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Expoente da estilística e precursor da sociologia da literatura e da estética da recepção, Erich Auerbach está entre os grandes críticos do século XX. Especialista em Dante e tradutor de Vico, Auerbach é autor de uma obra ensaística de fôlego, da qual este livro reúne dois textos, prefaciados por Modesto Carone. "Figura" traz a análise de um conceito-chave para toda a poesia e a retórica da Idade Média cristã, enquanto "São Francisco de Assis na Comédia de Dante" esmiúça, à luz desse mesmo conceito, um dos episódios mais fortes do poema dantesco. Dois ensaios magistrais, cheios da "força de irradiação" histórica que Auerbach tanto apreciava. ISBN 85-08-06492-6 9

Auerbach Eric Figura

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Page 1: Auerbach Eric Figura

Expoente da estilística e precursor da sociologia da

literatura e da estética da recepção, Erich Auerbach está

entre os grandes críticos do século XX. Especialista em

Dante e tradutor de Vico, Auerbach é autor de uma obra

ensaística de fôlego, da qual este livro reúne dois textos,

prefaciados por Modesto Carone. "Figura" traz a análise de

um conceito-chave para toda a poesia e a retórica da Idade

Média cristã, enquanto "São Francisco de Assis na Comédia

de Dante" esmiúça, à luz desse mesmo conceito, um dos

episódios mais fortes do poema dantesco. Dois ensaios

magistrais, cheios da "força de irradiação" histórica que

Auerbach tanto apreciava.

ISBN 85-08-06492-6

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Page 2: Auerbach Eric Figura

SI::RIE TEMAS

Volume 62

I ,;tcratura e filologia

'j'ítulos originais:

..Figura" e St. 'Francis of Assisi in I)antc's HCon11ncdia") inI':rich Auerbach, Scenes from lhe dram{{ of European litertlturc

( :opyright © by Clcmcns Aucrbach, 1994

Imagem da capa: detalhe de Deposição de Cristo, de Caravaggio(Pinacoteca Vaticana, Roma)

Editor

remando P{{ixão

Editor assistente

Olacílio Nunes

Preparação de textoRen{{to Nicol{{i

Edição de artc e capa

Marcello Ar{{ujo

Proj eto gráficoCláudia Warmk

Editoração eletrônica

Antonio Ubir{{jara Domieneio

Impresso nas oficinas daGráfica Palas Athena

ISBN 85 08 06492 6

1997

Todos os direitos reservados

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SUMÁRIO

PREFÁCIO

Um roteiro do conceito de figuraModesto Carone

FIGURA

SÃO FRANCISCO DE

ASSISNA COMÉDIA DE DANTE

Notas

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13

65

81

Page 3: Auerbach Eric Figura

~f'

Um roteiro do conceito

de figura

Modesto Carone

Figura é um ensaio fundamental de Erich Auerbach, o Mes­

tre contemporâneo da crítica literária e da literatura comparada.

Traçar um roteiro desse conceito elaborado em minúcia pelo

Autor é uma tarefa árdua, que causa insatisfação, sobretudo porcausa das supressões e da perda de matizes, que no melhor doscasos podem ser atenuadas por notas de rodapé mais extensas ­

como aqui acontece - para tornar, se possível, a apresentaçãomenos esquemática.

A partir de uma exposição erudita das aparições do termo

em autores que vão de Terêncio a Quintiliano, passando entreoutros por Varrão, Lucrécio, OvÍdio e Plínio, nos quais "figu­ra" comporta significados cambiantes - forma plástica, ima­

gem, cópia, forma que retrata ou forma que muda -, opercurso de semântica histórica descrito pelo ensaÍsta chega àconcepção da figura de linguagem - "forma de discurso que sedesvia do seu uso normal e mais óbvio" (p. 24). Mas nos múlti­

plos registros da palavra Auerbach descobre a alusão escondidaque tende a ser revelada e expandida pelos Pais da Igreja naIdade Média. Assim é que em Tertuliano "figura" indica arepresentação concreta de algo que vai se realizar no futuro. A

"figura" é então algo real e histórico que anuncia outra coisa

que também é histórica e real. A noção aí incorporada torna-seessencial para um tipo de interpretação incumbida de mostrar

que "as pessoas e acontecimentos do Velho Testamento eram

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ERICH AUERBACH

prefigurações do Novo Testamento e de sua história de reden­ção" (p. 28)1.

Compreende-se portanto que Adão seja concebido comofigura de Crist02 do mesmo modo que, para santo Agostinho,a Arca de Noé represente uma prefiguração da Igreja e Jacó eEsaú a figura dos dois povos: judeus e cristãos. É essa herme­nêutica que institui a relação entre duas realidades, pois aqui­lo que a "figura" profetizava - sem deixar de ser o que era ­alcança no final sua realização plena (Erfüllung)3. No desenhoágil e complexo traçado por Auerbach o conceito se desdobrae adensa a cada passo, à medida que absorve novos conteúdos.Por exemplo, estabelecendo vínculos tanto com a verdade(veritas), da qual seria uma mímese ou imitação (imitatio),como também com historia ou littera. Vista por este ângulo,

1 A ampliaçãa de sentida da Velha Testamento através das acantecimentas descritas na

Evangelha (um exempla radical: Maisés é uma figura de Cristo) .obedecia a razões histó­

ricas e, segunda Auerbach, cambinava "de mada natável" a prática palítica cam uma fé

religiasa criativa. Assim é que transformava a cancepçãa judaica da ressurreiçãa de Mai­

sés em um nava sistema de profecia figural, na qual a nava Messias preenche e anula aa

mesma tempa a abra realizada pela seu precursar: a que a Velha Testamento perdia

cama livro de uma história nacianal (a da pava judeu) ganhava em atualidade dramáticacancreta (a adventa de Crista). "Nesse sentida - afirma Auerbach - deveríamas ter em

mente um .outra fator que revelau ta da sua impartância tãa laga a cristandade expandiu­

se pelas regiões acidentais e setentrianais da Mediterrânea. A interpretaçãa figural trans­

farmau a Velha Testamenta de livra de leis e da história da pava de Israel numa série de

prefigurações de Crista e da Salvaçãa, tal cama encantramas mais tarde na procissãa das

profetas na teatro medieval e nas representações cíclicas da escultura medievaL Dessa

farma e neste contexto, em que a história judaica e a caráter nacianal tinham desapareci­

da, a Velha Testamenta, par exemplo, passava a ser aceitável para as celtas e as germâni­

cas; era uma parte da religião universal da salvaçãa e um campanente necessária da

igualmente magnífica e universal visão da história a ser transmitida junta cam a religiãa.

Em sua forma original, camo o livra da lei de uma nação tão estranha e remata, isso nãa

teria sida possível" (p. 45 ss.). Depreende-se daí que a profecia figural tenha surgido de

uma situação definida - a ruptura cam a judaísma e a missãa cristã entre as gentios.

2 O texto de Tertuliana aqui citado por Auerbach é a seguinte: "Pois se Adãa farnecia uma

figura de Cristo, a sona de Adãa era a marte de Cristo, então da mesma maneira pela feri­

da nos flancas deveria ser figurada a Igreja, a verdadeira mãe de todas os vivas" (p. 28).

3 Camentando uma passagem de Tertuliana sabre a relação figural entre Jasué e Jesus,

Auerbach afirma: "Aqui o name Josué-Jesus é tratado como um acontecimenta proféti­

co, antecipanda cais as que viriam. Assim cama fai J osué, e nãa Moisés, que conduziu o

pava de Israel para a terra prometida da Palestina, assim a Graça de Jesus, e não a lei

judaica, conduz a 'segunda pova' para a terra prometida da beatitude eterna" (p. 27).

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FIGURA

"figura" é o sentido literal ou o acontecimento que se refere auma realização que está encerrada no seu próprio bojo. Essarealização, por seu turno, tendo, como se disse, afinidade coma idéia de veritas, faz com que "figura" possa ser captadacomo meio-termo entre história e verdade.

O proveito que uma constelação dessa ordem oferece paraas relações entre literatura e realidade é evidente e talvez sejatão importante para a compreensão de Mimesis, a obra magnade Auerbach, quanto a célebre "mescla de estilos" (Stilmis­chung) pela qual o grande livro se orienta. Seja como for, ainterpretação figural, que desde o apóstolo Paulo amplia poranalogia o âmbito do texto bíblico "até o fim do mundo e avida eterna", está fundada numa alegoria, mas difere da maio­ria das formas conhecidas de alegorização em virtude do cará­ter histórico dos seus termos4. Ou seja: na "figura" umacontecimento terreno é elucidado pelo outro; o primeiro sig­nifica o segundo, o segundo "realiza" o primeiro. Dessa pers­pectiva a História, com toda a sua força concreta, como dizAuerbach, continua sendo sempre uma figura que necessita deinterpretação. É claro que essa visão das coisas tem implica­ções estéticas, embora neste particular o Autor seja discreto aponto de não dizer em que medida a obra de arte pode ser

4 A respeita da relaçãa entre alegoria, símbolo e mito neste contexto específica, vejam-se

as palavras de Auerbach: "Aa lada da forma alegórica que discutimas, há ainda outras

maneiras de representar uma cais a par .outra que padem ser camparadas cam a prafecia

figural; é a casa das chamadas formas simbólicas .ou míticas que sãa freqüentemente vis­

tas coma características de culturas primitivas e que, seja coma for, sãa encantradas cans­

tantemente nestas. [...] Essas farmas simbólicas ou míticas têm certas pontos de cantata

cam a interpretaçãa figural: as duas aspiram a interpretar e organizar a vida como um

todo; ambas sãa concebíveis apenas em esferas religiosas ou afins. Mas as diferenças sãa

evidentes. O símbala deve possuir pader mágica, a figura nãa; a figura, por .outro lada,

deve ser histórica, mas a símbolo nãa. É claro que a cristandade não deixa de passuir sím­

balos mágicas; mas a figura nãa é um deles. O que torna de fata as duas formas cample­

tamente diferentes é que a profecia figural relaciana-se cam uma interpretação da história

- na verdade é, par sua natureza, uma interpretaçãa textual -, enquanto a símbala é

uma interpretação direta da vida e .originalmente, na maior parte das vezes, também da

natureza. Assim, a interpretação figural é o produta de culturas pasteriares, bem mais

indiretas, mais complexas e mais carregadas de história do que a símbala .ou o mito"

(p.48-9).

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ERICI-I AUERBACI-I

apreendida como a figura de uma Erfüllung ainda inatingívelna realidade - o que evidentemente a aproximaria da utopia.

Ao término desse itinerário magistral, de que um mero resu­mo não é nem de longe capaz de dar conta, Auerbach invoca aDivina Comédia para demonstrar que são as "formas figurais"as que nela predominam e determinam a estrutura do poema. É oponto alto do ensaio e um exemplo privilegiado do método doensaÍsta - sem mencionar o estilo preciso que, à própria revelia,empalidece pateticamente a prosa praticada por tantos teóricos etratadistas contemporâneos. Aqui Auerbach desvenda os mati­zes de sentido de algumas figuras-chave da Comédia, comoCatão, VirgÍlio e até mesmo Beatriz5• O alvo da abordagem édemonstrar como elas são figuras históricas e ao mesmo temponão o são, uma vez que nesses personagens espelha-se a verdaderealizada que a epopéia traz à tona, tornando essa realizaçãomais viva e significativa do que o seu veículo histórico concreto.Isso se explica porque na análise de Auerbach o outro mundo épara Dante a verdadeira realidade, ao passo que este, à maneira

5 A respeito de Catão, Virgílio e Beatriz, vejam-se as páginas 55 e seguintes do ensaio,que vale a pena resumir e em parte transcrever neste Prefácio:

Diz Auerbach sobre Catão que na Comédia ele foi designado por Deus guardião naentrada do Purgatório e isso surpreende porque se trata de um pagão, inimigo de César e

suicida que deveria estar sofrendo os tormentos do sétimo círculo do Inferno. O enigmaé resolvido, segundo o Autor, pelas palavras de Virgílio, ao afirmar que Dante procura

em Catão a liberdade - "tão preciosa como tu próprio sabes, tu que por ela renunciasteà vida". Nesse sentido o Catão histórico - severo, justo e piedoso - que deixou a vida

em nome da liberdade era uma figura e o Catão que aparece no Purgatório é "a verdade

daquela situação temporal".Quanto ao Virgílio histórico, na leitura de Auerbach, ele é ao mesmo tempo poeta e guiade Dante porque, na descida de Enéias aos infernos, o poeta havia profetizado e glorifica­do a paz universal sob o Império Romano, a ordem política que Dante considerava

exemplar. Mas Virgílio é também o guia porque todos os grandes poetas que vieramdepois dele foram influenciados por sua obra, Dante inclusive. "Mais ainda, ele é um guiaporque, além de sua profecia temporal, proclamou também - na Quarta Écloga - aeterna ordem transcendente, a vinda de Cristo que iria renovar o mundo temporal, semsequer suspeitar, na verdade, do significado de suas próprias palavras, mas de tal modoque a posteridade iria extrair inspiração de sua luz." Para Dante, em suma, o Virgílio his­tórico era uma encarnação da plenitude, capaz por isso de conduzi-Io até a porta doParaíso: "Virgílio enviou Enéias ao mundo subterrâneo à procura do conselho divino

para conhecer o destino do mundo romano; e agora Virgílio é convocado pelos poderescelestiais para ser o guia de uma missão não menos importante; pois não há dúvida queDante via a si próprio como encarregado de uma missão não menos importante que a deEnéias: eleito para anunciar a um mundo desajustado a ordem justa, que lhe é revelada

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FIGURA

neoplatônica, existe apenas como "sombra dos futuros" (umbrafuturorum). Nessa direção, o que é afirmado sobre Catão ouVirgílio aplica-se ao todo da Divina Comédia, organizada dealto a baixo segundo uma concepção figura!. É esta que coloca oseventos narrados numa "relação vertical imediata" com a ordemdivina da plenitude e da liberdade, passível de dar consistência aum quadro poético realmente sublime gerado pela humanidade.

"Nosso propósito - declara Auerbach no final de Figura­foi mostrar como, a partir da base do seu desenvolvimentosemântico, uma palavra pode evoluir dentro de uma situação his­tórica e dar nascimento a estruturas que serão efetivas durantemuitos séculos."

Esta conclusão de Figura define uma das linhas mestras dotrabalho crítico de Auerbach, uma vez que, do seu ângulo pes­soal de inclinação, toda a literatura do Ocidente pode ser enten­dida também através do conceito de "figura". É o que há meioséculo nos ensina Mimesis, onde o cortejo das figuras tem o con­dão de representar a realidade - aquilo que vai se realizar - naarte literária que começa em Homero e chega até Virginia Woolf.

durante a sua caminhada". Mas Virgílio não é ele próprio, da mesma maneira que perso­nagens históricos como o César de Shakespeare e o Wallenstein de Schiller. Eles são apre­sentados em sua plena existência terrena, fazem surgir diante do leitor uma época

importante de suas vidas e procuram o sentido dessa época. Para Dante, no entanto, osignificado de cada vida pertence à história providencial do mundo cujas linhas geraisestão contidas na Revelação. Sendo assim, o Virgílio da Divina Comédia é o Virgílio his­tórico, mas por outro lado também não o é. Pois o Virgílio histórico é apenas umafigu­ra da verdade preenchida que o poema revela e este preenchimento é mais real, maisimportante que afigura. "Com Dante, ao contrário dos poetas modernos, a figura torna­se mais real à medida que é mais integralmente interpretada e mais intimamente integra­da ao plano eterno da salvação. E, para ele, diferentemente dos antigos poetas dosmundos subterrâneos, que representavam a vida terrena como real e a vida após a mortecomo uma sombra, a verdadeira realidade está no outro mundo, enquanto este mundo éapenas umbra futurorum - embora esta umbra seja a prefiguração da realidade trans­cendente e deva mais tarde ser preenchida por ela."

Beatriz é uma pessoa real, que de fato encontrou-se com Dante, saudou-o realmente,

negou-se a saudá-Io mais tarde, zombou dele, chorou por uma amiga morta e por seu pai

e também morreu. Mas, como diz Auerbach, é preciso ter em mente que, desde o primei­

ro dia em que apareceu, a Beatriz terrena foi para Dante um milagre enviado do céu, umaencarnação divina. Desse modo, como afirma o ensaio, a realidade da sua pessoa não é,

como no caso de Virgílio e Catão, algo derivado dos fatos de uma tradição histórica, mas

da própria experiência do poeta - uma experiência que lhe mostrou a terrena Beatrizcomo um milagre. Se na Vita nuova Beatriz é uma mulher viva dentro da realidade expe­

rimentada por Dante, na Comédia ela não é um anjo, mas um ser humano abençoado

cujo corpo ressuscitará no dia do Juízo Final.

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Figura

1. De Terêncio a Quintiliano

Originalmente, figura, da mesma raiz de fingere, figulus, fictor eeffigies, significava "forma plástica". Sua mais remota ocorrênciaestá em Terêncio, que, em Eunuchus (317), diz que uma jovem temuma nova figura oris [um formato incomum de rosto]. O seguintefragmento de Pacúvio (270-1, em Ribbeck, Scaen. Roman. poesisfragm., 1,110) data provavelmente do mesmo período:

Barbaricam pestem subinis nostris optulitNova figura factam ... 1

[Apresentou contra nossas lanças uma pesteProduzida sob aspecto desconhecido]

A palavra era provavelmente desconhecida para Plauto; ele usaduas vezes fictura (Trinummus, 365; Miles Gloriosus, 1189), mas emambas com um sentido mais próximo à atividade de fabricar do quea seu resultado; nos autores que vêm depois fictura tornou-se muitorara2. A menção de figura chama nossa atenção para uma peculiari­dade de figura: é derivada diretamente da raiz, e não, como natura eoutras palavras de terminação semelhante, do supino (Ernout­Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue latine, 346). Houveuma tentativa (Stolz-Schmalz, Lat. Gramm., 5. ed., 219) para expli­car este fenômeno como uma assimilação a effigies: de qualquermodo essa formação peculiar expressa algo vivo e dinâmico, incom­pleto e lúdico, pois sem dúvida a palavra possui um som gracioso

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que fascinou muitos poetas. Talvez não passe de um acidente que emnossos dois exemplos mais antigos figura apareça combinada ànova; mas mesmo que seja casual, é significativo, pois a novidade ea variação deixaram suas marcas em toda a história desta palavra.

Uma história que começa para nós com a helenização da educa­ção romana no último século antes de Cristo. Três autores tiveramum papel decisivo no começo deste processo: Varrão, Lucrécio eCícero. Claro, não podemos dizer exatamente o que eles aproveita­ram do material mais antigo que foi perdido; mas as contribuiçõesde Lucrécio e Cícero são tão inconfundíveis e originais que não hácomo deixar de creditar-lhes uma parte considerável na criação deseu significado.

Dos três, Varrão é o menos original. Em seus escritos,figura sig­nifica às vezes "aparência externa" ou até mesmo "contorno"3 e,desse modo, começa a afastar-se de seu significado primitivo, o con­ceito mais estreito de forma plástica; isso parece ter sido o resultadode um processo lingüístico geral, cujas causas discutiremos maisadiante. Em Varrão esse desenvolvimento não é muito saliente. Ele

era um etimólogo, cioso da origem da palavra (jictor cum dicit fingofiguram imponit [O artífice de imagens, quando diz fingo (eu mode­lo), põe uma figura em algo]: De lingua latina, 6, 78), e assim, quan­do usa a palavra em relação a criaturas vivas e objetos, há em geraluma conotação de forma plástica. O quanto essa conotação aindaera forte nessa época é algo difícil de decidir às vezes: por exemplo,quando diz que, ao comprar escravos, devemos considerar não ape­nas a figura mas também as qualidades - nos cavalos, a idade; nosgalos, a capacidade de procriação; nas maçãs, o aroma (ibid., 9, 35);ou quando diz que uma estrela mudou de colorem, magnitudinem,figuram, cursum (citado em Agostinho, De civitate Dei, 21, 8); ouquando, em De lingua latina (5, 117), compara as estacas aforquilha­das das paliçadas com a figura da letra latina V. A palavra extrapolao campo da plástica quando ele começa a falar de formas de pala­vras. Como diz em De lingua latina (9, 21), extraímos nova.s formasde vasos dos gregos; mas por que as pessoas lutam contra novaspalavras, formae vocabulorum, como se fossem venenosas? Et tan­tum inter duos sensus interesse volunt, ut oculis semper aliquas figu­ras supellectilis novas conquirant, contra auris expertes velint esse?[E acaso querem que haja tanta diferença entre os dois sentidos, que

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FIGURA

sempre procuram alguns novos modelos de móveis para seus olhos,porém querem também que seus ouvidos estejam livres deles?].Aqui não estamos longe da idéia de que as figuras também existempara o sentido da audição; e devemos ter em mente que Varrão nãoera - como todos os autores latinos - um especialista em filosofiacomprometido com uma terminologia exata, usando portanto figu­ra e forma de modo alternado, no sentido geral de forma. Em ter­mos estritos, forma significava "molde" - o francês "moule" - eestava ligada à figura como a forma vazia ao modelo plástico que saidela; mas em Varrão raramente encontramos algum vestígio dessadistinção, embora talvez haja uma exceção no fragmento citado emGélio (III, 10, 7): semen genitale fit ad capiendam figuram idoneum[a semente geradora torna-se apta a adquirir uma forma].

Como observamos, a inovação efetiva ou a ruptura com o signi­ficado original, que encontramos primeiro em Varrão, ocorre nocampo da gramática. É em Varrão que encontramos, pela primeiravez, figura empregada no sentido de uma forma gramatical, flexio­nada ou derivada. Em Varrão, figura multitudinis significa a formado plural. Alia nomina quinque habent figuras (9, 52) significa:alguns substantivos têm cinco formas de declinação. Esse uso tor­nou-se difundido (d. Thesaurus linguae latinae, VI, s. v. figura,parte 1, III A, 2a, col. 730 e 2e, col. 734); forma também era bastan­te usada no mesmo sentido, a partir da época de Varrão, mas figuraparece ter sido mais popular e freqüente entre os gramáticos latinos.Como é possível que ambas as palavras, mas particularmente figura,cuja forma guarda a clara lembrança de sua origem, adquirissemcom tanta rapidez um significado puramente abstrato? Isso aconte­ceu por causa da helenização da educação romana. Os gregos, comseu vocabulário científico e retórico incomparavelmente mais rico,tinham várias palavras para o conceito de forma: morphe, eidos,schema, typos, plasis, para mencionar apenas as mais importantes.Na elaboração filosófica e retórica da linguagem de Platão eAristóteles, uma esfera especial era designada a cada uma destaspalavras; uma clara linha divisória era traçada particularmente entremorphe e eidos, por um lado, e schema, por outro: morphe e eidoseram a forma ou idéia que "informa" a matéria; schema é o modelopuramente perceptivo; o exemplo clássico disto é a M etafísica deAristóteles, VII, 3, 1029a, na qual ele discute ousia (essência); aqui

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morphe é definida como schema tes ideas, a forma ideal; deste modo,Aristóteles emprega schema, em sentido puramente perceptivo, paradesignar uma das categorias qualitativas, e também o emprega nascombinações com megethos, kinesis e chrõma, que já encontramosem Varrão. Era portanto natural que forma viesse a ser usada nolatim para morphe e eidos, já que originalmente transmitia a noçãode modelo; às vezes encontramos também exemplar; para schemaempregava-se geralmente figura. Mas já que na terminologia gregaerudita - gramática, retórica, lógica, matemática, astronomia ­schema era amplamente empregado no sentido de "aparência exter­na", figura era sempre usada com esse objetivo em latim. Assim,lado a lado com o significado plástico original e matizando-o, sur­gia um conceito bem mais geral de forma gramatical, retórica, lógi­ca, matemática, e mais tarde até de forma musical e coreográfica.Mas o sentido plástico original não foi inteiramente perdido, já quetypos ("impressão") e plasis, plasma ("forma plástica") eram muitasvezes vertidos por figura como o radical fig- sugeria. A partir dosignificado de typos desenvolveu-se o uso da figura como "seloimpresso", uma metáfora com uma história venerável desdeAristóteles (De memoria et reminiscentia, 450a, 31: he kinesis ense­mainetai hoion typon tina tou aisthematos [movimento implica umacerta impressão da coisa sentida], passando por Agostinho (Epist.,162,4 [Patrologia latina, XXXIII, col. 706J e Isidoro (Differentiae,1,528 [Patrologia latina, LXXXIII, col. 63J, até Dante (come figurain cera si suggella [como selo na cera se estampaJ, Purg., 10,45, ouPar., 27, 52)4. Contudo, não foi tão-somente o sentido plástico detypos, mas também a sua tendência para o universal, para o legal eexemplar (d. a combinação com nomikõs, Aristóteles, Política, lI,7, 1341b, 31), que exerceu uma influência sobre figura, e isto porsua vez ajudou a apagar a linha divisória já pálida com forma. Aconexão com palavras como plasis aumentou a tendência de figura- que provavelmente já está presente desde o início, mas só sedesenvolveu lentamente - de expandir-se na direção de "estátua","imagem", "retrato", de usurpar o domínio de statua e até deimago, effigies, species, simulacrum [imagem, efígie, figura, simula­croJ. Deste modo, embora possamos dizer em geral que no uso lati­no figura ocupa o lugar de schema, isto não exaure o poder da pala­vra, a potestas verbi: figura é mais ampla, algumas vezes mais plás-

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FIGURA

tica, em qualquer caso mais dinâmica e luminosa do que schema.Claro, schema em grego é mais dinâmica do que o uso que fazemosdessa palavra; em Aristóteles, por exemplo, a mímica, especialmen­te a dos atores, é chamada de schemata; o significado de forma dinâ­mica não é de modo algum estranho a schema; mas figura desenvol­veu este elemento de movimento e transformação muito mais5•

Lucrécio usa figura no sentido filosófico grego, mas de modoextremamente individual, livre e significativo. Ele começa com oconceito geral de "figura", que ocorre em cada nuance possível dafigura plástica modelada pelo homem (manibus tractata figura, 4,230) até o delineamento puramente geométrico (2, 778; 4, 503); eletranspõe o termo da esfera plástica e visual para a auditiva, quando(em 4, 556) fala da figura verborum [a figura das palavras]6. Aimportante transição da forma para sua imitação, do modelo para acópia, pode ser mais bem observada no trecho que se refere à seme­lhança das crianças com seus pais, à mistura das sementes e à here­ditariedade; às crianças que são utriusque figurae [que têm a figurade um e outro J, parecendo-se com o pai e a mãe, freqüentem enteespelhando proavorum figuras [a fisionomia dos ancestraisJ, e assimpor diante: inde Venus varias producit sorte figuras [então Vênus dáà luz fisionomias de variado tipoJ (4, 1223). Constatamos aqui quesó figura pode servir para esse jogo entre modelo e cópia; forma eimago também estão solidamente ligados a um ou a outro dos doissignificados; figura é mais concreta e dinâmica do que forma.Também aqui, claro, como em relação aos poetas mais tardios, nãodevemos nos esquecer de que figura fornecia uma bela sílaba final,em todas as suas inflexões, para um hexâmetro7. Uma variante espe­cial do significado "cópia" ocorre na doutrina de Lucrécio sobre asestruturas que se desgarram das coisas como películas (membranas)e flutuam no ar, sua doutrina democritiana das "imagens de filme"(Diels), ou eidola, que ele toma em sentido materialista. A essaschama simulacra, imagines, effigies e, às vezes, figurae; por conse­qüência, é em Lucrécio que encontramos pela primeira vez a pala­vra empregada no sentido de "visão de sonho", "imagem da fanta­sia", "fantasma".

Estas variantes tinham grande vitalidade e gozaram de uma car­reira significativa; "modelo", "cópia", "ficção", "visão de sonho"­todos estes significados ligaram-se à figura. Mas foi em outra esfera

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ERICH AUERBACH

que Lucrécio desenvolveu um uso mais engenhoso da palavra.Como se sabe, ele professava a cosmogonia de Demócrito eEpicuro, de acordo com a qual o mundo é feito de átomos. Elechama os átomos de primordia, principia, corpuscula, elementa,semina [primórdios, princípios, corpúsculos, elementos, sementes]e, em sentido muito geral, também os chamou corpora, quorum con­cursus motus ordo positura figuraS [corpos cuja reunião, movimen­to, ordem, posição, forma] (1, 685, e 2, 1021) faz nascer as coisas domundo. Embora pequenos, os átomos são materiais e produzidos:têm formatos infinitamente diversos; e é por isso que ele os chamacom freqüência "formas", figurae, e que reciprocamente se possatraduzir figurae, como Diels fez, por "átomos"9. Os numerososátomos estão em movimento constante; movem-se no vazio, combi­nam-se e repelem uns aos outros: uma dança de figuras. Este uso dapalavra não parece ter continuado depois de Lucrécio; o Thesauruscita apenàs um único outro exemplo deste uso em Claudiano(Rufinum 1, 17), no fim do século IV. Nessa pequena esfera, a cria­ção mais original de Lucrécio não exerceu influência; mas não há

dúvida de que, de todos os autores que estudei em relação à figura,foi Lucrécio que fez a contribuição mais brilhante, embora não sejaa mais importante do ponto de vista histórico.

No uso freqüente e extremamente flexível da palavra porCícero, cada variação do conceito de forma, que possivelmentepoderia ter sido sugerida por sua atividade política, propagandísti­ca, jurídica e filosófica, parece estar representada; e seu uso da pala­vra revela sua natureza agradável, volátil e vacilante. Muitas vezesele a aplica ao homem, aqui e ali em tons de pathos. Em Pro S. Roscio(63), escreve: portentum atque monstrum certissimum est, esse ali­quem humana specie et figura, qui tantum immanitate bestias vice­rit, ut ... [Com toda certeza é aberrante e monstruoso que existaalguém com forma e aparência humanas que tenha a tal ponto supe­rado as feras em atrocidades, que ...]. E, em Pro Q. Roscio (20), taci­ta corporis figura [o silencioso aspecto de um corpo] é a aparênciasilenciosa que por si só revela o patife. Os membros, os órgãosinternos, os animais, os utensílios, as estrelas, em suma, todas as coi­sas perceptíveis têm figura, do mesmo modo que os deuses e o uni­verso como um todo. O sentido de "aparência" e até mesmo de"semelhança" contido na palavra grega schema emerge claramente

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quando ele diz que o tirano possui apenas figura hominis [a aparên­cia de homem] e que as concepções imateriais de Deus são sem figu­ra e sensus [sem aparência e percepção]. As distinções claras entrefigura e forma são raras (por exemplo, De natura deorum I, 90; d.nota 7 deste ensaio) e não estão confinadas ao reino visual; Cícerofala de figura vocis [tipo de voz],figura negotii [tipos de atividade]e, com freqüência, de figurae dicendi [figuras do discurso].Naturalmente as formas geométricas e estereométricas também pos­suem uma figura. No entanto, figura no sentido de cópia ou imagemé pouco desenvolvida em Cícero. Em De natura deorum (I, 71), semdúvida, diz que Cotta, um dos participantes do diálogo, poderiaentender mais facilmente as palavras quasi corpus [como se fossemum corpo] dos deuses, si in cereis fingeretur aut fictilibus figuris [sefosse moldado em figuras de cera ou de barro], e, em De divinatio­ne (1, 23), fala da figura de uma rocha que parece um pequeno PanoMas isso não é suficiente, pois a figura de que está falando é a debarro ou pedra, não do que está representado 10.Cícero usa a pala­vra imagines para a schemata de Demócrito e Lucrécio, que emanado corpo (a corporibus enim solidis et a certis figuris vult jluere ima­gines Democritus [Demócrito pretende que imagens fluam de cor­pos sólidos e de figuras precisas] De divinatione, 2, 137)11, e, emCícero, as imagens dos deuses são geralmente chamadas signa,nuncafigurae. Como exemplo podemos citar a piada maliciosa con­tra Verres (2,2, 89): Verres planejava roubar uma estátua valiosa deum deus numa cidade siciliana, mas apaixonou-se pela esposa do

proprietário: contemnere etiam signum illud Himerae jam videba­tur quod eum multo magis figura et lineamenta hospitae delectabant[já parecia até desprezar aquela estátua de Himera porque a aparên­cia e os traços da hospedeira o deleitavam muito mais]12. Não hásinal de inovações tão ousadas quanto as de Lucrécio. A contribui­ção de Cícero consistiu principalmente em introduzir a palavra como sentido de forma perceptível na linguagem culta. Usou-a sobretu­do em suas obras retóricas e filosóficas, empregando-a com fre­

qüência no seu ensaio sobre a natureza dos deuses. Nestas obrastentou forjar o que hoje chamaríamos de um conceito totalizante deforma. Não é apenas por causa de sua conhecida preocupação comperíodos oratórios bem construídos que ele raramente se contentacom figura apenas, já que em geral acumula várias palavras afins

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com o objetivo de expressar um todo: forma et figura, conformatioquaedam et figura totius oris et corporis, habitus et figura, humanaspecies et figura, vis et figura [forma e aparência, uma certa confor­mação e aparência de todo rosto e corpo, postura e aparência, oaspecto humano e a aparência, a força e a aparência], e muitas outrasdo mesmo tipo. Sua luta por uma visão globalizante do mundofenomenal é inequívoca, e deve ter comunicado algo dela ao leitorromano. Mas falta-lhe o talento adequado para tanto, e sua atitudeeclética fazia com que fosse impossível para ele elaborar e formularuma idéia articulada de forma; seu conceito permaneceu nebuloso.Devemos contentar-nos com a riqueza e o equilíbrio de suas pala­vras. Mas o mais importante para o desenvolvimento subseqüentede figura é outra coisa: é em Cícero e no autor de Ad H erenniumque ela aparece pela primeira vez como um termo técnico da retóri­ca, substituindo o schemata ou charakteres lexeos, os três níveis do

estilo, que, em Ad H erennium (4, 8, 11), são designados como figu­ra gravis, mediocris e extenuata [estilo grave, médio e frágil], e emDe oratore (3, 199 e 212) como plena, mediocris e tenuis [plena,média e tênue]. No entanto, Cícero (como Emil Vetter, autor doartigo "Figura" no Thesaurus lingua latinae, observa claramente[VI, 1. pte., col. 731, 11. 80 s.]) ainda não usa a palavra como umtermo técnico para as circunlocuções ornamentais que chamamos"figuras do discurso". Ainda que as conheça e descreva muito bem,ele não as chama figurae, como os escritores posteriores, mas ­ainda pleonasticamente - formae et lumina orationis [formas eornamentos do discurso]. Emprega a expressão figura dicendi, oucom mais freqüência forma et figura dicendi, não num sentido estri­tamente técnico, mas tão-somente para denotar um modo de elo­qüência, quer em sentido geral, quando deseja dizer que há inume­ráveis espécies de eloqüência (De oratore, 3, 34), quer individual­mente, quando diz que Curio suam quandam expressit quasi for­mam figuram que dicendi [expressou-o como se fosse uma forma eum tipo de discurso próprios dele], ibid., 2, 98). Os estudantes dasescolas de retórica, onde os tratados de Cícero sobre a eloqüênciatornaram-se logo um cânone, acostumaram-se a essa combinação.

Assim, lá pelo fim da era republicana,figura estava firmemen­te arraigada na linguagem da filosofia e no discurso culto, edurante o primeiro século do Império suas possibilidades conti-

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nuaram a desenvolver-se. Como se pode imaginar muito bem,eram os poetas que estavam mais interessados nos matizes do sig­nificado entre modelo e cópia, nas formas variáveis e na seme­lhança ilusória que habitam os sonhos. Catulo (Attis, 62) tem umapassagem bem característica: Quod enim genus figurae est egoquod nom obierim ? [que espécie de figura já não tive?].Propércio13 escreve: (3, 24, 5) mixtam te varia laudavi saepe figu­ra [muito louvei a ti, composta de figuras variadas], ou (4, 2, 21)opportuna meast cunctis natura figuris [minha natureza podeassumir todas as figuras]. E falando, na magnífica conclusão deseu Panegyricus ad Messalam, do poder da morte em mudar asformas humanas, emprega as palavras mutata figura [tendo sidomudada minha figura]; e Virgílio (Eneida, 10,641), ao descrever ofantasma de Enéias que aparece para Turnus, escreve morte obitaqualis fama est volitare figuras [como é fama que, depois damorte, essas figuras volitam]. Mas a fonte mais rica para figura nosentido de uma forma mutável é Ovídio, claro. Por certo ele usa

forma livremente no mesmo sentido da métrica quando requerum dissílabo; mas na maior parte das vezes emprega figura. Elepossui um estoque impressionante de combinações sob seucomando: figuram mutare, variare, vertere, retinere, inducere,sumere, deponere, perdere [mudar, variar, trocar, manter, tomar,assumir, largar, perder a forma de]. Vamos mostrar uma pequenacoleção de exemplos que irá dar uma idéia das inúmeras maneirasem que ele usa a palavra:

...tellus ...partimque figuras/ rettullit antiquas [...a terra ... emparte retomou suas formas antigas] (Metamorfoses, 1, 436);...se mentitis superos celassefiguris [...os deuses se ocultaramem formas mentirosas] (ibid., 5, 326);sunt quibus in plures ius est transire figuras [há aqueles quetêm o privilégio de assumir muitas formas] (ibid., 8, 730);...artijicem simulatoremque figurael M orphea [Morfeu, oartífice e imitador da figura (humana)] (ibid., 11,634);ex aliis alias reparat natura figuras [a natureza recria as for­mas umas a partir das outras] (ibid., 15,253);animam ... in varias doceo migrare figuras [mostro que aalma migra para diferentes formas] (ibid., 15, 172);

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lympha figuras/ datque capitque novas [a água dá e recebenovas formas] (ibid., 15,308).

Há também um belo exemplo da marca da impressão do selo:

Utque novis facilis signatur cera figurisNec manet ut fuerat nec formas servat easdem,Sed tamen ipsa eadem est...[E assim como a cera dúctil é marcada com novas figurase não permanece como tinha sido nem conserva as mesmasformas,embora ela seja a mesma ...] (ibid., 15, 169 ss.).

Além disso, figura já aparece diretamente em Ovídio como"cópia", no Fasti por exemplo (9, 278): globus immensi parva figu­ra poli [mn globo, pequena cópia do céu imenso] ou em H eroides(14, 97) e em Ex Ponto (2, 8, 64); no sentido de "letra", que já foradado por Varrão, ducere consuescat multas manus una figuras [Queuma única mão se acostume a produzir muitos estilos] (Ars amoris,3,493); finalmente, como "posição" na arte de amar: Venerem iun­gunt per mille figuras [fazem amor em mil posições] (Ars, 2, 679).Em todo Ovídio, figura é móvel, mutável, multiforme e ilusória. Apalavra também é usada habilmente por Manilio, o autor deAstronomica, que, ao lado dos significados já referidos, irá empregá­Ia (tal como signum e forma) no sentido de "constelação". Já emLucano e Estácio, aparece com o sentido de visão de sonho.

Em Vitrúvio, o arquiteto, encontramos algo muito diferentedesses significados e daqueles que iremos encontrar nos retóricos.Em seus escritos, figura é a forma plástica e arquitetônica, ou decerto modo a reprodução de tal forma, o plano do arquiteto; aquinão há traço de ilusão ou de transformação; em sua linguagem,figu­rata smilitudine (7, 5, 1) não significa "de modo dissimulado", mas"criar uma semelhança". Muitas vezes figura significa "planta arqui­tetônica" (modice picta operis futuri figura, plano brevemente traça­do da obra a ser construída, 1, 2, 2) e universae figurae species ousumma figuratio significa a forma geral de uma construção ou de umhomem (ele compara freqüentemente os dois do ponto de vista dasimetria). Apesar do eventual uso matemático da palavra, figura

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(assim como fingere) tem um significado definitivamente plásticopara ele e para os outros escritores técnicos do mesmo período;assim, em Festo (98), crustulum cymbi figura14 [um pequeno boloem forma de barco], em Celso, venter reddit mollia, figurata [o ven­tre produz figurações moles] (2, 5, 5), em Columella, ficos compri­munt in figuram stellarum jloscularumque [espremem figos atétomarem a forma de estrelas e pequenas flores] (12, 15, 5). Atémesmo nesse detalhe, Plínio, o Velho, que pertencia a uma classesocial e cultural diferente, é uma fonte bem mais rica; em sua obra,cada nuance dos conceitos de forma e espécie está representada. Atransição de forma para retrato pode ser vista claramente no memo­rável começo do seu trigésimo quinto livro, no qual deplora o declí­nio do retrato na pintura: Imaginum quidem pictura, qua maximesimiles im aevum propagantur figura e [A pintura de quadros com aqual se propagam no tempo imagens muitíssimo fiéis]; e mais adian­te, quando fala dos livros ilustrados com retratos, uma técnicainventada por Varrão: imaginum amorem jlagrasse quondam testessunt ... et Marcus Varro... insertis ... septingentorum illustrium ... ima­ginibus: non passus intercidere figuras, aut vetustatem aevi contrahomines valere, inventor muneris etiam diis invidiosi, quandoimmortalitatem non solum dedit, verum etiam in omnes terras misit,

ut praesentes esse ubique credi possent [O fato de que outrora haviauma paixão por imagens é atestado por ... e também por MarcoVarrão... que inseriu imagens de setecentas pessoas ilustres: nãoadmitindo que as figuras desaparecessem ou que o tempo passadoprevalecesse sobre homens, foi inventor de um recurso invejável atéaos deuses, uma vez que não só deu aos retratados a imortalidade,mas também enviou-a a todos os lugares, para que se pudesse crerque aquelas pessoas estivessem presentes em toda parte].

A literatura jurídica do século I traz alguns poucos trechos emque figura significa "forma externa vazia" ou "semelhança". NoDigesto, 28, 5, 70, encontramos: non solum figuras sed vim quoquecondicionis continere (Próculo ) [conter não só a forma mas tambéma força do acordo] e, no Digesto, 50, 16, 116: Mihi Labeo videturverborum figuram sequi, Proculus mentem [Labeão parece-meseguir a forma das palavras e Próculo, a intenção] Qavoleno).

Do ponto de vista de seu futuro destino, a coisa mais importan­te que aconteceu à figura no século I foi o refinamento do conceito

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de figura retórica. O resultado chegou até nós através do nono livrode Quintiliano. A idéia é mais antiga, é grega; e, como já vimos, foraexpressa em latim por Cícero; mas Cícero ainda não usava a palavrafigura, e, além disso, a técnica da figura de linguagem parece ter sidomuito mais refinada após sua época, durante as infindáveis discus­sões sobre questões retóricas. Quando a palavra foi usada pela pri­meira vez neste sentido é algo que não pode ser determinado comexatidão; provavelmente logo após Cícero, como podemos deduzir,do título de um livro (De figuris sententiarum), do Aneu Comutomencionado por Gélio (9, 10,5), assim como das observações e alu­sões, quer de Sênecal5, quer de Plínio, o Moço. O desenvolvimentoera natural, já que o termo grego era schema. De maneira geral deve­se admitir que o uso técnico da palavra desenvolvera-se anterior­mente, e de modo mais rico do que pode ser mostrado pelas fontesque chegaram até nós; que, por exemplo, as figuras do silogismo (asschemata syllogismou, surgidas com o próprio Aristóteles) devemter sido mencionadas em latim bem antes de Boécio ou do pseudo­agostiniano Livro das categorias.

Na última seção do livro oitavo e no livro nono da Institutiooratoria, Quintiliano fornece um relato detalhado da teoria dos tro­pas e das figuras. Este exame, que parece conter uma crítica abran­gente das obras e opiniões anteriores, tornou-se a obra fundamentalsobre esse tema, e todos os esforços subseqüentes foram baseadosnela. Quintiliano distingue os tropas das figuras; o tropa é um con­ceito mais restrito, referindo-se ao uso das palavras e frases numsentido que não é literal; a figura, por outro lado, é uma forma dediscurso que se desvia do seu uso normal e mais óbvio. O objetivoda figura não é, como em todos os tropas, substituir palavras poroutras palavras; as figuras podem ser formadas com palavras empre­gadas em sentido próprio e na ordem adequada. Basicamente tododiscurso é uma ordenação, uma figura, mas a palavra é usada apenaspara aquelas ordenações que são particularmente desenvolvidas comum sentido poético ou retórico. Desse modo, ele distingue entremodos de discurso simples (carens figuris, aschematistos [sem figu­ras]) e figurados (figuratus, eschematismenos). A distinção entretropa e figura apresenta dificuldades. O próprio Quintiliano hesitamuitas vezes ante a classificação de um recurso de linguagem em umou outro modo; no uso subseqüente, figura é geralmente considera-

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da como o conceito mais alto, abrangendo o tropa, de modo quequalquer forma de expressão não-literal ou indireta passa a ser clas­sificada como linguagem figurada. Como tropas, Quintilianonomeia e indica a metáfora, a sinédoque (mucronem pro gladio;pup­pin pro navi [lâmina por espada, popa por navio], a metonímia(Marte por guerra; Virgílio pela obra de Virgílio), a antonomásia(Pelida por Aquiles) e muitas outras; divide as figuras nas que envol­vem conteúdos e nas que envolvem palavras (figurae sententiarum everborum). Enumera assim as figurae sententiarum: a perguntaretórica respondia pelo próprio orador; os vários meios de anteciparas objeções (prolepses); a simulação de uma confidência para atrairos juízes ou o público; a prosopopéia, em que se põem palavras naboca de outras pessoas, como na de um adversário, ou de personifi­cações, como a pátria; a apóstrofe solene; a ornamentação de umanarrativa com detalhes concretos, evidentia ou illustratio; as várias

formas de ironia; a aposiopese ou obticentia ou interruptio, na qual"engolimos" uma parte da frase; o arrependimento fingido sobrealgo que se disse, e muitos outros exemplos; mas a figura que eraconsiderada a mais importante e que parecia merecer o nome defigura acima de todas as outras era a alusão velada em suas diversasformas. Os oradores romanos desenvolveram uma técnica refinada

de expressar ou insinuar algo sem dizê-Ia; na maioria dos casos algoque, por razões políticas ou táticas, ou apenas por uma questão deefeito, preferiam manter em segredo ou não explicitado. Quintilianodiscorre sobre a importância atribuída ao treino nessa técnica pelasescolas de retórica e conta-nos como os oradores inventavam casos

especiais, controversiae figuratae [controvérsias simuladas], paraaperfeiçoarem-se e distinguirem-se nessa prática. Por fim, mencionacomo "figuras de palavras" os solecismos intencionais, as repetiçõesretóricas, as antíteses, as semelhanças fonéticas, as omissões de pala­vras, o assíndeto, o clímax etc.

Sua exposição de tropas e figuras, da qual demos os exemplosmais essenciais, vem acompanhada por uma abundância de exem­plos e estudos detalhados das diferentes formas de uso, assim comoda diferença existente entre elas; isso ocupa uma grande parte doslivros oitavo e nono. O sistema que ele construiu era muito elabo­rado; ainda que, para um retórica, Quintiliano fosse relativamentelivre em seu pensamento e nada inclinado às sutilezas excessivas que

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eram permitidas pelo espírito da época. A arte das alusões, das insi­nuações e das circunlocuções veladas, calculadas para ornar umafrase ou torná-Ia eficiente ou mordaz, alcançou uma versatilidade eperfeição que nos impressionam como algo estranho, quando nãoabsurdo. Esses recursos de linguagem eram chamados figurae. AIdade Média e o Renascimento, como se sabe, ainda atribuíam gran­de importância à ciência das figuras de linguagem. Para os teóricosdo estilo dos séculos XII e XIII, o Ad Herennium16 era a principalfonte de sabedoria.

É o que temos a dizer sobre a palavra figura na antiguidadepagã; umas poucas extensões gramaticais, retóricas e lógicas derivamautomaticamente dos significados já estabelecidos, e algumas delasjá foram mencionadas por outros escritores17, 18. Mas o significadoque os Padres da Igreja deram à palavra, baseados no desenvolvi­mento que descrevemos nas páginas anteriores, teve uma altaimportância histórica.

2. Figura na profecia fenomenal dos Padres da Igreja

O estranho e novo significado de figura no mundo cristão podeser encontrado pela primeira vez em Tertuliano, que o usa com fre­qüência. Para que se possa esclarecer seu significado é preciso discu­tir algumas passagens. Em seu polêmico Adversus Marcionem (3,

16), Tertuliano fala de Osée, filho de Nun, a quem Moisés (de acor­do com Números 13:16) chamou Josué:

...et incipit vocari Jesus ... Hanc prius dicimus figuram futuro­rum fuisse. Nam quia Jesus Christus secundum populum,quod sumus nos, nati in saeculi desertis, introducturus erat interram promissionis, melle et lacte manantem, id est vitaeaeternae possessionem, qua nihil dulcius; idque nom perMoysen, id est, nom per legis disciplinam, sedper Jesum, idest per evangelii gratiam provenire habebat (termo do latimvulgar para" estava para acontecer"), circumcisis nobis petri­na acie, id est Christi praeceptis; Petra enim Christus; ideo isvir, qui in huius sacramenti imagines parabatur, etiam nomi­nis dominici inauguratus est figura, Jesus cognominatus.

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[...e pela primeira vez ele é chamado Jesus ... esta, observa­mos em primeiro lugar, foi a imagem das coisas que viriam aacontecer, pois Jesus Cristo ia introduzir um segundo povo,que somos nós, nascidos nos desertos deste mundo, na terraprometida, da qual emanam o mel e o leite, isto é, na posseda vida eterna, da qual nada existe de mais doce; e isto tinhade acontecer não por meio da lei de Moisés, isto é, por meioda disciplina da Lei, mas por meio de Jesus, isto é, por meioda graça do evangelho, nossa circuncisão sendo realizadapor uma faca de pedra, isto é, depois de termos sido circun­cidados por uma pedra de cortar, isto é, segundo os precei­tos de Cristo, pois Cristo é a pedra. Por isso, este homem,que era preparado como imagem deste sacramento, foi con­sagrado em figura com o nome do Senhor e, assim, chama­do Jesus.]'

Aqui o nome Josué-Jesus é tratado como um acontecimentoprofético, antecipando coisas que viriam 19. Assim como foi Josué, enão Moisés, que conduziu o povo de Israel para a terra prometidada Palestina, assim a Graça de Jesus, e não a lei judaica, conduz o"segundo povo" para a terra prometida da beatitude eterna. Ohomem que apareceu como a anunciação profética deste mistérioainda oculto, qui in huius sacramenti imagines parabatur, foi apre­sentado sob a figura no nome divino. Deste modo, o nome Josué­Jesus é uma profecia fenomenal ou prefiguração do futuro Salvador;figura é algo real e histórico que anuncia alguma outra coisa quetambém é real e histórica. A relação entre os dois eventos é revela­da por um acordo ou similaridade. Assim, por exemplo, dizTertuliano em Adversus Marcionem (5, 7): Quare Pascha Christus,si non Pascha figura Christi per similitudinem sanguinis salutaris etpecoris Christi? [Como Cristo é Páscoa, a não ser se Páscoa for aimagem de Cristo pela semelhança do sangue salvador e do rebanhode Cristo?]. Muitas vezes, vagas similaridades na estrutura dosacontecimentos ou em circunstâncias relacionadas com eles bastam

para tornar a figura reconhecível; para descobri-Io, temos de estardeterminados a interpretar de um certo modo. Por exemplo, quan­do (ibid., 3,17, ou Adversus Iuadeos, 14) os dois bodes sacrificadosno LevÍtico 16:7 ss. são interpretados como figuras da primeira e da

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segunda vindas de Cristo; ou quando, em De anima, 43 (d. tambémDe monogamia, 5) Eva, como figura Ecclesiae, é desenvolvida a par­tir de Adão como figura Christi: Si enim Adam de Christo figuramdabat, somnus Adae mors erat Christi dormituri in mortem, ut de

iniuria (ferida) perinde lateris eius vera mater viventium figurareturecclesia20 [Pois se Adão fornecia uma figura de Cristo, o sono deAdão era a morte de Cristo, então da mesma maneira pela ferida nosflancos deveria ser figurada a Igreja, a verdadeira mãe de todos osvivos]'

Mais adiante veremos como foi que surgiu o desejo de interpre­tar dessa maneira. Esse tipo de interpretação tinha como objetivomostrar que todas as pessoas e acontecimentos do Velho Testa­mento eram prefigurações do Novo Testamento e de sua histó­ria de redenção. Vale a pena observar que Tertuliano negou expres­samente que a validade literal e histórica do Velho Testamentopudesse ser diminuída pela interpretação figura!. Ele era decidida­mente hostil ao espiritualismo e recusava considerar o VelhoTestamento como mera alegoria; para ele, seu significado era total­mente literal e real, pois, até onde havia profecia figural, a figurapossuía tanta realidade histórica quanto aquilo que profetizava. Afigura profética, em seu entendimento, era um fato histórico concre­to, preenchida por fatos históricos concretos. Por esse motivo,Tertuliano usa o termo figuram implere (Adversus Marcionem, 4,40:figuram sanguinis sui salutaris implere [preencher a figura de seusangue salvador] ou confirmare (De fuga in persecutione, XI:Christo confirmante figuras suas [Cristo confirmando suas figuras]).Daqui em diante iremos nos referir aos dois acontecimentos comofigura e preenchimento.

Como se sabe, Tertuliano era um realista convicto. Para ele,

figura, no simples sentido de "forma", faz parte da substância, e, emAdversus Marcionem (5, 20), irá compará-Ia à carne. Um poucoantes desse trecho (4, 40), dissera a propósito do pão na Eucaristia:

Corpus illum suum fecit "Hoc est corpus meum" dicendo,"ide est, figura corporis mei". Figura autem non fuisset, nisiveritatis esset corpus. Ceterum vacua res, quod est phantas­ma, figuram capere non posset. Aut si propterea panem cor­pus sibi finxit, quia corporis carebat veritate, ergo panem

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debuit tradere pro nobis. Faciebat ad vanitatem Marcionis,ut panis crucifigeretur. Cur autem panem corpus suum appel­lat, et non magis peponem, quem Marcion cordis locohabuit? Non intelligens veterem fuisse istam figuram corpo­ris Christi, dicentis per Ieremiam [11:19]: Adversus me cogi­taverunt cogitatum dicentes, Venite, coniiciamus lignum inpanem eius, scilicet crucem in corpus eius.[Ele transformou-o em seu corpo, dizendo: "Este é meucorpo, isto é, a figura de meu corpo". Pois não teria havidofigura se não houvesse um corpo de verdade. De resto, umacoisa vazia, que é um fantasma, não pode assumir uma figu­ra. E, portanto, se figurou que seu corpo era pão porquecarecia da verdade do corpo, então deveria nos ter oferecidoo pão. Satisfaria a futilidade de Marcião de que o pão fossecrucificado. Mas por que chamar "pão" seu corpo e não"melão", que é o que Marcião tinha no lugar de coração? Elenão percebeu que era antiga esta figura do corpo de Cristo,que disse por meio de Jeremias (11:19): "Tramaram tramascontra mim, dizendo: 'Vinde, lancemos madeira em seu

pão"', ou seja, a cruz em seu corpo.].

Estas frases poderosas - na seguinte, com ênfase nada menor, ovinho,figura sanguinis [figura do sangue], é representado como pro­batio carnis [provação da carne]21 - mostram claramente comoambos os termos eram considerados concretamente na interpreta­ção figural de Tertuliano; em qualquer caso, o único fator espiritualé a cómpreensão, intellectus spiritualis, que reconhece a figura nopreenchimento. Os profetas, afirma em De resurrectione carnis(19 ss.), não falavam apenas através de imagens; pois, se o tivessemfeito, seríamos incapazes de reconhecer as imagens; boa parte doque disseram deve ser tomado literalmente, assim como no NovoTestamento: nec omnia umbrae, sed et corpora; ut in ipsum quoqueDominum insigniora quaeque luce clarius praedicantur; nam etvirgo concepit in utero, non figurate; et peperit Emanuelem nobis­cumJesum Christum, non oblique [nem tudo são sombras, mas tam­bém corpos, de modo que mesmo sobre o próprio Senhor fazem-secertas predições mais claras do que o dia, pois também a Virgemconcebeu em seu útero, não de forma figurada, e gerou, não de

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forma oblíqua, a Emanuel, "Deus conosco", Jesus Cristo]. E atacaresolutamente aqueles que, diante da ressurreição dos mortos, dis­torcem com um "significado imaginário" (in imaginariam significa­tionem distorquent) o que fora claramente proclamado. São muitosos trechos desse teor, em que combate as tendências espiritualizan­tes de grupos de sua época. Seu realismo fica ainda mais claro quan­do trata da relação entre figura e preenchimento, concedendo, ora auma, ora a outro, um nível mais alto de concretude histórica. EmAdversus Marcionem (4, 40), por exemplo, an ipse erat, qui ... tam­quam ovis coram tendente sic os non aperturus, figuram sanguinissui salutaris implere concupiscebat? [Acaso não era ele mesmo ... que,sem abrir a boca - tal como a ovelha diante do tosquiador - dese­java ardentemente preencher a figura de seu sangue salvador?], afigura do servo de Deus como um carneiro parece ser um merosÍmile; em outro trecho, a Lei como um todo é justaposta a Cristocomo seU preenchimento (ibid., 5, 19: de umbra transfertur ad cor­pus, id est, de figuris ad veritatem [Transfere-se da sombra para ocorpo, isto é, das figuras para a verdade]). Pode parecer que, no pri­meiro caso, o sÍmile e, no segundo, a abstração façam com que afigura perca uma certa força de realidade. No entanto não faltamexemplos em que a figura possui a mais alta concretude. Em Debaptismo (5), onde a piscina de Betesda aparece como uma figura dobatismo, encontramos a frase: figura ista medicinae corporalis spiri­talem medicinam canebat, ea forma qua semper carnalia in figuramsipiritalium antecedunt [Esta figura da medicina corporal decantavaa medicina espiritual, segundo aquela regra pela qual as coisas car­nais aparecem sempre antes na figura de coisas espirituais]. Mastanto a piscina de Betesda quanto o batismo são concretamentereais, e tudo o que há de espiritual neles é a interpretação ou o efei­to; pois o batismo, como Tertuliano apressa-se em acrescentar (ibid.,7), também é uma ação carnal: sic et in nobis carnaliter currit unctio,sed spiritaliter proficit; quomodo et ipsius baptismi carnalis actus,quod in aqua mergimur, spiritalis effectus, quod delictis liberamur[Assim também em nós a unção age carnalmente, mas é útil espiri­tualmente; do mesmo modo, o ato do próprio batismo é carnal, umavez que somos mergulhados em água, mas espiritual é o efeito, umavez que somos libertados dos delitos]. Esses exemplos nos dão osentimento de que, até mesmo nos dois primeiros casos, Tertuliano

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tinha em mente não só um cordeiro metafórico, mas também real;não só a lei de modo abstrato, mas também a era da lei como umaera histórica.

Às vezes duas frases estão relacionadas entre si como figura epreenchimento, como em De fuga in persecutione, 11: certe quidembonus pastor animam pro pecoribus ponit; ut M oyses, non Dominoadhuc Christo revelato, etiam in sefigurato, ait: Si perdis hunc popu­lum, inquit, et me pariter cum eo disperde (Êxodo 32:32). Ceterum,Christo confirmante figuras suas, malus pastor est ... Ooão 10:12).

[Decerto o bom pastor dá sua vida pelo rebanho, assim comoMoisés - quando Cristo Senhor não tinha sido ainda revelado,ainda que nele prefigurado - disse: "se destruíres teu povo", disseele, "com ele destróis igualmente a mim por inteiro] (Êxodo 32:32).

E Cristo, confirmando estas figuras, disse: é mau pastor ... Ooão10:12)]. As duas frases são acontecimentos históricos; no entanto,mais do que as frases, são Moisés e Cristo que se relacionam comofigura e preenchiment022. O preenchimento é constantementedesignado como veritas, como se viu em exemplo anterior, e a figu­ra, por sua vez, como umbra ou imago: mas tanto sombra quantoverdade são abstratas apenas em referência ao significado, a princí­pio ocultado para ser revelado em seguida; são concretas em refe­rência às coisas ou pessoas que aparecem como veículos do signifi­cado. Moisés não se torna menos histórico e real porque é umbra oufigura de Cristo; e Cristo, o preenchimento, não é uma idéia abstra­ta, mas uma realidade histórica. As figuras históricas reais devem serinterpretadas espiritualmente (spiritaliter interpretari), mas a inter­pretação aponta para um preenchimento carnal e, por conseguinte,histórico (carnaliter adimpleri: De resurrectione, 20) - pois a ver­dade fez-se carne ou história.

A partir do século IV; o uso da palavra figura e o método deinterpretação a ela ligado estão plenamente desenvolvidos em quasetodos os escritores latinos da Igreja23. Às vezes até mesmo a alego­ria comum era denominada como figura, uma prática que maistarde se tornou usual; em Divinae institutiones (2, 10), Lactânciointerpreta sul e norte como figurae vitae et mortis [figuras da vidae da morte], dia e noite como fé verdadeira e falsa; mas logo a noçãocristã de prefiguração e preenchimento se impõe: etiam in hocpraescius futurorum Deus fecit, ut ex iis, et verae religionis, et falsa-

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rum superstitionum imago quaedam ostenderetur [e também quan­to a isto, presciente das coisas futuras, Deus fez que delas se exibis­se uma imagem tanto da verdadeira religião quanto das falsassuperstições]. Assim figura aparece freqüentemente no sentido de"significado mais profundo em relação a coisas futuras": os sofri­mentos de Jesus non fuerunt inania, sed habuerunt figuram et sig­nificationem [não foram vãos, mas tiveram forma e significação], e,dentro desse contexto, ele fala das obras divinas em geral quorumvis et potentia valebat quidem in praesens, sed declarabat aliquid infuturum [cuja força e poder vigoravam no presente, mas anuncia­vam algo para o futuro]. Esta concepção domina igualmente a suaescatologia, que, segundo uma especulação muito comum na época,interpretava os seis dias da Criação como seis milênios, cujo fim seaproximava; o reino milenar era iminente (ibid., 7, 14): saepe dixi­mus, minora et exigua magnorum figuras et praemonstrationes esse;ut hunc diem nostrum qui ortu solis occasuque finitur, diei magnispeciem gerere, quem circuitus annorum mille determinat. Eodemmodo figuratio terreni hominis caelestis populi praeferebat in poste­rum fictionem24 [Com freqüência dissemos que coisas menores epequenas são figuras e indicações prévias das coisas grandes. Assimcomo este dia de hoje, que é limitado pelo nascer e pôr do sol, temsemelhança com o grande dia, que o ciclo de mil anos determina,assim também a figuração do homem terreno antecipava a parábo­la do povo celeste no futuro].

Na maior parte dos autores do mesmo período, a interpretaçãofigural e seus exemplos mais famosos são moeda corrente2S, bemcomo a contraposição entre figura e veritas. Mas encontramos àsvezes um modo de interpretação mais espiritualista e alegórico,como nos comentários de Orígenes à Bíblia. Rufino, o tradutorlatino de Orígenes (Patrologia graeca, 12,209; o original grego per­deu-se), num trecho a propósito do sacrifício de Isaac - que é porsua vez um dos mais famosos exemplos do tipo realista de interpre­tação figural -, diz o seguinte: Sicut in Domino corporeum nihilest, etiam tu in his omnibus corporeum nihil sentias: sed in spiritugeneres etiam tu filium Isaac, cum habere coeperis fructum spiritus,gaudium, pacem [Assim como no Senhor não há nada corpóreo, tutambém em todas as coisas nada corpóreo sintas; mas que, em espí­rito, tu mesmo geres teu filho Isaac, quando começares a possuir o

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fruto do espírito, a alegria, a paz]. Orígenes, por sua vez, está longede ser tão abstratamente alegórico quanto, por exemplo, Filo; emseus escritos, os acontecimentos do Velho Testamento parecemvivos, tendo uma relação imediata com o leitor e sua vida real; aindaassim, em sua bela explicação da jornada dos trê~ dias no Êxodo,por exemplo (loc. cit., p. 313 ss.), as considerações místicas e moraisparecem ofuscar o elemento estritamente históric026. A diferençaentre a interpretação mais histórica e realística de Tertuliano e a

visão ética e alegórica de Orígenes reflete um conflito corrente, queconhecemos através de outras fontes do cristianismo primitivo:uma facção lutava para transformar os acontecimentos do NovoTestamento, e mais ainda do Velho Testamento, em acontecimentospuramente espirituais, "espiritualizando" seu caráter histórico - aoutra queria preservar a plena historicidade das Escrituras ao ladode seu significado mais profundo. No Ocidente, esta última ten­dência foi vitoriosa, embora os espiritualistas tenham mantido sem­pre uma certa influência, como se pode verificar pelo avanço dadoutrina dos significados múltiplos da Escritura; pois, se os adep­tos dessa doutrina reconhecem o sentido literal ou histórico, pro­curam desligá-Io da conexão igualmente real com a prefiguração,construindo outras interpretações puramente abstratas ao lado dainterpretação figural ou em seu lugar. Santo Agostinho exerceu umpapel decisivo no compromisso entre as suas doutrinas. De modogeral, ele favoreceu uma interpretação viva, figural, pois seu pensa­mento era bastante histórico e concreto para se contentar com umaalegoria puramente abstrata.

Toda a tradição clássica fazia-se muito viva em Santo

Agostinho, e seu uso da palavra figura é mais uma comprovaçãodesse aspecto. Em seus escritos, vamos encontrá-Ia exprimindo anoção geral de forma em todas as suas variantes tradicionais,designando estática e dinâmica, contorno e corpo; é aplicada aomundo, à natureza como um todo e ao objeto em particular; aolado de forma, color e assim por diante, representa a aparênciaexterna (Epist., 120, 10, ou 146, 3) ou pode significar o aspectovariável em oposição à essência imperecível. É neste último senti­do que interpreta I, Cor. 7:31: Peracto quippe iudicio tunc esse desi­net hoc coelum et haec terra, quando incipiet esse coelum novum etterra nova. Mutatione namque rerum non omni modo interitu

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transibit hic mundus. Unde et apostolus dicit: praeterit enim figu­ra huius mundi, volo vos sine sollicitudine esse. Figura enim prae­terit, non natura [Terminado o julgamento, então este céu e estaterra deixarão de existir e começarão a existir um novo céu e umanova terra. Mas este mundo sofrerá apenas transformação, nãodestruição total. Por isso, o apóstolo disse: pois a forma destemundo passa, e quero que não vos preocupeis. Passa a forma, nãoa natureza] (De civitate Dei, 20, 14). Figura surge também comoum ídolo, uma imagem de sonho ou uma visão, uma forma mate­mática; quase nenhuma de suas variantes está faltando. Mas namaioria das vezes aparece com o sentido de prefiguração.Agostinho adotou explicitamente a interpretação figural do VelhoTestamento e recomendou enfaticamente seu emprego em sermõese missões (por exemplo, De catechizandis rudibus, IH, 6), desen­volvendo esse método. Todo o seu repertório de interpretaçõeschegou até nós através de sua obra: a arca de Noé é praefiguratioecclesiae [a prefiguração da Igreja] (De civitate Dei, 15, 27); devárias maneiras diferentes, Moisés é figura Christi (por exemplo,De civitate Dei, 10, 8, ou 18, 11); o sacerdotium de Aarão é umbra

et figura aeterni sacerdotii [a sombra e o simulacro do eternosacerdote] (ibid., 17, 6); Hagar, a escrava, é uma figura do VelhoTestamento, da terrenajerusalem, e Sara, do Novo Testamento, dasuperna jerusalem civitas Dei [a celestial Jerusalém, cidade deDeus] (ibid., 16,31; 17,3; Expos. ad GaIatas, 40); Jacó e Esáufigu­ram praebuerunt duorum populorum in Christianis et Iudeis [pre­figuraram dois povos, os judeus e os cristãos] (De civitate Dei, 16,42); o rei da Judéia (Christi) figuram prophetica unctione gestabant(ibid., 17,4) [por meio da unção profética traziam a si a prefigura­ção do Cristo]. Estes são apenas alguns exemplos; todo o VelhoTestamento, ou pelo menos seus personagens e acontecimentosmais importantes, é interpretado figuralmente; até mesmo ondesignificados secretos são encontrados, como por exemplo na ora­ção de graças de Ana (I Samuel2:1-10), em De civ., 17,4, a inter­pretação não é apenas alegórica mas também figural; o canto degraças de Ana pelo nascimento de seu filho Samuel é explicadocomo uma figura para a transformação do antigo reino terrestre edo antigo sacerdócio no novo reino celeste e no novo sacerdócio;ela própria transforma -se em figura ecclesiae.

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Agostinho rejeitou enfaticamente a interpretação alegórica dasSagradas Escrituras, bem como a noção de que o Velho Testamentoera uma espécie de livro hermético que só se tornava inteligível quan­do nos desembaraçávamos de seu significado histórico literal e de suainterpretação vulgar. Sustentou que cada crente poderia penetrar emseu conteúdo sublime. Em De trinitate (11, 2) escreve: ...sancta scrip­tura parvulis congruens nullius generis rerum verba vitavit, ex quibusquasi gradatim ad divina atque sublimia noster intellectus velut nutri­tus assurgeret [a Santa Escritura, adaptando-se a crianças, não evitoupalavras de nenhum gênero de coisas, a partir das quais nosso intelec­to, como que gradativamente alimentado, ergueu-se até aquelas divi­nas e sublimes]. Mais uma vez, referindo-se de modo mais direto aoproblema das figuras: Ante omnia, fratres, hoc in nomine Domini etadmonemus, et praecipimus, ut quando auditis exponi sacramentumscripturae narrantis quae gesta sunt, prius illud quod lectum est creda­tis sic gestum, quomodo lectum est; ne substrato fundamento rei ges­tae, quasi in aere quaeratis aedificare (Serm., 2, 6)27 [Antes de tudo,irmãos, em nome do Senhor advertimos e recomendamos que, quan­do ouvirdes expor-se o sacramento da escritura a narrar as ações queforam realizadas, creiais que foi realizado aquilo que se lê, para que,subvertido o fundamento da ação realizada, não vénhais a erguer umedifício como que no ar]. Ele postulava - e isso se tomou parte datradição - que o Velho Testamento estava constituído de pura pro­fecia fenomenal e enfatizava mais do que os outros certas passagensdas epístolas paulinas, que iremos comentar mais adiante. O cumpri­mento da lei, quas tamquam umbras futuri saeculi nunc respuuntChristiani, id tenentes, quod per illas umbras figurate promittebatur[que os cristãos agora descartam como sombras do século futuro,possuindo eles aquilo que, por meio daquelas sombras, era figurada­mente prometido], e os mistérios, quae habuerunt promissivas figuras[que tinham figuras de promessa], são a letra da Escritura, precisa­mente no sentido em que sua indubitável realidade histórica e carnaltinha sido, também historicamente, revelada e interpretada espiritual­mente pelo preenchimento cristão - e, como logo veremos, substi­tuída por uma promessa nova, mais completa e mais clara. Em conse­qüência, um cristão deve seguir non ad legem operum, ex qua nemoiustificatur, sed ad legem fidei, ex qua iustus vivit [não a lei das obras,pela qual ninguém é absolvido, mas a lei da fé, pela qual o justo vive]

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(De spzrztu et littera, XlV, 23). Os judeus do Velho Testamento,quando adhuc sacrificium verum, quod fideles norunt, in figurispraenuntiabatur, celebrabant figuram futurae rei; multi scientes, sedplures ignorantes [quando ainda era prenunciado o verdadeiro sacri­fício que os fiéis conhecem, celebravam a prefiguração da realidadefutura. Sábios havia muitos; ignorantes, porém, havia mais] (Enarr.in Psalm., 39, 12); enquanto os judeus que vieram depois, e aqui eletoca num tema que estaria presente em todas as polêmicas subse­qüentes contra os judeus28, recusam-se, em sua cegueira empederni­da, a reconhecê-Io: Non enim frustra Dominus ait Judaeis: si crede­retis M oysi, crederetis et mihi; de me enim ille scripsit [Pois não foi àtoa que o Senhor disse aos Judeus: "se acreditásseis em Moisés, acre­ditaríeis também em mim; foi de mim que ele escreveu] Goão, 5,46);carnaliter quippe accipiendo legem, et eius promissa terrena rerumcoelestium figuras esse nescientes [pois eles aceitavam esta lei carnal­mente, ignorando que as promessas terrenas eram figuras das coisascelestes] (De civ., 20, 28). Mas o preenchimento "celestial" não écompleto e, em conseqüência, como acontece em certos escritoresanteriores e mais claramente em Agostinho, o confronto entre osdois pólos, o da figura e o do preenchimento, é às vezes substituídopor um desenvolvimento em três estágios: a Lei ou a história dosjudeus como uma figura profética do surgimento de Cristo; a encar­nação como preenchimento desta figura e ao mesmo tempo comouma nova promessa do fim do mundo e do Juízo Final; e, por últi­mo, a ocorrência futura destes acontecimentos como o preenchimen­to derradeiro. Em Serm., 4, 8, lemos: Vetus enim Testamentum est

promissio figurata, novum Testamentum est promissio spiritualiterintellecta [O Velho Testamento é uma promessa figurada, o Novo éuma promessa compreendida pelo espírito], e de modo ainda maisclaro em Contra Faustinum, 4, 2: Temporalium quidem rerum pro­missiones Testamento Veteri contineri, et ideo Vetus Testamentum

appellari nemo nostrum ambigit; et quod aeternae vitae promissioregnumque coelorum ad Novum pertinet Testamentum: sed in illistemporalibus figuras fuisse futurorum quae implerentur in nobis, inquos finis saeculorum obvenit, non suspicio mea, sed apostolicus intel­lectus est, dicente Paulo, cum de talibus loqueretur: Haec omnia ...[Pois nenhum de nós duvida que o Velho Testamento contém pro­messas de coisas temporais e que, por isso, é chamado Velho

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Testamento, e que a promessa de vida eterna e do reino dos céus per­tence ao Novo Testamento; mas que naquelas coisas temporaishouve prefigurações de coisas futuras que seriam preenchidas emnós, a quem o fim dos séculos se aproxima, não é suspeita minha,mas interpretação apostólica, como em Paulo, que diz, ao falar de talassunto: tudo isto ...]. E neste momento Agostinho cita I Cor. 10:6 e11. Embora aqui o preenchimento derradeiro seja visto como imi­nente, é claro que Agostinho tem em mente duas promessas, umaoculta e aparentemente temporal no Velho Testamento, outra clara­mente expressa e supratemporal no Evangelho. Isto confere à dou­trina do significado quádruplo da Escritura um caráter bem mais rea­lístico, concreto e histórico, pois três dos quatro significados torna­ram-se concretos, históricos e inter-relacionados, enquanto só umpermanece puramente ético e alegórico. Como Agostinho explica emDe genesi ad litteram, 1, 1: In libris autem omnibus sanctis intuerioportet, quase ibi aeterna intimentur [Em todos os livros santos épreciso olhar que coisas lá revelam-se eternas], isto é: o fim domundo e a vida eterna na interpretação analógica; quae futura prae­nuntientum [que prenunciam fatos futuros], ou seja, a interpretaçãofigural em sentido estrito: no Velho Testamento, as prefigurações davinda de Cristo; quae agenda praecipiantur vel moneantur [queordenem ou aconselhem o que se deve fazer], ou seja, o sentido ético.

Embora Agostinho rejeite o espiritualismo abstrato alegórico edesenvolva sua interpretação do Velho Testamento com base na rea­lidade histórica concreta, conserva no entanto um idealismo quetransfere o acontecimento concreto, completamente preservadoenquanto tal, para fora do tempo, e o transpõe para o plano da eter­nidade. Tais idéias estavam implícitas na noção da encarnação doVerbo; a interpretação figural da história abriu caminho para queelas se manifestassem logo. Quando Tertuliano, por exemplo, diz(Adversus Marcionem, 3, 5) que, em Isaías 50:6, dorsum meum posuiin flagella (na Vulgata, corpus me um dedi percutientibus) [ofereci ascostas às chicotadas (Vulgata: dei meu corpo aos flageladores)], ofuturo é representado figuralmente pelos acontecimentos passados,acrescenta que, para Deus, não há differentia temporis [diferença detempo]. Mas nenhum dos precursores de Agostinho chegou adesenvolver essa idéia de modo tão profundo e integral quanto opróprio Agostinho. Aqui e ali ele enfatiza a oposição sentida por

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Tertuliano apenas com o emprego do pretérito perfeito na narrativa;em De civ., 17, 8, por exemplo: Scriptura sancta etiam de rebus ges­tis prophetans quodammodo in eo figuram delineat futurorum [ASanta Escritura, profetizando também sobre as ações realizadas, decerto modo delineia lá uma prefiguração das coisas futuras]; ou emrelação a uma discrepância entre o Salmo 113, In exitu, e a narrati­va correspondente no Êxodo (Enarr. in Psalm., 113, 1): ne arbitre­mini nobis narrari praeterita, sed potius futura praedici ... ut id, quodin fine saeculorum manifestandum reservabatur, figuris rerum atqueverborum praecurrentibus nuntiaretur [não julgueis que sejam fatospassados o que está sendo narrado, mas, ao contrário, que sejamfatos futuros o que está sendo predito ... de modo que aquilo queestava reservado para ser manifesto no fim dos tempos já era anun­ciado, por meio de figuras de objetos e de palavras, aos que nos pre­cederam]. Talvez a visão de Agostinho acerca do caráter eterno dasfiguras possa ser melhor apreciada numa passagem que não se refe­re explicitamente à interpretação figural: Quid enim est praescientia,nisi scientia futurorum? Quid actem futurum est Deo qui omniasupergreditur tempora? Si enim scientia Dei res ipsas habet, non suntei futurae, sed praesentes; ac per hoc non jam praescientia, sed tan­tum scientia dici potest [O que é a previsão, senão o conhecimentodo futuro? O que é o futuro para Deus, que atravessa todos os tem­pos? Se, pois, o conhecimento de Deus contém estas coisas, para Eleelas não são futuras, mas presentes; por isso, já não pode ser nomea­da previsão, mas apenas conhecimento] (De div. quaest. adSimplicianum, II, qu. 2, n. 2).

A interpretação figural foi de grande uso prático para as missõesdo século IV e seguintes; foi constantemente empregada em sermõese na instrução religiosa, muitas vezes, claro, misturada com inter­pretações puramente éticas e alegóricas. A Formulae spiritalis intel­ligentiae29 do bispo Euquério de Lyon (começo do século V), edu­cado em Lérins, é um manual de interpretação figural e ética; noséculo VI temos o Instituta regularia divinae legis de Junílio,Quaestor sacri palatii (Patrologia latina, vol. 68, cols. 15 ss.), que éuma tradução de uma obra grega influenciada pela escola deAntióquia; em seu primeiro capítulo encontramos a seguinte doutri­na: Veteris Testamenti intentio est Novum figuris praenuntiationi­

busque monstrare; Novi autem ad aeternae beatitudinis gloriam

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humanas mentes accendere [A intenção do Velho Testamento édemonstrar o Novo por meio de figuras e profecias; e a intenção doN ovo é despertar as mentes dos homens para a glória da felicidadeeterna]. Um exemplo prático de como a interpretação figural foiusada na educação dos novos convertidos é fornecido pela explica­ção do sacrifício pascal no segundo sermão do bispo Gaudêncio deBrescia (Patrologia latina, 20, col. 855), que nos dá talvez umaexpressão inconsciente da perspectiva figural quando afirma que afigura (anterior no tempo) não é veritas, mas imita tio v erita tis.Encontramos interpretações figurais muito estranhas e forçadas,misturadas a alegorias abstratas, éticas. Mas a visão básica de que oVelho Testamento, tanto no seu todo quanto em seus detalhes maisimportantes, é uma prefiguração histórica concreta do Evangelhotornou-se uma tradição firmemente enraizada.

Agora vamos voltar à nossa investigação semântica e indagarcomo os Padres da Igreja chegaram ao novo sentido de figura. Osprimeiros trabalhos da literatura cristã foram escritos em grego, e apalavra mais freqüentemente usada neles como "prefiguração" - naEpístola de Barnabas, por exemplo - é typos. Isto nos conduz à

presunção - que deve ter surgido para o leitor a partir de algumasde nossas citações, os trechos de Lactâncio, por exemplo - de quefigura passou diretamente de seu significado geral de "formação" ou"forma" para seu novo significado; e de fato seu uso pelos mais anti­gos escritores eclesiásticos parece indicar que tenha sido mesmoassim. Quando escrevem que as pessoas ou os acontecimentos doVelho Testamento figuram Christi (ecclesiae, baptismi etc.) geruntou gestant [produzem, prefazem uma figura de Cristo], que o povojudeu em todas as coisas figuram nostram portat [traz nossa figura],que a Sagrada Escritura figuram delineat futurorum [delineia afigura das coisas por vir], figura nestas frases pode ser traduzidasimplesmente por "forma". Mas aí a idéia de schema, tal como foimoldada pela poesia e oratória pré-cristãs - a imagem retórica oucircunlocução que oculta, transforma e até engana -, entra em ação.A oposição entre figura e veritas, a interpretação (exponere) e arevelação (aperire, revelare)3° de figuras, a equação de figura comumbra, de sub figura com sub umbra (por exemplo, ciborum [do ali­mento], ou, num sentido mais geral, legis [da lei], a noção de umafigura sob a qual alguma outra coisa futura, verdadeira, jaz oculta)

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- tudo isto mostra que o velho sentido da imagem retórica sobre­viveu, embora tivesse se transferido do mundo puramente no mina­lista das escolas de oratória e dos mitos meio brincalhões de Ovídio

para um domínio tanto real quanto espiritual, por conseguinte,autêntico, significativo e existencial. A distinção entre figuras depalavras e figuras de substância que encontramos em Quintiliano éresumida na distinção entre figura verborum e figurae rerum, pala­vras e acontecimentos proféticos ou profecias fenomenais.

Sobre esta nova base, a palavra ampliou consideravelmente oalcance de sua significação. Encontramos figura como" o significa­do mais profundo" em Sedúlio por exemplo (ista res habet egregiamfiguram [este fato tem um significado notável], Carm. pasch., 5, 384 s.)e em Lactâncio; como "engano" ou "forma enganosa" (Filástrio 61,Liber de Haeresibus, Patrologia latina, vol. 12, col. 1176) (sub figu­

ra confessionis christianae [sob a figura da fé cristã], significando"alegando ser cristãos"), ou Sulpício Severo, De vita beati Martini,21, 1 (Patralogia latina, vol. 20, col. 172), que diz que o Demôniosive [se] in diversas figuras spiritalis nequitiae transtulisset [transfor­mou-se em diversas formas de perversidade espiritual], ou Leo, oGrande, Epist. 98, 3 (Patralogia latina, 54, 955: lupum pastorali pellenudantes, qua prius quoque figura tantummodo convincebaturobtectus [Despindo o lobo da sua pele de ovelha, com a qual poucoantes ele se mostrava disfarçado]; como "uma forma enganosa defalar" ou "vazia" ou "subterfúgio" (per tot figuras ludimur [pormeio de tantas figuras sofremos zombaria], Prudêncio,Peristephanon, 2, 315, ou Rufino, Apologia adversus Hieronymus, 2,22: qualibus (Ambrosium) figuris laceret [com quais figuras ator­mentou Ambrósio]; ou simplesmente como "discurso" ou "pala­vra" (te... incauta violare figura [magoar-te com uma expressão des­cuidada], Paulinus de Nola, Carmina, 11, 12); e finalmente emvariações do novo significado que mal permitem uma traduçãoapropriada: no canto De actibus apostolorum do subdiácono Aratordo século VI (Patrologia latina, 68, cols. 83 ss.), encontramos os ver­sos: tamen illa figura, qua sine nulla vetus (i. e., Veteris Testamenti)subsistit littera, demun hac melius novitate manet [porém aquela

figura, sem a qual nenhuma letra do Velho Testamento subsiste, pre­cisamente no Novo permanece de forma mais eficaz] ('éBk. 2, el.361-3); e, por esta mesma época, uma passagem nos escritos do

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bispo Avito de Viena (Poema, 5, 1. 284, MG Auct. ant., VI, 2)31, naqual ele fala do ]uízo Final; assim como Deus, ao matar os primo­gênitos no Egito, poupou as casas marcadas com sangue, possa Eletambém reconhecer e poupar os fiéis pelo signo da Eucaristia: Tucognosce tuam salvanda in plebe figuram [Tu reconheces tua própriafigura no povo que deve ser salvo].

Ao lado da contraposição entre figura e preenchimento ou ver­dade, aparece uma outra, entre figura e historia; historia ou littera éo sentido literal ou o acontecimento relatado;figura é o próprio sig­nificado literal ou acontecimento referido ao preenchimento neleoculto, e este preenchimento é veritas, de modo que figura torna-seo termo do meio entre littera-historia e veritas. Nesta conexão, é

equivalente a spiritus ou intellectus spiritalis, algumas vezes substi­tuído por figuralitas, como na seguinte passagem de ContinentiaVergiliana de Fulgêncio (90, 1): sub figuralitate historiae plenumhominis monstravimus statum [sob a figuração da história mostra­mos a situação completa do homem]. Naturalmente figura e histo­ria podem ser usados de modo permutável (ab historia in mysteriumsurgere [de história nascer para o mistério]), diz Gregório, o Grande(Ezequiel. 1,6,3), e, além disso, tanto historiare quanto figurare sig­nificam "representar em imagens", "ilustrar"; a primeira, no entan­to, apenas no sentido literal, mas a segunda também no sentido de"interpretar alegoricamente"32.

Figura não é a única palavra latina usada como prefiguraçãohistórica; encontramos com freqüência o termo grego allegoria e,ainda com maior freqüência, typus; allegoria em geral refere-se aqualquer significado profundo, e não apenas à profecia fenomenal,mas o limite é fluido, pois figura e figuraliter constantementeestendem-se para além da profecia figural. Tertuliano usa allegoriaquase como sinônimo de figura, embora com menos freqüência, eem Arnóbio (Adversus nationes, 5, 32; Patrologia latina, vol. 53,col. 1147) encontramos historia como oposto de allegoria; allegoriatambém beneficiou-se da autoridade de Gal. 4: 24. Mas allegorianão podia ser usada como sinônimo de figura em todos os contex­tos, pois não tinha a mesma implicação de "forma"; não se podiaescrever que Adam est allegoria Christi [Adão é uma alegoria decristo]. Quanto a typus, a única razão por que perdeu terreno parafigura foi por ser uma palavra estrangeira. Mas esta consideração

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não pode ser negligenciada, pois, para qualquer um que falasselatim (ou mais tarde uma língua românica),figura evocava mais oumenos conscientemente todas as noções envolvidas em sua história,

enquanto typus permanecia um signo importado, sem vida. Quantoàs palavras latinas que eram ou pelo menos podiam ser empregadascomo prefiguração em lugar de figura, temos as seguintes: amba­ges, effigies, exemplum, imago, similitudo, species e umbra.Ambages foi eliminada por ser pejorativa demais; effigies, no senti­do de "cópia", era muito limitada e, mesmo em comparação comimago, parece ter desenvolvido pouco poder de expansão; as outrassubstituíam o sentido de "profecia figural" de várias maneiras, massem satisfazê-Io plenamente. Todas eram usadas ocasionalmente,mas as mais freqüentes eram imago e umbra. Imagines, no absolu­to e sem genitivo, era empregada para as estátuas dos ancestrais nascasas romanas; no uso cristão converteu-se nas pinturas e estátuasdos santos, de modo que o seu significado desenvolveu-se numadireção diferente; no entanto, de acordo com a Vulgata, os homensforam feitos ad imaginem Dei [à imagem de Deus] e, em conse­qüência, imago era a única que competia com figura, mas apenasnos trechos em que o contexto tornava o significado "imagem"idêntico a "prefiguração". Umbra foi empregada principalmenteem alguns poucos trechos das epístolas paulinas (Col. 2:17; Heb.8:5 e 10:1); ocorre com freqüência, mas muito mais como umavariação metafórica de figura do que como uma designação direta.Nenhuma dessas palavras, em qualquer aspecto, combinava os ele­mentos do conceito de modo tão integral quanto figura: o princí­pio formativo, criativo, a mudança da essência que permanece, osmatizes de significado entre cópia e arquétipo. Por todos essesmotivos, não é surpreendente que figura passasse a ser usada demodo amplo e constante com essa finalidade.

3. Origem e análise da interpretação figural

Na última seção, deixamos de lado a pura discussão semântica

para fazer uma série de digressões, já que a idéia expressa pela pala­vra figura, tal como é usada pelos Padres da Igreja, precisava serexplicada. Torna-se portanto necessário investigar as origens dessa

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idéia de maneira bem detalhada, para distingui-Ia de idéias com elarelacionadas e também com o objetivo de examinar o seu destinohistórico e sua influência.

Os Padres da Igreja justificam com freqüência a interpretaçãofigural baseados em certas passagens dos primeiros escritos cristãos,sobretudo das epístolas paulinas33. A mais importante é I Cor. 10:6

e 11, onde os judeus no deserto são denominados typoi hemõn[figuras de nós mesmos] e onde está escrito que tauta de typikossynebainem ekeinois [estas coisas lhe aconteciam como figuras].Uma outra passagem freqüentemente citada é Gal. 4:21-31, em quePaulo explica aos recém-batizados gálatas, que sob a influência dojudaísmo queriam ser cincuncisados, a diferença entre a lei e a graça,a velha e a nova aliança, servidão e liberdade, através do exemplo deHagar-Ismael e de Sara-Isaac, ligando a narrativa no Gênesis aIs.54:1 e interpretando-a em termos de profecia figural. Há aindaoutros trechos, entre os quais Col. 2:16 s., dizendo que as leis dadieta judaica e os dias sagrados judaicos são apenas a sombra dascoisas futuras, já que o corpo é Cristo; Rom. 5:12 ss. e I Cor. 15:21,

onde Adão aparece como o typos do futuro Cristo e a graça é opos­ta à lei; II Cor. 3:14, que fala do véu (kalymnos) que cobre aEscritura quando os judeus a lêem; e finalmente Heb. 9:11 ss., emque o sacrifício do sangue de Cristo é representado como o preen­chimento do sacrifício do grão-sacerdote no Velho Testamento.

Certos trechos nos Atos (por exemplo, 8:32) mostram que ainterpretação figural desempenhou um papel importante na missãocristã desde o seu começo. Parece natural que os novos judeu-cris­tãos procurassem prefigurações e confirmações de Jesus no VelhoTestamento e incorporassem na tradição as interpretações assimobtidas; especialmente porque havia uma noção corrente entre elesde que o Messias seria um segundo Moisés, de que sua redençãodeveria ser um segundo êxodo do Egito, no qual os milagres do pri­meiro seriam repetidos34. Isto não requeria maiores explicações.Mas um exame dos trechos citados acima, particularmente quandoconsiderados em relação com o conjunto da pregação de Paulo,mostra que, em Paulo, essas concepções judaicas combinavam-secom uma hostilidade declarada às idéias dos judeu-cristãos e que éesta atitude que lhes dá uma significação especial. Essas passagensdas epístolas paulinas que contêm interpretações figurais foram

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quase todas escritas durante a penosa luta de Paulo no interesse desua missão entre os gentios; muitas eram respostas aos ataques eperseguições dos judeu-cristãos; quase todas procuravam eliminardo Velho Testamento seu caráter normativo e mostrar que nele tudoé apenas uma sombra das coisas futuras. Toda sua interpretaçãofigural estava subordinada ao tema básico da doutrina paulina dagraça contra a lei, da fé contra as obras: a velha lei é anulada; ela ésombra e typos; a obediência a ela tornou-se inútil e até perniciosatendo em vista o sacrifício de Cristo; um cristão não é justificadopor suas obras em obediência à lei, mas pela fé; em seu sentido legal,judeu e hebraico, o Velho Testamento é a letra que mata, enquantoos novos cristãos são servos da nova aliança, do espírito que dá avida. Esta era a doutrina de Paulo, e os antigos fariseus e discípulosde Gamaliel procuravam ansiosamente no Velho Testamento os tre­chos que confirmassem essa doutrina. O Velho Testamento, em seutodo, deixou de ser para ele um livro da lei e da história de Israelpara tornar-se, de modo integral, uma promessa e uma prefiguraçãode Cristo, um livro em que não há nenhum significado definitivo,mas tão-somente profético, e que só fora preenchido agora, no qualtudo está escrito "para nossa salvação" (I Cor. 9:10, d. Rom. 15:4) eonde justamente os acontecimentos mais importantes e sagrados, asleis e os sacrifícios são formas provisórias e prefigurações de Cristoe do Evangelho: etenim Pascha nostrum immolatus est Christi [poisem nossa Páscoa Cristo foi imolado] (I Cor. 5:7)35.

Seu pensamento, que combinava de modo notável a prática polí­tica com uma fé poética criativa, transformou a concepção judaicada ressurreição de Moisés em um novo sistema de profecia figural,no qual o novo Messias preenche e anula ao mesmo tempo a obrarealizada pelo seu precursor. Desta maneira, o que o VelhoTestamento perdia como livro de uma história nacional, ganhava ematualidade dramática concreta. Paulo não formulou uma interpreta­ção sistemática do Velho Testamento, mas as poucas passagens sobreo Êxodo, Adão e Cristo, Hagar e Sara etc. mostram de forma sufi­ciente qual era a sua concepção. As controvérsias acerca do VelhoTestamento no período seguinte deram continuidade à sua concep­ção e interpretação; de fato, a influência dos judeu-cristãos, com suafidelidade à lei, logo diminuiu, dando lugar a uma nova oposiçãoexercida por aqueles que desejavam ou excluir o Velho Testamento,

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ou então interpretá-Io apenas abstrata e alegoricamente. A conse­qüência dessa atitude seria certamente fazer com que a cristandadeperdesse sua concepção de uma história providencial, com sua con­cretude intrínseca, e também, sem dúvida nenhuma, algo de seuimenso poder persuasivo. O método figural provou de novo o seuvalor na luta contra aqueles que desprezavam o Velho Testamento etentavam despojá-Io de seu significado.

Nesse sentido, deveríamos ter em mente um outro fator querevelou toda sua importância tão logo a cristandade expandiu-sepelas regiões ocidentais e setentrionais do Mediterrâneo. A interpre­tação figural transformou o Velho Testamento de livro de leis e dahistória do povo de Israel numa série de prefigurações de Cristo eda Salvação, tal como encontramos mais tarde na procissão dos pro­fetas no teatro medieval e nas representações cíclicas da esculturamedieval. Dessa forma e neste contexto, em que a história judaica eo caráter nacional tinham desaparecido, o Velho Testamento, porexemplo, passava a ser aceitável para os celtas e os germânicos; erauma parte da religião universal da salvação e um componente neces­sário da igualmente magnífica e universal visão da história a sertransmitida junto com a religião. Em sua forma original, como olivro da lei de uma nação tão estranha e remota, isso não teria sido

possível. Naturalmente, esta é uma compreensão a posteriori, já queestava bem longe das cogitações dos primeiros pregadores entre osgentios e dos Padres da Igreja. O problema não surgiu no períodoinicial, pois os primeiros pagãos convertidos viviam entre os judeusda Diáspora e, por causa da influência importante dos judeus e dareceptividade do mundo helenístico dessa época à experiência reli­giosa, já estavam familiarizados com a história e a religião judaicas.Mas o fato de que só possamos discernir esta situação em retrospec­to não diminui a importância desta consideração. Só muito maistarde, provavelmente só depois da Reforma, os europeus começa­ram a ver o Velho Testamento como história e lei judaicas; para ospovos recém-convertidos impôs-se, em primeiro lugar, como figurarerum ou profecia fenomenal, como uma prefiguração de Cristo,dando-lhes uma concepção básica da história, que deriva sua forçade coação de sua união insuperável com a fé e que, por quase milanos, havia de permanecer como a única visão aceita da história.

Conseqüentemente, a atitude encarnada na interpretação figural

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tornou-se um dos elementos essenciais da representação cristã darealidade, da história e do mundo concreto em geral. Esta conside­ração nos conduz à segunda tarefa que nos impusemos logo nocomeço deste capítulo, ou seja, definir a interpretação figural commaior profundidade e distingui-Ia de outras formas correlatas deinterpretação.

A interpretação figural estabelece uma conexão entre dois acon­tecimentos ou duas pessoas, em que o primeiro significa não apenasa si mesmo mas também ao segundo, enquanto o segundo abrangeou preenche o primeiro. Os dois pólos da figura estão separados notempo, mas ambos, sendo acontecimentos ou figuras reais, estãodentro do tempo, dentro da corrente da vida histórica. Só a com­preensão das duas pessoas ou acontecimentos é um ato espiritual,mas este ato espiritual lida com acontecimentos concretos, sejamestes passados, presentes ou futuros, e não com conceitos ou abstra­ções; estes últimos são secundários, já que promessa e preenchimen­to são acontecimentos históricos reais que ou já aconteceram naencarnação do Verbo, ou ainda acontecerão na segunda vinda. Éclaro que os elementos puramente espirituais entram na concepçãodo preenchimento derradeiro, já que "meu reino não é destemundo"; ainda assim será um reino real, não uma abstração imate­

rial; apenas a figura, não a natura deste mundo, passará e a carne res­suscitará. Como na interpretação figural uma coisa está no lugar deoutra, jáque uma coisa representa e significa a outra, a interpretaçãofigural é "alegórica" no sentido mais amplo. Mas difere da maiorparte das formas alegóricas conhecidas tanto pela historicidade dosigno quanto pelo que significa. A maior parte das alegorias queencontramos na literatura ou na arte representa uma virtude (porexemplo, sabedoria), uma paixão (ciúme), uma instituição (justiça)ou, no máximo, uma síntese muito geral de um fenômeno histórico(a paz, a pátria) - nunca um acontecimento definido em sua plenahistoricidade. Tais são as alegorias da antiguidade tardia e da IdadeMédia, estendendo-se grosso modo da Psychomachia36 de Prudêncioaté Alain de Lille e o Roman de ia rase. Encontramos algo muitosimilar (ou diametralmente oposto, se preferirem) na interpretaçãoalegórica dos acontecimentos históricos37, que eram geralmenteinterpretados como ilustrações obscuras de doutrinas filosóficas.Na exegese bíblica, esse método alegórico competiu por muito

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tempo com a interpretação figural; era o método de Fil038 e da esco­la catequética de Alexandria, que estava sob sua influência. Tinhasuas raízes numa tradição bem mais antiga. Várias escolas filosóficashaviam interpretado os mitos gregos, particularmente Homero eHesíodo, como exposições veladas de seus próprios sistemas físico­cosmológicos. E várias influências posteriores, não mais puramenteracionalistas mas sobretudo místicas e religiosas, também estavamem andamento. Todas as numerosas seitas e doutrinas ocultas da

antiguidade tardia cultivaram a interpretação alegórica de mitos,sinais e textos, e, em suas interpretações, os aspectos físicos e cos­mológicos deram gradualmente lugar aos éticos e místicos. O pró­prio Filo, que mantendo ligação com a tradição judaica construiusua filosofia como um comentário sobre a Escritura, interpretou osvários acontecimentos da Bíblia como fases no desenvolvimento da

alma e de sua relação com o mundo inteligível; no destino de Israelcomo um todo e dos protagonistas da história judaica, viu uma ale­goria do movimento da alma pecadora em busca da salvação, suaqueda, esperança e redenção final. Esta forma de interpretação cla­ramente espiritual e extra-histórica exerceu uma grande influênciana antiguidade tardia, em parte por ser simplesmente a mais respei­tável manifestação de um imenso movimento espiritualista centradoem Alexandria; não apenas textos e acontecimentos, mas tambémfenômenos naturais, estrelas, animais, pedras, eram despojados desua realidade concreta e interpretados, alegórica ou oportunamente,de modo figural. O método espiritualista-ético-alegórico foi adota­do pela escola catequética de Alexandria e encontrou em Orígenesseu maior expoente cristão. Como sabemos, continuou na IdadeMédia lado a lado com o método figural. Mas, apesar da existênciade numerosas formas híbridas, é muito diferente da interpretaçãofigural. Ele também transforma o Velho Testamento; também nele alei e a história de Israel perdem seu caráter nacional e popular; masvai substituí-Ias por um sistema místico ou ético no qual o textoperde bem mais sua historicidade concreta do que no sistema figu­ral. Esse tipo de exame manteve por muito tempo sua posição; nadoutrina do significado quádruplo da Escritura, determinava inte­gralmente um dos quatro significados, o ético, e contribuía parcial­mente para outro, o alegórico. Embora não possa oferecer nenhumaprova estrita, acredito que, de forma isolada, isto é, sem a sustenta-

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ção do método figural, o alegorismo teria exercido pouca influênciasobre os povos recém-convertidos. Há algo acadêmico, indireto, eaté mesmo abstruso nele, exceto quando é tocado pelo vigor da ins­piração de algum místico notável. Por sua origem e natureza, estavalimitado a um círculo relativamente pequeno de intelectuais e inicia­dos aos quais proporcionava prazer e alimentava. A profecia figuralfenomenal, no entanto, surgira de uma situação histórica definida: aruptura com o judaísmo e a missão cristã entre os gentios. Cumprirauma função histórica. Sua visão firmemente integral e teleológica dahistória e da ordem providencial do mundo dava-lhe o poder deapossar-se da imaginação e dos mais Íntimos sentimentos das naçõesconvertidas. Seu sucesso abriu o caminho para escolas menos con­cretas de alegorismo, como a dos alexandrinos. Mas ainda que estee outros métodos de interpretação espiritualista possam ser bemmais antigos do que o método figural criado pelos apóstolos e pelosPadres da Igreja, são inequivocamente formas mais tardias, enquan­to a interpretação figural com sua viva historicidade, embora algoprimitiva ou arcaica, foi certamente um começo cheio de frescor eum renascimento dos poderes criativos dos homens.

Ao lado da forma alegórica que discutimos, há ainda outrasmaneiras de representar uma coisa por outra que podem ser compa­radas com a profecia figural; é o caso das chamadas formas simbóli­cas ou mÍticas que são freqüentem ente vistas como características deculturas primitivas e que, seja como for, são encontradas constante­mente nestas. Nos últimos anos, veio à luz uma quantidade consi­derável de material relativo a essas formas, mas o processo de orga­nização e seleção deste material está ainda numa fase tão inicial quesó podemos falar a esse respeito com cautela. Estas formas foramreconhecidas e descritas pela primeira vez por Vico. Seu traço carac­terístico é que a coisa representada deve ser sempre algo muitoimportante e sagrado para aqueles a quem se dirige, algo que afetade modo total suas vidas e seu pensamento, não apenas como aqui­lo que se expressa ou é imitado pelo signo ou símbolo, mas comoalgo que está presente e contido nele. Assim, o próprio símbolo éalgo que pode agir e sobre o qual também se pode agir; agir sobre osímbolo é visto como equivalente a agir sobre a coisa simbolizada e,como conseqüência, poderes mágicos são atribuídos aos símbolos.Essas formas simbólicas ou mÍticas ainda existiam na antiguidade,

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nas regiões do Mediterrâneo, mas já tinham perdido, em sua maio­ria, a força mágica e estavam diluídas na alegoria. Em nossa culturamoderna sobreviveram como vestígios que podem ser identificadosnos símbolos da justiça, na heráldica e nos emblemas nacionais. Poroutro lado, como se pode observar, tanto na antiguidade tardiacomo nos dias de hoje, novas idéias de alcance universal continuamcriando símbolos que agem como realidades mágicas. Essas formassimbólicas ou mÍticas têm certos pontos de contato com a interpre­tação figural; as duas aspiram a interpretar e organizar a vida comoum todo; ambas são concebíveis apenas em esferas religiosas ouafins. Mas as diferenças são evidentes. O símbolo deve possuirpoder mágico, a figura não; a figura, por outro lado, deve ser histó­rica, mas o símbolo não. É claro que a cristandade não deixa de pos­suir símbolos mágicos; mas a figura não é um deles39. O que tornade fato as duas formas completamente diferentes é que a profeciafigural relaciona-se com uma interpretação da história - na verda­de é, por sua natureza, uma interpretação textual -, enquanto osímbolo é uma interpretação direta da vida e originalmente, namaior parte das vezes, também da natureza. Assim, a interpretaçãofigural é o produto de culturas posteriores, bem mais indiretas, maiscomplexas e mais carregadas de história do que o símbolo ou omito. Na verdade, deste ponto de vista, contém algo extremamenteantigo: uma grande cultura precisa ter alcançado seu ponto culmi­nante e, na verdade, já mostrar sinais de envelhecimento para queuma tradição interpretativa possa produzir um fenômeno da ordemda profecia figural.

Estas duas comparações, com a alegoria de um lado e com asformas mÍtico-simbólicas do outro, mostram a profecia figural sobuma dupla luz: jovem e recém-nascida enquanto interpretação ­certa de sua finalidade, criadora e concreta - da história universal;

infinitamente velha enquanto interpretação de um texto venerável,carregada de uma história de centenas de anos. Sua vitalidade juve­nil dava-lhe um poder persuasivo quase inaudito, com o qual con­quistou não apenas as culturas tardias do Mediterrâneo, mas tam­bém os povos relativamente jovens do norte e do oeste; o que nelaera antigo deu ao pensamento desses povos e à sua compreensão dahistória uma qualidade peculiarmente enigmática, que tentaremoselucidar agora. A profecia figural implica a interpretação de um

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acontecimento mundano através de um outro; o primeiro significao segundo, o segundo preenche o primeiro. Ambos permanecemacontecimentos históricos; ainda assim, vistos deste ângulo, contêmalgo de provisório e incompleto; um remete ao outro e juntosapontam para algo no futuro, algo que está para vir, que será oac'ontecimento real, verdadeiro, definitivo. Isso não é verdade ape­nas em relação à prefiguração do Velho Testamento, que apontapara a encarnação e a proclamação do evangelho, mas também paraaqueles acontecimentos recentes, pois eles também não são opreenchimento derradeiro, mas trazem em si mesmos uma promes­sa do fim dos tempos e do verdadeiro reino de Deus. Desse modo,a história, com toda a sua força concreta, permanece para sempreuma figura encoberta, requerendo uma interpretação. Sob esseaspecto, a história de qualquer época não possui a auto-suficiênciaprática que, tanto do ponto de vista do homem primitivo quantodo da ciência moderna, reside no fato consumado; ao contrário,toda história permanece aberta e questionável, aponta para algoainda oculto, e o caráter provisório dos acontecimentos na inter­pretação figural é fundamentalmente diferente do caráter provisó­rio dos acontecimentos na visão moderna do desenvolvimento his­

tórico. Na visão moderna, o acontecimento provisório é tratadocomo um momento dentro de um processo horizontal indivisível;no sistema figural, a interpretação sempre vem de cima; os aconte­cimentos são considerados não em sua relação indivisível com umoutro, mas separados individualmente, cada um deles em relaçãocom uma terceira coisa que, apesar de prometida, ainda não se tor­nou presente. Enquanto na visão moderna o acontecimento é sem­pre auto-suficiente e garantido, embora a interpretação seja funda­mentalmente incompleta, na interpretação figural o fato está subor­dinado a uma interpretação que já está plenamente garantida desdeo começo: o acontecimento passa a ser definido segundo um mode­lo ideal que é um protótipo situado no futuro e, por conseguinte,apenas prometido. Esse modelo situado no futuro e imitado pelasfiguras (lembremo-nos do termo imitatio veritatis [imitação da ver­dade]) evoca noções platônicas. Isto nos conduz para mais longeainda. Pois cada modelo futuro, embora incompleto como história,já está preenchido por Deus e já existe eternamente em Sua provi­dência. As figuras com as quais Ele o encobriu e a encarnação com

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a qual Ele revelou seu significado são profecias de algo que sempreexistiu, mas que permanecerá velado aos homens até o dia em quevejam a revela ta facie do Salvador, tanto com os sentidos quantocom o espírito. Não só as figuras são provisórias, como são tam­bém a forma provisória de algo eterno e atemporal; apontam não sópara o futuro concreto, mas também para algo que sempre existiu eexistirá; apontam para algo que necessita de interpretação, que naverdade será preenchido no futuro concreto, mas que já está pre­sente, preenchido pela providência divina, que não conhece dife­renças de tempo. Esta dimensão eterna já está figurada nelas, que,desse modo, são ao mesmo tempo uma realidade fragmentária pro­visória e uma realidade eterna velada. Esse aspecto transpareceinteiramente no sacramento do sacrifício, a Última Ceia, a pascha

nostrum, que é figura Christi40.

Esse sacramento, que é tanto figura quanto símbolo, e que pos­sui uma longa existência histórica - já que foi estabelecido pela pri­meira vez na velha aliança -, dá-nos a mais pura imagem do aspec­to concretamente presente, velado e provisório, assim como doaspecto eterno e supratemporal contido nas figuras.

4. Arte figural na Idade Média

A interpretação figural ou, em definição mais completa, a visãofigural da história exerceu uma ampla e profunda influência duran­te a Idade Média, estendendo-a para além desse período. Isto nãoescapou à atenção dos estudiosos. Não apenas obras teológicassobre a história da hermenêutica, mas também estudos sobre a his­tória da arte e da literatura depararam, durante suas investigações,com as concepções figurais e as estudaram. Isto vale sobretudo paraa história da arte no campo da iconografia medieval e para a histó­ria da literatura no campo do teatro religioso da Idade Média. Masa natureza especial do problema parece não ter sido reconhecida; aestrutura fenomenal ou figural ou tipológica não foi diferenciadacom clareza de outras formas alegóricas ou simbólicas.Encontramos um esboço dessa atitude na dissertação instrutiva deT. C. Goode sobre El sacrificio de Ia misa de Gonzalo de Berceo(Washington, 1933); embora não enfrente as questões fundamentais,

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H. Pflaum mostra um claro entendimento da situação em seu Diereligiose Disputation in der europdischen Dichtung des Mittelalters[A questão religiosa na poesia européia da Idade Média] (Genebra­Florença, 1935). Recentemente (in Romania, LXIII), sua compreen­são segura da palavra figura capacitou-o a dar uma interpretaçãocorreta de alguns versos do francês arcaico, que não tinham sidocompreendidos pelo editor, e a restaurar o texto. Talvez outrosexemplos me escapem41, mas não creio que haja qualquer tratamen­to sistemático do assunto. Uma investigação desse tipo parece-meindispensável para uma compreensão da mistura de espiritualidadee senso de realidade que caracteriza a Idade Média européia e queparece ser tão desconcertante para nós42. Na maior parte dos paíseseuropeus, a interpretação figural permaneceu ativa até o séculoXVIII; encontramos seus traços não apenas em Bossuet, como já erade se esperar, mas muitos anos depois nos autores religiosos citadospor Groethuysen em Les origines de Ia France bourgeoise43. Umclaro conhecimento de seu caráter e de sua diferença diante de for­mas correlatas mas diversamente estruturadas poderia aguçar eaprofundar de modo geral nossa compreensão dos documentos daantiguidade tardia e da Idade Média, solucionando muitos enigmas.Será que os temas de recorrência tão freqüente nos sarcófagos e nascatacumbas dos primeiros cristãos não são figuras da Ressurreição?Ou, para citar um exemplo da grande obra de Mâle, a lenda de santaMaria Egipcíaca, cujas representações do museu de Toulouse eledescreve (op. cit., p. 240 ss.), não seria uma figura do povo de Israelsaindo do Egito, podendo portanto ser interpretada exatamentecomo o salmo In exitu Israel de Aegypto foi geralmente interpreta­do na Idade Média?

Mas as interpretações individualizadas não esgotam a impor­tância do método figura!. Nenhum estudioso da Idade Média podedeixar de ver como ele fornece a base geral da interpretação medie~vaI da história e penetra freqüentemente na visão medieval da rea­lidade cotidiana. O analogismo que invade cada uma das esferas dopensamento medieval está estreitamente ligado à estrutura figural;na interpretação da Trindade, que se estende aproximadamente doDe Trinitate de Agostinho até são Tomás, I, q. 45, art. 7, o própriohomem, como imagem de Deus, assume a característica de umafigura Trinitatis. Para mim não está bem claro até que ponto as

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idéias estéticas estavam determinadas pelas concepções figurais ­até que ponto a obra de arte era vista como a figura de um preen­chimento ainda inatingível na realidade. A questão da imitação danatureza na arte levantava pouco interesse teórico na Idade Média;mas, por outro lado, o máximo de atenção era dado à noção de queo artista, como uma espécie de figura do Deus Criador, realizavaum arquétipo do que estava vivo em seu espírit044. Como vemos,estas são idéias de origem neoplatônica. Mas a questão permanece:até que ponto este arquétipo e a obra de arte que produzia eramvistos como figuras para uma realidade e uma verdade preenchidasem Deus? Não descobri nenhuma resposta conclusiva nos textosque pude consultar e me faltam as mais importantes obras da lite­ratura especializada. Mas gostaria de citar algumas que se encon­tram à mão por acaso e que apontam de algum modo para a dire­ção que tenho em mente. Num artigo sobre a representação de tonsmusicais nos capitéis da abadia de Cluny (DeutscheVierteljahrsschrift, 7, p. 264), L. Schrade cita uma explicação dapalavra imitare de Remigius de Auxerre: scilicet persequi, quiaveram musicam non potest humana musica imitari [isto é, seguir,porque a música do homem não pode imitar a música verdadeira].Trata-se de algo provavelmente baseado na noção de que o traba­lho do artista é uma imitação ou, pelo menos, uma pálida figuraçãode uma realidade verdadeira e igualmente sensível (a música doscoros celestiais). No Purgatório, Dante celebra as obras de artecriadas por Deus, representando exemplos de virtudes e vícios, porsua verdade sensível perfeitamente preenchida, diante das quais aarte humana e até mesmo a natureza empalidece (Purg; 10 e 12); suainvocação de ApoIo (Par., 1) inclui os versos:

o divina virtu, se mi ti prestitanto che l'ombra dei beato regnosegnata nel mio capo io manifesti[Ó divina virtude, em minha menteo beato reino assinou seu desenho

qual sombra, e se me dás que o represente r.

':'Tradução de Haroldo de Campos, in Seis cantos do Paraíso. São Paulo,Fontana/Instituto Nacional de Cultura, 1976 (N.T.).

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Aqui sua poesia se define como uma umbra da verdade gravadaem sua mente, e a sua teoria da inspiração inclui às vezes expressõesque podem ser explicadas nesse mesmo sentido. Mas tudo isso sãoapenas sugestões; um estudo que procurasse explicar as relaçõesentre os elementos figurais e neoplatônicos na estética medievalteria que partir de bases mais amplas. Ainda assim, creio que essasobservações são suficientes para mostrar a necessidade de distinguira estrutura figural de outras formas de imagens. Grosso modo, pode­se dizer que o método figural na Europa remete às influências cris­tãs, enquanto o método alegórico deriva de antigas fontes pagãs, etambém que o primeiro se aplica sobretudo ao material cristão,enquanto o outro, ao material mais antigo. Também não estaremosindo longe demais ao dizer que a visão figural é predominantemen­te cristã-medieval, enquanto a visão alegórica, cujo modelo são osautores pagãos ou não inteiramente cristãos da antiguidade tardia,tende a aparecer onde influências antigas, pagãs ou fortemente secu­lares são dominantes. Mas essas observações são demasiadamentegerais e imprecisas, pois a massa de fenômenos que reflete um entre­cruzamento de diferentes culturas durante cerca de mil anos não

permite classificações tão simplificadas. Desde muito cedo o mate­rial pagão e profano foi também interpretado figuralmente;Gregório de Tours, por exemplo, usa a lenda dos sete adormecidoscomo uma figura para Ressurreição; a ressurreição de Lázaro dentreos mortos e o resgate de Jonas do ventre da baleia eram tambéminterpretados geralmente nesse sentido. Na Alta Idade Média, aSibila, Virgílio, as personagens da Eneida e até mesmo as do ciclo delendas bretãs (por exemplo, Galahad em busca do Santo Graal) eramassimilados pela interpretação figural, e, acima de tudo, surgia todotipo de mistura entre formas figurais, alegóricas e simbólicas. Todasessas formas, aplicadas tanto ao material clássico quanto ao cristão,estão presentes na obra que encerra e resume a Idade Média: aDivina Comédia. Mas agora devo mostrar que são as formas figu­rais que dominam e determinam toda a estrutura do poema.

Ao pé da montanha do Purgatório, Dante e Virgílio encontramum homem de aspecto venerável, cujo rosto está iluminado por qua­tro estrelas, significando as quatro virtudes cardeais. Ele os interrogaseveramente sobre a legitimidade da jornada que empreendiam, e,pela resposta respeitosa de Virgílio - depois de dizer a Dante que se

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ajoelhasse diante daquele homem -, sabemos que é Catão de Útica.Depois de explicar-lhe sua missão divina, Virgílio diz (Purg., 1, 70-5):

Or ti piaccia gradir Ia sua venuta;libertà va cercando, che e sz cara,

come sa chi per lei vita rifiuta.

Tu il sai, che non ti fu per lei amarain Utica Ia morte, ave lasciasti

Ia vesta che aI gran dz sarà sz chiara.

[Assim vê, merece boa acolhidaquem liberdade busca, que é tão cara,como sabe a quem custou a vida.

Tu bem sabes, a quem não foi amargaa morte em Ú tica, lá deixastea veste que no fim será tão clara.]

Virgílio prossegue, pedindo a Catão que o ajude em nome damemória de Márcia, que fora sua esposa. Catão recusa o pedido coma mesma severidade; mas como esse é o desejo da donna deI ciel(Beatriz), é o que basta; e ordena que, antes da ascensão, Virgíliolave do rosto de Dante as manchas do inferno e que ele seja cingidocom junco. Catão aparece de novo no fim do segundo canto, ondecensura duramente as almas recém-chegadas ao pé da montanha, asquais, caídas no esquecimento, estão ouvindo o canto de Cassela,advertindo-as de que continuassem a jornada.

Catão de Ú tica foi designado por Deus guardião da entrada doPurgatório: um pagão, um inimigo de César e um suicida. Isto é sur­preendente, e seus primeiros comentadores, como Benvenuto deImola, registraram seu espanto. Dante menciona apenas uns poucospagãos que foram libertados do Inferno por Cristo; entre eles estáum inimigo de César - cujos aliados, assassinos de César, junta­ram-se a Judas nas mandíbulas de Lúcifer -, um suicida que nãodeveria ser menos culpado do que todos aqueles "que cometeramviolência contra si próprios" e que, por esse pecado, sofrem os maisterríveis tormentos no sétimo círculo do Inferno. O enigma é resol-

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vido pelas palavras de Virgílio, ao afirmar que Dante procura aliberdade, tão preciosa como tu próprio sabes, tu que por ela renun­ciaste à vida. A história de Catão é retirada de seu contexto terreno­

político, tal como as histórias de Isaac, Jacó etc. também foram reti­radas de seus contextos pelos exegetas patrísticos do VelhoTestamento e convertidas em figura futurorum. Catão é uma figura,ou melhor, o Catão terreno, que renunciou à vida em nome da liber­dade, era uma figura, e o Catão que agora aparece no Purgatório é afigura revelada ou preenchida, a verdade daquela situação temporal.A liberdade terreno-política pela qual morreu era apenas umaumbra futurorum: uma prefiguração da liberdade cristã de queagora foi designado guardião e em nome da qual resiste a toda a ten­tação terrena; a liberdade cristã ante os impulsos do mal, que con­duz ao verdadeiro autodomínio, aquela liberdade em nome de cujaconquista Dante é cingido com os juncos da humildade, até que, noalto da montanha, ele possa conquistá-Ia de fato e seja coroado porVirgílio como senhor de si mesmo. A escolha voluntária da mortepor Catão para libertar-se da servidão política é mostrada comouma figura para a eterna liberdade dos filhos de Deus, em nome daqual todas as coisas terrenas devem ser rejeitadas, para que a almaliberte-se da servidão do pecado. A escolha de Catão para este papel,feita por Dante, deixa-se explicar pela posição "acima dos partidos"assumida por Catão, de acordo com os autores romanos que o ele­varam a um modelo de virtude, justiça, piedade e amor pela liberda­de. Dante descobriu também que ele era louvado por Cícero,Virgílio, Lucano, Sêneca e Valério Máximo; em particular, o verso deVirgílio secretosque pios his dantem iura Catonem [e os justos à

parte e Catão lhes ditando as leis] (Eneida, 8, 670), vindo comovinha de um poeta do Império, deve tê-Io impressionado muito. Suaadmiração por Catão transparece em várias passagens do Convivia,e, no seu De monarchia (2, 5), faz uma citação de Cícero45, dizendoque a morte voluntária de Catão deveria ser julgada por um prismaespecial e ligando-a a exemplos de virtude política dos romanos, à

qual Dante atribuía tanta importância; nessa passagem, Dante tentamostrar que o domínio romano é legitimado pela virtude romana econtribuía para a justiça e a liberdade de toda a humanidade. O capí­tulo contém esta frase: Romanum imperium de fonte nascitur pieta­tis [O Império Romano nasceu da fonte da justiça]46.

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FIGURA

Dante acreditava numa harmonia preestabelecida entre a histó­ria cristã da salvação e a monarquia secular romana; não nos sur­preende, portanto, que aplique a interpretação figural a um romanopagão - em geral, extrai seus símbolos, alegorias e figuras dos doismundos sem fazer qualquer distinção. Não há dúvida de que Catãoé uma figura; não uma alegoria, como as personagens do Roman deIa rase, mas uma figura que se tornou a verdade. A Comédia é umavisão que considera e proclama a verdade figural como já preenchi­da; caracteriza-se precisamente por realizar, inteiramente dentro doespírito da interpretação figural, a ligação da verdade revelada pelavisão com os acontecimentos terrenos, históricos. O caráter deCatão como um homem severo, justo e piedoso, que, num momen­to importante de seu próprio destino e da história providencial domundo, coloca a liberdade acima da vida, é mantido na plenitude desua força pessoal e histórica; não se transforma numa alegoria daliberdade; não, Catão de Útica permanece como um indivíduoúnico, tal como Dante o via; mas é alçado acima de sua provisóriacondição humana, na qual considerava a liberdade política como obem supremo (assim como os judeus dedicavam-se à estrita obe­diência à Lei), e transposto para uma condição de preenchimento,não mais voltado para os deveres mundanos de virtude cívica oulegal, mas para o ben dell'inteUeto, o mais alto bem, a liberdade daalma imortal diante de Deus.

Vamos tentar fazer a mesma demonstração diante de um casobem mais difícil. Virgílio foi considerado por quase todos os comen­tadores como uma alegoria da razão - a razão natural, humana, queconduz à justa ordem terrena, ou seja, na visão de Dante, à monar­quia secular. Os comentadores mais antigos não faziam objeção auma interpretação puramente alegórica, pois não sentiam, comosentimos hoje em dia, que a alegoria era incompatível com a autên­tica poesia. Muitos críticos modernos opuseram-se a esta idéia,sublinhando a qualidade pessoal, humana, do Virgílio de Dante;mesmo assim foram incapazes ou de negar que ele "significava algu­ma coisa", ou de encontrar uma relação satisfatória entre este signi­ficado e a realidade humana. Recentemente (e não apenas em rela­ção a Virgílio) um grupo de escritores (L. Valli e Mandonnet, porexemplo) retomou o aspecto puramente alegórico ou simbólico etentou rejeitar a realidade histórica como "positivista" ou "român-

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tica". Mas de fato não pode haver escolha entre o significado histó­rico e o oculto; ambos estão presentes. A estrutura figural preservao acontecimento histórico ao interpretá-Io como revelação; e devepreservá-Io para poder interpretá-Io.

Aos olhos de Dante, o Virgílio histórico é ao mesmo tempopoeta e guia. Ele é poeta e guia porque, na descida aos infernos dojusto Enéias, profetiza e glorifica a paz universal sob o ImpérioRomano, a ordem política que Dante considera exemplar, a terrenaJerusalem47; e porque, em seu poema, a fundação de Roma, sítiopredestinado do poder secular e espiritual, é celebrada à luz de suafutura missão. Acima de tudo ele é poeta e guia porque todos osgrandes poetas que vieram depois dele foram inflamados e influen­ciados por sua obra; Dante não só vai expressá-Io em seu próprionome, mas introduz um segundo poeta, Estácio, para proclamar amesma coisa ainda mais enfaticamente; no encontro com Sordello, etambém talvez no verso altamente controvertido sobre Guido

Cavalcanti (Ini, 10,63), o mesmo tema é explorado. Mais ainda, eleé um guia porque, além de sua profecia temporal, proclamou tam­bém - na Quarta Écloga - a eterna ordem transcendente, a vindade Cristo que iria renovar o mundo temporal, sem sequer suspeitar,na verdade, do significado de suas próprias palavras, mas de talmodo que a posteridade iria extrair inspiração de sua luz. Virgílio, opoeta, era um guia porque havia descrito o reino dos mortos - por­tanto conhecia bem o caminho. Mas também como homem e como

romano ele estava destinado a ser um guia, não apenas porque eraum mestre do discurso eloqüente e da sabedoria elevada, mas por­que também possuía as qualidades que tornam o homem capaz deguiar e liderar, as qualidades que caracterizam seu herói Enéias eRoma em geral: iustitia e pietas. Para Dante, o Virgílio históricoencarnava esta plenitude de perfeição terrena e era capaz, portanto,de guiá-Io até o limiar da visão da perfeição eterna e divina; oVirgílio histórico era, para ele, uma figura do poeta-profeta-guia,agora preenchido no outro mundo. O Virgílio histórico é "preen­chido" pelo habitante do limbo, o companheiro dos grandes poetasda antiguidade, que, ao chamado de Beatriz, assume a tarefa de guiarDante. Como romano e como poeta, Virgílio enviou Enéias aomundo subterrâneo à procura do conselho divino para conhecer odestino do mundo romano; e agora Virgílio é convocado pelos

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FIGURA

poderes celestiais para ser o guia de uma missão não menos impor­tante; pois não há dúvida que Dante via a si próprio como encarre­gado de uma missão não menos importante que a de Enéias: eleitopara anunciar a um mundo desajustado a ordem justa, que lhe érevelada durante a sua caminhada. Virgílio é escolhido para revelare interpretar para ele a verdadeira ordem terrena, cujas leis são exe­cutadas no outro mundo, e cuja essência é preenchida no outromundo, e ao mesmo tempo para dirigi-Io até sua meta, a comunida­de celestial dos eleitos, que ele anunciou em sua poesia - mas nãoainda até o interior do reino de Deus, pois o significado de seu pres­ságio não lhe foi revelado durante sua vida terrena, e, sem esta ilu­minação, morreu como um infiel. Assim sendo, Deus não permiteque Dante entre em seu reino com a ajuda de Virgílio; Virgílio sópode levá-Io até o limiar do reino, até aquele limite que sua justa enobre poesia foi capaz de discernir. "Primeiro" - diz Estácio aVirgílio - "tu me mostraste o caminho para o Parnaso para que eubebesse em suas fontes, e depois me iluminaste até Deus. Fostecomo um destes que anda pela noite, levando a luz atrás de simesmo, sem poder aproveitar-se dela, mas instruindo a quem osegue ... Através de ti, tornei-me poeta, por tua causa, um cristão"48.E assim como o terreno Virgílio conduziu Estácio à salvação, agora,como uma figura preenchida, conduz Dante: pois também Danterecebeu dele o belo estilo de sua poesia, através dele salvou-se dadanação eterna e seguiu o caminho da salvação; e assim como outro­ra havia iluminado Estácio, sem que ele próprio visse a luz que tra­zia e proclamava, também agora conduz Dante até o limiar da luz,que ele conhece mas não pôde alcançar.

Desse modo, Virgílio não é a alegoria de um atributo, virtude,capacidade, poder ou instituição histórica. Não é nem a razão, nema poesia, nem o Império. É o próprio Virgílio. Mas não é ele próprioda mesma maneira daquelas personagens históricas que mais tardeos poetas retratariam dentro de sua situação histórica, como, porexemplo, o César de Shakespeare e o Wallenstein de Schiller. Estespoetas mostram suas personagens históricas em sua plena existênciaterrena; fazem surgir diante de nossos olhos uma época importantede suas vidas e procuram o sentido dessa própria época. Para Danteo significado de cada vida pertence à história providencial domundo, cujas linhas gerais estão contidas na Revelação que foi dada

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a todos os cristãos e que ele interpreta na visão da Comédia. Assim,Virgílio, na Divina Comédia, é o Virgílio histórico, mas, por outrolado, também não o é; pois o Virgílio histórico é apenas uma figurada verdade preenchida que o poema revela, e este preenchimento émais real, mais importante que a figura. Com Dante, ao contráriodos poetas modernos, a figura torna-se mais real à medida que émais integralmente interpretada e mais intimamente integrada aoplano eterno da salvação. E, para ele, diferentemente dos antigospoetas dos mundos subterrâneos, que representavam a vida terrenacomo real e a vida após a morte como uma sombra, a verdadeira rea­

lidade está no outro mundo, enquanto este mundo é apenas umbrafuturorum - embora esta umbra seja a prefiguração da realidadetranscendente e deva mais tarde ser preenchida por ela.

Pois o que dissemos aqui sobre Catão e Virgílio aplica-se à

Comédia como um todo. Está inteiramente baseada nesta concepçãofigura!. Em meu estudo sobre Dante como poeta do mundo terreno(1929)", procurei mostrar como ele na Comédia empenhou-se "emconceber todo o mundo histórico-terreno [...] como já submetido aojuízo final de Deus e, por conseguinte, colocado no lugar que lhe estáassinalado pelo julgamento divino, em representá-lo como ummundo que já foi julgado [...] e, ao fazê-lo, não destrói nem enfraque­ce a natureza terrena de suas personagens, mas capta toda a intensi­dade de suas individualidades histórico-terrenas e identifica-as com

o destino eterno das coisas" (p. 108). Nessa época faltava-me umasólida base histórica para sustentar esta visão, que já se encontra emHegel e que é a base de minha interpretação da Divina Comédia;trata-se de algo mais sugerido do que formulado nos capítulos intro­dutórios do livro. Acredito que agora possuo esta base histórica;trata-se precisamente da interpretação figural da realidade que,embora em constante conflito com as tendências puramente espiri­tualistas e neoplatônicas, era a visão dominante na Idade Média euro­

péia: a idéia de que a vida terrena é inteiramente real, com aquela rea­lidade da carne em que o Logos penetrou, mas que, com toda a suarealidade, é apenas umbra e figura da verdade autêntica, futura eeterna, a realidade real que desvenda e preserva a figura. Desse

'I· Dante como poeta do mundo terreno (Dante aIs Dichter der irdischen Welt).

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FIGURA

modo, o acontecimento terreno individual não é visto como umarealidade definitiva, auto-suficiente, nem como um elo na cadeia deum desenvolvimento em que acontecimentos isolados ou combina­<Jw de acontecimentos geram novos acontecimentos, mas visto prin­cipalmente em sua ligação vertical imediata com uma ordem divina<] ue o abarca, a qual no futuro será a realidade concreta; assim, o;lContecimento terreno é uma profecia ou figura de uma parte da rea­Iidade divina total que será revelada no futuro" Mas esta realidade11;10 é apenas futura; já está presente na visão de Deus e no outroInundo, o que quer dizer que, na transcendência, a realidade revela­(h c verdadeira está sempre ou atemporalmente presente. A obra deI>ante é a tentativa de dar uma visão poética e ao mesmo tempo sis­tcm;'\tica do mundo sob esse aspecto. A graça divina vem em auxíliodo homem ameaçado pela confusão e pela desgraça terrenas - esta é,\ moldura da visão. Desde o começo de sua juventude, Dante fora

iavorecido por uma graça especial, já que estava destinado a umaI.lrd;l especial; desde cedo fora um privilegiado a ver a revelação('Ilcarllada num ser vivo, Beatriz - e aqui também, como ocorre fre­

qii('lltclllcnte, a estrutura figural e o neoplatonismo estão interliga­dos. I)urante toda sua vida, de modo disfarçado, ela o favoreceu sau­d.lll(loo com os olhos e a boca; e, ao morrer, distinguiu-o de modoIllisl('l'ioso e silencios049. Quando ele se desvia do caminho justo, aI.decida Bcatriz, que para ele era a revelação encarnada, indica a únicas.dva(;;IOpossível para ele; indiretamente, ela é o seu guia até tornar­se seu guia direto para o Paraíso; é ela que lhe mostra a ordem des­v('ll(hda, a verdade sobre as figuras terrenas. O que ele vê e aprende11( ),S tr(~sreinos é a realidade verdadeira, concreta, na qual afigura ter­1('lla esui contida e interpretada; ao ver a verdade preenchida aindavivo, ele próprio salva-se, ao mesmo tempo que se torna capaz dedi/,er ao mundo o que vira e de guiá-lo para o caminho certo.

A compreensão do caráter figural da Comédia não se constituiI1UIll método universal que nos permite interpretar cada uma de suas

passagens controvertidas; mas é possível derivar dele certos princí­pios de interpretação. Podemos ter certeza de que cada uma das per­sonagens históricas ou míticas existentes no poema deve significaralgo intimamente ligado ao que Dante sabia acerca de sua existênciahistórica ou mítica, e que esta relação é entre preenchimento e figu­ra; devemos ter sempre o cuidado de não negar também sua existên-

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cia histórico-terrena, de não nos confinarmos a uma interpretaçãoabstrata, alegórica. Isto aplica-se particularmente em relação aBeatriz. O realismo romântico do século XIX enfatizou ao máximo

a Beatriz humana, com sua tendência a fazer da Vita nuova uma

espécie de novela sentimental. Depois veio a reação; a nova tendên­cia é eliminá-Ia completamente, dissolvê-Ia num aglomerado deconceitos teológicos cada vez mais sutis. Mas tais escolhas não que­rem dizer nada. Para Dante, o significado literal ou a realidade his­tórica de uma figura não apresenta nenhuma contradição com seusignificado mais profundo, pois representa necessariamente a sua"figuração"; a realidade histórica não é anulada, mas confirmada epreenchida pelo significado mais profundo. A Beatriz da Vita nuovaé uma pessoa real; ela realmente encontrou-se com Dante, saudou­o realmente, realmente negou-se a saudá-lo mais tarde, zomboudele, chorou por uma amiga morta e por seu pai, e de fato morreu.Naturalmente esta realidade é a realidade da experiência de Dante­pois um poeta constrói e transforma os acontecimentos de sua vidaem sua consciência, e só podemos dar conta daquilo que vive em suaconsciência, e não da realidade exterior. É preciso também ter emmente que, desde o primeiro dia em que apareceu, a Beatriz terrenafoi para Dante um milagre enviado do céu, uma encarnação da ver­dade divina. Desse modo, a realidade de sua pessoa terrena não é,como no caso de Virgílio e Catão, algo derivado dos fatos de umatradição histórica, mas da própria experiência de Dante: uma expe­riência que lhe mostrou a terrena Beatriz como um milagreso. Masuma encarnação, um miIagre são acontecimentos reais; os milagresacontecem na terra, e a encarnação é carne. A estranheza da visãomedieval da realidade não permitiu que os estudiosos modernosfossem capazes de distinguir entre figuração e alegoria, e levou amaior parte deles a perceber apenas a alegoriaS1. Até um crítico teo­lógico tão agudo como Mandonnet (op. cit., p. 218-9) consideraapenas duas possibilidades: ou Beatriz é uma mera alegoria (e esta éa sua opinião), ou é Ia petite Bice Portinari, uma noção que ele ridi­culariza. Além de uma incompreensão da realidade poética que umjulgamento como esse revela, é surpreendente verificar um abismotão grande entre realidade e significado. Será que a terrena] erusalem não possui realidade histórica porque é uma figura aeter­naeJ erusalem?

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FIGURA

Na Vita nuova, portanto, Beatriz é uma mulher viva dentro darealidade da experiência de Dante - e na Comédia ela não énenhum intellectus separatus, nenhum anjo, mas um ser humanoabençoado cujo corpo ressuscitará no dia do Juízo Final. Não há defato nenhum conceito dogmático que possa defini-Ia integralmente;certos acontecimentos na Vita nuova não podem ajustar-se a nenhu­ma alegoria, e quanto à Comédia há ainda o problema adicional detraçar uma distinção exata entre Beatriz e as várias outras persona­gens do Paradiso, tais como os apóstolos-examinadores e sãoBernardo. Tampouco o caráter especial de sua relação com Dantepode ser entendido de modo satisfatório a partir desse ponto devista. A maior parte dos comentadores antigos interpretou Beatrizteologicamente; outros mais recentes procuraram formulações demaior sutileza, mas isto os conduziu a exageros e equívocos: atéMandonnet, que aplica a Beatriz a noção extremamente ampla deordre surnaturel, derivada do contraste com Virgílio, enreda-se emsubdivisões de sutileza pedante, comete errosS2 e força seus concei­tos. O papel atribuído por Dante a ela torna-se perfeitamente claroatravés de suas ações e dos epítetos ligados a ela. EIa é uma figura­(Jio ou encarnação da revelação (Inj, 2, 76): sola per cui l'umana spe­zic cccede ogni contento da quel ciel, che ha minor li cerchi sui [aque­la por quem a espécie humana excede o que está contido naquele céuque tem os círculos menores]; (Purg., 6, 45): che lume fia tra il vero(' l'intelletto [cuja luz arde entre o verdadeiro e o intelecto] que agraça divina, por amor (Inf, 2, 76), envia ao homem para sua salva­(,;;lO e que o guia até a visio Dei. Mandonnet esquece de dizer que elaé exatamente uma encarnação da revelação divina, e não, pura e sim­plesmente, da revelação, embora cite as passagens pertinentes daVita nuova e de santo Tomás de Aquino, bem como a invocaçãomencionada acima, O Donna di virtu, sola per cui etc. Não podemosnos dirigir à "ordem sobrenatural" como tal, mas apenas à sua reve­lação encarnada, aquela parte do plano divino de salvação que é pre­cisamente o milagre pelo qual os homens se elevam acima de outrascriaturas terrestres. Beatriz é a encarnação, ela é figura ou idoloChristi (seus olhos refletem sua natureza dupIa, Purg., 31, 126) eportanto não se esgota nestas explicações; sua relação com Dantenão pode ser inteiramente explicada por considerações dogmáticas.Nossas observações procuram apenas mostrar que a interpretação

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teológica, embora sempre útil e indispensável, não nos obriga aabandonar a realidade histórica de Beatriz - pelo contrário.

Desta maneira concluímos nosso presente estudo da figura.Nosso propósito foi mostrar como, a partir da base do seu desen­volvimento semântico, uma palavra pode evoluir dentro de umasituação histórica e dar nascimento a estruturas que serão efetivasdurante muitos séculos. A situação histórica que levou são Paulo apregar entre os gentios desenvolveu a interpretação figural e prepa­rou-a para a influência que iria exercer na antiguidade tardia e naIdade Média.

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São Francisco de Assis naComédia de Dante

Há poucas passagens no Paradiso tão conhecidas e admiradascomo o canto décimo primeiro; isto não chega a surpreender, pois oseu tema é são Francisco de Assis, e os versos têm uma beleza excep­cional. Ainda assim, a admiração por este canto não é assim tão sim­ples de explicar. Francisco foi uma das figuras mais marcantes daIdade Média. Todo o século XIII, que compreende a juventude deI)an1.e, roi impregnado por sua personalidade. Nenhum outro esti­lo de vida, voz ou comportamento dessa época repercutiu sobre nósCOlll1<1I1taclareza. Sua personalidade sobressai em virtude de seusIllllilOScontrastes. Sua piedade, ao mesmo tempo solitária e popu­lar, scu caráter, ao mesmo tempo doce e austero, e seu comporta­Im'nto, ao mesmo tempo humilde e áspero, tornaram-se inesquecí­vcis. Lenda, poesia e pintura apossaram-se dele e, muito tempo apóssua morte, todo frade mendicante na rua parecia carregar dentro de

si algo de seu mestre e multiplicar a sua presença, Sua personalida­de contribuiu sem dúvida alguma para despertar e aprofundar o sen­timento da originalidade e singularidade do indivíduo, sentimentoesse cujo grande monumento é exatamente a Comédia de Dante.Desse encontro entre Dante e são Francisco, isto é, da entrada de

Francisco na Comédia, deveríamos esperar um daqueles momentosmais luminosos da representação da vida concreta de que a Comédiaé tão rica. Na já meio lendária biografia de Francisco, Dante encon­trou amplo material para retratar esse encontro. Mas, estranhamen­te, o encontro não acontece.

Quase todas as personagens da Comédia são apresentadas demodo direto. Dante vai encontrá-Ias no lugar designado a cada uma

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delas pela justiça de Deus, e aí desenvolve-se um encontro diretoatravés de perguntas e respostas. Com são Francisco é diferente. Éverdade que Dante só vai encontrá-lo lá pelo fim do poema, no seuassento na rosa branca en'tre os santos do Novo Testamento; masnão fala com ele e, nas outras passagens em que é mencionado, nãoaparece em pessoa; até na mais importante e detalhada dessas passa­gens, o décimo primeiro canto do Paradiso, Franciso não fala; são osoutros que falam sobre ele. Por mais surpreendente que isso pareça,a moldura e a forma do relato são ainda mais estranhas.

Dante e Beatriz estão no céu do Sol, cercados por um grupo desantos que dançam e interrompem sua dança para se apresentarcomo os Padres e Doutores da Igreja. Um deles, santo Tomás deAquino, identifica-se e define a si próprio e a seus companheiros;depois, todos começam a dançar de novo. Dante, no entanto, nãoentendeu o significado de algumas palavras de Tomás: "Eu era umaovelha do rebanho de Domingos, onde se encontra bom pasto senão se desvia". Dante sente falta de uma explicação sobre o verso u'ben s'impingua, se no si vaneggia (e também sobre uma passagemrelativa a Salomão). Tomás, que como todos os santos goza da visãodireta da luz eterna, de modo que nada no pensamento de Danteconstitui segredo para ele, satisfaz o desejo não formulado de umaexplicação de suas palavras. Mais uma vez o canto e a dança sãointerrompidos para que Tomás, ajudado por Boaventura, possacomentar suas próprias palavras. O comentário estende-se por trêscantos. No primeiro, o canto undécimo de que falamos, Tomásconta a vida de são Francisco e acrescenta um lamento sobre o declÍ­

nio de sua própria ordem, a dos dominicanos; no décimo segundo,ao contrário, o franciscano Boaventura conta a vida de Domingos econclui com uma censura aos franciscanos; o décimo terceiro canto

contém, de novo pela boca de Tomás, o comentário sobre a afirma­ção relativa ao rei Salomão já mencionada. Dos dois cantos sobre asordens mendicantes, Dante e o leitor aprendem que ambas foramfundadas com o mesmo propósito, que se complementam e que, emambas as ordens, a vida de seu fundador foi igualmente perfeita, e adecadência de seus seguidores, igualmente detestável; que, portanto,em cada uma delas os homens triunfam quando seguem o exemplode seu fundador e não se desviam. Os dois cantos formam um

comentário didático, bem integrado na moldura da interpretação

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d.\IIll'sca da história, com fortes trechos polêmicos dirigidos não,Ipcllas contra as duas ordens, mas também contra o papado e o(lero em geral. A vida de Francisco também pertence a esse comen­Lírio. Assim sendo, está integrada a um comentário, de cerca de cemvcrsos, sobre uma oração subordinada que se resume a um verso, eque certamente adquiriria maior clareza se fosse apresentada conci­samente. Aqui está, portanto, a moldura: Tomás, o grande doutor daIgreja, comenta copiosamente uma de suas próprias formulações.Tal procedimento corresponde ao caráter de Tomás; mas será ade­quado a uma apresentação da biografia de são Francisco? De acor­do com a nossa maneira moderna de pensar, não. Foi através docstudo de sLlasmotivações que aprendemos a compreender o méto­do Illcdieval dos comentários. Sabemos que ele deriva do peculiarSiStl'III;\de ensino da época. Descobrimos também que da folhagem('III;\r;lldl:ub de comentários e paráfrases brota às vezes uma florill('slH'LHb que a árvore que a sustenta, isto é, o texto, não parecia1)1Olll('tl'l";e, com freqüência, o texto está completamente soterradopdo (,olllcI1Llrio. Na verdade, trata-se de um fenômeno que não se1(,,,1 rillge;l literatura; basta pensar nas muitas iniciais das iluminuras,IW; Illllitas seqüências litúrgicas. Mas aqui, quando Dante narra avid.1de silo Francisco, será que não podia encontrar uma moldura1I1('IIOSacadêmica, menos escolástica?

Além disso, a biografia narrada por Tomás contém apenas umap;lIle mínima daqueles encantadores e irresistÍveis detalhes concre­los preservados pela lenda franciscana. Na verdade ele conta apenaso essencial de acordo com a tradição - o nascimento, a construçãode sua obra, a morte -, mas não acrescenta nenhuma das históriaspessoais que dão vida ao quadro. Até os elementos essenciais sãomostrados de uma forma documentária, em ordem cronológica:nascimento, voto de pobreza, fundação da ordem, a ratificação pelopapa Inocêncio, a segunda ratificação por Honório, a missão juntoaos sarracenos, a estigmatização, a morte. Até as pinturas murais deAssis contam mais do que isso e de uma maneira bem mais alegre,bem mais anedótica - para não mencionar outros tratamentos lite­rários da lenda. E podemos ainda acrescentar mais: em Dante, alémda moldura externa do comentário de que faz parte, a biografia tam­bém possui um leitmotiv interno e um outro alegórico. A vida desão Francisco é representada como um casamento com uma mulher

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alegórica, a Pobreza. Sabemos naturalmente que esse era um dostemas da lenda franciscana; mas era mesmo necessário fazer dele otema dominante? Como especialistas em arte e literatura medievais,fomos aprendendo pouco a pouco e sempre laboriosamente que,para certos grupos no contexto da espiritualidade medieval, a alego­ria significava algo mais real do que significa hoje para nós; na ale­goria, as pessoas viam uma realização concreta do pensamento, umenriquecimento das possibilidades de expressão. Mas isso não impe­de que um de seus mais ardentes e perspicazes intérpretes moder­nos, Huizinga, possa chamá-Ia, com um leve desprezo, "as parasitasda estufa da antiguidade tardia". Apesar de todo o nosso conheci­mento de seu significado, não podemos mais sentir espontaneamen­te a sua poesia. E eis que Dante, capaz de fazer tantas pessoas fala­rem diretamente, nos dá a personalidade mais viva do período ante­rior ao seu, Francisco de Assis, coberto com as vestes de uma narra­tiva alegórica. O que quase todos os poetas tardios fizeram, o queele próprio fizera tantas vezes, a arte na qual era o mestre maior, ade modelar as pessoas através de suas próprias palavras e gestos damaneira mais concreta e pessoal, aqui ele deixa de lado. Tomás, odoutor da Igreja, narra o casamento do santo com a Pobreza paraque Dante possa compreender o significado da frase em que diz queum homem encontra um bom pasto no rebanho de Domingos senão se desvia.

Se pensarmos nos famosos poemas alegóricos da antiguidadetardia e da Idade Média, nas obras de Claudiano ou de Prudêncio,de Alain de Lille ou Jean de Meun, há certamente muito pouco emcomum entre elas e a biografia de Francisco na Comédia. Estasobras convocam exércitos inteiros de personagens alegóricas, des­crevem suas personalidades, suas roupas, suas moradias, fazem comque discutam e lutem umas com as outras. Em algumas dessas obrasaparece Paupertas, mas sempre como um vício ou companheira dovício. Dante introduz aqui uma única figura alegórica, a Pobreza, evai ligá-Ia a uma personalidade histórica, isto é, real, concreta. Criáalgo inteiramente diferente; lança a alegoria dentro da vida real, vaijuntá-Ia intimamente a uma situação histórica. Claro, esta não é umainvenção de Dante; ele herdou-a junto com o tema da tradição fran­ciscana, onde, desde o começo, o casamento com a Pobreza aparececomo uma atitude típica do santo. Logo após sua morte surgiu um

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FIGURA

tratado com o título Sacrum commercium Beati Francisci cum

Domina Paupertate1, e ecos do tema são encontrados com freqüên­cia, por exemplo, nos poemas de Jacopone da Todi. Mas trata-se dealgo que não foi completamente desenvolvido, dispersando-se emmuitas anedotas didáticas e isoladas. O Sacrum commercium não

contém nada de biográfico e consiste, essencialmente, num escritodoutrinário, no qual a Pobreza faz um longo discurso. Da mesmamaneira, as imagens na Igreja Menor em Assis, que já foram atribuí­das a Giotto, mostram o casamento sem nenhuma referência biográ­fica. Cristo une o santo e a Pobreza encovada, velha e esfarrapada,enquanto de cada lado várias alas do coro dos anjôs participam dacerimônia. Nada disso possui qualquer relação direta com a vidareal do santo; este será o assunto de um outro ciclo de pinturas. MasDante, ao contrário, irá combinar os dois; liga a festa de casamentocom a cena cheia de impacto, estridente mesmo, no mercado deAssis, onde Francisco renuncia publicamente à sua herança e devol­ve suas roupas ao pai. A renúncia à herança e às roupas, que consti­tui em todas as outras versões o próprio centro do episódio, não éexplicitamente mencionada por Dante; só surge intimamente ligadaao casamento alegórico. Aqui Francisco rompe com seu pai porcausa do amorpor uma mulher, uma mulher que ninguém deseja,que todos rejeitam como se fosse a própria morte; diante do olharde todos, do olhar do bispo, do olhar de seu pai, ele une-se a ela.Aqui o significado particular e o significado universal do incidenteencontram-se representados com um relevo muito maior do que sefossem revelados através da simples renúncia aos bens particulares.Ele recusa os bens de seu pai e liberta-se dele, não porque não dese­je possuir coisa alguma, mas sim porque deseja uma outra coisa eluta para possuí-Ia. Ele o faz em nome do amor, em nome de umdesejo, algo que involuntariamente irá despertar lembranças deoutras situações semelhantes em que os jovens abandonaram suasfamílias por causa de uma mulher ruim que acendeu seus desejos.Sem nenhuma mostra de vergonha, diante do olhar de todos,Francisco une seu destino a uma mulher desprezada por todos, e areminiscência de mulheres ruins torna-se, como veremos, cada vezmais vívida à medida que o tema se desenvolve. Trata-se portanto deum casamento estranho, repulsivo de acordo com os padrões vigen­tes, da cerimônia de uma união degradante, seguida pela luta contra

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seu próprio pai, de modo público, estridente, e por esta mesmarazão mais cheia de significado do que a devolução das roupas, aqual não suscita aquele contraste entre a abjeção e a santidade comoo faz o casamento com uma mulher desprezada. Aqui irrompe umaoutra lembrança, a Dele que uma vez celebrou um casamento assim,Dele que desposou uma mulher desprezada, abandonada, a pobrehumanidade rejeitada, a filha de Sião. Também Ele, por sua livrevontade, recusou sua herança para dedicar seu amor a uma mulherabandonada. A concepção de que a vida e o destino de Franciscoguardam certa correspondência com a vida de Cristo, o tema da imi­tação ou conformidade, foi sempre cultivada amorosamente pelatradição franciscana. A biografia de Boaventura é dominada por essaconcepção, também presente na pintura, sobretudo na Igreja Menorde Assis, onde cinco incidentes da vida de Cristo estão colocados do

lado oposto a outros cinco que correspondem à vida de Francisco.A conformidade aparece também em muitos pormenores, tais comono número de discípulos, na vida comunitária com eles, nos váriosmilagres e, acima de tudo, na estigmatização. Dante não desenvol­veu o tema de modo detalhado, na verdade ele não dá detalhes; masde maneira consciente uniu-o ao casamento místico, captando-o nãoatravés de ocorrências isoladas, mas em seu todo e em sua essência;

embora de um modo que o tornasse mais diretamente claro para oleitor medieval do que para o moderno.

A biografia que Tomás de Aquino nos relata começa com umadescrição da topografia de Assis. "Desta ladeira", e Tomás continua,"um sol surgiu para o mundo, brilhando como o sol terreno quan­do se levanta. Quem fala deste lugar não deveria chamá-lo Assis,mas Oriente". Este jogo de palavras serve para enfatizar a compara­ção entre o nascimento de Francisco e o nascer do sol; mas soloriens, oriens ex alto é uma concepção medieval do Cristo muitodifundida (segundo Lucas 1, 78 e várias passagens que contêm osímbolo da luz em João )2; este símbolo está baseado em mitos maisantigos do que o cristianismo, firmemente enraizados nas regiões doMediterrâneo, sempre em ligação com um casamento místico. ParaDante, o nascimento do Senhor, o casamento do Cordeiro e a visão

de VirgÍlio na Quarta Écloga, que para ele e seus contemporâneosera uma profecia do Cristo, estavam misturados com a figura doSol-Criança como o Salvador do mundo a quem se destina o casa-

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FIGURA

mento místico. Não há dúvida portanto de que, através da compa­ração com o sol nascente, seguida diretamente pelo casamento mís­tico como a primeira confirmação do poder solar do santo, Dantequis fazer soar também a nota do tema da conformidade ou imita­ção de Cristo e desenvolvê-Ia integralmente. A metáfora do sol nas­cente é uma introdução cheia de alegria com a qual a amargura docasamento, feio e repulsivo, compõe um contraste marcante. O con­traste vinha sendo preparado, e não creio que fosse por acaso. Otema do casamento místico já fora introduzido duas vezes antes, deforma breve, quer com um estilo gracioso, quer com um estilo sole­ne e sublime, em ambas com toda aquela beleza encantadora de queDante é capaz. Da primeira vez, aparece como uma imagem no sÍmi­Ic da dança dos santos como sinos que anunciam a manhã, no fim doCanto 10 (versos 139-46):

Indi come orologio, che ne chiaminell' ora che Ia sposa di Dia surgea mattinar 10 sposo perche l'ami,che l'una parte l'altra tira ed urge,tin tin sanando com SEdolce nota,

che il ben disposto spirto d'amor turge;COSEvid'io Ia gloriosa rotamoverSl ...

[Assim como no relógio que nos chama,na hora em que a esposa de Deus acordae canta matmas para o ser que ama,ficam se tocando uma à outra corda,tin tin soando com uma tão doce nota,

que o bom espírito de amor transborda;foi assim que eu vi a gloriosa rodamover-se ...]

Aqui o tema é indicado apenas por um símile, mas torna-se con­creto por sua alegria encantadora, por sua dolcezza; aqui, como notrecho seguinte, o noivo é Cristo, e a Igreja, isto é, a cristandade, é anoiva. Na segunda vez, um pouco antes do começo da VitaFrancisci, é mais dramático, mais profundo e significativo: refere-sediretamente ao casamento da Cruz. No começo de seu comentário,

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Tomás quer elucidar para Dante o propósito da Providência. Doislíderes, ele diz (Francisco e Domingos), foram enviados pelaProvidência para que a Igreja caminhasse ao encontro de Cristocom passos mais seguros e autênticos; e o texto nos diz por quemotivo (Par., 11,31-4):

perà che andasse ver Ia suo dilettoIa sposa di colui, ch'ad alte gridadisposà lei cal sangue benedetto,in sé sicura ed anca alui piu fida ...[porém que buscasse ver o seu amadoa esposa, aquela que com dor tocanteele desposou com sangue abençoado,de si segura e nele mais confiante ...]

Isto não é mais encantador, é solene e exaltado; toda a história

do mundo depois de Cristo está, para Dante, contida na imagem donoivo que vai ao encontro de sua bem-amada. Aqui também o tomalegre, a paixão cheia de júbilo dos noivos é muito forte; claro, aamargura da agonia deste casamento na Cruz é indicada; com umgrito alto, através do sangue sagrado, é consumada; mas agora "ter­minou", e o triunfo de Cristo foi conquistado.

As duas passagens, uma graciosa, a outra solene-sublime, ambasrepletas da alegria nupcial, afirmam-se como prenúncios, tal como onascimento do sol, em agudo contraste estético com o casamentocujo surgimento preparam. De modo estridente, com a discórdia daluta contra o pai, com as rimas duras guerra e morte, a cerimôniacomeça. Mas, acima de tudo, está a noiva: ela nem sequer é nomea­da ou descrita, mas tal é sua força que ninguém abre a porta do pra­zer para ela - assim como também para a morte (Ia morte). Parece­nos absolutamente imprescindível interpretar a abertura da porta doprazer em seu sentido próprio como o ato sexual e, desse modo,"porta" como a entrada para o corpo feminino. A outra explicação,preferida por muitos comentadores, de que se trata de uma referên­cia à porta da casa, proibindo a entrada da pobreza ou da morte,pode ser pertinente em muitos trechos onde se diz que ninguémabre a porta quando a morte ou a pobreza estão batendo; no entan­to, não se ajusta de modo algum ao contexto nupcial e não consegue

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FIGURA

explicar de modo convincente porta dei piacere; além disso, se não aquisesse designar expressamente, sem dúvida Dante teria evitadosugerir uma interpretação sexual; pois ela irá corresponder perfeita­mente à impressão concreta de repulsa amarga evocada nessa passa­gem. Por conseguinte, ninguém deseja a mulher que Francisco esco­lheu, ela é desprezada, rejeitada, passou séculos à espera de umamante - um dos comentadores antigos, Jacopo della Lana, subli­nha que ele nunca disse para ninguém -, mas Francisco, o sol nas­cente do monte Subasio, une-se abertamente a esta mulher cujonome ainda não foi dito, mas cujo retrato deve despertar no leitor aimagem de uma prostituta velha, desprezível, horrorosa, mas aindasedenta de amor. Daí em diante ele irá amá-Ia cada vez mais. Há

mais de mil anos ela foi privada de seu primeiro marido (Cristo,embora Ele não seja nomeado), e a partir daí viveu menosprezada eabandonada até que Francisco apareceu. Tudo foi inútil para ela, denada lhe valeu ter dado uma tranqüila segurança a seu companhei­ro, o pescador Amiclas (segundo Lucano), durante uma visita deCésar; nem ter, forte e corajosa, subido à Cruz com Cristo e, comoa própria Maria, ter permanecido aos pés da Cruz. Agora, claro, jásabemos quem ela é, e Tomás diz seu nome: mas a sublime e herói­ca figura da Paupertas ainda não está livre de um ressaibo amargo egrotesco. Que uma mulher tenha subido à Cruz com Cristo é, em simesma, uma concepção bizarra3; mais bizarra ainda é a aplicação daalegoria para mostrar como foram conquistados os primeiros discí­pulos. No entanto, seja como for que se interpretem os versos 76-8,algo obscuros sintaticamente, o sentido geral é bastante claro: aamorosa harmonia do casamento entre Francisco e a Pobreza susci­

ta em outros o desejo de participar desta felicidade; primeiro,Bernardo (de Quintavalle) tira seus sapatos e começa a "correr atrásdaquela paz, e, enquanto corria, parecia a ele próprio que ainda iamuito devagar"; depois, Egídio e Silvestre tiram seus sapatos eseguem o jovem marido; de tanto que a noiva tinha agradado a eles!

A visão grotesca e horrível da união sexual com uma mulher des­prezada, que se chama pobreza ou morte e que revela o significado deseu nome pela sua aparência, acrescenta-se uma imagem que, para ogosto estético posterior, seria imprópria a ponto de parecer intolerá­vel: a adesão piedosa e extática dos primeiros discípulos é mostradacomo uma perseguição amorosa à esposa de um outro. Na Idade

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Média cristã, no início do século XlV, tais imagens eram tão eloqüen­tes como são hoje em dia, mas seu efeito era diferente. O aspecto con­creto, intenso e plástico compreendido nas imagens eróticas - correratrás de uma mulher, unir-se sexualmente a ela - não era considera­do algo inconveniente, mas um símbolo de fervor. Para o gosto pos­terior, naturalmente, a combinação de esferas tão diferentes, a mistu­ra do que vai até a indignidade física com a mais alta dignidade espi­ritual, é dificilmente tolerável até mesmo hoje em dia, em que há umatendência a se admirar as extremas misturas de estilo na arte moder­

na; mesmo num poeta tão venerado como Dante raramente estas pas­sagens são entendidas em seu significado pleno. A maior parte dos lei­tores nem as registra nem as relê. Claro, seria um equívoco ainda piorlê-Ias sob a ótica de um anarquismo extremado tal como existe hojeem dia, e por razões muito sérias; Dante é sem dúvida muitas vezes"expressionista" até o mais alto grau, mas este expressionismo surgede uma herança complexa; sabe o que quer exprimir e o exprime.

O modelo para um estilo em que a mais elevada grandeza com­bina-se com a mais baixa degradação, do ponto de vista destemundo, era a história de Cristo, e isto nos leva de volta ao texto.Francisco, o imitador de Cristo, vive agora com sua amada e seuscompanheiros, todos vestindo as sandálias da humildade. Como sua

.amada, ele é de origem humilde e alérgico à aparência exterior; masisso não o torna frágil. Pelo contrário, parece um rei quando revelaao papa sua "firme intenção", ou seja, a fundação da ordem mendi­cante; porque ele, como Cristo, é o mais pobre e o mais desprezadoentre os pobres, mas ao mesmo tempo é um rei. E já que na primei­ra parte da Vita a humildade ocupa o primeiro plano, é na segundaparte, que aborda a ratificação papal, a missão entre os sarracenos,sua estigmatização e morte, que seu triunfo e transfiguração vêmenfatizados. Como um rei, ele expõe ao papa o seu plano e obtémsua aprovação; o grupo de frades menores vai crescendo, pronto aseguir aquele cuja vida deveria ser cantada na glória celestial; oEspírito Santo coroa suas obras através do papa Honório; e depoisde ter procurado em vão o martírio entre os infiéis, recebe do pró­prio Cristo, em sua pátria entre o Tibre e o Amo, a última chancelaque confirma sua imitação: as chagas. Quando Deus decide recom­pensá-Io com a morte e a glória eterna por sua humildade, ele reco­menda sua amada ao amor sincero de seus irmãos, que são seus legí-

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timos herdeiros; e de seu seio, no seio da Pobreza, sua alma glorio­sa sobe para retornar a seu reino; para o corpo, ele não deseja outrotúmulo a não ser o próprio seio da Pobreza. A conclusão vem numcrescendo de força rítmica e retórica até o momento da denúnciacontra os dominicanos mais recentes; Tomás exorta seu ouvintc,

Dante, a medir a grandeza de Francisco comparada à de outro líder,Domingos, fundador da ordem à qual o próprio Tomás pertenceu:Pensa oramai qual lu colui ...

Sem dúvida a Pobreza é uma alegoria. Ainda assim, os detalhesconcretos de uma vida de pobreza - tal como o Sacrum commer­cium enumera - não teriam provocado um impacto tão genuínoquanto a descrição, sucinta mas impressionantemente elaborada, dasnúpcias com uma mulher velha, horrenda e desprezada. A amargu­ra e o caráter física e moralmente repulsivo de tal união mostram,com intensidade sensível, a grandeza de uma resolução santa; revc­Iam também a verdade antitética de que só o amor é capaz de tomaruma decisão dessa natureZa. No Sacrum commercium celebra-se

uma festa durante a qual ficamos sabendo que os irmãos menoresusam apenas a metade de uma vasilha de barro para lavar as mãos,não têm com que enxugá-Ias, molham o pão só com água, comem­no apenas com ervas do mato, não têm sal para usar nas ervas enenhuma faca para limpá-Ias ou para cortar o pão. Não podemosdeixar de sentir um certo desgosto diante dessa descrição, dessa enu·meração; seu efeito é de pedantismo, mesquinhez, de excessivo aca··nhamento. Algo bem diferente ocorre quando se narra um simplesato dramático de pobreza voluntária, como se encontra com fre··qüência na lenda dos santos; por exemplo, a cena em Greccio emque ele vê pela janela os irmãos comendo numa mesa bem ornamen­tada; toma emprestado o chapéu e o bastão de um mendigo, aproxi­ma-se da porta rogando caridade e, como um pobre peregrino, pedecomida; quando os irmãos, atônitos, o reconhecem e lhe dão o pratodesejado, senta-se com eles sobre as cinzas e diz: modo sedeo ut fra­ter minor. A cepa expressa com beleza o peculiar efeito emocionalde seu comportamento, mas não o sentido completo de sua vida.Para completar esse quadro, seriam necessárias muitas históriassemelhantes, cada uma delas contribuindo com um detalhe para for­mar o todo; a tradição lendária e biográfica cumpriu essa tarefa, mas

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não há lugar para ela na Comédia. Acima de tudo, este não era seuintento. Todos conheciam a lenda com suas histórias; mais ainda,

Francisco de Assis era, desde muito tempo, uma figura claramentedefinida na consciência de todos os seus contemporâneos.Constituía um caso bem diferente de muitas outras personagens,menos conhecidas ou mais discutidas, que aparecem na Comédia;Dante enfrentava aqui um tema formado por um modelo claramen­te delineado, e sua tarefa era apresentá-Io de modo a abarcar o sig­nificado de Francisco em sua máxima amplitude. A personalidadereal do santo tinha de ser preservada, não com o objetivo de expô­Ia, mas sim de integrá-Ia a uma ordem em que aquela personalidadefora colocada pela Providência; a realidade pessoal do santo tinha deestar subordinada à sua missão, tinha de brilhar através de sua mis­são. Por esta razão, Dante não descreveu um encontro no qual osanto pudesse revelar-se ou expressar-se de modo íntimo; em vezdisso, escreve uma Vita, a vida de um santo. Dante não podia expri­mir como opinião própria a grande importância que atribuía à ativi­dade dos dois fundadores das ordens mendicantes. Irá apresentá-Iaatravés de dois grandes doutores da Igreja, Tomás e Boaventura,ambos produtos dessas ordens. Nas duas Vitae a personalidade estásubordinada à missão para a qual foi chamada. Na parte sobreDomingos, de sabedoria angelical, cuja missão era pregar e ensinar,e cuja personalidade não podia ser comparada com o seráfico eardente Francisco em popularidade, a biografia individual passa, demaneira mais marcante ainda, para o segundo plano e é substituídapor uma série de imagens: o esposo da fé, o jardineiro de Cristo, ovinhateiro no vinhedo, o combatente pela semeadura da SagradaEscritura, a torrente sobre os campos dos heréticos, a roda no carrode combate da Igreja. Todos estes símbolos referem-se à missão. AVita Francisci está muito mais perto da vida, mas também encontra­se subordinada à missão; aqui só temos uma imagem desenvolvida,a do casamento com a Pobreza, que fixa o modelo da vida e aomesmo tempo vai colocá-Ia sob o signo da missão. A missão, por­tanto, é o fator decisivo também na biografia de Francisco; o realis­mo da vida deve estar subordinado a ela, e a alegoria da Pobrezacontribui para esse objetivo. Ela consegue combinar a missão dosanto com a atmosfera peculiar de sua personalidade, mostrando-acom a máxima intensidade, mas sempre sob o signo da missão; exa-

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FIGURA

tamente como ocorria na vida pessoal de Francisco. Seu forte e apai­xonado realismo pessoal não se deixava levar pelo devaneio (vaneg­giava), mas concentrava-se inteiramente em sua missão."Francisco", diz Deus ao santo num Auto da Paixão alemão4, "tomao amargo como doce, e recusa a ti próprio para que possas me reco­nhecer". Toma o amargo como doce ... Há algo mais amargo do quea união com uma mulher assim? Mas Francisco tomou-a, comoDante mostra, como uma coisa doce. Todas as coisas amargas sãoabraçadas nessa união, tudo o que poderia ser considerado comoamargo r e autodesprezo está contido nela, junto com o amor que émais forte que toda amargura, mais doce que a doçura e tem a apro­vação de Cristo.

Sim, certamente Paupertas é uma alegoria; mas não é apresenta­da e muito menos descrita como tal; nada ficamos sabendo sobre sua

aparência, sobre suas roupas, como em todas as alegorias; no come­ço, nem sequer sabemos seu nome. Sabemos apenas que Franciscoama uma mulher contra a vontade de todos e que se une a ela; suaaparência só é transmitida de maneira indireta, mas com tanta forçaque se torna evidente, pois todo mundo a evita como se fosse a pró­pria morte, e, abandonada e desprezada, ela teve de esperar muitotempo por um amante.

Ela também não fala, como o faz a Pobreza no Sacrum commer­

cium ou as figuras alegóricas da Necessidade, da Obrigação, daPreocupação e da Miséria no último ato da segunda parte do Faustode Goethe; ela é apenas a amada muda do santo, mais intimamenteligada a ele do que a Preocupação a Fausto. O tom didático da ale­goria penetra desse modo em nossa consciência, não como umalição didática, mas como um acontecimento real. Como mulher deFrancisco, a Pobreza tem existência concreta; mas, como Cristo foi

seu primeiro marido, sua realidade concreta torna-se parte do gran­de esquema da história do mundo, do plano dogmático. Paupertasliga Francisco a Cristo, estabelece o papel de Francisco como imita­tor Christi. Dos três motivos que, em nosso texto, apontam para aimitação - Sol oriens, casamento místico, estigmatização -, osegundo, o casamento místico, é de longe o mais importante a esserespeito, pois os outros dois e toda a atitude de Francisco desenvol­vem-se a partir dele. Na condição de segundo marido da Pobreza,ele é o sucessor ou imitador de Cristo.

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Suceder ou imitar a Cristo é, para todos os cristãos, uma metanitidamente traçada, como se pode constatar em muitos trechos doNovo Testamento. No primeiro século da Igreja militante, o teste­munho dado pelo sangue dos mártires mostrava que a sucessãodevia ser realizada não apenas moralmente, pela obediência aosmandamentos e pela imitação das virtudes, mas integralmente, atra­vés de softimentos iguais ou de um martírio semelhante. Mesmoapós esse período, a tentativa de seguir integralmente os passos deCristo, de imitar seu destino, ainda era objeto de uma procura esfor­çada; de tal modo que até a morte de um herói numa batalha contraos infiéis era interpretada como uma forma de sucessão. No misti­cismo do século XII, ao que tudo indica, sobretudo através deBernard de Clairvaux e de seus discípulos cistercienses, desenvol­veu-se um sentimento extático que procurava alcançar uma imitaçãointegral do Salvador através de uma absorção no sofrimento deCristo, portanto de uma maneira essencialmente contemplativa, naqual a experiência interior da Paixão, unio mystiea passionalis, eraconsiderada o mais alto estágio da absorção contemplativa. Até esseponto, são Francisco de Assis era um continuador da mística passio­nal cisterciense, pois, em sua natureza, na verdade no mais Íntimo desua natureza, a experiência da Paixão aparece como o ultimo sigilto;mas o caminho escolhido era muito mais ativo e próximo da vida. Asucessão baseia-se, em primeiro lugar, não na contemplação, mas napobreza e na humildade, na imitação dos pobres e na vida humildede Cristo. Francisco contribuiu para a espiritualidade mística dasucessão, dando-lhe uma base que deriva diretamente da Escritura,uma prática direta e imediatamente fundada na vida; a imitação efe­tiva da pobreza e da humildade de Cristo. Essa renovação concretada sucessão integral foi o motivo por que Francisco foi reconhecidopor seus contemporâneos como merecedor de receber a estigmati­zação: ninguém conseguira reformar a idéia da sucessão integral tãoprofundamente quanto ele.

Agora podemos entender claramente por que Dante não podiaapresentar a realidade da figura do santo de modo mais simples ouimediato do que através do casamento místico, a base de sua imita­tio Christi. Esse procedimento colocava Francisco no esquema dahistória do mundo, ao qual, na visão de Dante, ele pertencia: umesquema que, nesse período, permanecia bem vivo. Para o período

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FIGURA

medieval, e até bem mais tarde no mundo moderno, um aconteci­mento significativo ou uma figura significativa era "significativo"no sentido literário; significava preenchimento de um plano, preen­chimento de algo preestabelecido, repetindo a confirmação de algono passado e profetizando algo que viria. Num ensaio anteriorsobre a figura, tentei mostrar como a chamada interpretação tipoló­gica do Velho Testamento, na qual os eventos são interpretadoscomo profecias práticas da efetivação do Novo Testamento, em par­ticular da encarnação e da morte sacrificial de Cristo, criou um novo

sistema de interpretação da história e da realidade que dominou aIdade Média e influenciou decisivamente Dante. Devo remeter o lei­

tor a este ensaioS, e só posso adiantar aqui que a interpretação figu­rativa estabelece uma relação entre dois acontecimentos, ambos his­tóricos, na qual um deles se torna significativo não apenas em simesmo mas também para o outro, que, por sua vez, enfatiza e com­pleta o primeiro. Nos exemplos clássicos, o segundo é sempre aencarnação de Cristo e dos acontecimentos ligados à encarnaçãoque levaram à libertação e ao renas cimento do homem; e o todo éuma interpretação sintética da história do mundo pré-cristão, tendocm vista a encarnação de Cristo. A imitação integral, com a quallidamos a propósito do casamento místico de Francisco com aPobreza, é uma figura recorrente; repete certos temas característicosda vida de Cristo, renova-os e revivifica-os aos olhos de todos, aomesmo tempo que renova a missão de Cristo como o bom pastorque o rebanho deve seguir. 10 fui degli agni delta santa greggia eheDomenico mena per eammino [Eu fui uma das ovelhas da santa igre­ja que Domingos soube guiar pelo caminho], diz Tomás, e Franciscoé designado como um patriarca. A figura e a imitação juntas perfa­zem a imagem de uma visão teleológica da história cujo centro é acncarnação de Cristo; isto define os limites entre a velha e a novaaliança; lembremo-nos de que o número de eleitos em ambas asalianças, tal como são apresentados na rosa branca no EmpÍreo deDante, será exatamente o mesmo no fim dos tempos, e de que, dolado na Nova Aliança, só uns poucos assentos ainda não foram ocu­pados - o fim do mundo não está longe. Mas, entre os eleitos daNova Aliança, Francisco ocupa um lugar especial na rosa branca, dolado oposto aos grandes patriarcas da Velha Aliança, e, assim comoestes foram precursores, também ele, o esposo estigmatizado da

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Pobreza, é o que mais se destaca entre os últimos seguidores deCristo como o escolhido para guiar o rebanho pelo caminho certo eajudar a Noiva de Cristo, a fim de que ela possa chegar até o seuamado com passos firmes e seguros.

Todas essas relações eram reconhecidas imediatamente pelo lei­tor medieval, pois este vivia em meio a elas; as apresentações dasrepetições profetizadas e realizadas eram tão familiares para elequanto a concepção de desenvolvimento histórico para um leitormoderno; até a aparição do Anticristo era considerada uma repeti­ção exata, mas enganadora, da aparição de Cristo. Perdemos a com­preensão espontânea dessa concepção da história; somos obrigadosa reconstruí-Ia pela pesquisa. Mas ela guiou a inspiração de Dante eainda podemos sentir o seu brilho; apesar de nossa antipatia pelaalegoria, a realidade viva do décimo primeiro canto do Paradiso nosatinge; uma realidade viva que só vive aqui, no verso do poeta.

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Notas

FIGURA

1 Como P. Friedlaender me informa, a barbarica pestis é provavelmente o ferimento cau­sado por um raio, pelo qual Odisseu foi mortalmente atingido; subinis é duvidoso.[Como o é também minha tradução.]2 Na antiguidade tardia (Chalcidius, Isidore) e na Idade Média ressurge num jogo depalavras com pictura. Cf. E. R. Curtius em Zeitschrift für romanische Philologie, 58

(1938),45.3 Muitas definições posteriores seguiram esta direção. Cf. Thesaurus linguae latinae, VI,1ª parte, col. 722, I, 54.4 Em Aristóteles (e em Platão) typoi significa "em geral", "em linhas amplas", "em regra".Sua frase pachulos kai IY/I{)i (f:tica a Nicômaco, 1094b, 20), ou Kath' holou lechthen kai

typoi, foi transmitida por Ireneu (2, 76) e Boécio (Topicorum Aristoteles interpretatio, 1,1 [Patrologia latina, LXIV, col. 911]) para o francês e para o italiano, d. Godefroy, s. v.figural: Il convient que /,( /wmiáe de procéder en ceste oeuvre soit grosse et figurele. Ous.v. figuralment: Car Ia tn,/IIiáe de produyre/ Ne se peut monstrer ne deduyre/ Par effect,

si non seulement/ Grossetneril el }iguraulment (Greban). Em italiano a compreensão dacombinação sommaritltt/ellle /' .fi'guralmente parece ter sido perdida desde cedo; d. osexemplos em Tommaseo-Ikllini. f)izionario delta lingua italiana (1869), lI, 1" parte, p.789, s.v.figura 18.

5 Schema tem significados qUt· n,!o aparecem ou que não persistem em figura, como, porexemplo, o significado de "l'Ilnslituição".6 Cf. Também a moduiaçi\o ,k tons ,'m 2, 412-3: per chordas organici quae mobilibus digi­

tis expergefacta figuram Ios h,lrpislas que com dedos ligeiros tocam e modulam as cordas].7 Deste modo, forma apan''''' ~eralnll'llte onde são necessárias duas sílabas. Mesmo emLucrécio, a relação entn' as duas palavras é sobretudo vaga e oscilante. Há passagens, noentanto, particularmellt'· "111l.11l'1'l'cio,,'111que os dois conceitos são nitidamente distin­tos; quando, por exemplo, de lab dos elementos primordiais: "quare ... necessest/ natura

quoniam constant neql4e };'('/IIIIIIIIIII .111111/ I4nil4sad certam formam primordia rerum/ dis­

simili inter se ql4adam v{)/iltlrt· .fi'glll'tI." (2, 377-80) [E foi assim que bem no princípio dascoisas, que existem C0l110elas ,~,\opor natureza e não por terem sido feitas pela mãosegundo a forma definida dt' 11111único padr,\o, algumas delas tomaram formas diferentesao voarem.] Como as /ilrltltli ,1/'/'(/tll'/' .fi'glll'tltn em 4, 69, trata-se da clara expressão darelação bem conhecida ,'nlre 1II{)11'!u-t' s('!Jl'tna, que Ernoult-Meillet, lococit., sugere com

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II

ERICH AUERBACH

Ia configuration du moule (a configuração do molde). Cf. Cícero, De natura deorum, I, 90.

8 As três últimas palavras (como Munro indicou) refletem a fórmula de Demócrito e

Leucipo: rysmos, trope, diathige (d. Diels, Fragmente der Versokratiker 2,4" ed., p. 22).

Aristóteles emprega schêma ao explicar rysmos (Metafísica, 985b, 16 e 1042b, 11; Física,188a, 24). Lucrécio traduziu a palavra por figura.9 Alguns trechos: 2, 385, 514, 679, 682; 3, 190,246; 6, 770.

10 A transição de "figura do material" para "figura do objeto reproduzido" foi efetuada

de maneira bastante gradual, começando pelos poetas. Cf. (além de Lucrécio) Catulo, 64,

50 e 64, 265; Propércio, 2, 6, 33. Em Veleio Patérculo, 1, 11, 4, Expressa similitudinefigurarum significa "semelhante a um retrato".

11 Cf. também Ad familiares, 15, 16. Por outro lado, Quintiliano, 10,2, 15: illas Epicurifiguras ... [aquelas figuras de Epicuro ...].

12 Mais tarde figura torna-se bem freqüente no sentido de "imagem divina" - e, nos

autores cristãos, de "ídolo" - ou a imagem numa moeda.

13 Em Propércio e também em Ovídio, figurae ("formas") significa às vezes "espécie",

"maneira", em oposição a "classe", "tipo"; é a mesma evolução de species-espece.14 Ligado a massas, d. também Marcial, 14,222, 1; Festo, 129,ficta quaedam ex farina inhominum figuras [coisas feitas de massa com formas de homens]; e Petrônio, 33, 6, ovaex farina figurata [ovos modelados com massa]. O cozinheiro de massas era freqüente­

mente visto e empregado como um escultor e decorador, uma atitude revivida em épocas

posteriores, particularmente no Renascimento e nos períodos barroco e rococó; d.Goethe, Wilhelm Meisters Lehrjahre [A aprendizagem de Wilhelm Meister], livro 3, capí­

tulo 7, e a nota de Creizenach sobre este trecho na Jubilaumsausgabe [edição de jubileu],

vol. 17, p. 344.

15 Em Epist., 65, 7, Sêneca tem um trecho significativo noutro sentido, onde figura vale

como arquétipo, idéia, forma, mas no sentido neoplatônico do modelo interno das for­

mas na mente do artista. Neste trecho ele também compara, o que depois se tornou tão

freqüente, o artista e o Criador: o escultor, diz Sêneca, pode encontrar o modelo (exem­plar) de seu trabalho em si mesmo ou fora; pode ser fornecido a ele por seus olhos ou por

sua mente; e Deus tem dentro dele todos os exemplaria das coisas: plenus his figuris estquas Plato ideas appellat immortales [ele está cheio daquelas figuras que Platão chama

idéias imortais]. Cf. Dürer: "Pois um bom pintor está interiormente cheio de figuras

(voller Figur)"; d. E. Panofsky, Idea (1924), p. 70.

16 Ver Faral, Les arts poétiques du 12eme et du 13eme siecle (Paris, 1924), p. 48 et seqs. e

99 et. seqs.

17 Uma variante digna de nota ocorre em Amiano Marcelino, que usa a palavra em relação

à topografia dos campos de batalha. Cf. Thesaurus linguae latinae, VI, 1ª parte, 726, 37 ss.18 Em Sedúlio, Carmen Paschale, 5, 101-2, há um trecho em que figura dificilmente pode

significar outra coisa a não ser "rosto", como no francês moderno: "Namque per hoscolaphos caput est sanabile nostrum;l Haec sputa per Dominium nostram lavere figuram."[Pois nossa cabeça pode ser curada por estes golpes;/ Este cuspe lavou nosso rosto na pes­

soa do Senhor.]/ Já que o poeta falara antes de spuere em faciem [cuspir no rosto] e

colaphispulsare caput [dobrando a cabeça com golpes], o significado de "rosto" não pode

ser posto em dúvida; ainda assim, é possível que Sedúlio tenha sido levado a escolher o

termo mais geral de figura pela necessidade de um trissílabo com uma sílaba longa no

meio para que pudesse concluir o verso. De qualquer modo, é o único exemplo antigo

certo que se conhece do uso em latim de figura como "rosto". A presunção de Jeanneret,

em La langue des tablettes d'exécration latines (Neuchâtel, 1818), p. 108, de que figura na

82

I

FIGURA

tableta minturniana de execração signifique "rosto" não tem fundamento, se estiver moti­

vada apenas pela justaposição com membra e colorem, que é muito freqüente. No senti­

do de "forma" pertence aos atributos (ou partes) gerais do corpo, com os quais a

maldição começa: seguem-se então os atributos especiais. A alegação de J eanneret é tam­

bém rejeitada por Wartburg em FEW, ad v. figura, 9. A questão permanece irresolúvel em

relação a um fragmento de Labério: figura humana inimico (nimio) ardore ignescitur,Ribbeck, 2, p. 343.

19 Na Septuaginta, Josué já é chamado Jesus, que é uma contração de Josué. Cf. as ilus­

trações do Pergaminho de Josué do Vaticano, que é considerado uma cópia setecentista

de um original do século IV. A única parte acessível para mim no momento é uma pági­

na em Mittelatlerlicher Buchmalerei de K. Plister (Munique, 1922), representando a fun­

dação das doze pedras Gosué, 4, 20-1; no texto e na inscrição Josué é chamado Iesous hotou Naue Uesus (o filho) de Naun], traz um halo e, de modo direto, vem sugerido como

Cristo. Mais tarde, as alusões à "figura" deJosué são freqüentes; d. Hildeberto de Tours,

Sermones de diversis, XXIII, Patrologia latina, vol. 171, cols. 842 ss.

20 Figuraretur significa aqui, ao mesmo tempo, "seria formado" e "seria figurado", este

último pelo sangue e pela água, a Ceia do Senhor e o batismo. A justaposição das duas

chagas no flanco foi durante muito tempo um tema importante. Cf. Burdach, Vorspiel, I,

1 (1925), p. 162 e 212; Dante, Par., 13,37 ss.

21Ita et nunc sanguinem suum in vino consecravit qui tunc vinum in sanguine figuravit[assim ele consagrou seu sangue com vinho representando o vinho como sangue].

22 Moisés é em geral uma figuração de Cristo, por exemplo, na travessia do mar Vermelho

ou na transformação da água salgada na doce água do batismo. Mas isto não impede que

ele, no primeiro exemplo, represente a lei em contradição com sua figuração de Cristo.

23 Cf. Hilário de Poitiers, Tractatus mysteriorum, 1 (Corp. Vind., vol. 65, p. 3), citado em

Labriolle, History and literature of Christianity (London e New York, 1924), p. 243.

24 Cf. Hilariano, De cursu temporum, Patrologia latina, 13, col. 173, 2: sabbati aeterni

imaginem et figuram tenet sabbatus temporalis [o sabá temporal é uma imagem e uma

figura do sabá eterno].

25 A profundidade com que o hábito da interpretação se enraizara pode ser vista na inter­

pretação meio zombeteira dos dons na correspondência de são Jerônimo (Carta 44,

Selected letters of St. jerome, M. F. A. Wright [London e New York, 1933], p. 176-7).

26 São J erônimo ataca Orígenes por isto, dizendo que ele é allegoricus semper interpres et

historiae fugiens veritatem ... nos simplicem et veram sequamur historiam ne quibusdamnubilus atque praestigiis involvamur [sempre um exegeta alegórico, afastando-se da ver­

dade histórica ... mas quanto a nós preferimos simplesmente seguir a história verdadeira e

não nos envolvermos com fantasmas e charlatanismo] Geremiam 27,3,4; Patrologia lati­

na, 24, col. 849). Sobre a relação dos alexandrinos, particularmente Orígenes, com a inter­

pretação figural, d. A. Freiherr von Ungern-Sternberg, Der traditionelle Alttestamentl.Schriftbeweis ... (Halle, 1913), p. 154 ss. Na página 160 ele diz de Orígenes: "Ele não per­

tence ao realismo bíblico da prova nas escrituras".

27 Cf. também De civ., 15,27; ibid., 20, 21 (Ad. Isaiam, 65,17 ss.).

28 A. Rüstow chama minha atenção para a seguinte estrofe de uma peça carnavalesca de

Hans Folz (por volta de 1500): "Hür jud, so merck dir und verstee/ Dass alle Geschichtder altern Ee/ Und aller Propheten Red gemein/ Ein figur der neuen Ee ist allein." [Ouve,

judeu, tome nota e compreenda que toda a história da antiga aliança e todos os ditos dos

Profetas são apenas uma figura da nova aliança']'

83

Page 42: Auerbach Eric Figura

I

ERICH AUERBACH

29 COrpoVind., vol. 31, cf. Labriolle, op. cir., p. 424.

30 Além disso, claro, encontramos claudere [fechar, cancelar], na reminiscência de Isaías

22:22 e Apocalipse 3:7. Cf. numa época posterior Pedro Lombardo, Commentarium dos

Salmos, 146,6 (Patrologia latina, vol. 191, col. 1276): clausa Dei, "o que Deus cancelou

pela obscuridade da expressão", e provo clus.31 Citado de acordo com Patrologia latina, 59, col. 360.

32 Cf. Du Cange e Dante, Purg., 10, 73, e 12,22; Alain de Lille, De planctu naturae,Patrologia latina, 210, 438; muitos trechos podem ser encontrados. Amyot diz em Thém.,52: La parole de l'homme ressemble proprement à une tapisserie historiée et figurée [a

palavra do homem parece na verdade uma tapeçaria historiada e figurada]'

33 Sugestões de profecia figural não faltam nos Evangelhos Sinópticos; veja-se, por exem­

plo, quando Jesus se compara a Jonas, Mat., 12:39 ss., Luc. 11:29 ss. Em são João

poderíamos mencionar 5:46. Mas, perto dos trechos das Epístolas, não passam de débeis

sugestões.

34 Isto me foi apontado por R. Bultmann; a literatura especializada não está à minha dis­

posição no momento. Cf., entre outros trechos, Deuteronômio 18:15;João 1:45; 6:14; 6:26ss.; Atos 3:22.

35 Sedúlio, Eleg., 1,87: Pellitur umbra die, Christo veniente figura [A sombra é expulsa

pelo dia, a figura, pela vinda de Cristo].

36 Embora Prudêncio pareça não reconhecer a interpretação figural, exemplos dela ocor­

rem em seu Dittochaeon (ver Prudêncio, ed. H. J. Thomson, 2 V. [London e Cambridge

(Mass.), 1949-53]. v. 2, p. 346 sS.

37 Isto inclui os acontecimentos lendários e místicos tanto quanto os acontecimentos

estritamente históricos. Que o material a ser interpretado seja realmente histórico ou ape­

nas passe por tal não é relevante para nosso objetivo.

38 Cf. Emile Bréhier, Les idéesphilosophiques de Philon d'Alexandrie, 2" ed. (Paris, 1925),

p. 35 sS.

39 Há muitas formas intermediárias combinando a figura e o símbolo; principalmente a

Eucaristia na qual Cristo é sentido como estando concretamente presente e se considera

a cruz como a árvore da vida, arbor vitae crucifixae, que desempenhou um papel signi­

ficativo compreendendo grosso modo o poema do século IV "De cruce", d. Labriolle, op.

cit., p. 318, até o franciscano "espiritual" Ubertino de Casale ou Dante e Outros.

40 Na oração correspondendo ao Quam oblationem da missa romana de nossos dias, o

livro De sacramentis (século IV) traz o seguinte texto: Fac nobis hanc oblationem ascrip­tam, ratam, rationabilem, acceptabilem, quod figura est corporis et sanguinis Christi.Qui pridie ... [Fazei por nós esta oferenda consagrada, aprovada, razoável e aceitável, que

é uma figura do corpo e do sangue de Cristo. Que um dia antes de seu sofrimento ...].

Ver dom F. Chabrol em Liturgia: encyclopédie populaire des conaissances liturgiques, ed.

r. Aigrain (Paris, 1930), p. 543. Cf. também um texto bem mais tardio, o Rhythmus adSanctam Eucharistiam (século XIII): "Adoro te devote, latens deitas/ Quae sub hisfiguris vere latitas" [Humildemente te adoro, divindade escondida, que além destas

figuras estás velada para mim] e mais adiante: "Jesu quem velatum nunc adspicio,! Orofiat illud quod tam sitio,! Ut te revelata cernens facie/ Visu sim beatus tua e gloriae."Uesus que assim velado irei ver chegar o momento que tanto anseio, quando mostrando

a face encoberta me satisfarás com tua plena graça.] (Trad. J. M. Neale, Collected Hymns[London, 1914], p. 63.).

41 Muitas alusões podem ser encontradas em Gilson, Les idées et les lettres, esp. p. 68 sS.

84

FIGURA

e 155 ss. Em seu artigo, "Le moyen âge et l'histoire" (in L'esprit de Iaphilosophie médú:vale, Paris, 1932) ele se refere ao elemento figural na filosofia medieval da história, mas

sem grande ênfase, já que sua principal preocupação era revelar as raízes medievais de

concepções modernas. Cf. também, em relação ao drama religioso alemão, T. Weber, J)i,.

Praefigurationen in geistlichen Drama Deutschlands, Marburg Dissertation 1909 e l..

Wolff, "Die Verschmelzung des Dargestellten mit der Gegenwartswirklichkeit im

deutschen geistlichen Drama des Mittelalters", Deutsche Vierteljahrsschirft j/frLiteraturwissenschajt und Geistesgeschichte, 7, p. 267 ss. Sobre os elementos figurais no

retrato de Carlos Magno na Chanson de Roland, d. conhecido artigo de A. Pauphilet em

Romania, LIX, esp. p. 183 sS.

42 Naturalmente há numerosas análises do significado quádruplo das Escrituras, que

entretanto não mostram o que me parece indispensável. É natural que a teologia

medieval, ao diferenciar as várias formas de alegoria (por exemplo, Pedro Comestor no

prólogo de sua Historia scholastica), não atribuísse nenhuma importância fundamental,

mas apenas uma espécie de interesse técnico, a estas distinções. Mas até mesmo um mo­

derno teólogo tão proeminente como o padre dominicano Mandonnet, que traça um

resumo da história do simbolismo em seu Dante le théologien (Paris, 1935, p. 163 ss.), v['

o conhecimento destas distinções como um mero instrumento técnico para a compreen­

são de textos e não leva em conta as diferentes concepções da realidade aí implicadas.

43 A essa altura naturalmente os fundamentos da interpretação figural já tinham sido

destruídos; até mesmo muitos eclesiásticos não a compreendem mais. Como Émile Mále

nos diz (L'art religieux de 12eme siecle en France, 3" ed., 1928, p. 391), Montfaucon inter­

pretou as fileiras de figuras do Velho Testamento nas laterais de certos pórticos como reis

merovíngios. Numa carta de Leibniz para Burnett (1696, edição Gerhardt, III, 306)

encontramos o seguinte: "O Sr. Mercurius van Helmont acreditava que a alma de Jesus

Cristo era a de Adão e que o novo Adão, reparando o que o primeiro arruinara, era ()

mesmo personagem pagando sua velha dívida. Acho que fazemos bem em nos abstermosda tarefa de refutar tais idéias".

44 Falando do arquiteto, santo Tomás diz quasi idea (Quodlibetales, IV, 1, 1). O.Panofsky, Idea (Leipzig, 1924), p. 20 ss. e nota, p. 85; d. também a citação de Sêneca emnossa nota 15.

45 Ver Zingarelli, Dante, 3ª ed., 1931, p. 1029 ss., e a literatura citada na nota.

46 Cf. J. Balogh em Deutsches Dante-Jahrbuch, 10, 1928, p. 202.

47 Por essa razão Dante, Purgo 32, 102, descreve quelle Roma onde Cristo e Romano[aquela Roma onde Cristo é romano] como a realização do reino de Deus.

48 Purg., 22, 69-73, ed. Temple Classics. O fato de que, na Idade Média, Virgílio apareça

freqüentemente entre os profetas de Cristo já foi muitas vezes discutido detalhadamente,

desde Comparetti. Uma certa quantidade de material novo pode ser encontrada IlO

volume comemorativo, Virgilio nel medio evo, dos Studi medievali (N.5.V., 1932); dcvo

mencionar de maneira especial lan nova progenies caelo dimittitur alto de K. Strecker, p.

167, em que se pode encontrar uma bibliografia e algum material sobre a estrutura

figural; além disso, E. Mâle, Virgile dans l'art du moyen âge, p. 253, particularmente

prancha 1; e Luigi Suttina, L'effigie di Virgilio nella Cattedrale di Zamorra, p. 342.

49 As palavras mi converrebbe essere laudatore di me medesimo [me conviria ser um lou­

vador de mim mesmo], Vita nuova (ed. Temple Classics, p. 109) 29, são uma alusão a 2

Cor.: 12, 1. Cf. Grandgent em Romania, 31,14, e o comentário de Scherillo.

50 Isto é indicado pelo título do livro, por sua primeira forma de designá-Ia como la glo-

85

Page 43: Auerbach Eric Figura

ERICH AUERBACH

riosa donna de Ia mia mente [a gloriosa senhora da minha mente] pelo misticismo donome, a significação trinitária de número nove, pelos efeitos que emanam dela etc. etc. Àsvezes ela surge como uma figura Christi; basta considerar a interpretação de sua apariçãopor trás de Monna Vanna (24); os acontecimentos que acompanham a visão de sua morte(23); eclipse, terremoto, os hosanas dos anjos; e o efeito de sua aparição em Purg., 30. Cf.Galahad na "Queste del Saint Graal", Gilson, Les idées et les lettres, p. 71.51 Para evitar mal-entendidos devemos mencionar aqui que Dante e seus contemporâneosdenominavam o significado figural "alegoria", enquanto referiam-se ao que é aquichamado alegoria como significado "ético" ou "tropológico". O leitor irá certamenteentender por que neste estudo histórico aderimos à terminologia criada e estimada pelosPadres da Igreja.52 Ele nega que ela sorria alguma vez apesar de Purg., 31, 133 5S. e 32, no começo. Suasobservações sobre Beatriz podem ser encontradas na op. cit., p. 212 ss.

SÃO FRANCISCO DE ASSIS NA COMÉDIA DE DANTE

1 A edição moderna de P. Eduardus Alenconiensis em Analeeta Ord. Min. Capo(1900).2 Os escritos de Fr. Dolger que se ocupam desse assunto não se encontram infelizmenteà minha disposição no momento. Cf. o Commentary de Pietro AJighieri (Florença, 1845),p. 626 ss. que cita Gregório, o Grande, sobre Jó 1,3.3 Foi talvez um sentimento diante do paradoxo de uma ofensa ao bom gosto o que levoumuitos copistas e editores a escreverem pianse em vez de salse ou pelo menos preferir essaleitura? Parece-me equivocada, pois enfraquece o contraste entre Maria e Paupertas. OTesto critieo traz pianse, a edição Oxford, salse. O único manuscrito antigo à minha dis­posição, o famoso ms. Frankfurt na reprodução da Sociedade Dantesca Alemã, trazpianse com certeza.4 Franzisee, nimm die bitteren Ding für die süssen und versehmdh dieh selber, dass dumieh bekennen magst. Citado da coleção de Severin Rüttgers, Der Heiligen leben undLeiden (Leipzig, 1922). O trecho baseia-se numa frase do testamento do santo: Et reee­dente me ab ipsis [os leprosos], id quod videbatur miehi amarum, conversum fuit miehiin duleedinum animi et corporis. [E, destacando-se dele, aquilo que aparecia para mimcomo amargo converteu-se para mim em doçura de alma e de corpo.]. Analekten zurGesehiehte des Franciscusv. A., ed. H. Boehmer (Tübingen e Leipzig, 1940), p. 36).5 Ver p. 13-64 neste volume.

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