Upload
truongkien
View
248
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
AUDIOVISUAIS E ENSINO DE HISTÓRIA REFLEXÕES E PROPOSTAS DE
USO PROBLEMATIZANDO AS NOÇÕES DE SUPORTE DE INFORMAÇÕES
E FONTES HISTÓRICAS
Vitória Azevedo da Fonseca
Este trabalho é parte de uma pesquisa em andamento que problematiza os usos
dos audiovisuais como fontes históricas relacionando às propostas de utilização nas aulas
de História. O cinema, como fonte histórica, tem presença constante nos estudos dos
historiadores e, nas áreas de cinema e audiovisual, configurando assim o que podemos
chamar de um quase campo de estudos, com diversas produções entre teses e dissertações,
espalhadas por diversas áreas.
Filmes e audiovisuais também são presenças constantes em manuais escolares e
publicações voltadas para professores de história, compondo, junto com outras
“linguagens”, tais como jornais, fotografias, documentos, um conjunto de orientações
que, podem ser caracterizadas de diferentes maneiras de acordo com a concepção do autor
do papel dessas “linguagens” no ensino/aprendizagem da História.
Além disso, há relatos publicados em revistas acadêmicas de práticas de
utilização de filmes e audiovisuais no ensino/aprendizagem de história, que demonstram
abordagens distintas sobre o seu papel nesse processo.
Compreendemos que, considerar um audiovisual como um “recurso didático”
leva a implicações distintas a, por exemplo, sua compreensão como “documento
histórico”. Por outro lado, o caráter narrativo e propositivo de abordagens sobre o passado
torna essa linguagem distinta de outras? É possível considerar um audiovisual como uma
narrativa que propõe explicações viáveis sobre o passado e qual a relação dessa
proposição ao tratamento como documento ou recurso didático?
Podemos notar que Manuais escolares, voltados para o Ensino de História,
apresentam orientações diversificadas a partir da utilização de variadas linguagens e
recursos didáticos. No entanto, essas orientações partem de referenciais atrelados às
pesquisas específicas das áreas em questão. Assim, ao problematizar o uso de fotografia
em sala de aula, o referencial teórico está ligado aos estudos sobre a fotografia como fonte
histórica. Da mesma maneira que, estudos sobre uso de mapas, ou, usos de história oral
2
no Ensino de história estão relacionados às suas áreas de pesquisa. Desta forma, muitas
vezes, essas orientações acabam por passar por um processo de “adaptação”, ou
simplificação metodológica para que possa ser “encaixada” no espaço escolar.
Nesta apresentação proponho uma reflexão sobre essas diferentes abordagens e
categorias atribuídas aos audiovisuais e os diálogos estabelecidos entre a produção escrita
voltada para os professores e a produção na área de cinema e história.
Audiovisuais e filmes em Manuais de ensino de História
Os audiovisuais, no ensino de história, seriam instrumentos pedagógicos,
documentos históricos, recursos pedagógicos, suportes de informações, materiais
didáticos?
Vejamos inicialmente, de que maneira estes aparecem nos manuais de Circe
Bittencourt (2011), Maria Auxiliadora Schimidt e Marlene Cainelli (2009), e, Kátia Abud
(2013)(e outros). Para pensar a abordagem e a categoria na qual se encaixariam os
audiovisuais para estes autores, propomos, em primeiro lugar, trazer a discussão sobre o
papel dos documentos históricos no ensino de história e suas diferenciações.
Circe Bittencourt, no capítulo sobre materiais didáticos, aponta, inicialmente,
para a abordagem ampla que estes seriam “mediadores” do processo de aquisição de
conhecimento. No entanto, aponta para as diferenças entre esses materiais, tomando a
definição da Institut National de Recherche Pédagogique (INRP) da França, que
diferencia os “suportes informativos” e os “documentos”. Sendo que, os suportes
informativos seriam aqueles materiais produzidos, em diferentes linguagens, para uso
específico escolar, ou educativo. E os “documentos” seriam todos os materiais, não
produzidos para fins educativos, mas, posteriormente apropriados como finalidade
didática. Nesse sentido, os filmes e audiovisuais, produzidos em contextos amplos, devem
ser tratados como documentos no ensino de História.
Assim, de acordo com a autora, os documentos nas aulas de História são
considerados como “instrumento pedagógico eficiente e insubstituível”
(BITTENCOURT, 2011, p.327) por serem uma espécie de materialização do “real” e por
3
favorecer o desenvolvimento intelectual, estando associado a métodos mais ativos. A
autora aponta para problemas nesse uso em função das especificidades em diferentes
contextos e o seu uso pelos historiadores. Ou seja, não seria possível, no ensino de
história, tratar a fonte histórica tal qual é trabalhada pelos historiadores.
Para os historiadores, os documentos “são a fonte principal de seu ofício, a
matéria-prima por intermédio da qual escrevem a história” (BITTENCOURT, 2011,
p.328). Citando Henri Moniot, a autora indica que a escolha e seleção de documentos, e
sua análise, por parte dos historiadores, é precedida de um conhecimento histórico, de
domínio de conceitos e categorias, fundamentais para a análise. Algo diferente, segundo
ela, dos objetivos dos usos de documentos nas aulas de História. “As diferenças são
marcantes, e disso decorrem os cuidados que o professor precisa ter para transformar
‘documentos’ em materiais didáticos” (BITTENCOURT, 2011, p.329). É interessante
notar que, neste caso, o documento passa a ser considerado “material didático”, na medida
em que passa a ser inserido no contexto de ensino.
Um documento pode ser usado simplesmente como ilustração, para
servir como instrumento de reforço de uma ideia expressa na aula pelo
professor ou pelo texto do livro didático. Pode também servir como
fonte de informação, explicitando uma situação histórica, reforçando a
ação de determinados sujeitos, etc, ou pode servir ainda para introduzir
o tema de estudo, assumindo neste caso a condição de situação-
problema, para que o aluno identifique o objeto de estudo ou o tema
histórico a ser pesquisado. Dessa forma, os objetivos do uso de
documentos são bastante diversos para o professor e para o historiador,
assim como os problemas a que ambos fazem frente. Um desafio para
o professor é exatamente ter critérios para a seleção desse recurso”
(BITTENCOURT, 2011, p.330)
As justificativas para o uso de documentos nas aulas estão relacionadas à
possibilidade de desenvolvimento do pensamento histórico. Ou seja, possibilita
compreender o processo de construção do conhecimento histórico. A autora ressalva a
importância de considerar as diferentes linguagens, principalmente considerando que os
documentos não possuem intenções didáticas e são produzidos em diferentes suportes e
linguagens, podendo ser distinguidos, para ela, em: escritos, materiais, visuais e
audiovisuais.
Para que o documento se transforme em material didático significativo
e facilitador da compreensão de acontecimentos vividos por diferentes
sujeitos em diferentes situações, é importante haver sensibilidade ao
4
sentido que lhe conferimos enquanto registro do passado. Nessa
condição, convém os alunos perceberem que tais registros e marcas do
passado são os mais diversos e encontram-se por toda parte: em livros,
revistas, quadros, músicas, filmes e fotografias. (BITTENCOURT,
2011, p.331)
A questão principal, assim, é que a fonte histórica no ensino de história seja
facilitadora da compreensão do passado e, nesse sentido, pode apresentar-se em diferentes
suportes, e diferentes linguagens, considerando a diversidade das produções humanas na
temporalidade.
É interessante que, em um trecho citado, a autora identifica diferentes usos do
documento nas aulas de história: pode ser uma ilustração, como instrumento de reforço
de uma ideia, como fonte de informação, pode introduzir um tema de estudo, como uma
situação-problema. Ao identificar e ressaltar esses usos, podemos refletir sobre propostas
referentes aos documentos, ou fontes históricas, nas aulas de História. Neste caso, se o
filme for tratado como fonte histórica, seus usos podem ser encaixados nestas mesmas
categorias? Como uma fonte histórica, o filme poderia servir de ilustração de um assunto
tratado, para reforçar uma ideia? O filme pode ser a introdução de um tema de estudo?
Ou, pode ser um ponto de partida de uma situação-problema?
Como método de análise de fontes históricas, aponta para descrever e mobilizar
conhecimentos prévios para explicar, situar e identificar para chegar a uma análise crítica.
No tratamento das fontes audiovisuais, e, especificamente, os filmes, a autora dialoga
com os “especialistas da área”, que, acredito, sejam profissionais que desenvolvem
pesquisas sobre análise fílmica.
Com base na proposta metodológica dos especialistas da área, podemos
repensar um método de ensino adequado sobre o uso de filmes na
escola. Fica evidente que não existe um método simplificado para
introduzir os alunos na análise crítica da imagem cinematográfica, mas
pode-se destacar a impossibilidade de deter-se apenas na análise do
conteúdo do filme. É preciso ir além. (BITTENCOURT, 2011, p.375)
Ressaltamos que neste trecho, algumas concepções chamam a atenção. Em
primeiro lugar, a intenção da introdução dos alunos a uma análise crítica da imagem
cinematográfica, o que nos leva a indagar o que significaria isso, em termos de ensino de
História, e qual o objetivo dessa análise crítica.
5
Preparar para a análise crítica, segundo a sugestão, seria questionar os valores
dos estudantes na escolha de seus filmes preferidos, enfatizando uma problemática da
indústria cinematográfica e a hegemonia estadunidense sobre o cinema, problema este do
campo de estudos de cinema; além disso, propõe questionamentos sobre as condições de
produção de um filme, em seus mais diversos aspectos.
A análise pode seguir os procedimentos metodológicos propostos pelos
especialistas, levando em conta a leitura interna do filme – conteúdo,
personagens, acontecimentos principais, cenários, lugares, tempo em
que decorre a história narrada, etc – assim como a leitura (em geral por
intermédio de preenchimento de uma ficha técnica) da produção do
filme – diretor, produtor, música, tipo de técnicos, etc. Em seguida, vem
a análise do contexto externo ao filme: ano, país...” (BITTENCOURT,
2011, p.377)
Esta proposta, a meu ver, é mais pautada por preocupações especializadas de
análise fílmica. No entanto, no contexto do ensino de História, o filme deveria ser tratado
da mesma maneira que os “documentos” para o historiador, considerando que, um filme,
para um estudioso de cinema, é diferente de um filme em contexto educativo. Desta
forma, caberia perguntar, por que utilizar um filme no ensino de História? Escolher um
filme qualquer, e analisar as suas condições de produção, bem como sua estrutura interna
é uma análise diferenciada para a formação do conhecimento histórico em qual aspecto?
Conforme indicado em Fonseca (2016), muitas sugestões para utilização de filmes no
ensino de História são mais pautadas por debates especializados do que necessidades
educacionais específicas.
A autora indica a existência de outros métodos de análise, sem citar, mas
complementa as sugestões, citando o trabalho de Carlos Visentini, que, considero
particularmente interessante, no caso do ensino de história, que implica em considerar o
filme como um texto e, portanto, passível de sofrer recortes construindo narrativas.
Para Maria Auxiliadora Schimidt e Marlene Cainelli, no livro ... o documento é
fundamental no ensino de história pois, considerando que a produção do conhecimento
histórico tende a mascarar a sua própria produção, “...para o ensino e História, o trabalho
para entender e desvelar o discurso histórico impõe uma atividade incessante e sistemática
com o documento em sala de aula.” (SCHMIDT, CAINELLI, 2009, p.111)
6
Ambas diferenciam duas interpretações para o termo documento, primeiro,
como material para fins didáticos (dentre os quais entram livro didático, mapa histórico e
vídeos educacionais) e, segundo, como “fragmentos ou indícios de situações já vividas,
passíveis de ser explorados pelo historiador” (SCHMIDT, CAINELLI, 2009, p.112).
Definição semelhante a apresentada anteriormente, entre suportes informativos e
documentos.
Os usos do documento com fins didáticos, historicamente construídos, vai de um
uso como prova irrefutável, a instrumento dinâmico que ajudaria a tirar o aluno da
“passividade”, sendo, neste caso, estimulado o uso de diferentes tipos de documentos.
No entanto, “Apesar de mudar o tratamento didático, isto é, o lugar do
documento na relação ensino-aprendizagem, este permaneceu com o significado
tradicional, qual seja, continuou sendo prova irrefutável do real” (SCHMIDT, CAINELLI,
2009, p.115). No entanto, com a renovação no tratamento das fontes históricas, também
seria necessário um repensar de seus usos no ensino.
Uma nova concepção de documento histórico implica,
necessariamente, repensar seu uso em sala de aula, já que sua utilização
hoje é indispensável como fundamento do método de ensino,
principalmente porque permite o diálogo do aluno com realidades
passadas e desenvolve o sentido da análise histórica. O contato com as
fontes históricas facilita a familiarização do aluno com formas de
representação das realidades do passado e do presente, habituando-o a
associar o conceito histórico à análise que o origina e fortalecendo sua
capacidade de raciocinar baseado em uma situação dada. (SCHMIDT,
CAINELLI, 2009, p.116)
Nesta perspectiva, o documento histórico, indispensável pelo diálogo de
temporalidades que permite, favorece a identificação do método historiográfico ao
promover o contato dos estudantes, minimamente, com a operação que origina o conceito
histórico. Preconiza, também, a ampliação dos tipos de documentos, não restringindo ao
escrito, e considerando outros tipos de fontes e linguagens, dentre elas, cinema, fotografia
e informática. E adverte “Mas não basta o professor ampliar o uso de documentos;
também deve rever seu tratamento, buscando superar a compreensão de que ele serve
apenas como ilustração da narrativa histórica e de sua exposição, seu discurso”
(SCHMIDT, CAINELLI, 2009, p.117). Neste sentido, o documento no ensino de História
7
passa a ser ponto de partida, e não um fim em si mesmo, a partir de questionamentos de
alunos e professores.
O método proposto envolve três etapas. Sendo a primeira a de identificação da
tipologia do documento, que envolve compreender o conteúdo, a natureza, o autor e a
datação do documento. Ou seja, uma espécie de análise interna. Em seguida, seria a etapa
da explicação do documento, que envolve o confronto da leitura previamente feita e as
informações obtidas pelos alunos no que diz respeito ao contexto da produção do mesmo.
E, por fim, a etapa de comentário, que envolve uma produção textual.
Tomando por base essa metodologia, poderíamos aplicar a mesma na utilização
de filmes. Assim, a primeira etapa seria uma apresentação das informações em relação à
produção do filme e sua temática; em seguida, a inserção do filme em um contexto de
produção e, por fim, uma produção textual analisando o filme. No entanto, para além da
metodologia, é importante ter clareza dos objetivos de seu uso. As autoras apontam para
diferentes contribuições na utilização de documentos históricos em sala de aula, e, este
uso pode aplicar-se aos filmes e audiovisuais.
Assim, dentre as contribuições estão “ilustrar o tema trabalhado em sala”, que,
apesar de criticado, ajuda a desenvolver algumas operações cognitivas; “induzir o aluno
ao conhecimento histórico”, quando os estudantes exploram as informações contidas no
documento como ponto de partida para o aprendizado; “como fonte de informação
histórica”, uso sugerido a partir de comparações entre diferentes documentos buscando
as suas relações e produzindo um conhecimento de forma dinâmica; “como fonte para
construção de uma problemática ou hipótese histórica”, no qual o aluno é levado a inserir
o documento em um contexto mais amplo; e, por fim, “estuda-lo como fonte de respostas
para hipóteses ou problemas”, ou seja, escolhido de maneira que possa responder às
questões previamente formuladas. Todos esses usos podem desenvolver operações
cognitivas.
Considerando que a obra citada não aborda especificamente o uso de filmes ou
audiovisuais no ensino de História, podemos supor que as propostas acima se aplicariam
aos mesmos. No entanto, podemos questionar essa hipótese. Um filme poderia ilustrar o
tema trabalhando em sala de aula? É interessante notar que a maior parte das críticas sobre
o uso de filmes no ensino de história parte justamente deste ponto. Um filme não pode
8
ilustrar uma temática previamente trabalhada. Um filme poderia induzir um aluno ao
conhecimento histórico? Isso significaria, na maior parta das vezes, em utilizar filmes
com temáticas históricas, cujos conteúdos tenham relação com o estudado, e, portanto,
poderia induzir os alunos a buscarem informações em outras fontes históricas, etc. No
entanto, o uso de filmes históricos são criticados. Um filme poderia ser utilizado como
fonte de informação histórica? Novamente, esse uso seria criticado a partir de diversas
ressalvas sobre o caráter interpretativo do mesmo e sua abordagem descompromissada.
E, neste caso, seria uma abordagem na qual o filme, juntamente com outras fontes,
ajudariam a compor um quadro analítico mais amplo. Um filme poderia ser usado como
fonte para construção de problemáticas? Possivelmente. Algo como, a partir de um filme,
os alunos poderiam desenvolver uma análise inserindo-o em contextos mais amplos, em
contextos de produção. E, por fim, o filme poderia responder a hipóteses ou problemas?
Ou seja, questões sobre as quais o filme escolhido poderia ter uma resposta.
Esse exercício de questionamento nos ajuda a refletir sobre até que ponto os usos
de filmes no ensino de História consideram questões pertinentes ao debate mais amplo
sobre uso de documentos históricos em salas de aula.
No manual escrito por Kátia Abud, André Chaves Silva e Ronaldo Cardoso
Alves (2013), organizado em capítulos específicos que abordam diferentes tipos de fontes
históricas, desde documentos escritos, jornais, mapas, obras literárias, museus, etc., as
orientações gerais são apresentadas na introdução, sem muito detalhamento, mas com
diretrizes claras.
A partir de uma abordagem histórica do ensino de História, os autores apontam
para uma separação entre a História ciência e o ensino de História, e identifica, no
movimento da Escola Nova, um importante momento de ruptura nas práticas tradicionais
do ensino de História.
o movimento da Escola Nova promoveu a incorporação das fontes
como materiais didáticos. Paralelamente ao seu reconhecimento como
objeto de pesquisa do historiador, as fontes foram, aos poucos,
incorporadas aos trabalhos realizados nas aulas, com os alunos. Leitura
e interpretação de documentos, utilização de imagens, estudos do meio,
fundamentavam-se na exploração das fontes históricas, transformadas
pelo uso, em recursos didáticos. (ABUD, SILVA, ALVES, 2013, p.13)
9
Pautada pelas ideias da Didática da História, que propõe procedimentos críticos
em relação às fontes, a concepção apresentada pelos autores incentiva o uso de materiais,
no ensino de história, que leve à formação crítica do aluno e o desenvolvimento do
pensamento histórico. Desta forma, as fontes históricas, em suas mais diferentes
linguagens, deveriam ser trabalhadas não como suportes de informação, mas, meios
ativos de desenvolvimento do pensamento crítico e do pensamento histórico.
Metodologicamente, a proposta é “...utilizar materiais que permitam a construção do texto
histórico e o chamado a atividades intelectuais que encaminhem o aluno para o
desenvolvimento do pensamento histórico” (ABUD, SILVA, ALVES, 2013, p. 13)
No capítulo específico sobre cinema, há uma comparação entre a produção de
sentidos em obras historiográficas e obras cinematográficas. E aponta para o trabalho de
comparação entre o texto historiográfico e o filme, ressaltando o caráter interpretativo.
No entanto, na proposta apresentada, o principal objetivo é levar os alunos a não
interpretarem “as imagens como verdades absolutas” (ABUD, SILVA, ALVES, 2013,
p.166).
Toma como exemplo o filme Carlota Joaquina, a princesa do Brazil (Carla
Camurati, 1995) e propõe uma comparação entre este e a produção historiográfica.
Ao fazer uso de filmes e da história construída no interior de suas
narrativas, podemos confrontar outras fontes de conhecimento, o que
nos permite despertar nos alunos uma série de operações mentais que
estimulam a análise das relações entre as diferentes causas das
mudanças históricas. (ABUD, SILVA, ALVES, 2013, p.171)
A proposta, interessante no meu ponto de vista, coincidente com reflexões
desenvolvidas anteriormente,
Na sugestão de análise do filme proposto, o objetivo é compreender diferentes
visões do tema tratado e a identificação do filme como narrativas que trazem construções
históricas. A atividade é dividida em quatro fases, sendo a primeira composta de aulas
expositivas sobre a vinda da família real e a apresentação de visões opostas sobre os
Bragança. Em seguida, a realização de uma pesquisa, por parte dos alunos, que
corroborem essas visões divergentes. Na terceira fase, o filme é exibido integralmente e
posteriormente algumas perguntas são direcionadas sobre questões relacionadas à
temática proposta. E, por fim, na quarta fase, os alunos produzem materiais nos quais
apresentam as duas visões opostas sobre os Bragança.
10
Objetiva-se com a atividade, que os estudantes percebam diferentes concepções
historiográficas sobre o tema, considerando o filme um documento e não uma ilustração.
No entanto, apesar de interessante proposta, é questionável se, neste caso, o filme não
seria apenas uma ilustração de uma das vertentes sobre as quais a aula expositiva
apresentou. Por outro lado, podemos dizer que o filme, neste caso, seria uma espécie de
“indutor ao conhecimento histórico” ou “uma fonte de informação histórica”, como
propõem Schimit e Cainelli, considerando que foi utilizado como uma possível
interpretação do passado, como outras escritas.
Considerando as discussões trazidas nestes três diferentes manuais, escritos por
autores referências na pesquisa em ensino de História, propomos refletir sobre as
orientações aplicadas aos filmes e audiovisuais no ensino de História, diante das
diferentes propostas para usos de documentos. O que seria utilizar um filme como suporte
de informação? O que seria utilizar um filme como fonte histórica? Como documento,
seus usos contemplam questões pertinentes à problemática do ensino?
Filmes como fonte de análises históricas
A análise de filmes como fontes históricas passa pela identificação do seu lugar
na temporalidade e sobre as circunstancias de sua produção. Assim, podemos dizer, a
importância de situar o filme em uma tradição de movimentos cinematográficos, pois,
dentre outras análises, é possível compreender o seu lugar e seu diálogo em termos
estéticos. Além disso, as circunstâncias de produção, que envolve tanto o diretor, mas,
diferente de uma obra literária, um filme não pode ser atribuído ao trabalho de uma única
pessoa. Nesse sentido, envolve um contexto de análises mais amplo. Pensando, então, na
historicidade daquela fonte, podemos pensar na análise de suas mensagens. Isso significa
uma análise extremamente complexa pois, como uma obra de arte, encerra em si uma
multiplicidade de significados.
O filme traz problemáticas ao ensino de história pois, por um lado, pode ser
comparado a uma obra literária, com seu enredo. Por outro lado, a um livro didático, em
função de seu enredo e temática coincidir com a temática abordada em aulas de história.
O filme será um tipo de monumento, pois, é erigido sob o signo da invenção, do
11
simulacro. Ser assim é parte do que se tornou na contemporaneidade, e os usos que foram
tendo ao longo de sua história. Como monumento, já tentou enganar o espectador se
fazendo parecer documento. No entanto, se é monumento em sua intencionalidade, é
documento involuntário. Ao registrar, em função da natureza mecânica dos
equipamentos, mais do que o que se intenciona registrar acaba por dar visibilidade a
práticas do passado, que, como fagulhas, emergem na imagem mecânica. Assim, imagens
em movimento, em forma de filmes e audiovisuais, são monumentos e documentos.
Para o historiador, é uma fonte histórica que leva a diversos debates e enfoques,
que ultrapassam uma simples categorização, envolvendo, inclusive, concepções distintas
sobre o que é história e narrativa histórica.
Por exemplo, para Marc Ferro o filme possui lapsos que devem ser buscados
pelo analista. Se a realidade representada pode fugir ao controle dos cineastas ele propõe
que o analista esteja atento a esses lapsos. Ele atenta para o que há de involuntário tanto
nos documentários quanto nas ficções: “Teria o autor plena consciência disso, poderia ele
avaliar o alcance de sua própria obra? E a crítica oficial: poderia e quereria ela ver
claramente e reconhecer aquilo que lhe foi mostrado e que ela viu apenas de viés?”
(FERRO, 1992, p.92).
A questão é clara: sem plena consciência do alcance de sua obra, o diretor não
poderia saber quais interpretações ela suscitaria. No entanto, o próprio analista também
não pode “desvendar” o “verdadeiro” significado de um filme, as próprias análises são
históricas. O próprio olhar é histórico. Roland Barthes escreveu sobre o papel da crítica:
“...se a crítica é apenas uma metalinguagem, isto quer dizer que sua tarefa não é
absolutamente descobrir ‘verdades’ mas somente ‘validades’” . A obra de arte não possui
um valor absoluto intrínseco. (BARTHES, 1970. p.161 apud RAMOS, 2002)
O próprio Ferro parece indicar isso na análise de A Grande Ilusão (Jean Renoir,
1937). Através da “dupla acolhida” desse filme Ferro indica a multiplicidade de sentidos
que um filme pode suscitar: “outras reações diante do filme demonstram que seu conteúdo
não deixa de ser ambíguo” (FERRO, 1992, p.61) . Quais poderiam ser os lapsos quando
um filme é visto de diferentes maneiras em diferentes circunstâncias históricas. Seria
possível delimitar os lapsos desse filme e enxergar o que é “verdadeiramente” mostrado
12
ou só poderíamos analisar as suas diversas recepções e possibilidades? Recepção esta que
varia do país, da época e da situação política.
Nesse sentido, a abordagem que busca ver “além” da narrativa do filme, focada
na busca do presente escondido, é uma análise possível. Análise esta por vezes criticada,
por exemplo, por Robert Rosenstone, que defende uma análise não apenas focada no
presente do filme, mas também a consideração da natureza narrativa do filme como
possibilidade de escrita historiográfica.
...uno debe perguntarse el porqué de esta tendência a analizar las
películas históricas como si sólo hablasen del presente y las obras
históricas escritas como si sólo hablasen del passado. Seguramente uma
razón es que desde nuestros primeiros días em la escuela nos enseñan a
leer obras sobre historia únicamente por su contenido y nunca por el
contexto en que fueron producidas. (ROSENSTONE, 2014, p.13)
Este autor, em diversos trabalhos, defende que o filme possa ser uma
interpretação historiográfica válida. O que isso significaria no ensino de história? Estaria
de acordo com as orientações do uso de documentos como fontes de informações, ou,
passaria a ser visto como como suporte informativo? Caso a proposta fosse efetivada, o
filme deixaria de ser visto como fonte histórica para ser “lido” como um livro didático?
Isso poderia justificar usos ilustrativos dos filmes, cujo principal problema, no entanto, é
a passividade dos estudantes na relação com as informações?
Uma experiência do uso de filmes como interpretação do passado
Enquanto professora da disciplina História do Brasil para turmas de cursos
superiores em Comunicação, filmes com temática histórica foram utilizados como base
para compreensão dos temas tratados. Usar o audiovisual tinha principalmente dois
propósitos. O primeiro, alavancar o debate sobre o assunto tratado no filme considerando
que, além do estudo do “conteúdo em si” seria fundamental compreender o processo de
construção desse “conteúdo” em cursos de comunicação. O ponto principal era
possibilitar aos alunos elementos para que pudessem compreender o estudo da História
não como o “estudo do passado”, mas, o estudo das leituras construídas sobre o passado.
Essa questão das diferentes interpretações da história em audiovisuais se tornava ainda
mais significativa nos cursos de comunicação.
13
Por serem cursos de comunicação, essa experiência foi muito profícua pois aliou
vários elementos: o uso de uma linguagem com a qual estão mais familiarizados; a
comparação de diferentes visões em diferentes suportes e a problematização do processo
de construção de pontos de vista; também foi possível trazer à tona a questão da
historicidade de cada ponto de vista. O filme foi compreendido como mais uma
interpretação a respeito do tema, numa linguagem diferenciada da da escrita. Por isso,
escolhi aqueles que pudessem ter suas abordagens comparadas a análises históricas e
também autores que escreveram sobre o assunto.
Solicitei que os alunos lessem os artigos, ou trechos de livros sobre o tema e
depois vissem o filme comparando com as abordagens lidas. Ao final da exibição,
conversávamos sobre a interpretação presente no texto e a interpretação presente no filme,
e também os diferentes autores e momentos nos quais essas interpretações foram
construídas. Essa análise partia da análise da linguagem cinematográfica e como o filme
construía a sua própria análise.
Assim sendo, o ponto principal levantado nas aulas, eram as diferentes
abordagens a respeito de um determinado tema e a construção de diferentes pontos de
vista. Cito aqui alguns dos filmes utilizados. As temáticas abordadas, as estéticas
utilizadas, o período no qual os filmes foram realizados são muito dispares. No entanto,
a unidade entre eles está na metodologia de utilização na sala de aula.
O primeiro filme, Narradores de Javé, possibilitava o debate sobre o processo
de escrita da história e a questão dos diversos pontos de vista envolvidos. O filme Sonhos
Tropicais (André Sturn, 2001) foi estudado junto com os textos de Nicolau Sevcenko,
José Murilo de Carvalho e Sidney Chaloub, gerando discussões interessantes,
principalmente pelas diferentes leituras que podem ser comparadas ao filme. Em função
até das suas escolhas estéticas e narrativas, podemos encontrar ecos das diferentes
leituras.
O filme Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1996) foi apresentado
juntamente com o texto de Frederico Pernambucano de Melo e Eric Hobsbawn e usado
para discutir a imagem de atuação política de Lampião e a atuação política de
centralização no governo Vargas. Aqui, texto e filme convergem para uma mesma
abordagem e foi enfocado como as duas linguagens constroem interpretações similares.
14
O filme JK, uma trajetória política (Silvio Tendler, 1984) foi visto junto com a
leitura de textos de Victoria Benevides. A autora refere-se a abordagem do período JK
relacionando ao momento político do presente e fala também sobre a tendência em
recuperar essa figura histórica como símbolo do otimismo. Nesse caso, o filme converge
para uma visão otimista do “personagem”. Mas, ele foi analisado também na sua
historicidade, seja no momento em que fora realizado (“Abertura”) seja em função da
análise que propõe: JK entre dois governos ditatoriais. O filme foi visto junto com a
leitura de outros textos que problematizam essa abordagem.
Considerando os debates sobre uso de documentos no ensino de História e
debates no campo de cinema e história, é possível reabilitar o filme com temática histórica
no seu uso no ensino pois, além de interessante como suporte de informação, é também,
como promotor de interpretações sobre o passado, uma ferramenta para análise crítica da
construção do conhecimento histórico. Assim, torna-se necessário, neste ponto de vista,
superar uma tendência de aderir a uma abordagem do debate especializado sobre cinema
para, de forma crítica, incorporar outras possibilidades de usos de filmes no ensino de
história, sem desconsiderar as suas especificidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABUD, K., SILVA, A.C.M, ALVES, R.C. Ensino de história. São Paulo: Cengage Learning,
2013
BITTENCOURT, C.M.F. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo, Cortez, 2011.
FERRO, Marc. “A dupla acolhida para a Grande Ilusão” in: Cinema e história, Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1992.
FONSECA, Vitória Azevedo da. Filmes no ensino de História na visão dos livros didáticos: “use
com moderação”. Revista Labirinto. v.24, n.2 (jan-jun), 2016, p.57-70. Disponível em:
http://www.periodicos.unir.br/index.php/LABIRINTO/article/view/1708/1630
RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos Fracos – cinema e história do Brasil. Bauru, SP:
Edusc, 2002)
ROSENSTONE, R. “La pelicula historica como campo, como modo de pensamiento (historiar) y
un montón de malas jugadas que les hacemos a los Muertos” in: MONTÓN, A,L.H., GOMEZ,
G.C. Gómez Hacer historia con imágenes, (coords). Editorial Síntesis. Madrid, 2014.
SCHMIDT, M.A., CAINELLI, M. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2009