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Autoridade Poder Argumentacao (2)

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Problematização sobre os fundamentos da autoridade professoral na perspectiva da Teoria da Argumentação de Chaim Perelam

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PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e

suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,

Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.

Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: Sobre pares opostos e suas possíveis

conciliações no âmbito escolar.

Andrea Penteado

Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

Neste trabalho investigo as noções de autoridade e poder, propostas por Perelman em

seu artigo Autoridade, ideologia e violência (2005), no qual o autor defende que, por um lado,

um governo democrático e legítimo refere-se àquele cujo poder (de agir) é autorizado pelos

governados com base em noções jurídicas (que visam ao justo) que o validam; por outro,

excepcionalmente devemos reconhecer um tipo de autorização que se funda, não em uma

noção jurídica, mas em uma noção moral, baseada na tradição judaicocristã de nossa cultura.

A autoridade moral apresenta-se como necessária, segundo o autor, para o estabelecimento de

uma autoridade que governe sobre as crianças: a autoridade paterna e a autoridade

professoral.

Deste modo, por carecerem de condições de igualdade que as permita julgar, impõe-se

às crianças uma autoridade cujo modelo é fundado na sucessão da autoridade que parte de

Deus e chega ao professor: Deus é autoridade perante os homens, servindo de modelo de

autoridade do pai perante sobre os filhos e a autoridade do pai, servindo de modelo para a

relação professor/alunos.

Baseada na própria teoria da Argumentação e nos estudos de Sacritán sobre a invenção

da noção de aluno (2005), irei defender que a autoridade professoral também deveria ser uma

autoridade validada juridicamente, e não com base em uma moral metafísica, o que resultaria

quiçá em diferentes relações de respeito entre os sujeitos da escola.

Palavras-chave: Argumentação, Currículo, Ética, Autoridade, Poder.

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De um lado:

"Nas salas de aula repletas, encontramos seres

reais com um status em processo de mudança,

que estão enraizados em contextos concretos,

que têm suas próprias aspirações e que, em

muitos casos, não se acomodam à ideia que os

adultos haviam feito deles."

(Sacristán, 2005, p 17)

De outro lado:

"Para que a vida social e política não se

resuma a uma pura relação de forças, cumpre

reconhecer a existência de um Poder legítimo,

cuja autoridade se fundamenta numa ideologia

reconhecida. A crítica desta ideologia só pode

ser feita em nome de outra ideologia, e é esse

conflito de ideologias, sejam elas quais forem,

que está na base da vida espiritual dos tempos

modernos. Impedir a competição entre

ideologias significa restabelecer o dogmatismo

e a ortodoxia, significa subordinar a vida do

pensamento ao Poder político. Denegar todo

valor às ideologias significa resumir a vida

política a uma luta armada pelo poder, da

qual sairá vencedor incontestavelmente o

chefe militar mais influente."

(Perelman, 2005, p 338)

Tenho tido o privilégio de trabalhar, talvez, com uma das áreas do conhecimento

escolar mais fluidas entre as diversas áreas de saber que o ensino básico engloba: as artes.

Destaco isso, pois apesar do desconforto que noto entre alguns colegas professores de artes,

ao sentirem-se diminuídos por escaparem dos rígidos controles da escola, entendendo aí a

denúncia da desvalorização de uma disciplina que passa à margem das preocupações da

direção, dos pais e dos alunos, particularmente vejo essa realidade como uma grande

vantagem que me permitiu, por anos, investigar práticas, conteúdos e rotinas escolares em

clima de quase total liberdade.

Esta concessão, de certo modo violenta – já que implica a suposição de um descaso-,

permitiu-me, logo ao início de minha carreira, problematizar três eixos do pensamento

didático que vieram a se configurar em questões centrais de minhas reflexões nos últimos

anos: o professor, o aluno e o objeto de conhecimento que os mantém interligados. Nessa

problematização, tenho pensado de modo mais incisivo o lugar do aluno nas relações de poder

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que se estabelecem na escola e investigado possibilidades de angariar para esse sujeito escolar

maior liberdade de ação e de possibilidades deliberativas dentro desta instituição.

A escola da década de 1980 tinha poucas formulações, ou formulações pouco rígidas,

sobre a recém inaugurada disciplina curricular de artes, ainda que, por tradição, fosse

portadora de várias premissas que poderiam sugerir um acordo inicial para esta área de

conhecimento, referenciada, no âmbito escolar, naquilo que, pela lei anterior, 5692/71, foi

denominado por componente curricular e caracterizado como atividade. Sabe-se que a

tradicional prática da educação artística nas escolas brasileiras aproximava-a muito mais das

necessidades pedagógicas de uma nascente escola para as massas, ligada ora ao artesanato,

ora aos trabalhos manuais, ora às prendas domésticas (GUIMARÃES, 2010, P 320-328), do

que de sua área acadêmica de referência, ainda que consideremos a incipiente representação

do ensino artístico para as elites brasileiras da primeira metade do século XX que mantinha

relação estreita com a suposição de que o conhecimento das Belas Artes era marca distintiva

de uma classe social que também legitimava tal conhecimento como aquele que é Verdadeiro,

relativo à área (PENTEADO, 2009).

Beneficiada pela liberdade que me foi concedida pela flacidez das diretrizes escolares

daquele período, embuí-me de um poder que me permitiu pensar os currículos da disciplina

que eu lecionava, por diversas escolas nas quais passei, por, pelo menos, os dez primeiros

anos de minha docência e articular, ativamente, a composição destes currículos com meus

alunos. Estes alunos tornaram-se os pares efetivos com os quais pensei, debati, julguei,

outorguei, revoguei possibilidades do ensinamento artístico dentro das escolas. E é a partir

desse benefício, entendido como relação entre os termos liberdade e poder, que gostaria de

começar a formular de modo mais consistente suas possibilidades no âmbito escolar.

Vou apoiar-me em dois autores. Fundamentalmente em Chaïm Perelman (2005) que

propõe uma Nova Retórica, partindo de Aristóteles, pela qual, através da argumentação

regulamentada entre sujeitos que visam à adesão a novas teses, a sociedade contemporânea

possa nortear suas práticas democraticamente. Trarei como base de seu pensamento para a

discussão que aqui conduzo um texto publicado, originariamente, nos Anais do Instituto de

Filosofia da Universidade de Bruxelas, de 1969, e editado no Brasil em uma coletânea do

autor intitulada Ética e Direito (2005, p 328-338). Em segundo, na tentativa de incluir os

alunos nas perspectivas que tenho pensado a partir deste par, utilizarei um estudo sobre a

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invenção da categoria aluno, de Gimeno Sacristán (2005), no qual o autor esmiúça a

construção deste sujeito social e sua indissociabilidade em relação às categorias adulto,

professor e escolarização.

O par autoridade/poder na Teoria da Argumentação

Em seu texto, Perelman nos apresenta inicialmente a formulação de um ideário sobre a

liberdade, que se constituiu e legitimou em nosso pensamento ocidental, que a entende como

oposição à autoridade. A autoridade, por sua vez, é associada ao uso do poder, nem sempre

consentido pelos governados, chegando, mesmo, a apresentar-se como sinônimo deste poder.

Para fundamentar o processo de legitimação deste pensamento recorre a Stuart Mill (apud

PERELMAN, 2005, p 328-329):

A luta entre liberdade e autoridade é o traço saliente das épocas históricas que se nos

tornaram familiares acima de tudo nas histórias grega, romana e inglesa... Por liberdade,

entendia-se a proteção contra a tirania dos governantes políticos... Antigamente, de um modo

geral, o governo era exercido por um homem, ou uma tribo, ou uma casta, que tirava sua

autoridade do direito de conquista ou de sucessão, que seja como for, não a obtinha do

consentimento dos governados e cuja supremacia os homens não ousavam, ou talvez não

desejassem contestar, por mais precauções que pudessem tomar contra o seu exercício efetivo.

Na continuidade de suas reflexões, Perelman, agora recorrendo a Littré, vai retomar o

sentido da palavra autoridade (auctoritas, do latim), entendendo que, embora haja alguma

proximidade entre autoridade e poder, que se estabelece nas práticas sociais, há restrições de

sentidos entre ambas que não permitem que se irmanem os dois conceitos; assim, "autoridade

é o que autoriza e poder é o que pode" (LITTRÉ, apud PERELMAN, 2005, p 329). Deste

modo, poderíamos compreender, ao menos, duas qualidades de poder, aquele que é

autorizado, ou seja, os sujeitos governados, por algum meio que seja, consentiram ao sujeito

da autoridade poder de exercê-la, e o poder ilegítimo, ou seja, aquele que comumente

nomeamos de autoritário: o sujeito pode, apesar de não lhe termos conferido autoridade para

tal. O autoritarismo seria, portanto, fruto de um poder que é exercido por algum mecanismo

de violência e coerção (punição, força física, etc) e não pela autorização de seu exercício. Há

neste entendimento uma forma positiva de poder, aquela na qual o sujeito governado autoriza

o governante e, portanto, se prontifica à sua autoridade; e outra negativa, na qual, por carência

de autorização prévia, o governante impõe sua vontade.

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Perelman resgatará De Jouvenel (2005, p 330-331) para denunciar a inconsistência da

expressão governo autoritário, já que a autoridade é a capacidade de angariar autorização e

aquilo a que chamamos autoritarismo é, justamente, caracterizado pela falta desta autorização

que leva o sujeito do poder ao uso da força coerciva. Portanto, conclui-se que há governos

sem autoridade, que recorrem à violência, e governos autorizados. Assim, podemos dissociar

mais completamente as noções de poder e de autoridade. Nessa dissociação, inversamente,

Perelman sugere que a autoridade ganha significado quando se vincula à capacidade de poder,

já que é ligada, politicamente, a alguma forma de governo, pois esta "se apresenta sempre

com um aspecto normativo, é o que deve ser seguido ou obedecido"; portanto o poder lhe

serve para a realização de uma ação. Já a autorização conferida ao poder normativo pode

advir de uma noção jurídica – "tal como a autoridade da coisa julgada, a autoridade da razão

ou da experiência" (Ibidem, p 330).

Por outro aspecto, por nossa herança cultural judaico-cristã, não apenas a noção

jurídica, mas a noção moral poderá legitimar a autoridade. É assim que esta pode ter por

modelo a relação pai/filho que funda uma atitude moral de respeito e estabelece uma regra de

conduta. Essa regra, segundo Perelman, se estenderá à relação professor/aluno, donde derivará

a autoridade conferida ao professor. A autoridade do pai/professor inicia os filhos "nas

tradições, nos costumes, nas regras do meio familiar e social em que vão ser integrados", bem

como "diz às crianças qual é a forma correta de ler e de escrever, o que devem considerar

verdadeiro ou falso. O professor disse, magister dixit, é o exemplo por excelência do

argumento impositivo" (Ibidem, p 331). Entretanto, em seu entender, ainda que imposta – e,

como tal, não autorizada – tal autoridade é moralmente legítima, pois:

Em nenhum caso, nem na relação entre o pai e os filhos sujeitos à autoridade,

nem naquela do professor com as crianças da escola primária, se pode pensar em igualdade.

Com efeito, cada educação, mesmo cada introdução, em qualquer área que seja, começa com

um período de iniciação, no qual é absurdo admitir a igualdade entre o iniciador e o iniciado"

(Ibidem, idem).

Para defender sua premissa, Perelman critica Descartes ao considerar que sua

proposição sobre a existência de idéias inatas contidas como um a priori nas mentes dos seres

racionais não só desdenha toda a contribuição da educação para as sociedades, como

influencia Rousseau a construir, em Émile, uma "teoria aberrante segundo a qual não convém

ensinar ciências à criança: esta deve descobri-las por seus próprios meios" (Ibidem, 332). E

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conclui que, no momento em que escreve esse artigo, "sabe-se que os métodos chamados

ativos, necessitam do concurso de um professor muito mais competente e inventivo do que os

métodos tradicionais" (Ibidem, idem); entretanto, não nos dá maiores indicações sobre quais

estudos levam-no a este saber.

Não cabe aqui encabeçar uma discussão a respeito da proposta de Rousseau sobre os

métodos educativos, portanto não estenderei este diálogo e retornarei às conclusões

apresentadas por Perelman, no que diz respeito à qualificação da autoridade professoral, após

essa argumentação. O autor então diz:

O papel indispensável da autoridade do pai e do educador em relação às crianças de

pouca idade não pode, pois, ser racionalmente contestado. O problema real é saber em que

momento e de que maneira a relação de autoridade deve ser progressivamente substituída por

uma relação de colaboração crítica (Ibidem, idem. Grifo nosso).

Após essas colocações, nas quais concede à autoridade moral seu lugar de

legitimidade social, a educação de crianças e jovens, Perelman irá explorar a ineficácia do

modelo quando ampliado para outras situações nas quais buscamos legitimar a autoridade.

Para tanto, recorre à tradição filosófica socrática que se opõe ao argumento impositivo,

propondo o diálogo como forma que conduz a uma verdade cuja autoridade assenta-se na

razão, passa por Francis Bacon, que propõe o empirismo como método que define as verdades

comprováveis, autorizando-as e chega a Descartes, que reconhece a autoridade de um

enunciado a partir de sua formulação racional. Em seu entender nenhum dos métodos

apresentados auxilia a legitimar uma autoridade, pois toda formulação evidente não necessita

de autorização já que "se, lançando mão, quer da experiência, quer do cálculo, cada qual, se

não se enganar, chegará ao mesmo resultado, o recurso à autoridade é não só inútil, mas até

assaz esquisito" (Ibidem, p 333). Porém, vai lembrar que esses casos restringem-se àqueles

conhecimentos observáveis ou comprováveis racionalmente e que não atendem a todas as

questões humanas possíveis de serem levantadas.

Historicamente, tais questões foram sendo respondidas em nossa cultura através do

recurso à autoridade. O autor então retoma a dissociação das noções de autoridade jurídica –

que tem como critério de validação a busca pelo justo – e de autoridade moral – que se

justifica pelo modelo da autoridade de Deus, fundada na tradição judaico-cristã. Entende que

a autoridade moral é impeditiva do avanço do conhecimento humano pela justiça,

argumentando que "essa resposta, que Deus conhece desde toda eternidade, é aquela que todo

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ser dotado de razão deveria empenhar-se em conhecer" (Ibidem, idem). Mas, então, resta-lhe

pensar: quais são os "métodos que permitem provar toda hipótese que se poderia formular a

seu propósito?" (Ibidem, idem).

Perelman recorre, portanto, à noção de autoridade jurídica para pensar os métodos

pelos quais seria possível legitimá-la. Irá resgatar a razão prática aristotélica que compreende

a perspectiva de que, nos assuntos que se referem à escolha humana, a sabedoria potencializa

uma racionalidade que visa à solução prática que corrija o desejo (irracional) e busque a

verdade da deliberação sobre o tema em pauta. Considerando a impossibilidade de definir a

deliberação verdadeira, uma vez que ela poderá atender aos interesses daquele que delibera

(tornando-se egotista), mas reconhecendo a contribuição da razão prática ao permitir o

reconhecimento e descarte das soluções desarrazoadas, conclui que sua limitação reside na

imprescindibilidade de outorgar a alguém, ou a um grupo, o poder de tomar uma decisão

sobre as razões apresentadas. De um lado, retornamos à questão inicial: se for necessário

outorgar tal autoridade a esse grupo de poder, como conferir-lhe tal autoridade? De outro

lado, poder-se-ia buscar a validação da razão mais razoável dentre aquelas sobre as quais se

deve deliberar e, portanto, a questão que se apresenta é sobre quais métodos poderiam

conferir legitimidade às razões que nos levam a agir.

Perelman retornará à primeira questão apresentada em seu texto, a da relação

liberdade/poder. O que nos moveria à necessidade de escolher algo em relação às

normatizações da vida social seria o reconhecimento de que aquilo que está colocado em tais

regras, incluindo sua ideologia, já não nos serve mais. A contestação em si, pode ser

entendida como uma busca de liberdade em relação a tais regras colocadas que têm poder de

regulação na sociedade. Se for assim, a autoridade dos sujeitos que deliberam será

proporcional à capacidade de julgamento sobre a razoabilidade da nova ideologia que lhes é

proposta. Equivalentemente, as teses legítimas também estariam associadas ao valor

ideológico, mais ou menos razoável, que encerram.

Opondo-se às teses de Marx e Nietzsche, que vêem na ideologia as formulações de

teses que se referenciam às classes dominantes e que, portanto, são disciplinadoras dos

sujeitos governados, Perelman entende que esses sujeitos podem opor-se à dominação,

trazendo em suas perspectivas novas ideologias. Deste modo, seria possível caminhar,

socialmente, através do embate das diferentes ideologias e não necessariamente pelo processo

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revolucionário. Quanto a este último, o autor chama a atenção para o risco de que, sendo a

revolução um meio que recorre à violência, pode ser que sua ação não implique a construção

teórica necessária para uma adesão democrática a seus princípios e, neste caso, "essa atitude

pode encontrar justificação naqueles que recusamos escutar, aos quais denegamos a qualidade

de interlocutores e que são obrigados a recorrer à violência para se fazer ouvir" (Ibidem, p

337). E daí, creio, podemos concluir que, em sua proposição, o modelo democrático, que não

recorre à violência e à imposição do poder não autorizado, firma-se pela possibilidade de

escutarmos todos os interlocutores sociais, suas ideologias sobre as questões apresentadas,

para então lhe conferirmos autoridade, ou não.

Compreendendo desta maneira as razões de Perelman, em relação às noções de

liberdade, autoridade e poder, percebo como plena de significados sua conclusão:

Para que a vida social e política não se resuma a uma pura relação de forças, cumpre

reconhecer a existência de um Poder legítimo, cuja autoridade se fundamenta numa ideologia

reconhecida. A crítica desta ideologia só pode ser feita em nome de outra ideologia, e é esse

conflito de ideologias, sejam elas quais forem, que está na base da vida espiritual dos tempos

modernos. Impedir a competição entre ideologias significa restabelecer o dogmatismo e a

ortodoxia, significa subordinar a vida do pensamento ao Poder político. Denegar todo valor às

ideologias significa resumir a vida política a uma luta armada pelo poder, da qual sairá

vencedor incontestavelmente o chefe militar mais influente (Ibidem, p 338).

Mas, então, há algo que não se explica para mim: porque crianças e jovens escapam ao

benefício democrático de uma autoridade jurídica e são relegadas à autoridade moral que se

apresenta como um arbitrário apriorístico que não encontra nenhuma justificativa razoável,

senão um dogma que, embora apresentado como fruto da tradição, parece metafísico?

O par autoridade/poder nas escolas: autoridade moral ou autoridade jurídica?

Tenho encontrado na Teoria da Argumentação um corpo teórico denso e sólido que

tem feito por mim o que uma perspectiva teórica se compromete a fazer por aqueles que

investigam os objetos do conhecimento humano: fornecer uma lente, um método de

abordagem e de crítica construtiva pelo qual seja possível fazer uma aproximação da realidade

de modo a compreendê-la melhor e para lançar-lhe novas proposições. Essa teoria permite-

me, a uma só vez, analisar os valores imbricados em discursos e teses que têm se legitimado

em nossa sociedade e propor um modelo razoável pelo qual possamos experimentar um

exercício democrático para nossas práticas mais cotidianas.

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Entretanto, por ora necessito contextualizá-la tanto em relação a seu momento

histórico, quanto a seu autor.

Perelman foi um judeu, polonês, nascido em 1912 que, vivendo na Bélgica, formou-se

em direito, em 1934 e, em 1938, em Lógica. Dadas as configurações históricas nas quais

cresceu e desenvolveu suas teorias, debruçou-se sobre os estudos jurídicos que visavam à

compreensão daquilo que legitima e possibilita os juízos de valor dos sujeitos sociais. Atento

à impossibilidade de determinar critérios formais que justificassem tais juízos, voltou-se para

o estudo da retórica, através da qual defendeu a democracia e suas possibilidades de

concretização no mundo moderno pela argumentação. Segundo Oliveira (2010, p. 15) "as

décadas de 60 e 70, assim como o início dos anos oitenta, representaram um período fértil

para a elaboração de textos sobre justiça, moral e direito". É neste período que se situa o texto

que aqui apresento e que ao ser escrito referia-se, especificamente, aos atos contestatórios dos

estudantes franceses, em maio de 1968. Deste modo, de um lado, considero que tal

particularidade e concretude não podem deixar de ser consideradas; de outro, como essa teoria

me atende, não posso me eximir de contra-argumentar o entendimento de seu autor quanto à

autoridade fundada em valores morais que, em sua proposição, serve às crianças. Estou certa

de que o autor, se estivesse vivo, se comprazeria com tal diálogo, uma vez que dedicou a vida

acadêmica em sua defesa.

Por fim, para auxiliar-me nesse difícil papel, no qual advogo pelo diabo, recorrerei a

Sacristán (2005) que tem, como eu, dedicado parte de seu trabalho investigativo a favor de

pensar o lugar do aluno dentro do território escolar.

Para iniciar esse debate, gostaria de lembrar que a proposição de uma escola

democrática, que atenda a todos, visando garantir-lhes os mesmos direitos de acesso ao

conhecimento, organizando-os e disciplinarizando-os, não goza do mesmo tempo de

existência e, portanto, do mesmo enraizamento tradicional que gozam os valores morais

cultivados pela ideologia judaico-cristã. Deste modo, tenho, contra minhas argumentações,

muito menos tempo de tradição na formulação de um senso comum sobre os temas que aqui

apresentarei, do que Perelman, quando argumenta a favor de uma tradição judaico-cristã que

legitima uma autoridade moral. Além disso, justamente porque nossa escola é muito jovem,

esse dado pode ser duplamente aproveitado, tanto em benefício do resgate de uma

historicidade próxima e acessível que pode nos auxiliar a perceber que suas teses não são

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verdades naturais, quanto em benefício de um pensamento conservador e cientificista que nos

desafie a demonstrar, por extensão da tradição, o valor das teses que, aqui, busco defender.

E já que o primeiro acordo que penso em relação ao lugar de onde falo remete à

tradição e à historicidade que naturaliza conceitos, noções e categorias para os seres e para a

organização social, vou buscar meu primeiro argumento em uma formulação de Sacristán ao

observar que "curiosamente, em nosso contexto, o sujeito professor está muito mais presente

no discurso dos especialistas do que o aluno" (SACRISTÁN, 2005, p 14), ainda que o aluno

seja o objetivo da educação. Ele justifica esse fato ao considerar que ao pensarmos a categoria

aluno, a aceitamos de tal modo naturalizada que "não vemos em sua definição nada ou quase

nada de controvertido, a consideramos natural tal como a percebemos" (Ibidem, p 15).

Para desestabilizar esse processo de naturalização do sujeito aluno, o autor nos lembra

que essa categoria é recente na cultura ocidental e só pode ser concebida a partir da existência

de uma instituição que se dedica a uniformizar e regularizar as formas de introdução de

crianças e jovens nas tradições e conhecimentos julgados necessários, pelos adultos, à sua

inserção na sociedade a que pertencem. Pela recente historicidade da instituição escolar é

possível resgatarmos parte dos indícios que nos explicam a formação da noção de aluno que,

em seu entender, "é uma forma por antonomásia de ser menor ou de viver a infância e a

adolescência" e, portanto, "ser aluno supõe acumular a dupla carga semântica de ser menor

mais a de ser escolarizado" (Ibidem, p 20). Desse modo, a noção que o fundamenta é a noção

que compreende a criança como o sujeito menor que o adulto e, portanto, incompleto: sujeito

que necessita passar por um processo que o torne grande. Nas sociedades escolarizadas, com

expansão das redes de ensino, tenderemos a irmanar essas noções: criança, menor e aluno,

visto que toda criança é menor e todo menor deve ser escolarizado para vir a ser maior.

Na base das hipóteses às quais recorre na tentativa de desconstrução dessas noções,

Sacristán arriscará na probabilidade de duas premissas. A primeira, de que a criança, em nossa

sociedade, passa a ser reconhecida como ser inacabado, parte de um processo de vir a ser, na

medida em que a humanidade, a partir de uma racionalidade organicista, explica sua relação

com o tempo fundando-a no modelo nascer-ser-morrer. É nessa perspectiva que a criança

pode ser considerada como alguém que não é, mas que virá a ser, para mais tarde, deixar de

ser. A segunda, de que a natureza humana pode ser susceptível à influência externa. Deste

modo coloca que

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Muito antes que o ser humano chegasse a considerar o menor como um ser cujo

desenvolvimento está determinado pela cultura, duas ideias básicas devem ter guiado os

adultos: 1) a de que os seres vivos têm um ciclo vital que começa no nascimento e que, com o

tempo, se transformam em seres adultos que terminarão seu ciclo com a morte; 2) a de que a

natureza humana (a forma de ser, a de se comportar, de pensar e de sentir) era flexível e

susceptível de ser influenciada no decorrer do processo de chegar a ser adulto (Ibidem, p 40).

A partir daí

O adulto é que concebeu a infância como carência e impôs a trajetória em direção a

seu próprio status como narrativa de referência para os menores; um a priori que justificará o

poder do maior sobre o menor. O fato de encarar os menores como imperfeitos e até carentes

de "sua razão" dá a ele justificativa para dominá-los e submetê-los ao regime disciplinar

prolongado que seu poder legitima (Ibidem, p 42).

Assim, os adultos tendem a se reproduzir nos menores e, através do processo

educativo, buscam vir a ser adultos melhores, impondo às crianças suas próprias

representações sobre a sociedade e seus valores, não reconhecendo a criança como sujeito

existente e presente, portador de suas próprias ideias, tanto em relação a si mesmo quanto em

relação ao universo que o circunda. A criança é, então, "definida de acordo com as imagens

desejáveis do que se considera infância ideal ou prototípica, é uma construção apoiada em

nossas crenças e nos valores que oferecemos a ela ou no destino que entendemos que deve

ter" (Ibidem, p 24) o que, por sua vez, fortalece a noção de uma natureza humana "entendida

como natureza adquirida, moldada, construída ou educada" (Ibidem, p 31).

Entretanto, a despeito de nossas teses sobre a infância, o autor nos lembra que "os

menores também têm suas ideias sobre quem são os mais velhos, mas, salvo por sedução

afetiva, não podem impor suas visões a estes" (Ibidem, p 42). Em consequência, o não

reconhecimento de suas representações próprias provoca uma compreensão por vezes

inadequada sobre suas realidades na medida em que, ao acreditarmos que são menores,

sua voz não nos importa e não os consultamos para elaborar ou reconstruir a ideia que temos

sobre quem eles são. Os adultos definem a si mesmos, e os menores são definidos pelos

adultos. Se eles não falam e nós adultos fazemos isso por eles, é lógico que a explicação de

sua experiência esteja muito intermediada pelas visões que temos deles. Não será estranho

então, em uma situação como a atual, em que um grupo de menores passa a ter uma certa

identidade e a se constituir em agente social, que os desajustes em nossas percepções adultas

sobre os alunos comecem a se tornar evidentes (Ibidem, p 12).

Pautada nestas reflexões, percebo que há na escola uma razão inerente a seus objetivos

que nos permite compreender, em certa medida, a pretensão de que sua autoridade e a

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PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e

suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,

Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.

autoridade dos adultos encarregados da educação dos jovens ali alocados seja justificada por

uma moral que tem por princípio a extensão de um modelo que estabelece como válida a

sucessão da autoridade de Deus para a do pai e a do pai para a do professor. Afinal pretende-

se, com a escolarização, que a criança saia de seu estado de não ser para constituir-se em um

ser que seja à nossa imagem e perfeição.

Como os indícios nos levam a considerar que a criança é, ainda que não nos

interessemos por seu estado de ser, o processo de escolarização, na contramão de suas

pretensões, promove a socialização destes menores entre si, levando-os ao fortalecimento de

suas próprias representações e identidades, tornando-os, enfim, como salienta Sacristán,

agentes sociais. A escola que se fundamenta no princípio do não ser da infância, termina por

constituir-se, contraditoriamente, em uma das principais instituições da sociedade que

promove o fortalecimento da criança como sujeito que é.

Deste modo, o poder escolar, quando admite ser legitimado por uma autoridade moral

cujos fundamentos impõem um acordo apriorístico de que a criança não é, na mesma

proporção em que o adulto é modelo desejável, torna-se ilegítimo. Não só é possível

questionar o modelo adulto que se impõe às crianças, quanto é possível questionar a

presunção da infância como um não ser, já que podemos considerar que tais menores são

capazes de tecer ideologias sobre si mesmos, ainda que pretendamos substituí-las por nossas

próprias ideologias.

A ilegitimidade da autoridade moral, no caso, está justamente no "exemplo por

excelência do argumento impositivo" reconhecido por Perelman. Sua argumentação para

justificar a excepcionalidade que validaria esse recurso de autoridade, pela qual "em nenhum

caso" se pode pensar em igualdade entre os sujeitos desta relação – pais/filhos,

professor/aluno -, pode ser refutado por suas próprias palavras quando, na sequência do texto,

coloca que "o problema real é saber em que momento e de que maneira a relação de

autoridade deve ser progressivamente substituída por uma relação de colaboração crítica".

Ora, se é possível conceber a substituição progressiva do modelo de autoridade, essa

problematização já descaracteriza a necessidade de que os pares que argumentam sejam iguais

em termos absolutos.

A esse respeito, gostaria de citar Oliveira (2000, p. 173), quando se manifesta sobre o

assunto:

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Primeiramente, argumentar tendo em vista a participação do aluno, não significa

pensar a relação pedagógica como interação entre sujeitos que se encontram no mesmo nível

de conhecimento e de experiências vividas. (...) Há, portanto, uma assimetria semelhante, por

exemplo, à que existe entre o líder sindical e sua base. Tal assimetria não invalida o processo

dialógico, a menos que o orador tome o auditório por tabula rasa na qual crê imprimir aquilo

que deseja.

O outro argumento de Perelman para justificar a autoridade escolar como autoridade

moral é, justamente, fundamentado na presunção de que o auditório escolar – crianças,

menores, alunos - é tabula rasa: "com efeito, cada educação, mesmo cada introdução, em

qualquer área que seja, começa com um período de iniciação, no qual é absurdo admitir a

igualdade entre o iniciador e o iniciado." Não só a condição de igualdade entre sujeitos que

argumentam pode ser contestada, quanto o entendimento de iniciado como aquele que não

porta nenhuma opinião sobre o assunto no qual se inicia. Assim é que posso escolher aprender

chinês e, embora não tenha nenhuma iniciação nesta língua, posso formular opiniões a

respeito dela, dos objetivos, metas e expectativas que tenho a partir da perspectiva de estudá-

la, bem como sobre os modos pelos quais gostaria de fazê-lo. Isso é cabível visto que tenho

opiniões sobre as diferenças entre as línguas, sobre os benefícios que sua aprendizagem pode

me trazer e sobre os modos possíveis pelos quais um ser humano pode acercar-se de um

conhecimento, além de ter uma opinião pessoal sobre minhas próprias representações e do

que constituo como ser.

Assim, ao contrário da suposição de que "o papel indispensável da autoridade do pai e

do educador em relação às crianças de pouca idade não pode, pois, ser racionalmente

contestado", posto que tal autoridade é moral, penso que o que não pode ser racionalmente

contestado é que a organização do poder escolar, em suas diversas esferas – inclusive no

âmbito da sala de aula na relação professor/aluno – seja legitimada por uma autoridade

jurídica, "tal como a autoridade da coisa julgada, a autoridade da razão ou da experiência", ao

invés de estar baseada na presunção de que a criança é o sujeito em processo que deverá, em

adulto, corresponder ao modelo de nossa imagem e perfeição.

O par autoridade/poder nas escolas: o lugar do aluno

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Quero, então, retomar o início de meu texto e pensar as configurações que os termos

liberdade e poder ganharam na especificidade do caso que relatei – no qual minhas práticas

curriculares escapavam às regulamentações da autoridade escolar – e avaliar em que medida

(se é que há alguma medida) tais configurações podem ser admitidas em outros currículos da

escola.

A liberdade da qual usufruí, ao longo de minha carreira, no estabelecimento de minhas

práticas dentro de sala de aula, foi decorrente do lugar de poder e governo que me foi ofertado

dentro das escolas, uma vez que as próprias autoridades nestas instituições não assumiam o

governo das aulas de artes, fosse por descaso ou por não se sentirem autorizadas para tal. Por

outro lado, a liberdade de exercício de poder sobre minha sala de aula não fez com que me

sentisse autorizada para seu exercício. Ocupando o lugar de sujeito do governo, senti

necessidade de que meu poder fosse legitimado por algum tipo de autorização. Isso implica

considerar que minha formação para a licenciatura das artes e a representação que eu tinha

tanto do meu papel como professora, quanto de minha situação como sujeito "iniciado" em

um conhecimento, não constituíram, para mim, a noção de que eu era um modelo válido para

os alunos ou de que a arte que eu conhecia o fosse.

Foi em parte pela desestabilização que a falta da autoridade escolar me causou, pois

não me fornecia justificativa legítima para ocupar o lugar que eu estava ocupando e, em parte,

pela interpelação dos alunos que buscavam incessantemente um significado que legitimasse a

aprendizagem da arte para suas vidas, que me vi obrigada a buscar os meios pelos quais eu

poderia vir a ser pessoa autorizada para falar de um conhecimento também autorizado.

A noção da necessidade de um vir a ser autoridade legítima em sala de aula e de

considerar a própria arte como objeto de conhecimento que necessitava, igualmente, vir a ser

legítimo para os alunos, invalidou para mim a possibilidade de pensar a docência como um

modelo que pode e deve ser seguido. A ruptura com o modelo, por sua vez, levou-me à

desnaturalização dos pressupostos que afirmam a importância do professor e do conhecimento

escolar e a inerência de suas autoridades.

De outro lado, esse processo chamou-me à atenção para a necessidade de estabelecer-

me como autoridade reconhecida por meus alunos, e já que era a eles que o exercício de tal

autoridade diria respeito, compreendi que deles deveria partir essa autorização. Portanto,

aquilo implicaria minha capacidade de estipular acordos com os alunos e de debater com eles

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os âmbitos de nossos papeis em sala de aula, bem como da delimitação daquilo que

compreenderíamos como arte necessária às suas vidas.

Foi deste modo, bastante intuitivo, que a argumentação, cuja proposta teórica eu só

viria a conhecer dez anos depois, passou a integrar minhas práticas pedagógicas. Em sala de

aula as rotinas incluíam, junto aos alunos, julgar o mérito da aula e da arte, argumentar, com

base na razão e/ou na experiência, os lugares hierárquicos que se estabeleceriam entre mim e

eles, e deliberarmos, juntos, sobre as escolhas de conteúdos e metodologias que estudaríamos.

Portanto, em minha experiência, a autoridade não só do professor, mas do espaço escolar e

curricular, se constitui como autoridade fundamentada em uma perspectiva jurídica "tal como

a autoridade da coisa julgada, a autoridade da razão ou da experiência".

O lugar do aluno também se constituiu como um lugar de poder e de autoridade, pois,

se "autoridade é o que autoriza e poder é o que pode", em um processo argumentativo eles

eram aqueles que podiam autorizar-me à governança da sala de aula.

Tenho consciência, como coloquei ao início, de que falo de um lugar muito

privilegiado, uma vez que minha disciplina não interessa ao poder, às vezes, pouco legítimo,

das direções escolares, o que me permitiu estabelecer outras relações de poder a partir de

outros sujeitos, os alunos.

Entretanto, considero que o exemplo – sem ter aqui a pretensão de generalizá-lo ou de

fundar regras necessárias para as escolas – pode nos auxiliar na desnaturalização das

concepções, que me parecem correntes, de que, por um lado, a autoridade do professor é

inerente à sua função, baseada em uma moral metafísica, e, por outro, o aluno é um não ser

que virá a ser a partir de nossa ação sobre ele.

Considerarei que a autoridade docente passa pela autorização dos governados, como

qualquer outra autoridade legítima e que, para tanto, retomando Perelman, é preciso que sua

ideologia (conjunto de valores que encerra) seja razoável. O aluno, por sua vez, é sujeito

concreto, que é no presente, imbuído das capacidades racionais comuns aos homens de razão

e valorizadas nos processos democráticos, e, portanto, deve participar dos debates que

confrontam as diferentes ideologias a fim de autorizar as autoridades docentes.

Assim o aparente conflito que pode permear as noções de autoridade/poder encontra

uma possibilidade de conciliação entre "as salas de aula repletas", nas quais "encontramos

seres reais com um status em processo de mudança, que estão enraizados em contextos

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Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.

concretos, que têm suas próprias aspirações e que, em muitos casos, não se acomodam à ideia

que os adultos haviam feito deles" (Sacristán, 2005, p 17) e os adultos que inserem a escola,

"para que a vida social e política não se resuma a uma pura relação de forças" e permita "a

existência de um Poder legítimo, cuja autoridade se fundamenta numa ideologia reconhecida"

(Perelman, 2005, p 338).

BIBLIOGRAFIA

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1° e 2º graus, e dá outras providências. Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos.

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arte em suas escolas? . Tese de Doutorado em “Educação". Rio de Janeiro, Faculdade de

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Martins Fontes, 2005, p 328-338.

SACRISTÁN, J Gimeno. O Aluno com Invenção. Porto Alegre: Artmed, 2005.

Andrea Penteado De Menezes é professora Adjunta de Didática e Prática de Ensino das Artes

Visuais da Faculdade de Educação da UFRJ. Vem desenvolvendo e participando de pesquisas

que têm como fundamentação a teoria da Nova Retórica, de Perelman e Olbrechts-Tyteca,

desde 2005, ligada ao Grupo de Pesquisa sobre Ética na Educação, na linha de pesquisa Ética

e Argumentação.