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Problematização sobre os fundamentos da autoridade professoral na perspectiva da Teoria da Argumentação de Chaim Perelam
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PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: Sobre pares opostos e suas possíveis
conciliações no âmbito escolar.
Andrea Penteado
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Resumo
Neste trabalho investigo as noções de autoridade e poder, propostas por Perelman em
seu artigo Autoridade, ideologia e violência (2005), no qual o autor defende que, por um lado,
um governo democrático e legítimo refere-se àquele cujo poder (de agir) é autorizado pelos
governados com base em noções jurídicas (que visam ao justo) que o validam; por outro,
excepcionalmente devemos reconhecer um tipo de autorização que se funda, não em uma
noção jurídica, mas em uma noção moral, baseada na tradição judaicocristã de nossa cultura.
A autoridade moral apresenta-se como necessária, segundo o autor, para o estabelecimento de
uma autoridade que governe sobre as crianças: a autoridade paterna e a autoridade
professoral.
Deste modo, por carecerem de condições de igualdade que as permita julgar, impõe-se
às crianças uma autoridade cujo modelo é fundado na sucessão da autoridade que parte de
Deus e chega ao professor: Deus é autoridade perante os homens, servindo de modelo de
autoridade do pai perante sobre os filhos e a autoridade do pai, servindo de modelo para a
relação professor/alunos.
Baseada na própria teoria da Argumentação e nos estudos de Sacritán sobre a invenção
da noção de aluno (2005), irei defender que a autoridade professoral também deveria ser uma
autoridade validada juridicamente, e não com base em uma moral metafísica, o que resultaria
quiçá em diferentes relações de respeito entre os sujeitos da escola.
Palavras-chave: Argumentação, Currículo, Ética, Autoridade, Poder.
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
De um lado:
"Nas salas de aula repletas, encontramos seres
reais com um status em processo de mudança,
que estão enraizados em contextos concretos,
que têm suas próprias aspirações e que, em
muitos casos, não se acomodam à ideia que os
adultos haviam feito deles."
(Sacristán, 2005, p 17)
De outro lado:
"Para que a vida social e política não se
resuma a uma pura relação de forças, cumpre
reconhecer a existência de um Poder legítimo,
cuja autoridade se fundamenta numa ideologia
reconhecida. A crítica desta ideologia só pode
ser feita em nome de outra ideologia, e é esse
conflito de ideologias, sejam elas quais forem,
que está na base da vida espiritual dos tempos
modernos. Impedir a competição entre
ideologias significa restabelecer o dogmatismo
e a ortodoxia, significa subordinar a vida do
pensamento ao Poder político. Denegar todo
valor às ideologias significa resumir a vida
política a uma luta armada pelo poder, da
qual sairá vencedor incontestavelmente o
chefe militar mais influente."
(Perelman, 2005, p 338)
Tenho tido o privilégio de trabalhar, talvez, com uma das áreas do conhecimento
escolar mais fluidas entre as diversas áreas de saber que o ensino básico engloba: as artes.
Destaco isso, pois apesar do desconforto que noto entre alguns colegas professores de artes,
ao sentirem-se diminuídos por escaparem dos rígidos controles da escola, entendendo aí a
denúncia da desvalorização de uma disciplina que passa à margem das preocupações da
direção, dos pais e dos alunos, particularmente vejo essa realidade como uma grande
vantagem que me permitiu, por anos, investigar práticas, conteúdos e rotinas escolares em
clima de quase total liberdade.
Esta concessão, de certo modo violenta – já que implica a suposição de um descaso-,
permitiu-me, logo ao início de minha carreira, problematizar três eixos do pensamento
didático que vieram a se configurar em questões centrais de minhas reflexões nos últimos
anos: o professor, o aluno e o objeto de conhecimento que os mantém interligados. Nessa
problematização, tenho pensado de modo mais incisivo o lugar do aluno nas relações de poder
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
que se estabelecem na escola e investigado possibilidades de angariar para esse sujeito escolar
maior liberdade de ação e de possibilidades deliberativas dentro desta instituição.
A escola da década de 1980 tinha poucas formulações, ou formulações pouco rígidas,
sobre a recém inaugurada disciplina curricular de artes, ainda que, por tradição, fosse
portadora de várias premissas que poderiam sugerir um acordo inicial para esta área de
conhecimento, referenciada, no âmbito escolar, naquilo que, pela lei anterior, 5692/71, foi
denominado por componente curricular e caracterizado como atividade. Sabe-se que a
tradicional prática da educação artística nas escolas brasileiras aproximava-a muito mais das
necessidades pedagógicas de uma nascente escola para as massas, ligada ora ao artesanato,
ora aos trabalhos manuais, ora às prendas domésticas (GUIMARÃES, 2010, P 320-328), do
que de sua área acadêmica de referência, ainda que consideremos a incipiente representação
do ensino artístico para as elites brasileiras da primeira metade do século XX que mantinha
relação estreita com a suposição de que o conhecimento das Belas Artes era marca distintiva
de uma classe social que também legitimava tal conhecimento como aquele que é Verdadeiro,
relativo à área (PENTEADO, 2009).
Beneficiada pela liberdade que me foi concedida pela flacidez das diretrizes escolares
daquele período, embuí-me de um poder que me permitiu pensar os currículos da disciplina
que eu lecionava, por diversas escolas nas quais passei, por, pelo menos, os dez primeiros
anos de minha docência e articular, ativamente, a composição destes currículos com meus
alunos. Estes alunos tornaram-se os pares efetivos com os quais pensei, debati, julguei,
outorguei, revoguei possibilidades do ensinamento artístico dentro das escolas. E é a partir
desse benefício, entendido como relação entre os termos liberdade e poder, que gostaria de
começar a formular de modo mais consistente suas possibilidades no âmbito escolar.
Vou apoiar-me em dois autores. Fundamentalmente em Chaïm Perelman (2005) que
propõe uma Nova Retórica, partindo de Aristóteles, pela qual, através da argumentação
regulamentada entre sujeitos que visam à adesão a novas teses, a sociedade contemporânea
possa nortear suas práticas democraticamente. Trarei como base de seu pensamento para a
discussão que aqui conduzo um texto publicado, originariamente, nos Anais do Instituto de
Filosofia da Universidade de Bruxelas, de 1969, e editado no Brasil em uma coletânea do
autor intitulada Ética e Direito (2005, p 328-338). Em segundo, na tentativa de incluir os
alunos nas perspectivas que tenho pensado a partir deste par, utilizarei um estudo sobre a
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
invenção da categoria aluno, de Gimeno Sacristán (2005), no qual o autor esmiúça a
construção deste sujeito social e sua indissociabilidade em relação às categorias adulto,
professor e escolarização.
O par autoridade/poder na Teoria da Argumentação
Em seu texto, Perelman nos apresenta inicialmente a formulação de um ideário sobre a
liberdade, que se constituiu e legitimou em nosso pensamento ocidental, que a entende como
oposição à autoridade. A autoridade, por sua vez, é associada ao uso do poder, nem sempre
consentido pelos governados, chegando, mesmo, a apresentar-se como sinônimo deste poder.
Para fundamentar o processo de legitimação deste pensamento recorre a Stuart Mill (apud
PERELMAN, 2005, p 328-329):
A luta entre liberdade e autoridade é o traço saliente das épocas históricas que se nos
tornaram familiares acima de tudo nas histórias grega, romana e inglesa... Por liberdade,
entendia-se a proteção contra a tirania dos governantes políticos... Antigamente, de um modo
geral, o governo era exercido por um homem, ou uma tribo, ou uma casta, que tirava sua
autoridade do direito de conquista ou de sucessão, que seja como for, não a obtinha do
consentimento dos governados e cuja supremacia os homens não ousavam, ou talvez não
desejassem contestar, por mais precauções que pudessem tomar contra o seu exercício efetivo.
Na continuidade de suas reflexões, Perelman, agora recorrendo a Littré, vai retomar o
sentido da palavra autoridade (auctoritas, do latim), entendendo que, embora haja alguma
proximidade entre autoridade e poder, que se estabelece nas práticas sociais, há restrições de
sentidos entre ambas que não permitem que se irmanem os dois conceitos; assim, "autoridade
é o que autoriza e poder é o que pode" (LITTRÉ, apud PERELMAN, 2005, p 329). Deste
modo, poderíamos compreender, ao menos, duas qualidades de poder, aquele que é
autorizado, ou seja, os sujeitos governados, por algum meio que seja, consentiram ao sujeito
da autoridade poder de exercê-la, e o poder ilegítimo, ou seja, aquele que comumente
nomeamos de autoritário: o sujeito pode, apesar de não lhe termos conferido autoridade para
tal. O autoritarismo seria, portanto, fruto de um poder que é exercido por algum mecanismo
de violência e coerção (punição, força física, etc) e não pela autorização de seu exercício. Há
neste entendimento uma forma positiva de poder, aquela na qual o sujeito governado autoriza
o governante e, portanto, se prontifica à sua autoridade; e outra negativa, na qual, por carência
de autorização prévia, o governante impõe sua vontade.
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
Perelman resgatará De Jouvenel (2005, p 330-331) para denunciar a inconsistência da
expressão governo autoritário, já que a autoridade é a capacidade de angariar autorização e
aquilo a que chamamos autoritarismo é, justamente, caracterizado pela falta desta autorização
que leva o sujeito do poder ao uso da força coerciva. Portanto, conclui-se que há governos
sem autoridade, que recorrem à violência, e governos autorizados. Assim, podemos dissociar
mais completamente as noções de poder e de autoridade. Nessa dissociação, inversamente,
Perelman sugere que a autoridade ganha significado quando se vincula à capacidade de poder,
já que é ligada, politicamente, a alguma forma de governo, pois esta "se apresenta sempre
com um aspecto normativo, é o que deve ser seguido ou obedecido"; portanto o poder lhe
serve para a realização de uma ação. Já a autorização conferida ao poder normativo pode
advir de uma noção jurídica – "tal como a autoridade da coisa julgada, a autoridade da razão
ou da experiência" (Ibidem, p 330).
Por outro aspecto, por nossa herança cultural judaico-cristã, não apenas a noção
jurídica, mas a noção moral poderá legitimar a autoridade. É assim que esta pode ter por
modelo a relação pai/filho que funda uma atitude moral de respeito e estabelece uma regra de
conduta. Essa regra, segundo Perelman, se estenderá à relação professor/aluno, donde derivará
a autoridade conferida ao professor. A autoridade do pai/professor inicia os filhos "nas
tradições, nos costumes, nas regras do meio familiar e social em que vão ser integrados", bem
como "diz às crianças qual é a forma correta de ler e de escrever, o que devem considerar
verdadeiro ou falso. O professor disse, magister dixit, é o exemplo por excelência do
argumento impositivo" (Ibidem, p 331). Entretanto, em seu entender, ainda que imposta – e,
como tal, não autorizada – tal autoridade é moralmente legítima, pois:
Em nenhum caso, nem na relação entre o pai e os filhos sujeitos à autoridade,
nem naquela do professor com as crianças da escola primária, se pode pensar em igualdade.
Com efeito, cada educação, mesmo cada introdução, em qualquer área que seja, começa com
um período de iniciação, no qual é absurdo admitir a igualdade entre o iniciador e o iniciado"
(Ibidem, idem).
Para defender sua premissa, Perelman critica Descartes ao considerar que sua
proposição sobre a existência de idéias inatas contidas como um a priori nas mentes dos seres
racionais não só desdenha toda a contribuição da educação para as sociedades, como
influencia Rousseau a construir, em Émile, uma "teoria aberrante segundo a qual não convém
ensinar ciências à criança: esta deve descobri-las por seus próprios meios" (Ibidem, 332). E
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
conclui que, no momento em que escreve esse artigo, "sabe-se que os métodos chamados
ativos, necessitam do concurso de um professor muito mais competente e inventivo do que os
métodos tradicionais" (Ibidem, idem); entretanto, não nos dá maiores indicações sobre quais
estudos levam-no a este saber.
Não cabe aqui encabeçar uma discussão a respeito da proposta de Rousseau sobre os
métodos educativos, portanto não estenderei este diálogo e retornarei às conclusões
apresentadas por Perelman, no que diz respeito à qualificação da autoridade professoral, após
essa argumentação. O autor então diz:
O papel indispensável da autoridade do pai e do educador em relação às crianças de
pouca idade não pode, pois, ser racionalmente contestado. O problema real é saber em que
momento e de que maneira a relação de autoridade deve ser progressivamente substituída por
uma relação de colaboração crítica (Ibidem, idem. Grifo nosso).
Após essas colocações, nas quais concede à autoridade moral seu lugar de
legitimidade social, a educação de crianças e jovens, Perelman irá explorar a ineficácia do
modelo quando ampliado para outras situações nas quais buscamos legitimar a autoridade.
Para tanto, recorre à tradição filosófica socrática que se opõe ao argumento impositivo,
propondo o diálogo como forma que conduz a uma verdade cuja autoridade assenta-se na
razão, passa por Francis Bacon, que propõe o empirismo como método que define as verdades
comprováveis, autorizando-as e chega a Descartes, que reconhece a autoridade de um
enunciado a partir de sua formulação racional. Em seu entender nenhum dos métodos
apresentados auxilia a legitimar uma autoridade, pois toda formulação evidente não necessita
de autorização já que "se, lançando mão, quer da experiência, quer do cálculo, cada qual, se
não se enganar, chegará ao mesmo resultado, o recurso à autoridade é não só inútil, mas até
assaz esquisito" (Ibidem, p 333). Porém, vai lembrar que esses casos restringem-se àqueles
conhecimentos observáveis ou comprováveis racionalmente e que não atendem a todas as
questões humanas possíveis de serem levantadas.
Historicamente, tais questões foram sendo respondidas em nossa cultura através do
recurso à autoridade. O autor então retoma a dissociação das noções de autoridade jurídica –
que tem como critério de validação a busca pelo justo – e de autoridade moral – que se
justifica pelo modelo da autoridade de Deus, fundada na tradição judaico-cristã. Entende que
a autoridade moral é impeditiva do avanço do conhecimento humano pela justiça,
argumentando que "essa resposta, que Deus conhece desde toda eternidade, é aquela que todo
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
ser dotado de razão deveria empenhar-se em conhecer" (Ibidem, idem). Mas, então, resta-lhe
pensar: quais são os "métodos que permitem provar toda hipótese que se poderia formular a
seu propósito?" (Ibidem, idem).
Perelman recorre, portanto, à noção de autoridade jurídica para pensar os métodos
pelos quais seria possível legitimá-la. Irá resgatar a razão prática aristotélica que compreende
a perspectiva de que, nos assuntos que se referem à escolha humana, a sabedoria potencializa
uma racionalidade que visa à solução prática que corrija o desejo (irracional) e busque a
verdade da deliberação sobre o tema em pauta. Considerando a impossibilidade de definir a
deliberação verdadeira, uma vez que ela poderá atender aos interesses daquele que delibera
(tornando-se egotista), mas reconhecendo a contribuição da razão prática ao permitir o
reconhecimento e descarte das soluções desarrazoadas, conclui que sua limitação reside na
imprescindibilidade de outorgar a alguém, ou a um grupo, o poder de tomar uma decisão
sobre as razões apresentadas. De um lado, retornamos à questão inicial: se for necessário
outorgar tal autoridade a esse grupo de poder, como conferir-lhe tal autoridade? De outro
lado, poder-se-ia buscar a validação da razão mais razoável dentre aquelas sobre as quais se
deve deliberar e, portanto, a questão que se apresenta é sobre quais métodos poderiam
conferir legitimidade às razões que nos levam a agir.
Perelman retornará à primeira questão apresentada em seu texto, a da relação
liberdade/poder. O que nos moveria à necessidade de escolher algo em relação às
normatizações da vida social seria o reconhecimento de que aquilo que está colocado em tais
regras, incluindo sua ideologia, já não nos serve mais. A contestação em si, pode ser
entendida como uma busca de liberdade em relação a tais regras colocadas que têm poder de
regulação na sociedade. Se for assim, a autoridade dos sujeitos que deliberam será
proporcional à capacidade de julgamento sobre a razoabilidade da nova ideologia que lhes é
proposta. Equivalentemente, as teses legítimas também estariam associadas ao valor
ideológico, mais ou menos razoável, que encerram.
Opondo-se às teses de Marx e Nietzsche, que vêem na ideologia as formulações de
teses que se referenciam às classes dominantes e que, portanto, são disciplinadoras dos
sujeitos governados, Perelman entende que esses sujeitos podem opor-se à dominação,
trazendo em suas perspectivas novas ideologias. Deste modo, seria possível caminhar,
socialmente, através do embate das diferentes ideologias e não necessariamente pelo processo
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
revolucionário. Quanto a este último, o autor chama a atenção para o risco de que, sendo a
revolução um meio que recorre à violência, pode ser que sua ação não implique a construção
teórica necessária para uma adesão democrática a seus princípios e, neste caso, "essa atitude
pode encontrar justificação naqueles que recusamos escutar, aos quais denegamos a qualidade
de interlocutores e que são obrigados a recorrer à violência para se fazer ouvir" (Ibidem, p
337). E daí, creio, podemos concluir que, em sua proposição, o modelo democrático, que não
recorre à violência e à imposição do poder não autorizado, firma-se pela possibilidade de
escutarmos todos os interlocutores sociais, suas ideologias sobre as questões apresentadas,
para então lhe conferirmos autoridade, ou não.
Compreendendo desta maneira as razões de Perelman, em relação às noções de
liberdade, autoridade e poder, percebo como plena de significados sua conclusão:
Para que a vida social e política não se resuma a uma pura relação de forças, cumpre
reconhecer a existência de um Poder legítimo, cuja autoridade se fundamenta numa ideologia
reconhecida. A crítica desta ideologia só pode ser feita em nome de outra ideologia, e é esse
conflito de ideologias, sejam elas quais forem, que está na base da vida espiritual dos tempos
modernos. Impedir a competição entre ideologias significa restabelecer o dogmatismo e a
ortodoxia, significa subordinar a vida do pensamento ao Poder político. Denegar todo valor às
ideologias significa resumir a vida política a uma luta armada pelo poder, da qual sairá
vencedor incontestavelmente o chefe militar mais influente (Ibidem, p 338).
Mas, então, há algo que não se explica para mim: porque crianças e jovens escapam ao
benefício democrático de uma autoridade jurídica e são relegadas à autoridade moral que se
apresenta como um arbitrário apriorístico que não encontra nenhuma justificativa razoável,
senão um dogma que, embora apresentado como fruto da tradição, parece metafísico?
O par autoridade/poder nas escolas: autoridade moral ou autoridade jurídica?
Tenho encontrado na Teoria da Argumentação um corpo teórico denso e sólido que
tem feito por mim o que uma perspectiva teórica se compromete a fazer por aqueles que
investigam os objetos do conhecimento humano: fornecer uma lente, um método de
abordagem e de crítica construtiva pelo qual seja possível fazer uma aproximação da realidade
de modo a compreendê-la melhor e para lançar-lhe novas proposições. Essa teoria permite-
me, a uma só vez, analisar os valores imbricados em discursos e teses que têm se legitimado
em nossa sociedade e propor um modelo razoável pelo qual possamos experimentar um
exercício democrático para nossas práticas mais cotidianas.
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
Entretanto, por ora necessito contextualizá-la tanto em relação a seu momento
histórico, quanto a seu autor.
Perelman foi um judeu, polonês, nascido em 1912 que, vivendo na Bélgica, formou-se
em direito, em 1934 e, em 1938, em Lógica. Dadas as configurações históricas nas quais
cresceu e desenvolveu suas teorias, debruçou-se sobre os estudos jurídicos que visavam à
compreensão daquilo que legitima e possibilita os juízos de valor dos sujeitos sociais. Atento
à impossibilidade de determinar critérios formais que justificassem tais juízos, voltou-se para
o estudo da retórica, através da qual defendeu a democracia e suas possibilidades de
concretização no mundo moderno pela argumentação. Segundo Oliveira (2010, p. 15) "as
décadas de 60 e 70, assim como o início dos anos oitenta, representaram um período fértil
para a elaboração de textos sobre justiça, moral e direito". É neste período que se situa o texto
que aqui apresento e que ao ser escrito referia-se, especificamente, aos atos contestatórios dos
estudantes franceses, em maio de 1968. Deste modo, de um lado, considero que tal
particularidade e concretude não podem deixar de ser consideradas; de outro, como essa teoria
me atende, não posso me eximir de contra-argumentar o entendimento de seu autor quanto à
autoridade fundada em valores morais que, em sua proposição, serve às crianças. Estou certa
de que o autor, se estivesse vivo, se comprazeria com tal diálogo, uma vez que dedicou a vida
acadêmica em sua defesa.
Por fim, para auxiliar-me nesse difícil papel, no qual advogo pelo diabo, recorrerei a
Sacristán (2005) que tem, como eu, dedicado parte de seu trabalho investigativo a favor de
pensar o lugar do aluno dentro do território escolar.
Para iniciar esse debate, gostaria de lembrar que a proposição de uma escola
democrática, que atenda a todos, visando garantir-lhes os mesmos direitos de acesso ao
conhecimento, organizando-os e disciplinarizando-os, não goza do mesmo tempo de
existência e, portanto, do mesmo enraizamento tradicional que gozam os valores morais
cultivados pela ideologia judaico-cristã. Deste modo, tenho, contra minhas argumentações,
muito menos tempo de tradição na formulação de um senso comum sobre os temas que aqui
apresentarei, do que Perelman, quando argumenta a favor de uma tradição judaico-cristã que
legitima uma autoridade moral. Além disso, justamente porque nossa escola é muito jovem,
esse dado pode ser duplamente aproveitado, tanto em benefício do resgate de uma
historicidade próxima e acessível que pode nos auxiliar a perceber que suas teses não são
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
verdades naturais, quanto em benefício de um pensamento conservador e cientificista que nos
desafie a demonstrar, por extensão da tradição, o valor das teses que, aqui, busco defender.
E já que o primeiro acordo que penso em relação ao lugar de onde falo remete à
tradição e à historicidade que naturaliza conceitos, noções e categorias para os seres e para a
organização social, vou buscar meu primeiro argumento em uma formulação de Sacristán ao
observar que "curiosamente, em nosso contexto, o sujeito professor está muito mais presente
no discurso dos especialistas do que o aluno" (SACRISTÁN, 2005, p 14), ainda que o aluno
seja o objetivo da educação. Ele justifica esse fato ao considerar que ao pensarmos a categoria
aluno, a aceitamos de tal modo naturalizada que "não vemos em sua definição nada ou quase
nada de controvertido, a consideramos natural tal como a percebemos" (Ibidem, p 15).
Para desestabilizar esse processo de naturalização do sujeito aluno, o autor nos lembra
que essa categoria é recente na cultura ocidental e só pode ser concebida a partir da existência
de uma instituição que se dedica a uniformizar e regularizar as formas de introdução de
crianças e jovens nas tradições e conhecimentos julgados necessários, pelos adultos, à sua
inserção na sociedade a que pertencem. Pela recente historicidade da instituição escolar é
possível resgatarmos parte dos indícios que nos explicam a formação da noção de aluno que,
em seu entender, "é uma forma por antonomásia de ser menor ou de viver a infância e a
adolescência" e, portanto, "ser aluno supõe acumular a dupla carga semântica de ser menor
mais a de ser escolarizado" (Ibidem, p 20). Desse modo, a noção que o fundamenta é a noção
que compreende a criança como o sujeito menor que o adulto e, portanto, incompleto: sujeito
que necessita passar por um processo que o torne grande. Nas sociedades escolarizadas, com
expansão das redes de ensino, tenderemos a irmanar essas noções: criança, menor e aluno,
visto que toda criança é menor e todo menor deve ser escolarizado para vir a ser maior.
Na base das hipóteses às quais recorre na tentativa de desconstrução dessas noções,
Sacristán arriscará na probabilidade de duas premissas. A primeira, de que a criança, em nossa
sociedade, passa a ser reconhecida como ser inacabado, parte de um processo de vir a ser, na
medida em que a humanidade, a partir de uma racionalidade organicista, explica sua relação
com o tempo fundando-a no modelo nascer-ser-morrer. É nessa perspectiva que a criança
pode ser considerada como alguém que não é, mas que virá a ser, para mais tarde, deixar de
ser. A segunda, de que a natureza humana pode ser susceptível à influência externa. Deste
modo coloca que
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
Muito antes que o ser humano chegasse a considerar o menor como um ser cujo
desenvolvimento está determinado pela cultura, duas ideias básicas devem ter guiado os
adultos: 1) a de que os seres vivos têm um ciclo vital que começa no nascimento e que, com o
tempo, se transformam em seres adultos que terminarão seu ciclo com a morte; 2) a de que a
natureza humana (a forma de ser, a de se comportar, de pensar e de sentir) era flexível e
susceptível de ser influenciada no decorrer do processo de chegar a ser adulto (Ibidem, p 40).
A partir daí
O adulto é que concebeu a infância como carência e impôs a trajetória em direção a
seu próprio status como narrativa de referência para os menores; um a priori que justificará o
poder do maior sobre o menor. O fato de encarar os menores como imperfeitos e até carentes
de "sua razão" dá a ele justificativa para dominá-los e submetê-los ao regime disciplinar
prolongado que seu poder legitima (Ibidem, p 42).
Assim, os adultos tendem a se reproduzir nos menores e, através do processo
educativo, buscam vir a ser adultos melhores, impondo às crianças suas próprias
representações sobre a sociedade e seus valores, não reconhecendo a criança como sujeito
existente e presente, portador de suas próprias ideias, tanto em relação a si mesmo quanto em
relação ao universo que o circunda. A criança é, então, "definida de acordo com as imagens
desejáveis do que se considera infância ideal ou prototípica, é uma construção apoiada em
nossas crenças e nos valores que oferecemos a ela ou no destino que entendemos que deve
ter" (Ibidem, p 24) o que, por sua vez, fortalece a noção de uma natureza humana "entendida
como natureza adquirida, moldada, construída ou educada" (Ibidem, p 31).
Entretanto, a despeito de nossas teses sobre a infância, o autor nos lembra que "os
menores também têm suas ideias sobre quem são os mais velhos, mas, salvo por sedução
afetiva, não podem impor suas visões a estes" (Ibidem, p 42). Em consequência, o não
reconhecimento de suas representações próprias provoca uma compreensão por vezes
inadequada sobre suas realidades na medida em que, ao acreditarmos que são menores,
sua voz não nos importa e não os consultamos para elaborar ou reconstruir a ideia que temos
sobre quem eles são. Os adultos definem a si mesmos, e os menores são definidos pelos
adultos. Se eles não falam e nós adultos fazemos isso por eles, é lógico que a explicação de
sua experiência esteja muito intermediada pelas visões que temos deles. Não será estranho
então, em uma situação como a atual, em que um grupo de menores passa a ter uma certa
identidade e a se constituir em agente social, que os desajustes em nossas percepções adultas
sobre os alunos comecem a se tornar evidentes (Ibidem, p 12).
Pautada nestas reflexões, percebo que há na escola uma razão inerente a seus objetivos
que nos permite compreender, em certa medida, a pretensão de que sua autoridade e a
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
autoridade dos adultos encarregados da educação dos jovens ali alocados seja justificada por
uma moral que tem por princípio a extensão de um modelo que estabelece como válida a
sucessão da autoridade de Deus para a do pai e a do pai para a do professor. Afinal pretende-
se, com a escolarização, que a criança saia de seu estado de não ser para constituir-se em um
ser que seja à nossa imagem e perfeição.
Como os indícios nos levam a considerar que a criança é, ainda que não nos
interessemos por seu estado de ser, o processo de escolarização, na contramão de suas
pretensões, promove a socialização destes menores entre si, levando-os ao fortalecimento de
suas próprias representações e identidades, tornando-os, enfim, como salienta Sacristán,
agentes sociais. A escola que se fundamenta no princípio do não ser da infância, termina por
constituir-se, contraditoriamente, em uma das principais instituições da sociedade que
promove o fortalecimento da criança como sujeito que é.
Deste modo, o poder escolar, quando admite ser legitimado por uma autoridade moral
cujos fundamentos impõem um acordo apriorístico de que a criança não é, na mesma
proporção em que o adulto é modelo desejável, torna-se ilegítimo. Não só é possível
questionar o modelo adulto que se impõe às crianças, quanto é possível questionar a
presunção da infância como um não ser, já que podemos considerar que tais menores são
capazes de tecer ideologias sobre si mesmos, ainda que pretendamos substituí-las por nossas
próprias ideologias.
A ilegitimidade da autoridade moral, no caso, está justamente no "exemplo por
excelência do argumento impositivo" reconhecido por Perelman. Sua argumentação para
justificar a excepcionalidade que validaria esse recurso de autoridade, pela qual "em nenhum
caso" se pode pensar em igualdade entre os sujeitos desta relação – pais/filhos,
professor/aluno -, pode ser refutado por suas próprias palavras quando, na sequência do texto,
coloca que "o problema real é saber em que momento e de que maneira a relação de
autoridade deve ser progressivamente substituída por uma relação de colaboração crítica".
Ora, se é possível conceber a substituição progressiva do modelo de autoridade, essa
problematização já descaracteriza a necessidade de que os pares que argumentam sejam iguais
em termos absolutos.
A esse respeito, gostaria de citar Oliveira (2000, p. 173), quando se manifesta sobre o
assunto:
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
Primeiramente, argumentar tendo em vista a participação do aluno, não significa
pensar a relação pedagógica como interação entre sujeitos que se encontram no mesmo nível
de conhecimento e de experiências vividas. (...) Há, portanto, uma assimetria semelhante, por
exemplo, à que existe entre o líder sindical e sua base. Tal assimetria não invalida o processo
dialógico, a menos que o orador tome o auditório por tabula rasa na qual crê imprimir aquilo
que deseja.
O outro argumento de Perelman para justificar a autoridade escolar como autoridade
moral é, justamente, fundamentado na presunção de que o auditório escolar – crianças,
menores, alunos - é tabula rasa: "com efeito, cada educação, mesmo cada introdução, em
qualquer área que seja, começa com um período de iniciação, no qual é absurdo admitir a
igualdade entre o iniciador e o iniciado." Não só a condição de igualdade entre sujeitos que
argumentam pode ser contestada, quanto o entendimento de iniciado como aquele que não
porta nenhuma opinião sobre o assunto no qual se inicia. Assim é que posso escolher aprender
chinês e, embora não tenha nenhuma iniciação nesta língua, posso formular opiniões a
respeito dela, dos objetivos, metas e expectativas que tenho a partir da perspectiva de estudá-
la, bem como sobre os modos pelos quais gostaria de fazê-lo. Isso é cabível visto que tenho
opiniões sobre as diferenças entre as línguas, sobre os benefícios que sua aprendizagem pode
me trazer e sobre os modos possíveis pelos quais um ser humano pode acercar-se de um
conhecimento, além de ter uma opinião pessoal sobre minhas próprias representações e do
que constituo como ser.
Assim, ao contrário da suposição de que "o papel indispensável da autoridade do pai e
do educador em relação às crianças de pouca idade não pode, pois, ser racionalmente
contestado", posto que tal autoridade é moral, penso que o que não pode ser racionalmente
contestado é que a organização do poder escolar, em suas diversas esferas – inclusive no
âmbito da sala de aula na relação professor/aluno – seja legitimada por uma autoridade
jurídica, "tal como a autoridade da coisa julgada, a autoridade da razão ou da experiência", ao
invés de estar baseada na presunção de que a criança é o sujeito em processo que deverá, em
adulto, corresponder ao modelo de nossa imagem e perfeição.
O par autoridade/poder nas escolas: o lugar do aluno
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
Quero, então, retomar o início de meu texto e pensar as configurações que os termos
liberdade e poder ganharam na especificidade do caso que relatei – no qual minhas práticas
curriculares escapavam às regulamentações da autoridade escolar – e avaliar em que medida
(se é que há alguma medida) tais configurações podem ser admitidas em outros currículos da
escola.
A liberdade da qual usufruí, ao longo de minha carreira, no estabelecimento de minhas
práticas dentro de sala de aula, foi decorrente do lugar de poder e governo que me foi ofertado
dentro das escolas, uma vez que as próprias autoridades nestas instituições não assumiam o
governo das aulas de artes, fosse por descaso ou por não se sentirem autorizadas para tal. Por
outro lado, a liberdade de exercício de poder sobre minha sala de aula não fez com que me
sentisse autorizada para seu exercício. Ocupando o lugar de sujeito do governo, senti
necessidade de que meu poder fosse legitimado por algum tipo de autorização. Isso implica
considerar que minha formação para a licenciatura das artes e a representação que eu tinha
tanto do meu papel como professora, quanto de minha situação como sujeito "iniciado" em
um conhecimento, não constituíram, para mim, a noção de que eu era um modelo válido para
os alunos ou de que a arte que eu conhecia o fosse.
Foi em parte pela desestabilização que a falta da autoridade escolar me causou, pois
não me fornecia justificativa legítima para ocupar o lugar que eu estava ocupando e, em parte,
pela interpelação dos alunos que buscavam incessantemente um significado que legitimasse a
aprendizagem da arte para suas vidas, que me vi obrigada a buscar os meios pelos quais eu
poderia vir a ser pessoa autorizada para falar de um conhecimento também autorizado.
A noção da necessidade de um vir a ser autoridade legítima em sala de aula e de
considerar a própria arte como objeto de conhecimento que necessitava, igualmente, vir a ser
legítimo para os alunos, invalidou para mim a possibilidade de pensar a docência como um
modelo que pode e deve ser seguido. A ruptura com o modelo, por sua vez, levou-me à
desnaturalização dos pressupostos que afirmam a importância do professor e do conhecimento
escolar e a inerência de suas autoridades.
De outro lado, esse processo chamou-me à atenção para a necessidade de estabelecer-
me como autoridade reconhecida por meus alunos, e já que era a eles que o exercício de tal
autoridade diria respeito, compreendi que deles deveria partir essa autorização. Portanto,
aquilo implicaria minha capacidade de estipular acordos com os alunos e de debater com eles
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
os âmbitos de nossos papeis em sala de aula, bem como da delimitação daquilo que
compreenderíamos como arte necessária às suas vidas.
Foi deste modo, bastante intuitivo, que a argumentação, cuja proposta teórica eu só
viria a conhecer dez anos depois, passou a integrar minhas práticas pedagógicas. Em sala de
aula as rotinas incluíam, junto aos alunos, julgar o mérito da aula e da arte, argumentar, com
base na razão e/ou na experiência, os lugares hierárquicos que se estabeleceriam entre mim e
eles, e deliberarmos, juntos, sobre as escolhas de conteúdos e metodologias que estudaríamos.
Portanto, em minha experiência, a autoridade não só do professor, mas do espaço escolar e
curricular, se constitui como autoridade fundamentada em uma perspectiva jurídica "tal como
a autoridade da coisa julgada, a autoridade da razão ou da experiência".
O lugar do aluno também se constituiu como um lugar de poder e de autoridade, pois,
se "autoridade é o que autoriza e poder é o que pode", em um processo argumentativo eles
eram aqueles que podiam autorizar-me à governança da sala de aula.
Tenho consciência, como coloquei ao início, de que falo de um lugar muito
privilegiado, uma vez que minha disciplina não interessa ao poder, às vezes, pouco legítimo,
das direções escolares, o que me permitiu estabelecer outras relações de poder a partir de
outros sujeitos, os alunos.
Entretanto, considero que o exemplo – sem ter aqui a pretensão de generalizá-lo ou de
fundar regras necessárias para as escolas – pode nos auxiliar na desnaturalização das
concepções, que me parecem correntes, de que, por um lado, a autoridade do professor é
inerente à sua função, baseada em uma moral metafísica, e, por outro, o aluno é um não ser
que virá a ser a partir de nossa ação sobre ele.
Considerarei que a autoridade docente passa pela autorização dos governados, como
qualquer outra autoridade legítima e que, para tanto, retomando Perelman, é preciso que sua
ideologia (conjunto de valores que encerra) seja razoável. O aluno, por sua vez, é sujeito
concreto, que é no presente, imbuído das capacidades racionais comuns aos homens de razão
e valorizadas nos processos democráticos, e, portanto, deve participar dos debates que
confrontam as diferentes ideologias a fim de autorizar as autoridades docentes.
Assim o aparente conflito que pode permear as noções de autoridade/poder encontra
uma possibilidade de conciliação entre "as salas de aula repletas", nas quais "encontramos
seres reais com um status em processo de mudança, que estão enraizados em contextos
PENTEADO, A. Autoridade/Poder e sua relação com a liberdade: sobre pares de opostos e
suas possíveis conciliações no âmbito escolar. In LEMGRUBER, Marcio S. & OLIVEIRA,
Renato J. Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2011, pgs 107-122.
concretos, que têm suas próprias aspirações e que, em muitos casos, não se acomodam à ideia
que os adultos haviam feito deles" (Sacristán, 2005, p 17) e os adultos que inserem a escola,
"para que a vida social e política não se resuma a uma pura relação de forças" e permita "a
existência de um Poder legítimo, cuja autoridade se fundamenta numa ideologia reconhecida"
(Perelman, 2005, p 338).
BIBLIOGRAFIA
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PENTEADO, A. M. O Argumento do Auditório: o que dizem os alunos sobre o ensino de
arte em suas escolas? . Tese de Doutorado em “Educação". Rio de Janeiro, Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009.
PERELMAN, Chaïm. Autoridade, ideologia e violência. In Ética e Direito. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p 328-338.
SACRISTÁN, J Gimeno. O Aluno com Invenção. Porto Alegre: Artmed, 2005.
Andrea Penteado De Menezes é professora Adjunta de Didática e Prática de Ensino das Artes
Visuais da Faculdade de Educação da UFRJ. Vem desenvolvendo e participando de pesquisas
que têm como fundamentação a teoria da Nova Retórica, de Perelman e Olbrechts-Tyteca,
desde 2005, ligada ao Grupo de Pesquisa sobre Ética na Educação, na linha de pesquisa Ética
e Argumentação.