredo político como algo que pode e deve existir para lá da ética e da ordem

jurídica com vista à manutenção ou expansão do poder”. (2009, p. 187)

Nesse sentido, em um momento histórico político-jurídico, pré-constitucional e

sob a fundamentação da Razão de Estado, o segredo se insere na órbita do Estado

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constitucional e se perpetuou como o conhecemos hoje. O secreto passa a contrapor o que

deveria ser público, criando assim o “segredo legítimo”.

O uso e manutenção dos atos sigilosos de Estado em pleno paradigma

constitucional democrático referem-se ao que o diplomata e cientista político João

Almino nos levanta em sua obra escrita em 1986, o problema relativo ao que ele denomina

de segredo legitimo:

E talvez devêssemos nos perguntar se, mesmo nessa perspectiva

democrática, haveria lugar para o segredo legítimo [...]

Nenhuma “causa nobre” definida de maneira técnica, pelo Estado,

pode legitimar o uso do segredo. Daí não haver a possibilidade para o

Estado, quando parece conveniente que se guarde um segredo de

Estado, de saber previamente que segredo é legítimo. (ALMINO,

1986, p. 16-17, grifo nosso)

Entendemos que quando Almino se apodera do termo legítimo, demonstra

pretensão de enquadrá-lo a partir de uma definição normativa, ou seja, da regulação do

uso de um possível segredo de Estado, o qual se legitima via norma jurídica.

Relativizamos a referida utilização terminológica de João Almino, uma vez que nem toda

norma jurídica é legítima em absoluto, mas há que se analisar se o inter de sua produção

e seus efeitos quanto à eficácia social condizem ao paradigma constitucional vigente.

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Almino muito contribui para o debate quando nos põe a refletir que na dicção do

inciso XXXIII do artigo 5º da CF/88,6 o constituinte originário instituiu o “segredo

legitimo”. A partir dessa reflexão, tem-se com o advento da Lei 12.527/11 (e sua

regulamentação no Decreto n. 7.724/12), a definição técnica pelo Estado, e, portanto, a

legitimação do uso do segredo no meio social. Nesse sentido muito bem coloca Almino

(1986, p. 100) quando afirma que “[...] a própria sociedade aceitará os limites a seu direito

à informação, se estes forem legítimos”.

3 O PARADOXO DA LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO

A Lei de Acesso à Informação preceitua em seu artigo 3º que:

Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito

fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade

com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes

diretrizes: I – observância da publicidade como preceito geral e do sigilo

como exceção; IV – fomento ao desenvolvimento da cultura da

transparência na administração pública; V – desenvolvimento do controle

social da administração pública. (grifo nosso)

Afere-se, a partir do dispositivo normativo supramencionado que a busca por

uma cultura da transparência, que garanta o controle social, bem como judicial da

administração pública são o objetivo fim da Lei de Acesso à Informação, e que serão

alcançados por meio da transparência e publicidade na administração pública. O paradoxo

6 “Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse

coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas

cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. (grifo nosso)

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que se apresentará a seguir refere-se às diretrizes propostas pela legislação em comento e

sua procedimentalidade executória, vez que como veremos, não atende a seus objetivos.

Cabe colocar em primeiro lugar o que passaremos a denominar de “segredo do

segredo”. Trata-se do disposto no artigo 31, inciso VI e §2º do decreto 7.724/12 que

regulamenta a Lei de Acesso à Informação. Vejamos a transcrição do dispositivo legal:

Artigo 31: A decisão que classificar a informação em qualquer grau

de sigilo deverá ser formalizada no Termo de Classificação de

Informação – TCI, conforme modelo contido no Anexo, e conterá o

seguinte:

VII – razões de classificação, observados os critérios estabelecidos

no artigo 27; (grifo nosso).

§2º As informações previstas no inciso VII do caput deverão ser

mantidas no mesmo grau de sigilo que a informação

classificada. (grifo nosso!)

Ora, além da classificação autorizativa legal para o segredo legítimo, têm se

ainda, que sua fundamentação deverá ser classificada no mesmo grau de sigilo, de tal

modo que a restrição da fiscalidade processual será um entrave ao cumprimento dos

preceitos da Lei 12.527/11.

Tal situação, portanto, gera uma impossibilidade absoluta quase de verificação

da atividade classificatória, vez que, além da inacessibilidade às informações, não se teria

também qualquer pista dos motivos que levaram a classificação da informação, violando-

se assim o direito à fundamentação das decisões prevista no artigo 93, IX, da CF/88.

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Outro ponto, que se deve colocar como incoerente e vem a compor o paradoxo

da Lei de Acesso à Informação, trata-se do prazo de classificação das informações

previsto no artigo 24, §1º, incisos I à III da Lei 12.527/117. Os atos classificatórios em

grau de sigilo de secreto e ultrassecreto, 15 e 25 anos respectivamente, sendo possível no

último caso sua prorrogação por mais 25 anos, nos traz a tona a hipótese de que, crimes

de improbidade administrativa sejam impunemente praticados.

A Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa) estabelece em seu artigo

23, I, o prazo prescricional de cinco anos para os crimes de improbidade. Levando-se em

consideração que tal prazo começa a contar com o término do mandato eletivo e não da

prática do ato, como determina o inciso II do artigo 23 da referida Lei; e ainda que o prazo

máximo que as autoridade classificadoras podem exercer mandato eletivo consecutivo é

de oito anos, somados os dois prazos, ou seja, cinco mais oito, teríamos o total de 13 anos.

Se a pratica contra o erário fosse praticada e ocultada por meio do segredo

legítimo nos graus de sigilo supramencionados, os agentes políticos certamente sairiam

impunes, visto que a prescrição atingiria as práticas.

Os dispositivos da LAI falharam em não prever a suspensão ou interrupção da

prescrição em casos de as informações já terem sido classificadas e levassem ao rol

probatório de futura Ação Civil Pública ou ainda Ação Penal.

7 Art. 24. A informação em poder dos órgãos e entidades públicas, observado o seu teor e em razão de sua

imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada como ultrassecreta,

secreta ou reservada. § 1o Os prazos máximos de restrição de acesso à informação, conforme a classificação prevista no caput

vigoram a partir da data de sua produção e são os seguintes: I - ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos; II - secreta: 15 (quinze) anos; e III - reservada: 5 (cinco) anos.

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Dessa feita os objetivos de dar transparência e publicidade aos atos da

administração, pública a fim de que esses pudessem ser fiscalizados e a corrupção

combatida, restam prejudicadas pela falha operacional da Lei 12.527/11.

Na perspectiva de consolidação de uma “sociedade aberta” (para usar a

terminologia de Karl Popper, 1987) e o desenvolvimento de uma cultura da transparência,

pautada na coparticipação dos cidadãos como sujeitos constitucionais, legitimados ativos

a participarem do processo de construção e fiscalização do Estado Democrático não se

pode olvidar prazos por demais excessivos.

Temos ainda a presença de uma contradição entre os artigos 27, §1º, da Lei

12.527/11 e 30, §1º, do decreto 7.724/12, que respectivamente dispõe:

Art. 27. A classificação do sigilo de informações no âmbito da administração

pública federal é de competência:

§ 1o A competência prevista nos incisos I e II, no que se refere à classificação

como ultrassecreta e secreta, poderá ser delegada pela autoridade

responsável a agente público, inclusive em missão no exterior, vedada a

subdelegação. (grifo nosso)

Art. 30. A classificação de informação é de competência:

§ 1o É vedada a delegação da competência de classificação nos graus de sigilo

ultrassecreto ou secreto. (grifo nosso)

Ora, como apontado anteriormente neste estudo, o decreto 7.724/12

regulamentou a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527) no âmbito de sua aplicação na

administração governativa. Todavia, e já demonstrado anteriormente, o decreto se

contradiz a Lei. De um lado a Lei Federal autoriza a delegação de competência para

classificar nos graus de secreto e ultrassecreto, e por outro o decreto a contraria vedando

tal delegação de competência.

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Certamente tal contradição se insere no rol do paradoxo da Lei de Acesso à

Informação, e gera uma latente inconstitucionalidade, visto a contrariedade da hierarquia

das normas possíveis, trazidas no bojo da Constituição Federal de 1988.

4 A BEM DO ESTADO – REFLEXÕES HERMENÊUTICAS SOBRE O

SEGREDO

Os conceitos jurídicos indeterminados e a discricionariedade no ato de

classificação são os dois pontos que fecham, a nosso ver, o paradoxo da Lei de Acesso à

Informação.

O constituinte originário, ao estabelecer a exceção do segredo no inciso XXXIII

do artigo 5º da CF/88 ‘definiu’ o que seria objeto de segredo às informações públicas

“[...] ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do

Estado.” (grifo nosso!) O legislador infraconstitucional ao elaborar a Lei 12.527/11

tentou definir o que seria isto. E no artigo 238 da referida Lei, cria outros tantos conceitos

jurídicos indeterminados, o que causa mais ainda obscuridade na classificação das

informações.

8 Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis

de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam: I - pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional; II - prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que

tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais; III - pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população; IV - oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País; V - prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas; VI - prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim

como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional; VII - pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus

familiares; ou VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento,

relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.

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A problemática dos conceitos jurídicos indeterminados leva a outra incoerência

em termos de paradoxo da LAI. A discricionariedade do ato classificatório será um

problema hermenêutico e de legitimidade, uma vez que a informação é classificada pela

autoridade que a gera e esta se usa da discricionariedade aos moldes clássicos para realizar

a classificação.9

O ato classificatório previsto no artigo 23 da Lei de Acesso à Informação trata-

se de ato administrativo tendo como finalidade o atendimento ao interesse público, sendo

passível, portanto, de ser discricionário. No entanto, tal discricionariedade, deve ser

compreendida na perspectiva do Estado Democrático, ou seja, deve estar baseada na

legitimidade e na intersubjetividade, o que na prática não ocorre.

A autoridade classificatória conforme prevê o artigo 27 da Lei de Acesso à

Informação e incisos, será a mesma que gera a informação. Desse modo temos aí

claramente a possibilidade de que o ato classificatório seja feito sob o manto do discurso

dogmático da discricionariedade, ou seja, conforme a Lição de Renato Abreu Barcelos

(2014, p.22) pautado na “[...] decisão subjetiva, solipsista, por parte do administrador

público quanto à autorização normativa para o exercício da discricionariedade

administrativa.” E por outro lado atendendo “à necessidade de que o pronunciamento

discricionário seja conforme ao universo que deve nortear a atuação estatal”.

Dessa forma, a Lei de Acesso à Informação trouxe como marco referencial no

que concerne ao ato de classificar as informações, o modelo dogmático da

discricionariedade, onde o representante do órgão gerador da informação usa-se dos

conceitos jurídicos indeterminados, e amparados na legalidade realiza o ato discricionário

de classificar com margem de liberdade, consubstanciando em sua consciência

(solipsista).

9 Na lição do jovem mestre Renato de Abreu Barcelos, “A subjetividade e a legalidade são coordenadas da

discricionariedade administrativa clássica [...]”. (2014, p. 15)

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A vagueza e o solipsismo do administrador no ato de classificar gera uma

discricionariedade não compatível com paradigma do Estado Democrático. Tem-se,

portanto, que a indeterminação do conceito, leva o administrador a agir com uma margem

de liberdade e despontar na discricionariedade dogmática.

Nesses moldes, portanto, falhou o legislador em atribuir solitariamente ao

administrador e deixa-lo agir de modo discricionário no ato de classificação, uma vez que

querendo encobrir falhas administrativas, este poderá por sua consciência (e

conveniência), ocultar informações que levem a descoberta de falhas, e tudo será legal e

encobertado pelo ‘segredo legítimo’.

Dessa forma, uma teoria da decisão administrativa, consubstanciada na

hermenêutica e no processo (como instituição), que nos dê uma classificação mais

adequada à constituição e ao Estado Democrático, pautada na transparência e publicidade

(art. 37, CF/88) devem ser medidas a se adotar para um efetivo Direito Fundamental à

Informação.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme preleciona a lição de Juliano Heinen:

O acesso à informação é um resultado da nossa forma democrática e

republicana de governo, garantida pela CF/1988 e conclui dizendo Enfim,

pode-se dizer que o acesso à informação, como um direito fundamental, é uma

prática claramente democrática, que reclama um Estado aberto. (2014, p.14)

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É importante salientar a reflexão que o presente ensaio propõe trazer. É possível

em pleno Estado Democrático e Republicano, permanecer com exceções por meio do

segredo legítimo, de forma a restringir a fiscalidade do cidadão ativo?10 Talvez não

tenhamos a resposta definitiva11, mas procuramos apontar caminhos que entendemos

adequados ao quadro constitucional vigente.

Tal perspectiva demandaria a necessidade de reforma da Lei 12.527/11, tanto

aos pontos do paradoxo anteriormente apresentados, quanto no concernente à

possibilidade de acesso às informações não só pela via administrativa como relativamente

ocorre hoje, mas também pela via judicante, de forma a garantir o acesso a possíveis

informações que possam levar a comprovação de violações a direitos fundamentais ou

ainda a atos delituosos contra a administração pública.

Nas claras palavras de João Almino “O Segredo impede um controle mais

efetivo por parte da sociedade sobre seus governantes” (1986, p. 98). Se põe claro os

impeditivos que o segredo gera para a construção do projeto de Democracia pós 1988,

uma vez que restringe a soberania popular, ao retirar das mãos dos detentores do poder o

direito fundamental à informação.

Conclui, dessa forma, João Almino que “[...] a sociedade é mantida na ignorância

de processos decisórios que lhe dizem respeito”. Tem-se, portanto, a usurpação do poder

fiscalizatório dos coautores do Direito Democrático (1986, p. 98).

Não raro, o segredo tem sido legitimado perante instrumentos normativos

dotados de legalidade, e que se tornam, portanto, “legítimos” perante o meio social. Em

sua reflexão: “Pensemos, por exemplo, na chamada ideologia da segurança nacional. Ela

10 “É evidente que a transparência permite que o cidadão ativo possa acompanhar projetos, metas,

indicadores propostos, etc; avaliando, pois, se há eficiência dos serviços prestados, se a execução dos

contratos está a contento, etc.” (HEINEN, 2014, p.17) 11 O que certamente demandaria uma infinidade de estudos e uma vida acadêmica dedicada à questão, visto

sua complexidade frente às reflexões propostas a publicidade/transparência e segredo no Estado

Democrático.

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põe a tal segurança acima até mesmo de um desejo empiricamente expresso por parte da

nação” (1986, p.116).

Colocada tal reflexão, cabe corroborar a presente pesquisa diante da preocupação

do professor Sérgio Cadermatori no que diz respeito ao controle do poder na Democracia

quando este diz “O controle do poder, regra paradigmática das modernas Democracias

representativas, somente pode ter lugar quando os cidadãos têm acesso às práticas

governamentais” (grifo nosso) e conclui afirmando: “Assim, o acesso do grande público

ao conhecimento das ações do governo constitui-se em pilar fundamental para a

estruturação de um regime democrático”. (2011, p. 339, grifo nosso)

As reflexões colocadas não se esgotam, reconhecendo que muito há de se expor

a partir de uma reflexão crítica e falível nas hipóteses ao problema de pesquisa, lastreadas

na construção de um Estado de Direito Democrático (Art. 1º, CF) condigno com os

postulados de uma “sociedade aberta” a partir da garantia de um legitimo (democrático)

direito fundamental à informação, avesso ao “Segredo de Estado Legítimo”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMINO, João. 1986. O segredo e a informação – Ética e política no espaço público.

São Paulo: Brasiliense.

BARCELOS, Renato de Abreu. 2014. Linguagem, discurso e deliberação: a

democratização da discricionariedade administrativa no paradigma do Estado

Democrático de Direito. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais – PUC. Belo Horizonte.

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III Semana de Ciência Política

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27 a 29 de abril de 2015

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