Autonomia Em Paulo Freire e a Educação Indígena

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  • CARLOS ODILON DA COSTA

    AUTONOMIA EM PAULO FREIRE E A EDUCAO INDGENA

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Educao ao Programa de Ps-Graduao em Educao, Centro de Cincias da Educao, da Universidade Regional de Blumenau FURB.

    Orientador: Prof. Dr. Ernesto Jacob Keim

    BLUMENAU 2005

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo o apoio financeiro dado pela ADVENIAT (rgo da Igreja Catlica que financia projetos sociais), por meio do povo Catlico da Alemanha. Agradeo tambm ao Bispo da Diocese de Blumenau, Dom Anglico Sndalo Bernardino e o Padre Diocesano Elcio Alberton, que contriburam de maneira que eu pudesse receber a ajuda financeira por parte da ADVENIAT. No poderia esquecer tambm de agradecer ao CIMI (Conselho Indigenista Missionrio), por meio de seu setor de Documentao, que de forma prestativa, possibilitou que eu pudesse ter em mos os documentos necessrios para minha dissertao.

    E por ltimo a pessoa de meu orientador Dr. Ernesto Jacob Keim, sbio, amigo, profundo conhecedor da cincia, da pacincia, da educao.

    Agora sei quem sou. Sou pouco, mas sei muito, porque sei o poder imenso que morava comigo, mas adormecido como um peixe grande no fundo escuro e silencioso do rio e que hoje como uma rvore plantada bem alta no meio da minha vida. (MELLO, 2003. p. 29)

  • Dedico essa Dissertao para minha esposa Clia e tambm minha filha Priscila, que estiveram ao meu lado, dando-me apoio e incentivando-me na arte de escrever.

    No, no tenho caminho novo. O que tenho de novo

    o jeito de caminhar. aprendi

    (o caminho me ensinou) a caminhar cantando como convm a mim

    e aos que vo comigo. Pois j no vou mais sozinho.

    (MELLO, 2003, p. 27)

  • RESUMO

    Esta pesquisa trata a educao indgena apoiada e divulgada pelo Conselho Missionrio Indigenista CIMI (rgo da Igreja Catlica do Brasil), na perspectiva de identificar Como as propostas freirianas de educao para a autonomia, esto contempladas como referencial para a organizao de uma educao que viabiliza a emancipao do ser indgena. Este trabalho investiga a forma e a coerncia pedaggica, na perspectiva de Paulo Freire, com que alguns povos indgenas, apoiados pelo CIMI organizaram seus processos pedaggico-didticos. A inteno dessa investigao foi de verificar se as propostas educativas elaboradas pelos povos indgenas com o apoio do CIMI superam as deficincias que se instalaram em suas formas de vida em funo das dcadas e at sculos de aculturao, provocada por influncia e ao de no indgenas, de cultura com matriz europia. Desta forma, este trabalho analisa os movimentos organizados pelos povos indgenas, com o apoio do CIMI, para a construo de seu processo educativo, na perspectiva de organizao e ampliao da autonomia. Estas propostas pedaggicas e educacionais foram investigadas nos documentos referidos aos povos indgenas e que se apresentam em cadernos temticos, livros e revistas, produzidos e divulgados pelo CIMI. A anlise se apoiou nas pedagogias de Paulo Freire, ou seja, do oprimido, da esperana e da autonomia e os documentos foram analisados, considerando como referenciais a viso poltica, ontolgica, tica e gnosiolgica presente nos documentos com referenciais de autonomia..

    Palavras Chave: Autonomia e Ecopedagogia, Educao Indgena, CIMI, Ontologia.

  • ABSTRACT

    The research deals with Brazilian Indian Education as supported and publicized by the Indian Missionary Council (In Portuguese, The Conselho Missionrio Indigenista CIMI), a Communication Agency of the Catholic Church of Brazil. The main objective of the study is to investigate how the Paulo Freire notions of autonomy are included in the educational proposal which aims at emancipating the Indian human being. The research particularly investigates the pedagogical coherence, in a Paulo Freire perspective, that some of the Indian Nations supported by CIMI organize their didactic and pedagogical activities. The main objective of the research is to verify whether the pedagogical proposals of the Indian Nations supported by CIMI overcome the deficiencies introduced in their lives by decades, and sometimes centuries, of acculturation influenced by actions and movements of the European cultural matrix. In this sense, this research analyses the Indian Nations movements backed by CIMI which lead to the creation and the broadening of their autonomy. These pedagogical movements were analyzed in the documents that deal with Indian education and which are especially salient in the thematic books, pamphlets and journals produced and distributed by CIMI. The analysis is based on the pedagogical principles of Paulo Freire, that is on the Oppressed, on the Hope and the Autonomy, and he documents were analyzed considering the political, ethic, gnosologic and ontological principles present in the documents.

    Key words: Autonomy and ecopedagogy, Indian Education, CIMI, onthology.

  • LISTA DE SIGLAS

    ANAI - Associao Nacional de Apoio ao ndio. CEDI - Centro Ecumnico de Documentao e Informao.

    CIMI - Conselho Indigenista Missionrio.

    CNBB - Conselho Nacional dos Bispos do Brasil.

    COMIM - Conselho de Misses Entre ndios. COPIAR - Comisso dos Professores Indgenas do Amazonas e Roraima.

    CPI - Comisso Pr-ndio. CTI - Centro de Trabalho Indigenista.

    FUNAI - Fundao Nacional do ndio. LDBEN - Lei de Diretrizes de Base de Educao Nacional de 1996.

    MARI - Grupo de Educao Indgena de So Paulo.

    MEC - Ministrio da Educao e Cultura.

    NEIs - Ncleos de Educao/Estudos Indgenas.

    OGPTB - Organizao Geral dos Professores Ticuna Bilnges.

    ONGs - Organizaes No Governamentais.

    OPAN - Operao Anchieta.

    OPIR - Organizao dos Professores Indgenas de Roraima.

    RCNEI - Referencial Curricular Nacional de Educao Indgena 1998.

    SIL - Summer Institute of Linguistics e ou Sociedade Internacional de Lingstica.

    SPI - Servio de Proteo aos ndios. SUDAM - Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia.

    UFMT - Universidade Federal do Mato Grosso.

    UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • UNI - Unio das Naes Indgenas.

    UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas.

    USP - Universidade de So Paulo.

  • SUMRIO

    APRESENTAO .............................................................................................................10 1 INTRODUO............................................................................................................13 2 NOSSOS ANTEPASSADOS NOS CONTARAM: BREVE RESUMO DA

    EDUCAO INDGENA NO BRASIL .....................................................................23 2.1 VISO DO PARASO...................................................................................................25 2.2 MODELO CATEQUTICO ..........................................................................................27 2.3 MODELO INTEGRACIONISTA ..................................................................................30 2.4 PROJETOS ALTERNATIVOS......................................................................................32 2.4.1 CIMI ...........................................................................................................................34 2.5 EDUCAO DOS POVOS INDGENAS EM SEU MOMENTO ATUAL ....................36 3 AUTONOMIA VEICULADA POR PAULO FREIRE E A EDUCAO

    INDGENA DIVULGADA PELO CIMI ....................................................................41 3.1 FUNDAMENTOS NORTEADORES DE AUTONOMIA EM FREIRE NO

    CONTEXTO INDIGENISTA ........................................................................................42 3.2 ELEMENTOS INDICATIVOS DE AUTONOMIA EM FREIRE E A EDUCAO

    INDGENA ...................................................................................................................53 4 A AUTONOMIA FREIRIANA E OS DOCUMENTOS DO CIMI ...........................60 4.1 A PERSPECTIVA POLTICA.......................................................................................63 4.2 NA PERSPECTIVA GNOSIOLGICA.........................................................................64 4.3 NA PERSPECTIVA TICA ..........................................................................................66 4.4 A PERSPECTIVA ONTOLGICA ...............................................................................67 4.5 A AUTONOMIA IDENTIFICADA NOS DOCUMENTOS ...........................................69 5 CONSIDERAES FINAIS.......................................................................................72 REFERNCIAS..................................................................................................................79 ANEXOS .............................................................................................................................85

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    APRESENTAO

    Livre filho das montanhas, eu ia bem satisfeito, de camisa aberta o peito. Ps descalos, braos abertos, correndo pelas campinas, roda das cachoeiras, atrs das asas ligeiras, das borboletas azuis.

    (ABREU, 2003)

    Olhando para meu passado, com o olhar de hoje, eu encontro na minha infncia, sentimentos de revolta e angstia pela minha condio social. Apesar das carncias e dores, sempre fui muito critico e tambm questionador a respeito da situao que em geral o povo vive. L dos meus sete ou oito anos, perguntava o por qu de que algumas pessoas possuam

    tantos bens materiais e outras no? Por qu somente alguns tinham esse privilgio ao passo que a maioria das pessoas que viviam em minha volta, mal tinham o que comer? Qual o motivo de alguns grupos ou pessoas serem respeitadas e valorizadas e outros grupos serem desprezados e humilhados, ao ponto de terem negados os direitos inerentes a todo ser

    humano?

    Essas e outras perguntas povoaram minha mente, principalmente aquelas que

    tratavam das desigualdades existentes em nosso mundo. Qual seria a origem das desigualdades? Como o caminho traado por elas? Quem so os condutores da desigualdade existente em nosso planeta? Nas minhas andanas em busca de respostas, percorri vrios autores e idias. Algumas completamente absurdas ou de pouca significao para aquilo que buscava, mas dentro da abordagem scio-antropolgica, foram surgindo explicaes em torno da temtica que eu pesquisava.

    A questo da dominao e explorao fez que na minha adolescncia eu procurasse

    pessoas e grupos que buscavam em comunidades, respostas para enfrentar esse sistema de opresso que podemos notar em nosso mundo. Primeiro comecei a participar dos movimentos e pastorais da Igreja Catlica de minha cidade. Na Pastoral da Juventude nasceu uma enorme vontade de lutar pela causa do pobre e oprimido. Resolvi entrar no seminrio Jesuta em

    Salvador do Sul, RS. Foram anos em um regime de disciplina e austeridade, descobri que no tinha vocao para ser Padre, mas, l conheci o trabalho de alguns jesutas em vrias partes do mundo, abraando a causa do pobre, que despertou em mim muita curiosidade, principalmente quanto aos trabalhos realizados em reservas indgenas do Brasil. Foi nesse

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    perodo que conheci as obras e a militncia de nosso educador maior Paulo Freire, homem

    comprometido com a causa do oprimido, Catlico da Teologia da Libertao, envolvido com os movimentos sociais da Igreja. Paulo Freire juntamente com Leonardo Boff foram aqueles que me fortaleceram e responderam muitos questionamentos que eu fazia, sobretudo nas questes de explorao, dominao e tambm de liberdade e justia social.

    Este processo ficou estagnado quando sai do seminrio e na volta para Blumenau, Santa Catarina, comecei a trabalhar em uma empresa do ramo txtil, onde senti de perto a explorao e dominao por parte do empregador junto aos trabalhadores. Militei em partido poltico, sofri decepes e acabei tirando meu nome de filiados do partido. Muitos amigos no

    entenderam, pois o partido estava crescendo em nvel nacional, tambm local e teramos chance de ocupar espaos maiores no cenrio governamental. Eu buscava a forma inicial como se davam as discusses e as relaes entre as pessoas que se engajavam na causa da liberdade de forma incondicional. Alves (1997) diz que andei pelos caminhos dos deuses, fui pastor e telogo. Fiquei mais modesto e passei a andar nos caminhos dos heris, militei na poltica. Mas meus deuses e heris morreram e hoje ando no caminho dos poetas e crianas.Diante desta postura que dispensa deuses e heris para atuar em sociedade, entendo que as aes ao nvel das crianas se caracterizam como um engajamento afetivo e ldico, com o qual devemos caracterizar o engajamento poltico esperado nas aes dos adultos conscientes da misria e da excluso que de certa forma espelha a ao dos poetas que a meu ver se apresentam como os maiores e mais eficientes anunciadores de misria e excluso, aos nveis da afetividade e da materialidade.

    Depois de algum tempo voltei-me para o magistrio com a disciplina de Ensino

    Religioso, na rede municipal de Blumenau, e para ampliar a qualidade de minha insero na educao que passou a ser minha forma de luta e reao, resolvi entrar no mestrado em educao da Universidade Regional de Blumenau, Santa Catarina (FURB), para buscar respostas a muitas questes que no conseguia organizar com o grau de formao que tinha

    construdo at este momento. Na procura pelo objeto de estudo, optei pela causa da Educao Indgena, na qual a liberdade, a autonomia e o respeito pelas tradies ancestrais, bem como a valorizao da criana e tambm do idoso esto presentes e se apresentam com menos freqncia em nosso meio.

    A questo da liberdade me faz lembrar os primeiros contatos com a escola que foram geradores de dores e tristezas. Morvamos em uma localidade com mata abundante. Meus amigos e eu, praticamente todos os dias, nos aventurvamos, dentro dela e descobramos

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    coisas novas, lindas e exuberantes. Por exemplo, fiquei admirado quando pude me aproximar,

    em torno de dois metros de distncia, de um tucano, ou sentir o cheiro gostoso do manac florido, sem falar da beleza da serpente coral, muito comum em nosso solo. Aprendi com meu pai, quando buscvamos na mata, lenha para nosso fogo, nomes de rvores que encontrvamos como; aroeira, garapuvu, embaba, entre outras. Esse mundo de liberdade e

    autonomia conflitava com o espao escolar letrado, que por obrigao eu tinha que freqentar. Pobre, sedento de liberdade, esse era meu mundo, assim construa minha cultura. O profundo amor para com a natureza, liberdade, busca pela autonomia, e questionador das desigualdades existentes e explorao dos oprimidos e marginalizados, fez com que me interessasse, por

    povos e culturas, que fazem de seu cotidiano, uma luta constante contra a explorao e a opresso.

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    1 INTRODUO

    Para os que concebem a histria como uma disputa, o atraso e a misria da Amrica Latina so o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam, mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graas ao que ns perdemos. Nossa derrota esteve sempre na vitria alheia, nossa riqueza gerou sempre nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os imprios e seus agentes nativos.Na alquimia colonial e neo-colonial, o ouro se transforma em sucata e os alimentos se convertem em veneno.

    (GALEANO, 1989, p.14)

    As questes referentes s desigualdades sociais podem estar vinculadas forma como as pessoas e os povos organizam a partilha dos bens disponveis e produzidos. Hall (1998) neste sentido cita em suas obras seu reconhecimento de que as sociedades capitalistas industriais se apresentam como lugares de divises desiguais, tanto no que se refere aos

    recursos quanto ao direito/merecimento em funo da etnia, sexo, idade, divises de classes, dentre outras, estabelecidas pela cultura, pela histria de cada povo e pela tradio.

    Jameson (1996) parte das formulaes que expem os rumos do atual terceiro estgio do capitalismo oficialmente batizado como globalizao, mas que poderia ser denominado

    como capitalismo tardio e ps-moderno que estaria sucedendo os estgios do capitalismo de mercado e do capitalismo imperialista. O capitalismo multinacional, marca a apoteose do sistema e a expanso global da posio de que tudo se converte e se apresenta com mercadoria.

    Essa dinmica expande seus princpios e ideais a ponto de as pessoas se sentirem como parte desta dinmica de mercado na medida em que colocam a economia e o mercado acima mesmo da vida. quase impossvel algum se colocar e ser aceito quando desafia esta lgica imposta pelo sistema que passa a figurar como se fosse parte integrante da natureza e

    at do inconsciente dos povos e das pessoas, habilmente alimentado pela mdia e pela publicidade, desafiando a capacidade silenciosa de resistncia prpria dos homens.

    Nessa verso expandida e atualizada do mercado, deve-se entender que a lgica do sistema dominador se apropria da cultura e a transforma tambm em mercadoria. Uma

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    mercadoria, com efeito, devastador e dominador na medida em que consolida e promove a

    aceitao das desigualdades.

    Hall (1998) afirma que a cultura um dos locus onde se estabelecem as divises, mas tambm nela que se constitui o meio em que elas podem ser contestadas. na cultura que se d a luta pela significao dos valores tanto de dominao quanto de resistncia e

    libertao. na cultura que os grupos subordinados tentam resistir imposio de significados que sustentam os interesses dos grupos dominantes.

    Com estas colocaes podemos frisar que aquilo que destacado comumente como cultura se configura como um dos condutores das desigualdades em nosso meio. A histria da

    cultura do povo brasileiro farta de exemplos em que os poderosos usaram sua cultura e se apropriaram da cultura da populao adaptando-a para se constituir em instrumento de explorao, opresso, subordinao e acomodao dos menos favorecidos ou com pouca participao no mecanismo social existente na sociedade.

    A literatura oferece um vasto leque de informaes a respeito do assunto colonizao e explorao dos povos oprimidos e subjugados dos quais se destaca o telogo Leonardo Boff (1992, p. 9) ao dizer que: A conquista e colonizao das Amricas constituram um ato em si de grandssima violncia. Implicou que uma nao com sua cultura, memria, religio e

    histria, se submetem a outra, perdendo seu carter de sujeito histrico-cultural. E acrescenta ainda que toda colonizao e conquista desestrutura a cultura submetida. Obrigando as pessoas e os grupos a internalizar a figura do colonizador e reprimir os legtimos reclames de libertao e justia. Todos e todas oprimidos (as) passam por um terrvel dilema, ou se submetem ao colonizador, e ento atraioam seus irmos e irms, e assim vivem como

    sujeitos subalternos e dependentes, ou ento, resistem e se rebelam e so perseguidos, condenados a viver na clandestinidade, presos, torturados ou mortos. Outros para sobreviver se submetem a viver sob disfarces, evitando sua prpria identidade.

    Esta referncia traz para a memria a lembrana do testemunho de inmeras pessoas

    de grupos sociais organizados a partir dos colonos europeus, que se instalaram no estado de Santa Catarina, que tinham parentesco prximo com os ndios guaranis, mas que negavam este vnculo, no permitindo sequer tocar no assunto, da mesma forma que entre as pessoas que tm alguma ascendncia com escravos africanos.

    A ascendncia tnica se caracteriza desta forma como um importante aspecto que determina o grau ou o nvel de aceitao social a que as pessoas esto sujeitas. Neste sentido

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    e de conformidade com o foco dessa pesquisa que trata da questo indgena, nos referimos

    Khan (1994) ao dizer que um dos maiores responsveis, para que o processo de reproduo social apoiado na explorao se expandisse junto aos silvcolas brasileiros, foi o modelo de educao conhecido como educao escolar indgena, que se formulou e executou, tendo como referencia o sistema formal escolar no indgena, que tinha como base de sustentao, a

    escola e o letramento, o que caracterizou uma educao escolar indgena centrada no modelo ocidental branco e no numa proposta da pedagogia dos povos indgenas.

    Segundo Flores (2003), o modelo educacional dos povos indgenas tem como conceito bsico formao do individuo indgena, diferente da educao letrada e oficial dos

    povos no indgenas. Esta diferena se d em parte pelo fato de que em muitas comunidades indgenas, todos so responsveis pela educao de todos. O cotidiano e a vida em grupo nestas comunidades so a base da educao indgena, na qual autonomia e liberdade so estimuladas constantemente.

    Existe uma Lenda Iroquesa1 (indgenas que habitavam o nordeste dos Estados Unidos), que revela o quanto o medo acomoda as pessoas naquilo que parece inevitvel. Diz a lenda que havia uma figura terrvel e monstruosa que atormentava o povo iroqus principalmente nas noites em que a lua se escondia. Era a cabea Voadora. Tratava-se de uma

    grande cabea suja, com uma enorme e assustadora boca, os cabelos eram horripilantes e tinha asas que a levavam por toda parte. Seu objetivo era espalhar o terror a violncia sobre qualquer pessoa. Apavorava pessoas e animais com seu rugido tenebroso. E assim continuava seu ritual pavoroso e noturno, no havia nada a fazer. Certa vez, porm, uma jovem iroquesa, cansada daquelas visitas indesejveis, resolveu acabar com aquilo. Uma noite em que o monstro voltou na hora em que todos estavam reunidos na tenda comunitria e como sempre, todos fugiram o mais depressa possvel, menos a jovem com seu beb no colo. Ela foi nica a no se mexer. A cabea diante desta ousadia voltou tenda furiosa por ter sido desafiada. Como algum teve a ousadia de no fugir de sua presena? Silenciosa e sedenta de vingana,

    olhou para a jovem me com seu filho no colo, sentada prxima ao fogo e que falava baixinho com a criana, parecendo que estava comendo pedaos de brasa que elogiava como se fosse um delicioso manjar. A cabea em sua raiva cega no percebia que a mulher jogava as brasas sem engoli-las, e quis fazer o mesmo para desfrutar de to grande prazer humano. Assim

    entrou desastradamente na tenda e aproximando-se do fogo, comeu com avidez todas as

    1Lenda Iroquesa contada por Patrizia Bergamaschi, A coragem da Jovem Iroquesa, Revista Mundo e Misso, Janeiro/fevereiro 2003, ano 10 n 69, p.52, editora Mundo e Misso So Paulo SP)

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    brasas que sobraram. Por toda aldeia s se ouviram os urros desesperados do monstro por

    vrias noites, que foram as ltimas, pois a cabea nunca mais retornou a tribo dos iroqueses.

    A metfora que se pode fazer desta histria com a educao escolar indgena, a comparao desta dinmica educativa/colonizadora que assusta e apavora os indgenas que ficam sem apoio das suas culturas para suas vidas, diante da realidade desconhecida e

    monstruosa que se constitui pelos hbitos e valores urbanizados trazidos pelos no indgenas. Essa metfora se materializou como um desafio a ser enfrentado pelos povos indgenas para enfrentar a cabea voadora representada pela civilizao europia exploradora. . Nas matas e nos acampamentos a educao que visava amansar e catequizar se constituiu em opresso e

    dominao institudos pelo modelo educacional jesutico, que trazia no seu bojo a ameaa real de escravido, foi implantada no Brasil desde o perodo colonial, um modelo de educao tradicional conhecido como a Jesuta, Ordem Religiosa de Padres Catlicos, fundada por Incio de Loyola, filho da nobreza basca e consagrado pelos pais ao ministrio Cristo, Incio

    de Loyola s se converteu em 1521, aos 30 anos, depois de ler a vida de Jesus e dos santos, e enquanto se convalescia de ferimentos sofridos em uma batalha. Em seguida passou onze meses em orao e jejuns. Em 1534, depois de estudar Teologia na Universidade de Paris, onde estudava tambm o futuro reformador Calvino, e de reunir ao seu redor alguns amigos,

    Loyola e outros seis, fizeram votos de pobreza e castidade perptuos, trs anos depois, aos 46 anos, ordenou-se sacerdote em Roma, onde fixou residncia; em 1540, o papa Paulo III oficializou a Companhia de Jesus, fundada por Loyola e seus companheiros, Loyola foi eleito o primeiro superior geral da ordem. Embora Santo Incio ressaltasse mais a qualidade do que a quantidade, a Companhia de Jesus cresceu rapidamente, quando morreu, em 1556, aos 65 anos, j havia cerca de mil jesutas em vrios pases da Europa e missionrios na sia, ndia, China, Japo, Brasil e Paraguai.

    Essa pedagogia ficou conhecida como Pedagogia Jesuta. De acordo com Xavier (1994) essa Pedagogia de cunho religioso catlico que reproduzia em muitos aspectos, os preceitos educacionais dos jesutas, que foram dados pelo Ratio Studiorum. O Ratio Studiorum teve como base a unidade de matria, a unidade do mtodo. O assunto estudado deveria contemplar poucos autores, de preferncia aqueles ligados ao pensamento oficial da Igreja, como Toms de Aquino, a disciplina rgida, o cultivo da ateno, da perseverana nos estudos. O principio pedaggico fundamental era a memorizao e competio, a prova, o castigo, aliado a uma hierarquia do corpo discente baseado na obedincia e na meritocracia. Essa pedagogia basicamente apresentava duas vertentes. Uma seria a educao voltada para

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    fins de catequizao, doutrinao e converso dos negros e indgenas, na qual podia se incluir

    os pobres; outra de concepo elitista servia para formar os futuros Padres ou os Senhores de Engenho.

    A permanncia incrustada na cabea dos professores, da pedagogia tradicional, em partes, denuncia de certa forma a incapacidade do pensamento laico em superar a organizao

    da cultura, forjada pelo capitalismo e a elite dominante no Brasil, originria em nosso pas devido colaborao da Educao Jesutica, acrescida pela ferocidade com que eram caados pelos bandeirantes paulistas. A cabea voadora tinha ento o objetivo de domesticar e catequizar os povos indgenas. Esse modelo educacional perdurou at o final do sculo XVIII.

    No sculo XIX a dominao indgena foi realizada com recursos no educacionais, ocorrendo na forma de genocdios organizados pelos europeus interessados em terras e minas. Com a proclamao da repblica e o discurso humanista vinculado ao positivismo que primava pelo legalismo, diante da emancipao dos negros e fim da escravido, fez com que os povos

    indgenas sobreviventes passassem a ser vistos com outros interesses, como os de serem objetos de estudos sociolgicos, passando a ser protegidos, desde que no atrapalhassem os interesses econmicos. Em 1910 foi criado o Servio de Proteo ao ndio com a finalidade de cuidar dos interesses destes povos, uma vez que no eram reconhecidos como cidados

    emancipados juridicamente. Este servio, porm no impediu que a cabea voadora continuasse perseguindo os indgenas que passaram a ser vtimas de bem intencionados sacerdotes que vinham salvar suas almas da ignorncia e da falta de f no Deus europeu.

    Durante o sculo XX, os indgenas brasileiros foram acompanhados por grupos de indgenistas como os irmos Vilas Boas e tambm pelo Marechal Rondon que promoveram

    contactos e aproximaes dando visibilidade identitria a estes grupos e desta forma evitaram que fossem eliminados pelos interessados por suas terras sem que a sociedade soubesse de sua existncia.

    Surgiu a Fundao Nacional do ndio FUNAI ainda no perodo caracterizado pelo integracionismo e em 1972 se constituiu o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), tambm nesta dcada surge o COMIM, que de certa forma foram dois Conselhos que se empenharam na eliminao da cabea voadora.

    A partir de 1970, com apoio de ONGs voltadas para os direitos dos povos indgenas e com a ao do CIMI, COMIM entre outros grupos organizados, os indgenas perceberam a necessidade de dominar as formas de relaes adotadas pelos povos no indgenas, reivindicando ento acesso educao, desde que fosse projetada e executada por eles. Este

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    esforo perdurou at os anos 80, quando comeou a ser desenhado no cenrio nacional o

    sonho de usar a pedagogia, como recurso para animar a cabea voadora a comer as brasas. Esta metfora nos leva a indicar que a educao poderia ser uma forma para que estes povos se livrassem dos agentes que os subjugava ao invs de ser a forma de jugo. Inicia-se, ento, um movimento pelo qual as comunidades indgenas pudessem resgatar suas tradies,

    conhecimentos e cultura para alcanar liberdade e autonomia.

    nessa encruzilhada que esta pesquisa direciona seu foco que tm de um lado pessoas que criticam a educao escolar que se prope a desenvolver autonomia dos povos indgenas e de outro pessoas que entendem que esta autonomia deve ser substituda pela total

    integrao destes povos sociedade no indgena.

    Nesta pesquisa consideramos como ponto de partida a educao que privilegia a cultura ancestral e tradicional dos povos indgenas como um meio que possibilite a sobrevivncia destes povos, na medida em que haja interao e integrao com a cultura dominante, de tal forma que a cultura indgena se posicione e se imponha como uma cultura e uma tradio que tem que ser respeitada, pela importncia histrica, sociolgica e ontolgica, para a manuteno da vida no planeta.

    Esta argumentao encontra apoio em Assis (1981, p. 38) ao destacar que a educao voltada apenas aos princpios e fundamentos da sociedade no indgena se caracteriza como

    Um espao criado pela sociedade dominante, para forjar homens que aceitem a relao de dominao/submisso, mantendo os quadros situacionais em favor do progresso e da civilizao; por introduzir formas culturais diferentes e parmetros, alheios aos indgenas, por ajudar, muitas vezes, a demolir suas tradies culturais, substituindo-as por outras; consideramos a Escola e todo o aparato que a compe como tendo um carter de fonte de contedo ideolgico.

    A educao com sua natureza ideolgica e poltica mesmo sem ser neutra, anima

    essa pesquisa na direo de pensar em uma educao indgena que resgate a autonomia e a liberdade desses povos, tendo como sustentao uma proposta de educao diferente do modelo ocidental europeizado. Considera-se neste contexto, poltica como a conscincia, discurso e compromisso com os poderes que se sofre e se exerce e ideologia a forma como o

    poder se mantm segundo Manheim.

    Neste sentido os defensores da organizao de uma pedagogia dos povos indgenas, buscam uma proposta que se caracterize como forma de manter e desenvolver os saberes indgenas, para viabilizar a sobrevivncia destes povos e a divulgao de suas propostas de

    vida.

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    Esta proposta tem que lidar com o desafio representado pela matriz educacional

    convencional que vista por muitos, como a nica, e por isso, entendem que ela deva ser incorporada pela educao indgena como modelo de organizao. Esta matriz vista como um modelo educacional que dever ser adaptada para adequar os povos indgenas realidade dominante, denunciada por Sater (1988, p.8), que um professor e pedagogo indgena ao dizer no Primeiro Encontro Indgena do Mdio Solimes que:

    a escola atual pode ser positiva ou negativa. Pode fazer com que esqueamos nossa cultura, nossa lngua. importante que o processo da escola seja indgena, para manter os nossos costumes, para ensinar a nossa lngua. Precisamos do conhecimento do mundo indgena e do branco.

    Mesmo com esta posio, necessrio que os indgenas e pessoas engajadas pela causa indgena tenham certa cautela, pois esse um longo e demorado processo em construo, no qual no se sabe ainda para onde essa estrada pode conduzir. A complexidade desse fato impede qualquer prognstico seguro.

    At a dcada de 1970 a palavra chave para a educao indgena era a integrao: Os indgenas eram obrigados a fazer parte do sistema scio-econmico branco (inconscientemente ou no) o que significou para muitos uma mudana nas condies de vida, sobretudo na perspectiva de economia. Alguns povos, entretanto, resistiram e denunciaram. No era do seu intento passar das margens do sistema para o centro. Estes se recusaram a aceitar estas duas nicas opes que o sistema imps, elegendo uma terceira proposta ao estabelecerem a proposta de participar ativamente de sua histria com ter autonomia e liberdade.

    No decorrer do processo civilizatrio europeu, ficou caracterizado o mercado era o destino do ser humano, quer queira ou no. Os povos indgenas afirmavam, ento, que esta no era a nica opo e que a forma de vida deles poderia sobreviver, apesar do mercado e de suas normas. Os indgenas diziam e dizem que era possvel se criar uma sociedade em que as exigncias da eficcia funcional estejam subordinadas participao do ser humano. Se a sociedade branca ocidental afirma que hoje so as estruturas que fazem o ser humano, os indgenas anunciam sua confiana de que ainda possvel ao ser humano construir novas possibilidades para a vida coletiva.

    Para lidar com este conflito de opinies e posies busca-se Paulo Freire como referencial bibliogrfico para fundamentar esta pesquisa, pelo fato dele ter em toda sua vida,

    defendido, sobretudo aqueles e aquelas que eram oprimidos. Seu pensamento, idias, atitudes influenciaram o cenrio educacional brasileiro para o enfrentamento com a tradio colonialista e alienante que norteava a educao convencional que se impunha como nica.

  • 20

    Dos encontros de Paulo Freire com os povos indgenas ele deixou claro que somente

    enquanto seres autnomos que esses povos poderiam construir sua prpria pedagogia, devendo entender autonomia como ao centrada na liberdade, em relao com o outro, em comunho e no explorao. Ou seja, construir os conhecimentos indgenas, confrontando com o conhecimento no ndio.

    Nesta perspectiva a pesquisa terica se constri como uma trama entre Paulo Freire e

    autores como:

    - Tassinari (2001), que escreve ser adequado definir as escolas indgenas como espao-fronteiras, entendidas como espao de trnsito, articulao e troca de

    conhecimento, assim como espaos de redefinies identitrias de grupos envolvidos nesse processo. Nessa posio, Freire com sua proposta dialgica libertadora reconhece que o ato de conhecer e pensar esto diretamente relacionados com o outro, pelo fato do conhecimento no ser um ato isolado;

    - Justino (1995), ao dizer que o indgena precisa de uma educao diferenciada e especifica, pois cada povo tem sua histria e cultura diferenciada e especifica. Paulo Freire em seus escritos e em sua vida, sempre pregou o respeito pela cultura e autonomia do outro. Seu paradigma educativo funda-se na condio planetria da

    existncia humana. A planetaridade uma categoria que fundamenta o paradigma Terra, isto , a viso da Terra como um organismo vivo e evolutivo, onde os seres humanos se organizam, compartilhando a mesma morada com os outros seres;2

    - Meli (1979) segundo a qual a educao indgena processo global, total. A cultura aprendida em termos de socializao que no genrica e se apia em

    aspectos e fases que requerem mais tempo. preciso, ento, pensar em uma educao escolar que no seja igual ao do no indgena, somente em sala, com pouca participao da comunidade e longe da vida. Paulo Freire contribui de maneira significativa para que esse processo ocorra. Pelo fato de considerar a

    escola muito mais do que as quatro paredes da sala. A educao para ele comunitria, dialgica, libertadora, multicultural e ecolgica. Freire insistia na conectividade, na gesto coletiva do conhecimento social a ser socializado de forma ascendente, via ele o planeta como uma escola permanente.

    2 A Planetaridade abordada no Grupo de Pesquisa Filosofia e Educao-Educogitans do PPGE-ME da FURB em

    planetarizao, justamente para acolher a diversidade e a dinmica eco-desorganizativa/organizativa de todas as relaes da biosfera.

  • 21

    Estes exemplos mostram a dimenso ontolgica do suporte terico da pesquisa, que

    vai viabilizar uma anlise da presena de referenciais de organizao de autonomia nas propostas pedaggicas educacionais construdas, apoiadas e divulgadas pelo Conselho Missionrio Indigenista CIMI referente educao dos povos indgenas. Estas propostas pedaggicas e educacionais sero investigadas nos documentos oficias e em relatrios, atas e

    anais de encontros de trabalhos coletivos que se refiram organizao do processo educacional aplicado nas escolas indgenas.

    Com os dados coletados, esta pesquisa pretende identificar nos documentos referentes educao indgena aspectos da organizao de autonomia conforme proposta na

    obra de Paulo Freire.

    Com este foco enuncia-se o seguinte problema que ser norteador desta pesquisa: De que forma a educao para a autonomia veiculada por Paulo Freire em sua obra, se faz presente: nos documentos referentes educao escolar indgena que foram organizados,

    apoiados e divulgadas pelo CIMI?

    Deste problema pode-se enunciar as seguintes questes decorrentes:

    - Em que consiste a educao para autonomia conforme Paulo Freire em um contexto educacional indgena?

    - Como a organizao da educao indgena, veiculada pelos documentos divulgados pelo CIMI, contempla os referenciais de autonomia proposto por Paulo Freire?

    O objetivo geral desta pesquisa fica, ento, proposto da seguinte forma: - Indicar pontos de convergncia existentes entre a proposta de educao indgena

    divulgada CIMI, e a proposta educacional de autonomia Freiriana.

    Deste objetivo geral decorre o seguinte objetivo especfico. - Analisar o processo de construo da educao indgena, que est sendo

    organizada, apoiada e divulgada pelo CIMI, no que se refere autonomia,

    sugerida por Paulo Freire, utilizando entre outros os elementos indicativos de autonomia organizados por Fleck (2004).

    A metodologia a ser utilizada se caracteriza como documental na medida em que os Documentos do CIMI sero analisados luz do referencial de autonomia vinculados obra de

    Paulo Freire.

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    O corpo da pesquisa contar com seis itens, sendo um de apresentao, este de

    introduo, um captulo que d conta da histria da educao indgena no Brasil, outro que explicita a autonomia na obra Freiriana e mais um, o quarto que trata da anlise dos documentos luz dos elementos indicativos de autonomia da obra Freiriana. Um ltimo captulo apresenta consideraes finais.

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    2 NOSSOS ANTEPASSADOS NOS CONTARAM: breve resumo da Educao Indgena no Brasil

    Certa vez os ndios vinham ao nosso encontro para nos receber, distncia de dez lguas de uma grande vila, com viveres e viandas delicadas e toda espcie de outras demonstraes de carinho. E tendo chegado ao lugar, deram-nos grande quantidade de peixe, de po e de outras viandas, assim como tudo quanto puderam dar. Mais eis incontinenti que o Diabo se apodera dos espanhis e que passam a fio de espada, na minha presena e sem causa alguma, mais de trs mil pessoas, homens, mulheres e crianas, que estavam sentadas diante de ns. Eu vi ali to grandes crueldades que nunca homem vivo poder ter visto semelhantes.

    (LAS CASAS, 1984, p.41)

    Dificilmente na histria do Ocidente encontramos tanto etnocentrismo, dogmatismo, fundamentalismo e totalitarismo como na viso dos europeus do sculo XVI. Essa rigidez cultural e religiosa est na raiz do etnocdio e da violncia aplicada sem cerimnia contra

    indgenas durante sculos, e que perdura no inconsciente coletivo e nos hbitos autoritrios das classes dominantes latino-americanas at os tempos atuais.

    Nesse sentido, pesquisar e descrever a histria (seja qual for), a partir da tica dos opressores, dos vencedores e dos dominadores, tarefa que no requer muito esforo, principalmente no que se refere ao material para coletas de dados. Basta abrir uma pgina de

    jornal, entrar em algum site relacionado com a histria, ou mesmo, pesquisar nas escolas, seja nas bibliotecas ou o corpo docente e teremos no final, a histria que a sociedade permite contar, ler, ver, narrar...

    Por outro lado, pesquisar e descrever a histria, a partir da viso dos oprimidos, dos

    ditos perdedores, dos dominados, meta muito difcil e s vezes impossvel de levar a cabo. A histria humana geralmente permite que os opressores contem sua histria e silenciem a

    dos outros (os oprimidos), com uma preciosa dose de gentileza, permitindo cruelmente que os oprimidos vejam a histria que os poderosos produziram.

    A inteno de escrever esse captulo a possibilidade de quebrar essa lgica desumana que oprime e marginaliza, comunidades e povos. uma tentativa, ao menos no papel, de

  • 24

    colocar a voz, para aqueles que foram vitimas de silenciamento ao longo da histria dos povos

    indgenas em contato com no indgenas. So vozes que denunciaram as injustias, histrico-sociais do processo de colonizao e integrao ao Estado Nacional. Vozes que reclamam o reconhecimento de sua cultura, de suas tradies e de sua identidade. Vozes que reclamam e questionam o projeto capitalista da modernidade dos pases ditos desenvolvidos. Vozes que querem dar uma contribuio original para os no indgenas, rompendo com a lgica da excluso, atravs da educao indgena.

    Busca-se nesse trabalho apresentar como um processo em construo na experincia de vrias e at de inmeras decises, que muitas vezes so tomadas, de maneira coletiva e de

    cooperao e assim amadurecem no confronto com a liberdade dos outros, Essas decises que os grupos indgenas fizeram, esto por toda parte de nossa histria, mas em muitos momentos, penso que em quase todos, foram silenciadas e hoje pode-se perceber uma revitalizao nesse processo de reao e de silenciamento.

    A dinmica do desenvolvimento do assunto em alguns momentos, talvez, se torne complexa, porm no difcil, onde se ressalta que importante aprender e compreender a temtica Educao Indgena, no seu intercurso variado com outros componentes sociais, atravs dos tempos histricos, ou seja, necessrio ter uma abordagem histrica do tema, para melhor compreenso do objeto estudado e como ele se apresenta no cenrio nacional. De acordo com Andrade (2001) Edgar Morin diz que precisamos estudar o objeto no somente como uma pea a mais em um grande quebra-cabea, mas, v-lo como um sistema ligado em muitos outros. Desta forma nesse primeiro captulo uma breve histria da educao indgena no pas ser esquematizada em cinco momentos essa trajetria.

    Viso do Paraso. Antes da chegada dos portugueses ao Brasil.

    Perodo da Educao Tradicional Jesutica e de outras ordens religiosas. (1540-1910), Modelo Catequtico.

    Perodo Integracionista do SPI e FUNAI. (1910-1970)

    Perodo de projetos alternativos comandados pelas ONGs. (1970-1980) Perodo atual, Educao dos Povos Indgenas. (A partir de 1980)

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    2.1 VISO DO PARASO

    Quando a terra-me era nosso alimento, quando a noite escura formava o nosso teto, quando o cu e a lua eram nossos pais, quando todos ramos irmos e irms, quando nossos caciques e ancios eram grandes lideres, quando a justia dirigia a lei e a sua execuo, a outras civilizaes chegaram. Com fome de sangue, de ouro, de terra e de todas as riquezas, trazendo em uma mo a cruz e na outra a espada, sem querer conhecer ou aprender os costumes de nosso povo... Entretanto no puderam fazer nos eliminar e nem fazer esquecer o que somos... E mesmo que nosso universo inteiro seja destrudo ns sobreviveremos por mais tempo que o imprio da morte. (TRECHO DA DECLARAO SOLENE DOS POVOS INDGENAS. ESTA TERRA TINHA DONO, p. 164).

    O primeiro momento da Educao Indgena no Brasil pode ser citado, a partir do imaginrio judaico-cristo, como o perodo denominado paraso, um perodo longo sem contatos com os no indgenas que durou aproximadamente at a chegada dos portugueses ao Brasil em 1500. De acordo com Holanda (1994), para os telogos da Idade Mdia no se representava o Paraso Terreal em um mundo intangvel, incorpreo, perdido no comeo dos tempos, nem simplesmente alguma fantasia vagamente piedosa, e sim uma realidade ainda presente em stio recndito, mas porventura acessvel. Debuxado por numerosos cartgrafos, afincadamente buscados pelos viajantes e peregrinos, pareceu descortinar-se, enfim, aos primeiros contatos dos europeus com o novo continente. Mesmo quanto no se mostrou ao alcance dos olhos mortais, como apareceu mostrar-se aos olhos de Colombo, o fato que esteve continuamente na imaginao dos navegadores, exploradores e povoadores do hemisfrio ocidental.

    Amrico Vespcio em carta que ele descreve para Loureno de Mdici em 1504, a gente e a terra do Brasil, o fato do paraso ser encontrado nas Amricas, no imaginrio dos exploradores, fica claro no seguinte trecho:

    Extremamente frtil e aprazvel a terra. As rvores, mormente ali vicejam sem cultura, e muitas do frutos de agradvel gosto e teis ao corpo humano; outras, porm, nada produzem e nenhuns frutos ali existem semelhantes aos nossos. Pululam tambm, naquelas plagas, inumerveis modalidades de ervas e razes de que fabricam po e excelentes alimentos. Tm eles, outrossim, muitas sementes, de todo em todo diversas das nossas. As rvores todas so ali odorosas e destilam goma, leo ou outra essncia, cujas propriedades, se conhecidas nos fossem, serviriam para guarnecer o corpo humano em minha opinio. E, em verdade, se o paraso terrestre est localizado em alguma parte da terra, julgo que no dista muito daquelas regies. (CASTRO, 1969, p. 36)

    Dessa espcie de iluso originria haveriam de partilhar indiferentemente os

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    povoadores de nossa Amrica, marcando vivamente os comeos de expanso das naes

    ibricas no continente, era inevitvel, no obstante, que o mundo paradisaco chegasse a imprimir traos comuns e duradouros colonizao das vrias regies correspondentes a atual Amrica Latina e com isso afirmando a teoria que estava na Amrica e mais precisamente no Brasil, o Paraso.

    Os indgenas, antes da chegada dos colonizadores, viviam de forma integrada com a natureza e com os vrios povos que habitavam as Amricas. De acordo com Boff (1992), eles se referiam ao continente americano como sendo Abya Ayala, ou seja, Terra Madura, terra em que podia encontrar de frutos deliciosos e saborosos e Cachoeiras exuberantes, a fauna e a

    flora rica em diversidade e de grande beleza em cores e formas. O modo de produo indgena pode ter sido o de subsistncia e coletivo, a educao talvez fosse centrada nas tarefas do dia-a-dia, ritos, arte, ligada vida das comunidades. O respeito s tradies e aos laos familiares quase sempre era a mensagem mais persistente. A famlia em muitos casos era o primeiro

    interesse a que todos deveriam servir, eles quase sempre se protegiam uns aos outros, em tudo, durante a vida toda. A criana em muitas ocasies merecia cerimnia e festa, o pai recebia-a em seus braos, isto significava reconhecer a paternidade diante da tribo, os filhos cresciam junto dos pais, tratados carinhosamente, havia camaradagem entre pai e filho, me e filha. A esse respeito Donato (2000, p.23) descreve que:

    Nenhum castigo, somente a liberdade, e o ensino se fazia pelo exemplo e participao. A criana indgena era desde cedo, conduzida a aprender certas dinmicas sociais, confeces de armas e ferramentas para sua sobrevivncia. Adolescente era iniciado ou deveria ritualizar-se, nos conhecidos ritos de passagem (cada povo indgena tem o seu, seja para rapazes ou moas.) para entrar no mundo dos adultos, tornando-se adulto, tinha vrias obrigaes, mas, a principal era de sustentar e apoiar sua famlia, e assim vivia sua vida at chegar fase idosa, onde os anos de experincia de vida era um fator muito importante no cenrio das comunidades indgenas, pois os anos de vida, eram vistos como bnos do grande esprito que criava os indgenas. A educao indgena tinha o grande objetivo de preparar o individuo para viver de maneira comunitria e prepar-lo para os desafios da vida na floresta

    Mlia (1979) tambm descreve a educao dos indgenas antes da chegada dos portugueses como um processo global, ensinada e aprendida como um processo globalizante em termos de socializao integrante. A educao de cada ndio era quase sempre de interesse

    da comunidade toda, era o processo pelo qual a cultura atuava sobre os membros da sociedade para criar indgenas que podiam conservar essa cultura. O indgena era constantemente educado para o prazer de viver, ele trabalhava para viver e essa educao permitia, de fato, um alto grau de espontaneidade que facilitava a realizao dos indgenas dentro de uma

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    margem muito grande de liberdade e autonomia. Esse modelo acabou sendo influenciado e

    transformado com a chegada dos colonizadores no continente americano.

    Desterrados em sua prpria terra, condenados ao xodo eterno, os indgenas da Amrica Latina foram empurrados para as zonas mais pobres, as montanhas ridas ou o fundo dos desertos, medida que se estendia a fronteira da civilizao dominante. Os ndios padeceram e padecem, sntese do drama de toda a Amrica Latina, a maldio de suas riquezas. (GALEANO, 1989, p. 58)

    O maior drama que os indgenas passaram foi sem sombra de dvida o de no puderem desfrutar mais a liberdade e autonomia em que eles viviam antes do contato com o no indgena. Esse contato marcou profundamente a forma de vida e as relaes dos povos que aqui estavam antes da chegada dos colonizadores, sobretudo no processo educacional que eles construam. A tradio, a honra, a coragem, a identidade de pertencer a um grupo, foram apagadas gradativamente e quase completamente do cotidiano das relaes dos povos indgenas, principalmente aqueles que tiveram um contato maior com os no indgenas. A fala do representante dos professores indgenas de Pernambuco, conforme Souza (2003), nos d algumas pistas de como a educao introduzida pelos portugueses no meio indgena foi e continua sendo malfica aos olhos dos povos indgenas: Como seria interessante se pudssemos olhar ao passado e dizer: olha ns no queremos o teu portugus, queremos que voc pegue seu barquinho e volte. Aqui voc no vai fazer sua cama no. A educao que proporciona a organizao de autonomia, atravs da participao coletiva e decises individuais de cada pessoa, cria possibilidades de fazer opes, escolhas, dentro de seu contexto sociocultural e cede espaos muitas vezes contra a sua vontade, a uma educao voltada hegemonia das naes europias com a respectiva dominao dos povos americanos. Est dinmica pode motivar aes de um perodo marcado pela violncia e escravido dos povos autctones.

    2.2 MODELO CATEQUTICO

    Na noite que entrei em Ilhus fui a p dar em uma aldeia que estava a sete lguas da vila (...). E a destru, e matei todos os que quiseram resistir. Na vinda fui queimando e destruindo todas as aldeias que ficaram para trs. Ento se ajuntaram e vieram me seguindo ao longo da praia outros gentios. Lhes fiz algumas ciladas e os forcei a jogarem-se no mar (...) Mandei outros ndios reunirem os corpos e coloc-los ao longo da praia, em ordem, de forma que tomaram os corpos (alinhados) perto de uma lgua. (trecho da carta escrita ao rei de Portugal por Mem de S em 1560; HOORNAERT, 2000, p. 8)

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    O segundo momento da Educao Indgena no Brasil ficou conhecido como

    catequtico e colonizador. Catequtico em virtude da ao da Igreja Catlica com o apoio da Coroa portuguesa de converter os indgenas por meio de extoro e tambm pela educao promotora da f catlica. Essa converso agia como disfarce humanizador, com a real inteno de formar mo de obra escrava, desta forma, Colonizador devido ao processo

    opressor imposto aos povos americanos a cultura e a religio europia. Objetivando a expanso martima dos pases europeus, bem como o aumento de suas riquezas s custas de explorao dos tesouros tirados dos povos dominados, os colonizadores investiram maciamente em um modelo educacional voltado para a submisso dos indgenas.

    De incio as relaes entre portugueses e indgenas foram relativamente amistosas enquanto havia interesses de aproximao, levando a uma confiana que possibilitou chacinas como a descrita na abertura deste item. Havia atrao e interesse mtuos. Os portugueses precisavam controlar uma natureza que no conheciam; por sua vez, certas tribos tinham o

    interesse em obter instrumentos de metal e em se aliar ao colonizador contra outros grupos de indgenas, geralmente inimigos tradicionais, no naturais. Mas essas relaes logo tornaram-se tensas e difceis. Com a implantao da economia aucareira, muitos indgenas foram forados a trabalhar (escravos) nos canaviais.

    Desde o incio, os reis de Portugal estavam convencidos de que a catequese era o jeito mais eficaz e de menor custo para o domnio dos povos nativos do continente americano. Portanto a catequese era uma obra fundamental, para Deus e para o rei. A rigor, seus benefcios se fizeram sentir antes para o rei do que para Deus, uma vez que a duvida se os ndios tinham alma s foi dirimida quando o projeto colonizador j estava decolando. (HECK, 2000, p. 20)

    Padre Anchieta que chega ao Brasil em 1553, participou juntamente com o Padre. Manuel de Nbrega da fundao do colgio de So Paulo e desenvolveu atividades para facilitar a converso e tambm aprisionamento dos indgenas, oferecendo vantagens para os

    portugueses, durante anos que aqui estiveram, defenderam a converso at mesmo por meios violentos.Mesmo quando os mtodos eram mais sutis, a catequese, palavra grega, que significa, ecoar do alto, nesse sentido a educao da f da terra deve estar ligada ao cu, escutando a voz de Deus que vem do alto atravs dos padres que pregam a boa nova, negava

    toda a cultura indgena e inculcava a no indgena. A coroa portuguesa sabia que o sucesso de sua colnia dependia da mo-de-obra indgena, tentava, ento, por meio dos jesutas, adaptar o indgena ao trabalho forado, como escravo, pois os considerava como seres sem alma, bichos, feitos para serem domesticados e instrudos base da violncia e de opresso. De

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    acordo com Ferreira (2001), o mais longo perodo de educao para os indgenas no Brasil o do colonial, em que o objetivo das prticas educacionais era de negar a diversidade indgena e incorpor-las sociedade nacional. No incio os padres visitavam as aldeias e ensinavam as crianas a ler, a escrever, a contar e a ensinavam doutrina crist, depois percorriam com eles outras aldeias, convertendo outros indgenas. Os jesutas depois de algum tempo se convenceram de que andar pelos sertes significava estar exposto a muitos vcios sem um resultado satisfatrio. Uma vez, que o trabalho de converso e adaptao do indgena para a lavoura exigia sua presena para um treinamento cotidiano e continuado. Empenharam-se por isso em organizar aldeias, para atrair o indgena da regio. A esse respeito Fernandes (1975) afirma que esses agentes de colonizao, cujas funes de construo, estavam no plano de acomodao, controle e dominao dos povos indgenas submetidos ordem do invasor, concentraram poder e esforo para aniquilar as instituies autctones, como, por exemplo, o xamanismo e os sistemas de parentescos, instalando relaes de submisso e propagando de

    forma crescente desigualdades sociais. De acordo com Adissi (1998), a quantidade de indgenas catequizados era bem menor do que desejavam os colonos, vidos de enriquecer por meio de explorao da terra e da mo-de-obra escrava indgena.

    No Imprio foi consolidada a idia do indgena como incapaz mental e juridicamente e como seres primitivos e rfos (conforme o Decreto Imperial 246, de 24/07/1845), justificando uma poltica paternalista que os tratava como crianas.

    Segundo Albuquerque (2003), foi nessa poca, que se firmou a idia de que as naes indgenas estavam condenadas ao extermnio. Na Repblica a situao continua da mesma forma, a ponto da constituio de 1891 nada apresentar a respeito da questo indgena. Com a chegada dos imigrantes europeus, italianos e alemes principalmente no sul do Brasil, no perodo republicano, no final do sculo XIX, agravou-se a situao indgena, principalmente porque os meios de comunicao da poca (imprensa), propagavam a idia de que no podia existir relaes de convergncia entre indgenas e o progresso. Os indgenas

    eram vistos como o smbolo de um retrocesso cultural, ou melhor, dizendo: No havia cultura indgena, No havendo cultura, no havia possibilidade deles terem educao, segundo os padres estabelecidos pelos dominadores. Seria melhor, ento, extermin-los, no possibilitando que eles se organizam e buscassem a sua autonomia e liberdade.

  • 30

    2.3 MODELO INTEGRACIONISTA

    O terceiro perodo da educao indgena no Brasil que vai de aproximadamente 1910 at 1970, ficou conhecido como o modelo de integrao dos povos indgenas nao brasileira.Denncias de polticas injustas e at mesmo extermnio circularam no mundo todo e pressionaram o governo federal a criar o Servio de Proteo ao ndio (SPI).

    A criao do SPI, em 1910, serve de marco para a segunda fase da histria da educao para ndios no Brasil. Aps quatro sculos de extermnio sistemtico das populaes indgenas, o Estado resolveu formular uma poltica indigenista menos desumana, baseada nos ideais positivistas do comeo do sculo. No que tange educao escolar, alegou-se uma preocupao com a diversidade lingstica e cultural dos povos indgenas. (FERREIRA, 2001, p. 74)3

    Sob a responsabilidade do Marechal Rondon, esse movimento foi intensamente marcado pelo positivismo da poca, que se apresentou com a ideologia montada a partir das guerras e do modelo republicano brasileiro no incio do sculo XX. Candido Rondon frente SPI demonstrou sempre notvel determinao e atuao junto aos povos indgenas, o que atraiu muita gente dedicada causa indgena. O SPI tentou desenvolver uma poltica de respeito questo indgena, marcada pela responsabilidade por parte do governo federal, pelos destinos dos povos indgenas que habitavam o territrio nacional. A comisso Rondon baseava-se no principio de que os indgenas tinham o direito de se defender de toda invaso de suas terras. O lema de Rondon era: Morrer se for preciso, matar nunca, o que caracterizava a comisso como sendo pacifica, o que j era um grande avano. Mas nem tudo seria pacfico e bom para os movimentos indgenas.

    De acordo com Camargo (2003), o SPI no foi capaz de impedir a invaso dos latifundirios na terra dos indgenas, tambm de evitar os ataques por parte dos seringalistas no Amazonas e ainda teve que se aliar com os padres Salesianos no Amazonas e Mato Grosso, assim como ingleses e norte-americanos de diferentes instituies religiosas e at de pesquisas, o que acarretou conseqncias negativas, uma vez que a religio ao longo da

    histria brasileira, em determinados momentos procurou apagar as formas de representao cultural dos povos indgenas, e em seu lugar colocou cultura, europia. Os resultados do SPI

    3 Convm explicar, a possvel dvida que possa surgir a todo(a) aquele(a) que ao ler a citao da antroploga Mariana

    Kawall Leal Ferreira, na parte que ela comenta, que o SPI serve de marco para a Segunda fase da educao para os ndios no Brasil. O autor da dissertao, trabalha com a idia, de que a educao indgena tem incio no perodo anterior a chegada dos portugueses ao Brasil, ou seja ento, esse seria o terceiro momento histrico e no o Segundo como afirma a antroploga, mesmo porque ela usa o termo educao para os ndios e no educao indgena.

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    foram muito aqum do esperado e terminou melancolicamente, sob a acusao de corrupo,

    foi substitudo pela Fundao Nacional do ndio (FUNAI) em 1967. A extino do SPI e a criao da FUNAI em 1967 trouxeram modificaes mais significativas nesta segunda fase da histria da educao escolar para os ndios. O ensino bilnge foi eleito pela FUNAI, como forma de respeitar os valores tribais, adequando na sua concepo, a instituio a realidade indgena. Em 1973, o Estatuto do ndio.(lei 6001), tornou obrigatrio o ensino de lnguas nativas nas escolas indgenas. A FUNAI resolveu investir, tambm, na capacitao de ndios para assumirem integralmente, as funes educativas na sua comunidade, com o propsito de a educao escolar interferir o mnimo possvel nos valores culturais de cada povo. (FERREIRA, 2001, p. 75)

    A poltica da FUNAI estava fundamentada em Programas de Desenvolvimento Comunitrio (DCs). Programa institudo no ps-guerra pelos pases capitalistas para tentar deter o avano comunista no mundo, atravs do apoio de desenvolvimento para os pases de terceiro mundo. Os objetivos integracionistas da educao escolar oferecida pela FUNAI evidenciou quanto o uso da educao bilnge se firmou como ttica para assegurar interesses do Estado Nacional Brasileiro, favorecendo e facilitando o acesso dos indgenas ao sistema

    Nacional, da mesma forma que fizeram os missionrios catlicos e evanglicos, no partidrios da educao libertadora, como os verdadeiros criadores das tcnicas bilnges com o intuito de fazer adeptos.

    O problema enfrentado na poca do SPI, de pessoal capacitado para ensinar os indgenas no mtodo bilnge, foi resolvido pela FUNAI, com um acordo feito ao Summer

    Institute of Linguistics (SIL), desde 1959 no Brasil. Foi adotado integralmente o modelo de linguagem do SIL por vrios motivos, mas, acredita-se que o principal foi o de integrar eficientemente os indgenas sociedade nacional, uma vez que os valores da sociedade indgena seriam traduzidos na lngua nativa.

    Um dos princpios da entidade, adotado desde os seus primrdios, o de sempre procurar desenvolver suas atividades lingsticas segundo as expectativas, desejos e necessidades apresentados pelas autoridades de cada pas onde for convidada a trabalhar. (FERREIRA, 2001, p. 77)

    Devido polemica em torno da presena do SIL no Brasil, o jogo de dupla identidade missionrio oculto versus publicidade identidade de lingista foi associado a uma poltica conspiratria, na qual membros do SIL foram tomados como agentes da CIA ou gelogos em busca de minerais. Tem inicio o perodo de crises nas relaes da misso em toda a Amrica Latina. O SIL j no congregava em torno de si um consenso favorvel, como tinha sido desde a dcada de 1930. O SIL passou de aliado a inimigo, devido s seguintes

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    razes: o declnio da atuao das misses em reas indgenas, depois do surgimento do

    movimento da Teologia da Libertao; surgimento dos movimentos indgenas, com reivindicao de agentes da poltica indigenista em detrimento do papel gerencial que tinham os rgos indigenista. O jogo de dupla identidade foi profcuo para a histria do SIL na Amrica Latina, possibilitando de ter ingerncia na Educao Indgena pblica para dirigi-la

    s exigncias do modelo evanglico do tradutor bblico. O SIL ainda mantm atividades assistenciais de lingstica, educao, sade, e desenvolvimento comunitrio junto aos grupos indgenas. Em 1991 o estatuto do SIL foi alterado, com o propsito de dar instituio um carter mais cientifico. A Sociedade Internacional de Lingstica (SIL, da mesma maneira) como se passou a chamar, inclui entre outros objetivos, traduzir para lnguas indgenas material de valor moral e cvico, inclusive trechos bblicos, o material pedaggico produzido pelo SIL tem sido, at os dias de hoje, utilizado nas escolas da FUNAI. Sem autonomia para agir e colocada em mos de polticos que pouco sabem a respeito da temtica indgena, a

    FUNAI, ainda hoje, promove uma poltica indigenista que continua atrelada ao Estado, de forma paternalista e integracionista, provocando dentro da Educao Indgena, infelizmente, uma certa perda de rumo para a busca de sua autonomia. Essa situao fez com que novos olhares surgissem dentro das culturas indgenas, como uma forma de resistncia quilo que

    estava sendo imposto em matria de Educao.

    2.4 PROJETOS ALTERNATIVOS

    O quarto momento seria os dos projetos alternativos, da participao de Organizaes No Governamentais (ONGs) aos encontros e apoio de educao com os indgenas. Neste sentido Ferreira (2001, p. 111) destaca que:

    O que se pretende portanto, que as sociedades indgenas defendam seus direitos, interesses e objetivos baseados na sua realidade global, e no em funo da sociedade envolvente, que em geral, contrria a esses objetivos. A luta do ndio a luta pela vida e no para dividir essa vida ou mat-la.

    Do incio dos anos 70 at aos anos 80, multiplicaram-se as organizaes no

    governamentais e tambm as governamentais de apoio aos indgenas. Nesse perodo criada a

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    Unio das Naes Indgenas (UNI), primeira organizao indgena de mbito nacional. A partir dela surgiram outras organizaes regionais e tnicas. Os encontros de Educao Indgena passam cada vez mais a se realizar com mais freqncia e os resultados foram a produo de escritos desses encontros, com reivindicaes, declaraes, por escolas diferenciadas e de princpios educacionais e culturais indgenas.

    No final dos anos 70 ainda durante a ditadura militar, comearam a surgir no cenrio poltico nacional, organizaes no governamentais, voltadas para a defesa da causa indgena. Entre elas destacam-se a Comisso Pr-ndio de So Paulo (CPI/SP), o Centro Ecumnico de Documentao e Informao CEDI), a Associao Nacional de Apoio ao ndio (ANAI), o Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Os setores progressistas da Igreja Catlica, principalmente a partir das reunies de Medelln (1968), Puebla (1978), onde se realizaram o I e o II encontros Sul Americano de Bispos que serviram para que a Igreja Catlica adotasse uma linha de atuao voltada para a defesa dos direitos humanos e das minorias tnicas, passaram a rever sua posio em relao causa indgena. Foram criadas organizaes, a Operao Anchieta (OPAN), em 1969, e o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), em 1972, cujas atribuies eram o de prestar servios na rea da educao escolar indgena. (FERREIRA, 2001, p. 87)

    No Brasil, nesse perodo histrico, foi promovida uma poltica e uma prtica

    indgena paralela oficial, fruto das organizaes no governamentais em conjunto com os movimentos indgenas. Todos pretendiam propiciar discusses que resgatassem o trabalho de recuperao da identidade tnica dos povos indgenas, tambm o de defesa de seus territrios, assistncia sade e a educao. Universidades contriburam com assessores especializados

    Universidade Estadual So Paulo (USP),Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade estadual de Campinas (UNICAMP), Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Pessoas, grupos ligados Comisso Pr-ndio de So Paulo (CPI/SP), Comisso Pr-ndio do Acre (CPI/AC), Centro Ecumnico de Documentao e Informao (CEDI), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Associao Nacional de Apoio ao ndio (ANAI), Conselho Indigenista Missionrio (CIMI) e Operao Anchieta (OPAN), desenvolveram a partir dos anos 70, experincias com a educao indgena, experincias marcadas, sobretudo pelo compromisso tico e poltico com a causa indgena. Esta profuso de grupos de interesse

    pela causa indgena no garantem efetivo avano nas idias a que se propem e no garantem a manuteno da heterogeneidade que marca a vida indgena.

    Em 1979 foi realizado em SP o I Encontro Nacional de Educao Indgena, organizado pela Comisso Pr ndio (CPI). Buscava-se a reflexo acadmica sobre a situao da realidade indgena e as motivaes do encontro foi de natureza poltica. Os relatos dos participantes foram publicados, juntamente com artigos de especialistas, em A Questo da Educao Indgena, livro organizado por Lopes da Silva em 1980.

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    Promover o intercmbio de experincias com a assessoria de lingistas, pedagogos, antroplogos, visando ao conhecimento reflexo das experincias na direo de uma maior consistncia no trabalho educacional indgena o objetivo principal dos encontros promovido pela Operao Anchieta (OPAN) desde 1982, um movimento leigo Jesutico. A urgncia no encaminhamento de propostas de educao escolar para ndios ajudou a criar o Grupo de Trabalho. Mecanismos de Ao Coordenada, junto de representantes de diferentes organizaes e diversas instituies nacionais, apresentavam desde a criao, propostas de educao para os indgenas. Essas propostas foram importantes, ao ponto de serem includas nos trabalhos da Assemblia Nacional Constituinte, tudo a partir de documentos elaborados por professores indgenas.Os subsdios para a elaborao da Poltica Nacional de Educao Indgena e Legislao Ordinria Correspondente (1988), o da Educao Indgena (1989), entre outros, foram algumas propostas desse grupo atuante, que foram incorporadas ao capitulo da Educao para as Comunidades Indgenas, da nova LDBEN/1996.

    O CPI/AC promove desde 1983, curso de formao para professores indgenas com o objetivo de possibilitar a autonomia das escolas indgenas e a confeco de material didtico indgena. Desenvolver e apoiar experincias em atividades educacionais para os diferentes povos indgenas, dentro de uma perspectiva poltica, visando que as comunidades indgenas, atravs da atividade ritual aceitem as diferenas frente ao branco era a grande meta do Centro de Trabalho Indgena (CTI), criado em 1979.

    A partir de 1981 em vrias partes do Brasil, foram criados Ncleos de Educao/Estudos Indgenas os NEIs. Esses ncleos realizaram cursos, encontros, bem como pesquisas e propostas de educao para os povos indgenas. Podemos destacar os seguintes ncleos: Ncleo de Educao Indgena de Roraima; o Ncleo de Educao Indgena do Mato Grosso; o Ncleo de Educao Indgena de Belm; o MARI, grupo de Educao Indgena de So Paulo; O Seminrio Permanente de Educao e Estudos Indgena da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    2.4.1 CIMI

    O CIMI Conselho Indigenista Missionrio, rgo da Igreja Catlica no Brasil, fundado em 1972, ser citado nesta parte da dissertao para seguir uma certa lgica

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    histrica que est sendo adotada para compor esse breve histrico da Educao Indgena no

    pas e pelo fato de seus documentos serem alvo da pesquisa documental a que se refere esta pesquisa. Nas palavras de Amarante (2001), foi com a criao do CIMI, que outro caminho se desenhou, com a presena dos missionrios nas aldeias, participando da vida indgena, ouvindo as expectativas que os povos indgenas expressavam a respeito das escolas. Projetos educativos foram implantados, a partir do conhecimento das culturas, sem esquecer a gravidade da situao colocada pelos conflitos no campo em especial na Amaznia, com a instalao de latifndios financiados pela SUDAM Em alguns casos a escola era a nica arma, na luta, pela terra. Tambm era preciso viajar a Braslia, falar com polticos, FUNAI, presidente, ministros. Era preciso ler, argumentar, pegar o nibus, assim para o CIMI o modelo educacional indgena foi pensado junto com a garantia de um cho, um cho pedaggico do cotidiano e das lutas, para que o processo de socializao de conhecimentos continuasse existindo. Assim:

    Desafios da causa indgena so muitos e sempre polticos, econmicos e culturalmente inter-relacionados. Procurando responder a estes desafios, o trabalho missionrio adquire nitidamente uma dimenso poltica. Por causa desta dimenso poltica assumida em defesa dos povos indgenas, o CIMI, hoje um rgo anexo a Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ganhou notoriedade e credibilidade, dentro e fora do pas, junto a ndios e indigenista. A trajetria do CIMI, logo no incio composto de um grupo de assessores e hoje um organismo de militncia e coordenao pastoral, desmente o fatalismo histrico; mostra que possvel responder aos desafios histricos acumulados por muitos sculos. possvel corrigir os rumos da histria, desde que as bases consigam impedir a burocratizao das instituies que as representam e lhes prestam servios. (SUESS, 1989, p. 8-9)

    Em abril de 1972, a CNBB convocou missionrios e Bispos para o terceiro encontro de Estudo sobre Pastoral Indgena, na sede do Instituto Antrophos em Braslia. Nesse encontro, concretizou-se a proposta de uma coordenao e uma assessoria nacional da atividade missionria junto aos indgenas, na forma de um Conselho Indigenista Missionrio, este conselho estava oficialmente ligado a CNBB. A posio poltica do CIMI foi clareando,

    na medida em que tomou conscincia das verdadeiras intenes da poltica indgena do governo: integrar o indgena sociedade nacional e em conseqncia disso destruir a sua especificidade, com ou sem misses, a integrao dispensava a demarcao das terras dos indgenas e a sua proteo especifica. A partir de vrias assemblias e encontros indgenas,

    promovidos pelo CIMI, indgenas de diferentes povos e naes, cujos caminhos nunca houveram se cruzado, comearam a reconhecer-se como vitimas do sistema de dominao e criaram uma conscincia comum sobre as causas do seu sofrimento e fizeram ouvir sua voz

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    diante da sociedade nacional. De acordo com Suess (1989, p.10) o CIMI procurou por todos os meios devolver aos povos indgenas o direito de serem sujeitos, autores e destinatrios de seu crescimento. Reconhecer que, como pessoa e como povo, so e devem ser aceitos como adultos, com voz e responsabilidade, sem tutela e paternalismo, capazes de construir sua prpria histria, atravs de sua cultura e educao especfica.

    2.5 EDUCAO DOS POVOS INDGENAS EM SEU MOMENTO ATUAL

    Entramos no quinto momento da histria da educao indgena no pas. o perodo em que os prprios indgenas resolvem resgatar atravs do processo educacional escolar, o que haviam roubado deles, A maneira do indgena de educar, a partir da liberdade e

    autonomia de poderem construir o que sempre foi deles. No um retorno para o Brasil antes da chegada dos portugueses, mas, vivendo em outro momento histrico, os indgenas, com suas prprias mos e mentes teriam que elaborar um novo projeto de educao indgena.

    A denncia do Cacique Seathl (1977, p. 15) de que o indgena no compreende como o homem branco pensa, alm de ser pertinente em seu momento histrico, pode ser refletido, visto em nossos dias e relaciona-se com o engajamento de muitos indgenas na luta pela autonomia e liberdade desses povos, atravs da Educao Escolar Indgena, o conhecimento para fazer frente cultura que explora e domina seus irmos

    Sabemos que o homem branco no compreende o nosso modo de viver.Para ele um torro de terra igual a outro. Porque ele um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo necessita. A terra no sua irm, mas sim sua inimiga, e depois de exauri-la, ele vai embora. Deixa para trs o tmulo dos seus pais, sem remorsos de conscincia. Rouba a terra dos seus filhos. Nada respeita, esquece as sepulturas de seus antepassados e o direito de seus filhos. Sua ganncia empobrecer a terra e vai deixar atrs de si, desertos. A vista de suas cidades um tormento para os olhos ndios. Mas talvez isso seja assim por ser o ndio um selvagem que nada compreende (...) No se pode encontrar paz nas cidades dos homens brancos. Nem um lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem da primavera ou o tinir das asas de insetos. Talvez por ser um selvagem um selvagem que nada entende, o barulho das cidades uma afronta contra os ouvidos. E que espcie aquela em que o homem no pode ouvir a voz do corvo noturno ou a conversa dos sapos no brejo, noite? Um ndio prefere o suave sussurro do vento sobre o espelho da gua e o prprio cheiro da vento, purificado pela chuva do meio dia e com aroma de pinho. O ar precioso para o ndio porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar (...) O homem branco vai desaparecer, talvez mais depressa do que as outras raas.

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    Continuars poluindo a tua prpria cama e hs de morrer a noite, sufocado pelos teus prprios desejos (...) Talvez compreenderamos se conhecssemos com o que sonha o homem branco, se soubssemos quais as suas esperanas que transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais as vises de futuro que oferece s suas mentes para que possam formar os desejos para o dia de amanh. Mas ns somos selvagens (...).

    Na busca por respostas, os indgenas descobriram, por meio do permanente contato de alguns povos com a cultura no indgena, trazendo consigo srios problemas de ordem cultural e social para esses povos, muitas vezes obrigando-os a receber a cultura no indgena

    e seu modo de vida como o meio em que preservar sua cultura e existncia, infelizmente essa idia enganosa e destruidora, demonstra que a aceitao do modelo imposto pelos no indgenas referente Educao, traz srios problemas, principalmente, porque o modelo de sociedade apresentado nessa forma educacional, retrata de maneira ideolgica, to somente as

    comodidades oferecidas pelo sistema neoliberal. Surge ento movimentos de contestao e reivindicao de um modelo educacional, baseado exclusivamente nas culturas e tradies indgenas, onde o ser indgena aquele que dar o rumo dessa educao. Esta posio tambm pode cair em fracasso pelo fato de no se poder desprezar a influncia no indgena

    junto aos povos indgenas. Conjuntamente com o aparecimento das ONGs pr-indgenas no Brasil, o

    movimento indigenista, construdo, pelos indgenas comeou a se organizar. A partir dos anos 70 realizaram-se, em diferentes regies do pas, encontros e reunies, que foram pontos de apoio para a criao das organizaes indgenas da atualidade.

    No incio dos anos 80, pode-se notar uma intensa articulao indgena, nas mais diversas regies do pas, com a realizao de encontros, reunies e assemblias, que permitiram e facilitaram a comunicao, o dilogo permanente entre, diversos povos indgenas, cujo objetivo principal era a reestruturao da poltica indigenista do Estado, principalmente, de acordo com Camargo (2002, p. 345), uma educao diferenciada e que respeitasse a cultura dos povos indgenas:

    Hoje, depois da Constituio de 1988, a LDB/96 e o RCNEI (1998), propem uma educao escolar diferenciada respeitando o universo sociocultural das etnias. O desafio hoje no so as leis, mas a construo da escola indgena pelos ndios, autnoma, levando em conta os projetos e os destinos dos seus povos: onde quer que exista escola, ela deve ser parte de um projeto que a transcende. um longo caminho que, a julgar pelo movimento indgena organizado, os ndios esto dispostos a percorrer.

    Esse momento histrico da educao indgena teve seu comeo com os movimentos

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    e organizaes no governamentais, que, juntamente com os indgenas, pressionaram politicamente e juridicamente as autoridades e atravs de vrios movimentos reivindicatrios, neste sentido, conseguiram sensibilizar a opinio pblica, em seu favor. Os documentos ditos oficiais, tais como a Constituio de 1988, LDBEN/96 e o Referencial Curricular Nacional Educao Indgena (RCNEI 98), comearam a tecer uma roupagem ou cara nova em favor da causa indgena, ainda que, para muitos, timidamente perceberam certos avanos na temtica em questo. Principalmente na concepo de Educao Escolar, no para os povos indgenas, e nem com os povos indgenas, mas, dos povos indgenas.O que seria, ento, essa concepo de educao dos povos indgenas? De acordo com as Diretrizes Nacional de Educao Escolar

    Indgena, essa educao alm de ser produzida pelos prprios indgenas ela apresenta ainda quatro grandes caractersticas:

    O documento Diretrizes para a Poltica Nacional de Educao Escolar Indgena do MEC (1993) em consonncia com o esprito da nova Constituio, reza que a Educao Escolar Indgena deve ser intercultural, bilnge, especfica e diferenciada. (MONTESERRAT, 1994, p. 10-11).

    As caractersticas bsicas, recomendadas pelo documento oficial do Ministrio da Educao, foi fruto de presses oriundas de encontros, assemblias, seminrios dos movimentos indgenas em diversas partes do pas em vrios momentos. O Estado aceitou em parte o que os indgenas reivindicavam a respeito de uma educao: Intercultural, Bilnge,

    Especifica, Diferenciada. Conforme o pesquisador do grupo MARI/USP:

    Desde os tempos coloniais o Estado e seus aliados vm desenvolvendo estratgias de transformao dos grupos indgenas atravs de processos educativos. Dos missionrios jesutas aos positivistas do SPI, do ensino catequtico ao ensino bilnge, a tnica foi uma s: integrar os ndios, fazer com que eles se transformassem em algo diferente do que eram. Em contraposio a esta prtica retrica, surgiram em anos recentes, projetos alternativos, desenvolvidos pelo indigenismo paralelo, no oficial, que concentrou suas aes na meta da autodeterminao desses povos. a escola, neste processo, deixou de ser instrumento de imposio e assimilao, para se tornar instrumento de afirmao de identidades diferenciadas. Para tanto, postula-se que ela deve ser especfica e diferenciada, intercultural e bilnge. (GRUPIONI, 1997, p. 184)

    Na atualidade, essa proposta em construo da educao dos povos indgenas, se apresenta em nvel nacional de maneira crescente e com profundos debates.

    De acordo com Ferreira (2001) no incio dos anos 80, ocorreu uma intensa articulao indgena, nas mais diversas regies do pas, sendo realizados encontros, congressos, assemblias que permitiram o estabelecimento de uma comunicao permanente entre inmeras naes indgenas, evidenciando que a questo da educao escolar esteve

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    sempre no horizonte das reivindicaes do movimento indgena organizado. Um dos marcos

    mais importantes desse perodo foi a criao da Unio das Naes Indgenas (UNI) no Dia do ndio (19 de abril) de 1980, em conseqncia da opresso que os povos indgenas vm sofrendo.

    Mas, sobretudo, com as organizaes dos Professores Indgenas que se percebeu

    que o processo de Autonomia Escolar dos Povos Indgenas seria apenas um fator de tempo. Conforme analisou Silva (1995a, p. 9-10):

    Embora to antiga quanto a colonizao do Brasil, a escola indgena e, de modo mais amplo, a educao escolar presente em reas indgenas passaram a ser objeto de reflexo e crtica e, em alguns casos, de uma revoluo pedaggica, h cerca de parcos vinte anos (...) Nas aldeias e nas reas indgenas, tambm a dcada de 70 que v as tentativas pioneiras de construo de uma educao escolar sintonizada com os interesses, os direitos e as especificidades de povos e culturas indgenas. (...) Esta tendncia, ainda ausente ou incipiente em muitas localidades, , no entanto, a grande novidade e o fruto principal de um processo recentemente iniciado, mas rapidamente amadurecido, do qual, os encontros e as associaes de professores indgenas so hoje o plo mais avanado.

    As Organizaes dos Professores Indgenas so desdobramentos da Organizao do Movimento Indgena no Brasil, que se articulam em torno da elaborao de filosofias e

    diretrizes bsicas para a questo da educao escolar dos povos indgenas em contraposio escolarizao para indgenas. Vrias entidades de professores indgenas, como a Organizao Geral dos professores Ticuna Bilnges (OGPTB), a Comisso dos Professores Indgenas do Amazonas e Roraima (COPIAR) e a Organizao dos Professores Indgenas de Roraima (OPIR), e os encontros de professores indgenas regionais, todos realizados principalmente a partir de meados dos anos 80, mostra o empenho dos povos indgenas, no sentido de investir em experincias de autogesto em educao escolar. Os encontros de professores Indgenas indicam que professores e comunidades, apoiados por diferentes organizaes no

    governamentais, procuram criar alternativas de ao para o processo escolar. Diferentes temas so ento discutidos durante esses eventos. Em geral, inicia-se pela critica inadequao das escolas implantadas em reas indgenas, justificando a reunio dos professores para encontrar solues para as necessidades e expectativas das comunidades.

    Desse debate emergem novas concepes de educao, baseadas nos processos tradicionais de socializao das sociedades indgenas e na reinterpretao e criao de novas alternativas de ao. O movimento de Professores Indgenas reivindica o direito autodeterminao em relao educao escolar. Isso significa que as populaes indgenas exigem que as prticas

    educativas formais desenvolvidas em reas indgenas sejam definidas por elas e que as

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    concepes de educao, processos de socializao e estratgias de ao sejam bases de processos educativos, que possibilitem a autonomia e liberdade do ser indgena.

    Essa base educativa , pleiteada pelas organizaes dos Professores Indgenas e tambm pelas vrias comunidades indgenas, a construo de vrias mos, e seu caminho, segundo os prprios indgenas, como vimos anteriormente, processo de libertao e

    autonomia, sendo assim, nosso prximo captulo estar abordando, um possvel caminho de apoio, de colaborao, no que diz respeito ao conceito de autonomia encontrado nas obras de Paulo Freire e sua relao com a Educao Indgena.

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    3 AUTONOMIA VEICULADA POR PAULO FREIRE E A EDUCAO INDGENA DIVULGADA PELO CIMI

    A opresso no rotina da histria humana. o desafio trgico de vidas machucadas, oprimidas, marginalizadas, manipuladas, que gritam e imploram, para ajudares a quebrar as correntes que as trazem agrilhoadas. A opresso a negao, o estrangulamento da vocao histrica dos teus irmos. Escuta este clamor imenso dos deserdados da Terra impedidos de ser, por causa do jugo do ter.

    (JORGE, 1981, p. 5)

    O que podemos entender por mirantes? No seriam locais para observar e tambm para uma pausa ou repouso? Locais para reflexo? Podemos pensar dessa maneira. Relacionado a esses pensamentos, podemos ver os autores que comentam, escrevem a respeito das obras de Paulo Freire, como Mirantes. Eles so importantes para podermos ver, conhecer um pouco mais e com outros olhares, o legado em educao e vida Freireano. Freire diz que o conhecimento precisa de comunicao e expresso, no somos ilhas, por isso, o dilogo no apenas uma estratgia pedaggica; um critrio da verdade comum. A verdade do meu ponto de vista, precisa do(a) outro(a) para chegar verdade comum, caso contrrio uma verdade ingnua, sem objetivos, no transforma nada, nesse sentido para entender e compreender as obras de Paulo Freire, o exerccio de olhar com as lentes de outros se apresenta como sendo importante. Conforme Gadotti (2002, p.17)

    A obra de Freire tem sido reconhecida mundialmente, no apenas como respostas a problemas brasileiros do passado ou do presente, mas como uma contribuio original e destacada da Amrica Latina ao pensamento pedaggico universal. No se pode dizer que seu pensamento responda apenas questo da educao de adultos ou problemtica do chamado terceiro mundo.

    Freire poder exemplo de educador universal, seu pensamento se apresenta qual testemunho renovado de sua profunda compreenso do significado da educao no contexto da existncia social e individual do ser humano. Freire produz suas obras pensando e

    repensando sua prpria prtica, sua vivncia. Isto porque, segundo Gadotti (2002, p. 8) A leitura da palavra sempre procedida da leitura do mundo. Compreender a ler o contexto do mundo, em uma relao dinmica, que vincula linguagem e realidade. Ademais, a, aprendizagem da leitura e alfabetizao so atos de educao e educao um ato fundamentalmente poltico. A educao deve ser vivenciada como uma prtica concreta de libertao e de construo da histria.

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    Devemos ser todos sujeitos, solidrios nesta tarefa conjunta, que leva a solidariedade entre os sujeitos e busca caminhos para alcanarmos uma sociedade na qual a relao explorados e exploradores sejam posta em discusso para sua superao.

    Essa relao de dilogo para a superao da realidade opressora encontra apoio na concepo do CIMI sobre a Educao Escolar Indgena, que observa e aprofunda a reflexo e

    ao da realidade cultural dos diversos povos indgenas, e de aprender com eles, a tessitura que tecem a sua educao especfica, e a tentativa de aproximar-se e colaborar nesta prtica educacional, neste sentido, o Caderno CIMI 2 (1993, p. 4): A Concepo e Prtica da Educao Escolar Indgena apresenta que:

    No contexto poltico e missionrio da criao do CIMI, o campo da educao desempenhou um papel importante para a reflexo crtica sobre a atuao indigenista. As experincias em educao nas misses tradicionalistas contriburam para essa analise do papel da Igreja em relao aos povos indgenas. A defesa da terra, auto-determinao, respeito s culturas e encarnao passam a ser objetivos do trabalho missionrio realmente comprometido com os oprimidos, no caso, os ndios.

    Paulo Freire muitas vezes usava a expresso que a educao deveria ser Reinventada,

    ou seja, transformar a educao de interesses ligado ao mercado, a explorao e dominao do ser humano, para uma educao que permite ao sujeito que conhece, e o sujeito que faz conhecer, em uma relao dialtica de conhecer e possibilitar o conhecimento, sejam protagonistas de sua histria, uma educao vivida para a libertao, para a superao da

    opresso que esto vivendo. Esse o grande legado da educao proposta por Paulo Freire, essa tambm a grande meta poltica proposta pela educao organizada pelo CIMI, o de apoiar e se comprometer com o (a) oprimido (a).

    3.1 FUNDAMENTOS NORTEADORES DE AUTONOMIA EM FREIRE NO CONTEXTO

    INDIGENISTA

    De acordo com Gadotti (2002, p. 16-18), deve-se crer que a validade universal da teoria e da prxis de Paulo Freire est ligada, sobretudo a quatro intuies originais:

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    Por primeiro a nfase nas condies gnosiolgicas da prtica educativa.Toda obra de Freire est permeada pela idia de que educar conhecer, ler o mundo, para poder transform-lo. S