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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Augusto Sanches Viodres Itinerários de formação em saúde: narrativas de profissionais Mestrado em Psicologia Social São Paulo 2018

Augusto Sanches Viodres · 2018-11-10 · modos de vida mais justos, solidários e libertários. O contato com essas reflexões deixou o mundo enorme para mim. Deu nome para muitas

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Augusto Sanches Viodres

Itinerários de formação em saúde: narrativas de profissionais

Mestrado em Psicologia Social

São Paulo

2018

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Augusto Sanches Viodres

Itinerários de formação em saúde: narrativas de profissionais

Mestrado em Psicologia Social

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de mestre em Psicologia Social, sob a orientação da

Profa. Dra. Maria Cristina Gonçalves Vicentin.

São Paulo

2018

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BANCA EXAMINADORA

_________________________________________

_________________________________________

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À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio à

realização desta pesquisa.

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RESUMO

VIODRES, Augusto Sanches. Itinerários de formação em saúde: narrativas de

profissionais. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Programa de Estudos Pós-

Graduados em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2018.

A partir da perspectiva de formação no Sistema Único de Saúde (SUS) e a ampla gama de

ações neste sentido, toma-se como norte nesta pesquisa a experiência do sujeito que se forma

– eticamente, politicamente, clinicamente – por meio de seu próprio encontro com o serviço

de saúde e com o trabalho em saúde. Neste encontro se produzem ao mesmo tempo práticas

de saúde e práticas de subjetivação, isto é, novas maneiras de cuidar em saúde e novas

maneiras de atribuir sentido, experimentar, se relacionar consigo mesmo e com os outros.

Para analisar e refletir sobre esses elementos, acompanhei de perto, enquanto trabalhador-

pesquisador, uma ação de integração entre instituição de ensino e serviço de saúde: parceria

de uma faculdade de medicina com uma Unidade Básica de Saúde (UBS) que recebe

anualmente estudantes em estágio, acompanhando algumas das ações cotidianas do trabalho

na saúde pública e coletiva. Disso seguiram dois caminhos: a construção de um diário de

campo que descreve e analisa essa experiência, em que objetivei contextualizar os modos

pelos quais se constroem experiências de formação em serviço no SUS; a realização de duas

entrevistas narrativas sobre itinerários de formação de profissionais envolvidos nessa prática

de integração ensino-serviço, com a intenção de apresentar e discutir alguns elementos do

processo de formação em saúde enquanto campo de encontros e produção de subjetividade.

Palavras-chave: Itinerários de Formação; Produção de Subjetividade; Educação Permanente.

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ABSTRACT

VIODRES, Augusto Sanches. Training itinerary in health service: professional’s

narratives. Dissertation (Masters degree in Social Psychology) – Post-Graduation Studies

Programme in Social Psychology, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2018.

From the perspective of health care training in the context of the brazilian Unified Health

System and the wide range of actions in this field, the researcher takes the perspective of the

experience of the subject who is ethically, politically and clinically trained through his own

encounter with the health service and the work. On this encounter, health practices and

practices of subjectivation are produced at once, that is, new health care approaches, new

ways to produce sense, to relating to oneself and others. In order to analyze and reflect on

these elements, i closely followed, as a worker-researcher, an integration action between a

teaching institution and a health service: a medical school partnership with a Basic Health

Unit that annually receives students as interns, accompanying some of the daily actions of the

work in public and collective health. Two paths were followed: the construction of a field

diary describing and analyzing this experience, in which I aimed to contextualize the ways in

which Unified Health System training experiences are constructed; and the conduction of two

interviews on the training itineraries of professionals involved in this practice of teaching-

service integration, with the intention of illustrating and discussing the process of health care

training as a field of meetings and production of subjectivity.

Keywords: Health Care Training; Production of Subjectivity; Permanent Education.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................ 7

Formação e vida .................................................................................................................................. 9

Essa pesquisa ..................................................................................................................................... 16

1. A DIMENSÃO FORMATIVA COMO UM VETOR DE CONSTRUÇÃO DO SUS ....... 19

1.1. Pela redemocratização do Brasil e da Saúde ......................................................................... 19

1.2. Transformação das práticas de cuidado: efetivação do Sistema Único de Saúde ................. 24

1.3. Perspectivas para uma formação no/com o SUS ................................................................... 28

1.4. Os caminhos das políticas de formação no SUS ................................................................... 32

2. EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO ESTUDADA: A PERSPECTIVA DO

PESQUISADOR-PROFISSIONAL DE SAÚDE .............................................................................. 39

2.1. Notas iniciais ......................................................................................................................... 39

2.2. Pró-Saúde Mamoré ................................................................................................................ 40

2.2.1. Aspectos institucionais e organizacionais ..................................................................... 40

2.2.2. Dispositivos ................................................................................................................... 45

2.2.3. Encerramento da atividade ............................................................................................ 55

3. ITINERÁRIOS DE FORMAÇÃO......................................................................................... 64

3.1. Experiências-acontecimento no itinerário de formação ........................................................ 64

3.2. Formação clínica-ético-política nos limiares ........................................................................ 68

3.3. Seguir em frente .................................................................................................................... 83

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................. 88

ANEXO I .............................................................................................................................................. 91

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APRESENTAÇÃO

Eu nunca me saí muito bem na escola. Durante o ensino fundamental fui um aluno de notas

medianas, passava raspando na maioria das matérias, gostava mais de dar risada com meus

amigos, brincar no intervalo – inventamos as brincadeiras “abismo”, “corrida da morte” e uma

adaptação de “polícia e ladrão”, que anos depois permaneciam brincadas pelas crianças mais

novas. No colegial passei a colecionar recuperações e, pela primeira vez que eu me lembre,

angústias. Além de não saber estudar – meu esforço era o de memorizar os assuntos e

exercícios das apostilas – não conseguia encontrar o motivo para me dedicar a muitas

daquelas matérias, não acreditava serem possíveis todos aqueles anos de colégio para que no

final tudo se resumisse a meu desempenho em um vestibular e, dependendo dele, meu

ingresso em mais uma instituição de ensino. Fui levando até o terceiro colegial, último ano na

escola, em que as coisas se tornaram um pouco mais difíceis: não aguentava me frustrar tanto

com as notas baixas, não entendia o porquê de física, o porquê de matemática. E ninguém

sabia me explicar, de uma maneira que me convencesse, o porquê de viver aquilo tudo. Uma

vez, em uma disciplina chamada artes e que, na verdade, ensinava geometria, fui pesquisar

para quê servia fazer contas com “–i”, descobri que era para algum segmento da engenharia

elétrica, algo que nunca tive, até hoje, a menor necessidade de aprender e exercer. Minha

escola funcionava como uma indústria ruim: tentava produzir bons desempenhos em

vestibular para que ficasse mais famosa, sem muito sucesso. Meus professores da época eram

legais, mas precisavam do emprego e seguiriam a receita que a direção passasse. Um deles me

chamava à atenção, era filósofo e também dava aula de computação, além disso, trabalhava

como psicanalista – foi demitido no ano seguinte de minha formatura no ensino médio junto

com meu professor de história que, através de filmes, nos trazia temas como a pena de morte,

o assassinato dos índios e ética para discutir em sala de aula.

Dei a sorte de passar na terceira lista de uma faculdade considerada boa. A mensalidade era

cara e a matrícula exigia muitos documentos, minha mãe – que largou a faculdade de

administração quando engravidou - dizia “por que você não faz administração na faculdade

perto de casa? É mais barata”. Ela não chegou a terminar a faculdade, de lá para cá passou a

vida trabalhando duro em pequenas empresas privadas e ganhando o salário mínimo para dar

boas condições a si e ao filho pequeno, sozinha. A academia não era algo presente na história

da minha família, meus outros dois tios também não passaram do ensino médio, mantiveram o

sustento a partir de empregos que pagavam mal e que exigiam um tempo muito longo de

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trabalho: recepcionista em consultório médico, atendente em locadora de filmes, revelar fotos

em gráfica, vendedor em livraria. Por conta disso, precisei insistir, até que conseguimos fazer

a matrícula, descobrimos e conseguimos a bolsa de estudos. Entrei na faculdade! As pessoas

da escola, quando fui buscar meu diploma, não acreditavam, arregalavam os olhos quando eu

falava o nome da faculdade em que havia entrado, jamais acreditaram que eu conquistaria

isso. Foi assim que minha mãe percebeu que era algo importante, me disse: “nossa, as pessoas

fazem uma cara de espanto quando você fala que passou no Mackenzie”.

Comecei a me graduar em psicologia! Fui entendendo os campos de atuação, tentando

desenvolver métodos melhores de estudo, criando o costume de ler livros, anotar na sala de

aula o que os professores diziam. No primeiro ano ainda não tinha pegado o jeito, passava

com a nota limite em algumas disciplinas e ia melhor em outras. Já começava a imaginar: vou

trabalhar no setor de Recursos Humanos de uma empresa... ou em um hospital! No terceiro

semestre, no entanto, as coisas mudaram. Alguns professores, meus mestres hoje, me

ensinaram que a forma de funcionar da sociedade é uma construção, não foi sempre assim.

Que os valores, as relações, os desejos, são produções sociais que respondem não ao interesse

de cada pessoa, mas de uma elite opressora, poderosa e excludente. Aprendi que o tomate

nem sempre foi parte da salada: era antes, por ser bonito e vermelho, usado como enfeite de

casa. Havia também alguma história que tinha a ver com queijo, que hoje não me lembro, mas

que foi a partir dela que aprendi conceitos marxistas básicos. Percebi que realmente havia

injustiça na vida humana e que era uma tarefa importante apontar, denunciar e lutar por

modos de vida mais justos, solidários e libertários.

O contato com essas reflexões deixou o mundo enorme para mim. Deu nome para muitas

vivências e angustias, minhas e de minha família. Deu-me tanta energia que entendi para quê

eu poderia estudar, passei a ler mais livros, revistas, a olhar mais para a cidade, passei a tirar

notas maiores em todas as disciplinas, passei a pensar mais. Não queria mais saber de empresa

e nem de hospital com ar condicionado, formulei que o único propósito de aprender era poder

usar isso para contribuir com o maior número de pessoas possível. Como psicólogo, queria

trabalhar em instituições públicas, que todos tivessem acesso, na ponta das políticas públicas,

principalmente naquelas que asseguram direitos e cidadanias.

Passei pela defensoria pública, trabalhei com jovens de periferia, com egressos do sistema

prisional que buscavam trabalho e, finalmente, vim parar no Sistema Único de Saúde (SUS).

No SUS comecei como aprimorando de um programa há anos oferecido pelo Centro de

Atenção Psicossocial (CAPS) Itapeva. Esse era um jeito diferente de aprender, oitenta por

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cento da carga horária era prática - integrava uma das miniequipes e participava de todas as

ações do serviço: grupos, atendimentos, visitas, assembleia, reuniões de equipe, ações

comunitária e de matriciamento, etc. A restante da carga era teórica, com grupos de estudo,

algumas aulas e, principalmente, a escrita de uma monografia. Era, portanto, outra maneira de

entrar em contato com as coisas, de ser provocado, de ter a atenção tomada para algo novo e

inquietante. O aprendizado, aqui, não era transmitido para mim: eu vivenciava alguma coisa e

só depois tinha a capacidade de compreender o que estava acontecendo. Sentia na pele o

material que viria a me ensinar algo. Naquela altura já havia aprendido a estudar, mas

descobri essa outra via de formação, a que acontece em ato, na própria relação e experiência

humana. Foi muito difícil, entretanto. Aprendi muita coisa a custo de cansaço, tristeza,

confusão e briga. Minhas questões já eram outras nesse momento, estava muito tomado pela

loucura, pelas políticas de exclusão, pelo sofrimento intenso, refletia muito sobre o Sistema

Único de Saúde, os serviços substitutivos da atenção hospitalar em saúde mental, as práticas

contraditórias. Me perguntava: como um serviço criado por um movimento tão intenso de luta

e transformação política pode ainda conter em suas entranhas lógicas preconceituosas,

manicomiais? Não fazia sentido. A ideia do cuidado em liberdade é tão clara, real, por que

tem gente que insiste em excluir, proibir, julgar? Tentava me desdobrar para fazer valer a

reforma psiquiátrica, para valer a vida livre. Não consegui responder nenhuma dessas

perguntas, mas pude pensar sobre elas, inclusive na companhia da monografia que precisava

escrever – lá narrei muitas das vivências que as provocavam e tentei iniciar a reflexão sobre

elas. O processo de escrita não me ajudou tanto a encontrar respostas, mas tornou muita coisa

clara, pensar sobre minhas experiências e organizá-las em forma de narrativa me serviu

pedagogicamente e também me deu acalanto.

Concluindo o aprimoramento, agora psicólogo aprimorado, com certa bagagem para levar,

continuei a pensar sobre as coisas. Acabaram tomando um caminho que me levou a pensar

sobre o que constitui o processo de formação. Como alguém começa a trabalhar de

determinado jeito? O que produz essa ou aquela prática? Para esse tipo de campo e de

trabalho, como é necessário se formar? Esse tipo de curiosidade e pensamento, mobilizado

pelas vivências que citei, é base desse trabalho.

Formação e vida

Nessas descobertas e aprendizados durante a faculdade conheci autores que depois foram

muito importantes para mim. Michel Foucault, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Rene Lourau.

Por bastante tempo estudei a Análise Institucional e, praticamente durante todo o período do

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aprimoramento estudei Guattari e o movimento de Psicoterapia Institucional. O interesse por

esse campo me fazia experimentar práticas de intervenção no CAPS, me levava a faculdades

que nunca tinha ido para acompanhar aulas de professores específicos, me fez conhecer gente

nova. Foi em uma dessas incursões que eu conheci a PUC, inclusive.

Já mais recentemente, conheci um texto de um cara que eu já conhecia: Jean Oury. Por

coincidência, esse texto era traduzido pelo Jairo Goldberg, um dos idealizadores e antigo

diretor do CAPS em que eu era aprimorando, decisivo inclusive na própria criação do

Programa de Aprimoramento e o no compromisso daquele serviço com formação de

trabalhadores. O texto, chamado “Itinerário de formação”, foi publicado em 1991 no primeiro

número da revista francesa, Revue Pratique. Os textos de Jean Oury, até então ainda não

publicados no Brasil, foram disseminados para os profissionais de saúde, em grande parte

pelo CAPS Itapeva, nestas traduções realizadas por membros da equipe que tinham uma

relação importante com o pensamento da psicoterapia institucional.

Ao pesquisar o termo “itinerário de formação” encontrei a noção inserida em um debate

realizado no campo da educação a respeito dos currículos escolares. Entende-se que o

currículo deve se organizar enquanto uma disposição de eixos temáticos que estejam

integrados com a contemporaneidade e a sociedade, tendo como perspectiva levar o aluno a

percorrer um determinado itinerário de formação, ou formativo (PENIN, 2001). Nessa

pesquisa a utilização da noção de itinerário de formação, no entanto, segue as reflexões feitas

por Oury no texto que mencionei, quando analisa as práticas no campo da psiquiatria a partir

de uma discussão sobre ensino e formação. Como um importante ator do movimento de

psicoterapia institucional e da luta por práticas libertárias em saúde mental, em contraponto ao

modelo biomédico e manicomial, o mobilizava questões como a formação de profissionais

psiquiatras e de enfermagem que, em suas práticas, seguiam reproduzindo uma determinada

forma de trabalho apesar da emergência de novas formas e perspectivas de cuidado –

questões, a mim, muito caras.

Diz que “a formação técnica, científica, no ensino universitário coloca em questão o campo

pedagógico. De uma maneira geral, o problema da formação está longe de ser resolvido; exige

tomada de posição, uma crítica permanente” (OURY, 1991, p. 42). Podemos tomar,

primeiramente, o anuncio de dois elementos: o campo da pedagogia, do ensinar; e outro, da

“tomada de posição”, do desenvolvimento de uma reflexão crítica. Nesta linha, ele segue: “a

psiquiatria é um lugar marcado por uma atomização das técnicas, dos estatutos, das

classificações. Certamente essa tomada de posição é pessoal, mas compartilhada por muitos”

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(p. 42). Sugiro, quando Oury fala sobre a Psiquiatria, ampliarmos nossa análise para o campo

da medicina em geral, da qual a psiquiatria é um braço e expressão. Dessa forma, é

característica desse campo – medicina, psiquiatria – uma prevalência da técnica, da

classificação e, nos chama a atenção Oury, agir assim, trabalhar dessa forma, é uma tomada

de posição – há aqui uma escolha política.

É feita uma separação: ensino e formação. O primeiro, como aponta Oury, está permeado por

uma visão pejorativa, como sendo algo que está afastado da prática de trabalho, da realidade.

Como se ouve por aí: “na teoria é lindo, agora, na prática...”. Formula que o ensino deve ser

um conjunto de técnicas que possibilite os sujeitos aprenderem a aprender; O segundo, a

formação, tem um caráter de processo, interminável, contínuo e constante. Implica uma

abertura e movimentos de mudança: de paradigmas, de práticas, de estruturas, de contexto

político, etc. Grosso modo, o ensino estaria restrito a uma experiência específica em que se

aprende a aprender algo, enquanto a formação é permeada de toda e qualquer vivência

humana, singular e coletiva, produzindo subjetividade.

Já que toquei no assunto, é pertinente separar algum espaço para se debruçar sobre a

perspectiva de produção de subjetividade, intimamente relacionada à ideia de formação que

está sendo discutida aqui. Félix Guattari, que teve importante expressão na mencionada

psicoterapia institucional ao lado de Oury - literalmente, já que compartilhavam o cotidiano

de trabalho na clínica La Borde - traz importante contribuição para a noção de subjetividade.

Em suas palavras, a subjetividade consiste no

conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas

estejam em posição de emergir como território existencial autorreferencial, em

adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva.

[...] Assim, em certos contextos sociais e semiológicos, a subjetividade se individua:

uma pessoa, tida como responsável por si mesma, se posiciona em meio a relações

de alteridade regidas por usos familiares, costumes locais, leis jurídicas [...]

(GUATTARI, 2012, p. 19).

A subjetividade, esse território existencial autorreferencial, é constantemente produzido por

instâncias individuais, coletivas e institucionais – sua forma é plural, polifônica e sempre

disputada por máquinas de subjetivação, por componentes que concorrem para a produção de

subjetividade, como: a) elementos fabricados pela indústria midiática, pelo cinema, pelas

propagandas; b) sentidos e significados que se transmitem e manifestam através da família, da

educação, da religião, da arte, do esporte, do meio ambiente, etc.; c) dimensões semiológicas

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assignificantes, que produzem e veiculam significações e denotações que escapam às

axiomáticas linguísticas e aos sentidos prontos; entre outros (GUATTARI, 2012). O encontro

de um sujeito com diferentes experiências, pessoas, sentidos e modos de vida podem ter a

qualidade de um importante componente de subjetivação.

Assim [com diferentes encontros] se operam transplantes de transferência que não

procedem a partir de dimensões “já existentes” da subjetividade, cristalizada em

complexos estruturais, mas que procedem de uma criação e que, por esse motivo,

seriam antes da alçada de um paradigma estético. Criam-se novas modalidades de

subjetivação do mesmo modo que um artista plástico cria novas formas a partir da

paleta de que dispõe. (GUATTARI, 2012, p. 17)

A produção de subjetividade e a formação são elementos imbricados na medida em que dizem

respeito ao processo de desenvolvimento de uma estética, um posicionamento, do sujeito em

relação a si e às relações e que este posicionamento está sempre em mudança e construção. Na

discussão sobre formação é colocado o enfoque na relação do sujeito com o trabalho, com seu

objeto de intervenção profissional que, será possível ver, não está dissociado das formas de

vida, compreensão e ação deste mesmo sujeito. Vejamos:

encaremos, portanto, a formação como coisa da ordem de uma “modificação”:

modificação de um certo nível da personalidade do sujeito que se engaja nesse

trabalho. [...] Não uma transformação, mas uma modificação no sentido de uma

sensibilização para alguma coisa específica. (OURY, 1991, p. 44)

O destaque do autor para a ideia de uma modificação, em contraponto a uma transformação,

pode significar que não se trata de uma ruptura, uma cisão entre o que era antes e o que passa

a ser, mas sim de um fluxo contínuo em que cabe certa pluralidade. Formação, modificação,

engajar-se e sensibilização para alguma coisa específica. Aos poucos é possível dizer tratar-se

de um processo de natureza clínico-ético-política. Seguimos:

Essa sensibilização não necessita da parte do sujeito que se engaja, uma

disponibilidade de saída, ou antes, uma disposição particular de sua própria

personalidade? Pois, se trata de um engajamento de toda uma vida para esse

trabalho. Não é uma coisa que se faz de maneira passageira. [...] Dito de outra

forma, seria importante poder precisar quais são as qualidades implícitas que estão

na “base” de uma escolha profissional. [...] A formação deve, com efeito, poder se

integrar ao desenvolvimento da personalidade (OURY, 1991, p. 44).

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Faz-se necessário pararmos aqui por um instante. Temos, até agora, que a formação é um

processo interminável em que modificações de diferentes naturezas – sociais, políticas,

discursivas – são constitutivas e que, no campo de trabalho, podemos pensá-la a partir de

eixos como o engajamento e a sensibilização, que são posturas de um sujeito em relação

àquilo na qual ele está implicado – seu objeto de intervenção, seu contexto institucional, seus

operadores lógicos. Lembremos que o interesse de Oury, e que também guia essa pesquisa, é

entender a partir da formação, como se expressam as práticas de trabalho – em nosso recorte,

no campo da saúde pública.

No que tange ao engajamento, assume-se que qualquer prática é implicada, isto é,

corresponde em algum grau a uma instituição, uma visão de mundo, um discurso, uma

determinada escola, um paradigma. No campo da saúde, por exemplo, o estabelecimento de

um diagnóstico, as condutas de intervenção, a postura do médico frente ao seu paciente,

partem de determinados pressupostos clinico-ético-políticos. Pode-se considerar a dimensão

clínica aquela que está ligada ao aprendizado e exercício da escuta, da consulta, da relação de

atenção e cuidado àquele que busca o serviço e profissional de saúde, recheado de bases

teóricas, técnicas e éticas. Essa última, também uma dimensão a ser considerada, pode ser

associada à relação consigo e com os outros, à abertura ou fechamento ao encontro com o

mundo, a certa sensibilização que não se ensina. A dimensão política, por sua vez, está

relacionada com o campo da análise e reflexão crítica, da tomada de posição atenta às

implicações do sujeito. Essas três dimensões andam juntas - não à toa a escolha de uni-las

com o hífen - no processo de formação e de vida das pessoas, sendo essa separação feita aqui

apenas como um recurso de apresentação.

Uma importante diferenciação para prosseguirmos na ideia de sensibilização é apresentada

por Oury, entre a performance e a competência: a primeira diz respeito ao desempenho em

uma tarefa, como por exemplo um exame, uma prova, o vestibular; a segunda está relacionada

com elementos que marcam a vida de um sujeito, suas paixões, preferências, interesses.

Seguindo esse caminho, formula-se: em determinado campo, como a saúde mental, a saúde

pública, quais são as competências que se fazem necessárias? Na relação com o outro, por

exemplo, com o paciente, com o usuário de determinado serviço, são apresentados problemas

que nem sempre são claros inicialmente, trata-se de fenômenos complexos, mascarados.

E para ter acesso a esse fenômeno é necessário ser capaz de aceder a um certo lugar,

uma certa “paisagem”, ser sensível ao pequeno detalhe, mesmo escondido, mesmo

insólito, ser sensível à emergência. É justamente o que quase sempre está mascarado

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por completo pelos ensinos demasiadamente abstratos e estereotipados: o que, afinal

de contas, não “se ensina”, no sentido habitual do termo. (OURY, 1991, p. 45)

Para tanto, Oury reflete que são necessários para o trabalho neste campo operadores lógicos e

conceituais que permitam extrair do cotidiano e das relações coisas essenciais que não

aparecem, estar atento ativamente, por exemplo, à multidimensionalidade dos fenômenos e da

vida humana. Em sua análise, tais operadores, assim como algumas competências – a

capacidade de se concentrar, de prestar atenção – contribuem para a mencionada

sensibilização.

Há momentos que é necessário poder balizar, momentos de emergência de signos,

de mensagens gestuais, de mensagens erráticas. Mas a tradução que podemos fazer

disso exige uma disposição particular que se adquire pelo exercício de uma “tekné”,

espécie de atenção trabalhada que a torna sensível à qualidade do contexto, à

polifonia dos discursos, às manifestações paradoxais de um sentido iluminado. Aí

está um dos objetivos fundamentais a que uma formação bem conduzida poderia se

propor (OURY, 1991, p. 46).

Como exemplo, apresenta a cena de um aprendiz que vai, pela primeira vez, ouvir as batidas

de um coração: nada se ouve além de ruídos confusos. É com a orientação do professor, para

se buscar nesses ruídos um “tum-tá”, que esses ruídos tomam forma e passam a ser entendidos

de outras maneiras – batida do coração, ruídos, sopros, ritmo. Nessa situação, o “tum-tá”

cumpre a função de uma ferramenta conceitual, guia a escuta do aprendiz e o mune com uma

técnica, uma sensibilidade. Nem sempre, é possível dizer, as instituições de ensino serão

capazes de produzir esse tipo de aprendizado, principalmente quando seu método é distante e

estereotipado, direcionado à performances puramente técnicas e mecânicas.

Por fim, tal discussão feita por Oury nos chama à atenção para uma dimensão da formação

que não se dissocia da história de vida, do contexto político e da personalidade das pessoas.

Que as práticas no campo da saúde são composições entre, sim, todo o repertório técnico,

conceitual e profissional, com as vivências, encontros e reflexões de cada um. Analisar

práticas em um campo de trabalho é refletir sobre quem são aqueles trabalhadores, de onde

vieram e para onde pretendem ir, quais suas ambições e paixões, seus engajamentos.

Essa reflexão de Jean Oury produziu a seguinte questão:

Quais são as qualidades implícitas que estão na base de certa “escolha” profissional?

[...] Quais são, por tanto, os eventos – não os eventos em si – mas aqueles que

marcam a personalidade, que influíram em tal orientação? [...] Seria interessante

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estudar, para cada um, qual é o itinerário que o levou a trabalhar no campo

psiquiátrico. (OURY, 1991, p. 44)

O contato com os conceitos, reflexões e perguntas discutidas neste texto de Oury me capturou

por ser a primeira vez em que ouvi falar de formação e vida. Mostrou para mim que

aprendíamos coisas na vida estudando e vivendo. Reparei que estudar não é só ler livro: é ler

livros, andar com turma nova, ir para aulas diferentes. Além disso, as coisas que vamos

vivendo, que constituem a nossa história, os caminhos que vamos tomando, vão despertando

na gente algumas paixões, inclinações, tendências, “encaminhamentos” como diz Oury.

Vamos, pouco a pouco, sendo encaminhados a determinados campos de ação, trabalho e

intervenção. Não é à toa! Esses caminhos vão marcando em nós algumas características, ou as

desenvolvendo, vamos adquirindo certas competências que, dependendo do lugar em que

estamos, caem como uma luva. São elementos que não tem tanto a ver com a técnica, com

uma base teórica, mas que confluem de uma maneira que sua síntese seria, no meu ponto de

vista, a prática.

Depois do aprimoramento fui contratado para trabalhar ainda na região central de São Paulo,

mas dessa vez na atenção básica, numa Unidade Básica de Saúde (UBS). Começar o trabalho

não foi muito difícil, eu conhecia bem o que era importante no SUS e estava bastante seguro

para assumir a responsabilidade – apesar dos diversos estágios e serviços, esse era

oficialmente o primeiro emprego! Conheci o SUS em outra dimensão: trabalhar na atenção

básica me ajudou a ver quase que o esqueleto do Sistema, sua essência. Agentes comunitários

indo às casas, uma unidade de saúde do lado das pessoas, com profissionais que faziam de

tudo. Saindo um pouco da discussão práticas manicomiais x reforma psiquiátrica, vi na

atenção básica a efetivação de um sistema de saúde – tudo bem, havia práticas e concepções

de trabalhadores que iam à contramão dos princípios do SUS, mas isso sempre me serviu de

aprendizado também. Conheci gente boa e não tão boa, parecia que alguns trabalhadores

nasceram para aquilo, já outros pareciam deslocados. Em relação a estes últimos, pensávamos

– meus colegas mais próximos e eu: será que é porque não conhecem bem o trabalho? Será

que vale a pena resgatar o que é o SUS? Fizemos isso, mas parecia que o problema de alguns

não era o fato de não saber onde estavam, mas era de não gostar de onde estavam. Aí não

tinha jeito, não sintonizava.

Era nesse mesmo momento em que, além do trabalho, eu também estava começando com o

mestrado e começando a reparar mais no assunto formação e Sistema Único de Saúde. Estava

em pleno processo de formação, pensando sobre formação a partir do lugar em que eu estava.

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Minha vida, meu trabalho, meus estudos, minha história, tudo misturado. Disso tudo, aos

poucos, foi saindo essa pesquisa.

Essa pesquisa

Na UBS em que eu trabalhava a gerente uma vez me puxou e falou sobre uma atividade que

faziam lá, o Pró-Saúde, em que vinham estudantes de uma faculdade de medicina para

conhecer o serviço, além de acompanhar algumas das atividades. Disse para ela que gostaria

de participar e pronto, passei a fazer parte dessa experiência. Além de ser uma vivência legal,

era pertinente ao que eu estava estudando no mestrado. Agora, para pensar formação e

Sistema Único de Saúde, eu tenho um campo bastante rico: uma experiência de integração

entre ensino e serviço que tem como característica justamente a aproximação de futuros

profissionais de saúde ao campo de trabalho no SUS para que possam aprender com a própria

vivência de elementos desse cotidiano e prática. O fato é que essa UBS, já há alguns anos,

abriga uma parceria com esta faculdade de medicina em que, a cada ano, um grupo de

estudantes de medicina vem à UBS para participar por um período específico do cotidiano de

trabalho nesse serviço. Por conta desse convênio, organizado justamente com vias à formação

em saúde e a participação da universidade na atenção básica, diversas ações e vivências de

alunos de graduação e professores são realizadas tendo como campo de trabalho de ações e

intervenções o território de Mamoré1, o que possibilita uma importante troca e construção

mútua. Essa parceira se constituiu a partir do programa Pró-Saúde - e assim ainda é chamado

por lá - que tem como foco principal produzir mudanças que visem a proximidade de

estudantes da graduação às práticas e equipes de saúde.

A relação entre instituição de ensino e serviços de saúde, contando com diversos e diferentes

atores e posições é rica em troca de experiências e constitui um frutífero campo de pesquisa.

Tem-se que

Estudantes, professores, profissionais de saúde e usuários podem ser sujeitos

protagonistas da produção de novos modos de aprender, cuidar e produzir

conhecimento. Como nos serviços de saúde essa possibilidade se fabrica por meio

da instalação de múltiplos processos coletivos de reflexão crítica sobre as práticas,

da produção de desconforto e desassossego, da produção de acontecimentos – em

diferentes territórios, de diferentes modos, a partir de diferentes referências. É a

partir dos diferentes processos concretos de vivência que se fabricam novos

problemas e se produzem novos conhecimentos e relações (FEUERWERKER,

2014, p. 129-130).

1 Trata-se de um nome fictício.

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O Pró-Saúde é uma das duas principais ações programáticas em favor da mudança na

graduação de profissionais da saúde que podem vir a atuar no Sistema Único de Saúde – o

outro é chamado de Programa de Educação pelo Trabalho em saúde (PET-saúde), e apoia

estudantes e profissionais da saúde que se envolvam em projetos específicos de promoção à

saúde, educação em saúde, vigilância sanitária, saúde mental, redes de atenção à saúde e

saúde da família (FEUERWERKER, 2014).

Acompanhar de perto, enquanto trabalhador-pesquisador, essa experiência de recepção dos

alunos de medicina na UBS me ajudou a refletir sobre o processo de formação no Sistema

Único de Saúde enquanto campo de produção de subjetividade de discentes, docentes e

trabalhadores da saúde – esse é o meu principal objetivo com essa pesquisa. Além disso, me

deu condições para contextualizar os modos pelos quais se constroem experiências de

formação no Sistema Único de Saúde, contando com um exemplo próximo que é Pró-Saúde

Mamoré. Por fim, pude trabalhar também, a partir do método de narrativa de história de vida,

o itinerário de formação de profissionais envolvidos nessa atividade.

A pesquisa foi desenhada com duas direções:

1) Uma dá foco para minha imersão na vivência desta experiência e o registro, em forma de

diário de campo, que servirá de material para analisarmos quais foram os caminhos traçados e

trilhados a partir dela, que tipo de encontros e reflexões pôde suscitar, quais os principais

dispositivos que a movimentam, de que maneira essa experiência dialoga com as perspectivas

e diretrizes de formação no Sistema Único de Saúde.

2) Outra é uma aproximação dos profissionais que atuam como principais articuladores dessa

atividade de integração ensino-serviço: o médico que recebe os alunos da faculdade atuando

como um preceptor e o professor que traz seus alunos e os acompanha neste processo como a

figura de um tutor. Com eles foi realizada uma entrevista que partiu da questão disparadora

“quais experiências da sua vida você considera que são a base de sua formação?” e foi sendo

orientada conforme as histórias que eram contadas. O conteúdo trazido pelos entrevistados –

suas próprias vivências e reflexões – foi tratado como subsídio para identificar e analisar

estações de seus itinerários de formação, isto é, marcas de subjetivação, pontos de

modificação. A proposta é discutir esses elementos e refletir sobre sua conexão com o campo

das políticas nacionais de saúde e das práticas de cuidado do Sistema Único de Saúde a partir

da tríade clínica-ética-política. Tanto o diário de campo quanto as entrevistas são apresentadas

nesta pesquisa enquanto narrativas.

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A partir dessa apresentação - minha, de algumas bases teóricas e da pesquisa – a dissertação

seguirá assim: no primeiro capítulo apresento elementos que permearam a construção do

Sistema Único de Saúde no Brasil e o desafio de uma vez constituído enquanto política

nacional fazer-se efetivado nas práticas dos gestores, profissionais e usuários. Em seguida

faço a discussão sobre formação a partir de concepções que norteiam teoricamente essa

pesquisa e trazendo as políticas e diretrizes de formação preconizadas pelo SUS; no segundo

capítulo apresento a experiência de integração entre ensino e serviço que acompanhei e a

analiso a partir de quatro principais dispositivos – o diário de campo, a discussão de casos, a

roda de conversa e a visita domiciliar; no terceiro capítulo conheceremos um tanto do

itinerário de formação de dois atores fundamentais para a concretização dessa experiência e

refletiremos sobre as vivências que consideram base para sua formação ético-política.

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1. A DIMENSÃO FORMATIVA COMO UM VETOR DE CONSTRUÇÃO DO SUS

1.1. Pela redemocratização do Brasil e da Saúde

Na década de 1960, sob as geadas da Guerra Fria, entre as faíscas geladas da disputa entre o

sistema capitalista e a perspectiva socialista, a América Latina e, nela, o Brasil, vivenciava a

reprodução deste conflito e presenciava a emergência de diferentes movimentos socialistas.

Assombrado por este fantasma o poder militar toma para seu comando o Brasil, com apoio

ideológico dos Estados Unidos da América, inaugurando o Golpe de 1964. Interrompem o

regime democrático brasileiro com a promessa de, em um curto período, restaurar a ordem,

fortalecer a economia e, então, restaurar a democracia no país – tudo isso regado a um intenso

processo de desarticulação da participação social e da guerra às ideias socialistas.

Nessa época, a saúde era dividida em duas: 1) medicina previdenciária e 2) saúde pública. A

primeira se caracterizava por “ações dirigidas à saúde individual dos trabalhadores formais e

voltava-se, prioritariamente, para as zonas urbanas, estando a cargo dos institutos de pensão2”

(PAIVA & TEIXEIRA, 2014, p. 17). A segunda era vinculada ao Ministério da Saúde e tinha

como foco as zonas rurais e os setores mais pobres da população, suas ações tinham caráter,

principalmente, preventivo. Como perspectiva política para a área da saúde no Brasil, os

governos militares miravam o incentivo à expansão do setor privado:

Com esse objetivo, ampliaram a compra de serviços pela previdência e facultaram

incentivos fiscais às empresas, para a contratação de companhias privadas ou

cooperativas médicas que prestassem serviços de saúde aos seus funcionários – são

os convênios empresa. Os definidores dessas políticas objetivavam também a

privatização de parte dos serviços médicos estatais, então considerados inadequados

por não serem lucrativos (PAIVA & TEIXEIRA, 2014, p. 16-17).

Assistência médica garantida aos trabalhadores e atrelada às empresas contratantes que, por

sua vez, teriam recompensas do governo, como abatimento de impostos. Pode-se dizer que

assim se iniciam os primeiros convênios médicos e se fortalece um modelo privado e liberal

de atenção à saúde: atento ao corpo que trabalha. Atrelado ao contrato de trabalho formal, tal

garantia de acompanhamento médico ganha o estatuto de seguro, benefício, e não direito –

2 Institutos vinculados ao Ministério do Trabalho se debruçavam sobre questões de trabalho e aposentadoria, por

exemplo.

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“neste sentido, reveste-se do caráter meritocrático vinculado à inserção no mercado de

trabalho [...]” (MENICUCCI, 2014, p. 79).

Havia, no entanto, pequenos movimentos de ampliação da saúde previdenciária para camadas

populares mais pobres, como exemplo o acesso por trabalhadores rurais e as pessoas que

trabalhavam como domesticas.

Em determinado momento, cria-se o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) que se

destaca pela uniformização dos benefícios de seus contribuintes, pela eliminação do modelo

de gestão tripartite (união, empregadores e trabalhador) que garantia o mínimo de uma

representação de setores nos processos decisórios dos institutos e pelo movimento de

terceirização dos serviços. No campo da Saúde Pública, havia intensa crise de recursos,

enfraquecimento da capacidade de ação política do Ministério da Saúde e importante

diminuição de verba. Mesmo com algum desenvolvimento na economia do país, o Ministério

da Saúde não era uma escolha de investimento (PAIVA & TEIXEIRA, 2014).

A divisão entre estes dois eixos de atenção à saúde da população se firma a partir da

construção, em 1975, do Sistema Nacional de Saúde, sancionado como lei 6.229.

Além disso, a mesma lei daria base legal a uma questão central na gestão do SUS,

que permanece até os nossos dias: a separação entre sistemas formadores de recursos

humanos e necessidades do sistema de saúde. Isso porque, com a nova legislação,

caberia ao Ministério da Educação e Cultura as políticas de formação e habilitação

de profissionais de nível superior, técnico e auxiliar para o sistema de saúde, a

manutenção dos hospitais universitários e de ensino, bem como a produção de

diretrizes para a formação pessoal de saúde (PAIVA & TEIXEIRA, 2014, p. 20).

Aqui, portanto, vê-se que o grupo responsável por pensar o processo de formação dos

trabalhadores que comporiam este sistema estava descolado das práticas de saúde e do

cotidiano de trabalho para a qual tinha o intento de formar. Separava-se assim o processo de

formulação de experiências formativas e as necessidades epidemiológicas e de cuidado à

população.

No mesmo período, em uma escala ocidental, em virtude de crises econômicas e demais

conturbações políticas – enfraquecimento do Estado no que diz respeito à promoção do

desenvolvimento social e da garantia de direito -, a saúde estava em pauta nas diversas

organizações e movimentos de saúde e avaliava-se que havia baixa rede assistencial para

populações mais pobres que, por isso, padeciam em larga escala de verminoses e outras de

veiculação hídrica. A partir disso, surge no campo da saúde o debate pelo fortalecimento de

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avaliações e intervenções de cunho epidemiológico e sanitarista, além da defesa da ampliação

de cobertura da assistência. Tal frente de discussão trouxe junto a reflexão sobre as práticas de

saúde tradicionais e estritamente orientadas pela doença, produziu-se dali importantes críticas

a um modelo biomédico de pensar a saúde e a “cura” da população – “esse ambiente de

críticas, do qual o movimento sanitário brasileiro seria expressão viva, corresponderia, por

outro lado, à crescente popularidade das abordagens ditas integrais e das experiências de

medicina simplificada empreendidas em países em desenvolvimento” (PAIVA & TEIXEIRA,

2014, p. 19).

Por volta do final da década de 1970 ocorrem, no Brasil, ampliação das tensões sociais e o

surgimento de diversas formas de mobilização popular por transformações políticas e nas

condições sociais. Neste sentido, uma nova geração política que estava em formação tinha

como campo principal de interesse e reflexão política a saúde. Entende-se que o

fortalecimento do Movimento Sanitário Brasileiro se deu na segunda metade desta década.

Alguns eixos são considerados importantes, na literatura sobre o tema, para a história e

efetivação da Reforma Sanitária:

1) a criação de instituições como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) que,

como uma das frentes de ação, organizava o periódico “Saúde em Debate”, palco de reflexões

acerca das formas de cuidado em saúde pública; a constituição da Associação Brasileira de

Pós-graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO) que intuía reunir os programas de pós-

graduação em saúde pública, medicina social e saúde coletiva, organizava diversos simpósios

e eventos em que se pautavam os pontos e reivindicações do movimento sanitário e,

posteriormente, da própria Reforma, conforme indica Paiva e Teixeira:

O documento aprovado no primeiro Simpósio de Política Nacional de Saúde

estabelecia princípios centrais que seriam adotados pela reforma sanitária, como o

direito universal à saúde; o caráter intersetorial dos determinantes de saúde; o papel

regulador do Estado em relação ao mercado de saúde; a descentralização,

regionalização e hierarquização do sistema; a participação popular; o controle

democrático e, fundamentalmente, a necessidade de integração entre Medicina

Previdenciária e Saúde Pública (2014, p. 22).

Tais instituições, além do importante papel de articulação entre pessoas que tinham como

interesse as discussões sobre novos modos de cuidado em saúde e novos arranjos de um

sistema de saúde democrático, universal e participativo, contribuíram significativamente para

a construção da identidade da saúde coletiva brasileira (PAIVA & TEIXEIRA, 2014).

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2) O processo de desenvolvimento, desde os anos 1950, dos cursos de medicina preventiva,

muitas vezes acompanhado com leituras críticas sobre a ciência tradicional e os processos de

saúde e doença do ponto de vista exclusivamente médico-biológico-individualista.

3) A falta de disponibilidade de profissionais médicos para contratação imediata para serviços

estatais fez com que uma leva de novos trabalhadores fossem chamados para exercer o

trabalho nesses espaços diretamente ligados ao governo. Esses “profissionais de fora” traziam

perspectivas e pontos de vista progressistas e, de dentro das agencias estatais, introduziam

mudanças no Sistema Nacional de Saúde. Por exemplo, a criação do Programa de

Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) que teve como foco a expansão da

rede de atenção primária à saúde em municípios do interior. Visava: ampliar alcance da

cobertura dos serviços médicos priorizando áreas rurais; e introduzir as perspectivas de

regionalização da atenção (PAIVA & TEIXEIRA, 2014). Iniciativas como essa, que

contribuía para o maior acesso da população ao sistema de saúde, estavam em consonância

com as diretrizes da Organização Mundial de Saúde que preconizava saúde para todos.

Além disso, e para isso, também surgiam ideias e necessidades que incidiam na formação dos

profissionais de saúde:

O Programa de Preparação de Pessoal da Saúde, o PREPS, foi uma resposta a essa

demanda, ao apoiar a formação descentralizada, nos estados federativos, de recursos

humanos em saúde, em diferentes níveis. Bem como apoiar a criação de estruturas

de gestão de recursos humanos no interior das secretarias estaduais de saúde,

sobretudo no nordeste do país (PAIVA & TEIXEIRA, 2014, p.21).

Aqui vemos uma primeira discussão sobre formação como algo que é formulada e

desenvolvida próximo à realidade do serviço de saúde e da região de intervenção.

4) Movimentos Sociais, tais como o Movimento Popular pela Saúde, que surge com apoio

entre a igreja católica e a militância de esquerda, tendo como uma das bandeiras a melhoria

das condições de saúde dos bairros pobres e periféricos das grande cidades. Esses

movimentos, a partir de determinado momento, passam a defender o controle social dos

serviços de saúde, a melhoria da medicina previdenciária e o desenvolvimento de ações

preventivas.

Todos estes eixos e cenários contribuíram para, cada um a sua maneira, aquecer os debates

sobre a Reforma Sanitária dentro do movimento sanitário brasileiro.

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Com o fim do governo militar, na década de 80, pactua-se no Brasil a criação de uma nova

constituição federal que marcasse a abertura democrática e que incidiria sobre os caminhos

que a saúde pública, enquanto dever do Estado, deveria seguir. Foi, também, convocada pela

presidência a oitava conferência nacional de saúde com o intuito de estabelecer diretrizes e

encaminhamentos para a organização de um novo e único sistema de saúde. A constituição

federal é criada em 1988 referindo a saúde como um direito de todos e dever do Estado e, em

1990, é aprovada a Lei Orgânica da Saúde e o Sistema Único da Saúde, baseado em três

doutrinas: universalidade, que garante a atenção ao cuidado em saúde a todo e qualquer

cidadão por qualquer serviço de saúde da qual necessitar; equidade, que assegura às pessoas

serviços e práticas em saúde que atendam as singularidades e complexidades de cada situação;

e integralidade, que parte da leitura de que o sujeito é um ser integral, bio-psico-social, e que

deve ser atendido e compreendido em seu todo.

Além das doutrinas base, o Sistema Único de Saúde terá como perspectiva também alguns

princípios organizacionais importantes: a regionalização e hierarquização que, motivada pela

garantia do acesso da população a todos os tipos de modo de assistência e tecnologias,

estabelecem que os serviços devam ser organizados em um nível de complexidade

tecnológica crescente, dispostos numa área geográfica delimitada e com a definição da

população a ser atendida; a resolubilidade, que se preocupará com a capacidade dos serviços

em resolver problemas em saúde, individuais ou coletivos; descentralização, “entendida como

uma redistribuição das responsabilidades quanto às ações e serviços de saúde entre os vários

níveis de governo (municipal, estadual e federal), a partir da ideia de que quanto mais perto

do fato a decisão for tomada, mais chance haverá de acerto” (Ministério da Saúde, 1990, p. 5);

participação dos cidadãos, que afirma como garantia constitucional a participação da

população, por sistema de representatividade, do processo de formulação das políticas

públicas de saúde e do controle de sua execução através, principalmente das Conferências e

Conselhos de Saúde; e complementariedade do setor privado, que possibilita a contratação de

serviços privados diante de condições estabelecidas por lei caso haja a necessidade

(Ministério da Saúde, 1990).

Nota-se, portanto, que o novo Sistema Único de Saúde brasileiro tem como pontos

conceituais e organizacionais fundantes diversos elementos que por anos foram trabalhados e

discutidos no seio do movimento sanitarista.

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1.2. Transformação das práticas de cuidado: efetivação do Sistema Único de Saúde

A transição de um sistema de saúde fragmentado, com baixa cobertura nacional, que tinha

como perspectiva principal de cuidado a atenção médica tradicional e hospitalar, para um

sistema de saúde unificado, com compromisso de amplo acesso da população e com múltiplas

frentes de intervenção visando oferecer um cuidado integral e de acordo com a realidade

regional, até hoje esbarra em obstáculos operacionais e conceituais.

A criação dos serviços e frentes de ação que o SUS preconizava se viu dificultado por alguns

motivos, das quais 1) a intensa crise econômica que o país vivia no período de sua instituição

e pelo choque com interesses econômicos de setores organizados que não se beneficiariam

com a efetivação de um sistema de saúde pública; 2) o contínuo desafio de permanecer

construindo o Sistema Único de Saúde com o bonde já em movimento, no que tange à

manutenção das ideias base e da formação de trabalhadores e trabalhadores que possam atuar

em consonância com as perspectivas do SUS no que diz respeito à prática política e a

ampliação da noção de saúde e doença, afastando-se dos modelos tradicionais e biologicistas

que concebem o sujeito e a saúde de um outro jeito.

Concentrados no segundo problema, recorreremos à análise institucional francesa para pensar

a relação entre instituições/lógicas e práticas:

Podemos compreender a sociedade enquanto um tecido de instituições (BAREMBLITT,

2012). Entendendo as instituições como composições lógicas – normas, hábitos, formas de

construir relação e pensamento, valores (LAPASSADE, 1977) – que tendem à regulação da

vida humana, temos que a sociedade é marcada por um rol de lógicas que convergem,

divergem, ou que apenas coexistem. Podemos também dizer de lógicas que se fundam umas

nas outras, que se aliam, que se atravessam. A vida e a relação humana, dessa forma, em

sociedade, se veem geridas – e disputadas – por essa variedade de instituições e com elas os

sujeitos podem manter diferentes posturas: de usuário, de mantenedor, de tensionador

(LOURAU, 1977). Tais lógicas produzirão e serão produzidas a partir de maneiras de agir, de

se comportar, de se vestir, de gesticular, de pensar, de trabalhar. Regulam, dessa forma, a

atividade humana como um todo.

No trabalho – importante campo de relação entre os sujeitos – as instituições também ditam e

organizam as ações: a valoração sobre o tipo de serviço exercido; a legitimação do regime de

trabalho – empregado, autônomo, trabalho informal; o sistema de remuneração; a obediência

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suposta perante o patrão e os superiores; como se deve estruturar e controlar o cotidiano do

trabalhador e outros aspectos regulam a maneira de se formar para o trabalho e os modos de

exercício da prática profissional. Nos diversos campos, nas diferentes profissões e trabalhos, é

inteligível a noção de que há uma rica diversidade no exercício profissional: diferentes

maneiras de um administrador, um médico, um assistente, um professor, um psicólogo, um

vendedor etc., trabalhar. Tal maneira singular de exercer a prática profissional se deve ao

entrecruzamento de diferentes experiências, vivências, relações, lógicas. Há, no entanto, no

campo de formação e capacitação, tal como no próprio campo de trabalho, a hegemonia de

algumas instituições em detrimento de outras, o que nos permite dizer de um modelo

“principal” de atuação, uma representação social prevalente de uma categoria profissional,

uma homogeneidade de práticas. Se falarmos de diferentes níveis de composição das

instituições na sociedade, tendo como este primeiro nível a própria instituição, por si só

abstrata, e percorrendo o caminho que passa pelas organizações, estabelecimentos e agentes,

chegaremos às práticas, principal materialização das instituições no cotidiano e nas relações

humanas (BAREMBLITT, 2012). Na disputa discursiva pelo campo, portanto, as instituições

que detém mais poder e legitimidade ditarão, em maior escala, como determinada prática será.

Se olharmos para o campo da saúde pública brasileira, por exemplo, veremos um histórico

embate entre modelos de saúde: a predominância do modelo biomédico que vai sendo

questionada e combatida por diferentes composições lógicas e estatutos (L’ABBATE, 2003).

Apesar, no entanto, de muito ter sido produzido em termos de políticas, ações e discussões

que caminhem para a ampliação do entendimento dos processos de adoecimento e das

construções de novos significados de cuidado em saúde, muito frequentemente se encontram,

ainda, práticas reducionistas e focadas na doença. Antes da constituição do Sistema Único de

Saúde o modelo de assistência médica que a população tinha disponível se caracterizava por

uma atenção principalmente médica, ambulatorial e hospitalar, que girava em torno da

concepção de que se deveria curar a doença ou resolver o problema que aquela pessoa

apresentava ao seu médico ou à sua médica. Ainda se fortalecia, no eixo da saúde pública,

análises epidemiológicas e sanitaristas, que levavam um pouco mais em conta a dimensão

territorial, social, relacional dos processos de saúde e doença. O movimento de Reforma

Sanitária no Brasil e a fundação do SUS institui no campo da saúde pública uma lógica

diferente da antes praticada. Agora a saúde é entendida não como ausência de doença, mas

como um processo na vida que engloba as relações daquele sujeito com outras pessoas, com

seu bairro, seu trabalho, com si mesmo e seus hábitos, com sua história. Para trabalhar com

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esse complexo processo, o consultório já não é mais o bastante. Amplia-se o alcance dos

trabalhadores da saúde colocando-os no território dessas pessoas, conhecendo suas

necessidades bem de perto, visitando suas casas, estando diariamente próximos de sua

moradia. Não basta mais esperar que venham os procurar se não estiverem se sentindo bem:

vão ser produzidas ações coletivas no bairro, de prevenção e promoção de saúde, de

sensibilização e divulgação. O médico não estará mais só, comporá com uma equipe de

diferentes profissões e olhares, e também não será o centro de decisão das práticas de cuidado

em saúde.

Como apresenta Feuerwerker, existe um SUS:

Produzido pelas forças da reforma sanitária, público, universal, perseguindo – como

pode e como concebe – a integralidade da atenção e novos modos de produzir saúde.

Existe um SUS produzido pelas forças das indústrias produtoras de equipamentos e

medicamentos, marcado pela produção ativa do modelo médico hegemônico, pela

incorporação de tecnologias a partir da lógica do mercado. [...] Existe um SUS

produzido pelo Ministério da Saúde, pelas Secretarias Estaduais, pelas Secretarias

Municipais. [...] (2014, p.122-123).

É diferente, também, o SUS de uma cidade pequena de interior, o SUS de uma cidade enorme

como São Paulo, o SUS de um público que não acessa o serviço público e o SUS de uma

população que dele depende integralmente para o cuidado em saúde, etc. São muitos os

fatores que produzem um Sistema Único de Saúde e, da mesma forma, podemos pensar que

são muitas as disputas pelas formas de criação de práticas e trabalhadores de saúde.

As escolas médicas/de enfermagem/odontologia/fisioterapia/etc. são instituições

complexas, fabricadas a partir de muitos planos, articulam uma multiplicidade de

sujeitos, processos e disputas. Lógicas e interesses e dinâmica de conformação das

corporações atuam fortemente na disputa pelos processos de subjetivação de

professores e estudantes. Interferem, por exemplo, no ideal de prática, lugar da

medicina/enfermagem/odontologia/fisioterapia/etc., na produção de saúde, relação

com as demais profissões, modos de produzir sucesso, relação com o complexo

médico-industrial, entre outros (FEUERWERKER, 2014, p. 120-121).

Por vezes é até clara essa disputa de diferentes lógicas e lugares dentro de um curso de

graduação. Na psicologia, por exemplo, há uma primeira cisão básica: a psicologia das

intervenções clínicas e a psicologia social, cada uma com outras diferentes direções dentro de

si. Vêm juntas com uma série de outras construções que ditam sobre o lugar em que vai

trabalhar, a roupa que vai vestir, se o paciente vai sentar na poltrona ou em um divã, etc. Me

lembro, por exemplo, que no momento em que estava na graduação houve uma eleição para a

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manutenção ou mudança do corpo diretivo do curso de Psicologia e do Centro de Ciências

Biológicas e da Saúde em que as opções eram, para nós alunos, uma concepção de psicologia

clínica biologicista que valorizava os testes psicológicos como principal ferramenta de

trabalho e que tinha como foco de trabalho os distúrbios de desenvolvimento e uma outra

concepção, que entendia os sujeitos em relação com a sociedade e apostava na análise e nas

intervenções em instituições e coletivos3. E além do que tange às profissões de saúde, as

universidades e faculdades são também um lugar de produção da “Ciência Oficial”, meio de

fabricação de verdades, de produção de saberes e desconsideração de outros.

Além de todas essas lógicas instituídas operarem ativamente para a produção de

subjetividades conectadas a elas, para que se tornem a verdade natural das pessoas, ainda é

possível pensar em outros elementos determinantes como a religião, a história de vida, os

conceitos de mundo que cada um foi produzindo no encontro com todas as coisas.

São esses sujeitos, trabalhadores da saúde, a partir dessas múltiplas composições, que passam

a participar diretamente da produção do Sistema Único de Saúde enquanto agentes

responsáveis pela sua efetivação e pela produção de modos de cuidar. De certa forma há uma

presença maior de profissionais médicos espalhados por este Sistema, isso porque há um

privilégio por esses profissionais na composição das equipes mínimas de cada serviço de

saúde, como nos explica Feuerwerker:

As outras profissões da saúde têm um espaço muito menor no SUS, principalmente

nas cidades de pequeno porte, especialmente por ter sido adotada a política de

“equipe mínima” para estruturar a atenção básica. Os Núcleos de Apoio à Saúde da

Família, os serviços de atenção domiciliar e outros tipos de arranjo matricial que

ampliam a presença das outras profissões de saúde ainda são incipientes (2014, p.

123).

Cabe pensar nessa categoria profissional como uma das principais participantes desses planos

de configuração do SUS. O médico ou a médica, via de regra, irá trabalhar no Sistema Único

de Saúde ou no setor privado, a maioria manterá um duplo vínculo público-privado. Há, na

carreira médica, uma marcada estratificação técnica e social: existem especializações mais

valorizadas que outras e que trazem um retorno financeiro maior, a formação em residências é

um meio forte de diferenciação para o mercado de trabalho. Existem diversas escolas

médicas, principalmente na região Sudeste do país, entre públicas e particulares, que com as

3 A última ganhou.

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mesmas disputas e processos de subjetivação irão habilitar trabalhadores da saúde para

comporem o Sistema Único de Saúde (FEUERWERKER, 2014).

É para aquecer esse campo de embate que passa a se tornar uma importante frente de

intervenção do SUS a incidência sobre a formação de profissionais da saúde que um dia o

terão como campo de trabalho. Atuar sobre a própria experiência da graduação e das

disciplinas ofertadas, na oferta de campo de estágio e pesquisa, no permanente processo de

educação e formação dos trabalhadores, na aproximação entre universidades e serviços de

saúde, enfim, ampliar as possibilidades de encontro para permitir a abertura a novas relações,

novos problemas, novos objetos. Tentar provocar mudanças nos processos de aprendizado e

transformações nas concepções e práticas.

Importante reconhecer que as transformações são construídas no cotidiano da prática

pedagógica e não simplesmente no papel; na prática clínica concreta e não somente

no “laboratório” ou “ambientes especiais”; em todos os cenários onde se dá a prática

profissional e enfrentando os problemas que se apresentam na realidade. É na

micropolítica do aprender, cuidar e produzir conhecimentos que podem ser

produzidos movimentos de territorialização e desterritorialização

(FEUERWERKER, 2014, p. 130).

Para essa intercessão entre as universidades e os serviços de saúde pública e coletiva é

necessário ter em vista as diretrizes que baseiam o SUS e produzir experiências que sejam

consonantes a elas. O caminho de construção desse processo de formação deve estar em

sintonia com as lógicas essenciais do Sistema para que dispute frente a outros vetores e

instituições o processo de subjetivação desses (futuros) trabalhadores.

1.3. Perspectivas para uma formação no/com o SUS

Em consonância com os movimentos de construção das políticas de formação para o Sistema

Único de Saúde, ocorre um importante desenvolvimento na discussão sobre o aprendizado, a

pedagogia e a formação no âmbito da saúde coletiva. Pode-se destacar, para início, a

perspectiva – e aposta – da formação em ato, isto é, do processo de aprendizado e

transformação que parte de elementos da própria experiência do sujeito com o campo de

trabalho, com o serviço de saúde, com a relação, com o território. Associada na literatura

principalmente com a noção da Educação Permanente, tal perspectiva foi construída na

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Europa, no campo da educação, por volta dos anos 30. É nos anos 60, entretanto, com o

francês Pierre Furter, que ganha maior destaque. Essa noção foi introduzida, principalmente,

para pensar a aprendizagem de adultos quanto a situações de reestruturação produtiva ou de

necessidade de reposicionar grandes contingentes de pessoas no mercado de trabalho em

função da intensificação dos processos de urbanização e industrialização (FEUERWERKER,

2014). Segundo Feuerwerker, havia o entendimento em Educação Permanente de que

O homem está em permanente construção e em suas relações no cotidiano sempre

produzem conhecimentos/sabedoria que interferem em suas possibilidades de

conduzir a vida. O saber científico é somente uma parte desse universo de saberes

possíveis e válidos. E a aprendizagem escolar é somente uma das possibilidades para

a construção dos saberes (FEUERWERKER, 2014, p. 92).

Passa a ser discutida no campo da saúde em 1980, quando a Organização Pan-americana de

Saúde a levanta como principal e importante estratégia de organização dos processos

educativos para os trabalhadores da área. “Partiam da evidência de que as capacitações

tradicionais, organizadas de modo vertical e dirigidas indistintamente a públicos diversos [...]

produziam poucas modificações nas práticas dos trabalhadores de saúde” (FEUERWERKER,

2014, p. 93). Passa-se, dessa forma, a se valorizar os processos formativos que compõe a

própria prática cotidiana do trabalhador de saúde – já que se trata da mais próxima vivência

que o sujeito terá com o campo e, portanto, lugar mais intenso de criação de estranhamentos e

indagações. Esse conteúdo todo, emergido da relação dos sujeitos com o campo, deve ter um

espaço um tanto organizado e sistematizado para que possa se tornar objeto de reflexão crítica

e potência transformadora. Sob o nome de Educação Permanente em Saúde – a noção de

Educação Permanente trazida para o contexto da Saúde Pública e Coletiva – é destacado por

Ceccim (2005) três principais vias: a educação em serviço, que se trata de colocar os

conteúdos, instrumentos e recursos para a formação técnica submetidos a um projeto de

mudança institucional e político, como o próprio Pró-Saúde; a educação continuada, que está

associada à ideia de plano de carreira e às necessidades do quadro institucional; e a educação

formal de profissionais, que consiste na articulação, a partir da vivência do trabalhador, entre

o “mundo do trabalho” e o “mundo do ensino”.

Verifica-se que, no Brasil, os movimentos sobre formação em ato e Educação Permanente em

Saúde trazem consigo influências de diferentes eixos teóricos e conceituais. Um deles é a obra

de Paulo Freire, que agrega com uma perspectiva de pedagogia que leva em conta a cultura e

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a história dos sujeitos, a aproximação e a interação como elemento de potência para as

relações de aprendizagem. Outro é o Movimento Institucionalista em Educação

[...] caracterizado principalmente pela produção de René Lourau e Georges

Lapassade, que propuseram alterar a noção de Recursos Humanos, proveniente da

Administração e depois da Psicologia Organizacional, como o elemento humano das

organizações, para a noção de coletivos de produção, propondo a criação de

dispositivos para que o coletivo se reúna e discuta, reconhecendo que a educação se

compõe necessariamente com a reformulação da estrutura e do processo produtivo

em si nas formas singulares de cada tempo e lugar. Dos institucionalistas provém a

noção de autoanálise e autogestão, por exemplo (CECCIM, 2005, p. 162).

Além disso, os movimentos brasileiros e latinos americanos que se debruçavam sobre a

discussão sobre Saúde Pública e formação produziram em sua trajetória um importante e

extenso número de revistas e livros originais, que influenciaram a construção de experiências

e políticas públicas.

Para Ceccim (2005), a Educação Permanente em Saúde deve ter como eixos centrais: a) sua

porosidade à realidade mutável e mutante das ações e dos serviços de saúde; b) seu

compromisso político com a formação de trabalhadores e de serviços; c) a introdução de

mecanismos, espaços e temas que possibilitem gerar autoanálise, autogestão, mudança

institucional, enfim, reflexão e experimentação. A Educação Permanente em Saúde, enfim,

opera um quadrilátero de formação:

1º lado - Formação: análise da educação dos profissionais de saúde com a perspectiva de

mudar a concepção hegemônica tradicional (biologicista, mecanicista, centrada no professor e

na transmissão) para uma concepção construtivista (interacionista, baseada nos encontros e

relações); e mudar a concepção lógico-racionalista, elitista e concentradora de produção de

conhecimento em espaços afastados das necessidades de saúde da população para o incentivo

à produção do conhecimento dos serviços e trabalhadores.

2º lado - Assistência: análise das práticas de atenção à saúde com vias a “construir novas

práticas de saúde, tendo em vista os desafios da integralidade, da humanização e da inclusão

da participação dos usuários no planejamento terapêutico” (CECCIM, 2005, p. 166).

3º lado - Gestão: análise da gestão setorial, que deve “configurar de modo criativo e original a

rede de serviços, assegurar redes de atenção às necessidades em saúde e considerar na

avaliação e satisfação dos usuários” (CECCIM, 2005, p. 166).

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4º lado – Controle Social: atenção à organização social, à participação dos movimentos

sociais e representantes da população na discussão e luta por práticas em saúde que atendam

as suas necessidades.

Neste sentido, uma orientação para a composição de práticas de formação no SUS leva em

conta que muitos dos problemas encontrados no cotidiano dos serviços de saúde podem ser

interpretados incorretamente como insuficiências individuais, pessoais, cuja solução viria,

portanto, em ações de treino e capacitação, a fim de corrigir o trabalhador mal informado.

Esse tipo de leitura coloca em um sujeito uma responsabilidade pelas falhas que, na verdade,

são expressão de certos modos de se conceber e organizar o trabalho em saúde – processo de

corresponsabilidade entre profissionais da saúde, gestores e usuários. Dessa forma avalia-se

que experiências de formação-intervenção que busquem provocar transformações no

cotidiano dos serviços e práticas em saúde devem se guiar pelo método da tríplice inclusão,

que se baseia na consideração de 1) todos os atores (usuários, trabalhadores e gestão); 2)

analisadores (perturbações, marcas); e 3) o coletivo que se produz na relação de encontro

entre eles; para a construção, execução e avaliação de estratégias desse cunho.

É certo que os gestores também se configuram enquanto trabalhadores, no entanto

desempenham um trabalho diferente: se debruçam sobre a organização dos serviços, cuidam

das pactuações institucionais, fazem o meio de campo entre as demandas secretariais e a

atuação de seus profissionais, etc. Os usuários, além de avaliar a qualidade do cuidado que

vem sendo realizado para eles, tem participação direta na formulação e organização das

políticas nacionais de saúde através da utilização de dispositivos de controle social como os

conselhos gestores, por exemplo. De certa forma, portanto, ações que visem a mudança das

práticas em saúde e dos modos de funcionamento dos serviços devem levar em conta que

Qualificar as práticas de gestão e de atenção em saúde impõe novas atitudes por

parte de trabalhadores, gestores e usuários, superando problemas e desafios do

cotidiano de trabalho: a filas; a insensibilidade de trabalhadores frente ao sofrimento

das pessoas; os tratamentos desrespeitosos; o isolamento das pessoas de suas redes

sociofamiliares nos procedimentos, nas consultas e nas internações; as práticas de

gestão autoritária (PASSOS & CARVALHO, 2015, p. 95).

Entretanto

[...] não basta incluir. É necessário que essa inclusão, assim como o processo de

produção de subjetividade a ela associado, seja orientado por princípios e diretrizes.

Para o SUS, essas orientações são clinicas, políticas e éticas e tomam sentido no

acolhimento, na clínica ampliada, na democracia das relações, na valorização do

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trabalhador, na garantia dos direitos dos usuários e no fomento de redes (PASSOS &

CARVALHO, 2015, p. 96).

Em linhas gerais, o método tem como premissa a inclusão – de atores e dinâmicas – e, em

consonância com os princípios do SUS, se orientará pela produção de vínculos de

solidariedade, corresponsabilidade e democracia a fim de produzir práticas mais humanizadas.

Tal experiência de formação-intervenção é entendida também como potente processo de

subjetivação, formando sujeitos engajados no “movimento susista” e agentes multiplicadores

desta lógica de trabalho e relação. (PASSOS & CARVALHO, 2015).

Tais perspectivas e orientações – a Educação Permanente em Saúde, o quadrilátero de

formação, o método da tríplice inclusão – contribuem trazendo reflexões e direcionamentos

para basear a construção de políticas e práticas de formação dentro do Sistema Único de

Saúde. A necessidade de elencar de maneira diretiva tais caminhos se dá pelos diversos

interesses – de corporações, organizações sociais, grupos políticos, empresas, instituições de

ensino – que atravessam o SUS com a intenção de tomar seu direcionamento, definir sua

maneira de funcionar e deslocar seu objeto de atenção (CECCIM & FEUERWERKER, 2004).

1.4. Os caminhos das políticas de formação no SUS

A efetivação do Sistema Único de Saúde e a mudança no modelo assistencial em saúde que

ele preconiza dependem também dos modos de formação dos profissionais de saúde e de suas

práticas. Além da transformação e organização da saúde pública brasileira, é uma

preocupação presente o rearranjo da academia e do ensino em saúde nas universidades.

Marcada principalmente por uma lógica científica tradicional, nas universidades se presencia

a valorização da fragmentação das áreas de conhecimento e do fazer técnico. Nas profissões

da saúde, o ensino que parte da noção de um corpo biológico e natural, sem alma ou história,

e a trajetória de formação baseada em experiências laboratoriais e técnicas que devem ser

aplicadas nesse objeto-corpo sem vida pouco ensinam sobre as relações, o toque, a política e a

saúde enquanto processo.

[...] uma formação profissional em saúde não será adequada se não trabalhar pela

implicação dos estudantes com seu objeto de trabalho: práticas cuidadoras de

indivíduos e coletividades; práticas de afirmação da vida, sob todas as suas formas

inventivas e criativas de mais saúde; práticas de responsabilidade com as pessoas e

coletividades pela sua melhor saúde individual e coletiva; práticas de

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desenvolvimento e realização de um sistema de saúde com capacidade de proteção

da vida e saúde e práticas de participação e solidariedade que tenham projetos de

democracia, cidadania e direitos sociais. (CARVALHO & CECCIM, 2006, p. 155).

Um projeto de formação para o SUS deve conter em seu seio uma dimensão técnica e

científica, tal qual, na mesma medida, ética, política, pedagógica e humanística. Afinal, “um

profissional de saúde não pode ter em vista sua projeção técnica e científica senão na relação

de assistir ao outro em suas necessidades [...] e numa relação ética com a vida (pertencer ao

socius em que uma prática existe como profissão)” (CARVALHO & CECCIM, 2006, p. 155).

Historicamente diversos esforços foram dirigidos com vistas a tornar o ensino de saúde mais

próximo das necessidades de saúde da população, inicialmente houve o debate sobre o lugar

em que se forma o futuro profissional:

No Brasil, na década de 1920, com a hegemonia da anatomopatologia que apontava

os hospitais como o lugar da doença e da cura e o melhor lugar para a formação em

assistência da saúde, a saúde pública (reforma Carlos Chagas) incitava a uma

formação que se orientasse pelas prioridades nacionais, tendo em vista a saúde da

nação (CARVALHO & CECCIM, 2006, p. 157).

O embate entre os modelos assistenciais e o lugar para melhor se ensinar um trabalhador da

saúde vinha sendo feito em diferentes países. Na Inglaterra, por exemplo, por volta da década

de 1940, este debate tem como marca o importante relatório Dawson, do médico Bertrand

Dawson, que propunha estratégias de formação em saúde fora do ambiente hospitalar,

privilegiando a atenção básica (serviços de atendimento às famílias na comunidade) – tal

perspectiva baseou o sistema de saúde inglês e também tem lugar de importância na futura

reforma sanitária brasileira. A cisão entre dois modelos assistenciais e seus tipos de prática

profissional é visível: de um lado o modelo biomédico, que trata do corpo – organismo

biológico - através da eliminação da doença e do consequente reestabelecimento de sua saúde,

de um fazer profissional técnico-científico e que encontra campo principalmente nas unidades

hospitalares; de outro a saúde coletiva, que valoriza as análises e ações de prevenção em

saúde com base nas necessidades das diferentes populações, que entende a saúde como um

processo de bem-estar físico, psíquico e social, de uma fazer próximo, a partir da relação e do

vínculo com as pessoas e que tem como campo o território de vida dos usuários, seu bairro,

sua família, sua casa, etc.

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No Brasil, no mesmo período da discussão inglesa sobre o lugar da formação, havia um

movimento no ensino em saúde de maior investimento em hospitais escola, na ampliação de

laboratórios e na departamentalização e especialização profissional.

No Brasil, mantido o modelo curativo individual no ensino da saúde e uma formação

orientada pela ciência das doenças, na qual o corpo deveria ser entendido apenas

como o território onde evoluem as doenças e a clínica como o método experimental

de restauração de uma normalidade suposta na saúde dos órgãos, um esforço da

ascensão da educação superior brasileira identifica o ensino da saúde com a pesquisa

experimental emergente e aprofunda o paradigma biologicista (CARVALHO &

CECCIM, 2006, p. 157-158).

Com a consolidação, nas décadas de 1950 e 1960, da saúde coletiva enquanto corrente de

pensamento e o surgimento de diversos movimentos no Brasil influenciados por esta lógica,

ganha expressão a discussão sobre o eixo formação como estratégia para a transformação de

práticas em saúde mais atinadas e preocupadas com às necessidades de saúde da população.

Torna-se uma questão importante a necessidade de repensar, dentro das instituições de ensino,

os objetivos finais de um curso superior em saúde – qual o trabalho esperado dos profissionais

ao obterem uma habilitação profissional?

Mencionado na literatura enquanto uma década de reforma da educação, nos anos 1960 vê-se:

a luta pela mudança na educação dos profissionais de saúde sendo travada por movimentos

organizados dedicados ao tema; o incentivo ao ensino de conteúdos relativos à prevenção em

saúde e a abertura de novos departamentos, disciplinas e áreas de ensino da Saúde Pública; a

atuação da Organização Pan-Americana da Saúde junto às instituições formadoras

fomentando o debate sobre o ensino da Saúde Pública e evidenciando a necessidade de uma

mudança de atitude dos professores, a integração curricular e a integração do ensino com o

sistema de saúde objetivando maior participação na melhoria das condições de saúde da

população (CARVALHO & CECCIM, 2006).

Operava-se, dessa forma, o inicio de importantes mudanças dentro dos estabelecimentos de

ensino das profissões da saúde no que tange à estrutura e currículo dos cursos, aos conteúdos

apresentados e discutidos, aos paradigmas sobre saúde e sobre o modelo biomédico.

Cabe lembrar que o conceito de saúde da Organização Mundial de Saúde, formulado

em 1946, alertava que a saúde era expressão do “bem-estar físico, mental e social”.

O ensino, portanto, teria de se desapegar da biologia, como razão científica para a

saúde, e estabelecer o intercruzamento com a psicologia, as humanidades e as

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ciências sociais e humanas para uma reforma da educação não apenas instrumental,

mas do projeto político-pedagógico (CARVALHO & CECCIM, 2006, p.159).

As transformações nos cursos de graduação das profissões de saúde são importantes

conquistas para a saúde coletiva e para a constituição de um modelo assistencial

comprometido ético-politicamente com a população brasileira, entretanto, ainda limitadas às

estruturas internas das universidades, não implicam completamente em uma mudança no

campo de trabalho – o mundo do ensino ainda estava distante do “mundo do trabalho”, da

comunidade. As discussões sobre sociedade, sobre os aspectos ambientais e relacionais que

impactam na saúde da população, etc., quando feitas apenas na sala de aula produzem uma

noção idealizada, ainda distanciada da vivência do campo de trabalho e da população,

afastada da cultura, da história e dos regimes de verdade ou racionalidade de cada

agrupamento social ou coletividade (CARVALHO & CECCIM, 2006).

Muito próximos a uma leitura de Paulo Freire sobre pedagogia e a importante aproximação do

educador com a cultura e os territórios de vida dos sujeitos, as iniciativas de formação em

saúde comunitária ganham expressão.

A aproximação às culturas e contextos locais para debelar as más condições de

saúde dos grupos sociais entabulou as primeiras residências multiprofissionais em

saúde no Brasil. Datam dessa época [década de 70] as residências multiprofissionais

em saúde comunitária, criadas como esforço de contribuição da formação para a

construção de um sistema de saúde acessível e resolutivo, no interesse da população

(CARVALHO & CECCIM, 2006, p. 161).

Ao mesmo tempo, o movimento sanitarista crescia nas bases universitárias e os estudantes

desenvolviam um posicionamento crítico em relação aos modelos assistenciais, à política, à

ciência positivista e aos modelos educacionais tradicionais. Com o afã por novas experiências

de formação, os universitários reivindicavam pela integração entre ensino e serviço e a

ampliação do campo de estágio: ir para as unidades básicas de saúde em detrimento dos

hospitais escola. Dessa forma, em alguma medida, acreditava-se reforçar o aspecto da

integralidade em saúde, incorporando mais intensamente as disciplinas e conteúdos

acrescentados pelas reformas curriculares, de ciências sociais e humanas (CARVALHO &

CECCIM, 2006).

O conjunto das experiências de integração ensino-serviço (não apenas as

incentivadas em rede) foi determinante para a expansão das noções da atenção

integral à saúde, da integração entre formação e trabalho, de integração entre ensino

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e pesquisa em saúde coletiva e de invenção de projetos interprofissionais na

graduação, na extensão e nas especializações em serviço sob supervisão

(CARVALHO & CECCIM, 2006, p. 162).

No sentido dessas experiências de integração entre ensino e serviço em saúde percebe-se que

contribuem 1) com a vivência dos estudantes de relação com a população e com seu território

de vida, permitem viver junto parte das condições que vão influenciar o bem-estar daqueles

usuários; e 2) o contato com os outros trabalhadores e serviços, sendo necessário o

desenvolvimento de uma disposição para o trabalho em conjunto e de criação de pontos

comuns aos diferentes saberes. Ambos os aspectos afirmam o principio da integralidade. Tais

aproximações produzem também um fortalecimento da rede comunitária que recebe esse tipo

de experiência, mobilizando maior participação social na gestão das experiências de formação

e na atuação dos serviços.

Um importante movimento que contribuiu com o debate sobre as experiências de integração

ensino-serviço foi a Rede de Integração Docente-Assistencial (Rede IDA), que abrangia toda

a América Latina e tinha o importante papel de trazer materialidade à área de ensino em saúde

no sentido deste tipo de experiência de integração (CARVALHO & CECCIM, 2006).

A noção de integração docente-assistencial demarcou a possibilidade de intersecção

ensino-serviço mostrou a possibilidade de tornar a rede de saúde uma rede-escola e

de expandir programas de residência em todas as áreas profissionais da saúde

(CARVALHO & CECCIM, 2006, p. 162).

Na década de 1990, mantem-se o desenvolvimento da discussão sobre experiências de ensino

em saúde que privilegiam a proximidade com a população e seu território e se fortalece de

maneira expressiva a perspectiva da participação social. À integração entre ensino e serviço

soma-se a comunidade como participante ativa da postulação de objetivos e modos de

formação dos trabalhadores da saúde.

O ideário reformista desse período não envolvia mais uma reforma conteudista, mas

os aspectos formativos, nos quais a articulação com os serviços era fundamental e

também a articulação com representantes da população. Não se trabalharia com a

montagem de unidades-escola pertencentes à universidade, as com as redes locais de

saúde. E estas articulações foram fundamentais para divulgar o ideário da reforma

sanitária entre professores e estudantes da graduação (CARVALHO & CECCIM,

2006, p. 162-163).

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Nesta frente de discussão se fazia presente o Projeto UNI, que sustentava a pauta da união do

ensino e do serviço com a comunidade e contribuía para a formulação de experiências neste

sentido. Posteriormente ocorre a reunião entre o projeto UNI e a Rede IDA, formando a Rede

Unida – importante rede de projetos e publicações até hoje. Tal rede estabelece como rumo:

A necessidade de ultrapassar uma profissão (um processo de mudança não se faz de

maneira isolada por profissão) e um departamento (a mudança não é de conteúdo,

mas de projeto de formação), a necessidade de instituir multiprofissionalidade, de

dar lugar aos usuários e a necessidade de ampliar a interação com o sistema de saúde

(CARVALHO & CECCIM, 2006, p. 164).

A partir dos anos 2000 são publicadas as Diretrizes Nacionais dos Cursos de Graduação em

Saúde em que se afirma que a formação profissional de saúde deve contemplar o sistema de

saúde vigente no país, o trabalho em equipe e a atenção integral à saúde. Para tanto, no caso

dos cursos de medicina, por exemplo, foi criado o Programa de Incentivo à Mudança

Curricular nos Cursos de Graduação em Medicina (PROMED) que consiste em edital de

seleção dos melhores projetos a serem incentivados com recursos financeiros para a

efetivação das Diretrizes Nacionais para os cursos de medicina. Cada qual a seu modo, as

instituições de ensino (universidades) e os órgãos representativos das profissões de saúde

(conselhos federais) foram produzindo transformações na formação e no direcionamento das

práticas destes trabalhadores com base nos princípios e doutrinas do Sistema Único de Saúde.

Outro importante evento foi a criação em 2004, mediante apresentação do Ministério de

Saúde e a aprovação do Conselho Nacional de Saúde, do AprenderSUS, uma política do

Sistema Único de Saúde para o diálogo com o ensino de graduação nas profissões da área da

saúde que contou com o apoio de diversas organizações e movimentos de estudantes. De

modo geral, o AprenderSUS envolvia ações da qual destaco: a orientação dos cursos pela

tematização da integralidade em saúde; implementação de experiências de trabalho em equipe

de saúde e apropriação do SUS; interferência ativa na certificação e contratualização dos

hospitais de ensino; apoio à pesquisa sobre ensino da integralidade nas profissões da área de

saúde, mobilizando o diretório de pesquisas do CNPQ denominado por EnsinaSUS;

desencadeamento de diversas modalidades de “Vivência e Estágio na Realidade” do SUS

(VerSUS); fomento a projetos autônomos na área provenientes das associações de ensino,

executivas de estudantes e instituições de educação superior no âmbito da integralidade,

trabalho em equipe e apropriação do SUS; mobilização e divulgação de experiências

nacionais, por meio de oficinas e eventos regionais; entre outras.

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Em 2005 surge o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde

(Pró-Saúde), inspirado no PROMED, inicialmente contemplando os cursos de Enfermagem,

Medicina e Odontologia. Este programa tem como premissa a “aproximação da academia com

os serviços públicos de saúde, sustentada reorientação da formação profissional e a

abordagem integral do processo saúde-doença a partir da atenção básica” (DIAS, LIMA &

TEIXEIRA, 2013, p. 1617) e objetiva desenvolver e estabelecer parcerias entre as instituições

de ensino e a gestão do SUS, além de proporcionar diferentes possibilidades de vivência e

formação nos serviços de saúde.

Com a implementação do Pró-Saúde, esperava-se a substituição do modelo de

formação – individual, de caráter fortemente especialista e hospitalocêntrico – para

um processo formativo que levasse em conta os aspectos socioeconômicos e

culturais da população. Preconizava-se a articulação com o sistema público de saúde

por meio de ações de promoção de saúde e prevenção de agravos; difusão da

educação profissional como um processo permanente; da busca pelo equilíbrio entre

a excelência técnica e os fatores de ordem social; e das mudanças no

desenvolvimento das pesquisas em saúde em prol do SUS. (DIAS, LIMA &

TEIXEIRA, 2013, p. 1617).

A partir de 2007 o Pró-Saúde é ampliado para outras profissões de saúde e cria-se, baseado

em suas experiências e diretrizes, o Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde (Pet-

Saúde). Sua proposta é “favorecer a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, a

constituição de grupos de aprendizagem tutorial, a interdisciplinaridade e a integração ensino-

serviço” e seu foco é a “qualificação de estudantes de graduação e pós-graduação, na rede de

serviços, por meio de vivências, estágios, iniciação ao trabalho e programas de

aperfeiçoamento e especialização” (DIAS, LIMA & TEIXEIRA, 2013, p. 1618).

Pouco a pouco se estabelece que, no contexto do Sistema Único de Saúde, o caminho para a

construção de estratégias de formação deve envolver relações entre a) as instituições de

ensino, com o pensar das práticas de formação, a produção de conhecimento; b) os serviços de

atenção, com os profissionais e suas práticas de trabalho; c) os órgãos de representação

popular – movimentos sociais, coletivos de educação popular em saúde, associações de

bairro; d) as estruturas de gestão em saúde. A reunião desses componentes, comprometidos

com a formação para o SUS, tem a potência de produzir experiências de formação que

contemplem diferentes vivências aos estudantes das profissões de saúde e futuros

trabalhadores do SUS.

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2. EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO ESTUDADA: A PERSPECTIVA DO

PESQUISADOR-PROFISSIONAL DE SAÚDE

2.1. Notas iniciais

Neste capítulo será apresentada a experiência de integração entre ensino e serviço que é base

para as reflexões, discussões e análises dessa pesquisa. Essa apresentação foi construída a

partir do diário de campo desenvolvido pelo pesquisador - também integrante da equipe - e

está dividida em três partes-eixos: a primeira diz respeitos aos aspectos institucionais e

estruturais, isto é, sobre a relação que a UBS tem com práticas de formação, como se dá a

participação das pessoas nessas práticas, como se estrutura e se sustenta esta prática de

formação chamada de “Pró-Saúde Mamoré”. A segunda parte destaca os principais

dispositivos utilizados nesta experiência – a saber: discussão de casos, visita domiciliar e roda

de conversa -, seu funcionamento e alguns de seus efeitos. A terceira e última apresenta o

evento realizado pelos estudantes que integra e encerra a experiência formativa e a discussão

sobre a experiência à luz das perspectivas e políticas para formação no SUS apresentadas nos

capítulos anteriores.

A escolha por destacar os dispositivos como estruturantes da análise e da apresentação da

experiência visa destacar suas diferentes linhas, expressões e suas potências de sustentação e

movimentação de um processo formativo.

De acordo com Deleuze (1996) os dispositivos são compostos por: a) linhas de visibilidade,

“cada dispositivo tem seu regime de luz, uma maneira como cai a luz, se esbate e se propaga,

distribuindo o visível e o invisível, fazendo com que nasça ou desapareça o objeto que sem ela

não existe” (p. 83); b) linhas de enunciação que distribuem posições, elementos discursivos e

semiológicos; c) linhas de força, as relações de poder, atravessam as duas linhas anteriores

afirmando suas direções, retificando o que fazem ver e o que fazem falar, destacando seus

traços e curvas; e d) linhas de subjetivação, onde aparece a dimensão do “si próprio”, pode se

caracterizar enquanto uma linha de fuga – “é um processo de individuação que diz respeito a

grupos ou pessoas, que escapa tanto às forças estabelecidas como aos saberes constituídos” (p.

84). Enfim, cada dispositivo é uma multiplicidade na qual esses processos operam em devir e,

apesar de serem apresentados nesta pesquisa como três separados, a discussão de casos, a

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visita domiciliar e a roda de conversa estão absolutamente imbricados compondo o

dispositivo Pró-Saúde Mamoré.

Neste sentido, o diário de campo – que não deixa de ser outro dispositivo: o dispositivo do

pesquisador – foi a maneira escolhida para mapear as linhas desses dispositivos e percorrer o

território de afetos e intensidades composto por todas as pessoas que participam direta e

indiretamente da experiência. O diário de campo foi escrito após cada encontro do Pró-Saúde

Mamoré e nele, além de descrever o que fizemos naquele dia, busquei destacar

estranhamentos – meus e dos outros – tal qual falas, posicionamentos e sentidos. Para sua

apresentação nessa pesquisa trabalhei sua estrutura: de uma organização cronológica, dia após

dia, para uma organização que privilegiasse os dispositivos e analisadores. Esses registros

estão presentes em todas as partes deste capítulo, no corpo do texto e em notas de rodapé, a

depender de como compõe com a forma do texto.

2.2. Pró-Saúde Mamoré

2.2.1.Aspectos institucionais e organizacionais

A Unidade Básica de Saúde (UBS) Mamoré recebe anualmente dois grupos de estudantes: um

é composto por estudantes de diferentes formações, realizando graduação ou pós-graduação

nos Estados Unidos, e que estão em intercâmbio no Brasil, intermediado por um professor

historiador, com o objetivo de conhecer, através do serviço de saúde e seu acesso à

comunidade, o bairro multicultural da qual a UBS é referência em saúde. No momento de

realização da pesquisa, por exemplo, a investigação desse grupo de estudantes era sobre como

os profissionais de saúde fazem para atender pessoas que não falam português.

Acompanharam visitas de agentes comunitários a famílias coreanas, bolivianas, gregas, etc.

Conheci também outra aluna que acompanhava este professor, uma intercambista finlandesa

de formação antropóloga, cujo interesse era estudar o bairro, bem famoso por seu fluxo

migratório e sua pluralidade cultural. Através do trabalho das agentes comunitárias de saúde –

sempre inseridas nas entranhas dos bairros – a estudante conseguia acessar as diferentes partes

do território e conversar com seus moradores. Levava consigo uma câmera fotográfica que

usava para tirar algumas fotos. Ao fim de suas andanças e registros, deixou de presente para a

UBS Mamoré uma mostra fotográfica exposta nas paredes da unidade. O produto de seu

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trabalho decora o posto de saúde, são retratos daqueles que dele fazem uso: um homem

inclusive ficou conhecido pela sua foto4, tornou-se “o cara que está lavando as louças” e se

mostra orgulhoso de compor a exposição.

O outro grupo é integrado por alunos e alunas de medicina de uma faculdade de São Paulo

que, acompanhados por um professor de saúde coletiva e recebidos por um médico da UBS,

participam durante um semestre – período de duração da disciplina na qual esta atividade está

atrelada – do cotidiano do posto de saúde a partir de visitas quinzenais. É esse

grupo/experiência, chamado por todos os envolvidos de Pró-Saúde Mamoré, que será foco de

nossa análise.

Apesar de ser chamado por “Pró-Saúde”, é importante dizer que o Pró-Saúde como programa

do Ministério de Saúde apresentou seu último Edital em 2015, não havendo desde então mais

repasses e fomentos a este tipo de experiência. Aos poucos o programa foi sendo

desinvestido, as experiências de integração que temos hoje na rede são frutos da sustentação

de trabalhadores da academia e do Sistema Único de Saúde que entendem este como um

importante sistema de formação. É assim com a faculdade e com a UBS Mamoré. Dentro da

grade da faculdade de medicina alguns professores, principalmente os vinculados à Saúde

Coletiva, lutaram para que essa experiência continuasse. Por ter suas bases no Pró-Saúde, no

entanto, continua sendo chamado assim.

Esta experiência formativa se estrutura no seguinte formato: são realizadas duas visitas à UBS

- uma por mês, a primeira em outubro e a segunda em novembro - para que os estudantes

tenham o contato pela primeira vez com o serviço e com o território; no semestre seguinte, a

partir do mês de Março, os alunos e alunas começam a ir quinzenalmente à UBS, onde

escolhem o caso de uma pessoa ou família para acompanhar através de visitas domiciliares e

discussões em equipe, até o mês de Junho, em que as visitas se encerram e, como conclusão

do estágio na UBS, é feito um evento de saúde organizado pelos próprios estudantes.

É um grupo que conta com quinze alunos que estão cursando os anos iniciais da faculdade de

medicina, a turma vem acompanhada de um professor responsável pelo Pró-Saúde – existem

outras turmas que, em um modelo parecido de experiência, vão a outras UBS da região central

acompanhadas de outros professores do departamento.

4 Na foto, um senhor está de pé em frente a pia, segurando um prato ensaboado com a mão esquerda e

encostando-se ao fecho da torneira com a mão direita, enquanto olha para sua frente sorrindo.

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Me envolvi com essa atividade de um jeito um tanto aleatório. Acontece que, como

mencionado, trabalhava nesta UBS e era um dos profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da

Família (NASF) que tinha como referência de matriciamento a equipe verde5, em que o

médico é Felipe. Certa vez, na sala de reuniões, vi que Felipe conversava com a gerente sobre

a necessidade de receber os estudantes em um dia e horário que era o mesmo em que

aconteceria uma reunião – a reunião de apoio entre a equipe de Saúde da Família e o NASF.

Por ser o único trabalhador da UBS responsável diretamente pela condução da atividade, não

tinha como ele se ausentar para estar na reunião. Respeitosamente me incluí na conversa e

disse que poderia somar na recepção dos alunos junto com Felipe e, sendo um dos

participantes de tal reunião, poderíamos construir uma maneira de conciliar os dois. A oferta

foi muito bem recebida pelos dois, que logo me disseram a data em que os estudantes viriam.

Nesta edição, dessa forma, participaria ativamente da organização da experiência e do

acompanhamento dos alunos um trabalhador do NASF, formado em psicologia.

A vinda de estudantes à UBS mobilizava a todos, entretanto não eram todos que participavam

da construção dessa integração entre ensino e serviço. Há a participação efetiva da gerente no

que diz respeito a autorizar e dar condições para que a atividade ocorra: alterar agenda do

médico, “liberar” agentes comunitários para acompanhar os estudantes, pactuar com a

faculdade a possibilidade de campo de estágio, etc. Há a participação de agentes

comunitários de saúde, principalmente os da equipe verde e os que acompanham os casos

que, veremos, foram selecionados para as visitas. Sua participação é fundamental para alguns

aspectos da experiência: compartilham com os estudantes o vínculo que têm com os usuários,

o que torna a visita e o primeiro contato com as pessoas já próximo e afetuoso; apresentam

outra dimensão da clínica do SUS que tem a ver com andar pelo bairro, com ser reconhecido

pelos moradores enquanto figura de articulação de cuidado, etc. Além disso, os agentes que

participam a mais tempo dessa atividade de formação começam aos poucos a se ver como

tendo um papel de formador para o SUS, o que reflete em suas práticas e concepções de

cuidado. Os usuários do serviço, moradores do bairro, autorizam a entrada de desconhecidos

em suas casas e em suas vidas, e topam também entrar na vida deles. Há a participação de um

médico da UBS, Felipe, que cumpre a função de coordenador e preceptor da atividade, ajuda

a construir a estrutura da experiência e mobiliza a UBS para a recepção dos estudantes,

5 A UBS possui cinco miniequipes, cada uma responsável por uma parte do território. São nomeadas a partir de

cores – azul, amarela, verde, vermelha e preta – e contam com um médico, um enfermeiro, dois técnicos de

enfermagem e seis agentes comunitários. Para poder acompanhar todas as miniequipes com certa organização, o

NASF se separa em quartetos de referência: quatro profissionais ficam como a referência das equipes,

responsáveis por realizar reuniões semanais e acompanhar os processos e desenvolvimentos das equipes.

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acompanha todas as etapas do processo e sempre traz contribuições para a discussão de casos

e para a compreensão da forma de trabalho no SUS. Enfim, estes atores são os

articuladores/participantes principais, junto com professor Simão, quem exerce a função de

tutor e quem cria e sustenta as possibilidades de esse tipo de experiência ser realizada pela

faculdade, e com os estudantes, cada um ansioso à sua maneira para passar por mais uma

estação em seu itinerário de formação.

Há pouca presença dos enfermeiros ou técnicos de enfermagem, dos trabalhadores

administrativos, do farmacêutico, dos outros médicos, da equipe NASF. Os demais

trabalhadores participam sobre demanda, conforme convocados por Felipe ou a gerente para

dar alguma ajuda ou contribuição. Em um dos primeiros encontros, por exemplo, me

surpreendi quando cheguei à unidade e vi todo mundo agitado: entre uma consulta e outra,

Felipe saia de sua sala e andava de lá para cá, conversava com a gerente, com alguns agentes

comunitários, comigo, com alguns enfermeiros. As pessoas andavam de lá para cá também,

mexendo cadeiras, fazendo perguntas. Não pareciam preocupadas, apenas ansiosas. Com

alguns minutos de observação foi possível entender que, por conta da vinda dos estudantes do

Pró-Saúde, algumas pessoas da unidade se mobilizavam, um tanto desinformadas - 1) os

desavisados moviam cadeiras para a sala de reunião, onde acreditavam que aconteceria a

recepção dos estudantes, não sabiam que o museu ao lado da unidade havia reservado seu

espaço para que nós pudéssemos utilizar a esse fim; 2) Felipe conversava com os colegas das

outras equipes, pois havia, no dia anterior, pedido que cada um selecionasse em sua equipe ao

menos dois casos para apresentarem e oferecerem aos estudantes para acompanharem durante

o semestre, no entanto, um pouco ruins de memória, a maioria havia esquecido e tentava

escolher no susto algum caso para sugerir.

Imagino que muitos ali não têm clareza de como funciona essa atividade, apesar de presenciar

a cada semestre esse movimento. O fato de não haver participação maior nessa construção

pode se dar pela maneira como a unidade se organiza em relação às suas tarefas e metas: não

há nesta unidade o compromisso com espaços de coletividade. É uma UBS que por muito

tempo ficou sem reunião geral6, não possui dispositivos de cogestão e de tomada de decisão

compartilhada, a escolha de representantes para o conselho gestor é feita às pressas, etc. No

cotidiano, também, é comum ver as miniequipes produzindo análises e intervenções voltadas

6 Um dispositivo básico de reunião entre todos os trabalhadores de um serviço de saúde – médicos, enfermeiros,

agentes comunitários, gerência, equipe administrativa, equipes de apoio, etc. – e normalmente encontrado no

SUS. Por vezes tem a característica de ser um espaço potente para discussão e deliberação de assuntos

pertinentes ao processo de trabalho, por outras é um espaço puramente de informes institucionais.

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apenas aos usuários que atendem, não é difícil ouvir que existe “um grupo da equipe X” que é

só para pacientes da sua área. O trabalho, enfim, acaba se organizando de forma fragmentada.

Entretanto, algumas iniciativas para a produção de outro modo de organização vinham sendo

realizadas no período que abrange essa pesquisa: a instauração de reuniões gerais mensais; a

constituição de reuniões técnicas frequentes – entre equipes de enfermagem, medicina,

farmácia e NASF; a criação de comissões e grupos de trabalho deliberativos. Aos poucos,

acredito, com a permanência e a valorização de ações como essas, a UBS e seus trabalhadores

tendem a produzir modos de trabalho mais compartilhados e integrados.

Um elemento que puxa na contra mão desse tipo de cultura são os atravessamentos

burocráticos e administrativos. A cobrança por metas, por exemplo, se faz presente em todas

as atividades realizadas na UBS, inclusive nessa experiência de integração entre ensino e

serviço. Com a necessidade de fazer um número alto de atendimentos e visitas por mês, os

trabalhadores deixam de se envolver em grupos, reuniões e ações que possam comprometer o

alcance das metas. O fato de o serviço ser gerido por uma Organização Social coloca um peso

ainda maior na busca pelas metas: quem não atingir o número correrá o risco de ser mandado

embora. As “metas” da faculdade também são um atravessamento para a experiência, foi

comum ver alunos não podendo participar de alguma atividade por terem que estudar ou fazer

uma prova. A lógica bancária-administrativa da conquista de metas tem o efeito de converter

um trabalho de atenção à saúde, de relação entre equipes de saúde e usuários, de produção de

cuidado e participação social, em um simples e duro desafio pela obtenção de números. Pela

centralidade que é atribuída às metas pela Secretaria Municipal de Saúde e, portanto, pelas

Organizações Sociais, elas acabam tendo um papel protagonista e estruturador do próprio

serviço dificultando o reconhecimento e a legitimidade dos processos que privilegiam a

clínica ampliada e a clínica comum, ao contrário, podem fortalecer os modelos médico-

centrados e de queixa conduta. Felizmente, apesar dos atravessamentos, há ainda a

preservação de uma lógica de cuidado por parte de trabalhadores que faz resistir a ética

“susista”, encontrada na aposta que alguns fazem ao se envolver em atividades que tomam

tempo e que comprometem sua “produtividade”, porém afirmam um cuidado humanizado e

preconizado pelo SUS, como por exemplo, o acolhimento atencioso a uma pessoa ou a

condução de uma atividade coletiva ou evento de prevenção/promoção e saúde.

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2.2.2. Dispositivos

Um dos primeiros dispositivos utilizados no Pró-Saúde Mamoré foi a discussão de casos.

Desde a primeira chegada, enquanto uma parte da turma saía pelo território para conhecê-lo, a

outra ficava na UBS participando de uma reunião cujo tema principal era a história de Rosa e

as possibilidades de acompanhamento.

Rosa é uma mulher que desde cedo sofreu a rejeição da mãe: não havia sido uma gestação

planejada e seu surgimento gerou conflitos importantes na família. Rejeitada pela mãe, foi

criada pelos avós maternos em uma cidade pequena, em que sua fama e de sua mãe – que,

enquanto gestante, foi expulsa de casa pela família e trabalhou como garota de programa - não

era boa. Repetindo na vida situações de abandono e violência, hoje é mãe e mora em seu

apartamento com o marido. Permanece num cotidiano de violência doméstica e rejeição, junto

com um habito sintomático de utilizar periodicamente um número alto de medicação laxativa

para provocar a evacuação e iniciar um ritual diário: passa o dia se alimentando bem, quando

cai a noite toma uma dose alta de laxante e, de madrugada, evacua e toma um banho longo. É

na verdade este sintoma e seus reflexos – evacuação com sangramento, dores de estômago –

que fazem Rosa buscar o acompanhamento na UBS novamente. Nos anos anteriores já havia

procurado atendimento no posto de saúde, mas conta ter sido maltratada – uma vez por um

médico que sentiu a necessidade de dizer “o médico aqui sou eu ou você?” e outra por uma

enfermeira, que algum motivo qualquer disse “aqui não é clínica particular”. Os profissionais

mencionados não estão mais na UBS Mamoré, um trocou de emprego e a outra virou gerente

de uma UBS nas proximidades.

Tentando outra aproximação com a Unidade Básica, Rosa encontrou em seu novo médico,

Felipe, outra forma de atenção e cuidado. Discutíamos pela primeira vez seu caso em reunião

de equipe e os estudantes nos acompanhavam. Debruçamo-nos bastante sobre esse caso, um

tanto por ser complexo e outro tanto para que pudéssemos ser compreendidos pelos alunos: a

presença deles em nossa reunião nos mobilizou, inadvertidamente, a prestar mais atenção e a

ser mais elucidativos - um primeiro efeito desse dispositivo. Ao fim nos despedimos dos

estudantes e, minutos depois, em conversa de corredor com Felipe, a gerente e Simão, o

professor nos contou o quanto gostaram da reunião os alunos, acharam o caso interessante e

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se surpreenderam com a maneira de discuti-lo7 - produção de história, produção de narrativa,

produção de surpresa.

A história de Rosa retorna ao Pró-Saúde em um momento posterior da atividade que é a

escolha de casos para acompanhamento - a perspectiva inicial para o contato e a experiência

dos estudantes no cotidiano da UBS é, como apresentei nas notas iniciais, através do

acompanhamento de uma família. Parece ser assim que combinaram Felipe e professor Simão

nos últimos anos de aproximação entre a faculdade e o SUS. Provavelmente por ter se

mostrado uma experiência potente, tal modalidade de trabalho foi mantida.

Felipe se encarrega de deixar tudo pronto: conversa com os médicos e enfermeiros das outras

equipes e pede para que sugiram um caso de sua micro área para os estudantes do Pró-Saúde

acompanharem durante o semestre. Sobre essa escolha, percebi alguns critérios: o que corria

pelos corredores era que fossem escolhidos pelas equipes de saúde da família os casos que

fossem “interessantes”, isto é, que, na medida do possível, permitissem uma experiência de

intervenção e resolução mais simples. Os casos complexos ou “insolúveis” não eram

recomendados para essa seleção, principalmente porque no tempo curto de atuação dos

estudantes muito pouco poderia ser feito e também – e isso apenas poderia ser captado nas

entrelinhas – porque poderiam causar uma experiência de frustração aos jovens estudantes de

medicina. De início entranhei a cautela de evitar casos complexos para oferecer à turma do

programa. Mas me custou pouco tempo para compreender, por mais que com desconfiança,

tratar-se de uma preocupação de Felipe, principalmente, com a vivência dos estudantes no

campo da saúde pública. Este é um elemento interessante: aqui a experiência de formação se

vê atrelada ao sentir-se instigado, motivado, o que se entendeu em algum momento ser

provocado com mais facilidade por aqueles casos de maior abertura para a intervenção e com

maior chance de transformação. Há certa preocupação de que a frustração marque

negativamente tal contato com esse campo da saúde pública e que os alunos nunca mais

voltem a olhar para ele8. É certo pensar que formação é afeto, mas é importante ter em mente

que se aprende com a tristeza tal qual com a alegria, e que seja qual for a experiência, não é

possível controlar previamente, apenas cuidar do que vai se apresentando.

7 Este caso, em particular, reúne uma série de associações simbólicas das quais a equipe faz uso para

compreender a situação e pensar o caminho terapêutico. É um caso que vem gerando curiosidade e interesse por

parte dos profissionais. Quanto à maneira de apresentá-lo, Simão destaca uma “forma teatral” na narração da

história dessa mulher que, segundo sua observação, serviu para prender a atenção dos estudantes. 8 Veremos, entretanto, que apesar da cautela os casos complexos apareceram da mesma maneira.

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Ao todo havia nove casos escolhidos. Em sua maioria as situações das famílias, apresentadas

por seus agentes comunitários e enfermeiros de referência, eram complexas, envolvendo

importantes agravantes sociais: moradia insalubre, renda baixa, ausência de apoio de outras

pessoas. Em sua apresentação eram ressaltadas as condições clínicas dos usuários/famílias e

relatada parte de sua história (passado, presente). Vale apontar a frequência com que “saúde

mental” foi citada na discussão sobre as famílias. Os estudantes se mantiveram atentos às

introduções e, nesse momento, não levantaram perguntas. Ao final dessa etapa o prontuário de

cada família foi deixado em uma mesa e os estudantes foram solicitados por professor Simão

a se organizarem em duplas/trios e escolherem a família que gostariam de visitar. O saldo

final foi de sete duplas e um trio, totalizando oito grupos de alunos, cada um já com seu

prontuário de interesse na mão, fazendo perguntas aos agentes comunitários e enfermeiros que

apresentaram a respectiva família. Um prontuário sobrou9.

A história de Rosa era um dos casos apresentados e logo foi escolhida pelo único trio da

experiência: três meninas que se interessavam pelo tema da violência doméstica e que, na

faculdade, começavam a compor um grupo de pesquisa sobre a questão inscrita no campo da

medicina. A segunda etapa após a escolha dos casos era, no próximo dia de Pró-Saúde, a

visita domiciliar. Por ter um vinculo bom com Rosa, escolho acompanhar as meninas nesse

processo, junto com a agente comunitária. A escolha de Rosa como um dos casos para receber

estudantes repercutiu negativamente na UBS: alguns colegas achavam que toda essa

“atenção” para Rosa só pioraria sua maneira de ser, de se relacionar. Acreditavam ser muita

gente se aproximando dela, indo a sua casa, Rosa era colocado no lugar da famosa “histérica

que quer atenção” por aqueles que não sabiam o que fazer com sua história e dor. Resolvemos

manter a escolha por discordar dessa leitura, entendíamos que à Rosa faria bem gente

interessada por suas memórias e, além disso, ela mesma topou com alegria fazer parte da

experiência de integração ensino e serviço. Não nos arrependemos com o desfecho.

Foram realizadas, aproximadamente, três ou quatro visitas à Rosa. A primeira foi o cartão de

visita, todos na sala de Rosa ouvindo sua história desde o começo, as três alunas olhavam para

a mulher sem piscar e sem falar nada. Saíram boquiabertas de sua casa e diziam estar

espantadas com o tanto de histórias ruins que Rosa vivenciou. Foi um primeiro encontro que

produziu espanto, intensidade, dúvidas nas meninas. Com o passar de quinze dias, no entanto,

algumas coisas ressoaram em suas reflexões: contaram-me que tiveram algumas discussões ao

9 De certo um dos casos mais difíceis apresentados. Reúne como elementos: duas mulheres idosas, uma casa em

condições estruturais e de higiene prejudicada, grande número de animais domésticos, conflitos familiares. É

uma situação bastante conhecida por todas as equipes da UBS e há anos acompanhada.

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longo das semanas e que pensaram a respeito do caso, trocaram algumas ideias com a

professora que as orientam no projeto de iniciação científica sobre violência doméstica.

Entendem que a situação que a moça está envolvida é muito difícil e angustiante para quem se

propõe a estar junto e intervir. Dizem também que têm algumas perguntas para fazer a ela e

me questionam: a gente pode falar com ela? Dar nossa opinião, fazer perguntas? É claro! – eu

respondi. A partir daí tivemos um diferente contato com Rosa: mais uma vez apresentando

histórias de violência e sofrimento, Rosa captava a nossa atenção. Com alguns bons minutos

de conversa as alunas começam a fazer algumas pontuações, e perguntar o porquê ela tinha

feito isso, o que levou ela a pensar aquilo, etc. Acompanhando há alguns meses esta mulher e

sua família, entendi como pertinentes as intervenções das meninas, principalmente pelo seu

efeito: colocaram a moça para pensar, fizeram-na diminuir o ritmo de sua narrativa e

deslocaram-na para outros caminhos. O impacto do primeiro encontro pôde ser base para a

busca das alunas por possibilidades, por discussões entre elas e com outros, por

direcionamentos. Na terceira visita, permaneceram ativas na condução da conversa e

posteriormente trocavam ideias com a professora que as acompanhava nas pesquisas sobre

violência doméstica. Pensavam modos de promoção de autonomia: Rosa havia feito um curso

de manicure, buscavam uma forma de ela conseguir começar a exercer a profissão e, aos

poucos, ter seu próprio dinheiro e condições de sair de casa. Aprendiam SUS com Rosa e com

as pessoas que estavam ali para ajudá-las e acompanhá-las nesse processo.

Com o passar das quinzenas, enfim, foi se constituindo uma relação entre as alunas e Rosa.

Apresentavam elementos de sua história nas rodas de conversa que fechavam as visitas,

buscavam outras referências para conversar sobre o caso e as possibilidades de intervenção e,

principalmente, falavam de Rosa com muito carinho e cuidado. Concomitantemente às visitas

do Pró-Saúde, mantinha meus atendimentos individuais com Rosa e a equipe de saúde

mantinha o investimento em sua família. De maneira interessante o caso construído de Rosa

foi se desenvolvendo e modificando com o passar das semanas, cada trecho da intervenção era

importante para ela, que sempre foi a sobra, o resto. No último contato das meninas com Rosa

eu não estava, acabei indo acompanhar outro grupo que verificou a necessidade de um

acompanhamento de psicologia para o rapaz que visitavam, mas ouvi dizer depois que foi

uma despedida emocionante e que as estudantes ganharam presentes – colar, brinco, anel. Um

elemento foi muito simbólico para a experiência de formação e para o caso de Rosa: no

evento de fechamento do Pró-Saúde Mamoré me junto com o trio que acompanhei à casa de

Rosa e conto a elas que em meu último atendimento com nossa anfitriã, por volta do mês de

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Junho, ela me contou que parou de tomar o laxante, ao invés disso, comia um iogurte de

ameixa. Esse dado, no momento do atendimento, me deixou feliz. Apesar de não significar

que Rosa teve todas suas questões resolvidas, tampouco que seu sofrimento e necessidade de

acompanhamento haviam cessado, este elemento simboliza uma conquista importante do

ponto de vista clínico, resultado do trabalho e da presença próxima de toda a equipe, inclusive

das alunas, de Rosa em seus momentos difíceis. Tanto é que a notícia produziu sorrisos nas

meninas e, em mim, um sentimento de satisfação e alívio. Puderam se despedir da experiência

com uma notícia interessante!

Muitas das conversas sobre o caso de Rosa se deram na rua: enquanto voltávamos da casa

dela, enquanto aguardávamos a chegada da agente comunitária na frente da UBS, quando

andávamos até o museu de saúde pública para nos reunirmos, etc. A rua, o bairro, o território,

compõe importante parte da experiência de formação do Pró-Saúde, o trabalho no SUS, neste

caso, não se dá apenas na casa da usuária, mas em todo o caminho.

Se metade da turma, no primeiro dia de vinda dos estudantes à UBS, ficou na reunião para a

discussão de Rosa, a outra metade saiu para bater perna com o agente comunitário Rubens –

boliviano muito apropriado de seu território e bastante importante na comunidade boliviana

do bairro – para conhecer um pouco do trabalho do agente. Rubens os levou para as vielas,

para as oficinas de costura, explicou o fluxo migratório da população boliviana, isso tudo ao

mesmo tempo em que cumprimentava seus referenciados na calçada e que os lembrava da

data da próxima consulta. Esse foi um aspecto que chamou a atenção dos estudantes: a relação

do agente comunitário com as pessoas, em plena rua.

Há também dois importantes cenários nesse Pró-Saúde 1) os bancos de madeira em frente à

UBS; 2) um Museu. O primeiro foi, por todo o processo, o ponto de encontro entre os

estudantes, deles com os trabalhadores, com os professores, etc. Enquanto alguns chegavam

de Uber, de carro, de metrô, os já chegados ficavam ali sentados conversando sobre a vida,

sobre o que esperavam daquele dia, jogando papo fora. Não havia alternativa, dentro da UBS

não dava para esperar - como brincávamos, tratava-se de uma kitnet básica de saúde. Ocorre

que esta UBS toma corpo em uma casa, na parte da frente temos uma pequena área com três

bancos para as pessoas aguardarem e a farmácia da unidade. Existem duas entradas: uma leva

à parte das vacinas e a outra à recepção e às salas de atendimento. São cinco salas de

atendimentos (para cinco médicos), uma sala de curativos, uma sala de acolhimento, uma sala

pequena de reunião (onde costumam ficarem os agentes comunitários fazendo seus trabalhos

administrativos e onde ocorrem as reuniões de todas as equipes) e a sala do administrativo,

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todas ligadas a um corredor, que é também a sala de espera da UBS. Ao fundo temos alguns

banheiros e uma copa, para café da manhã, almoço, etc. Isso nos leva para o segundo cenário,

o Museu que fica na calçada da frente da UBS, basta atravessar a rua, e que nos serviu de

quartel general para nossas rodas de conversa ao fechamento de cada encontro e que serve aos

trabalhadores da UBS, de maneira geral, como espaço emprestado10

.

Os caminhos tinham um protagonismo, não eram espaços vazios, eram espaços de reflexão,

de movimento. Em meus registros no diário de campo, por exemplo, aparecem muitas vezes:

O caminho foi curto, o domicílio que

fomos visitar era próximo da UBS em uns

sete minutos. Chegando ao prédio

cumprimentamos o porteiro, porventura o

marido da usuária que visitávamos, e

subimos todos ao oitavo andar em um

elevador apertadinho.

No caminho conversamos sobre a visita:

dessa vez as alunas estavam inquietas.

Perguntei o que acharam e contaram não

conseguir entender o porquê a mulher

não sai de casa, não sai dessa situação,

“parece que ela quer manter isso

acontecendo”. Pontuei que na primeira

visita haviam saído muito mobilizadas, me

disseram estar impressionadas, chocadas.

Já nessa, pontuei que parecia tê-las

deixadas angustiadas, impacientes.

Concordaram que sim e lembraram-se do

momento da entrada do marido,

comentaram que foi um momento confuso

e se sentiram aflitas.

Tica, estava de férias neste dia, portanto

nos acompanhou outra agente da mesma

equipe, a Marina, que logo me disse

“você sabe o caminho? Eu não peguei o

número da casa, mas sei mais ou menos”,

respondi que não se preocupasse,

encontraríamos o prédio com certeza.

A visita foi como as outras, subimos ao

seu andar de moradia, os cachorros

latiram para nós até perceberem que não

estávamos lá por mal, nos sentamos no

sofá e começamos a conversar.

Caminhamos bastante, a casa dessa

família é bem longe do posto de saúde!

No caminho tento ir apontando e falando

sobre os locais de maior importância da

região – a Rua Prates, onde ficam uma

série de serviços da rede, a Praça da

Armênia, local de importante intervenção

para o Consultório na Rua do território,

10

Acabamos tendo a necessidade de formar algumas parcerias com instituições da região para que possamos

usar seu espaço para grupos, reuniões, eventos, etc. Costuma funcionar bem, o museu, principalmente, é parceiro

de longa data.

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Em direção ao museu as alunas diziam

suas impressões: entendem, com algumas

dúvidas e estranhamentos, que apesar de

a situação de sofrimento ainda ser

intensa, muita coisa vem mudando para

Rosa.

etc. Conversamos também sobre como

estavam na faculdade, sobre as provas, as

disciplinas mais difíceis. Chegando a

nosso destino tocamos a campainha e

aguardamos, logo fomos recebidos por

uma mulher que nos cumprimentou.

A rua compõe a experiência de visita domiciliar, o segundo dispositivo que destaco no Pró-

Saúde Mamoré - acompanhar um caso não no consultório, mas na própria casa do usuário,

perto de seu cachorro, do lado de suas fotos, sentado em seu sofá. E percebe-se um impacto

naqueles estudantes que, da primeira vez, não conseguiram fazer a visita por conta de algum

imprevisto: ficaram no Museu de Saúde Pública, olhando os prontuários, na roda de conversa

mal falaram. Aqueles que foram recebidos em uma casa certamente tinham mais o que dizer

de seu dia. Contavam-nos sobre “o caso” que visitaram, quais as questões clínicas, o histórico

de tratamento, como estava a pressão. Era necessário, no entanto, perguntar sobre a casa, a

maneira como foram recebidos pela família, as sensações e estranhamentos para que

dissessem do próprio processo de visita - este tipo de elemento não aparecia naturalmente. A

lógica médica da doença tem uma presença intensa! É necessário puxar, quase que fazer

nascerem, a atenção e a sensibilidade aos outros elementos.

Em determinado momento, já no final do ciclo de visitas domiciliares do Pró-Saúde pergunto

a todos o que acharam de fazer visitas às pessoas, entrar em suas casas. Se pensavam sobre

isso antes de fazê-las, se pensaram depois. Como resposta, de início, recebo um silêncio. Cri

cri! Percebi algumas pessoas com um sorriso, olho para elas e num balanço de cabeça as

convido a falar. Deu certo! Uma aluna diz que foi uma experiência bem diferente, que ficou

pensando na casa e na pessoa que conheceu durante as semanas. Falou sobre a visita para a

mãe, para o pai. Outra aluna disse ter gostado de fazer as visitas e que queria fazer uma

última, para se despedir: “pensei que iriamos hoje ainda, queria me despedir por ser tão bem

recebida, fiquei de voltar lá para isso!”. Em sua fala citou o compromisso que se cria com a

pessoa quando se entra em sua casa, se produz outra relação de atenção e cuidado. Essa

análise é muito precisa: se a principal ferramenta do trabalhador de saúde é a relação, ir à casa

de alguém não é qualquer coisa. É um momento intenso, caloroso, pode se desdobrar em uma

experiência invasiva ou acolhedora, a depender de como se deixa operar essa tecnologia leve.

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Franco e Merhy (2013) observam que além das tecnologias mais estruturadas utilizadas nos

serviços de saúde – conhecimento técnico, instrumentos, insumos –, a relação, isto é, as

formas de agir entre trabalhadores e usuários, têm um lugar de importância e protagonismo

nos processos de produção de saúde. Esse elemento relacional, considerado enquanto

tecnologia da produção de cuidado, o autor classifica enquanto tecnologias leves, ao lado das

tecnologias duras, da ordem dos procedimentos e instrumentos mais protocolares das

instituições de saúde.

Aproveitei, na ocasião da discussão sobre visitas domiciliares, para perguntar a Felipe como

foi sua primeira visita/ida ao campo, ele relata que estava no segundo ano da faculdade de

medicina. Lembramo-nos todos que Felipe se formou na mesma faculdade em que agora os

estudantes se graduavam. Uma de suas atividades durante a formação foi vivenciar o

cotidiano de trabalho em um Centro de Saúde-Escola. Em um dos dias foi com a equipe para

um conjunto habitacional que ficava no território administrativo do centro escola para visitar e

ações de saúde. Chegou neste local longe, desconfortável, com mais um monte de gente junto.

Sua visita foi um fracasso, não conseguiram fazer o que planejava e haviam perdido o tempo.

Felipe nos contou que dessa experiência, avaliando em perspectiva, não pôde conhecer nada

sobre a atenção básica e que dali ficou com a ideia de que esse era um trabalho que ele não

queria fazer11

.

Em seguida, nos contou Simão de suas primeiras experiências. No seu caso, não de visita

domiciliar, mas de contato com um paciente e sua família. Em sua formação passou pela

situação de ser o médico responsável pelo caso de um paciente que estava em um hospital – é

importante lembrar que Simão se formou em um período em o ensino técnico tinha sua

prevalência nos hospitais escola. Disse que naquela altura não sabia examinar nada e tinha

que fazer um estudo social a partir de poucos dados. A situação era a seguinte: caso fosse

necessário, por questão de uma complexidade, precisaria se reunir com o paciente e sua

família para conversar sobre a situação da saúde. Simão conta que tinha pavor de ter que fazer

isso, se sentia “como um elefante em loja de cristal, qualquer coisa que fizesse poderia dar

merda”. No fim, entretanto, não foi preciso passar por essa etapa! Simão conta também sobre

outra experiência, quando precisou conversar com um importante médico sobre um caso que

acompanhava enquanto estudante. O médico tinha a cara fechada de poucos amigos, era muito

11

Lembram-se daquela questão da escolha dos casos “interessantes” e sua relação com a possibilidade de

frustração dos alunos? Aqui talvez esteja uma peça interessante, na história de Felipe, de como se formulou essa

preocupação.

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conhecido, teve que o encontrar na beira do leito do paciente e, na hora de discutir o caso...

Foi bem tratado!

As histórias de Felipe e Simão estimularam os estudantes e falar um pouco mais. Tiveram

alunos que disseram estar nervosos de início, mas que logo após conhecer quem os recebia se

acalmaram; outros falaram de ter medo, anteriormente, de se formar um silêncio

constrangedor na casa da pessoa; teve uma que falou de uma expectativa que tinha de “salvar”

o paciente. De modo geral, parece que a maioria estava nervosa de início, mas logo puderam

se sentir confortáveis. Cabe destacar que, em nossa reflexão, pensamos que contribuía para

esta tranquilidade a presença de trabalhadores da equipe junto com os estudantes. A presença,

principalmente dos agentes comunitários, passava segurança aos estudantes que,

acompanhados por alguém com tanto vínculo e conhecimento sobre as pessoas, contavam

com uma baita parceria. Presenteia-nos Simão com uma nova história. Para apresentar o efeito

que a visita domiciliar tem, resolveu contar de um caso que acompanhou na zona Norte, de

um rapaz que estava doente com tuberculose. O tratamento para essa doença é bem longo e

desgastante, é necessária uma disciplina importante. A equipe de saúde ia à sua casa todas as

semanas para checar como estava, convida-lo para o tratamento. Era um paciente que nunca

vinha ao posto de saúde, até que veio! Apareceu um dia dizendo que, se tanta gente ia visitá-

lo todos os dias, é porque alguma importância ele tinha para alguém, assim viu motivo para se

tratar, até que curou da tuberculose. Enfim, finalizamos a conversa sobre as visitas

domiciliares com uma fala interessante de um dos alunos. Disse que, apesar das visitas que

fez, imagina que a pessoa que o recebeu não deve saber sequer o seu nome. Do que ele está

falando? Fico com a impressão de que está falando de não ter feito a diferença. Sobre isso

falamos pouco em seguida, fechando com uma fala de Felipe: “as vezes, se frustrar também é

bom”.

Em todos os dias do Pró-Saúde Mamoré utilizávamos uma roda de conversa para falar sobre

as vivências, planejar os próximos encontros, discutir assuntos pertinentes e etc. Esse terceiro

dispositivo, junto com as reflexões e conversas feitas nos caminhos, é a oportunidade de

atribuir sentido a algumas coisas, de avaliar nosso processo, de identificar interesses e

inseguranças, de trocar um com o outro, de pensar.

Pudemos falar sobre as pessoas visitadas, suas casas, o caminho, o calor. Sobre o que

sentiram estando lá, quais as principais questões de saúde daquela usuária, do bolinho de

bacalhau da senhora portuguesa, das palhas italianas que foram prometidas em visita pela

mulher que os recebia. Sobre o carinho com que foram recebidos, a necessidade de voltar

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mais uma vez para se despedir. Sobre a impressão de não ter feito a diferença, o medo que

tinha de haver um silêncio constrangedor. Foi o espaço para aprofundarmos alguns elementos

como alguma situação intensa de sofrimento de um usuário, o estranhamento com o modo de

organização de uma casa, o Sistema Único de Saúde e o trabalho em equipe multidisciplinar.

Aconteceu, por exemplo, de surgir com frequência “saúde mental” nas falas de cada

estudante. Para o projeto de intervenção final, inclusive, pleiteou-se um evento que tivesse

como foco a saúde mental. A partir desse interesse percebemos que era necessário falar mais

sobre o assunto e pensar maneiras de abordá-lo. Dessa forma, marcamos uma roda só para

isso: foi proposto que cada um escrevesse em um pedaço de papel, em uma frase, o que era

saúde mental, como se cuidar neste sentido, etc. Que escrevessem como que um slogan, de

maneira sucinta. Demoraram a escrever. Alguns rindo e outros sérios tentavam pensar em

como fazê-lo, pareciam inseguros. Minha presença como um “profissional da saúde mental,

principalmente” gerava comentários como “Augusto, nos diga como podemos escrever”, “não

sei se está certo, hein” olhando para mim. Tinha gente, inclusive, tentando espiar o meu

papel! Depois de alguns minutos, uns quinze, a maioria já tinha escrito e demos início à

conversa.

Em síntese, os conteúdos escritos falavam sobre: a questão da normalidade como

determinante da saúde mental – a norma geral é o que pauta se alguém tem alguma questão de

saúde mental ou não; os múltiplos fatores que influenciam na saúde mental, como o estresse e

a influência das condições biológicas; o conceito de saúde enquanto bem estar psíquico, físico

e mental; a necessidade de conhecer a “doença” para poder melhor trata-la; a impossibilidade

de ser cem por cento feliz; ter tempo para si próprio como fator que influência positivamente

na saúde mental; etc. Conforme as pessoas mostravam suas frases, conversávamos um pouco

sobre o que significavam e o que nos dava para pensar sobre saúde mental. A exposição dos

alunos era bastante tímida, apenas liam suas frases e contavam um pouco do porque a

escreveram, enquanto a das agentes comunitária tomava mais tempo, exploravam suas frases

com mais profundidade. A impressão é que a concepção dos estudantes está em maior

sintonia com o senso comum enquanto a das agentes traz elementos mais particulares e nos

convida a olhar a questão a partir de diferentes pontos, por mais que escorreguem também

para o senso comum volta e meia. Em certo momento, no final, uma das agentes me pergunta

sobre alguns usuários que a gente atende na UBS, pergunta se eles algum dia, com tratamento,

voltariam a “ser normais”. Conversamos sobre isso na roda e pudemos tentar construir uma

resposta a partir de todas as frases e discussões que tínhamos realizados ali até então.

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O espaço de conversa nos serve também para planejamentos futuros, nele pensávamos sobre

nossos próximos compromissos, começávamos a elaborar o que poderia ser o evento de

conclusão. Sobre este último aspecto, com a contribuição de todos, surgiram diversas ideias:

uma feira que contasse com diversidade cultural (comidas, panos, danças) e saúde mental

(sociodrama, roda de conversa). Cogitaram também haver uma estação de medição de pressão

e a participação de projetos de economia solidária. Todas as ideias muito inspiradas em

aspectos característicos do próprio bairro como sua pluralidade de povos, comidas, culturas. A

perspectiva de abordar saúde mental talvez tenha sido inspirada pela presença frequente do

tema em nossas discussões. Já a estação de medição de pressão é uma ideia mais simples e

careta para médicos em formação, certamente estaria presente. Para nos inspirar, professor

Simão resgatou algumas das intervenções dos anos anteriores: uma cartilha para gestantes; um

evento de integração entre trabalhadores da saúde e usuários do serviço; um campeonato de

futebol; etc. Aspectos que precisavam de mais tempo para a organização, seriam trabalhados

em outro momento que os estudantes tinham para reflexão, a sala de aula.

2.2.3. Encerramento da atividade

O evento de conclusão de nossa experiência de formação aconteceu em um sábado ensolarado

mais ou menos das 11h às 16h. Foi realizado no Museu, cenário principal do nosso diário.

Aquele evento que estava sendo construído – com apresentações culturais das diferentes

nacionalidades, tendas com venda de artesanatos e comidas, intervenções grupais sobre saúde

mental – não aconteceu nem um pouco. Disseram-me que os estudantes, com a correria das

provas e do final do semestre, se demoraram em articular os convites e em promover o

evento, no fim, nenhum expositor foi convidado a participar da feira. O que pudemos

organizar de última hora foi um tradicional mutirão de medição de glicemia, pressão arterial e

orientações de saúde.

Apesar dessa mudança inesperada, o clima no sábado não era de preocupação e ansiedade.

Estavam todos sorridentes, conversando, movendo algumas cadeiras e mesas para montar a

estrutura do mutirão, aproveitando o sol. Chego e comprimento Felipe, Simão e alguns dos

meninos e meninas que já chegaram. Outros chegaram depois e alguns não puderam vir.

O horário de início do evento era às 11h, assim foi divulgado para os moradores do bairro

pelas agentes comunitárias da equipe verde. No entanto, com tudo já pronto e com os portões

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dos museus já abertos, ainda às 11h30 não tinha aparecido ninguém. Converso com uma

dupla e proponho de irmos à calçada para convidar as pessoas que estiverem passando. Com

bastante energia, literalmente12

, todos que passavam pela frente do museu era convidado a

medir a pressão e a glicemia. A dupla se apresentava como alunos de medicina e contavam

estar realizando avaliações gratuitas como parte de um projeto, durariam uns 10 minutos.

Muito espertos na divulgação, mostrando inclusive o crachá da faculdade, em pouco menos de

15 minutos de divulgação as pessoas começavam a entrar para fazer a checagem. Empolgados

com o sucesso, continuaram firmes e em pouco tempo o museu estava cheio, com umas

quatro pessoas sendo atendidas e umas dez aguardando. As crianças que acompanhavam a

mãe ou o pai ou a vó ou o tio, tinham um cantinho próprio: estendemos um tapume no chão e

esparramos lápis de cor, papel em branco e massinha.

Um pouco desorganizado no início, mas rapidamente se construiu, quase que

automaticamente, um fluxo de atendimento. 1) as pessoas chegavam, eram abordadas por um

aluno que perguntava o nome e alguns dados principais; 2) as alunas responsáveis pela

medição de pressão chamavam a pessoa para sentar na mesa com elas, cumprimentavam,

ajeitavam o equipamento no braço e faziam a medição. No processo, conversavam com os

pacientes; 3) em seguida, a pessoa sentava na mesa ao lado, onde estavam Felipe e outras

alunas, e assim mediam a glicemia. Após a medição, conversavam sobre os cuidados em

saúde, se conhecia o posto de saúde, como poderia acessar e etc. Inclusive, a primeira pessoa

atendida foi uma senhora, estava bem da pressão e da glicemia, mas dizia de dores nas costas.

Conversando com Felipe e com as alunas, descobrimos que ela mora na área de referência da

própria equipe verde e que seu médico é o próprio Felipe. Mais ainda, a senhora disse que

havia ouvido falar no tal de Felipe, médico do posto, muito bem recomendado pelas suas

amigas. Imagina qual não foi a surpresa quando a ficha caiu e ela percebeu que esse Felipe era

aquele e que, a partir de agora, sabia como acessar a UBS e marcar consulta com seu médico.

Por um tempo seguiu assim, por conta própria os estudantes se revezavam nas tarefas. Alguns

lidavam melhor que os outros em algumas atividades, mas havia abertura e tranquilidade para

solicitar ajuda e orientação. Um momento interessante foi quando os pais de uma das alunas

vieram prestigiar o evento e, portanto, medir a pressão e o nível de glicose. A própria filha,

com bastante concentração, quem realizou os procedimentos nos pais que, ao completar as

avaliações, aparentavam estar contentes, com sorrisos e olhares alegres, com o momento da

filha. Por sorte a pressão e os níveis de glicose dos dois estavam bons.

12

Corriam de uma calçada a outra, atravessavam rua, entravam em loja.

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Assim correu a atividade durante o dia, se encerrando apenas quando os recursos se esgotaram

– para a avaliação da glicose, é necessária uma agulha descartável específica e filipetas.

Foram aproximadamente quarenta avaliações durante o evento, a maioria com resultados bons

e alguns com resultado que apontava para a necessidade de prosseguir nas avaliações e

acompanhamentos. De uma forma ou de outra, todos eram orientados a buscar a UBS e

recebiam informações que as ajudavam no acesso à saúde pública, além de um bom

atendimento.

Chegada a hora do encerramento, começamos a organizar as coisas e arrumar a bagunça que

fizemos na área externa do museu. Enquanto fazíamos isso, surgiu a ideia de juntos irmos ver

a exposição que estava em cartaz sobre as obras de arte feitas por pacientes internados no

Hospital Psiquiátrico do Juquery. Infelizmente eu não pude ficar com eles nessa parte, era

aniversário da minha mãe e achava que por bem era legal eu ir para a casa dela parabenizá-la

e ficar junto. Me despedi de Felipe e de Simão com um “até logo”. Aos estudantes, sem saber

o que a vida nos reserva de encontros e desencontros, desejei que fossem felizes e que

tivessem muita força em seus estudos e trabalho.

***

Para caminharmos em direção à conclusão deste capítulo, gostaria de destacar três elementos

para discussão que considero pertinentes ao que vimos sobre o Pró-Saúde Mamoré e a

literatura apresentada no primeiro capítulo, acerca das políticas e perspectivas de formação no

Sistema Único de Saúde. Para desenvolvê-los, irei contar também com algumas falas de

Simão e de Felipe.

O primeiro elemento diz respeito ao processo de formação em saúde que tem a atenção básica

como campo principal de aprendizado e ação conjunta. É possível observar no período de

ditadura militar brasileira e de um sistema de saúde não universal, o protagonismo da atenção

primária em saúde na discussão conceitual e estrutural dos movimentos políticos de

redemocratização da saúde e do Brasil. Diversos novos conceitos, perspectivas e práticas em

saúde – promoção e prevenção em saúde, o sanitarismo, a participação social, etc. -

enxergavam na atenção básica, isto é, em lócus junto ao território e população para qual se

deve direcionar as ações de cuidado, o campo mais potente de desenvolvimento e efetivação.

Neste sentido, e já no debate sobre formação, a disputa hospital-escola versus atenção básica

como campo de educação de profissionais - que responde, como vimos, a diversos interesses

políticos e corporativos – avança a favor da atenção básica com o advento do Sistema Único

de Saúde e dos diversos coletivos e movimentos sociais em prol das experiências de

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integração entre ensino, serviço e comunidade. A criação, em 2005, do Pró-Saúde como

programa nacional marca positivamente essa história e traz avanços, como conta Simão:

[...] o ministério faz a proposta dos Pró-Saúde - e é uma experiência que houve uma

adesão interessante por parte das faculdades - que era de ampliar a experiência na

área de prática, né, [inicialmente] da medicina, mas depois de todas as áreas de

formação [...] da saúde, para além do espaço hospitalar. [...] Era tradicional que os

hospitais escola tivessem todos os âmbitos da assistência agregados no espaço do

hospital. Se não era no próprio hospital era na casinha do lado. Então tinha o pré-

natal, que não precisaria ser num hospital terciário, e ele era desenvolvido na área de

ginecologia lá num “dia xis”, ou em uma casinha que fazia o pré-natal do lado [do

hospital], enfim, você tinha uma espécie de “mini atenção básica” agregada ao

hospital e isso foi... o ministério de saúde deixou de financiar este tipo de procedimento

feito nos hospitais escola, com o intuito de que se desse exatamente no âmbito da

atenção primária, por todas as razões: por que era mais lógico, era melhor para as

pessoas [...] e também cria a necessidade de que os alunos saiam do hospital. Então o

Pró-Saúde tem, em suma, essa ideia, né. Mas junto ele traz outras questões

educacionais interessantes que é você praticar as atividades de ensino por meio de

técnicas mais críticas, que propiciam a crítica, a problematização, e tinha em si esta

proposta, e trazia a ideia também de que para os projetos das escolas com o ministério

serem financiados tinham que pressupor a integração de departamentos da faculdade

no exercício dessas práticas, então a ideia de que não só você faria o estágio na

atenção primária, mas que toda a faculdade, em tese, a universidade se movimentaria

no sentido de criar e participar daquela atividade de ensino [...].

Afirmar a atenção básica como campo central de formação não se trata apenas de escolher o

local em que se forma, mas sim a partir de qual lógica a formação se orientará. Tanto é que

não basta que os alunos estejam em um serviço de atenção básica, como ilustra Felipe

contando sua própria experiência com o Pró-Saúde:

[...] o Pró-Saúde, não foi uma boa experiência. Por um simples motivo: porque não era

dinâmico, você não via exatamente como funcionava a atenção básica, você não

conversava sobre isso, sobre princípios do SUS, sobre encaminhamentos, sobre, sei lá,

diretrizes, coisas assim, ou até sobre o próprio dia a dia da UBS mesmo. Basicamente a

gente ia para lá e ficava em áreas isoladas da UBS vendo a coisa acontecer, mas você

nunca via tudo ao mesmo tempo, então a minha experiência foi a de ficar na sala de

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vacina, por duas semanas, vendo vacinas. Foi isso. Então na minha formação de

médico isso acrescentou precisamente nada, então... tudo bem, depois a gente até fez

algumas saídas para conhecer o território e tal mas, sinceramente, não foi nada de

discutir casos, nada de discutir os fluxos da atenção básica, nada de entender como

uma UBS se articula com o hospital, com o AMA, eu estava vindo de um hospital

grande, eu queria saber como essa UBS se relacionava com o hospital onde eu estava,

e eu não sabia, entendeu.

Estar na atenção básica torna necessário que realmente se possa conhecer a atenção básica:

sua organização, a posição que ocupa no SUS, sua lógica de análise e intervenção em saúde,

sua composição com os outros serviços da rede assistencial. Essa aproximação contribui,

inclusive, com a possibilidade de desconstruir sentidos de trabalho e saúde que são

hegemônicos, como aponta Felipe:

[...] eu acho que é uma boa oportunidade de tentar passar para esses médicos em

desenvolvimento pontos de vista que eu acho que são importantes principalmente para

quebrar alguns dogmas, alguns paradigmas ligados à saúde pública, à atenção básica,

à UBS [...]. Por exemplo, a ideia de que a UBS é um lugar sem importância, que a UBS

é o lugar onde o médico não faz nada, ou que o médico não contribui para a saúde da

pessoa, o próprio conceito de “postinho” já é depreciativo, e isso é uma coisa que nós

mesmos acabamos repetindo e não nos damos conta muitas vezes, né, então quebrar

esses paradigmas, essas ideias super enraizadas de que as coisas da atenção básica

não são importantes. Porque, quando você estuda em um hospital grande, você acaba

tendo apenas a visão do maior nível de complexidade... transplante, cirurgia,

internações, pesquisa, e coisa assim, mas você não vê onde começa tudo. Que a porta

de entrada, onde fica? Ás vezes é na UBS. [...] Então eu acabo defendendo a bandeira

da atenção básica no Pró-Saúde, e eu acho que isso serve para formar melhor ainda os

alunos que no futuro vão ser médicos, eu sempre falo isso para eles, se você vai ser um

cirurgião que vai fazer transplante de fígado não sei onde... no Einstein, é importante

você saber que tudo começou na UBS, saber a importância, saber o que se faz aqui,

então eu acho que isso é uma ótima oportunidade para começar a mudar essas coisas.

Enfim, ter a atenção básica como campo de formação, garantido e fomentado por programas

nacionais ou iniciativas regionais, possibilita a vivência de outras composições no Sistema

Único de Saúde, mostrando-se um potente dispositivo de ressignificação da saúde pública e

das práticas em saúde.

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O segundo elemento que gostaria de destacar é a multiplicidade e a coletividade como

característica dessa experiência integração ensino-serviço. Como vimos no Pró-Saúde

Mamoré o caminho traçado inicialmente para os estudantes envolve diversas frentes de

vivência do trabalho: os alunos têm a chance de participar de reunião de equipe, de fazer

visitas domiciliares, passeios pelo território, conhecer o funcionamento de cada setor da UBS,

organizar um evento de promoção de saúde, etc. Esta pluralidade se expressa também na

quantidade de pessoas com a qual acabam sendo levados a se relacionar durante a atividade:

entre eles mesmos, que são quinze; com os trabalhadores da UBS – médicos, enfermeiros,

agentes comunitários, psicólogo, gerente; com os usuários – os que visitam, suas famílias, os

que recebem para atendimento no evento final. Além disso, a cada encontro constitui-se um

espaço de reflexão, coletividade e acolhimento por meio da roda de conversa, para cuidar das

afecções do percurso – a este momento podemos associar a perspectiva elencada por Passos e

Carvalho (2015) de tríplice inclusão que, lembremos, consiste em um método de construção e

manutenção da experiência de formação que tem como premissa a consideração de: todos os

atores (usuários, trabalhadores e gestão); os analisadores (perturbações, marcas); e o coletivo

que se produz na relação de encontro entre eles; no processo de formação. A sustentação de

uma atividade que se propõe ampla abre margem para diferentes experimentações e efeitos. E

diria que, ao invés de opor esse modelo de experiência com o ensino na sala de aula, ou com o

plantão no hospital escola, é bastante rico a possibilidade de, durante o processo de

aprendizado, o estudante vivenciar todos esses cenários e encontros.

Para a realização de iniciativas como as que propõem o Pró-Saúde e o PET-Saúde, são

necessários rearranjos na universidade, no serviço, na gestão municipal e no próprio território

que, com a composição entre esses diversos atores, abrigará uma série de novas ações,

eventos, culturas, etc. Nesse sentido, são experiências atentas à perspectiva do Quadrilátero de

Formação (CECCIM, 2005) que vimos no capítulo um, comprometidas com transformações

nos caminhos de formação, no modelo de assistência, nos modos de gestão e participação

social, através da mobilização de redes e coletivos.

Essa multiplicidade de vivências e encontros possibilita aos sujeitos a emergência de novos

sentidos e novos caminhos de atuação, como aconteceu com Laís, aluna que participou de

uma das edições do Pró-Saúde Mamoré, e como nos conta Felipe:

[...] você se lembra da Laís? Não sei se você se lembra dela. [...] Ela participou da

festa junina. Bem... Ela foi uma aluna que falou que estava pensando em desistir da

medicina, por quê? Porque as experiências dela eram experiências de pronto socorro.

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Que é um lugar, como eu disse, que não tem muito contato com o paciente, não tem

muito seguimento longitudinal, você não revê o paciente, não vê se a sua conduta está

certa ou está errada, coisas assim, e ela estava querendo desistir da medicina no

primeiro ano da faculdade dela, no fim do primeiro ano, por causa disso, ela não

gostava do que ela estava vendo e, quando começou o Pró-Saúde, ela começou a ver

um outro lado da medicina, um lado mais humanizado, um lado mais de seguimento dos

pacientes, e ela veio me falar e falar para o Simão que ela tinha desistido da ideia de

abandonar a medicina porque ela viu que existia muito mais do que o pronto socorro.

Outro exemplo nesse caminho quem conta é Simão, sobre a participação das agentes

comunitárias no Pró-Saúde e a crescente compreensão que desenvolvem de seu papel de

educadoras.

[...] Por que era muito interessante, continua sendo muito interessante, fazer essa

reflexão: [...] o quanto elas [agentes comunitárias] contribuem para esses alunos

saírem daqui melhores como pessoas e como profissionais e eu tenho certeza disso

assim, só por ver, assim como você já viu, quando as carinhas, os olhinhos brilham com

umas experiências, aqueles olhares assim de total estupefação, de “não sabia que isso

acontecia”, “não sabia que o SUS era assim”, “não sabia que os profissionais tinham

tanto apego”, isso são coisas que a gente tem conseguido e elas se veem como... Já

deram depoimentos nesse sentido, de se ver como educadoras, acho isso interessante,

as falas delas, o jeito, a postura até, o compromisso e tal, apesar de às vezes ser uma

sobrecarga, de tirá-las da rotina, tudo isso é perceptível também e eu sei que acontece,

mas no fundo, a cada experiência, eu sinto que, tudo bem, foi uma sobrecarga e tirou

da rotina, mas elas se sentem tendo feito um trabalho interessante, tem interação,

muitas vezes os alunos fortalecem, dão um retorno positivo, eu acho que está se dando

um processo educativo e um crescimento, no fundo é um crescimento para todo o lado.

O próprio Felipe relata alguns dos impactos que fazer parte do Pró-Saúde Mamoré causaram

nele e em sua carreira:

Eu estou no Pró-Saúde desde o segundo semestre de 2015, até então o Pró-Saúde era

feito por um enfermeiro, que era o Edson, da UBS, e o Edson saiu e a gerente me

chamou para participar do Pró-Saúde quando virou o semestre, em Julho de 2015. Eu

tinha acabado de entrar no posto, eu tinha três meses de UBS e tinha meio ano de

formado, então... foi engraçado. Mas, sinceramente, eu considero que foi uma das

decisões mais acertadas que eu tomei, em participar, por quê? Por vários motivos:

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primeiro, porque pelo fato de eu ter me formado há pouco tempo eu me via muito no

papel de aluno ainda, então eu via aqueles alunos como se fossem meus colegas de

turma, embora houvesse uma diferença de idade, enfim, então desde sempre eu entendi

as limitações do processo de educação, as vantagens e desvantagens, a angústia dos

alunos nesse processo de aprendizado, como articular matérias diferentes com

importâncias diferentes, com pesos diferentes [...]. Segundo, eu sempre gostei da

educação, da educação continuada, ou de ensinar, [...] é algo que sempre me deu muito

prazer, então quando eu fui convidado para participar do Pró-Saúde eu achei que seria

uma coisa que iria me fazer muito bem, inclusive um alívio, um refresco daquela rotina

de consulta de quinze em quinze minutos, então era o momento de eu dar uma

paradinha, fazer alguma coisa que eu poderia ficar mais tranquilo e que eu gostava

também ao mesmo tempo. E terceiro porque o processo educativo ensina, ele ensina os

alunos, mas ensina o professor também, então quando eu ia conversar com os alunos

eu precisava dominar bem aquilo que eu ia conversar com eles [...] então quando eu

comecei o Pró-Saúde eu voltei a estudar, basicamente foi isso.

Portanto, experiência de integração ensino-serviço como o Pró-Saúde Mamoré, pelo seu

caráter múltiplo e coletivo, tornam possíveis uma série de composições, vivências,

experimentações e encontros, cada um deles com seu potencial educativo e formativo – capaz

de operar ressignificações, desvios de caminho, aprendizados.

Por fim, o último elemento que destaco, que atravessa os dois outros, é a própria potência da

integração ensino-serviço em servir de base para a produção de novos arranjos na formação

e na atuação de trabalhador de saúde. O costume de sedear atividades de ensino e o hábito de

conviver com estudantes e professores, para a UBS Mamoré e seus profissionais, foram

construídos aos poucos. Simão conta deste processo:

Você pega uma unidade que não tem essa experiência e faz o processo todo para

chegar lá, acho que isso é uma coisa diferente que eu acho que é o que ocorreu aqui no

[Mamoré]. Por várias razões: acho que ter uma gerente, uma gestora voltada para a

atividade faz toda a diferença. Ela... Por que de um jeito ou de outro está pensando

naquilo como um dos objetivos também daquela equipe, [...] enxerga momentos onde

você evidência a atividade, com aluno ou sem aluno, mas você vai articulando, criando

situações em que você quase que torna a atividade de ensino inerente, quer dizer, já faz

parte do trabalho daquelas equipes e acho que isso aconteceu aqui de uma maneira

bem interessante, a gerente tem um papel fundamental nisso por enxergar o potencial

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da atividade, né, ver que aquilo não é uma atividade paralela, complementar, acessória

e chata [...], bom, chata não é o termo correto, [...] é uma sobrecarga. É enxergar que

aquilo é essencial, sem ensino não acontece assistência de qualidade, não acontece

uma prática de saúde com qualidade, e aviltar que aquilo, portanto, tem que ser

pensado, tem que ser planejado, não é algo que aconteça de forma espontânea também.

De certa maneira, nessa composição institucional, um serviço vai também transformando e

contribuindo com o desenvolvimento do outro na própria relação. A faculdade ganha

importante campo de aprendizado para seus estudantes e professores, enquanto a UBS ganha

um processo permanente de educação e formação. Como já foi dito anteriormente, atualmente

o Pró-Saúde foi encerrado, a faculdade não recebe mais os repasses e o incentivo para

continuar sustentando tal atividade. Porém, algo da aposta nesse tipo experiência a mantém

micropolíticamente pelas equipes da faculdade e da unidade. Esse tipo de composição, hoje, é

parte da história daquele bairro e do cotidiano de trabalho daquelas pessoas e à vida daquela

população. Finalizo com Simão:

[...] hoje eu acho que a [UBS Mamoré] não tem o nome, mas é um tipo de unidade

escola, ela está num patamar em que os profissionais exercem essa atividade com muita

naturalidade, talvez precisasse ter aqui mais atividades acadêmicas, coisa interessante,

investir na formação desses profissionais efetivamente no sentido de os tornarem mais

capacitados em exercer seu papel, fazer mestrado, doutorado, que acho que sempre

ajuda, mas eles estão nesse estado aí que eu acho que é bem interessante mesmo de

atingir com alguma plenitude essa integração entre o ensino e a assistência. O mérito

todo é muito da própria equipe, do próprio trabalho, mas eu acho que tem ajudado, a

atividade de ensino também contribui muito para ter esse elo aí, né, entre os

profissionais, para puxar uma... distinção, qualificação.

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3. ITINERÁRIOS DE FORMAÇÃO

3.1. Experiências-acontecimento no itinerário de formação

Influenciado nas reflexões de Oury (1991) e com o interesse em buscar saber sobre as os

caminhos que levaram as pessoas a fazer certa escolha profissional, sobre os eventos que os

marcaram e influíram em tal orientação, utilizei como disparadora para a conversa com

professor Simão e o médico Felipe, dois dos principais articuladores da experiência Pró-Saúde

estudada, a pergunta: que experiências você considera base para sua formação?

Não se trata, cabe dizer, de encontrar o instante na vida que foi a situação nuclear, o início de

tudo, mas de mapear, a partir das próprias cenas e experiências que escolhem narrar, certo

movimento de encontro e modificação do sujeito e sua maneira de compreender e se

posicionar no mundo. Como escreve Deleuze, acerca do acontecimento,

Em todo acontecimento, há de fato o momento presente da efetuação, aquele em que

o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa,

aquele que é designado quando se diz: pronto, chegou a hora; e o futuro e o passado

do acontecimento só são julgados em função desse presente definitivo, do ponto de

vista daquele que o encarna (1974, p. 155).

O acontecimento, no entanto, não consiste apenas no acidente, no que acontece, mas no

encontro entre isso que está fora, que existe antes do sujeito e que nele se efetua – o sujeito

“torna-se o filho de seus próprios acontecimentos e por aí renasce, refaz para si um

nascimento, rompe com seu nascimento de carne” (DELEUZE, 1974, p. 152). Acontecimento,

pontos de produção de novidade, de subjetividade, de formação.

Para nosso professor Simão, um importante acontecimento em sua vida e formação foi o

acesso inicial a espaços de reflexão e participação política.

Eu destacaria, por que para mim foi um corte, foi um marco, entrar na faculdade e ter

contato com o movimento estudantil. Eu... primeiro: um mundo a parte, foi bem

durante a ditadura, toda aquela tensão, aquela polaridade e tal, e os riscos que

envolvia, toda essa coisa misteriosa, enfim. Mas o que me encantou mesmo foi o

mundo, poder discutir isso, vivenciar, ter consciência de que estes problemas existem e

tal... isso mudou muito a minha vida.

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Jovem estudante de medicina, recém-chegado na faculdade, em plena época de ditadura

militar. Inscrições significativas: um jovem que, em 1974, concluiu o segundo grau e

conseguiu acessar uma faculdade, pela primeira vez; se tornou um estudante de medicina,

campo, ao lado de muitos outros, com importantes movimentos sociais exercendo resistência

à ditadura e lutando em defesa da redemocratização brasileira.

[...] o contato com esse mundo da política me fez aproximar de [ser] um cidadão,

alguém que pensa os direitos, que participa, que atua, reivindica, enfim, pensa numa

perspectiva mais adiante politicamente, né. Acho que isso não era a minha realidade,

não tinha essa vivência, não tive essa vivência familiar e nem tive na escola, estudava

numa escola pública onde os eventos do movimento estudantil já se passavam, mas

passavam por mim sem que eu os identificasse, [...] depois que eu vim saber que tinha

ali debates que eram feitos, formação de grupos que atuavam politicamente, mas isso

era tão clandestino que nós alunos ficávamos alheios. Como para mim isso não era

uma experiência de vida familiar, essa discussão da política, ainda que eu pudesse

fazer com meus pais, mas era de um jeito mais... no sentido [superficial].

Relembro o exemplo de Oury (1991) sobre o aluno que, com o estetoscópio, tenta distinguir

sem sucesso, dentre os ruídos do corpo e do instrumento, o que é a batida do coração e que

com a simples orientação do professor – “ouça um tum-tá” – torna-se capaz, aos poucos, de

ouvi-lo com clareza. O coração estava batendo, tal qual o fervor político e a militância

acontecendo e se fazendo presentes no cotidiano escolar de Simão, sem que pudesse,

inicialmente, identificá-los. Posteriormente, no entanto, ao entrar na faculdade, algo chama

sua atenção e troca suas lentes: passa a ver as movimentações políticas, os espaços de

reflexão, os tum-tá.

[...] outra coisa que eu diria que foi importante é ter tido a possibilidade, no ano em

que eu entrei [...] já tinha um grupo de veteranos que se preocupavam com a realização

do trote e, ligados ao centro acadêmico, fizeram o trote humanizado... Na época não

chamava humanizado, mas um trote que tinha a verdadeira intenção de fazer que a

gente se inserisse na escola de um jeito diferente, conhecendo tudo que era a profissão,

enfim, era uma forma de acolhimento, e aquilo foi... nossa, mudou minha vida, por que

abriram-se portas que eu também não tinha acesso, [...] eu trabalhava no

departamento cultural do centro acadêmico, entrar em contato com uma série de

coisas que eu não tinha tanta vivência assim [...]e tem reflexo disso até hoje. No modo

como eu segui a vida, as opções profissionais, opções de vida, enfim, tudo isso.

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Além do encontro com organizações e debates políticos – que, como efeito de subjetivação e

formação, produziu um Simão cidadão, atentos aos direitos e à necessidade de participar da

sociedade enquanto sujeito ativo -, outro ponto base para guiar seu caminho foi a forma como

foi recebido por seus colegas na faculdade: forma acolhedora, humanizada, que abre portas. O

acolhimento e a humanização, posteriormente perspectivas fundamentais também para o

Sistema Único de Saúde e que dizem respeito justamente a uma ética do respeito, da escuta

atenta e interessada, da abertura para o outro, deu a Simão a chance e a disposição, na

faculdade, de experimentar, de conhecer. Tornou-se, a partir desses encontros, um estudante

de medicina que, nas horas vagas, escolheu dedicar-se à cultura e ao centro acadêmico

estudantil.

Para Felipe, nosso outro personagem de interesse, nascido ao final da década de 1980 e criado

em outro contexto político e social – Brasil com presidentes eleitos democraticamente e

família classe média - os momentos base para sua formação se deram um pouco antes de

começar a faculdade.

Bom, então falando de uma forma mais abrangente, eu acho que... com certeza o

período da minha adolescência foi importante [...] ao longo da minha adolescência eu

fui, sei lá, conversando com pessoas diferentes, ouvindo histórias e experiências

diferentes, não sei, e eu acabei por dar muito valor para o livre arbítrio, vamos dizer

assim. Então eu acho que... eu realmente não me lembro de nenhuma experiência única

que tenha me feito parar para pensar assim, mas eu [...] acho que pelos próprios

questionamentos da adolescência, sabe, coisas que eu queria fazer que meus pais não

deixavam, coisas que meus pais faziam e que eu não concordava, [...] dos conflitos

assim, habituais e corriqueiros, eu acho que acabaram me fazendo tomar essa postura

de defender o livre arbítrio, ou seja, das pessoas fazerem o que quiserem desde que

elas arquem com as consequências delas e desde que elas não interfiram no livre

arbítrio de outros.

Com Felipe não há um encontro marcante, decisivo, mas uma série de vivências e conflitos –

com seus pais, com a adolescência, com si mesmo – que o fizeram formular o imperativo

“Livre Arbítrio”: as pessoas devem fazer o que quiserem, desde que arquem com as

consequências de suas escolhas e não interfiram na vida dos outros. Trata-se da valorização de

certa liberdade implicada, comprometida consigo e com o outro. Tal perspectiva, para Felipe,

tinha importantes alicerces:

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Eu me lembro também que, naquela época, eu sofria muita influência de músicas,

principalmente do Raul Seixas, porque ele fala muito disso, dessa coisa de você querer

fazer alguma coisa e dos outros te criticarem, de você não ser livre para fazer o que

quiser, sei lá, então eu me lembro muito disso, tanto é que até um símbolo daquela

época foi quando eu fiz minha primeira tatuagem que é o símbolo da sociedade

alternativa do Raul Seixas, que tem muito dessa questão de “faz o que tu queres”,

aquela coisa toda, eu me lembro que na adolescência esse momento, simbolizado por

esse ritual da tatuagem no caso, foi um momento de formação de caráter para mim,

que é uma coisa que eu levo até hoje, eu acho que desde aquele momento.

Ensinado na escola Raul Seixas, Felipe aprendeu que tudo bem se ele ou alguém quiser tomar

banho de chapéu, discutir Carlos Cardel, esperar o Papai Noel – aquilo que se formula para si

próprio, aquilo que se quer, é a lei13

. Recebeu o diploma: a tatuagem que marca nele a

Sociedade Alternativa e um importante traço de seu caráter, de sua ética, que passa a ser

importante trajeto de seu itinerário de formação.

[...] isso [a tatuagem e a influência de Raul Seixas] [...] foi quando eu tinha dezessete

anos, de lá para cá eu sempre tomo essa postura em todas as minhas coisas do dia a

dia, quando eu estou conversando com meus pacientes, quando estou conversando com

meus pais, com amigos ou, sei lá, o pessoal do trabalho, eu acho que cada um tem que

fazer o que quiser e não tem problema nenhum em relação a isso, mas, cada um depois

responde pelos seus atos, arca com suas consequências [...].

Esse elemento de sua formação ética irá ressoar em sua futura atuação como médico da

atenção básica do SUS. Em um Sistema de Saúde construído desde a ditadura militar, com

fortes bases no movimento de redemocratização do Brasil e que entende a relação próxima,

horizontal e humanizada como uma das principais ferramentas de produção de cuidado em

saúde, a paixão e respeito de Felipe pela liberdade cabe como uma luva. Esse seu

encaminhamento pelo “livre arbítrio” se afirma ainda mais quando Felipe se depara, ao entrar

na faculdade de medicina, com práticas de opressão e violência.

[...] a [faculdade] sempre teve trote violento [...] não é o mais violento de todos, mas o

pessoal agredia, humilhava, coisas assim, né. Então assim, era isso, a gente tinha

pressão por parte dos veteranos de ir às festas [...] dos caras do sexto ano, e lá estava

todo mundo numa condição inferior, então se não fizéssemos o que eles queriam isso

13

SEIXAS, Raul. Sociedade Alternativa. São Paulo: Phillips Record: 1974. Disponível em: <

https://www.youtube.com/watch?v=BcXnMS8rJcw>. Acesso em 15/07/2018.

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nos fazia se sentir em risco e coisas assim. Então, por exemplo, nessas festas a gente

ficava sempre pelado, era forçado a beber, e quando estava bêbado os caras [...]

zuavam, as vezes eram agressivos, eu particularmente nunca apanhei, eu nunca passei

por humilhação grande ou coisas assim, mas eu não gostava dessa ideia, sabe, por

exemplo de ficar pelado na frente de todo mundo, mesmo que fosse junto com mais dez

caras, sabe, ou de beber sem querer... eu não costumava beber mesmo antes da

faculdade, e nem costumo, isso não mudou, mas eu me lembro que no primeiro ano eu

comecei a beber muito mais do que eu sempre bebi e muito em função desse contexto

social, né, e isso não me agradava [...]. Então [...] no primeiro ano da faculdade eu

acabei fazendo muitas coisas que eu não queria justamente por essa questão de

pressão social, aceitação, essa coisa toda, e eu me lembro que, ali talvez tenha sido um

ponto de virada, “puts, daqui para frente realmente, eu não vou fazer o que as pessoas

quiserem que eu faça sem que eu queira ou eu não vou falar para as pessoas fazerem o

que eu quero e elas não”. [...] Então é aí que eu digo que, mesmo com o trote, por

exemplo, eu tirei coisas importantes para a minha vida, para quem eu sou e para quem

eu quero que as pessoas sejam.

O trote, momento de iniciação na faculdade, tem destaque tanto na vida de Simão quanto na

de Felipe. No entanto, para Simão, o trote humanizado, teve a potência de acolher, ampliar

suas possibilidades de encontro e vida, orientou positivamente – pelo acréscimo de novas

composições – os caminhos que, no futuro, escolheria seguir em sua formação clínica-ética-

política. Com Felipe a vivência de uma iniciação opressora, violenta, ameaçadora, afirmou de

maneira ainda mais incisiva o elemento principal de sua ética, o livre arbítrio, que não cessa

de atravessar – e compor – sua prática clínica e posicionamento político.

3.2. Formação clínica-ético-política nos limiares

Após a surpresa inicial com as diferentes frentes em que poderia estar envolvido na faculdade

de medicina, Simão demonstra interesse por aquelas iniciativas que escapam à grade

curricular, às propostas mais tradicionais.

Acho que, depois [...] teve as inserções que eu pude ter em atividades

extracurriculares, o que é também interessante, por que às vezes não tá na faculdade...

O ambiente propicia às pessoas e às articulações [...] propostas que são mais

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marginais, então, por exemplo, participar de um grupo que reflete, refletia, né, sobre as

praticas alternativas... Homeopatia, acupuntura, filosofia, essas coisas. Isso também foi

muito interessante, não só pelo assunto em si, que me interessava, mas por poder

pensar também a medicina de um jeito diferente. Pensar a saúde de um jeito diferente,

a medicina de um jeito diferente. Pensar na origem da vida, da saúde e da doença, de

um jeito que é completamente diferente do que é o tradicional. Isso eu diria que segui

em boa parte da minha formação.

As propostas marginais, não inscritas dentro do cronograma de aulas da faculdade, tal qual a

vivência em movimento social, deram a Simão elementos para pensar de maneira crítica

aquilo que se apresentava a ele como predominante e hegemônico. A saúde e a medicina que

eram ensinadas dentro da sala de aula não pareciam fazer sentido quando vistas através de

suas novas lentes – os corredores da faculdade invadiam seu processo de formação.

[...] poder ter uma visão mais crítica mesmo, acho que da ciência. O que acho que, na

minha impressão, a faculdade não dá, por incrível que pareça, né, deveria ser a

faculdade a criar essa situação. [...] ela apresenta a ciência para você, mas não a

desvenda criticamente, isso não faz que você desperte nesse sentido. [...] tinha um

grupo com algumas pessoas que eram referência e formavam grupos para discussão e,

para além da homeopatia, me despertou o sentido crítico mesmo, em relação à ciência

e coisa e tal. E acho que isso foi muito interessante. Comprometeu bastante aí, tudo o

que eu fui fazer na vida. No caso eu me interessei por homeopatia de verdade, mas

hoje eu reconheço que o mais importante não foi isso, foi ter feito a reflexão sobre o

que é a ciência oficial e o problema da saúde e da doença no sentido mais geral, que

estava presente em várias outras correntes e possibilidades e que isso era importante

saber, eu tomava consciência e depois, como docente já, é nosso papel criar

possibilidades, né, de reflexão crítica, esse é o papel, de professor.

A vivência de um contexto de ditadura militar e o encontro com movimentos políticos e

grupos de reflexão marginais foram pontos decisivos na formação de Simão. Anos depois,

enquanto professor, Simão deu aula a Felipe na faculdade de medicina – neste momento o

contexto era muito diferente: o Brasil, há anos, tornara-se um país democrático e o Sistema

Único de Saúde funcionava a todo o vapor. É neste cenário que Felipe começa sua graduação.

As minhas primeiras impressões com o curso são as mesmas que a maioria das pessoas

que entram na medicina [atualmente]. Tipo: “o que é que eu estou fazendo aqui?”. Por

que, poxa, no primeiro dia da faculdade eu já tive [...] uma pequena quebra do meu

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status quo prévio que era não poder ir de brinco, eu usei brinco muito tempo da minha

vida e no ambiente da faculdade, dentro do hospital, você não pode usar, pelo menos

isso é o convencionado, então no meu primeiro dia eu já fiquei meio assim. Mas falei

“tudo bem, vamos lá”, e no primeiro dia a faculdade a gente entra no laboratório de

anatomia que é um lugar cheio [...] de pessoas antiquadas, pessoas de outra época, que

tem outra visão do processo educativo e de como as pessoas tem que se dedicar. Então,

eu me lembro que no primeiro dia em que entrei eu sentei na bancada junto com meus

outros amigos e já foi um... não comigo, mas eu já logo vi um show de gritaria dos

professores contra os alunos, dando broncas assim, sem qualquer escrúpulo, falando

que “você tem que estudar”, que aquilo lá não é mais cursinho, esse tipo de coisa [...],

depois eu acabei me acostumando com essa rotina de estudos, especificamente no

departamento de morfologia que era meio... Questionável, vamos dizer assim.

Ter que, aos poucos, abrir mão de seu estilo, de seu jeito de ser, ceder a certa disciplina

exigida na tão importante faculdade de medicina. Felipe retira seus brincos, observa seus

colegas levando broncas e ouve, junto com eles, a gritaria dos antiquados professores de

morfologia que faziam questão de avisar: ali é necessário se dedicar e, para eles, se dedicar

significava obedecer e estudar. E as cobranças não estavam apenas dentro da sala de aula.

[...] além de estudar, ir bem na prova e não sei o que, que era difícil, ler livro, você

ainda tinha que treinar, tinha que ser do centro acadêmico, os seus veteranos queriam

que você participasse das coisas, tomava trote, então honestamente o primeiro ano da

faculdade não foi um ano tão agradável para mim. Eu apenas não pensei em desistir,

isso nunca passou pela minha cabeça, então eu ia fazendo as coisas porque tinha que

fazer e porque eu achava que aquilo era o caminho certo a ser seguido, mas não foi o

ano mais agradável com certeza. Eu peguei três exames na época, eu nunca tinha

tirado uma nota vermelha e peguei três exames na época.

Felipe é recebido na faculdade com trotes nada humanizados, professores bravos com alguma

coisa e muita pressão social. Deixa, junto com seus brincos, as músicas de Raul Seixas e seu

livre arbítrio para fora dos portões da escola durante o primeiro ano. Até mesmo as atividades

extracurriculares eram um peso, uma obrigação – neste caso, nada marginais: compunham

parte do cardápio disciplinar a que Felipe era submetido.

O segundo ano já foi muito melhor, apesar de o segundo ano ser tecnicamente mais

difícil do que o primeiro eu estava mais acostumado a essa rotina, então eu me

dedicava mais e eu rendia muito mais, eu tirava melhores notas, eu sentia que eu

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aprendia mais, então o segundo ano para mim foi muito melhor nesse sentido. Foi o

ano também em que eu comecei a refinar minhas amizades na faculdade, no primeiro

ano eu andava com muita gente diferente, não tinha ainda aquele grupo específico de

amigos e tal, e a partir do segundo eu comecei a selecionar, entre aspas, os meus

amigos mesmo, né, e isso claro que facilitou muito mais as coisas, eu me sentia muito

mais confortável no ambiente da faculdade.

A opressão sai de cena e ganha destaque, no segundo ano da graduação de Felipe, as

amizades. As coisas começam a melhorar, Felipe encontra a sua turma, tornam-se juntos

capazes de produzir outro modo de viver aquele ambiente. Não à toa o desempenho de Felipe

melhora: se no primeiro ano pegou exames, no segundo via suas notas melhorarem.

O terceiro ano foi muito tranquilo mesmo, foi o ano mais tranquilo da faculdade

porque era o ano com as matérias mais simples, mais fáceis, mais rápidas, então eu

não ficava tanto tempo na sala de aula, então eu tinha muito a oportunidade de sair

com os meus amigos, me divertir, estudar junto, sei lá, então foi um ano em que eu

aproveitei bastante. O quarto ano provavelmente foi o ano em que tecnicamente eu

evoluí mais, que é o ano em que a gente tem as cadeiras clínicas, então você tem aula

de medicina efetivamente e não só as cadeiras básicas, né, então foi um ano em que eu

aprendi muita coisa mesmo e junto com os meus amigos sempre, então eu já tinha a

minha base de amigos bem solidificada, então foi muito bom.

No terceiro e quarto ano, Felipe manteve o bom desempenho e conseguiu compartilhar ainda

mais momentos com seus amigos. Divertiam-se, estudavam. No itinerário de Felipe a relação

com o outro tem destaque: a relação com os pais fez surgir uma ideia de “livre arbítrio”, a

relação com seus violentos veteranos fez afirmar o Livre Arbítrio como a ética e a política de

suas relações, a relação com amizades dá potência para sua vida e experiência acadêmica.

E o quinto e sexto ano foram os piores anos junto com o primeiro. Por causa dos

plantões, principalmente, né, porque no quinto e no sexto ano você tem que fazer os

estágios no hospital, então você tem que dar plantão, em geral é plantão noturno,

plantão de vinte e quatro horas, é plantão no carnaval, no ano novo, no natal, no

feriado, sei lá, então é um ano de muita privação. Eu me privava muito da minha vida

social e eu não conseguia fazer muitas coisas ao mesmo tempo então eu decidi apenas

por estudar... não, estudar não, por fazer as minhas atividades da faculdade, ou seja,

tocar a funça, vou falar assim, o que não é necessariamente igual a estudar. Você tocar

as funças do hospital é diferente de você estudar para uma prova de residência, por

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exemplo. Então eu aprendi a tocar serviço, mas eu não estudei, eu não tive muita vida

social nesse tempo e talvez o que mais me agradava é que eu estava sempre com meus

amigos, que meus amigos estavam sempre comigo nos plantões, nos estágios, isso acho

que era o desafogo, né, junto com o meu aprimoramento das minhas relações

interpessoais porque eu comecei a viver com pacientes e ai eu comecei a entender a

minha importância, né, comecei a me valorizar um pouquinho mais também [...].

No quinto e sexto ano Felipe precisa abdicar de sua vida social, para concluir sua graduação é

necessário que se discipline, que se prive de reflexão e diversão, que toque a funça. No

cotidiano de longos plantões e uma rotina rígida, Felipe tocava serviço dentro do hospital e

seus únicos afagos eram os amigos, que o acompanhavam nos plantões, e os pacientes, que

mostraram a este quase médico sua importância.

Depois que eu terminei a faculdade a coisa mudou, para melhor, né. Exponencialmente,

na verdade. Foi quando eu comecei a trabalhar e tal [...]. Mas a minha vida na

faculdade foi basicamente isso [...] acho que as coisas aconteceram como tinham que

acontecer e acho que eu tirei proveito de todas as circunstâncias que eu podia, das

boas e das ruins, inclusive, isso tudo como eu estou falando me fez crescer e hoje faz

parte do meu caráter e, por exemplo, as experiências que eu tive do trote [...] tudo

bem... hoje eu vejo que melhorei muito em muitos sentidos depois de ter passado por

coisas assim e claro, né, ficaram muitos amigos, ficaram memórias boas também, então

de modo geral acho que minha vida na faculdade foi assim: muito estudo, muita

privação e estabelecimento dos meus amigos, vamos dizer assim.

Alguns dos elementos que Felipe refere como negativos em seu ensino superior são similares

à constatação de Feuerwerker a respeito do ensino de medicina:

Em muitas escolas há falta de preparo dos professores para atividades de docência e

de investigação, baixa produção de conhecimento, currículos arcaicos, carga horária

excessiva, dissociação teoria e prática, dissociação entre ciclo básico e clínico,

formação que favorece a utilização indiscriminada de tecnologia e prática

profissional impessoal e descontextualizada [...] (2002, p. 1).

No processo de formação de Simão, o Sistema Único de Saúde enquanto objetivo a ser

conquistado pela população brasileira foi importante agenciador de coletividade e de

produção de subjetividade.

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[...] no fundo eu sou meio precursor do SUS também, [...] desde a faculdade já persegui

um pouco o que nós entendíamos na época que era a necessidade de fazer uma reforma

no sistema de saúde e a gente acompanhava os movimentos neste sentido, como

aluno, depois como residente, depois como profissional. A gênese do SUS está aí, né,

nos vários movimentos sociais que depois fizeram essa reflexão sobre o que seria

interessante para o Brasil, qual a reforma necessária, quais os princípios que compõe

essa reforma, então a constituição, a criação do SUS nas essências que ele tem, foram

geradas uns dez anos antes, né, por meio de embates também e mudanças parciais, que

se acompanhavam das mudanças do contexto político em geral [...]E essa conquista

não se deu de forma abrupta, foi se dando progressivamente, então a gente, na

faculdade já controlou um pouco essa discussão, fazia a reflexão nesse sentido, e

depois como sanitarista.

Aos poucos, Simão se formava um sujeito-médico consciente de suas implicações ético-

políticas. A vivência política o contaminou de uma maneira incurável, encaminhou sua

trajetória futura: se dedicar às discussões sobre saúde pública, refletir sobre conceitos básicos

de Saúde Coletiva, participar da construção de um sistema de saúde universal, democrático e

atento às necessidades de saúde da população, tornar-se um médico sanitarista.

Então eu tinha dois polos aí: um polo clínico - sempre gostei muito de medicina,

gostava de clínica, queria fazer clínica, sempre achei que até faria; e gostava da

inserção mais coletiva, mais social, que a medicina também proporciona. Então tinha

essa dualidade aí que nem sempre combinava, né, uma época eu achava que seria legal

ter sido que nem o Oswaldo Cruz foi, e outros médicos como o Emílio Ribas, eu sou

dessa época aí, que ao mesmo tempo eram clínicos e também sanitaristas, tinham uma

atuação de coletivo bem intensa e fazia exame de laboratório, conversava com as

pessoas, enfim, essa aplicação da ciência assim mais essa fusão. No fundo no fundo o

que foi acontecendo é que eu achei que o campo da saúde pública, da saúde coletiva, é

o que me propiciaria essas experiências aí, e acho que, no fim acabou dando certo. [...]

Ah, na sequência, pode-se dizer que é meio previsível, ao me inserir na saúde pública,

de fato ela é muito plural, tanto você pode estar numa prática que implica alguma

outra ação individual como pode estar no coletivo ou pode estar fazendo gestão, no

sentido grande da palavra, numa secretaria, numa regional de saúde.

De certa forma, essa dualidade a que Simão se refere não é característica apenas do ensino

médico – se repete na maioria das profissões do campo da saúde. A clínica acaba sendo

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apresentada como um conjunto de técnicas, um método que o profissional dispõe para

alcançar a saúde dos pacientes. Mesmo na psicologia essa separação - clínica e social – é

marcante: o psicólogo clínico, o atendimento individual, os testes psicológicos versus a ação

comunitária, a prática institucional e coletiva. Essa última dimensão é onde se insere, em uma

formação em saúde, a esfera do político, do contexto social, das relações. Essa dualidade

representa o embate entre duas lógicas diferentes, uma que parte de uma noção do sujeito

enquanto organismo biológico, e outra que parte de uma noção do sujeito que se relaciona

com o ambiente, com a cultura, com os outros, e se constitui a partir disso. O Sistema Único

de Saúde, produto e produtor de uma lógica de trabalho em saúde e de sujeito muito própria,

realmente contribui para a transversalidade entre essas esferas, atravessa o que parece estar

separado da clínica e do social, produz um campo de trabalho ético, clínico e político.

À Simão, que na vida pôde experimentar um ensino técnico da medicina em paralelo com

vivências de coletividade e militância, o SUS era um lugar em que poderia viver sua paixão e

competência.

[...] a escolha já dá própria carreira profissional me colocava no meio do furacão,

quer dizer, é um pouco participar dos movimentos que discutiam isso em todos os

campos, né. Ainda que, na época para mim interessou mais fazer a discussão no campo

popular, mais na formação e na discussão da consciência política, junto com os

movimentos sociais, movimentos populares, né, era o que me dava mais prazer fazer.

Por que no campo científico, quer dizer, como professor sim, é algo que tenho que

fazer, mas como profissional, naquela época, quando na construção do SUS, eu estava

atuando em unidades básicas de saúde como um médico, sanitarista e já também como

docente. Então, tinha uma ligação muito grande como o movimento de saúde, que

assim se chamava aqui em São Paulo, e me interessava discutir isso lá, e eu fiz isso

bastante de forma intensa.

Em uma Unidade Básica de Saúde, Simão atuava como médico e educador – contribuiu com

os colegas e com a população que atendia para a efetivação de um sistema único de saúde

realmente participativo, integral e resolutivo. Aquilo que referiu como um ponto de

modificação de sua maneira de ser, o acolhimento e encontro com a política e a cidadania,

buscava agora fazer com os outros no campo da política pública e da universidade. Trabalhar

como médico em UBS e compor o movimento social, servindo como multiplicador do

movimento “susista” na base do próprio serviço que se constituía é realmente uma importante

etapa para a transformação micropolítica – a partir do momento que o SUS se constitui como

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macropolítica instituída – nas formas de cuidado e de concepção/organização do trabalho para

a real efetivação do sistema.

Para Felipe, o trabalho no SUS não surgiu inicialmente como um compromisso político, como

uma paixão, mas como uma opção possível de trabalho para um médico que tinha acabado de

se formar.

Quando eu me formei eu queria seguir o caminho que a maioria das pessoas fazem

quando se formam em medicina, que é fazer a residência, ou seja, fazer uma

especialização. O problema é, como eu comentei, quando eu estava no quinto e no sexto

ano eu não conseguia estudar, eu apenas fazia as funções que eu tinha que fazer no

hospital, então eu não consegui passar na prova quando eu me formei. Especificamente

porque eu queria uma carreira concorrida que era radiologia, que é uma carreira que

ganha bem, tem qualidade de vida e tal, então o meu plano B... sempre foi isso, desde o

terceiro ano da faculdade, era a atenção básica. Desde o terceiro ano da faculdade eu

tinha a ideia de trabalhar em UBS se nada desse certo. E foi o que eu fiz, né, quando eu

me formei eu não passei na prova e fiz o concurso do Mais Médicos, para ver o que

acontece, né. E eu fui aprovado.

Felipe teve a intenção de seguir o caminho hegemônico da formação médica no Brasil – se

graduar médico e se especializar a partir de uma residência. Tal qual a dualidade

clínica/social, a lógica de formação de especialistas é característica também de outras

profissões de saúde. Na psicologia, por exemplo, as especialidades são várias: psicologia

escolar, psicologia organizacional, psicologia hospitalar, psicologia jurídica, neuropsicologia,

psicólogo clínico, psicólogo social, etc., cada uma delas com outras dezenas de possibilidades

de segmentação de acordo com as “linhas” e “abordagens”.

Essa segmentação da formação, além de expressão de embates institucionais e discursivos,

respondem ao processo de capitalização da saúde, em que o mercado de trabalho e às

corporações médicas e de saúde ditam, a partir de seus interesses, os caminhos do ensino das

profissões de saúde. Faz parte deste processo, por exemplo, a 1) primazia das incorporações

tecnológicas na formação e atuação em saúde – diminuindo a importância da história clínica,

do exame físico, do contato entre o profissional e seu atendido; e 2) a cultura da fragmentação

e da especialização em saúde, se afirmando a partir da valorização de determinados tipos de

profissionais em detrimento de outros (determinada especialidade médica ganha maior

remuneração que outra) e implicando em importante prejuízo para a relação médico e

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paciente, já que privilegia a não construção de vínculos e a desresponsabilização dos

profissionais em relação à saúde geral do usuário (FEUERWERKER, 2002).

No percurso ideal, portanto, de um estudante de medicina atualmente, a atenção básica sobra

para aqueles na qual as coisas deram “erradas”. Não é nada pessoal, segundo Felipe:

Na verdade não é bem assim, é um pouquinho de exagero, mas o “tudo dar errado” é o

seguinte: se eu não passar na residência que eu quiser, eu vou fazer atenção básica.

[...] Em minha opinião, é perfeitamente racional que um médico recém-formado vá

para a atenção básica porque você tem casos menos complexos, com menos urgência,

com menos pressão durante o trabalho, e assim, teoricamente, você consegue

desempenhar o seu trabalho de uma maneira melhor, inclusive você consegue estudar

mais, consegue evoluir mais, que eu acho que foi o que aconteceu comigo. Então, eu

acho que é uma zona de conforto, vamos dizer assim, pelo menos para um médico

recém formado porque é como eu falei, as outras opções eram o que: dar plantão, ou é

passar na residência, ou... é isso, né. Então, não é bem... o “se tudo der errado”, né, foi

um pouquinho forte, mas era meu plano B [...].

A principal perspectiva, apesar de avaliar a atenção básica como o lugar mais potente para o

desenvolvimento de um jovem médico, era concluir a faculdade e passar em uma residência.

A alternativa, dar plantão, não atraia Felipe.

[...] eu nunca tive interesse em dar plantão [...]. Pô, plantão você ganha um dinheiro

bom, ganha, sei lá, uns vinte pau por mês, trabalhando um dia sim e um dia não. Mas

eu nunca gostei de plantão por causa do estilo de trabalho, por você não ter um vínculo

com o paciente, afinal de contas é uma coisa muito... Emergencial, urgentista, vamos

dizer assim, e também porque eu nunca me achei capacitado e habilitado,

principalmente na minha época de formação, para sair atendendo urgências.

Por não ter tido sucesso no plano A e não se identificar com o trabalho na urgência e

emergência, a opção seguinte, enquanto médico generalista, foi a de atuar na atenção básica

através do programa Mais Médicos.

Aí, é uma história engraçada porque inicialmente eu não tinha selecionado a UBS do

Centro, eu tinha inicialmente escolhido uma UBS da [...] Norte! [...] eu me lembro que

estava em casa, pintando as paredes de casa, sabe, fazendo umas coisas assim, e aí de

repente me ligam “ah, doutor Felipe?”, sabe, aquela coisa, primeira vez que as pessoas

te chamam de doutor... “é, sou eu!”, “você selecionou uma UBS na Norte...”, “pois é,

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sou eu mesmo!”, “então ó, a gente é da secretaria aqui de saúde de São Paulo e [...]

estamos te ligando só para te falar, na verdade, que a vaga que você tinha selecionado

já havia sido ocupada por uma médica que estava de licença maternidade, e ela vai

assumir essa vaga agora no ano de 2015...”. Eu fiquei muito puto, desculpa a palavra,

porque eu passei em primeiro no Mais Médicos então eu fui a primeira pessoa a

escolher na cidade de São Paulo uma UBS [...] e de repente uma mulher me liga

falando que eu não posso mais ir para lá... eu fiquei revoltado, quase xinguei ela pelo

telefone, né, e aí ela me falou “olha, na verdade tem outras duas vagas que

apareceram, o senhor tem interesse?”, eu falei “é lógico, né! Fala quais são...” e aí ela

comentou que uma era a do [Centro] e a outra era do [Centro-Oeste], e eu conhecia o

[Centro] porque na época da faculdade a gente passa aqui em estágio, conhece um

pouco do território, tem o Pró-Saúde e então eu conhecia [...]. Daí, isso acho que foi

em fevereiro [...] e eu comecei a trabalhar no final de março de 2015, e aí foi o

primeiro choque, porque eu até então, como eu disse, era um aluno, eu fazia o que os

outros médicos mandavam e [...] se alguma coisa der errado o médico quem era o

responsável, e no primeiro dia em que eu estava na frente de um paciente aqui na

UBS... era eu, com o meu carimbo, né!

Felipe, dessa forma, começa em seu primeiro emprego como médico: um médico de uma

equipe de Estratégia Saúde da Família em uma UBS do Centro. Apesar de inicialmente

parecer estar só, ele e seu carimbo, Felipe encontra na relação com sua equipe e com seus

pacientes elementos que o deixam seguro e confortável com sua atuação.

[...] aquilo assustou um pouco na época, não posso negar, mas eu acho que eu devo

muito do meu processo de adaptação à equipe da UBS. Porque desde o começo eu me

senti muito acolhido e muito tranquilo no desempenho das minhas funções,

exemplificando: os primeiros pacientes que eu atendi eu na verdade não atendi, eu

acompanhei as consultas da Angelita que é a enfermeira que era da minha equipe,

então eu via mais ou menos como ela fazia, eu via mais ou menos qual eram os

problemas dos pacientes, do que eles tratavam, essa coisa burocrática de renovar

receita, de fazer pedido de exame [...]. Além disso, nessas semanas em que eu ainda

não estava atendendo eu tive a oportunidade de ler, graças à gerente, muita literatura.

Ela falou “olha Felipe, eu sei que você se formou agora e tal, faz o seguinte, pega esses

livros que tem aqui e vai dando uma lida para você ir pegando a manha dos problemas

que a gente tem aqui”, então eu consegui dar uma estudada bem focada nisso e na

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prática eu acompanhei pessoas que meio que me mostraram o caminho [...]. Os

pacientes também me ajudaram muito porque sempre foram muito pacientes mesmo,

muito educados, eu acho que meu jeito com os pacientes também sempre me ajudou

[...] por ser um cara que está sempre tentando deixar os pacientes à vontade [...] então

eu acho que isso tudo ajudou a conduzir os casos tecnicamente falando também, e aos

poucos eu fui me adaptando, acho que em um mês eu já estava bem tranquilo mesmo

[...] é como eu falei, as primeiras vezes em que alguém te chama de doutor assusta,

“doutor, o que eu tenho que fazer?” aí você pensa: “putz... e agora?” [...] mas acho

que naturalmente você vai amadurecendo com isso.

Com a mediação de Angelita, Felipe aos poucos conhecia a população, os processos de

trabalho, era apresentado às tecnologias duras, leve-duras e leves da saúde pública (FRANCO

& MERHY, 2013). Aproximava-se, a partir da literatura sugerida pela gerente e a partir do

contato com os usuários das reais necessidades de saúde daquele bairro e começava a

construir estratégias e vínculos que o ajudaram, no futuro, a ser um dos médicos mais

comprometidos daquela UBS, em minha opinião. Não à toa, com alguns meses de trabalho

começou a ocupar a posição de educador naquela unidade, recebendo estudantes e sendo

responsável por treinar os novos médicos contratados. Felipe se tornou um exemplo, naquela

UBS, de médico generalista do SUS, principalmente, no que diz respeito à relação e a atenção

com o usuário.

Hum, bem, [...] desde o primeiro dia da faculdade eu aprendi a ouvir as pessoas e eu

aprendi a dar valor para o que as pessoas tinham a dizer, e não subjugar, ou não

subvalorizar o que a pessoa tem a dizer. E claro que isso foi se desenvolvendo muito,

essa questão humanística, ao longo da minha formação e o pico disso foi no internato,

foi no quinto e no sexto ano, que foi quando realmente, dentro do possível, eu era

responsável por alguns pacientes e os pacientes vinham falar comigo quando tinham

problemas, vinham falar comigo quando tinham dúvidas, e mesmo eu sendo um aluno e

não tendo mesmo a responsabilidade médica eu acabei percebendo naquela época a

importância que as pessoas dão a uma pessoa que está cuidando delas [...]. [Tudo

isso] somado a essa minha mudança de cabeça que eu tinha tido no final da

adolescência e no início da faculdade, acabou me levando à forma como eu conduzo os

meus casos hoje em dia. Então quando eu vou atender um paciente, quando vou

conversar sobre algum caso eu sempre deixo a pessoa mais a vontade possível,

inclusive eu sempre tento deixar que elas tomem as decisões [...] e não eu, [...] e eu

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sempre tento ter uma conversa muito franca com os pacientes, tento manter o máximo

do pé de igualdade dessa relação hierárquica entre o médico e o paciente [...] então

eu não dou bronca nos pacientes, até falo isso para eles “olha, eu não vou te dar

bronca, você faz o que quiser, mas eu acho importante você entender a importância do

que estou te falando ou do seus atos e tal” [...] então, nesse momento da minha vida em

que eu estou agora, de atenção básica, a minha formação de caráter e a minha

formação técnica acabam se misturando intimamente, eu acho que agora é uma coisa

só, e é uma coisa que eu acho que faz sentido, uma coisa com a qual eu estou satisfeito

hoje em dia, e é uma coisa que eu levo para a vida, sempre adaptando conforme eu vou

tendo experiência novas e coisas assim.

A tão valorizada perspectiva de “Livre Arbítrio”, elaborada ao custo de relações de opressão e

obrigação de Felipe com seus pais, seus veteranos, seus professores antiquados, atravessa

diretamente sua postura clínica quando, responsável pelo paciente à sua frente, fica incumbido

de participar do processo de saúde e vida daqueles sujeitos. Não dar bronca, não mandar, não

tomar decisões pelo outro – reconhece sua posição e a do cidadão como equivalentes na

produção de cuidado. Suas análises técnicas e recomendações médicas são apresentadas ao

outro com respeito e cuidado à liberdade, graças à sua formação de caráter, à sua ética. A

prática de trabalho que surge desse cruzamento é justamente a que cabe no SUS, que se

pretende humanizado, participativo, acolhedor aos sujeitos.

Aqui é possível retomar as perspectivas de Oury (1991) sobre o ensino e a formação. A

faculdade de medicina ensina a Felipe as técnicas, os instrumentos, os conceitos, o serviço.

Fica a cargo de suas outras experiências de vida o aprendizado de ouvir o outro em suas

necessidades, de respeitá-las, de se relacionar. Esses elementos são também observados pelo

professor Simão:

[...] foi costumeiro na área médica prescindir um pouco da pedagogia. Basta ensinar,

basta mostrar como faz, e aí o outro aprende. Como está muito voltado para a técnica

é como assim: bom, se eu mostrar repetidas vezes ele acaba aprendendo. Então o

desenvolvimento de habilidades acaba se fazendo desta maneira, como a técnica

prepondera em certa maneira então parece que fica tudo certo. Claro que outras

habilidades, de relacionamento, de identificação do problema do outro, da vida, dos

aspectos biopsicossociais, enfim, que não são só aprendidos por replicação, ficam

comprometidos, profundamente comprometidos neste processo de aprendizado.

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Um curso que produz bons desempenhos! Mas sem o interesse de garantir ao estudante uma

reflexão crítica sobre os conceitos, sobre a prática em saúde, sobre as relações e a vida. Este

elemento surge na vida acadêmica através dos espaços marginais – como foi para Simão -, na

relação com os colegas e pacientes – como foi para Felipe – e também por intermédio de

professores atentos e dispostos a tentar produzir esse tipo de desenvolvimento. Simão, que é

hoje um desses professores, sempre levou consigo em suas experiências de trabalho a

preocupação pelo ensino e pela educação. Como foi essa trajetória, quando foi que virou um

professor?

Eu não sei, acho que eu me encantei pela ideia de fazer ensino... acho que logo depois

de fazer residência, eu gostava muito disso, achava que isso era uma coisa importante,

que eu não queria abandonar na minha vida, isso que era uma coisa fundamental, e

acho que foi o momento em que de fato eu fui convidado a exercer esse papel,

efetivamente, de se preocupar com isso, de ter a plenitude né, do papel de professor

mesmo, não só um preceptor que vez ou outra estava em contato com alguém que

estava em situação de aprendizado. [...] Eu acho que é uma gradação também, não sei

dizer se... Não é uma ruptura tão importante, pelo menos não foi, mas com certeza hoje

pensando, refletindo, é muito diferente você exercer esse papel com a consciência da

importância que tem, que você tem que fazer para atingir meta, diferente do que fazer

por estar lá, né, simplesmente ocupar um papel na equipe e ser transmissor de

informação, tem uma certa diferença.

Não houve uma ruptura na passagem do Simão médico-sanitarista para Simão professor.

Desde o momento que chegou à faculdade, até sua passagem pela saúde pública, sempre

esteve próximo de experiências de formação, em suas diversas formas.

[...] no fundo a minha trajetória é, assim, permeada de diversas atividades parecidas,

desde que eu me formei tive a oportunidade na [faculdade de medicina], muito por

meio também do Departamento de Medicina Social da época, que tinha uma proposta

de integração, tinha um serviço de pesquisa na área da [zona Norte-Oeste], que

envolvia as unidades do estado, do município e a faculdade de medicina, então os

alunos do quinto ano passavam nessas unidades para fazer o estágio de saúde pública e

eu, acho que desde que me formei [...] fui convidado, ao acabar a residência, [...] lá em

1981, [...] para participar como preceptor dessa atividade. Então, digamos que de lá

para cá eu só me distanciei dessa atividade quando estive ocupando alguns cargos de

gestão que me ocupavam muito tempo, né, que foram uns... seis anos. Todo o resto do

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tempo eu estive, de alguma maneira, em alguma atividade de ensino na prática e

sempre achei que isso era uma coisa que deveria ser estimulada, organizada,

sistematizada por ser, acho que inerente, né, à prática assistencial pelo menos na saúde

[...]. A saúde é feita muito de pessoas, pessoas que precisam se formar, quer dizer, se

você tiver a academia, como para mim sempre foi imprescindível também estar muito

perto da área de formação, da faculdade, fazer pesquisa, enfim, isso aí para mim era

uma espécie de alimento, eu sempre imaginei que isso deveria ser bom para todo

mundo, de alguma maneira ia trazer prazer em exercer a profissão, exercê-la com mais

qualificação [...].

Apesar de sempre envolvido em atividades de ensino, Simão apenas torna-se professor, em

sua avaliação, quando realmente é chamado a ocupar tal cargo em uma faculdade de

medicina. Exercer esse papel como principal função convoca Simão a outro olhar para a

educação em saúde.

[...] acho diferente você se tornar professor, tem algum momento em que você deixa

de fazer isso de forma mecânica, digamos, e [...] desenvolve isso por meio de método,

acho que isso é uma grande mudança. Você pensar no que vai fazer, programar,

planejar, criar condições, criar as situações favoráveis para o ensino, talvez seja a

diferença básica. É a intencionalidade, que eu acho que é um pouco diferente dessa

cadeia de aprendizado por meio das relações [...] que nem sempre estão permeadas

dessa preocupação, né. Quer dizer, acho que até, muitas delas nem sempre muito ruins

não, eu tive vários... tive ajuda de muita gente que nunca se preocupou muito com essa

coisa de como faz para ensinar, simplesmente o fazia, e era bom, era interessante, mas

talvez fossem já “professorizados”, que integravam aspectos afetivos, psicológicos,

práticos, enfim, para propiciar aquela situação de aprendizado e dava certo.

Simão, professor já consagrado e influente na formação de muitos médicos e profissionais de

saúde, segue sua luta pela construção de noções de cuidado atenta às necessidades da

população e pela manutenção de um Sistema Único de Saúde universal, integral e equitativo.

Por outro lado, Felipe, ainda no início de sua caminhada, constrói nos próximos passos:

pensava, quando finalizou o curso de medicina, em fazer a residência em radiologia.

[...] eu queria fazer radiologia, não tem nada a ver com paciente, né, você não

conversa com o paciente, não sabe quem é a mãe e o pai do cara, não sabe o que ele

faz na vida, nada disso, você vai lá e faz um exame rápido e acabou. [...] Justamente o

fato de eu ter ido parar na atenção básica, isso acabou mudando um pouco a minha

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visão sobre a medicina, sobre as pessoas, sobre como tratar as pessoas, não só do

ponto de vista médico, mas também do ponto de vista humanístico. [...] eu realmente

não tomei a decisão da medicina para tratar das pessoas, mas acho que isso acabou

vindo naturalmente ao longo da formação, mas, principalmente [...] quando eu

comecei a praticar.

A própria vivência do SUS e da atenção básica produzem desvios em suas trilhas inicias. Se

antes tinha a intenção de fazer residência em radiologia e lidar com instrumentos e exames

médicos, hoje, a partir das experiências que teve, pensa em seguir o caminho da psiquiatria e

lidar com pessoas e relações.

[...] eu estou caminhando nesse sentido, de que... bom, você sabe tanto quanto eu que

na minha área especificamente a gente tem muito paciente de saúde mental, de longe é

a área que mais tem paciente de saúde mental da nossa UBS, não sei se é porque a

gente sempre escolheu dar atenção para esses casos e diagnosticá-los e acompanhá-

los, ou se é porque realmente, por algum motivo epidemiológico a gente tem essa

concentração maior pelas nossas ruas e população atendida, eu não sei, mas, o fato é,

nesses últimos três anos eu tenho andado me envolvido muito com saúde mental que é

uma área que eu sempre gostei, sempre gostei de psicopatologia, da propedêutica

psiquiátrica, então as coisas começam a meio que se juntar quase que naturalmente,

então eu estou considerando seriamente isso.

Trabalhando junto à equipe de Felipe posso confirmar que sim, a equipe tem um olhar

sensível a, na verdade, todos os tipos de demandas do território. Saúde mental é uma delas

que, com muita energia nos debruçávamos para atender e acompanhar. Isso não era por

acaso: contribuía o fato de Felipe e as agentes comunitárias serem sensíveis a essa questão;

o fato de, como equipe de apoio, contarem com um psicólogo, um psiquiatra e uma

terapeuta ocupacional para auxiliar nos casos; e o fato de terem uma rede especializada

próxima ao seu cotidiano. Acredito que não por acaso Felipe pensa hoje em seguir por essa

rota.

É curioso, ao fim dos relatos, pensar em como posicionamentos e valores vão se

construindo e se afirmando durante uma trajetória. Simão teve sua formação direcionada

pela militância, pela discussão crítica e política, participou da construção do Sistema Único

de Saúde, trabalhou na ponta, trabalhou na gestão, hoje segue na academia, dentro do

departamento de Saúde Coletiva, ainda atento a seu compromisso singular e coletivo.

Felipe, que por sua vez não seguiu tanto pela participação política, nutre mesmo assim na

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relação consigo e com sua história um importante compromisso que diz respeito à

liberdade. Apesar de diferentes discursos e motivações, cada um em sua época, do seu

jeito, com seu itinerário de formação, ambos expressam em suas práticas o Sistema Único

de Saúde. Sustentam juntos, através de uma experiência de ensino-formação, a

possibilidade de que outras pessoas experimentem isso que a eles é muito caro: a relação

com o usuário, a ação comunitária, a efetivação de uma política pública. Tive a

oportunidade de compartilhar com eles essa tarefa por apenas um período, já que em meu

itinerário consta um desvio – após um ano de trabalho no NASF fui transferido para uma

equipe de saúde mental, também do centro de São Paulo, mas que se tem como linha de

cuidado, principalmente, as questões relacionadas ao uso compulsivo de álcool e drogas, à

miséria e à violência.

3.3. Seguir em frente

Se no capítulo anterior refletimos sobre uma atividade de integração ensino-serviço e os

dispositivos que lança mão para tentar produzir aprendizado, relação e reflexão crítica,

neste, com os itinerários de Simão e Felipe, é possível se debruçar sob um aspecto da

formação que se dá a partir de uma lógica da afetividade, a partir de espaços marginais, a

partir de fronteiras.

Na experiência de Simão, o ingresso na faculdade o coloca em contato com o movimento

social, a discussão política, atividades culturais, outras concepções de saúde, medicina e

sociedade. O que antes era comum passa a ser questionado e revisto a partir de seu contato

com os grupos marginais e com as atividades extracurriculares – provavelmente, nenhuma

delas previstas quando da inscrição no vestibular. Opera-se transversalidade no processo de

formação: “transversalizar é alterar a perspectiva por uma abertura de visão, o que não se

faz sem um padecimento, na medida em que sou obrigado a deixar entrar no meu sistema

de pensamento, no meu sistema avaliativo, muitas linhas de força” (PASSOS, 2017, p.

198). Estes atravessamentos mais que bem-vindos na vida de Simão é que vão dar o tom de

suas próximas escolhas e inclinações – uma prática médica implicada; engajamento na

militância pelo SUS; um educador e professor que sustenta em sala de aula, e fora dela,

experiências que favoreçam a produção de reflexão crítica e de novos sentidos.

Já com Felipe, tem grande presença em sua narrativa a formação técnica médica: nos fala

de seus anos na faculdade, da carreira em radiologia que pleiteava, dos plantões em que

“tocava a funça”. Entretanto, carrega na mochila quase que uma ferramenta ética, a sua

perspectiva própria de “livre arbítrio”, que vai atravessando suas experiências e relações e,

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aparentemente, conduzindo parte de suas escolhas e orientando sua maneira de se

relacionar com os outros. Essa ideia, que constrói ainda na adolescência, podemos pensá-la

como uma ética na medida em que remete a uma maneira de ser, de se conduzir perante os

outros, atrelada a certa ideia e prática racional de liberdade (FOUCAULT, 2004).

Contrapõe-se a uma moral na medida em que “funciona como vetor que parte de uma

situação instituída [...] para uma condição outra, uma desterritorialização, formando um

novo sentido de existência” (PELLOSO & FERRAZ, 2005, p. 126). Os conflitos vividos

com seus pais, a relação com professores rígidos e veteranos humilhantes afirmam a

elaboração de Felipe do “livre arbítrio” e o impulsiona a reinventar seus posicionamentos e

suas concepções de vida e liberdade.

Atentos a esses acontecimentos que atravessaram a vida de Simão e de Felipe pode-se

afirmar que “o ato de formação convoca vários meios, não só o conhecimento racional e

lógico” (ABRAHAO & MERHY, 2014, p. 319) e que os encontros e afecções que o sujeito

tem durante a vida marcam importantes direcionamentos nos processos de produção de

subjetividade e de formação. Sobre isso:

Passamos a vida em encontros, sendo afetados por eles e afetando os outros.

Afecções que nos movimentam para a vida, para a produção de um cuidar

próprio com mobilização de elementos vitais e, também, outros processos de

afecções que mobilizam, ao contrário, muito pouco de nossa potência de viver.

Encontros que potencializam a vida, no sentido da biopotência, convocando a

potência de vida na sua dimensão afetiva, cooperativa, do desejo, da inteligência,

em um processo que se atualiza constantemente no contato com o outro

(ABRAHAO & MERHY, 2014, p. 317-318).

No cotidiano de trabalho no SUS, nas práticas e assistência, essa potência de vida

mobilizada pelos encontros e afecções “alarga as possibilidades de escuta, de fala, de

gestos, de odores, de observação, de toques, de sabores, de olhares, ou seja, amplia os

elementos sensíveis e de pensamento empregados na produção de cuidado” (ABRAHAO

& MERHY, 2014, p. 318).

Neste sentido, retomo um eixo de reflexão que Oury (1991) traça em seu texto sobre

itinerário de formação a respeito de que tipo de motivação, compromisso, competência, é

necessário ter para atuar em determinado serviço ou política pública - é certo que não se

trata aqui das características técnicas do profissional: quando fala de competências, de

motivação, Oury se refere a um tipo de qualidade da ordem da sensibilidade, da relação

com o outro. Pensando no SUS, Feuerweker nos dá uma pista:

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[são necessários trabalhadores] capazes de prestar uma atenção integral e

humanizada às pessoas, que trabalhem em equipe, que saibam tomar decisões

considerando não somente a situação clínica individual, mas o contexto em que

vivem os pacientes, os recursos disponíveis, as medidas mais eficazes (2002, p.

1-2).

Que tipo de práticas pedagógicas ou experiências de ensino poderiam forjar a competência

de prestar uma atenção integral e humanizada às pessoas? Que favoreçam o trabalho em

equipe e atenção em saúde que considere os diversos contextos de vida daquele usuário?

Não é possível responder com certeza, uma vez que vimos, como ilustrado nos itinerários

de Simão e Felipe, o quanto elementos que sequer compõe atividades educacionais tem

importante expressão na construção ética e política dos sujeitos. São justamente as linhas

que escapam às mãos, linhas de fuga, de transversalidade, que, na experiência de nossos

personagens, contribuíram para o desenvolvimento de crítica e de práticas implicadas. Não

é algo da ordem da transmissão de um conteúdo, mas sim do acontecimento, da produção

de sentido, da subjetivação.

Inclino-me a pensar, já em tom de conclusão, ser possível, no entanto, favorecer uma

formação que abarque essa dimensão através da criação de possibilidades de encontro entre

os sujeitos – entre si, com os lugares, com os conceitos, com os sentimentos. Novamente,

como no capítulo anterior, considero a multiplicidade e a coletividade como aspectos

fundamentais de uma formação em saúde.

Estamos pensando em uma prática pedagógica que inclua outras conexões

possíveis para a formação, que seja um acontecimento. Ou seja, que produza

abalos no campo dos sentidos, na efetuação daquilo que passa e toca no

cotidiano da formação, em que os sujeitos (professor-aluno-usuário-trabalhador)

envolvidos busquem novos significados para dar conta do que acontece a eles

(ABRAHAO & MERHY, 2014, p. 314).

Para que a formação seja mais potente, parece importante que as experiências de ensino

tenham amplitude e uma multiplicidade de possibilidade de encontro e afecção. A essa

multiplicidade de experiências e encontros, cabe o acompanhamento próximo, dentro de

um espaço de conversa e reflexão, que tenha por intento cuidar dos efeitos e

atravessamentos, se atentar ao itinerário de formação do sujeito, a certo processo de

produção de si que ocorre no processo formativo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na trajetória de dois anos da realização dessa pesquisa eu pude vivenciar muitas coisas. Uma

delas, a própria pesquisa em si, compõe meu itinerário como um importante marco

profissional e de formação. Carreguei-a em um braço enquanto no outro carregava meu

trabalho de quarenta horas semanais bem preenchidas como psicólogo de um NASF – isso

durante o primeiro ano, quando pude acompanhar o Pró-Saúde Mamoré. No segundo fui

transferido para uma equipe de saúde mental para trabalhar principalmente na linha de

cuidado de pessoas com vidas difíceis, que hoje fazem um uso compulsivo de drogas

enquanto vivem um cotidiano de violência – da polícia, do tráfico, do Estado, do estigma, das

outras pessoas - e miséria nas ruas do centro de São Paulo. Após um dia inteiro de trabalho

em que me debruçava com minha equipe, mobilizado pelo sofrimento de muitos amigos e

usuários, sobre modos de produzir potência e resistência no seio de uma política municipal

elitista, higienista e mercadológica, sentava na cadeira em meu apartamento para escrever

sobre formação no SUS.

Estudava e escrevia sobre experiências de ensino, políticas de formação, enquanto eu mesmo

aprendia no meu dia a dia sobre todo um novo campo de disputa. As lógicas não mudaram

muito, entretanto: internação hospitalar x cuidado comunitário; doença psiquiátrica x exclusão

social; questão de cura x questão de cidadania. Havia uma diferença importante: além do

aprisionamento de um discurso biomédico e científico sobre a saúde de quem faz uso de

drogas, há também intensa aplicação moral da culpa religiosa concorrendo a este campo de

saber e poder – isso ainda não tinha visto na Saúde Pública. Mais do que nunca me convenci

da necessidade de investir em práticas de formação que privilegiem o contato com o serviço,

que favoreçam a reflexão crítica.

Cheguei a me chatear por um tempo com a falta de investimento governamental atualmente

em atividades de ensino para trabalhadores do SUS – não bastasse não haver mais Pró-Saúde,

sequer eu poderia ser liberado da minha carga horário de trabalho para atender às disciplinas e

reuniões do núcleo de pesquisa. Parei de me chatear com isso quando lembrei que uma

infinidade de experiências de formação se dá sem o reconhecimento de uma instância oficial,

sem fazer parte de uma agenda de serviço, sem ter nome ou hora marcada. O que me fez

lembrar disso foram as histórias que Simão e Felipe me contaram sobre suas trajetórias, seus

itinerários de formação, e além disso, as varias iniciativas que, as vezes sem perceber, eu e

meus colegas encabeçávamos no dia a dia do trabalho e que tinham como perspectiva o

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ensino – uma conversa sobre o que é Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) que volta e

meia é recordada por minha interlocutora, que nunca esqueceu; alguns passeios pela rua com

novos colegas de trabalho que não sabem o que é o centro de São Paulo e os serviços com que

contamos tanto; rodas de conversa sobre diferentes assuntos e que, como efeito, garantem

respeito e cidadania às pessoas atendidas; leitura de um parágrafo ou outro de um livro no

início de uma reunião; etc. A preocupação com o ensino e a formação me acompanha, não só

por conta das obrigações que tive com a realização do mestrado, mas por se tratar de uma

frente importantíssima de militância pela vida, minha e dos outros. Nesse sentido, se afirma

em mim o compromisso em sempre tentar criar atividades ou momentos em que o ensino e a

formação possam se dar.

Acredito que uma importante ferramenta para isso, e que descobri no processo de pesquisa, é

a ideia de itinerário de formação. Pensar o itinerário de formação enquanto método de

pesquisa, mas também enquanto dispositivo de produção de si, me anima. No contexto dessa

pesquisa não pude explorar ao máximo esses elementos: poderia ter entrado em contato com o

itinerário de mais pessoas; me aprofundado, através de outras perguntas, no itinerário de

Simão e Felipe, etc. Percebo seu potencial, no entanto, na medida em que ao escrever um

pouco do meu itinerário, e também ao conversar com Simão e Felipe sobre o deles, produz-se

um efeito de lembrança e afirmação, é um exercício de recordar de situações e afirmar o

sentido que aquilo deu à vida, é marcar um acontecimento. Trata-se uma prática de certa

lapidação da própria história, dos próprios caminhos. Só posso imaginar que, enquanto um

dispositivo, se dedicar a traçar seu itinerário de formação, ou mobilizar que os outros se

dediquem a traçar os seus, pode convocar a uma relação implicada clinica-ética-politicamente

consigo mesmo e com os campos institucionais que os atravessam. Seguirei atento a isso em

meus próximos caminhos, por onde quer que eu transite, porque agora posso dizer que faz

parte de mim.

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ANEXO I

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você está sendo convidado (a) a participar como voluntário de um estudo. Este documento, chamado

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, pretende assegurar seus direitos como participante e é elaborado

em duas vias, uma que deverá ficar com você e outra com o pesquisador.

Meu nome é Augusto Sanches Viodres, sou Psicólogo e faço mestrado em Psicologia Social na

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC – SP). Estou realizando uma pesquisa sob a orientação da

Professora Dra. Maria Cristina Gonçalves Vicentin. Qualquer dúvida que você tiver sobre esta pesquisa, pode

entrar em contato comigo no endereço de e-mail e telefone informado no final da folha.

O Título da Pesquisa é: “Itinerários de formação em saúde - narrativas de profissionais”. Pesquisador

responsável: Augusto Sanches Viodres – Psicólogo. O objetivo desta pesquisa é “refletir sobre práticas de

formação no Sistema Único de Saúde enquanto campo de produção de subjetividade de discentes, docentes e

trabalhadores da saúde”.

Realizarei esta pesquisa participando e acompanhando as atividades do Pro Saúde na UBS Mamoré – a

construção de cada encontro, as visitas domiciliares, as rodas de conversa, a elaboração e execução do projeto de

conclusão. Além disso, através de entrevistas semi-estruturadas, procurarei conhecer do (a) participante suas

histórias e memórias relativas ao que o (a) conectou com a área da saúde e as situações e aprendizados marcantes

em sua trajetória. Os encontros e atividades acompanhadas serão registrados em um diário de campo e as

entrevistas serão áudio-gravadas, transcritas e organizadas/apresentadas em forma de narrativa.

Ao participar deste estudo você permitirá que eu utilize na pesquisa as informações dadas sem que haja

identificação de seu nome. Você tem liberdade de se recusar a participar e/ou ainda se recusar a continuar

participando em qualquer fase da pesquisa, sem qualquer prejuízo para você. Sempre que quiser poderá pedir

mais informações sobre a pesquisa através do telefone do pesquisador do projeto e, se necessário, através do

telefone do Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

A participação neste estudo não apresenta risco significativo de ordem física ou psicológica para você.

Caso haja algum desconforto em relação à abordagem de um assunto ou a alguma pergunta realizada pelo

entrevistador, você poderá livremente optar por não responder e também não mais participar como voluntário

desta pesquisa. Os procedimentos adotados nessa pesquisa obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa com

Seres Humanos conforme Resolução no. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.

Todas as informações coletadas neste estudo são estritamente confidenciais. As informações serão

organizadas de tal maneira que ninguém identifique você, sua família ou amigos. Somente a equipe de

pesquisadores terá conhecimentos dos dados de pesquisa.

Você não terá nenhum tipo de despesa para participar desta pesquisa, bem como nada será pago por sua

participação.

Esperamos que esse estudo forneça informações importantes sobre os processos de formação e trabalho

dos profissionais da saúde pública ajudando a melhorar o atendimento feito pelos locais que cuidam da saúde das

pessoas.

Tendo em vista os itens acima apresentados, eu, de forma voluntária e esclarecida, manifesto meu

consentimento em participar da pesquisa.

___________________________

Nome do participante da Pesquisa

_________________________

Assinatura do Participante

_________________________

Assinatura do Pesquisador

Em caso de dúvidas em relação à pesquisa você poderá entrar em contato com o pesquisador:

Pesquisador Responsável: Augusto Sanches Viodres, e-mail: [email protected], contato: (11) 99118-

0248.

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Em caso de dúvidas e denúncias quanto a questões éticas, entrar em contato com as instituições:

Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: Rua Ministro Godói, 969 –

Sala 63-C (Andar Térreo do E.R.B.M.) - Perdizes - São Paulo/SP - CEP 05015-001 Fone (Fax): (11) 3670-8466.

E-mail: [email protected].

Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde: Rua General Jardim, 36 - 8a

andar. Fone:

3397-2464. E-mail: [email protected].