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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REGIMES AUTORITÁRIOS E SOCIEDADES] Ano 3, n° 3 | 2013, verão ISSN [2236-4846] 31 “PRIMAVERA ÁRABE”: Autocracia versus Mercado * Danilo José Dalio [...] o desejo de ascender na escala social, caso se difunda excessivamente entre os diferentes grupos, pode tornar-se a razão imediata da deflagração de uma revolução. Ora, importa saber se esse desejo não está, enquanto um esforço geral, presente em todos os períodos da história. O fato de que nos tempos modernos esse esforço esteja definitivamente presente é devido à difusão generalizada de outro princípio social, o da competição, cujo primeiro efeito é fazer um homem abandonar suas atitudes tradicionais e preocupar-se mais com seu bem-estar pessoal que com o endosso comum aos padrões aceitos pelo estrato da sociedade a que pertence. A questão é que exatamente a mesma força, isto é, a competição (que é o princípio criativo desse sistema e sem o qual ele não poderia funcionar), caso produza mais iniciativa e ambição do que as saídas criativas existentes, leva à destruição total do sistema. Se existem mais forças produtoras em operação que oportunidades para ação espontânea ou posições de liderança, testemunharemos aquela insatisfação geral que leva à revolução. Então a tarefa do sistema social subseqüente será ou de criar novas oportunidades para a efetivação da ambição ou de, forçosamente, suprimir a ambição. (MANNHEIM, 1982, p. 65) A perplexidade diante da condição recalcitrante das insurreições populares que se proliferaram recentemente no chamado Mundo Árabe, da África Setentrional ao Oriente Médio, tem levado seus comentadores a avaliações mais diversas. Da cobertura jornalística diária, nos principais meios de comunicação mundiais, às interpretações de analistas acadêmicos, um aspecto pelo menos tem ganhado unanimidade, qual seja: tais manifestações exprimiriam os anseios populares por conquistas democráticas básicas. Considerada a primeira grande onda revolucionária laicista e democrática do século XXI, as manifestações e revoltas populares nos países árabes vêm ocorrendo no Norte da África e no Oriente Médio desde dezembro de 2010, deflagradas após a auto- imolação de um popular, Mohamed Bouazizi, na capital da Tunísia, em protesto pessoal contra a corrupção policial e maus-tratos. A partir dali, as insurreições ganharam fôlego e chegaram ao Egito, desdobrando-se inclusive em guerra civil na Líbia. Grandes protestos atingiram Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Síria, Omã e Iêmen, enquanto manifestações menores acometeram Kuwait, Líbano, Mauritânia, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e Saara Ocidental. * Artigo recebido em agosto de 2012 e aprovado para publicação em janeiro de 2013 Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo e Professor do Instituto Federal de Goiás.

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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REGIMES AUTORITÁRIOS E SOCIEDADES]

Ano 3, n° 3 | 2013, verão ISSN [2236-4846]

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“PRIMAVERA ÁRABE”:

Autocracia versus Mercado*

Danilo José Dalio

[...] o desejo de ascender na escala social, caso se difunda excessivamente entre os diferentes

grupos, pode tornar-se a razão imediata da deflagração de uma revolução. Ora, importa saber

se esse desejo não está, enquanto um esforço geral, presente em todos os períodos da história.

O fato de que nos tempos modernos esse esforço esteja definitivamente presente é devido à

difusão generalizada de outro princípio social, o da competição, cujo primeiro efeito é fazer um

homem abandonar suas atitudes tradicionais e preocupar-se mais com seu bem-estar pessoal

que com o endosso comum aos padrões aceitos pelo estrato da sociedade a que pertence. A

questão é que exatamente a mesma força, isto é, a competição (que é o princípio criativo desse

sistema e sem o qual ele não poderia funcionar), caso produza mais iniciativa e ambição do que

as saídas criativas existentes, leva à destruição total do sistema. Se existem mais forças

produtoras em operação que oportunidades para ação espontânea ou posições de liderança,

testemunharemos aquela insatisfação geral que leva à revolução. Então a tarefa do sistema

social subseqüente será ou de criar novas oportunidades para a efetivação da ambição ou de,

forçosamente, suprimir a ambição. (MANNHEIM, 1982, p. 65)

A perplexidade diante da condição recalcitrante das insurreições populares que

se proliferaram recentemente no chamado Mundo Árabe, da África Setentrional ao

Oriente Médio, tem levado seus comentadores a avaliações mais diversas. Da cobertura

jornalística diária, nos principais meios de comunicação mundiais, às interpretações de

analistas acadêmicos, um aspecto pelo menos tem ganhado unanimidade, qual seja: tais

manifestações exprimiriam os anseios populares por conquistas democráticas básicas.

Considerada a primeira grande onda revolucionária laicista e democrática do

século XXI, as manifestações e revoltas populares nos países árabes vêm ocorrendo no

Norte da África e no Oriente Médio desde dezembro de 2010, deflagradas após a auto-

imolação de um popular, Mohamed Bouazizi, na capital da Tunísia, em protesto pessoal

contra a corrupção policial e maus-tratos. A partir dali, as insurreições ganharam fôlego

e chegaram ao Egito, desdobrando-se inclusive em guerra civil na Líbia. Grandes

protestos atingiram Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Síria, Omã e Iêmen,

enquanto manifestações menores acometeram Kuwait, Líbano, Mauritânia, Marrocos,

Arábia Saudita, Sudão e Saara Ocidental.

* Artigo recebido em agosto de 2012 e aprovado para publicação em janeiro de 2013

Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo e Professor do Instituto Federal de

Goiás.

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[“PRIMAVERA ÁRABE”: AUTOCRACIA VERSUS MERCADO * DANILO JOSÉ DALIO]

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A Primavera Árabe, como tem sido oportunamente referida, agrega técnicas de

resistência civil em campanhas articuladas envolvendo greves, manifestações, passeatas

e comícios, bem como o uso das mídias sociais, como Facebook, Twitter e Youtube,

para organizar, comunicar e sensibilizar a população e a comunidade internacional em

face de tentativas de repressão e censura por partes dos Estados1.

Os resultados parciais e perceptíveis de tais estratagemas foram a derrubada de

três chefes de Estado: o presidente da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali, que fugiu para

a Arábia Saudita em 14 de janeiro de 2011, na sequência dos protestos tunisianos

denominados “Revolução de Jasmim”; o presidente Hosni Mubarak do Egito que

renunciou em 11 de Fevereiro de 2011, após 18 dias de protestos em massa, encerrando

trinta anos no poder; e a captura e execução do presidente líbio, Muammar Kadaffi, em

20 de outubro de 20112. Além desses três casos mais extremos, a persistente

instabilidade política regional dissuadiu algumas lideranças nacionais de suas

pretensões de se reelegerem nos próximos anos, embora as manifestações violentas

exigissem muitas vezes a renúncia imediata: os presidentes do Sudão, Omar al-Bashir, e

do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, além do premiê iraquiano, Nouri al-Maliki. Na Jordânia,

por sua vez, rei Abdullah II demitiu o primeiro-ministro Samir Rifai e nomeou para seu

lugar Marouf al-Bakhit, ex-general do Exército e embaixador do país em Israel.

A frequência e intensidade dos protestos e das revoltas no Mundo Árabe e todas

as suas implicações geopolíticas, ainda parcialmente apreensíveis, têm chamado a

atenção global e oferecido, pela sua volatilidade, margem para especulações variadas.

Antônio Negri e Michael Hardt3 insistiram na originalidade dos eventos e

processos internacionais e domésticos a que as manifestações populares no Mundo

Árabe estão dando lugar: “(...) experiências originais, que abrem novas possibilidades

políticas, inclusive para além da região, de liberdade e democracia”. Tal condição se

deve, entre outras coisas, ao fato de que as revoltas populares realizaram o que os

autores definiram de “um tipo de faxina ideológica”, ao se afastarem de concepções

racistas presentes em visões civilizatórias conflitantes que persistiam na política árabe

do passado. As manifestações, portanto, serviram também para destroçar os estereótipos

1 Cf. Especial TV Cultura: Primavera árabe. http://tvcultura.cmais.com.br/jornaldacultura/ especial-tv-

cultura-primavera-arabe. 2 Cf. O ESTADO DE S. PAULO. “Sem Kadafi nasce a „Líbia livre‟”, Edição Especial, de 21/10/2011.

3 Originalmente publicado no The Guardian, em 24/02/2011, o artigo está traduzido em OutrasPalavras,

sob título: “Negri e Hardt escrevem sobre a revolta árabe”.

http://www.outraspalavras.net/2011/02/25/arabes-desbravam-um-nova-democracia/(Acesso: 30/09/2011).

Cf. também “Das revoltas a uma nova política”, em http://www.outraspalavras.net/

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políticos que impunham aos árabes um rígido dualismo entre ditaduras seculares e

teocracias fanáticas.

Tendo como motivação imediata o problema do desemprego, o protagonista

dessas revoltas populares tem sido a juventude relativamente escolarizada, cujas

ambições se vêem frustradas. Se a principal demanda no Mundo Árabe se concentra na

eliminação da tirania e de governos autoritários, não menos importantes são as

demandas sociais relativas ao trabalho e à vida, ao fim da pobreza e da miséria, à

participação política e à autonomia dessa parcela jovem da população.

Outro traço característico do ciclo de lutas populares nos países árabes que Negri

e Hardt compartilham com outros especialistas, dentre eles Manuel Castells4, refere-se à

forma de organização e mobilização apresentada, semelhante inclusive com outras

manifestações deste início de século XXI. Trata-se de uma rede horizontal sem

liderança específica e determinada. Para Castells, as transformações das tecnologias de

comunicação criam novas possibilidades para auto-organização e auto-mobilização,

superando as barreiras da censura e repressão impostas pelo Estado. A força das

mobilizações horizontais, características da sociedade-rede – insistem os observadores –

está justamente na desnecessidade de uma coordenação rígida, na figura de um líder;

reside portanto na forma descentralizada e desburocratizada da ação contestatória

popular5. Não obstante a inexistência de uma liderança centralizada, as demandas dos

manifestantes precisam se consolidar e angariar a simpatia e adesão da população como

um todo, incorporando inclusive necessidades mais gerais.

Em tom extremamente otimista, Negri e Hardt avaliam que não se trata apenas

de reivindicar uma constituição liberal tradicional, que garanta meramente a separação

de poderes e a vigência da dinâmica eleitoral regular. Exige-se uma forma de

democracia adequada aos novos padrões de liberdade de expressão e às necessidades de

uma multidão que vem paulatinamente construindo canais de sociabilidade baseados no

uso das novas tecnologias informacionais.

Chegando ao paroxismo, os mesmos autores sustentam que o desemprego, a

pobreza disseminada e a liberdade de expressão e produção são partes de demandas da

juventude as quais requerem uma forma inventiva de administrar a produção social e os

4Cf. CASTELLS, Manuel. Castells, sobre internet e rebelião: “É só o começo”, em

http://www.outraspalavras.net/2011/03/01. Acesso: 30/09/2011. 5 Sobre o assunto, cf. CASTELLS (2003).

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recursos naturais, que pode se tornar incompatíveis com o atual sistema global de

governança econômica.

Embora análises alvissareiras sejam naturalmente instigadas pela efervescência

duradoura dos eventos, e pela possibilidade de consequências auspiciosas, essa mesma

condição resoluta e insólita tende a exigir cautela e parcimônia. Conforme adverte

Immanuel Wallerstein, “(...) os ventos de mudança são muito fortes e provavelmente

irresistíveis. (...) quando os ventos varrem os símbolos da tirania, não se sabe o que virá

a seguir. Quando os símbolos caem, todos denunciam. Mas todos querem preservar seus

próprios interesses, nas novas estruturas que emergem” 6.

Se, por um lado, Wallerstein compactua com as avaliações sobre o caráter

original e inovador das revoltas no Mundo Árabe, por outro, chama-nos a atenção para a

ameaça conservadora a que as insurreições populares estão sujeitas. Daí, portanto, o

significado da formação de juntas militares para conduzir os países após as deposições

verificadas e, também, a atuação nos bastidores das grandes potências7, em particular

Estados Unidos e Europa Ocidental, buscando “enquadrar, limitar e redirecionar os

ventos da mudança”, ainda que sua amplitude planetária e intensidade acachapante

tornem a tarefa dissuasiva bastante difícil.8

Seja qual for a ênfase nas análises, as discordâncias se dão em pontos

específicos e as nuances políticas, sócio-culturais, religiosas e históricas de cada país

podem influir nos desdobramentos futuros. As interpretações apresentadas, todavia,

prendem-se aos aspectos gerais mais perceptíveis do fenômeno “Primavera Árabe”: as

características das manifestações, as formas de organização e mobilização populares,

suas motivações alegadas, dentre as quais as demandas democráticas se destacam.

Procurando evitar predições normativas ou especulações precipitadas, nosso

objetivo consiste em delinear e compreender alguns aspectos que podem estar na raiz

desse fenômeno social. Buscamos, em outras palavras, sugerir uma interpretação do

porquê desses protestos e revoltas populares ganharem feições democráticas, primando

por uma análise histórica e teórica de elementos conjunturais e estruturais. Com isso,

pretendemos evitar um erro metodológico recorrente em análises de fenômenos

6 Publicado no site ZSpace, em 03/02/2011. Cf. tradução em:

http://www.outraspalavras.net/2011/03/02/os-ventos-da-mudanca/ (Acesso: 30/09/2011) 7 Sobre os desígnios de uma geopolítica imperialista presente na ação internacional das grandes potências,

particularmente os Estados Unidos, ver FOSTER (2006). 8 As relações entre as forças armadas e a sociedade civil nos países árabes apresentam características

sócio-históricas muito peculiares, que as distinguem das formas de relação conhecidas das experiências

de democratização ocidental no século XX.

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“inconclusos”, que se refere a lançar mão de um dispositivo teleológico, assumindo

como causa os resultados observados (nesse caso, parciais) ou simplesmente os motes

declarados de seus agentes.

A hipótese aqui aventada é de que persiste um antagonismo latente na relação

entre governos autoritários/autocráticos e as forças de mercado em expansão, vale dizer,

uma modernização capitalista tardia. Essa tensão estrutural não tem ímpeto para se

desdobrar senão em condições históricas específicas, que aguçam suas contradições e

estimulam certo nível de ruptura. Sua limitação, contudo, reside no fato de que as

próprias forças de mercado que o estimulam, restringem-no o alcance.

Em outras palavras, a globalização, ou o processo recente de mundialização do

capital, tende a difundir e homogeneizar as relações de produção e de propriedade

capitalistas – e suas implicações ideológicas – tornando-as inconciliáveis com os

renitentes poderes autocráticos ainda presentes nos Estados árabes da África

Setentrional e Oriente Médio9. O antagonismo latente, portanto, entre governos

autoritários e proto-democráticos, de um lado, e as noções de igualdade e liberdade

formais impostas pelas relações de mercado afloram à medida que avança o processo de

modernização capitalista, impulsionada pela disseminação dos valores liberais da

globalização e pela mudança do perfil populacional nos países árabes.

A leitura aqui empreendida das revoltas e manifestações populares no Mundo

Árabe se sustenta na premissa de que os eventos e processos internacionais são, tanto

quanto os da política e da sociedade doméstica, passíveis de uma análise racional e

comparativa e que este conhecimento pode contribuir para torná-los mais suscetíveis

aos propósitos democráticos, a exemplo de uma ampla participação em processos

decisórios e do compartilhamento de responsabilidades sobre questões que transcendem

o foro soberano tradicional de Estados-nação (HELD, 1991; HALLIDAY, 2007).

Dessa forma, ocupamo-nos primeiramente em apontar as bases teóricas e

históricas do antagonismo autocracia/modernização, que está na raiz das explicações

sobre o ímpeto democrático presente nas insurreições populares nos países árabes. Em

seguida, avaliamos as hipóteses que têm sido sustentadas para se interpretar a

9Referimo-nos aqui, rapidamente, às distintas formas e relações de produção, exploração e apropriação da

riqueza socialmente produzida a que diferentes regimes políticos e formas de governo podem se revestir.

Essa relação contraditória entre autocracia e mercado, como fator fundamental da Primavera Árabe, será

desdobrada mais adiante.

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“Primavera Árabe”, confrontando-as com a dimensão conjuntural e estrutural, a fim de

delinear uma proposta de compreensão dos eventos árabes deste início de século XX.

Autocracia vs Mercado

O intenso processo de globalização, suas implicações sobre o caráter do Estado

nacional bem como as reações deste, os efeitos globais de decisões aparentemente

domésticas e novas demandas geradas pela interconexão política, econômica, social e

militar internacional explicitam a forma multifacetada da tendência homogeneizadora

desse processo em direção à criação de uma sociedade internacional (HELD, 1991;

BUZAN et. al., 1998; HALLIDAY, 2003; CRUZ, 2004; FOSTER, 2006; DALIO,

2010).

Embora estes traços característicos das relações internacionais tenham se

fortalecido na atual conjuntura do processo de globalização – fundamental no debate

travado entre neorealistas e transnacionalistas (BUZAN et.al., 1998) – ele já havia sido

observado pela economia clássica, a exemplo de Adam Smith, e também pelo

pensamento revolucionário do século XIX. No “Manifesto Comunista” (1848), Karl

Marx o apresentou da seguinte maneira:

A necessidade de um mercado em constante expansão para seus

produtos persegue a burguesia por toda a face do globo. Ela tem que

abrigar-se por todo o lado, fixar-se por todo o lado, estabelecer

conexões por todo o lado. A burguesia, pelo rápido aperfeiçoamento

de todos os instrumentos de produção, pelos imensamente facilitados

meios de comunicação, traz todas, mesmo a mais bárbara das nações,

para dentro da civilização. Os baixos preços das mercadorias são a

pesada artilharia com que derruba todas as muralhas da China, com as

quais força a capitular o ódio intenso e obstinado dos bárbaros aos

estrangeiros. Ela compele todas as nações, sob o risco de extinção, a

adotar o modo burguês de produção; compele-as a introduzir o que

chama de civilização em seu meio, para que se tornem elas mesmas

burguesas. Em uma palavra, ela cria um mundo a sua própria imagem.

(MARX apud HALLIDAY, 2007, p. 127).

Para Marx, a ordem global emergente no século XIX, criada pela disseminação

do capitalismo, levava sociedades individuais a se conformarem umas as outras, vale

dizer: o processo de homogeneização internacional era central para a compreensão das

relações internacionais; um processo, aliás, que afetava não somente a política

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doméstica e internacional como também a estrutura social. Marx referia-se, sobretudo, à

lógica sistêmica e totalizante do capitalismo, enquanto uma força universalizadora.

O processo de surgimento e difusão da formação social capitalista trouxe

consigo alterações fundamentais na disposição e alocação dos recursos políticos,

econômicos e sócio-culturais. Nesse ponto, dois aspectos devem ser melhor observados:

o processo de diferenciação real da economia vis-à-vis a política e de privatização do

poder político no capitalismo, e a constituição da forma-sujeito de direito, isto é, a

outorga igualitariamente pelo Estado capitalista a todos os homens da capacidade de

irem e virem e de se movimentarem livremente, bem como da capacidade de serem

proprietários de bens ou de si mesmos.10

Uma das características distintivas do sistema capitalista, enquanto uma

formação social particular, diz respeito à sua capacidade “real” de atribuir status

independente à dimensão econômica da vida social11

, separando-a dos poderes políticos

pertencentes ao Estado moderno. Isto é: a disposição do poder de controlar a produção e

a apropriação ou a alocação do trabalho e dos recursos sociais foi afastada da arena

política e deslocada para a esfera exclusivamente econômica. Na síntese de Ellen Wood

(2006, p. 35),

(...) as funções sociais da produção e distribuição, extração e

apropriação de excedentes, e a alocação do trabalho social são, de

certa forma, privatizadas e obtidas por meios não-autoritários e não-

políticos. Em outras palavras, a alocação social de recursos e de

trabalho não ocorre por comando político, por determinação

comunitária, por hereditariedade, costumes nem por obrigação

religiosa, mas pelos mecanismos do intercâmbio de mercadorias. Os

poderes de apropriação de mais-valia e de exploração não se baseiam

diretamente nas relações de dependência jurídica ou política, mas sim

numa relação contratual entre produtores “livres” – juridicamente

livres e livres dos meios de produção – e um apropriador que tem a

propriedade privada absoluta dos meios de produção.

Explicitando melhor tal questão, podemos dizer que o capitalismo representa a

privatização “última” do poder político, à medida que as relações de dominação e

exploração entre apropriadores e produtores diretos dispensam a utilização dos

instrumentos jurídicos, políticos e militares tradicionais de coação direta para a extração 10

Para a discussão desses dois aspectos ressaltados, fundamentais na compreensão da estrutura social

capitalista, utilizamo-nos, sobretudo, da coletânea de artigos presentes no livro de Ellen M. Wood (2006)

e do artigo de Décio Azevedo Marques de Saes (s/d). 11

Cf. também POLANYI (2000).

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do excedente. Assim, uma nova relação de autoridade, dominação e subjugação entre

apropriador e produtor se constitui sob a base da propriedade privada, das relações

contratuais e do aparelho político-jurídico que a sustenta.

Por outro lado, dessas formas econômicas e jurídico-políticas privadas deriva

uma correlata esfera política pública especializada: o Estado capitalista. Sua condição

de “autonomia relativa” da esfera econômica está inseparavelmente ligada ao

reconhecimento da liberdade jurídica e da igualdade entre seres livres, da troca

puramente econômica entre produtores expropriados livres e apropriadores privados

detentores dos meios de produção. Em outras palavras, a apropriação e a coação – dois

momentos da exploração capitalista – são alocadas separadamente à classe apropriadora

privada e a uma instituição coercitiva pública, o Estado. Dessa forma, o Estado

“relativamente autônomo” concentra o monopólio da força coercitiva, o qual sustenta

(sobretudo, ideologicamente) o poder “econômico” privado ao investir a propriedade

capitalista da autoridade de organizar a produção, em um grau sem precedentes de

controle sobre a atividade produtiva e os seres humanos nela engajados. Enfim, a

transferência de funções antes políticas para a esfera econômica separada significa que a

coação e a dominação “diretas” sobre os produtores expropriados tornam-se

desnecessárias, e a necessidade econômica oferece a compulsão imediata que força o

trabalhador a transferir sua mais-valia (sobretrabalho) para o capitalista a fim de ter

acesso aos meios de produção.

Nesse processo histórico de disseminação e consolidação das relações

capitalistas de produção, a expansão do trabalho assalariado (proletarização) e a relação

contratual entre indivíduos formalmente iguais e livres (imperativos da acumulação de

capital e da competição) trazem consigo os valores da igualdade e da liberdade formais,

mas que ao mesmo tempo nega, nos planos jurídico e político, a desigualdade

fundamental e a falta de liberdade da relação econômica capitalista, aliás, um artifício

vital da hegemonia do capitalismo. Talvez, por isso mesmo, ela exerça,

contraditoriamente, uma pressão estrutural contra diferenças extra-econômicas ou pós-

materiais, a exemplo da escravidão, da opressão de gênero e de outras formas de

dominação autocráticas, tornando assim necessário justificá-las ideologicamente ou

reprimir possíveis demandas contestatórias.12

12

Para uma discussão sobre a apropriação da escravidão e das relações de gênero pelo sistema capitalista,

ver o nono capítulo em Wood (2006).

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Assim, o reconhecimento da forma-sujeito de direito – vale insistir: a

atribuição por parte do Estado a todos os homens, independentemente de sua situação

sócio-econômica, da condição de seres individuais capazes de praticar atos de vontade –

criou condições não só materiais como também ideológicas, indispensáveis à

implementação de uma estrutura econômica capitalista, enfim, à reprodução do

capitalismo. Ao lado de uma base territorial-nacional e da aparência universalista do

Estado, a vigência “universal” das liberdades civis constituem a forma ordinária de

legitimação da ordem social no capitalismo (SAES, s/d).

Sugerimos acima que o reconhecimento e a consolidação dos direitos civis pelo

Estado, como condição de reprodução do capitalismo, e a “ilusão prática” (expressão do

jovem Marx) de igualdade entre todos os homens que eles implicam, exercem uma

pressão estrutural contra diferenças extra-econômicas, a exemplo de governos

autoritários e regimes autocráticos 13

em que a riqueza socialmente produzida parece se

concentrar no Estado em benefício de líderes personalistas. Aqui resgatamos a

proposição inicial em que esboçamos haver um antagonismo latente entre a expansão

das relações sociais capitalistas e a vigência de regimes autocráticos. Não se trata de

afirmar que ambos os pólos da proposição não possam conviver, já que de fato tem

historicamente coexistido, mas sim que se contradizem potencialmente.

Em que sentido, portanto, podemos aprofundar a hipótese de um antagonismo

potencial coexistindo no desenvolvimento de uma estrutura social capitalista sob o

controle de regimes autocráticos? Há duas possibilidades de explicação, nos parâmetros

teóricos aqui desenvolvidos, em que essa contradição pode tornar-se apreensível. A

primeira refere-se à própria natureza do Estado enquanto apropriador de excedente

econômico e à forma pela qual exerce tal função. A outra diz respeito à dialética da

forma-sujeito de direito. Explicitemo-nas.

Em termos gerais, o Estado se constitui como um complexo de instituições por

meio das quais o poder da sociedade tem historicamente se organizado, e, em posse de

instrumentos de coerção formais e especializados, reivindica para si o monopólio da

aplicação da força bruta aos problemas sociais. Sua preponderância em força e poder

pode significar (ou não) sua utilização para que um segmento da população oprima ou

explore os demais. De qualquer forma, o Estado exprime o cumprimento de funções

sociais em bases mais abrangentes que a família, os clãs, grupos, etc. Tais funções

13

Cf. o verbete “Ditadura”, em BOBBIO et. al. (1998).

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implicam uma divisão social do trabalho e a apropriação por alguns grupos sociais de

excedentes produzidos por outros. Logo, o Estado surgiu como um meio de

intensificação da produção e/ou apropriação do produto excedente e, de uma forma ou

de outra, como um modo de distribuição. (WOOD, 2003, p. 37-40)

Como afirmamos, o processo histórico de difusão do capitalismo foi marcado

pela transferência para a esfera econômica do poder político de extração de excedentes

antes centralizado no Estado, e pelo progressivo abandono de meios coercitivos diretos

de apropriação do sobretrabalho. O Estado moderno, possuidor do monopólio do uso

legítimo da força e organizando-se em uma base territorial-legal, apresenta-se como o

representante de uma “comunidade nacional”, ocultando dessa forma as contradições de

classes nele e na sociedade presentes. Acontece que nos regimes autocráticos, a

opulência e ostentação das lideranças personalistas e o controle direto estatal sobre

fontes de riqueza nacionais retira do poder de Estado sua aparência de universalidade

pública. Em outras palavras, os mecanismos ideológicos do Estado moderno que lhe

garantem a aparência de impessoalidade e de gestor legítimo do bem público tornam-se

ineficazes à medida que a apropriação da riqueza socialmente produzida confunde-se

com a riqueza pessoal do líder autocrático. Nesse caso, as liberdades civis e a igualdade

formal garantidas a todos os homens pelas instituições jurídico-políticas chocam-se com

a aparência discricionária das atitudes e iniciativas do Estado apropriador da riqueza

social, na figura de um líder despótico.

Aqui, portanto, a imbricação contraditória entre as prerrogativas dos direitos

civis, necessários à reprodução do capitalismo, e a presença do Estado autocrático

tornam-se evidentes. A dialética da forma-sujeito de direito (SAES, s/d, p.25-28)

apresenta-se como uma força imanente ao antagonismo potencial que marca a relação

entre as forças do mercado e os regimes autocráticos, embora esse movimento dialético

– como veremos – não se limite a ocorrer apenas frente a regimes autoritários,

constituindo-se antes como expressão contraditória das relações de poder no

capitalismo.

No longo processo histórico de avanço das relações de produção capitalistas, a

formação de uma economia urbana capitalista (a grande indústria moderna, e um

aparelho de serviços também moderno) torna os direitos civis aí implantados, ainda que

em uma versão mínima, irreversíveis. Porque se apresentam como uma condição de

existência do capitalismo, tais conquistas jurídicas e materiais dificilmente regredirão,

em uma economia urbana já capitalizada. Em outras palavras, a “corporificação” da

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forma-sujeito de direito em direitos civis (a redação da lei e sua garantia efetiva por

juízes, tribunais e aparato repressivo) confere efetivamente às classes trabalhadoras uma

liberdade real de movimentos, ainda que se tenha em conta a existência da coerção

econômica à prestação de sobretrabalho. No entanto, essa corporificação exprime-se

como um procedimento de instauração da igualdade entre todos os homens – uma

“ilusão prática” –, embora as situações entre capitalistas e trabalhadores, ao celebrarem

um contrato de trabalho, não sejam de modo algum iguais, ao menos formalmente.14

Dessa configuração e disposição das relações sociais de poder no capitalismo –

a coexistência, na forma jurídica, de uma prerrogativa real (a liberdade de movimentos)

e uma declaração ilusória (a declaração de igualdade) – derivará uma dinâmica

tensionada e conflituosa acerca da legitimidade da ordem social. Nesse cenário, os

produtores diretos, ou melhor, as classes trabalhadoras procurarão garantir, pela

conquista de novos direitos, aquilo que lhe foi prometido, porém negado, quando da

instauração de direitos civis, a saber: a realização da igualdade entre os homens. É

verdade que essa postura dos trabalhadores de reivindicarem continuamente do Estado

novos direitos não resultará de uma inclinação espontânea de classe, mas sim de uma

necessidade de redefinição de seus interesses materiais, em atendimento a novas e

constantes exigências do processo de reprodução da capacidade de trabalho. Entretanto,

enquanto um efeito da vigência da forma-sujeito de direito, as exigências materiais

resultantes do embate contínuo por novas prerrogativas entre trabalhadores e poder

público exprimir-se-ão, ideologicamente, como aspirações universalistas a um

tratamento igualitário. Dessa pressão das classes trabalhadoras pela satisfação dos seus

interesses materiais pode resultar um novo processo de corporificação da forma-sujeito

de direito, isto é, a instauração de direitos políticos.

Com efeito, a corporificação da forma-sujeito de direito em direitos políticos

criará novamente uma “ilusão prática”, que se refere à ideia de que todos os homens,

independente de sua condição socioeconômica, estão participando do exercício do

14

Seria pertinente indagar se no caso de regimes autocráticos, em que os direitos civis estão submetidos a

instâncias (juízes, tribunais e aparato repressivo) controladas pela liderança nacional personalista, a

contradição da legitimidade da ordem social já não seria parte evidente da ordem social. Isto é: nesses

regimes a “ilusão prática” já não seria prática efetiva e declarada? Nesse caso, entretanto, há que se levar

em conta os mecanismos de construção e manutenção da legitimidade dessa ordem social, a exemplo de

uma possível fundamentação teológica desses regimes, escamoteando de forma eficiente a contradição

que embora não explícita permanece sempre latente. Como vimos sustentando, a internacionalização das

economias nacionais, sua inserção no mercado capitalista globalizado, e as novas formas de exploração e

apropriação do trabalho social transformam dialeticamente tal contradição em uma experiência objetiva,

vivida e questionada pela maioria social.

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Poder político. De fato, a lei apresenta a possibilidade de a maioria social exercer

influência política sobre os governantes como realização da igualdade política. Uma

nova defasagem entre o que é proclamado e aquilo que é cumprido pelo Estado na

aplicação da lei – a direção geral do processo de tomada das decisões governamentais

permanece intocada – leva os trabalhadores à ação reivindicatória, do que pode resultar

a implantação de determinados direitos sociais. Nesse caso, a corporificaçao da forma-

sujeito de direito em direitos sociais alardeia a possibilidade e legitimidade da

realização do princípio da igualdade sócio-econômica, mas que efetivamente apenas

garante um padrão material mínimo a todos, antes se acomodando aos imperativos da

acumulação econômica capitalista, cuja resultante não é senão o crescimento da

disparidade social.15

A dialética interna da forma-sujeito de direito, como apresentada acima, pode

levar à criação sucessiva de novos direitos, ao explicitar um processo contínuo de

redefinição e ampliação dos direitos materiais da maioria social. Em outras palavras, a

construção da cidadania, e a conquista de um conjunto de direitos (civis, políticos e

sociais) que lhe são inerentes, não se apresenta como um processo linear e passivo, mas

ao contrário, é o resultado de uma vigilância constante que tem se desencadeado em

lutas sociais em torno da redefinição das relações de poder capitalistas que tensionam a

vida em sociedade. De acordo com Décio Saes (s/d, p.27-28),

Porém, contra a operação dessa dialética levanta-se a vontade política

das classes dominantes (bem como a dos segmentos burocráticos que

as representam), sempre empenhadas em reduzir os direitos vigentes

na sociedade capitalista àquele mínimo indispensável à reprodução do

próprio capitalista. Essa vontade política só se enfraquece quando

surgem dissensões política importantes no seio das classes

dominantes, como bem nos mostra Therborn16

. É nessas

circunstancias que se abrem melhores oportunidades para as lutas

populares, delas podendo resultar a criação de novos direitos.

Se um permanente conflito pela conquista de novos direitos é decorrência da

contradição inerente entre os mecanismos ideológicos de legitimação da ordem social e

as condições materiais da maioria social na sociedade capitalista, o que se pensar então

15

Nessa nova situação de implantação de direitos sociais, da qual o Welfare State é um bom exemplo, mas

cujo alcance é estruturalmente limitado, abre-se, em nome do próprio princípio de igualdade, a

possibilidade de um processo de contestação popular. 16

O autor se refere à THERBORN, Göran. The rule of capital and the rise of democracy. New Left

Review, n.103, May-June, 1977.

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quando a estrutura político-jurídica apresenta-se fundamentalmente contraproducente à

legitimação da ordem social capitalista. Em outros termos, o reconhecimento nos planos

jurídico e político dos cidadãos enquanto sujeitos individuais de direito, e a igualdade

aparente que esta forma implica, exposta aos constrangimentos de um Estado

autocrático, tende a radicalizar a tensão conflituosa presente nas relações de poder

capitalistas.

Embora os Estados autocráticos exibam poderosos instrumentos ideológicos de

legitimação política e social (a exemplo da existência de um inimigo externo e da

exigência de obediência a princípios religiosos), aquilo que aparece como sua força (a

personalização do poder de Estado e a repressão), pode se tornar, em condições

históricas específicas (intenso processo de homogeneização “global” das relações

sociais de produção e difusão da democracia como valor universal), sua própria

degeneração.

A Primavera Árabe: ação coletiva e movimentos sociais em gestação

A ênfase da análise nos aspectos estruturais apresentados acima – decorrentes

da maneira como a sociedade está estruturada para se reproduzir – pretendeu oferecer

uma explicação imanente voltada para a particularidade das ocorrências de

manifestações e protestos populares no Mundo Árabe, encontrando-a, porém, na

universalidade das formas de relações sociais capitalistas difundidas globalmente.

A Primavera Árabe, nos termos em que buscamos compreendê-la, deve ser

apreendida como expressão de movimentos sociais em gestação, cujos atores coletivos

têm procurado se opor, de forma mais contundente, às classes dominantes que impedem

a maioria social de se expressar e agir em prol de seus interesses. Em um sistema

capitalista mais globalizado e dominado por grandes organizações transnacionais, os

movimentos sociais adquirem importância fundamental ao ampliarem o escopo de suas

demandas para além de uma simples recusa de inserção em uma lógica capitalista

voltada para a produção de bens e mercadorias. Ao contrário, a luta política busca

incorporar, além da dimensão econômica, um conjunto de reivindicações por direitos de

cidadania e por qualidade de vida (CARDOSO, 1983; SCHERER-WARREN, 1997).

No caso em questão, o Estado, personificado na figura do líder autocrata, passa

a ser o locus dos conflitos de classe, enquanto as ações coletivas contestatórias do status

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quo tornam-se os atores privilegiados da sociedade civil na luta contra as formas de

apropriação e exploração capitalistas difundidas nos países do Norte da África e do

Oriente Médio. O destaque assumido pelo movimento social se deve ao fato dele

representar de forma mais ampliada os interesses da sociedade civil e possibilitar uma

oposição mais eficaz a uma classe dominante com domínio sobre o conjunto dos

campos da vida social e não apenas sobre a esfera da produção (TOURAINE, 1978;

MOISÉS, 1982; CARDOSO, 1983; MUTZENBERG, 2008).

Há, conforme procuramos enfatizar, uma oportuna convergência histórica entre

o processo de homogeneização da sociedade internacional, capitaneado pela difusão da

democracia enquanto um valor universal (processo este em que as tecnologias da

informação jogam um papel central), e a constante frustração de expectativas materiais

e subjetivas da maioria social (frustração esta incorporada e expressa pela juventude

educada), resultante da expansão das relações sociais de mercado e a persistência da

forma autocrática e personalista de apropriação da riqueza socialmente produzida.

Por outro lado, têm sido comuns, na mídia ocidental, análises que buscam

explicações conclusivas nas razões aparentes deste fenômeno social, a saber: atribui-se a

débâcle das sociedades arábicas às situações de privação econômica envolvendo

membros marginalizados da sociedade. Embora a existência de um abismo intolerável

entre as recompensas sociais que as pessoas esperam receber e as que elas efetivamente

recebem seja uma motivação legítima alegada por aqueles diretamente envolvidos nas

mobilizações populares no Mundo Árabe, uma análise mais acurada dos desempenhos

econômicos e sociais dos países norte-africanos e médio-orientais amenizam a

importância desta hipótese como causa suficiente do fenômeno observado.

Em termos absolutos, os dados econômicos e sociais apresentados por estes

países apontam para uma situação bastante desfavorável à maioria social. Por outro

lado, se os relativizarmos, defrontaremo-nos com desempenhos bastante significativos

se comparados com outros países da região ou do mundo. Estagnação econômica,

desemprego, desigualdade e corrupção estão entre os argumentos que mais se destacam

nas explicações sobre a Primavera Árabe.

Considerando apenas os países cujos contornos dos protestos populares foram

mais incisivos – Tunísia, Egito e Líbia17

– e tomando como indicador mais geral de

desempenho econômico o Produto Interno Bruto (PIB), temos a seguinte situação:

17

São variados e diversificados os aspectos que definem a estruturação econômica desses países. Não há

aqui nenhuma pretensão de considerá-las equivalentes, mas tão somente destacar, por meio de uma

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Fonte: data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD. Não há informações disponíveis sobre a Líbia para o ano

1981. O PIB líbio para 2010 refere-se, na verdade, ao ano de 2009.

De acordo com a Fig.1, nos últimos trinta anos o PIB egípcio18

e tunisiano19

cresceu, aproximadamente, 935% e 525%, e o avanço do PIB líbio para os últimos vinte

anos foi de 215%. As três economias se desenvolveram de forma bastante dinâmica e

significativa se vistas dentre as economias da periferia do capitalismo mundial, apesar

dos percalços duradouros causados pela crise econômico-financeira internacional de

2008 (CORSI, 2011), conforme a figura abaixo:

comparação de dados macroeconômicos e demográficos, a fragilidade das interpretações correntes na

mídia global, baseadas exclusivamente em argumentos economicistas apontados no texto. 18

A economia egípcia está assentada, basicamente, no turismo, na exploração e exportação de petróleo,

na cobrança de impostos e taxas alfandegárias sobre o canal de Suez e na imigração de dinheiro de

egípcios residentes no exterior. Sua população total para 2010 era de 81,121 milhões de habitantes. Cf.

Population Division of the Department of Economic and Social Affairs of the United Nations Secretariat,

World Population Prospects: The 2010 Revision, http://esa.un.org/unpd/wpp/index.htm. (Acesso em:

01/01/2012). Cf. Ministério das Relações Exteriores do Brasil

(http:www2.mre.gov.br/deaf/daf_3/egito2.htm). 19

Agricultura, mineração, energia, turismo e manufaturas caracterizam a economia da Tunísia. Em 2008,

Tunísia tornou-se membro associado da União Européia, amenizando com progressivas reformas

econômico-financeiras o rígido controle governamental sobre a economia do país. Contava em 2010 com

uma população total de 10,481 milhões de habitantes. Cf. Population Division of the Department of

Economic and Social Affairs of the United Nations Secretariat, World Population Prospects: The 2010

Revision, http://esa.un.org/unpd/wpp/index.htm. Acesso em: 01/01/2012. Cf. Ministério das Relações

Exteriores do Brasil (http://www2.mre.gov.br/deaf/daf_3/tunisia2.htm).

23,405 43,13

99,838

218,894

28,904 33,896 62,36

8,428 12,29 21,473 44,29

1981 1990 2000 2010

Fig. 1. PIB em bilhões de dólares

Egito líbia Tunísia

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Fonte: data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD. Não há informações sobre o PIB líbio para o ano 2010.

Na fig. 2. observa-se que o impacto da crise econômico-financeira de 2008 foi

mais prejudicial à economia da Líbia, cujo PIB cresceu apenas 3,8% no ano da crise e

continuou caindo a 2,1% no ano seguinte, na contra-mão de um crescimento expressivo

em 2007, de 6%. Há de se considerar que a estreita vinculação da economia líbia à

exploração petrolífera torna-a mais suscetível ao impacto de crises econômicas

mundiais do que as economias do Egito e da Tunísia. 20

Fonte: data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG. Não informações sobre a porcentagem de crescimento

do PIB líbio para o ano de 2010.

Embora as taxas de crescimento anual do Produto Interno Bruto dos três países

tenham sofrido uma forte inflexão em 2009, as economias do Egito e da Tunísia

voltaram a se recuperar em 2010, ainda que lentamente. De qualquer forma, o

crescimento do PIB nestes dois países em 2010, respectivamente 5,1% e 3,7%, foi

20

A economia da Líbia tem se baseado, principalmente, na exploração do setor petrolífero, o qual

preenche cerca de 30% do PIB e responde por 95% de suas exportações. Dessa forma, os elevados

rendimentos proporcionados pelo petróleo e uma população total relativamente reduzida, 6,355 milhões

(2010), garantem ao país um dos maiores rendimentos per capita do continente. Cf. Population Division

of the Department of Economic and Social Affairs of the United Nations Secretariat, World Population

Prospects: The 2010 Revision, http://esa.un.org/unpd/wpp/index.htm (Acesso em: 01/01/2012); Cf.

também Ministério das Relações Exteriores do Brasil, http://www2.mre.gov.br/deaf/daf_3/libia2.htm.

107,484 130,477

162,818 188,984

218,894

56,484 71,803

93,167 62,36

34,377 38,933 44,879 43,522 44,29

2006 2007 2008 2009 2010

Fig. 2. Evolução do PIB nos últimos cinco anos (bilhões US$)

Egito Líbia Tunísia

6,8 7,1 7,2 4,7 5,1

5,9 6 3,8

2,1 0

5,7 6,3 4,5

3,1 3,7

2006 2007 2008 2009 2010

Fig. 3. Crescimento do PIB (% anual)

Egito Líbia Tunísia

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bastante expressivo se consideradas as atuais circunstancias de recuperação econômica e

os desempenhos de outras economias correlatas.

Outro dado importante refere-se à evolução do PIB per capita, que apesar do

resfriamento do crescimento econômico mundial em 2008-2009 manteve-se

relativamente estável para Egito e Tunísia e bastante elevado para a Líbia, mesmo com

a queda mais acentuada de seu PIB nestes anos.

Fonte: data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.CD. Não há informações sobre o PIB per capita líbio para o ano

de 2010.

Muito tem contribuído para este desempenho as taxas levemente declinantes de

crescimento demográfico dos últimos anos, garantido assim um elevado PIB per capita

para Líbia e certa estabilidade neste quesito para Egito e Tunísia.

Fonte: data.worldbank.org/indicator/SP.POP.GROW.

No que se refere às análises que apontam a corrupção como o fator

desencadeante dos descontentamentos que originaram os protestos e as manifestações

populares no Mundo Árabe, Egito, Líbia e Tunísia aparecem no ranking da corrupção

0,759 1,476 1,422 1,696 2,079 2,371 2,698

6,669 6,48

9,584

11,921

15,15

9,957

1,507 2,245

3,394 3,808 4,345 4,169 4,199

1990 2000 2006 2007 2008 2009 2010

Fig. 4. PIB per capita (US$)

Egito Líbia Tunísia

1,8 1,8 1,8 1,8 1,7

2,1 2,2 2,1 1,8 1,5

1 1 1 1,1 1

2006 2007 2008 2009 2010

Fig. 5. Crescimento Populacional (% anual)

Egito Líbia Tunísia

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mundial nas posições 112º, 168º e 73º respectivamente21

. Com a exceção da Líbia, que

ocupa uma das últimas posições no ranking – ainda assim melhor colocada que a

Venezuela (173º) –, Egito e Tunísia (este, empatado com o Brasil), em linhas gerais,

compartilham com os demais países da periferia da economia mundial um alto índice de

corrupção.

Tão preocupante quanto à queda nas taxas de crescimento econômico nos

últimos anos, tem sido o índice de desemprego apresentado no Mundo Árabe. Embora

não haja informações para a situação líbia, os dados apresentados para Egito e Tunísia

ilustram bem a questão:

Fonte: data.worldbank.org./indicator/SL.UEM.TOTL. ZS/countries?page=1&display=default. As informações não

apresentam dados sobre a Tunísia para o ano de 2009.

Nos últimos vinte anos, o nível de desemprego egípcio e tunisiano oscilou a

taxas bastante elevadas, 8-12% e 14-16%, respectivamente. Entretanto, nos últimos

cinco anos, as taxas de desemprego começaram a decrescer de maneira muito estável,

apesar de um aumento esperado como efeito da crise econômico-financeira mundial.

Em comparação com outros países do mundo, as taxas de desemprego das duas

economias afro-arábicas foram as seguintes:

21

Fonte: Transparency International. Corruption Perceptions Index 2011.

8,6 9 11,2 10,6 8,9 8,7 9,4

16,1 15,7 14,2 14,3 14,1 14,2

1990 2000 2005 2006 2007 2008 2009

Fig. 6. Desemprego Total (% da população ativa)

Egito Tunísia

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Fig.7. Nível de desemprego em alguns países (%). In: KOROTAYEV; ZINKINA, 2011, p. 145.

Conforme a Fig. 7, conquanto Egito e Tunísia venham apresentando níveis

elevados de desemprego, ainda assim é forçoso reconhecer que seus índices são bem

melhores que alguns países desenvolvidos.

Diante dos dados e informações apresentados acima, parece razoável supor e

sustentar uma compreensão do fenômeno que privilegie uma imbricação de vários

elementos, para além da tese da privação econômica. Alguns aspectos que têm sido

explorados pelas teorias sobre os novos movimentos sociais podem contribuir para

elucidar a natureza e as características das mobilizações e protestos populares no Mundo

Árabe.

Temos sugerido, ao longo desse texto, que as insurreições populares no Norte

da África e no Oriente Médio, enquanto ações coletivas, tem se constituído como uma

luta de poder. Essa luta tem a propensão a se intensificar à medida que os grupos

desprivilegiados se tornam mais poderosos em relação ao grupos privilegiados, e fazem-

no recrutando mais membros, fortalecendo-se organicamente e ampliando seu acesso a

recursos escassos, como dinheiro e meios de comunicação. Em outras palavras, a

mobilização de recursos é um processo importante por meio do qual os grupos se

engajam em mais ações coletivas à proporção que seu poder aumenta devido não apenas

ao seu tamanho, mas também a um maior acesso a recursos materiais, organizacionais e

outros. (MELUCCI, 1995; SCHERER-WARREN, 1997; McCARTHY e ZALD, 1997;

MUTZENBERG, 2008; e seguintes). A capacidade e velocidade com os atores sociais

engajados nas manifestações e nos protestos que acometeram os países árabes puderam

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mobilizar e organizar seus simpatizantes e ativistas dependeu sensivelmente da

utilização eficaz dos recursos tecnológicos disponíveis mundialmente, tanto em relação

às redes sociais articuladas através da world wide web, como às tecnologias ligadas à

expansão da telefonia móvel.

Além da mobilização de recursos, os movimentos sociais também se

aproveitam de oportunidades políticas que lhe são favoráveis a uma maior mobilização.

A ação coletiva ocorre e os movimentos sociais se consolidam não apenas quando os

grupos desprivilegiados se tornam mais poderosos, mas também quando grupos

dominantes e as instituições que eles controlam se dividem, tornando-se portanto mais

fracos. Ademais, oportunidades de protestos também emergem quando aliados

influentes oferecem apoio, quando coalizões políticas no poder se tornam instáveis e

quando os grupos dominantes se dividem e entram em conflito uns com os outros. Nas

insurreições populares afro-arábicas e médio-orientais foi de extrema relevância os

resultados alcançados pela denominada “Revolução de Jasmim”, na Tunísia, países em

que se iniciou a onda de protestos. A partir dali, com a fuga do presidente Zine El

Abidine Ben Ali para Arábia Saudita, irradiou-se o espectro da contestação ao status

quo e vicejaram-se as esperanças populares de transformações políticas, econômicas e

sociais por toda a região. Tal oportunidade política intensificou-se inclusive com a

certeza da vigilância das grandes potências ocidentais sobre os detalhes dos

acontecimentos, inibindo assim determinadas formas de repressão e contra-insurgência

estatal. Dessa maneira, também pode ser entendida como uma grande oportunidade a

conjuntura histórica de valorização universal da democracia como regime político

condigno às necessidades humanas, vale dizer: a democracia cosmopolita tem se

difundido globalmente em virtude da ampliação e popularização do acesso às

tecnologias de comunicação.

Outro aspecto importante, que nos ajuda a compreender a dinâmica da

chamada Primavera Árabe, é as reações violentas dos governos aos protestos e às

manifestações populares, com diversas medidas de controle social, que incluem

concessões aos que protestam, a cooptação de lideranças mais influentes e a repressão

violenta da ação coletiva. Tais reações podem ou não influenciar protestos

subseqüentes. Assim, se as reivindicações são profundamente sentidas pelas autoridades

e se as concessões aos reclamantes aumentam muito suas esperanças, seus recursos e

suas oportunidades políticas, logo concessões por parte do governo podem encorajar o

aumento das reivindicações seja em intensidade seja em conteúdo. Ademais, se por um

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lado a utilização incisiva e brutal da força repressiva geralmente consegue dissuadir os

protestos, seu uso moderado ou inconstante, por outro, pode ter um efeito contrário, já

que a agitação em geral se intensifica quando aqueles que protestam são levados a crer

que o governo é fraco ou se mostra hesitante. Além do exemplo dos resultados

vislumbrados na capital da Tunísia, um dos mecanismos utilizados pelas autoridades

estatais para reprimir e coagir as manifestações foi a tentativa frustrada de bloquear a

conexão com a rede mundial de computadores. O fracasso do Estado não apenas

encorajou as manifestações como evidenciou a fragilidade da soberania do Estado-

nação diante das novas formas de mobilização e organização dos movimentos sociais.

Se os aspectos levantados acima podem contribuir para melhor conhecermos o

processo de gestação dos novos movimentos sociais que conformam a chamada

Primavera Árabe, também seria importante atentarmos para algumas de suas

características subjetivas constituintes de seu caráter diferenciado, o que lhe empresta

certa novidade e ajuda a explicar sua repercussão global. Trata-se do escopo de seus

objetivos, dos tipos de pessoas que tem atraído e de seu potencial de globalização.

Os novos movimentos sociais recobrem uma gama bastante ampla de questões,

desde aquelas que afetam a humanidade como um todo (paz, segurança e o meio

ambiente), como aquelas que atendem interesses de grupos específicos (homossexuais,

mulheres, crianças). Tais demandas envolvem a promoção do que tem sido chamado de

cidadania universal, que representa a extensão dos direitos de cidadania para todos os

membros adultos da sociedade e para a sociedade como um todo (MELUCCI, 1995;

SCHERER-WARREN, 1997). À luz dos protestos no Mundo Árabe, talvez devêssemos

pensar a democracia não apenas como um tipo de regime ligado à cidadania política,

mas como um pendor sócio-humano-genérico de organização que recobre os mais

distintos aspectos e dimensões da vida social. E, neste caso, sua forma deliberativa,

mais do que a participativa e a representativa, pode ter maior convergência com as

novas aspirações sociais e a complexificação das relações humanas.

O adjetivo que passou a definir os movimentos sociais a partir dos anos de

1970 também se justifica pelo capital humano e social de seus membros, já que tem

atraído para os seus quadros pessoas com elevado grau de escolaridade e indivíduos que

galgam reconhecimento em áreas sociais, educacionais e culturais. Entre essas pessoas

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[“PRIMAVERA ÁRABE”: AUTOCRACIA VERSUS MERCADO * DANILO JOSÉ DALIO]

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incluem-se professores, jornalistas, artistas, escritores e estudantes, etc.22

Por diversas

razões, eles estão mais propensos a participar dos novos movimentos sociais e seu alto

grau de escolaridade os expõe a ideias radicais, tornando-as assim mais atraentes

(ROOTES, 1995; KOROTAYEV e ZINKINA, 2011). De fato, a afirmação de que o

núcleo das mobilizações populares no Mundo Árabe é ocupado por uma juventude

educada e altamente capaz, cujas expectativas e capacidades intelectuais e profissionais

não vislumbram serem preenchidas pelas oportunidades vindouras parece-nos bastante

consistente, embora ela não seja a única parcela da sociedade civil presente nas

manifestações. Uma investigação conduzida ao final de 2010 pela Agência Central

Egípcia para Mobilização Pública e Estatística descobriu que no centro das insurreições

populares no país estavam 43% de desempregados com formação universitária.

Conforme concluíram Korotayev e Zinkina (2011, p.168, tradução própria), “(...) a força

de impacto da Revolução egípcia de 2011 não era apenas jovem, mas também altamente

educada”.

Por fim, os novos movimentos sociais apresentam um maior potencial de

globalização do que os antigos movimentos sociais. Se até os anos de 1960 os

movimentos sociais, geralmente, eram nacionais em seu escopo, a partir da década

seguinte eles se lançaram além-mar seja pela relevância e amplitude de suas demandas

seja pelo barateamento da comunicação e das viagens internacionais. As novas

tecnologias facilitaram a congregação internacional de ativistas de diversos movimentos

nacionais com ideias semelhantes. Tornou-se, dessa forma, possível não apenas

perceber a conexão entre problemas aparentemente locais e suas fontes globais mas

também o desejo de se agir tanto local quanto globalmente (CASTELLS, 2003; DALIO,

2010).

Considerações Finais

22

A título de exemplo, podemos citar a peça teatral “Al‟aan Fhmtekom” – em tradução livre “agora eu

entendo vocês” – que entrou em cartaz, em setembro de 2011, na capital da Jordânia, Amã e que até

início de 2012 já havia sido vista por mais 75.000 pessoas. A peça retrata a vida de Abu Saquer, um tirano

e mesquinho que perde o controle em sua própria casa e vê sua própria filha usando batom e sombra

brilhante. Segundo o autor, o jornalista e escritor jordaniano Ahmad al Zoubi, a peça representa em seu

título o discurso feito por Zine-el-Abidine Ben Ali ao deixar a presidência da Tunísia depois de 14 anos

no poder. Ela reforça ainda a mensagem de que todo político que não mudar sua postura e não se adequar

aos novos tempos, perderá o seu “trono”. Nomes ligados a outras formas de participação e atuação na

chamada Primavera Árabe também podem ser lembrados como o de Alaa Abd El-Fattah, blogueiro e

ativista egípcio, e o de Nabeel Rajab, ativista de direitos humanos no Bahrein, entre muitos outros.

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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REGIMES AUTORITÁRIOS E SOCIEDADES]

Ano 3, n° 3 | 2013, verão ISSN [2236-4846]

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Esse texto procurou explorar duas dimensões que nos parece serem essenciais

para a compreensão da Primavera Árabe: a estrutura das relações sociais capitalistas e a

natureza da ação coletiva em si. Uma análise centrada na intrincada relação entre estes

elementos pretende evitar, pelos menos, duas ordens de problemas. A primeira é atribuir

uma única razão como causa explicativa da onda de protestos no Mundo Árabe,

geralmente de viés econômico, seja como resultado das motivações alegadas pelos

participantes dos movimentos seja pelos desdobramentos aparentes mais perceptíveis

dos levantes no Mundo Árabe. A outra se refere à superestimação do potencial

transformador da Primavera Árabe, embora seu acompanhamento internacional e certa

intromissão das grandes potências, restringindo o escopo ideológico dos movimentos ao

viés liberal da democracia, já apontem para suas limitações intrínsecas. Logo,

reconhecer o fenômeno como o desenvolvimento tensionado de múltiplas causalidades e

assumi-lo como um processo dinâmico de ação coletiva dentro de um cenário em que os

Estados-nação tem reestruturado suas funções para atender novas e antigas exigências

de um sistema globalizado e a expansão mundial das relações sociais capitalistas de

mercado tem ocupado os mais distintos setores da vida social, contribui para uma

análise mais aprofundada e rica em questionamentos.

Longe de pretender esgotar o assunto, esse texto procurou aprofundar e

oferecer alguns insights que julgamos apropriados para explorar a Primavera Árabe.

Isso, aliás, não poderia ser diferente, já que estamos diante de um fenômeno ainda em

desdobramento, cujas repercussões e consequências não podem ser sentidas em sua

totalidade. Por outro lado, ao mostrar-se relativamente vitorioso, tem estimulado outros

movimentos sociais como o “Ocupe Wall Street”, apontando para um deslocamento da

insatisfação social da periferia para o centro do capitalismo mundial, ou melhor,

indicando que as novas formas de mobilização e organização social estão tão

globalizadas quanto os problemas que as inspiram.

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