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AUTO DOS ENFATRIÕES Feito por LUÍS DE CAMÕES, em o qual entram as figuras seguintes: Anfatrião; Almena, sua mulher; Sósia, seu moço; Brómia, sua criada; Belferrão, patrão; Aurélio, primo dela, com seu moço; Júpiter e Mercúrio. E entra logo Almena, saudosa do marido, que é na guerra, e diz Almena Ah! Senhor Anfatrião,(1) Onde está todo meu bem! Pois meus olhos vos não vêm, Falarei co coração, Que dentro n’alma vos tem. Ausentes duas vontades, Qual corre mores perigos, Qual sofre mais crueldades: Se vós entre os inimigos, Se eu entre as saudades? Que a Ventura, que vos traz Tão longe da vossa terra, Tantos desconcertos faz, Que se vos levou à guerra, Não me quis deixar em paz. Brómia, quem, com vida ter, Da vida já desespera, Que lhe poderás dizer? Brómia Que nunca se viu prazer, Senão quando não se espera. E portanto não devia De ter triste a fantesia; Porque Vossa Mercê creia, Que o prazer sempre salteia

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AUTO DOS ENFATRIÕES

Feito por LUÍS DE CAMÕES, em o qual entram as figuras seguintes:

Anfatrião; Almena, sua mulher; Sósia, seu moço; Brómia, sua criada; Belferrão, patrão; Aurélio, primo dela, com seu moço; Júpiter e Mercúrio. E entra logo Almena, saudosa do marido, que é na guerra, e diz

Almena Ah! Senhor Anfatrião,(1)Onde está todo meu bem!Pois meus olhos vos não vêm,Falarei co coração,Que dentro n’alma vos tem.Ausentes duas vontades,Qual corre mores perigos,Qual sofre mais crueldades:Se vós entre os inimigos,Se eu entre as saudades?

Que a Ventura, que vos trazTão longe da vossa terra,Tantos desconcertos faz,Que se vos levou à guerra,Não me quis deixar em paz.Brómia, quem, com vida ter,Da vida já desespera,Que lhe poderás dizer?

BrómiaQue nunca se viu prazer,Senão quando não se espera.

E portanto não deviaDe ter triste a fantesia;Porque Vossa Mercê creia,Que o prazer sempre salteiaQuem dele mais desconfia.Eu tenho no coração,Do Senhor AnfatriãoVenha hoje algũa nova.Não receba alteração,Que a verdadeira afeiçãoNa longa ausência se prova.

AlmenaDizei logo a FeliseuQue chegue muito apressadoAo cais, e busque meioDe saber [se] algum recadoDo porto pérsico veio.E mais lhe haveis de dizer,(Isto vos dou por ofício)De algũa nova saber,Enquanto eu vou fazerAos Deuses o sacrifício.

Vão e vêm Feliseu e Calisto, e diz:

BrómiaSaudades de minha ama,Chorinhos e devações,Sacrifícios e orações,Me hão-de lançar nũa cama,Certamente.Nós, mulheres de semente,Somos sedenho(2) tão tosco!...Com qualquer vento que vente,Queremos forçadamenteQue os Deuses vivam connosco.

Quero Feliseu chamar,E dizer-lhe aonde há-de ir.Mas ele, como me vir,Logo há-de querer rinchar,(3)De travesso.Eu que de zombar não cesso,Por ficar com ele em salvo,Lanço-lhe um e outro remesso;Aos seus furto-lhe o alvo;E então ele fica avesso.

Porque o melhor destas danças,Com uns vendiços(4) assi,É trazê-los por aquiÓ cheiro das esperanças.Por viver.Há os homem de trazerNos amores assi mornos,Só pera ter que fazer;E despois, ao remeter,Lançar lhe a capa nos cornos.(5)

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— Feliseu, se estais à mão,Chegai cá! — Vem como um gamo;Bem sei que não chamo em vão.

Vem FeliseuChamais-me? Também vos chamo;Porém eu ouço, e vós não,Senhora, que me matais!Se vós já nunca me ouvis,Ou me ouvis, e vos calais,Dizei: porque me chamais,Se me vós a mim fugis?

BrómiaEu vos fujo?!

FeliseuFugis, digo,De dar a meus males cabo.

BrómiaSabei que desse perigoNão fujo como de imigo:Fujo como do diabo.

FeliseuDai ao demo essa tenção,Usai antes de cortês,Caí vós nesta razão.

BrómiaDo p’rigo fogem os pés,Do diabo o coração.

FeliseuDizeis-me que, nessa briga,Do meu coração fugis?!

BrómiaAinda que eu isso diga...

FeliseuAh! minha doce inimiga,Bem sinto que me sentis!Mas pera que me chamais?

BrómiaManda-vos minha Senhora

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Que chegueis daqui ao cais,E algũas novas saibaisDe Anfatrião nesta hora.

FeliseuQuem as não sabe de si,De outrem como as saberá?

BrómiaNão nas sabeis vós de mi?

FeliseuMá trama venha por ti,Dona feiticeira má!Porque não me olhas direito,Cadela, que assi me cortas?

BrómiaPorque vos quero dar portas;(6)Que, se eu olhar de outro jeito,Trarei cem mil vidas mortas.

FeliseuE pois pera que me andaisEnganando há cem mil anos?

BrómiaDou-vos vida com enganos.

FeliseuNesses enganinhos taisAcho cruéis desenganos.

BrómiaQuanto a esses, vos quero eu dar.Vós cuidais que estais na sela?Pois podeis-vos descer dela,Que eu nunca vos pude olhar.

FeliseuJogais comigo à panela?(7)

Tendes-me há tanto cativo,E desenganais-me agora?!Tudo isso é o que privo!Assi, que é isso, Senhora?Doychelo morto, doychelo vivo?(8)Se me vós desenganais

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No cabo de tantos anos,Direi, se licença dais: Dai-me vida com enganos,Desenganos, já chegais.

Mas se isso havia de ser,Dizei, má desconhecida,(9)Desterro de meu viver,Que vos custava dizer:Amor, vai buscar tua vida?

BrómiaZombais? Falais-me coprinhas?(10)

FeliseuRir-vos-eis, se vem à mão;Copras não, mas isto sãoAnsias y passiones minhasDos bofes e coração.

BrómiaIs-vos fazendo de uns sengos...(11)

FeliseuPerdoneme Dios, si peco.

BrómiaNesses dentinhos framengos,Conheço que sois um pecoDe todos quatro avoengos.(12)

FeliseuTudo vos levo em capelo,(13)Já que estais tanto em agraço.Porém, falando singelo,A furto desse mau zelo,(14)Quereis-me dar um abraço?

BrómiaOra digo que não possoUsar convosco de fero.(15)Tomai-o.

FeliseuJá o não quero,Porque esse abraço vosso,Sabei que é engano mero.

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BrómiaOh! vós sois duns sensabores...Abraços pedis assim?!Se eu remango dum chapim...(16)

FeliseuTudo isso são favores:Zombai, vingai-vos de mim.

BrómiaVós, de furioso touroAs garrochas não sentis.

FeliseuVedes, com isso sou mouro:Quando cuido que sois ouro,Acho-vos toda ceitis.

BrómiaEnfim, sanha de vilãoVos fez perder um bom dia.

FeliseuJágora o eu tomaria.Quereis-mo dar?

BrómiaOra não.Cocei-vos eu todavia.

FeliseuPois, Senhora, a quem vos amaSois tão desarrazoada,Quero tomar outra dama;Que não digam os de AlfamaQue não tenho namorada.

BrómiaDeixai-me.

FeliseuVós me deixais.

BrómiaDeixai-me.

FeliseuZombais de mi?

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BrómiaDeixai-me. Pois me enjeitais,Eu me ausentarei daquiOnde me mais não vejais.

FeliseuBoa está a zombaria!

BrómiaNão são essas minhas manhas.

FeliseuPorém, is-vos todavia?

BrómiaVoyme á tierras estrañasAdó Ventura me guia.(17)

Vai-se Brómia e diz

FeliseuFantesias de donzelas,Não há quem como eu as quebre;Porque certo cuidam elas,Que com palavrinhas belasVos vendem gato par lebre.

Esta tem lá pera siQue eu sou por ela finado,E crê que zomba de mi;E eu digo-lhe que si,Sou por ela esperdiçado.Preza-se dũas seguras;(18)E eu não quero mais Frandes:(19)Dou-lhe trela às travessuras,Porque destas coçadurasSe fazem as chagas grandes.

Que estas, que andam sempre à velaEstas vos digo eu que coço;Porque, de firmes na sela,Crêm que falsam a costela,E ficam pelo pescoço.Que quando estas damas taisMe cacham, então recacho.Mas disto agora nomais.Quero-me ir daqui ao cais,Ver se algũas novas acho.

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Vai-se Feliseu e vem Júpiter e Mercúrio, e diz

JúpiterOh! grande e alto destino!Oh! potência tão profana!Que a seta de um mininoFaça que meu ser divinoSe perca por cousa humana!Que me aproveitam os Céus,Onde minha essência mora,Com tanto poder, se agora,A quem me adora por Deus,Sirvo eu como senhora?

Oh! que estranha afeição!Quem em baixa cousa vai pôrA vontade e o coração,Sabe tão pouco de Amor,Quão pouco Amor de rezão.Mas que remédio hei-de terContra mulher tão terrível,Que se não pode vencer?

MercúrioAlto Senhor, teu poderO difícil faz possível.

JúpiterTu não vês que esta mulher Se preza de virtuosa?

MercúrioSenhor, tudo pode ser;Que pera quem muito quer,Sempre a afeição é manhosa.Seu marido está ausente Na guerra, longe daqui;Tu, que és Júpiter potente,Tomarás sua forma em ti,Que o farás mui facilmente.

E eu me transformareiNa de Sósia, criado seu;E ao arraial me irei,Onde logo sabereiComo se a batalha deu,E assi poderás entrarEm lugar de seu marido,

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E pera que sejas crido,Poderás também contarQuanto eu lá tiver sabido.

JúpiterQuem arde em tamanho fogoTira-lhe a virtude a corDe sutil e sabedor;E quem fora está do jogoEnxerga o lanço milhor.Mas tu, que dos sabedoresTanto avante sempre estás,Se Deus és dos mercadores,Sê-lo-ás dos amadores,Pois tal remédio me dás.

Ponha-se logo em efeito,Que não sofre dilaçãoQuem o fogo tem no peito;E tu, vai logo direitoOnde anda Anfatrião.

Vão-se e vêem Feliseu e Calisto, e diz

FeliseuAdó bueno por aqui,Tão longe do acostumado?

CalistoMais longe vou eu de mi,De ir perto de meu cuidado.

FeliseuNo andar vos conheci.

CalistoE vós onde vos lançais,Com vossa contemplação?

FeliseuEu chego daqui ao caisA saber de Anfatrião.Não sei se vou por demais.

CalistoPorque «por demais» dizeis?

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FeliseuPorque nada ali há certo.

CalistoNovas lá não nas busqueis,Que aqui as tendes mais perto.

FeliseuPois dai-mas, se as sabeis.

CalistoUm navio é já chegadoÀ barra, que vem de lá;Traz de Anfatrião recado:Diz que o deixa embarcadoPera se vir pera cá.

Tem vencido aquele rei;E diz, segundo lhe ouvi,Que esta noite será aqui.

FeliseuEssas novas levareiA Almena, que torne em si,Porque ela tem maior guerraCos temores de perdê-lo,Que ele co rei dessa terra.

CalistoOnde amor lançar o selo,Nenhũa cousa o desterra.

Porque inda que o pensamentoVos fique, Senhor, em calma,Por morte ou apartamento,Sempre vos lá ficam na almaAs pegadas do tormento.

FeliseuIsso é um segredo mero,A que Amor nos obriga.Por isso, em caso tão fero,Senhor, nunca ninguém diga:Já lho quis, e não lho quero.

Eu quis bem a ũa mulher,Que vós conhecestes bem;

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E, com muito lhe querer,Casou-se.

CalistoOh! e com quem,Que ainda o não posso crer?

FeliseuCom um mercador, que veioAgora do Egipto rico.

CalistoIsso traz água no bico.Esse homem é parvo ou feio?

FeliseuPois vedes? Disso me pico.E em pago desta treição,Afora outros mil descontosQue traz consigo a afeição,Sempre os sinais destes pontosTrarei no meu coração.

CalistoViste-la mais?

FeliseuSenhor, vi,Na janelinha da grade.Passei, e disse-lhe assi:- Casada sem piedade,Porque não na haveis de mi?

CalistoQue vos disse?

FeliseuLá no centroLhe enxerguei pouca alegria;E como quem lhe doía,Metendo-se pera dentro,Disse: - Já pasó folia.

CalistoAh! má sem conhecimento!Quem lhe desse mil chofradas!

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FeliseuSenhor, como são casadas,Casam-se co esquecimentoDas cousas que são passadas.

CalistoLembranças de vos deixarPicar-vos-ão como tojos.

FeliseuSenhor, haveis de assentarQue onde Amor vos quer matar,Sempre allá miran [los] ojos.Um mote, Senhor, mandeiUm dia, estando com febre,Só da paixão que tomei.

CalistoPois vejamos quem tem lebre.

FeliseuSenhor, eu vo-lo direi:

MOTEVós por outrem, e eu por vós;Vós contente, E eu penado;Vós casada, eu cansado.P’los santos de minha dona!

CalistoSenhor, vós só [o] fizestes?

FeliseuSi, que ninguém me ajudou:

CalistoSe vós só o compusestes,Crede que extremos dissestes.Nunca Orlando tal falou!(20)Senhor, fizestes-lhe pé?(21)

FeliseuSenhor, si; todo um ano...Vós zombais, se não me engano.

CalistoNão, mas dou-vos minha féQue nunca vi tão bom pano.

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FeliseuOra olhe Vossa Mercê:

VOLTAOlhai em quão fundos vausPor vossa causa me afogo,Que outro me ganha o jogo,E eu triste pago os paus.(22)Olhos travessos e maus,Inda eu veja o meu cuidadoPor esse vosso trocado.

CalistoNomais, que isso me degola.

FeliseuSenhor, eu haja perdão.

CalistoFizestes esse rifãoEm algum jogo de bola?E foi-lhe ele ter à mão?

FeliseuDigo-vos que o viu e lho leuUm mocinho de escola.

CalistoEstá isso assi do Céu.Sabe ela jogar a bola?

FeliseuNão.

[Calisto]Pois não vos entendeu.Ora eu já cheguei a lerPetrarca, e crede de miQue nunca tal cousa vi.Onde mora o bom saber,Logo dá sinal de si.Onde casada pusestes,Dizei, porque não dissestesLa que yo vi por mi mal?

FeliseuRenunciava o metal;

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Que em rifõezinhos como estesHá-de-se pôr tal com tal.

Que a trova trigo-tremês(23)Há-de ser toda de um pano;Que parece muito ingrêsNum pelote portuguêsTodo um quarto castelhano.Ouvi outra também minha,Que fiz a certa tenção,Crara, leve, bonitinha,De feição que esta trovinhaÉ trovinha de feição.

Como eu um dia me visseMorto, e a mão na candeia,(24)E ela não me acudisse,Fiz lhe esta, porque sentisseQue dava os fios à teia.E o propósito é Andar eu um dia só;E pera que houvesse dóDe mi e de minha fé,Lamentei-lhe como Jó.

CalistoAndastes, Senhor, mui bem.

FeliseuOra, Senhor, atentai,E vede o saibo que tem,Se é pera a ver alguém.

CalistoOra dizei.

FeliseuEi-la vai:

TROVACoração de carne crua,Vê-lo teu amor aqui,Que esmorecido por tiJaz no meio desta rua.

CalistoNa rua, Senhor, jazia?E era em tempo de lama?

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FeliseuSenhor, quem fala a quem amaDe si mesmo se não fia. Haveis de mentir à dama.

CalistoVolta disso?

FeliseuSingular,Senão que é muito sentida;Far-vos-há, Senhor, chorar.

CalistoOh! diga, por sua vida!

FeliseuFarei o que me mandar.

VOLTAPorque não hás dele mágoa,Ó dura mais que ninguém,Que anda o triste, que não temQuem lhe dê ũa vez de água?(25)Não lhe negues teu querer,Pois te não custa dinheiro;Que, enfim, por derradeiro,A terra te há-de comer.

CalistoTal trova nunca se viu.Agorentaste-la já?

FeliseuSenhor, não; ainda estáComo a sua mãe pariu,E não está muito má.

CalistoÉ trova que tem por seis;Não na posso mais gabar.Mas, pois tal coisa fazeis,Senhor, não me ensinareisDonde vem tão bem trovar?

FeliseuNão é a cousa tão pequena,Como, Senhor, a fizestes,

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Essa que agora dissestes.Mas, porém, vou dar a AlmenaEstas novas que me destes.Despois, Senhor, nos veremos;Ficai roendo esse osso.

CalistoO roer, Senhor, é vosso.

FeliseuPois eu, por mais que zombemos,Hei-de ser vosso e revosso.

CalistoOh!... Escusai-vos de extremos,Que isso, Senhor, me atarraca.Mas nós nos encontraremos,E sobre isso envidaremos(26)Dous reales mais de saca.

Vão se ambos e vem Júpiter e Mercúrio transformados, Júpiter na forma de Anfatrião, Mercúrio na de Sósia, escravo, e diz

JúpiterMercúrio, pois sou mudadoNesta forma natural,Olha e nota com cuidado,Se está em mi o pintadoAparente co real.

MercúrioQuem tão próprio se transforma,Tenho por opinião,Que na tal transformaçãoLhe prestou Natura a forma,Com que fez Anfatrião.

JúpiterPois tu no gesto e na cor,Estás Sósia, escravo seu,

MercúrioMuito mais farás, Senhor.

JúpiterNão no faz senão o Amor,Que nisto pode mais que eu.

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MercúrioJá, Senhor, te fiz mençãoComo deu AnfatriãoA El-Rei Terela a morte;Que, na guerra igual, a sortePode mais que o coração.

E despois de ser tomadaToda a cidade, com glóriaDe Anfatrião bem ganhada,Como em sinal de vitória,Esta copa lhe foi dada.Por ela bebia El-Rei,Enquanto a vida queria;E eu, porque te compria,A seu escravo a furtei,Que nũa caixa a trazia.

Esta poderás levarA Almena, por lhe mostrarVerdadeiro, o que é fengido;E desta arte serás crido,Sem mais outro ardil buscar.

JúpiterPois tudo tens ordenadoPor tão nova e sutil arte,Como me vires entrado,Irás dar este recadoA Febo, de minha parte:

Que faça mais devagarSeu curso neste Hemisfério,Que o sói acostumar;Que esta noite hei-de ordenarUm caso de alto mistério.E à Esfera mais alta(27)Mandarás que fixa esteja,Porque a noite maior seja;Porque sempre o tempo falta,Onde alegria é sobeja.

E terás tamanho tento,Que, como isto se ordenar,Venhas aqui vigiar,Porque meu contentamentoNinguém mo possa estorvar.

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MercúrioSeja feito sem debateTudo como te convém.

JúpiterPois não parece ninguém,Como homem de casa bate,E muda a fala também.

Bate Mercúrio à porta.

MercúrioÓ de la casa, en buena hora,Dar me han de cenar aqui?

Brómia dentro

BrómiaSósia parece que ouvi.!Alvíssaras, minha Senhora,Que na fala o conheci!

Entra Almena e Brómia

AlmenaZombais, Brómia, por ventura?

BrómiaSenhora, não zombo, não.

AlmenaVejo eu Anfatrião,Ou a vista me afiguraO que está no coração?

JúpiterOlhos, diante dos quaisDesejei mais este diaQue nenhũa outra alegria,Senhora, nunca creiaisQue lhe minta a fantesia.

AlmenaOh! presença mais queridaQue quantas formou Amor!Isto é verdade, Senhor?Acabe-se aqui a vida,Por não ver prazer maior.

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JúpiterPois esta hora de vos verAlcançar, Senhora, pude,Pera mais contente ser,Conformem co este prazerNovas de vossa saúde.

AlmenaA vida foi pesada e cruaÀ saúde que e sustinha,Que enquanto, Senhor, a tinha,Temer perigo na sua,Me fez descuidar da minha.

MercúrioY pues, mi Señora Almena,Pese al demonio malvado,No dirá a un su criado:Vengais, Sósia, norabuena?

AlmenaSejais, Sósia, bem chegado!

BrómiaBem mal cri eu que pudesseVer-te, Sósia, hoje aqui.

MercúrioPues también yo no creíQue en mi vida te viese,Segun las muertes que vi.

AlmenaMuito, Senhor, folgareiCom novas de vencimento.

Júpiter

De tudo quanto passei,Por vos dar contentamento,Em suma vos contarei.Trago, Senhora, a vitóriaDaquele rei tão temido,Com fama crara e notória.Porém, maior foi a glóriaDe me ver de vós vencido.

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Sem me terem resistência,Os Grandes me obedeceram,Como El-Rei morto tiveram;Em sinal de obediênciaEsta copa me trouxeram.El-Rei por ela bebia:(Ela, e tudo o mais é nosso)Por onde craro se via,Que tudo me obedecia,Pois tinha nome de vosso.

MercúrioSí, mas luego de rondónLa fortuna dió la buelta.

AlmenaComo?

MercúrioFué gran perdición,Porque en aquella rebuelta,Me hurtaron mi jubón;(28)Pero bien lo pagaron,Cuando comigo riñeron;Que aunque me despojaron,Si uno de seda llevaronOtro de azotes me dieron.

AlmenaSenhor, não posso gostarDe gosto que é tão imenso,Senão muito devagar.Faça-me mercê de entrar,E contar-mo-á por extenso.

Vão-se e fica Mercúrio e Brómia

MercúrioYo tambien te contaria,Brómia, si quedas atrás,Que una noche... enojarte has?

BrómiaQue?

MercúrioSoñaba que tenia...No me atrevo a decir más.

20

BrómiaDize.

MercúrioPardies(29), no diré.Soñaba...

BrómiaBem. Que sonhavas?

MercúrioQue cuando en la cama estavasQue yo... enfin recordé.

BrómiaPois tudo isso receavas?

MercúrioSabe Dios que yo acá siento:Sola una alma vive en dos,La cual anda dentro em vos.

BrómiaE que quer ela cá dentro?

MercúrioTambién eso sabe Dios.

Vai-se Brómia e diz

MercúrioBem se poderá enganarBrómia, segundo ora estou,Como Almena se enganou;Mas cumpre ir ordenarO que meu Pai me mandou.E porque seja guardadaEsta porta, e vegiadaDe toda a gente nacida,Me será cousa forçada,Ser tão depressa a tornada,Quão prestes faço a partida.

Vai-se Mercúrio e vem Sósia com recado de Anfatrião

Sósia, cantando:Anfatrion esforzadoBravo vá por la batalla,

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Siete cabezas llevava,De las mejoras que há hallado.

Fala

Quien viene de tierra agena,Y de la muerte escapó,La razón le permitióQue cante como sirena,Como agora hago yo.Y pues canto tan gentil,Fuera llanto si muriera,Quiero cantar como quiera,Una y otra, y mas de mil,Que digan desta manera:

Canta

Dongolondron con Dongolondrera,(30)Por el camiño de Otera,Rosas coge en la rosera,Dongolondron con Dongolondrera

Fala

Cuando yo vengo a pensarQue uno matarme quisiera,No hago sino temblar,Porque creo, si muriera,No pudiera mas cantar.Porque estando a un rincónDe la casa adó quedé,Senti muy grande ronrón,Y mirando, que miré?Vi que era un gran ratón.

Empero yo nunca sigo,Sino consejos muy sanos,Que en estos casos livianos,Quien desprecia el enemigo,Mil veces muere a sus manos.Pero mi Señor allíMató al Rey de los Glipazos,Yo, como muerto le vi,Juro a mi fé, que le díMás de dos mil cuchillazos.

22

Y por me librar de afan,Me voy siempre á cosa hechaProbar mi mano derecha;Que aquele es buen capitán,Que del tiempo se aprovecha.Que quien há de pelear,Ba de buscar tiempo y hora.Pero quiero caminar,Que me muero por contarTodo aquesto a mi Señora.

Vem Mercúrio e diz

MercúrioMil vezes comigo vejo,Pera que meu Pai se afoute;Pois em tão pequeno ensejoLhe mandei talhar a nouteÀ medida do desejo.E pois que como possante,A mi tudo se reporta,Chego agora neste instanteA estorvar que este barganteMe não chegue a esta porta.

SósiaNo sé que miedo ó locura,Neste pecho se me cria:Por Dios, que se me afigura,Que há mucho que es noche escura,Sin que venga el claro dia.Mas sabed que pienso yoQue el sol que no se acordóDe con ele dia venir,Que a noche, cuando cenó,Algun buen vino bebió,Que le hace tanto dormir.

MercúrioJá sintes comprida a noute,Que eu assi mandei fazer?Pois mais te quero dizer,Que sentirás muito açoute,Se cá quiseres vir ter.Porém, pois este barganteTem medroso coração,Quero-me fingir ladrão,

23

Ou fantasma, e por dianteNão irá, se vem à mão.

E contudo, se passar,A fala quero mudarNa sua, de tal feição,Que couces e porfiarLhe façam hoje assentarQue sou Sósia, ele não.

Fala castelhano

No veo pasar ninguno.En quien yo me pueda hartar.

SósiaA quien oigo aqui hablar?Mande Dios no sea algunoQue me quiera aporrear.

MercúrioLa carne de algun humano(31)Me seria muy sabrosa.

SósiaOh! que voz tan temerosa!Hombres comes, ó mi hermano?No es mejor otra cosa?Carne humana es muy mezquina.Oh! no comas deso, no!Antes carne de gallina.Pero, se más se avecina,Que mas gallina que yo?

MercúrioUna voz de hombre ahoraA la oreja me boló.

SósiaPésate quien me parió!La voz traigo boladora?Ella quisiera ser yo.Pues mi voz pudo bolarDo la pudieses oyr,Por contigo no reñir,Me debiera de prestarLas alas para huir.

24

MercúrioQue buscas cabe essa puerta,Hombre? Sé que eres ladrón.

SósiaAy que el alma tengo muerta!Oh! Júpiter me conviertaLas tripas en corazón!

MercúrioQuien eras? quieres hablar?

SósiaSoy quen mi voluntad quiere.

MercúrioPiensas que puedes burlar?

SósiaY tú puedesme quitarQue yo sea quien quisiere?

MercúrioOsas hablar tan osado,Don vellaco bovarrón?Dí, quien eres?

SósiaUn criadoDel señor AnfatriónPor nombre Sosea llamado.

MercúrioPienso que el seso perdiste.Como te llamas, mal hombre?

SósiaSosea soy, si no me oiste.

MercúrioComo?! en persona tan tristeOsas de ensuciar mi nombre?

Estos puños llevarás,Pues tener mi nombre quieres.Quiéresme decir quien eres?

25

SósiaO Señor, no me dés mas,Que yo seré quien tú quisieres.

MercúrioCon tan nueva falsedadAndais por esta ciudad,Delante de quien os mira?!Pues si sois Sosea, tomad!

SósiaSi me dás por la verdad,Que me harás por la mentira?

MercúrioY que verdad es la tuya,Que te quiero dar castigo?

SósiaSi no soy Sosea que digo,Que Júpiter me destruya!

MercúrioMirad el falso enemigo!Tomad este bofetón,Que yo soy Sosea, e no vos!

SósiaTú Sosea?!

MercúrioSosea por Dios,Escravo de Anfatrión.

SósiaDe modo que tiene dos?

MercúrioNo terná(32), aunque tu quieres;Que á mi solo conoció.

SósiaPues yo luego quien soy?

MercúrioSi tú no sabes quien eres,Quieres que lo sepa yo?

26

SósiaEnfin, hasme de hacer crerQue yo no soy quien ser solia?!

MercúrioQuien solias tú de ser?

SósiaTregoas me has de prometer,Dirte lo he sin porfía.

MercúrioPrometo.

SósiaNo me darás?

MercúrioNo, si no fuere razón.

SósiaPues, hermano, tú sabrásQue mi amo Anfatrión...

MercúrioTu amo? Pues llevarás!Mi amo es, que tuyo no.

SósiaAy que un brazo me quebró!

MercúrioMas que luego te matase.

SósiaOjalá Dios ordenaseQue tú ahora fueses yo,Y yo que te desmembrase!

MercúrioEsa tu tema tan loca,Puños te la han de quitar.Dime, dí vergüenza poca,Qué hablas?

SósiaQué puedo hablar,Si me has quebrado la boca?

27

MercúrioDí quien eres, sin fadiga.

SósiaSoy un hombre en quien tu das.Como quieres tú que diga,Para que no me dés más!

MercúrioNo me has de hablar contrahecho.

SósiaToda mi vida pasadaSosea fuy, y con despechoAhora soy... qué? Nonada,Que tus manos me han deshecho.

MercúrioCuyo eres, pues las sientes,Dejando consejos vanos?La verdad; que si me mientes,Das con la lengua en los dientes,Y yo doyte con las manos.

SósiaNo conoces Anfatrión?

MercúrioHombre sin seso te llamo,Tan fuera estás de razón!Piensas de mí, bovarrón,Que no conozco á mi amo?

SósiaEn su casa conocisteUno que es Sosea llamado,Hombre despreciado y triste?

MercúrioDesa suerte lo dejiste?!Yo soy triste y despreciado?!

Pues sabe que te allegóÁ la muerte tu fortuna.

SósiaPues logo, si yo no soy yo,Aunque nadie me mató,

28

Soy luego cosa ninguna.Oh! Dioses, que desconcierto!Yo por ventura soy muerto,Ó murióme la razón?Yo no soy de Anfatrión?Él no me mandó del puerto?

Yo no sé que no estoy loco.De mi madre no nací?No ando? No hablo aqui?

MercúrioPues sosiega ahora un poco,Que yo tambien diré de mí.Yo no sé que yo soy yo?Yo no te di con mis manos?Mi Señor no me llevóA la guerra, adó matóAquel Rey de los Tebanos?

SósiaYo eso muy bien lo sé.Empero tú qué haciasCuando la batalla vias?

MercúrioEscucha: yo lo diré,Y cesarán tus porfías.Cuando mi Señor andabaPeleando, y derramabaLa sangre de algun mezquino,Con una bota de vino(33)Yo la mia acrescentaba.

Sósia(Dice lo que yo hacia!)Con todo, saber queriaSola una cosa, si puedo:Tu pecho entonces sentia...?

MercúrioDel beber grande alegria,Y del pelear gran miedo.

SósiaY despues?

29

MercúrioMuy reposadoA dormir me eché de grado,Desde el sol hasta la luna.

Sósia(Todo lo tiene contado!Enfin, tengo averiguadoQue yo no soy cosa ninguna!)

Pues de todo en un instanteMe has echado de mí fuera,Aconséjame, si quiera:Quien seré daqui adelante,Pues no soy quien de antes era?

MercúrioCuando yo no ser quisiereEse que tú ser deseas,Despues que ya Sosea no fuere,Darte he, si te pluguiere,Licencia que todo lo seas.

Y acógete luego, amigo,Á buscar tu nombre; digo,Pues Dios vida te dejó,Quel el Sosea queda comigo.

SósiaPues contigo quedo yo,Dios quede, hermano, contigo.

Ahora quiero ir alláAdó mi Señora está, Contarle como es venido Mi Señor. Mas, oh perdido!Si otro yo tiene allá,Todo lo terná sabido.

MercúrioAh hombre!...

SósiaMi voz sonó.

MercúrioAonde vuelves ahora?

30

SósiaPor Dios! no sé onde vó,Porque si yo no soy yo,Ni Almena es mi Señora...

MercúrioAdonde vás?

SósiaCon mensajeDel Señor AnfatriónPara Almena.

MercúrioAdó, salvaje?Pues quebraste la omenaje,Ahí verás tu perdición.

Yo doyte consejos sanos,Y porfías otra vez?

SósiaAltos Dioses soberanos!Pues me no valen las manos!Aqui me valgan los pies.  (Foge)

MercúrioDesta arte enseñan aquiÁ hurtar el nombre ageno?!

Torna Sósia e diz

SósiaAy Dios, como me acogí!Ó Júpiter alto y bueno,Cuan cerca la muerte vi!

Quiérome ir a mi SeñorContarle cuanto hé pasado;Y el me dirá de grado,Si yo soy su servidor,En que cosa me he tornado.

Vai-se Sósia, e vem Júpiter e Almena, e diz

JúpiterToda a pessoa discretaTerá, Senhora, assentado

31

Que um bem muito desejadoSe há-de alcançar por dieta,Pera ser sempre estimado.

E quem alcançado temTamanho contentamento,Por conservá-lo convémQue tome por mantimentoA fome de tanto bem.Por isso hei-de tomarEste tempo tão ditosoPera a frota visitar;E despois, quando tornar,Tornarei mais desejoso.

Que pois tão bom cativeiroMe tem presa a liberdade,Eu lhe prometo, em verdade,Que torne ainda primeiro,Que mo peça a saudade.

AlmenaAinda que se possa irMais asinha do que creio,Como hei de consentirQue se haja de partirNa mesma noite que veio?

JúpiterForçada é minha tornada,Mas muito cedo virei;Porque, desque foi chegadaA este porto a armada,Ainda a não visitei.

AlmenaPois, Senhor, tão pouco estaisCom quem vistes inda agora?!Faça-se como mandais.

JúpiterVós me vereis cá, Senhora,Primeiro do que cuidais.

Vão-se e vêm Anfatrião e Sósia, e diz

32

AnfatriãoEnfim, tu, que estás aqui, Estavas já lá primeiro?

SósiaSeñor, crea que es así.

AnfatriãoEu nunca entendi de ti,Que eras também chocarreiro.

SósiaSeñor, yo que estoy presente,No soy Sosea su criado?

AnfatriãoCreio que não, certamente,Porque Sósia era avisado,E tu és mui diferente.

SósiaPues, Señor, si en mí se véQue no soy quien dantes era,Buélvome.

AnfatriãoE pera quê?

SósiaVer si a dicha me quedéDurmiendo por la galera.

AnfatriãoPois me queres fazer crerŨa doudice tão rasa,Mais quero de ti saber:Como não entraste em casaDe Almena, minha mulher?

SósiaAunque Sosea quisiese,La verdad no negará:Aquel yo que allá está,No quiso que a casa fueseEstotro yo, que iba allá.Y con furia tan crecidaA mí se vino aquel hombre,Que yo me puse en huida,

33

Y assí le dejé mi nombre,Por me dejar él la vida.

AnfatriãoQuem seria tão ousado,Que tanto mal te fizesse?

SósiaYo mismo Sosea llamado,Que a casa era ya llegado,Antes que de acá partise.

AnfatriãoTu chegaste antes de ti?!Este é gentil desbarate!(34)

SósiaPues más le digo daqui,Que vengo huyendo de mí,Porque yo mismo no me mate.

AnfatriãoEram dous, ou era um só,Quem te fez assi fugir?

SósiaPésete quien me parió!Digo que era un solo yo!Mil veces lo he de decir?Puede ser que naceriaDe aquel hombre otro alguno,Como aquél de mí nacia,Porque, aunque fuese él uno,Por más de cuatro tenia.

Él tenia mi aparencia,Empero yo nunca viTal fuerza, ni tal potencia.Esta sola diferenciaLe tengo hallado de mí.

AnfatriãoPudeste dele saberCujo era?

SósiaQuién? aquél yo?Tuyo, Señor, dixo ser.

34

AnfatriãoNunca eu tive mais que um só,E esse não quisera ter.

SósiaPues, Señor, si el bien dobladoTe le muestra ahora Dios,Debe ser de ti alabado;Pues de uno solo criadoTe ha hecho agora dos.

AnfatriãoAntes, pera que conheças,Que cousa é mau servidor,Me pesará, se assi for,Que de tão ruins cabeças,Quantas mais, tanto pior.

E já que são tão incertosTeus ditos pera se crer,Muito milhor deve serQue deixe teus desconcertos,E vá ver minha mulher.

Vão-se e entra Almena e diz

AlmenaQue fado, que nascimentoDe gente humana nacida,Que, de escasso e avarento,Nunca consentiu na vidaPerfeito contentamento!

Anfatrião, que mostrouUm prazer tão desejadoA quem tanto o desejou,Na noite que foi chegado,Nessa mesma se tornou!De se tornar tão asinhaSinto tanto entristecerO sentido e alma minha,Que certo que me adivinhaAlgum novo desprazer.

Mas parece este que vem,Se não estou enganada.Se ele é, venha com bem,

35

Pois que com a sua tornadaTão transtornada me tem.

Entra Anfatrião e Sósia, e diz

AnfatriãoCom que palavras, Senhora,Poderei engrandecerTão sublimado prazer,Como é ver chegada a horaEm que vos pudesse ver?

Certo grão contentamentoTive de meu vencimento;Mas maior o hei de mim,De me ver posto na fimDe tão longo apartamento.

AlmenaJá eu disse o que sentiaDe vinda tão desejada.Mas diga-me, todavia:Como não foi ver a armada,Que me disse hoje este dia?

AnfatriãoDela venho eu inda agoraDesejoso de vos ver,Muito mais que de vencer.Mas que me dizeis, Senhora? — Que hoje me ouvistes dizer?!

AlmenaSe não estava remota,(35)Certamente que lhe ouvi,Quando hoje partiu daqui,Que tornava a ver a frota,Que era forçado assi.

AnfatriãoSósia!

SósiaSeñor, aqui estoy yo.

AnfatriãoTu ouves tal desconcerto?

36

SósiaGrandes orejas ganó,Pues estando en casa oyóQuien estava allá nel puerto!

AnfatriãoQuando dizeis que me ouvistes?

AlmenaHoje, quando vós partistes.

AnfatriãoDonde?

AlmenaDaqui, de me ver.

AnfatriãoNunca vi grande prazer,Que não tenha os cabos tristes.

Quantos males de improvisoQue causam grandes mudanças!Que mulher de tanto avisoAgora minhas lembrançasA têm fora de juízo!

AlmenaQuereis me fazer cuidarQue poderia sonharO que pelos olhos vi?Nunca vos eu mereciQuererdes-me exprimentar.

AnfatriãoPosto que é pera pasmarVer um caso tão estranho,Todavia hei-de atentarSe poderei concertarUm desconcerto tamanho:Quando dizeis que vim cá?

AlmenaEsta noite que passou.

AnfatriãoDai-me alguém que aqui se achou, Que me visse.

37

AlmenaEsse que i está,Sósia, que convosco andou.

AnfatriãoSósia, podes-te lembrar,Que ontem me viste aqui?

SósiaNunca yo supe de míQue me pudiese acordarDe aquello que nunca vi.

AlmenaOra eu creio, e é assi,Que ambos vindes conjurados,Pera zombardes de mi;Mas eu darei hoje aquiSinais que sejam provados.

AnfatriãoQue sinais pode i haverDe mentira tão notória,Que nem foi, nem pode ser?

AlmenaDonde vim eu a saberNovas de vossa vitória?

AnfatriãoQue novas?

AlmenaDir-vo-las-ei,Assi como mas cantastes:Que na batalha matastesAquele soberbo rei,E tudo desbaratastes.

Não fazendo resistênciaNũa batalha tão crua,Dando-vos obediência,Vos deram ũa copa sua,Lavrada por excelência.

AnfatriãoSósia é culpado sóNestes acontecimentos.

38

SósiaSeñor, son encantamientos,Porque aquél hombre, que es yo,Le contaria estos cuentos.

AnfatriãoQuem é esse que vos deuTais novas, saber queria.

AlmenaQuem mo pergunta.

AnfatriãoQuem? Eu?!Quereis-me fazer sandeu?

AlmenaMas vós me fazeis sandia.

AnfatriãoOra quero perguntar:Que fiz, sendo aqui chegado?

AlmenaPusemo-nos a cear.

AnfatriãoE despois de ter ceado?

AlmenaFomo-nos ambos deitar.

AnfatriãoNunca queira Deus que possaAchar-se na minha honraNenhũa falta nem mossa!Seja isto doudice vossa,Antes que minha desonra.

SósiaBien lo supe yo entender,Que era esto encantaciones;Y ahora me habrá de crer.Que dos Soseas puede haber,Pues hay dos Anfatriones.

AlmenaCom me quererdes tentar

39

Tão torvada me fezestes,Que me não pôde lembrarQue vos mandasse mostrarA copa que me ontem destes.

AnfatriãoEu?! Copa?! Se isso aí há,Que estou doudo cuidarei.

SósiaSeñor, bien guardada está.

AlmenaBrómia!

BrómiaSenhora!

AlmenaDai cáA copa que ontem vos dei.

SósiaPues yo parí otro yo,Y vós otro Anfatrión,No es mucha admiración,Si la copa otra parió,Ni aun fuera de razón.

Entra Brómia co a copa, e diz

BrómiaEis aqui a copa vem,Testemunho da verdade.

AnfatriãoOh! estranha novidade!

AlmenaPoder-me-á dizer alguémQue o que digo é falsidade?

AnfatriãoSósia, quando ontem cá vinhas,Poder-me-ás negar, ladrão,Que lhe deste as novas minhas,Mais a copa que tinhasGuardada na tua mão?

40

SósiaSeñor, que no pude, no,Ver a mi señora Almena:Si aquél eso acá ordenó,No lleve yo la penaDel mal que hizo el otro yo.

AnfatriãoOra eu não sei entenderTal caso, nem lhe acho fundo.Contudo venho a dizerQue há tantos males no mundo,Que tudo se pode crer.Se vos trouxer quem vos digaComo esta noite dormiNa nau, crereis que é assi?

AlmenaNenhũa cousa me obrigaA que não creia o que vi.

AnfatriãoSe o Patrão aqui vier,Que é homem de autoridade,Crereis o que vos disser?

AlmenaSim, que ninguém pode haverQue me negue esta verdade.

AnfatriãoEu estou em concrusãoDe hoje desembaraçarTão enleada questão.À nau me quero tornarA trazer cá Belferrão.

Sósia, até minha tornadaFica nesta casa em vela;Que eu armarei tal ciladaA quem ma a mim tem armada,Que venha hoje a cair nela.

Vai-se, e diz

AlmenaOh! mulher triste e suspensaDa mais alta confusão

41

Que nunca viu coração!Em que mereces a ofensa,Que te faz Anfatrião?

Sempre de mi foi amado,Tanto quanto em mi se sente,Co coração tão liado,Que se de mi era ausente,Nele o via figurado.E pois mulher que comprisseMelhor que eu fidelidadeNão na vi, nem quem me visseQue dos lemites saísseUm ponto de honestidade;

Pois porque é tão maltratadaInocência tão singela,Que a pena mais apertada,É a culpa levantadaAo coração livre dela?Mas já que minha alma estáSem culpa do que padeço,Seja o que for; que eu conheçoQue a verdade me poráNo que eu pola ter mereço.

Brómia!

BrómiaSenhora!

AlmenaI mandarA Feliseu que váMeu primo Aurélio chamar,Que lhe quero perguntarQue conselho me dará.E pois que AnfatriãoVai buscar sòmente quemLhe ajude a sua tenção,Quero eu ter aqui tambémQuem me defenda a rezão.

Vai-se Brómia e vem Júpiter, e diz

JúpiterGrão desconcerto têm feitoAnfatrião com Almena!

42

Qualquer deles tem direito.Eu sou o que venço o preitoE ambos pagam a pena.Quero-me ir lá desfazerTão trabalhosa demanda,Por nos tornarmos a ver;Porque, enfim, quem muito querCom qualquer desculpa abranda.

E pois que a afeiçãoHá-de mudar tão asinha,Quero ir alcançar perdãoDa culpa, que, sendo minha,Parece de Anfatrião.

AlmenaParece que torna cáAnfatrião, que já se ia.Não sei a que tornará,Senão se lhe pesa jáDos enganos que tecia.

JúpiterSenhora, não haja errorQue tantos males me faça;Porque, se o contrário for,Pequeno será o amor,Que manencória desfaça.E pois com tanta alegriaDe tantos perigos vim,Pesar-me-á, se achar no fim,Que ũa leve zombariaVos possa agravar de mim.

AlmenaCom palavras de desonraNão se há-de tratar quem ama;Nem zombaria se chama,Por exprimentar a honra,Pôr em tal perigo a fama.Bem tive eu para mi,Que era aquilo experiência.

JúpiterErrei no que cometi.Bem me basta a penitênciaDe quanto me arrependi.

43

E se fiz algum error,Com que vosso amor se mudeDe quem vo-lo tem maior,Não exprimentei virtudeMas exprimentei amor;Que se com caso tão vário,Folguei de vos agastar,Foi amor acrecentar;Porque às vezes um contrárioFaz seu contrário avivar.

Daqui vem que a leve mágoaFirmeza, afeições aumenta,Como bem se vê na frágoa,Onde o fogo se acrecenta,Borrifando-o com pouca água.Se um mal grande se alevantaNum coração que maltrata,A afeição desbarata;Porque onde a água é tantaO fogo de amor se mata.

E pois tive tal tenção,Perdoai, Senhora, a culpaDeste vosso coração.

AlmenaNão se alcança assi perdãoDe erro que não tem desculpa.

JúpiterOra pois assi trataisQuem em tanto risco pôsO amor que vós negais,Eu me ausentarei de vósOnde mais me não vejais.

Que, pois desculpa não temCoração que tanto quer,Vou-me; que não será bemQue quem vós não podeis ver,Que possa mais ver ninguém.Se algũa hora meu cuidadoVos der dor, em que pequena,(36)Peço-vos, pois fui culpado,Que vos não pese da penaDe quem vos foi tão pesado.

44

E despois que a desventuraPuser este coraçãoDebaixo da sepultura,As letras na pedra duraVossa dureza dirão.Isto vos hei-de dizer,Que me ensinou minha dor:Se quiserdes leda ser,Nunca exprimenteis amorEm quem vo-lo não tiver.

Deixai me ir; não me tenhais.

AlmenaAnfatrião, não choreis!Anfatrião!

JúpiterQue quereis,Ou pera que nomeaisHomem que ver não podeis?

AlmenaAnfatrião, se eu causei,Com manencória, pequena,Cousa com que o magoei,Eu quero cair na penaDessa culpa que lhe dei.

JúpiterSempre serei magoado,Se vossa má condiçãoMe não perdoa o passado,

AlmenaPerdoo, e peço perdãoDe lhe não ter perdoado.

SósiaNo le perdone, Señora,Hasta que con devociónTambién me pida perdón;Que bien se me acuerda ahoraQue me ha llamado ladrón.

JúpiterSósia!

45

SósiaSeñor!

JúpiterVai buscarO piloto Belferrão.Dir-lhe-ás, se desembarcar,Que me parece rezãoQue venha hoje cá cear.

SósiaSi, señor, voy a la hora.

JúpiterDe nenhũa calidadeCures de fazer demora.E nós vamo-nos, Senhora,Confirmar nossa amizade.

Vão-se e vem Mercúrio, e diz

Mercúrio Grandes revoltas vão lá,Grandes acontecimentos!Cumpre-me que esteja cá,Enquanto meu pai estáEm seus desenfadamentos.Porque vejo AnfatriãoVir da nau mui apressado;E, tendo corrido e andado,Não pôde achar Belferrão,Que lhe era bem escusado.

Parece me que viráVer se lhe abre aqui alguém;Mas, porém, se chega cá,Já pode ser que se vá,Mais confuso do que vem.

Entra Anfatrião, e diz

AnfatriãoQuis-nos nossa naturezaCom tal condição fazer,Que já temos por certezaNão haver grande prazer,Sem mestura de tristeza.

46

Este decreto espantoso,Que instituiu nossa sorte,É tal e tão rigoroso,Que ninguém antes da morteSe pode chamar ditoso.Com esta justa balançaO fado grande, profundo,Nos refreia a esperança,Porque ninguém neste mundoBusque bem aventurança.

Eu, que cuidei de viverSempre contente de mi,Com tamanho rei vencer,Venho achar minha mulherDe todo fora de si.Mas de outra parte, que digo?Que, se é verdade o que vi,E o que lá diz é assi,Virei a cuidar comigoQue eu sou o fora de mi.

Quero ver se a acho jáFora de tão secos nós.Hô de casa!

MercúrioHô de allá!

Quien sois?

AnfatriãoAbre!

MercúrioSanto Dios!Pues no os conocen acá.

AnfatriãoOh que gentil desvario!Abri-me ora, se quiserdes.

MercúrioNo haré, que en mi confioQue de fuera dormiredes,Que no comigo, amor mio.

(Que canción para oir!)

47

AnfatriãoAh Sósia! zombas de mi?(Ora quero-me fengirQue ainda o não conheci,Por ver se me quer abrir)Ah Senhor, não abrireis?

MercúrioQué queréis, hombre, por Dios?

AnfatriãoDuas palavras de vós.

MercúrioTengo dicho más de seis,E ahora me pedis dos?!

De fuera podeis dormir,Que no podeis entrar acá.

AnfatriãoOra acabai, abri lá!

MercúrioDigo que no quiero abrir:Dixe dos palavras ya.

AnfatriãoOra sus, bargante, abri!

MercúrioSi no te buelbes de aqui,Á gran peligro te ofreces.

AnfatriãoVelhaco, não me conheces,Ou estás fora de ti?

MercúrioBonico venis, amor.Quien sois, que hablais tan osado?

AnfatriãoAbre, que sou teu senhor!

MercúrioBuélvase dessotro lado,Y conocerle hé mejor.

48

AnfatriãoSósia, moço!

MercúrioAsi me llamo,Huélgome que lo sepais;Empero digo que os vais,Que Anfatrión es mi amo;Vós i buscar quien seais.

AnfatriãoPois quero saber de ti;Eu quem sou?

MercúrioY quien sois vos?Como os llaman?

AnfatriãoAbri!

MercúrioA vós o llaman «Abri»?Pues, Abri, andad con Dios!

AnfatriãoQuem há, que possa sofrerEm sua honra tal destroço,Que pera me endoudecerMe tem negado a mulher,E agora me nega o moço?

MercúrioMira el encantadorComo se lastima y llora!Y fuese tomar ahoraLa forma de mi Señor,Para engañar mi Señora!Pues esperad, y no os vais,Por un espacio pequeño;Verná quien representais,Y él os hará que bolvaisEl falso gesto a su dueño.

AnfatriãoVai, velhaco, e chama cáEsse falso feiticeiro;Que se ele lá dentro está,

49

Esta espada julgaráQual de nós é o verdadeiro.

Vai-se Mercúrio e vêm Sósia e Belferrão

Belferrão:Ora ninguém presumiraQue tinhas tão pouco siso;Pois vais achar de improvisoTão bem forjada mentira,Que me faz cair de riso.Um moço que alevantouTal graça, nunca nasceu,Porque vos jura que achouQue ou ele em dous se perdeu,Ou de um, dous se tornou.

SósiaPatrón, que no burla, no.En uno son dos unidos,Y en dos cuerpos repartidos;Yo soy él, y él es yo,De un padre y madre nacidos.

BelferrãoEsse tu que lá estás,Tão velhaco é como ti?

SósiaMas aun pienso que es más:Por delante y por detrásTodo se parece a mí.Y fue gran merced de DiosAyuntar a mí más uno,Que peor fuera de nós,Si Dios me hiciera ninguno,Que no de uno hacer dos.

BelferrãoAssi que, se te perdeste,Vieste a cobrar mais um!Mui gentil conta fizeste,Pois que perdido soubesteQue eras dous, sendo nenhum.

SósiaPues teneis por abusiónVerdad tan clara y tan rasa,

50

Aunque pone admiración,Quieta Dios, que allá en casaNo halleis otro patrón.

AnfatriãoO patrão que fui buscarParece que vejo vir.Não sei quem o foi chamar.Mas que me há-de aproveitarSe me não querem abrir?

Ah! Belferrão!

BelferrãoAh Senhor!Já sinto que fui culpado,Porque quem é convidado,Se tão vagaroso for,Merece não ser chamado.

AnfatriãoA vós quem vos convidou?

BelferrãoSósia, por mandado seu.

AnfatriãoDisso, Patrão, não sei eu;Que Sósia já me negouE já se não dá por meu.

E se alguém vos foi dizerQue eu vos chamo à minha mesa,Mal vos dará de comerQuem de todo lhe é defesaA casa e mais a mulher.

BelferrãoQuem é esse tão ousado,Que vos isso faz, Senhor?

AnfatriãoSósia, creio que enganadoPor algum encantador,Que a honra me tem roubado.

51

BelferrãoSem ele aqui comigo vem,Isso como pode ser?

AnfatriãoAh! que a ira que vou ter,Tão cega a vista me tem,Que mo não deixava ver.Porque rezão, cavaleiro,Não me abris quando vos mando?Vós fazei-vos chocarreiro?

SósiaYo, Señor? y cómo? y cuándo?

AnfatriãoQuereis-lo saber primeiro?

Esperai, dir-vo-lo-á,Mas será por outro som.

SósiaAh! Señor Anfatrión,Porque matándome está,Sin delito y sin razón?

AnfatriãoAgora que vos eu douMe chamais Anfatrião,E pera me abrirdes não?

BelferrãoEste moço em que pecou?Porque pena sem razão?

No mais, por amor de mi!

AnfatriãoNão, que não sou seu senhor:Eu sou um encantador.Não no dizeis vós assi,Ladrão, perro, enganador?

SósiaPorque fuy presto a llamarPor su mandado al patrón,Me quiere ahora matar?

52

AnfatriãoQuem vo-lo mandou buscar?

SósiaSi no hay otro Anfatrión,Vuestra Merced, sin dudar.

AnfatriãoEu te mandei?

SósiaSi, Señor,Si otro no.

AnfatriãoOutro há aqui,Por quem tu zombes de mi?Pois só desse encantadorMe quero vingar em ti.

SósiaOh! Júpiter, a quien bramoPor su bondad que me vala!Pues porque Sosea me llamo,Yo mismo, e despues mi amo,Me dieron venida mala!

Entra Júpiter, e diz

JúpiterQuem é o tão atrevido,Que aqui ousa de fazerTão revoltoso arruídoCom meus moços, sem temer,Que fui sempre tão temido?Quem aqui faz união,(37)Toma mui grande despejo.

BelferrãoOh! grande admiração!Vejo eu outro Anfatrião,Ou é sonho isto que vejo?

SósiaNo mirais la encantación,Que aquel hizo a mi Señor?El que sale, Belferrón,

53

Es el cierto AnfatriónQue estotro es encantador.

JúpiterSósia!

SósiaMi Señor, ya vó.

JúpiterPatrão, por vós só espero.

SósiaNo os lo decia yo,Que este era el verdadero,Y ese que allá queda, no?

AnfatriãoBargante, aonde te vás?Fazes teu senhor sandeu?Pois espera, e levarás.

JúpiterOlá, tornai por detrás,Não deis no moço, que é meu!

AnfatriãoVosso?!

JúpiterMeu!

AnfatriãoPode isto haver,Que outrem minhas cousas tome?!Vós galante haveis de ser,O que me tomais o nome,Casa, moços e mulher.

Eu vos farei conhecerCom quem tendes esse trato.

JúpiterSósia!

SósiaSeñor!

54

JúpiterVai dizerQue aparelhem de comer,Enquanto este doudo mato.

BelferrãoOh! Senhor, não seja assim,Haja em vós concerto algum!E senão, pois aqui vim,Farei que só tome em mimOs golpes de cada um.

JúpiterPatrão, vossa boa estrelaMe fará deixar com vidaQuem me não merece tê-la.

AnfatriãoNão na tenho eu merecida,Pois que vos deixo com ela.

BelferrãoO homem que for sesudo,Nũa tão grande questãoHá-de tomar por escudoA justiça e a rezão,Que estas armas vencem tudo.

E pois nossa naturezaMuitos homens faz iguais,Dê qualquer de vós sinaisDe quem é, pera certezaDa forma que ambos mostrais.

JúpiterSou contente de mostrarPelos sinais que vos dou,Que sam este sem faltar.(38)

AnfatriãoQue sinais podeis vós dar,Pera que sejais quem sou?

JúpiterEstes, que logo vereisSe são vãos, se de raiz.Patrão, vós sede juiz,

55

Que vós logo enxergareisQual mais verdade vos diz.

BelferrãoEu não sinto onde consistaA cura desta doença;Que há tão pouca diferença,Que aquele em que ponho a vistaPor esse dou a sentença.

Mas, Senhor, vós que ordenastesQue o juiz disto fosse eu,Quando se a batalha deu,Dizei: que me encomendastesQue ficasse a cargo meu?

JúpiterDei-vos cargo, que estivesseToda armada a bom recado,E, se mal nos sucedesse,Que pera os vivos houvesseO refúgio aparelhado.

BelferrãoOra vós quantos dobrõesEsse dia me entregastes?

AnfatriãoTrês mil; e vós os contastes.

BelferrãoAmbos sois Anfatriões,Pelos sinais que mostrastes.

JúpiterPera ser mais conhecidaA tenção deste sandeu,Vede estoutro sinal meu,Que é neste braço a feridaQue me El-Rei Terela deu.

BelferrãoMostrai vós, Senhor, também.

AnfatriãoAqui o podeis olhar.

56

BelferrãoOh! cousa pera espantar!Que ambos a ferida têmDum tamanho em um lugar!

Vem Sósia

SósiaDice mi Señora AlmenaQue no se há así de estarCon un bobo a razonar,Que se le enfria la cena.

JúpiterBelferrão, vamos cear.

AnfatriãoBelferrão, não me deixeis!Como? Também me negais?

JúpiterAndai, não vos detenhais.Vamos comer, se quereis;Não ouçais um doudo mais.

AnfatriãoAh! maus! Assi me ordenaisOfensa tão mal olhada?Eu farei, se me esperais,Com que todos conheçaisOs fios da minha espada.

JúpiterAs portas prestes fechemos,Não entre este doudo cá.

SósiaDe fuera se dormirá.Entre tanto que cenemos,Puede pasearse allá.

Vão-se dentro e fica Anfatrião só, e diz

Anfatrião

Oh! ira p’ra se não crer,Em que minha alma se abrasa,Que me faz endoudecer,

57

E não me ajuda a romperAs paredes desta casa!E porque não tenho eu Forças, que tudo destrua,(39) Pois que tanto a salvo seu,Outrem acho que possua A milhor parte do meu?

Eu irei hoje buscar Quem me ajude a vir queimarToda esta casa sem pena, Donde veja arder Almena, Com quem a vejo enganar.

Vai-se Anfatrião e vem Aurélio e um moço, e diz

AurélioNo hallo a mis males culpa, Para que merezca pena La causa que me condena.

MoçoEssa está gentil desculpa Pera hoje dar [a] Almena!

Tem-no mandado chamar, E ele está tão descuidado!

AurélioMoço, queres-me matar? Que desculpa posso eu dar Melhor que este meu cuidado?

MoçoE não há mais que fazer? Co isso a boca me tapa Pera mais nada dizer?

AurélioOra dá-me cá essa capa, E vamos ver o que quer.

Não trates de mais rezão, Pois não há quem te resista.

Entra Anfatrião, e diz

58

AurélioQue vejo? outra novação?!

MoçoQue é?

AurélioOu me mente a vista, Ou eu vejo Anfatrião.

MoçoEu ouvi a Feliseu, Quando cá trouxe o recado,Como ele era chegado; E quis-me dizer que veio Do siso desconsertado.

AurélioIsso quero eu saber, Pois que tal cousa se soa. Senhor, pode-se dizer Que a vinda seja mui boa?

AnfatriãoEssa não pode ela ser.

AurélioPorque não?

AnfatriãoPorque é roubada Minha honra sem temor, E minha casa tomada, E vossa prima enganada Por um grande encantador.

AurélioIsso é certo?!

AnfatriãoE manifesto, E tudo tem já por seu Adúltero e desonesto: Tem-me tomado o meu gesto, E faz-lhe crer que sou eu.

AurélioContais um caso de espanto!

59

E pois não podeis entrar,Defendei-me por entanto,Que eu hei-de lá chegar Pera ver quem pode tanto.

Vai-se Aurélio dentro, e diz

AnfatriãoSe ver desonra tão crara Me não tivera o sentidoTotalmente endoudecido, Que gravemente choraraVer tão grande amor perdido!E quando vejo a verdade Do nosso amor e amizade Desfeita com tanta mágoa,Enchem-se-me os olhos de água, E a alma de saudade.

Assi que quis minha estrela, Pera nunca ser contente, Que agora, estando presente, Viva mais saudoso dela, Que quando dela era ausente.Esta porta vejo abrir Com ímpeto demasiado. Que poderei presumir? Que vejo Aurélio sair, Como homem desatinado?

Vem Aurélio, Belferrão e Sósia e diz

AurélioOh! estranha novidade! Oh! cousa pera não crer!

BelferrãoVenho cego de verdade, Que não puderam sofrer Meus olhos a claridade.

SósiaOh! triste, que vengo ciego Com rayos y con visiones! Y destas encantaciones, Si nuestra casa arde en fuego,Han se de arder mis colchones.

60

AurélioVamos a AnfatriãoContar-lhe cousas tamanhas.

AnfatriãoQue vai lá? que cousas vão?

AurélioMaravilhas tão estranhas, Que me treme o coração!Porque aquele homem, que assi Tantos enganos teceu, Como era cousa do Céu, Tanto que apareci, Logo desapareceu.

E em desaparecendo Com roído grande e horrendo,Toda a casa alumiou;E de arte nos inflamou, Que nos vimos acolhendo Do raio que nos cegou.Estes acontecimentos Não são de humana pessoa.Vós ouvis a voz que soa?Escutai, estai atentos;Vejamos o que pregoa.

Voz de Júpiter, de dentro

JúpiterAnfatrião, que em teus diasVês tamanhas estranhezas,Não te espantem fantesias, Que às vezes grandes tristezas Parem grandes alegrias. Júpiter sam manifesto Nas obras de admiração, Que por mim causadas são.Quis-me vestir em teu gesto, Por honrar tua geração.

Tua mulher parirá Um filho de mi gerado, Que Hércules se chamará, O mais valente e esforçado, Que no mundo se achará.Com este, teus sucessores

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Se honrarão de serem teus; E dar-lhe-ão os escritores,Por doze trabalhos seus,Doze milhões de louvores.

E dessa ilustre fadiga Colherás mui rico fruito.Enfim, a rezão me obrigaQue tão pouco dele diga,Porque o tempo dirá muito.

 

 

NOTAS

1 — A forma correcta do nome é Anfitrião. No auto camoniano ocorre como título Enfatriões, mas no texto, posto venha Enfatrião, como nome da personagem, é muito mais frequente a forma Anfatrião.

2 — Sedenho é o cordão de seda por meio do qual uma ferida se conserva aberta, mas também significa cilício. O sentido parece ser que as mulheres de boa geração (semente) não são sofredoras como as outras; à mais pequena contrariedade, recorrem à protecção divina.

3 — A metáfora é de expressivo realismo: os cavalos rincham de cio ao ver a fêmea.

4 — Homens de fora da terra, quase vagabundos.

5 — Depois da comparação de Feliseu com o cavalo, a comparação com o touro. Por seu turno, ele chama-lhe mais adiante cadela, epíteto também usado num poema da Lírica. A linguagem de Gil Vicente era, como se sabe, de bem maior desenvoltura. Procurava-se, no estilo cómico, dar a mais viva impressão da vida real, que o lirismo petrarquista, pelo contrário, sublimava, mas é significativa a moderada maneira camoniana.

6 — Dar portas é o contrário do dar entrada, ou seja dar esperanças, consentir atrevimentos.

7 — O Prof. Câmara Cascudo, em seu estudo — O Folk-Lor nos Autos Camonianos –, explica esta frase como alusão às panelas de pólvora, que se lançavam aos inimigos, ou às flores atiradas aos cavaleiros em liça festiva e que eles quebravam a golpes de espada. Este sentido, porém, não se acomoda bem ao dos versos seguintes.

8 — Era a frase de um jogo que consistia em fazer passar de mão em mão uma vela ou um pau a arder. Alude a ele Couto na IV Década, Liv. V, Cap. IV. Também Marques Braga (ed. dos Autos da R. Acad. Esp.) cita a Aulegrafia, de Jorge F. de Vasconcelos.

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9 — Não reconhecida, ingrata.

10 — Diminutivo de copras, cobras ou coplas.

11 — Sengos vem de cynicos. O significado pode ir de prudente a dissimulado.

12 — Um parvo dos quatro costados.

13 — Como a palavra significa, tal como capelinha, peça da armadura que defendia a cabeça, o sentido seria: Tudo vos suporto com a cabeça defendida, sem que me magoeis.

14 — A furto de = apesar de, também na Lírica ocorre: A furto dos olhos verdes...

15 — Usar de severidade.

16 — O chapim, porque tinha 4 ou 5 solas de sovreiro, para realçar a estatura, não deveria ser inocente como arma de arremesso.

17 — Estes dois versos ocorrem na Tragédia de D. Duardos, de Gil Vicente, colhidos na tradição popular.

18 — Preza-se de pertencer ao número de umas damas cheias de confiança em si próprias. Storck entende que seguras deveria ser substituído por finuras.

19 — O Dr. Marques Braga lembra a alusão, no Auto de Filodemo, à navegação difícil através do Oceano Germânico, Bancos de Frandes... Será o sentido: Eu não quero mais aventuras amorosas, difíceis como a navegação por entre os Bancos da Frandes?

20 — Orlando é o herói do poema de Ariosto — Orlando Furioso. O autor, renascentista, fizera do herói um amoroso capaz da dialéctica petrarquista.

21 — Pé tem o sentido de glosa e também o do componente da expressão: fazer pé de alferes.

22 — Pagar os paus é expressão de jogo, como pagar o baralho, dever que incumbe ao que perde, que paga à casa de jogo o utilizá-la.

23 — Porque o trigo tremês leva apenas três meses da sementeira à colheita (de onde o seu nome), trova trigo-tremês é a que se faz ràpidamente, de improviso. E importa que seja toda numa só língua, como um pelote (peça antiga de vestuário) deve ser todo de um pano.

24 — Candeia significa vela. Põe-se a vela na mão do moribundo, como símbolo litúrgico da iluminação pela fé religiosa.

25 — Uma vez de água é metáfora proveniente da divisão da água corrente por propriedades vizinhas.

26 — Envidar é verbo usado no jogo: provocar o parceiro, elevando a parada. A Camões não faltaria a prática do jogo, pois que tão frequentemente dele usa os termos.

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27 — A esfera mais alta, no sistema de Ptolemeu, é o chamado Móbil primeiro, logo abaixo do orbe chamado Empíreo, imóvel morada das almas puras, dos divos gloriosos. (Vid. Os Lusíadas, X, estr. 81, 82, 85 e 86). O Móbil primeiro «corre tão leve e tão ligeiro que não se encherga» - diz Camões. É a esfera mais alta que faz o dia e a noite — que pode fazer que a noite maior seja, diz ainda o poeta nas mesmas estrofes.

28 — O jubão de açoites que lhe haviam dado em vez do que lhe tiraram, era pena de pelourinho, com vergastadas por crimes vários. O Poeta fez gracioso trocadilho.

29 — Forma popular equivalente a por Dios.

30 — É de intenção burlesca a criação por Sósia da palavra Glipazos.

31 — Em Plauto não ocorre tal antropofagia. Este acrescentamento camoniano implica a experiência dum português quinhentista.

32 — Forma arcaica de tendrá (terá, em português).

33 — O mesmo que borracha para água ou vinho. O mesmo étimo da palavra francesa; bouteille, que em português deu botelha.

34 — O mesmo que disparate.

35 — Remota = distante.

36 — Em que = Ainda que.

37 — União significa ajuntamento.

38 — Sam é variante de sou, usada ainda no tempo de Camões.

39 — Que é aqui uma conjunção consecutiva... a tal ponto que tudo destrua...

 

Hernâni Cidade, Luís de Camões - O Teatro e as Cartas, Artis, Lisboa, 1962

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