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 JEAN-BAPTISTE POQUELIN- MOLIÈRE  O AV ARENTO (COMÉDIA E M 5 AT OS)  Tradução Bandeira Duarte PERSONAGENS  HARPAGON …………………… pai de Cleanto e de Elisa, apaixonado por Mariana CLEANT O……………… ……….. filho de Harpagon, namorado de Mariana ELISA………… ………………… .. filha de Harpagon, namorada de Valério VALÉRIO………………………… filho de Anselmo, namorado de Elisa MARIANA…… ………………… . namorada de Cleanto, amada por Harpagon ANSELMO………………………. pai de Valério e Mariana FROSINA………………………… uma intrigante SIMÃO…………………………… corretor de negócios JOAQUIM……………………….. cozinheiro e cocheiro de Harpagon LA FLÈCHE………………………. criado de Cleanto D. CLAÚDIA…………………… .. criado de Harpagon BRINDAVOINE…………………. criado de Harpagon MERLUCHE……………………… criado de Harpagon COMISSÁRIO………………………………………………. ESCREVENTE………………………………………………..

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JEAN-BAPTISTE POQUELIN- MOLIÈRE

 O AVARENTO

(COMÉDIA EM 5 ATOS)

  Tradução

Bandeira Duarte

PERSONAGENS

 HARPAGON …………………… pai de Cleanto e de Elisa, apaixonado por Mariana

CLEANTO……………………….. filho de Harpagon, namorado de Mariana

ELISA…………………………….. filha de Harpagon, namorada de Valério

VALÉRIO………………………… filho de Anselmo, namorado de Elisa

MARIANA………………………. namorada de Cleanto, amada por Harpagon

ANSELMO………………………. pai de Valério e Mariana

FROSINA………………………… uma intrigante

SIMÃO…………………………… corretor de negócios

JOAQUIM……………………….. cozinheiro e cocheiro de Harpagon

LA FLÈCHE………………………. criado de Cleanto

D. CLAÚDIA…………………….. criado de Harpagon

BRINDAVOINE…………………. criado de Harpagon

MERLUCHE……………………… criado de Harpagon

COMISSÁRIO……………………………………………….

ESCREVENTE………………………………………………..

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ATO PRIMEIRO

CENA I

Valério, Elisa VALÉRIO – Minha querida Elisa, você parece mais triste depois dos compromissos que assumiu para comigo… Estáarrependida das promessas que fizemos um ao outro?

ELISA – Não, Valério. Eu não me posso arrepender do nosso amor. Sinto-me arrastada para ele por força muito boa enunca desejaria que as coisas fossem diferentes do que são. Mas, para ser sincera, estou inquieta e receio gostar devocê mais do que desejaria.

VALÉRIO – Receia por quê?

ELISA – Por mil coisas ao mesmo tempo… A cólera de meu pai, os protestos da família, as censuras do mundo… e…muito mais do que tudo isso, Valério, receio a inconstância do seu coração e essa frieza com que os homens pagam, namaioria das vezes, por provas demasiado sinceras de um amor verdadeiro.

VALÉRIO – Mas não me faça a injustiça de julgar o meu coração pelo coração dos outros homens. Suspeite-me de tudo,Elisa, menos de faltar à sinceridade que eu devo a você. Amo-a muito e meu amor será tão duradouro quanto a minhavida.

ELISA – Todos dizem o mesmo, Valério. Nas palavras todos os homens são iguais. Apenas pelas ações se diferenciam.

VALÉRIO – espere então por elas para julgar a minha sinceridade e não procure crimes nos injustos receios de umalastimável previsão. Peço-lhe que não me ofenda com um suspeita ultrajante e que me permita demonstrar, por mil e

uma provas, a honestidade das minhas promessas.ELISA – Ah! Com que facilidade nós nos deixamos convencer pelas pessoas a quem amamos!… Sim, Valério… Eu acreditoque seu coração seja incapaz de me enganar. Creio que você gosta de mim, como diz, com um amor verdadeiro. Creioserá fiel. Não quero duvidar e limito as minhas preocupações às censuras que receberei.

VALÉRIO – Mas por que essa inquietação?

ELISA – Eu não me inquietaria se todos olhassem para você com os meus olhos e se achassem em você as qualidadesque eu achei. Meu coração tem, como desculpa, além de seu grande mérito, Valério, o reconhecimento que eu lhedevo. Penso, a cada momento, nesse perigo que nos colocou um diante do outro. Penso na generosidadesurpreendente que fez com que você arriscasse a sua vida para salvar a minha do furor das ondas. Nos cuidados cheiosde ternuras que você me ofereceu depois de me arrancar à morte e nas homenagens assíduas que nem o tempo nemas dificuldades diminuíram e que fazem com que você esqueça a sua família e os seus amigos, com que oculte a suaverdadeira posição e permaneça nesta casa como simples criado de meu pai. Tudo isso seria o bastante para justificaro meu amor aos meus próprios olhos, mas talvez não baste para justificá-lo aos olhos dos outros… E o mais certo é

ninguém compreenderá os meus sentimentos.VALÉRIO – De tudo que você citou, apenas pelo meu próprio amor eu pretendo merecer qualquer coisa. E quanto aosseus escrúpulos, querida Elisa, seu próprio pai pelo comportamento habitual justifica plenamente todas as atitudes. Oexcesso de sua avareza e a maneira austera por que ele vive com você e Cleanto, seus filhos, autorizam as idéias maisestranhas. Perdoe-me, querida, se falo assim. Você sabe que, nesse assunto, nada se poderá dizer de agradável. Masenfim, se eu puder, como espero, encontrar meus pais, não teremos dificuldade em obter o consentimento do seu.Aguardo com importância noticias a respeito. E se elas tardarem, irei eu mesmo procurá-las.

ELISA – Não, Valério! Não se afaste daqui, peço-lhe, e trate de conquistar cada vez mais a confiança de meu pai.

VALÉRIO – Você sabe como eu tenho procedido e o que fiz para isso. Conhece a máscara de simpatia e de identidadede gênios que eu coloquei para agradar seu pai e que personagem represento diante dele para conseguir sua amizade.Felizmente vou vencendo e chegarei à conclusão de que, para agradar os homens, basta apenas que pareçamos iguaisa eles, apoiando suas idéias, exaltando seus defeitos e aplaudindo tudo o que eles fazem. Os mais astuciosos são àsvezes os mais cabotinos e perdem pela vaidade. Não há ridículo ou impertinência que não engulam, quando podemosdisfarçar a pílula , dando-lhe o sabor de um elogio. A sinceridade sofre um pouco nessa situação em que me coloquei,

mas quando temos necessidade de vencer, não devemos olhar os meios. E visto que não poderia vencer de outramaneira, o crime é menos dos que elogiam do que dos que querem ser elogiados.

ELISA – Mas por que não pensa também em conseguir o apoio de meu irmão para o caso da criada contar a Cleanto onosso segredo?

VALÉRIO – Dois proveitos não cabem num caso só, querida Elisa. E o espírito de teu pai é tão diverso do espírito de seuirmão, que é difícil acomodar as atitudes que eu deveria assumir para com ambos. Mas você poderá cuidar de seuirmão, servindo-se da amizade que há entre vocês dois para colocá-lo do nosso lado. Ei-lo que se aproxima. Vou-meembora, Elisa. Aproveite para falar… E do nosso segredo diga apenas aquilo que lhe parecer conveniente.

ELISA – Não sei se terei forças para contar a Cleanto a nossa historia…(Valério sai) CENA II

Cleanto, Elisa

 CLEANTO (entrando) – É bom que nos encontremos sozinhos, minha irmã. Estava impaciente para contar a você umgrande segredo.

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ELISA –Estou pronta a ouvir, meu irmão. Que grande segredo é esse?

CLEANTO – Posso traduzi-lo em duas únicas palavras, minha irmã: eu amo.

ELISA – Você ama?…

CLEANTO – Sim, mas antes de ir mais longe, sei que dependo de meu pai, que na minha qualidade de filho devoobedecer às suas vontades, e que nada devemos fazer sem o consentimento daqueles a quem devemos a vida; que oscéus os fazem senhores dos nossos destinos e que nada devemos resolver sem consultá-los; que, mais sensatos do quenós, eles se enganam menos e vêem melhor aquilo que mais nos convém; que devemos acreditar mais nas luzes de sua

prudência do que na cegueira de nossas paixões; que os arrebatamentos da mocidade nos arrastam, na maioria dasvezes, para abismos formidáveis. Digo tudo isso, minha irmã, para evitar que você diga. Porque, no fim de contas,meu amor nada quer ouvir e peço que você não me faça exortações.

ELISA – Você já se comprometeu, meu irmão, co aquela a quem ama?

CLEANTO – Não, mas estou resolvido a isso. E, mais uma vez, peço que não procure dissuadir-me dessa decisão.

ELISA – Serei eu, acaso, meu irmão, uma criatura tão austera assim?

CLEANTO – Não, minha irmã. Mas você não ama. Você ignora a doce violência que o amor exerce sobre os nossoscorações e eu conheço a sua sensatez.

ELISA – É preferível não falarmos da minha sensatez. Não há ninguém que deixe de lado o bom senso, pelo menos umavez na vida. Se eu abrisse para você o meu coração, talvez me considerasse muito menos sensata do que imagina.

CLEANTO – Ah! Irmãzinha!… Queira Deus que a sua alma seja também…

ELISA (interrompendo-o) – Falemos primeiro no seu caso, meu irmão. Quem é a pessoa amada?

CLEANTO – Uma jovem que habita há pouco tempo este bairro e que parece ter sido feita para ser amada por todos. Anatureza nunca produziu nada de mais interessante. Minha irmã. Fiquei perturbado desde o primeiro dia. Chama-seMariana e vive com uma excelente criatura, sua mãe, que anda quase sempre doente e por quem essa moça nutreuma amizade muito profunda. Cuida dela, consolando-a com tocante ternura. Dá o ar mais encantador do mundo àscoisas que faz e brilham mil graças nas suas menores ações. Uma doçura encantadora, uma bondade feiticeira, umahonestidade adorável, uma… ah! minha irmã, eu queria que você pudesse tê-la visto…

ELISA – Estou vendo demais essa moça nas coisas que você me diz, meu irmão, e para compreender o que ela é, bastaque você a ame.

CLEANTO – Descobri, sem que soubessem, que ela não vive muito folgadamente e que seus bens, mal dão para umavida discreta. Imagine, minha irmã, que alegria poder aumentar a fortuna de uma pessoa a quem amamos e socorreras modestas necessidades de uma família virtuosa. E imagine que desgraça a minha: ser impedido de gozar essaalegria, de provar o meu amor a essa linda jovem, tudo pela avareza de meu pai.

ELISA – Eu compreendo perfeitamente seu pesar, meu irmão.

CLEANTO – Ele é maior, muito maior mesmo do que parece. Por que, afinal, pode haver coisa mais cruel do que essamaldita economia que se exerce sobre nós, do que essa secura com que nos tratam?… Do que nos adianta a fortuna seela só virá às nossas mãos no momento em que não poderemos gozar de seus benefícios?!… E se, mesmo para mesustentar, preciso me empenhar aqui e ali; se estou reduzido, como você, a procurar todos os dias novos meios parame apresentar razoavelmente?!… Enfim, minha irmã, eu gostaria que você me ajudasse a sondar meu pai sobre ossentimentos que alimento. Se ele se opuser, estou resolvido a fugir com a minha amada para um lugar onde possamosviver como Deus quiser. Já providenciei para arranjar o dinheiro necessário. Se a sua situação for semelhante à minhae se nosso pai não for favorável aos nossos projetos, fujamos juntos a essa tirania sob a qual ele nos mantém, há tantotempo, com a sua insuportável avareza.

ELISA – É bem verdade que, todos os dias, ele nos dá motivo para lamentarmos a morte de nossa mãe e que…

CLEANTO (interrompendo) – Ouço a sua voz, minha irmã. Vamos continuar lá fora as nossas confidências e juntaremosnossas forças para afrontar a dureza de seu mau humor. ( saem os dois)

CENA IIIHarpagon, La Flèche 

HARPAGON – Fora daqui, já e já… E nada de responder!… Vamos, vamos… Longe da minha casa, refinado tratante,trapaceiro, peralta!…

LA FLÈCHE (a parte) – Nunca vi sujeito pior do que esse maldito velho!… Salvo erro, creio que ele tem o diabo nocorpo… HARPAGON – Que é que tu estás dizendo?!

LA FLÈCHE – Nada… Perguntava a mim mesmo por que me manda embora, senhor…

HARPAGON – tinha graça que eu fosse obrigado a dar satisfações dos meus atos!… Sai daqui, antes que eu te dê umasurra!

LA FLÈCHE – Mas que foi que eu fiz?…

HARPAGON – Não importa!… Eu quero que tu saias!

LA FLÈCHE – Mas o meu patrão, seu filho, mandou que eu esperasse aqui…

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HARPAGON – Pois vai esperar lá na rua e não na minha casa, plantado como uma estaca, a observar o que se passa ea tirar partido de tudo. Não quero, absolutamente, ter na minha casa um espião dos meus negócios, um traidor cujosos olhos malditos fiscalizam todos os meus atos, devoram o que eu possuo e farejam de todos os lados, para ver se háalguma coisa que roubar.

LA FLÈCHE – Como quer o senhor que a gente possa roubar qualquer coisa aqui?… Será o senhor um homem capaz deser roubado, fechando tudo a sete chaves e montando sentinela dia e noite, como faz?…

HARPAGON – Eu fecho o que bem me parece e faço sentinela como bem entendo!… E vejam só que audácia: censuraros meus atos!…(baixo, à parte) Será que ele suspeita de qualquer coisa sobre os meus dez mil escudos?…( alto ) Tu ésbastante capaz de espalhar o boato de que eu tenho dinheiro escondido aqui em casa, hein?!…LA FLÈCHE – O senhor tem dinheiro escondido aqui?…

HARPAGON – Não idiota… Eu não estou dizendo que tenho… ( à parte) Maldição (alto)Pergunto se, maliciosamente, nãoandas espalhando o boato que tenho dinheiro oculto…

LA FLÈCHE – Que importa que o senhor tenha ou não tenha, se para nós dá no mesmo?

HARPAGON – Respondes disfarçando e eu não sei onde estou que não te bato!…(erguendo a mão contra ele) Vai-teembora de uma vez…

LA FLÈCHE – Está bem… Eu obedeço…

HARPAGON – Espera… não levas nada?…

LA FLÈCHE – Que poderia eu levar?…

HARPAGON – Vem cá… Mostra-me as tuas mãos…

LA FLÈCHE – Pronto.HARPAGON – As outras…

LA FLÈCHE – Eu só tenho essas duas…

HARPAGON (indicando os calções de La Flèche) – Não puseste nada aí dentro?

LA FLÈCHE – Veja o senhor mesmo…

HARPAGON (apalpando os calções) – Esses calções são ótimos para esconder as coisas roubadas… É uma espécie deroupa que não me agrada absolutamente…

LA FLÈCHE (à parte) – Oh! Como um homem destes merecia ter o que receia e como eu ficaria satisfeito se pudesseroubá-lo!

HARPAGON – Hein?… Falaste em roubar?

LA FLÈCHE – Eu dizia que o senhor deve revistar bem, para ver que eu nada roubei

HARPAGON – É isso mesmo que eu vou fazer… (ele revista os bolsos de La Flèche)

LA FLÈCHE (à parte) – Que a peste engula a avareza e os avarentos…HARPAGON – O que foi que disseste?

LA FLÈCHE – Eu disse que malditos sejam os avarentos…

HARPAGON – E quem são os avarentos?…

LA FLÈCHE – Os vagabundos e as ladras…

HARPAGON – Mas o que queres dizer com isso?…

LA FLÈCHE – Por que o senhor se preocupa tanto com o que eu digo?

HARPAGON – Eu me preocupo com aquilo que bem entendo…

LA FLÈCHE – Pensa que eu me refiro ao senhor quando falo na avareza e nos avarentos?

HARPAGON – Eu penso o que penso, mas quero que me explique aquilo que pensas…

LA FLÈCHE – Eu penso… no meu chapéu…

HARPAGON – E eu bem poderia pensar nas tuas orelhas, hein?!LA FLÈCHE – Proíbe que eu fale mal dos avarentos?

HARPAGON – Não, mas proíbo-te que sejas insolente. Cala-te! Se não calares eu te bato…

LA FLÈCHE – Está bem, eu me calarei… Mas é contra a vontade.

HARPAGON – Não interessa!

LA FLÈCHE (mostrando um bolso do casaco) – Ainda falta este bolso. Está satisfeito?

HARPAGON – Vamos… Restitui/ sem precisar que te reviste…

LA FLÈCHE – Mas restituir o quê?

HARPAGON – O que me roubaste.

LA FLÈCHE – Mas eu nada roubei!

HARPAGON – Tens certeza?

LA FLÈCHE – Tenho.HARPAGON – Está bem. Então vai-te para o diabo!… Entrego o caso a tua própria consciência, miserável… (La Flèchesai) Eis um descarado que me aborrece bastante e não me agrada ver nessa cara na minha frente… 

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CENA IV

Elisa, Cleanto, Harpagon HARPAGON (ainda sozinho) – Por certo não é o pequeno trabalho de guardar em casa uma grande quantia de dinheiro…Felizes os que possuem todos os seus haveres bem colocados e só guardam em casa o necessário para as suasdespesas. É muito embaraçoso procurar um canto bem escondido, pois na minha opinião os cofres-fortes são objetos àvista e nunca pude fiar neles. Considero-os, ao contrário, um chamariz para os ladrões e é sempre a primeira coisa

que procuram quando assaltam uma casa… Entretanto, não sei se fiz bem em enterrar no meu jardim dez mil escudosque recebi ontem… Dez mil escudos em ouro numa casa é uma soma bastante… (surgem Cleanto e Elisa, conversandoem voz baixa) Céus!… Eu mesmo estou me traindo!… Creio que me arrebatei e falei alto demais, enquanto refletia! (aCleanto e Elisa) Que há?

CLEANTO – Nada, meu pai.

HARPAGON – Estavam aí há muito tempo?

ELISA – Chegamos agora mesmo, meu pai.

HARPAGON – E… escutaram?

CLEANTO – Escutaram o quê, meu pai?

HARPAGON – Vocês escutaram?!… Vocês escutaram o que eu estava dizendo?

CLEANTO – Não.

HARPAGON – Podem confessar que escutaram…

ELISA – Não compreendo, meu pai.HARPAGON – Estou certo de que ao menos algumas palavras foram ouvidas. É que eu pensava comigo mesmo sobre asdificuldades que existem, hoje em dia, para arranjarmos dinheiro e quanto é feliz quem pode ter dez mil escudos emsua casa…

CLEANTO – Nós hesitávamos em falar com o senhor, com medo de interromper as suas reflexões.

HARPAGON – Apresso-me em explicar o que dizia para que não se ponham a imaginar coisas erradas e a pensar que soueu quem possui dez mil escudos…

CLEANTO – Não nos envolvemos em seus negócios, meu pai.

HARPAGON – quem me dera que eu tivesse dez mil escudos…

CLEANTO – Não acredito que…

HARPAGON – Seria ótimo negocio para mim.

ELISA – São assuntos em que…

HARPAGON – Eu bem que tenho necessidade deles…CLEANTO – Eu penso que…

HARPAGON – Isso me arranjaria a vida.

CLEANTO – O senhor é…

HARPAGON – E eu não me queixaria, como tenho razões para me queixar, de que os tempos andam péssimos.

CLEANTO – Desculpe, meu pai, mas o senhor não tem necessidade de se queixar e todos sabem que possui uma fortunabem razoável…

HARPAGON – Como?!… Fortuna razoável, eu?… Mas quem diz isso mente! Não há nada de mais falso… São os velhacosque andam espalhando tais boatos…

ELISA – Não se exalte, meu pai.

HARPAGON – É estranho que os meus próprios filhos me atraiçoem e se transformem em meus inimigos…

CLEANTO – Dizer que o senhor tem fortuna razoável é ser seu inimigo?HARPAGON – É, sim senhor!… Com semelhantes histórias e a despesa que vocês fazem, um destes dias serei assaltadopelos ladrões, que me degolarão, imaginando que estou forrado de moedas…

CLEANTO – Mas quais são as grandes despesas que nós fazemos?

HARPAGON – Quais são?!…Haverá nada de mais escandaloso do que a suntuosa criadagem que o senhor passeia pelacidade?… Ainda ontem eu falava disso a sua irmã… Mas ainda há mais… (indicando o filho de alto a baixo) Eis o quebrada aos céus!… Quem olhar para o senhor, dos pés a cabeça, pode calcular que carrega um bom rendimento. Já lhedisse mais de uma vez, senhor meu filho, que seus hábitos me desagradam bastante. O senhor cheira furiosamente arapaz rico e, para andar assim, é preciso, com certeza, que esteja sendo furtado…

CLEANTO – Oh! Meu pai!… E de que maneira não me dirá?…

HARPAGON – Sei lá!… E onde encontra meios para manter esse seu aparato todo?

CLEANTO – É que eu jogo, meu pai, e como tenho muita sorte, gasto comigo mesmo todo o dinheiro que ganho.

HARPAGON – É muito malfeito!… Se você tem sorte no jogo devia aproveitar a colocar, a um juro honesto, o dinheiroque ganha, para que um dia ele esteja crescido. Eu bem queria que me informassem para que servem todas essasfrioleiras que usa dos pés a cabeça e se meia dezenas de agulhetas não basta para prender o calção… Isso sem falar doresto… É desnecessário usar cabeleira que custam dinheiro, quando podemos usar os próprios cabelos que nada

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custam!… Aposto que em cabeleiras e fitinhas você carrega, pelo menos, umas vinte pistolas… E vinte pistolas, ao juromuito módico de oito por cento, rendem… rendem… dezoito libras, seis soldos e oito dinheiros…

CLEANTO – O senhor tem razão!

HARPAGON – Mas deixemos disso e falemos de outra coisa… (percebendo que os dois moços fazem sinaismisteriosos) Então?!… (baixo, à parte) Estarão combinando me roubar ?… (alto) Que gestos são esses?…

ELISA – Nós estamos resolvendo quem falará primeiro, pois temos ambos, meu irmão e eu, qualquer coisa a dizer aosenhor…

HARPAGON – Ah! Sim?… pois eu também tenho qualquer coisa a dizer a ambos…CLEANTO – É de casamento, meu pai, que desejamos falar…

HARPAGON – É de casamento também que eu desejo falar a vocês dois… Do meu casamento… e do casamento devocês…

ELISA – Como, meu pai?!…

HARPAGON – Por que esse espanto?… Está amedrontada com a palavra ou com o fato?

CLEANTO – O casamento pode nos amedrontar a ambos, meu pai, dada a amaneira pela qual o senhor encara. Ereceamos que os nossos sentimentos não estejam de acordo com a sua escolha.

HARPAGON – Um pouco de paciência… Não se alarmem. Eu sei o que convém a vocês dois. Nem um nem outro terámotivos de queixa… (a Cleanto) Você já viu, por acaso, uma jovem chamada Mariana, que mora perto daqui?

CLEANTO – Já, meu pai.

HARPAGON (à Elisa) – E você?

ELISA – Já ouvi falar dela…HARPAGON – Que lhes parece, meus filhos, essa moça?

CLEANTO – Uma criatura lindíssima.

HARPAGON – Seu rosto?

CLEANTO – Absolutamente honesto e espiritual.

HARPAGON – Seu aspecto e suas maneiras?

CLEANTO – Admiráveis, sem dúvida.

HARPAGON – Não é verdade que uma jovem assim merece que pensemos nela?

CLEANTO – É verdade, meu pai.

HARPAGON – Que ela é um ótimo partido?

CLEANTO – Magnífico.

HARPAGON – Que ela tem toda a aparência de que dará uma excelente dona-de-casa?CLEANTO – Sem dúvida.

HARPAGON – E que um marido ficaria satisfeito com uma tal esposa?

CLEANTO – Certamente.

HARPAGON – Há uma pequena dificuldade: receio que ela não possua fortuna bastante.

CLEANTO – Ora, meu pai!… Quando se trata de escolher uma boa esposa, a fortuna não deve pesar muito…

HARPAGON – Não exageremos!… Mas se não encontrarmos uma esposa com dinheiro que queremos, resta ao menos aesperança de recuperar a diferença sobre outra coisa…

CLEANTO – É claro.

HARPAGON – Fico satisfeito que você compreenda os meus sentimentos, pois pelo seu aspecto honesto e pelasimplicidade estou disposto a casar com Mariana, com tanto que isso nada me prejudique…

CLEANTO – Como?!… O senhor está resolvido a…

HARPAGON – …a casar com Mariana…

CLEANTO – Quem?!… O senhor?!… O senhor, meu pai?!…

HARPAGON – Sim, meu filho!… Eu, eu, eu… Mas porque tanto espanto?!…

CLEANTO – Nada, nada… Uma vertigem repentina… Com licença… (vai para sair)

HARPAGON – Vá depressa à cozinha e beba um copo de água pura… (Cleanto sai) Os rapazes de hoje são fracos comopassarinhos… Eis aí, minha filha, o que resolvi quanto a mim… Quanto a seu irmão, destino-lhe certa viúva da qual mefalaram hoje, pela manhã. E quanto a você, esta destinada ao senhor Anselmo.

ELISA – Ao Sr. Anselmo?

HARPAGON – Sim… É um homem maduro, prudente e sensato, que não tem mais de cinqüenta anos e cuja fortuna éconhecidíssima…

ELISA (fazendo uma reverência) – Se me fizer um favor, meu pai, eu não quero casar…

HARPAGON (imitando-a) – E eu, minha filha, se me fizer um favor, quero que você case…ELISA (nova reverência) – Peco-lhe perdão, meu pai… Sou uma humilde criada do Sr. Anselmo, mas, com sua licença,não me casarei com ele…

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HARPAGON (imitando-a) – Peço-lhe perdão, minha filha… Sou um humilde criado seu, mas, com sua licença, vocêassinará o contrato de casamento hoje, à noite.

ELISA – Hoje, à noite?

HARPAGON – Hoje, à noite!

ELISA (repetindo a reverência) – Isso não acontecerá, meu pai.

HARPAGON (imitando-a) – Acontecerá sim, minha filha.

ELISA – Não.

HARPAGON – Sim.ELISA – Não, digo-lhe eu.

HARPAGON – Sim, digo-lhe eu.

ELISA – Eu me matarei antes de casar com ele

HARPAGON – Você não se matará e casará com ele. Mas vejam que audácia!… pode-se compreender que uma filha faledessa maneira a um pai?!…

ELISA – E alguém pode compreender que um pai case dessa maneira a sua filha?

HARPAGON – É um partido contra o qual nada há que dizer e aposto que todo o mundo aprovará a minha escolha.

ELISA – E eu aposto que essa escolha não poderá ser aprovada por uma só pessoa de bom senso.

HARPAGON (vendo Valério, que entra) – Ali está o nosso Valério. Quer aceitá-lo como juiz da questão?

ELISA – Aceito.

HARPAGON – E acatará os resultados do julgamento?ELISA – Quaisquer que sejam.

HARPAGON – Vejamos então… Venha cá Valério! CENA V

Valério, Harpagon, Elisa HARPAGON – Nós te escolhemos para que digas quem tem razão em um assunto: minha filha ou eu.

VALÉRIO – É o senhor, sem dúvida.

HARPAGON – conheces a história?…

VALÉRIO – Não, mas sei que o senhor nunca erra.

HARPAGON – Ah! Bravos!… Mas escuta: eu quero dar à minha filha, hoje à noite, um esposo tão rico quanto sensato e ainfeliz declara, nas minhas barbas, que não se interessa por ele. Que dizes disso?

VALÉRIO – Eu digo que… no íntimo, o senhor tem razão… Mas sua filha também não está inteiramente errada e…

HARPAGON – Como não está?!… O Sr. Anselmo é um partido admirável, um cavalheiro nobre, sensato, ponderado, emuito bem visto, ao qual não resta um só filho do primeiro matrimônio. Poderia uma jovem encontrar coisa melhor?

VALÉRIO – Está visto que não. Ela porém poderá alegar que esse casamento tão próximo é um pouco precipitado e queconvém esperar mais algum tempo para ver se…

HARPAGON – É uma oportunidade que deve ser aproveitada sem tardança. Acho conveniências que jamais serãoencontradas e o Sr. Anselmo se compromete a casar com a minha filha sem exigir dote!…

VALÉRIO – Ah!… sem dote?!…

HARPAGON – Sim… Sem dote…

VALÉRIO – Ah! Mas então tudo muda de figura!… Isso é uma razão muito mais que convincente…

HARPAGON – Para mim é uma economia considerável.VALÉRIO – Certamente não há que hesitar!… É verdade que sua filha pode dizer que o casamento é um negocio demuito mais vulto do que parece; que a felicidade ou a desgraça do matrimônio são eternas; e que um compromissoque vai durar até a morte só deve ser assumido após grande meditação.

HARPAGON – Mas é sem dote!…

VALÉRIO – O senhor tem razão… Eis o que decide tudo!… Há pessoas que poderiam dizer que em tais momentos asinclinações de uma moça são coisa que merecem ser consideradas com respeito, e que um grande desequilíbrio entreas idades, os gênios e os sentimentos sujeita o casamento a acidentes bem desagradáveis.

HARPAGON – Mas é sem dote!…

VALÉRIO – Ah! Para esse argumento não há réplica!… Quem poderá ir contra ele? É verdade que há um grande númerode pais que respeitam mais a felicidade de suas filhas do os cordões de suas bolsas… Quem de longe pensa emsacrificá-las aos seus interesses e que procuram, acima de tudo, essa doce conformidade que conserva, no casamento,

a honra, a tranqüilidade e a alegria do lar..HARPAGON – Mas é sem dote!…

VALÉRIO – Isso fecha todas as bocas!… “Sem dote!”… Não há meio de resistir a um argumento desses…

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HARPAGON (prestando ouvidos ao longe) – Parece que ouço um cão ladrar… Oh! O meu dinheiro!… (a Valério) Não teafaste daqui… Eu volto já… (sai correndo)

ELISA – Você está zombando, Valério?

VALÉRIO – É para não aborrecer seu pai, Elisa, e para alcançar melhor meus fins. Ferir de frente as suas intençõesseria estragar tudo, e há certos espíritos que só se conquistam com hipocrisia, temperamentos inimigos de qualquerresistência, que a verdade irrita e que sempre se revoltam contra os imperativos da razão e que só conduzimos aondequeremos tomando estradas tortuosas… Faça de conta que consente no que ele quer. Conseguirá mais rapidamente oque deseja… e…

ELISA – Mas esse casamento, Valério…

VALÉRIO – Arranjaremos um meio de rompê-lo.

ELISA – Mas que meios, se ele deve ser assinado ainda hoje?!…

VALÉRIO – É preciso pedir um adiamento e fingir qualquer doença.

ELISA – Mas se chamarem médicos, tudo será descoberto.

VALÉRIO – Médicos?!… Os médicos sabem lá quando estamos doentes?… Com eles você pode apresentar o mal quequiser, porque eles acharão motivos para dizer as causas e as conseqüências de todas as doenças que acusarmos.

HARPAGON (surgindo ao fundo, à parte) – Graças a Deus não era nada!…

VALÉRIO (sem ver Harpagon) – E como último recurso, há a fuga, para ficarmos a salvo de tudo… E se o seu amor,minha querida Elisa, é capaz de uma atitude assim… (ele percebe Harpagon – mudando de tom) Sim, porque é precisoque uma filha obedeça a seu pai… Ela nem deve saber como seu marido é feito. E quando o argumento “sem dote!”entra em jogo, deve estar pronta a aceitar tudo o que lhe oferecerem!

HARPAGON – Bravo!… Bravo!… Eis o que é falar criteriosamente.

VALÉRIO – Senhor, eu peço perdão se o entusiasmo me arrebata e se eu falo com tanta audácia à sua filha…

HARPAGON – Como assim?!… Mas eu estou encantado. Valério, e quero que você exerça sobre ela uma influênciaabsoluta… (a Elisa) Não adianta hesitar, minha filha!… Eu dou a Valério toda autoridade que o céu me concedeu sobrevocê e desejo que você faça tudo o que ele ordenar.

VALÉRIO (a Elisa) – Depois disso, recuse os meus conselhos, se é capaz!… (a Harpagon) Eu vou com ela para o quintal,senhor… Continuarei a lição de obediência que estava dando…

HARPAGON – Naturalmente, rapaz… E muito obrigado…

VALÉRIO – Convém que não lhe deixemos forças para resistir…

HARPAGON – É claro…

VALÉRIO – Não se preocupe… Eu tenho a certeza de que ela acabará cedendo…

HARPAGON – Bravo… Muito bem, meu rapaz!… Eu vou dar um pulo até a cidade e votarei dentro em pouco…VALÉRIO (dirigindo a palavra a Elisa, enquanto saem) – O dinheiro é o mais precioso dos bens deste mundo, e deverender graças a Deus pelo honesto marido que seu pai lhe destina… Seu pai conhece a arte de viver. Quando nosoferecem aceitar uma jovem sem dote, nada mais deve ser levado em consideração… tudo está limitado, “sem dote!”é uma expressão que substitui a beleza, a mocidade, a fidalguia, a honra, a sensatez e a dignidade… (saem)

HARPAGON (sozinho) – Ah! Que rapaz excelente!… Fala como oráculo!… Felizes os que podem ter um empregado comoesse. 

ATO SEGUNDO

CENA I

Cleanto, La Flèche CLEANTO – Onde andaste metido?… Eu não tinha ordenado que me esperasses aqui?LA FLÈCHE – Tinha, patrão. E eu estava disposto a esperar… mas o senhor seu pai me botou para fora e quase mearrisquei a levar uma surra…

CLEANTO – Como vai nosso negócio? As coisas estão se complicando mais do que nunca e ainda há pouco eu soube que,alem de tudo, meu pai é meu rival…

LA FLÈCHE – Seu pai está apaixonado por D. Mariana?

CLEANTO – Está e tive um grande trabalho para ocultar o assombro que isso me causou.

LA FLÈCHE – Ele apaixonado?!… Mas do que se foi lembrar o infeliz!… Será que zomba de nós e será que o amor foifeito para homens de sua têmpera?

CLEANTO – Para maior desgraça minha, foi preciso que essa paixão lhe viesse à cabeça.

LA FLÈCHE – Mas por que o senhor não confessou o seu amor?

CLEANTO – Para me prevenir contra qualquer atitude e facilitar as manobras para impedir o seu casamento… Quenotícias me trazes?LA FLÈCHE – Ah! Patrão!… Aqueles que precisam de dinheiro são bem infelizes e devem aturar horrores quando têmque recorrerem aos usurários…

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CLEANTO – Não conseguiste nada?

LA FLÈCHE – Espere um pouco que eu explico… Nosso Mestre Simão, o corretor que nos indicaram, homem ativo echeio de atenções, disse que mexeu céus e terra para ser agradável ao senhor. E afirmou que anda perdido desimpatias por nós…

CLEANTO – Então eu terei os quinze mil francos de que preciso?

LA FLÈCHE – Sim, mas mediante certas condições que devem ser aceitas se quiser fazer negócio.

CLEANTO – Ele te apresentou à pessoa que vai emprestar o dinheiro?

LA FLÈCHE – Não. Essa pessoa tem mais cuidado em se ocultar que o senhor, e está cercado de um mistério bem maiordo que podemos imaginar. Mestre Simão não quer absolutamente dizer o seu nome, e está combinado que, ainda hoje,o senhor e o dono do dinheiro se encontrem em uma casa estranha, para que ele seja instruído pelo senhor mesmoquanto aos seus bens e à sua família. E eu estou certo de que bastará o nome de seu pai para facilitar tudo.

CLEANTO – Principalmente quando se sabe que minha mãe morreu, deixando uma herança que me pertence, dedireito.

LA FLÈCHE – Eis alguns artigos do contrato que ele ditou ao nosso corretor, para que o senhor fique a par dascondições, antes do encontro… (lendo) “supondo que o emprestador se considere em segurança e que o futuro credorseja de maior idade, pertencendo a uma família de amplos recursos, sólidos, nítidos e livre de qualquer embaraço,far-se-á um bom e correto contrato diante de um notório, o mais correto que se encontrar, escolhido peloemprestador, a quem importa muito que tal contrato seja redigido em boa e devida forma”.

CLEANTO – Preocupações muito naturais…

LA FLÈCHE – “O emprestador para não manchar a sua consciência, pretende entregar a quantia pedida aos juros de

seis por cento ao ano.”CLEANTO – Seis por cento, apenas?… Absolutamente honesto e não há razão para queixas.

LA FLÈCHE – De fato!… (lendo) “as como o emprestador não tem consigo a quantia em questão e como, para seragradável ao futuro credor, é obrigado a pedi-la a um terceiro, aos juros de vinte por cento, ficará combinado queesse futuro credor pague tal juro, sem prejuízo do resto, atendendo a que apenas para lhe ser agradável oemprestador realiza o negocio.”

CLEANTO – Como?!… Que espécie de judeu é esse homem?!… Um juro de vinte e seis por cento?!…

LA FLÈCHE – É o que está escrito aqui… Pode ler… E deve refletir antes de aceitar.

CLEANTO – Como queres que eu reflita? Tenho necessidade de dinheiro e preciso aceitar todas as exigências…

LA FLÈCHE – Foi o que eu disse a Mestre Simão.

CLEANTO – Há alguma coisa nesse papel?

LA FLÈCHE – Um pequenino artigo apenas: “Dos quinze mil francos pedidos, o emprestador só poderá dar, em dinheiro,

doze mil. Pelos três mil restantes, é preciso que o futuro credor leve os objetos, alfaias e móveis cuja lista se segue,posto à sua disposição de boa-fé e ao preço mais módico que se pode encontrar.”

CLEANTO – Hein?!… Que quer dizer isso?…

LA FLÈCHE – Ouça a lista: (lendo) “Uma cama de quatro pés, com guarnições da Hungria, aplicadas muito habilmentesobre um dossel azeitona, e a colcha do mesmo tom, bem como seis cadeiras, tudo muito conservado e revestido deum discreto pano vermelho e azul.”

CLEANTO – Mas o que é que eu vou fazer com isso?

LA FLÈCHE – Espere, patrão… Não é tudo… (lendo) “Mais um painel para parede, com linda pintura; mais uma grandemesa de nogueira, elástica e seis escabelos…”

CLEANTO – Mas tu não me dirás para que quero eu…

LA FLÈCHE – Um momento, patrão… Um momentinho… (lendo) “Mais três grandes mosquetes, guarnecidos de nácar,com três tripés… Mais um torno de pedra, com três retortas e dois recipientes, tudo muito útil às pessoas que se

dediquem à destilaria.”CLEANTO – Mas se eu…

LA FLÈCHE – Paciência, patrão… Há algumas coisas, ainda… (lendo) “Mais um alaúde de Bolonha, guarnecido de todasas suas cordas, ou com falta de pouquíssimas. Mas um jogo de damas, muito bom para passar o tempo, quando não setem que fazer… Mais um lagarto de três pés e meio, empalhado, curiosidade muito agradável para pendurar na parededo quarto de dormir. Tudo o que acima está mencionado, em bom calculo, vale quatro mil e quinhentos francos e écedido por três mil apenas, graças à boa vontade do emprestador.”

CLEANTO – Que a peste o sufoque com a sua boa vontade, o carrasco que ele é!… Já se viu usura semelhante?!… Nãobasta o juro doloroso que cobra, e ainda por cima quer me obrigar a adquirir por três mil francos os destroços quejuntou de qualquer naufrágio?!… Isso tudo, vendido, não me dará quinhentos francos e, entretanto, sou forçado aaceitar o que ele me propõe, pois o celerado parece que adivinhou a minha situação desesperadora!

LA FLÈCHE – O senhor está, patrão, com perdão da má palavra, no mesmo caso daquele homem que, para se arruinar,tomava dinheiro emprestado, comprava mais caro do que os outros, vendia mais barato e comia mais do que ganhava.

CLEANTO – Que queres que eu faça?… Eis a que ficam reduzidos os filhos pela maldita avareza dos pais. E há quem seespante, depois disso, quando desejamos que eles morram!…

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LA FLÈCHE – É preciso confessor que nesse assunto seu pai consegue irritar o homem mais santo do mundo. Eu, graçasa Deus, não tenho inclinações desonestas e sei conservar a minha consciência livre de pecados. Mas, com franqueza,seria para mim um prazer roubar seu pai, e roubando-o estou certo de que praticarei uma ação elogiável.

CLEANTO – Dá-me essa lista… Quero relê-la… CENA II

Harpagon, Mestre Simão, Cleanto, La Flèche

(os dois últimos ao fundo) SIMÃO – É um rapaz que precisa de dinheiro. Seus negócios exigem que ele o consiga e aceitará tudo o que lhe forproposto.

HARPAGON – Mas o senhor acredita que não haverá perigo nesse empréstimo?… E sabe o nome, a fortuna e a situaçãoda família do rapaz?

SIMÃO – Não… Não pude apurar isso e foi apenas por acaso que entrei em contato com uma pessoa de sua inteiraconfiança… Mas o próprio rapaz lhe dirá tudo. E a pessoa que falou comigo em nome dele garantiu que o senhor ficarásatisfeito. Tudo o que posso afirmar é que sua família é riquíssima, que ele é órfão de mãe e que se comprometerá, seo senhor quiser, a que o pai morra dentro de oito messes.

HARPAGON – Bem, isso já é qualquer coisa… A caridade, Mestre Simão, obriga-nos a servir ao próximo sempre quepodermos…

SIMÃO – É claro!…LA FLÈCHE (baixo, a Cleanto) – Patrão, patrão!… O nosso credor está falando com seu pai…

CLEANTO – Terá descoberto que sou eu, ou deixaste escapar algum indício que me comprometesse?…

SIMÃO (vendo La Flèche) – olá… Como estão apressados!… Quem disse que era aqui o encontro?!… (a Harpagon) Juro-lhe que não fui eu quem revelou o seu nome nem sua residência, Sr. Harpagon… Mas penso que não há grande malnisso… São pessoas discretas e podem combinar desde já o negocio…

HARPAGON – Como assim?!…

SIMÃO (indicando Cleanto) – O cavalheiro deve ser a pessoa que deseja tomar emprestado os quinze mil francos de quelhe falei…

HARPAGON – Como então, malandro, é você que se entre a essas criminosas negociações?…

CLEANTO – com que então, meu pai, é o senhor que se dedica a essas transações vergonhosas?…

(Simão foge e La Flèche vai se esconder)

HARPAGON – É você que quer se arruinar por empréstimos tão condenáveis?

CLEANTO – é o senhor que quer enriquecer por usuras tão criminosas?

HARPAGON – E você ainda ousa, depois disso, aparecer na minha frente?

CLEANTO – E você ainda ousa, depois disso, aparecer aos olhos do mundo?

HARPAGON – Mas então você não tem vergonha de chegar a tais deboches, de se lançar em despesas apavorantes e dedissipar tão vergonhosamente a fortuna que seus pais reuniram com tanto esforço?

CLEANTO – E o senhor não se envergonha de desonrar a sua condição pelos negócios que realiza, de sacrificar a glóriae reputação ao desejo insaciável de amontoar escudos, e de exigir, à maneira de juros, exorbitâncias inauditas atravésdas mais infames sutilezas que jamais inventaram os mais famosos usurários do mundo!…

HARPAGON – Para longe dos meus olhos, velhaco!… Para longe!…

CLEANTO – Na sua opinião, quem é mais velhaco?… Aquele que pese o dinheiro de quem necessita ou aquele que roubao dinheiro com o qual nada faz?…

HARPAGON – Retire-se já lhe disse!… E não me esquete os ouvidos!… (Cleanto sai pelo fundo, à esquerda) Afinal decontas, não me posso queixar dessa aventura… Serve de lição para que eu cuide mais do que nunca, do meu dinheiro. 

CENA III

Frosina, Harpagon FROSINA (ao fundo, à direita) – Sr. Harpagon…

HARPAGON – Espera um pouco, Frosina… Eu volto já, para falarmos… (à parte) Convém que eu vá ver um pouco se meudinheiro está passando bem… 

CENA IV

La Flèche, Frosina 

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LA FLÈCHE (sem ver Frosina) – Que estúpida aventura!… Mas para que o Sr. Harpagon tenha oferecido tantasquinquilharias é preciso que possua, em qualquer lugar, um armazém secreto. Nenhum dos objetos oferecidos éconhecido meu…

FROSINA – És tu, La Flèche?

LA FLÈCHE – Olá Frosina… Que vens fazer aqui?

FROSINA – O que faço sempre: tratar de negócios, ser prestativa e aproveitar, o mais possível, o meu talento. Nessemundo é preciso, antes de mais nada, saber viver, meu caro… E as pessoas como eu têm apenas, como rendimento, a

intriga e a astucia…LA FLÈCHE – E tens algum negocio com o Sr. Harpagon?

FROSINA – Tenho… Estou tratando de um caso para ele e espero uma recompensa…

LA FLÈCHE – Recompensa?!… Olha que será bem astuciosa se conseguires tirar qualquer coisa do celerado. Devoprevenir-te de que o dinheiro por aqui é muito caro… e muito caro…

FROSINA – Mas há certos serviços que alargam os cordões das bolsas, meu amigo.

LA FLÈCHE – Eu conheço o teu talento, mas tu não pareces conhecer o Sr. Harpagon. O Sr. Harpagon é, te todos oshumanos, o humano menos humano; de todos os mortais, o mortal mais duro. Não existe serviço algum que possalevar o seu reconhecimento ao ponto de fazê-lo abrir as mãos… O elogio, a estima, a benevolência de palavras, isso éà vontade… Mas dinheiro, absolutamente nada!… E mesmo nas suas gentilezas são tudo que existe de mais seco e demais árido. Tem tanta aversão ao verbo dar que nunca na vida chegou a dar um bom-dia… Ele empresta um bom-dia.

FROSINA – Qual!… Eu conheço a arte de cativar os homens… Possuo o segredo de conquistar-lhes as simpatias, deacariciar-lhes o coração e de achar os seus pontos fracos…

LA FLÈCHE – Com ele tudo falha. Duvido que alguém consiga enternecer o Sr. Harpagon em matéria de dinheiro!… Ele égenial na resistência. A gente arrebenta e ele nem se move. O Sr. Harpagon ama o dinheiro mais que a honra, areputação e a virtude. A simples vista de um pedinte dá-lhe convulsões. Pedir é feri-lo no seu ponto vulnerável, atingi-lo no coração, arrancar-lhe as entranhas… e se tu… mas ei-lo que volta!… Adeus!(sai pelo fundo, à direita) 

CENA IV

Harpagon, Frosina HARPAGON (baixo, à parte) – Vai tudo muito bem… (alto) Que é que há, Frosina?

FROSINA – Oh! Mas como o senhor está bem e como o seu rosto irradia saúde!…

HARPSGON – Fala sério?…

FROSINA – Nunca esteve tão bem-disposto e tão juvenil!HARPSGON – Sem pilheria?

FROSINA – O senhor nunca foi, em toda a sua vida, tão jovem quanto agora… Conheço rapazes de vinte e cinco anosque parecem mais velhos do que o senhor…

HARPSGON – Entretanto, Frosina, eu tenho sessenta, bem contados…

FROSINA – Ora, vamos!… O que é isso?… Sessenta anos… sessenta anos são a flor da idade e o senhor entra agora namais bela fase da vida de um homem…

HARPSGON – Concordo, mas vinte e cinco anos menos… não me faria muito mal, hein?…

FROSINA – O senhor ETA brincando!… Não precisa ser mais moço quem tem, como o senhor, a têmpera de homemdestinado a viver cem anos…

HARPSGON – Acreditas?…

FROSINA – Certamente… Tem todos os indícios… Espere um pouco… Oh! Aí esta entre os seus dois olhos um sinal de

vida longa…HARPSGON – Tens certeza disso?

FROSINA – Se tenho!… Mostre-me a sua mão… Que linha da vida!… Está vendo até onde vai essa linha?… Eu falava emcem anos, não é? Pois saiba que o senhor viverá, no mínimo, cento e vinte!…

HARPSGON – Será possível?!…

FROSINA – Nem se discute!… Afirmo que o senhor vai enterrar os seus filhos e os filhos dos seus filhos…

HARPSGON – Tanto melhor!… Escuta, Frosina: e o nosso negócio, como vai?

FROSINA – Às mil maravilhas!… Eu nunca me meto em um negócio que não o leve até o fim. E, sobretudo para oscasamentos, tenho um jeitinho maravilhoso. Não há bons partidos no mundo que eu não consiga, em pouco tempo,reunir. Creio que, se me desse na veneta, casaria a Sublime Porta com a República da Veneza… Está visto que o nossocaso é mais simples… Como freqüento a casa delas, pude falar longamente a seu respeito com uma e outra e disse àmãe de Mariana o sentimento que o senhor tinha pela filha, vendo passar pela rua ou aparecer à janela.

HARPSGON – Ela o que respondeu?FROSINA – Ficou satisfeitíssima. E quando eu transmiti o seu convite para que Mariana assistisse hoje, à noite, àcerimônia do contrato de casamento de sua filha Elisa, ela consentiu sem dificuldade. Serei eu a encarregada detrazer a moça aqui…

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HARPSGON – É que eu sou forçado a dar uma ceia ao Sr. Anselmo, Frosina, e assim aproveito e ofereço também àMariana…

FROSINA – Depois do jantar ela virá aqui, para visitar a sua filha, Sr. Harpagon. Em seguida pensa em dar uma voltapela feira… Após esse ligeiro passeio, viremos para a ceia…

HARPSGON – Pois podem ir à feira no meu carro…

FROSINA – É uma gentileza sua, Sr. Harpagon…

HARPSGON – Mas escuta, Frosina… Conversaste com a mãe dessa jovem sobre o dote que ela vai dar à filha?…

Insinuaste que, numa ocasião como esta, era necessário um pouquinho de esforço, um sacrificiozinho qualquer?!…Porque nós ainda não chegamos à época em que se recebe uma jovem por esposa sem que ela traga alguma coisa maisdo que sua própria pessoa.

FROSINA – Mas Mariana vai trazer doze mil francos de renda, por ano…

HARPSGON – Hein?!… Como?!… Doze mil francos?!…

FROSINA – Sim!… Antes de mais nada, ela foi criada com hábitos muito simples quanto a despesas de boca. Não faráquestão de mesa farta e variada, de pratos caros e esquisitos. Só aí, temos uma economia de três mil francos porano… Fora isso, em matéria de vestuário, jóias e móveis, também não é muito exigente… Não gosta de jogo, um víciotão em moda hoje, entre as mulheres… Faça as contas de tudo que economizará casando-se com ela e juro-lhe que vaiencontrar os doze mil francos que lhe falei…

HARPSGON – Está bem, Frosina, Está bem!… Tudo isso é muito agradável de saber, mas não representa, de fato, umvalor real…

FROSINA – Como?!… Não representa um valor real para o senhor, receber em casamento uma moça de grande

sobriedade, a herança de um grande amor à modéstia e a aquisição de um grande ódio pelo jogo?HARPSGON – Parece até brincadeira querer constituir um dote com as despesas que ela não fará… Sim, porque eu nãoirei passar recibo daquilo que não receber… Para me convencer, Frosina, preciso tocar qualquer coisa de palpável…

FROSINA – Mas o senhor tocará em muitas coisas, meu Deus!… Elas lhe falarão de um país onde possuem bens dos quaiso senhor será o domo, um dia…

HARPSGON – É, mas preciso saber disso, ao certo… Há ainda uma coisa que me inquieta, Frosina… Ela é jovem, comobem sabes, e os jovens, de ordinário, só gostam de jovens… Tenho medo de que um homem da minha idade não possaagradar muito a uma moça, e receio que isso venha a produzir, no casal, certas desordens desagradáveis de suportar…

FROSINA – Como o senhor conhece mal Mariana!… É uma outra virtude dessa preciosidade: ela tem uma aversãoespantosa por todos os moços e só gosta dos velhos…

HARPSGON – De fato, mesmo?!…

FROSINA – Eu gostaria que o senhor a ouvisse falar sobre isso… Não pode suportar absolutamente a presença de um

rapaz… Segundo o que me afirmou várias vezes, fica encantada vendo um velho com sua barba majestosa… Os maisvelhos são, para ela, os mais encantadores… e o senhor deve ter o cuidado de não parecer mais moço do que é… Elaexige um sexagenário. Há quatro meses ainda, rompeu um casamento no dia em que o noivo declarou que tinhaapenas cinqüenta e seis anos e que não precisava de óculos para assinar o contrato…

HARPSGON – Só por isso?!…

FROSINA – Naturalmente!… Pois se ela exige sessenta anos, cinqüenta e seis não bastam!… E olhe: tem loucura pelosnarizes que carregam óculos.

HARPSGON – Mas isso é incrível!

FROSINA – E ainda há melhor… No seu quarto há várias estampas e quadros. Não faz idéia de quem sejam?… Adônis,Apolos, criaturas belas e moças?… Nada disso!… Lindos retratos do rei Príamo, do velho Nestor e do decrépitoAnquises, sobre os ombros do filho…

HARPSGON – É adorável o que me dizes, Frosina!… Eis o que eu nunca poderia imaginar e fico satisfeitíssimo de saber!… De fato, se eu fosse mulher, jamais gostaria de um homem moço.

FROSINA – Acredito. Os homens moços são sempre prejudiciais… não sei o que há neles digno de ser amado…HARPAGON – Nem eu. E não compreendo por que há mulheres que gostam tanto de homens moços…

FRISINA – Loucas varridas!… Acham que a mocidade é agradável!… Falta de senso!… Os moços são uns desmiolados!…

HARPAGON – É o que eu digo todos os dias… Com suas atitudes de conquistadores, seus ares artificiais, suas cabeleirasde estopa, seus estômagos cheios de coisas complicadas…

FRISINA – O que vale são os homens como o senhor!… Isso sim, é que podemos chamar de homem!… Qualquer coisa queagrada a vista… Assim é que todos deveriam ser feitos e vestidos para inspirar o amor…

HARPAGON – Você acha que eu estou bem?…

FRISINA – E como não?!… O senhor é maravilhoso e digno de um quadro clássico!… Volte-se um pouco, por favor… Nãose pode ser melhor… Caminhe, por obséquio… Que corpo bem modelado, ágil e elegante… sem nenhuma perturbação.

HARPAGON – Graças a Deus, a única coisa do que me queixo é do meu defluxo, de quando em quando.

FRISINA – Ora, que importância tem isso!… Seu defluxo tem mesmo um ar simpático e o senhor fica até com uma certa

graça quando tosse…HARPAGON – Escuta, Frosina… Mariana ainda não me viu, ainda não me notou… de passagem?…

FRISINA – Não, mas confesso que temos conversado muito a seu respeito. Fiz-lhe um retrato fiel do senhor e nãoesqueci de enaltecer os seus méritos e as vantagens que ela teria com esse casamento…

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HARPAGON – Bravo!… Fizeste muito bem, eu te agradeço…

FRISINA – A propósito, Sr. Harpagon, eu tenho um pedidozinho a fazer… (ele assume ar de severo) Ando com umprocesso pela justiça, que estou prestes a perder por falta de um pouco de dinheiro… Lembrei-me que o senhorpoderia salvar a situação, com um pouquinho de boa vontade… (mudando de tom) Não imagina o prazer que ela teráem vê-lo… (ele retoma o seu ar de satisfeito) Oh! Como o senhor vai agradar a essa jovem!… E que impressãoformidável vai causar no seu espírito!… Ela ficará encantada sobretudo com os seus calções presos ao gibão poragulhetas… Um noivo agulhetado será para ela um pratinho delicioso…

HARPAGON – Muito obrigado, Frosina!… muito obrigado!…

FRISINA – Na verdade, Sr. Harpagon, esse processo tem para mim conseqüências enormes… (ele retoma a sua carasevera) Se eu perder ficarei arruinada e um pequeno auxílio seria para mim de grande utilidade… (mudando detom) Gostaria que o senhor visse a satisfação com que ela me ouvia falar a seu respeito… (ele retoma seu ar desatisfeito) Uma intensa alegria brilhava naqueles lindos olhos, ao escutar a descrição de seus méritos… Em resumo:ficou numa impaciência formidável para ver logo concluído o casamento.

HARPAGON – Que grande prazer tu me causas, Frosina!… Um grande prazer!…

FRISINA – Peço-lhe, Sr. Harpagon, que não me negue o auxílio de que necessito…

HARPAGON (ele retoma seu ar de severo) – Adeus, minha filha… Vou acabar umas cartas urgentes…

FRISINA – Asseguro-lhe. Sr. Harpagon, que ficarei eternamente grata ao que fizer…

HARPAGON – Preciso dar umas ordens para que o meu carro esteja pronto a fim de levar vocês à feira…

FRISINA – Juro-lhe que não ousaria importuná-lo se a necessidade não fosse tão forte…

HARPAGON – … E terei o cuidado de fazer servir o jantar cedo bastante para que não sintam muita fome…

FRISINA – Não me recuse o que lhe peço Sr. Harpagon!… Nunca imaginará o prazer que…

HARPAGON – Bem!… Vou indo… Parece que alguém está me chamando lá dentro… Até breve, Frosina… (sai pela direita)

FRISINA (sozinha) – Que a febre te sufoque e te destrua, miserável!… O ladrão fugiu a todos os meus ataques… Masapesar de tudo, eu não desisto!…

ATO TERCEIRO

CENA I

Harpagon. Cleanto, Elisa, Valério, D. Cláudia, Joaquim, Brindavoine, Merluche HARPAGON – Vamos a saber as minhas ordens… D. Cláudia, aproxime-se… (ela tem uma vassoura nas mãos) Bravo!…Pronta para o combate… Limpe direitinho, mas sobretudo tenha o cuidado de não esfregar muito os móveis, para nãogastá-los depressa. Além disso, fica encarregada e zelar pelas garrafas durante o jantar… Se desaparecer alguma ou se

quebrar qualquer coisa, será descontada em seus ordenados…JOAQUIM – (à parte) – Castigo político!

HARPAGON – Pode ir… (Cláudia sai) Tu, Brindavoine, e tu, Merluche, ficam encarregados de lavar os copos e servir asbebidas, mas apenas quando houver sede, sede de fato, e não segundo os costumes de certos lacaios impertinentesque provocam as pessoas, fazendo-as beberem quando elas nem se lembram disso… Esperem sempre que osconvidados peçam e nunca atendam ao primeiro pedido… Lembrem-se de que há muita água nas nossas bicas.

JOAQUIM (á parte) – Claro!… O vinho puro sobe à cabeça…

MERLUCHE – Devemos despir os guarda-pós, meu amo?

HARPAGON – Sim, mas só quando os convidados chegarem. E muito cuidado para não sujarem as roupas.

BRINDAVOINE – O senhor bem sabe, patrão, que um dos lados do meu gibão está manchado de azeite!

MERLUCHE – E o meu calção está rasgado nos fundilhos, deixando ver, com perdão da má palavra…

HARPAGON – basta!… Arranja-te para ficar sempre de costas para a parede e de frente para os convidados… (põe seu

chapéu diante do próprio gibão, para mostrar a Brindavoine como se deve proceder para ocultar a mancha deóleo) Conserva o teu chapéu sempre assim, enquanto estiveres servindo… (saem os dois – a Elisa) Quanto a você,minha filha, preste atenção à retirada dos pratos e copos, e tome cuidado para que não haja prejuízos. É umaocupação digna de uma moça… Mas prepare-se para receber convenientemente a minha noiva, que vem aqui visitá-la,e leve-a consigo à feira… Está ouvindo o que eu digo?…

ELISA – Estou, meu pai. (sai pela esquerda)

HARPAGON – E o senhor, filho ingrato a quem eu perdôo aquele negócio do empréstimo, não caia na asneira de fazermá cara a essa moça, hein?!…

CLEANTO – Eu, meu pai, fazer má cara?!… Por que julga que farei isso?…

HARPAGON – Eu bem conheço a atitude dos filhos cujos pais tornam a casar e de que maneira eles olham para aspessoas com quem são forçados a chamar de madrasta… Mas se o senhor deseja que eu esqueça a sua última aventura,deve ser bastante cortês para com a minha futura esposa, fazendo-lhe a melhor acolhida possível!

CLEANTO – Para ser franco, meu pai, não me sinto muito à vontade com a idéia de que ela será minha madrasta.

Mentiria se afirmasse isso… Mas quanto a recebê-la bem e ser gentil para com ela, posso garantir que obedecereicegamente…

HARPAGON – Ao menos procure dissimular… (sai Cleanto) Agora, Valério, ajude-me… Joaquim, aproxime-se… Deixei-ode propósito para o fim

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JOAQUIM – è ao cocheiro ou ao cozinheiro que o senhor vai falar?… Porque aqui eu sou duas coisas.

HARPAGON – É aos dois.

JOAQUIM – Mas qual deles em primeiro lugar?

HARPAGON – Ao cozinheiro.

JOAQUIM – Um momento, então… (tira seu casaco de cocheiro e aparece vestido de cozinheiro)

HARPAGON – Que cerimonial é esse?!…

JOAQUIM – Pode falar ao cozinheiro, patrão.

HARPAGON – Estou resolvido a dar um jantar, hoje.

JOAQUIM – Que milagre!

HARPAGON – Está disposto a fazer as coisas convenientemente?

JOAQUIM – Claro, se o senhor me der o dinheiro necessário!

HARPAGON – mas que horror, meu Deus!… Dinheiro, sempre dinheiro!… Parece que eles não têm outra coisa paradizer… “Dinheiro, dinheiro, dinheiro!”… Uma palavra só: dinheiro!… Eis o livro de cabeceira de todos vocês: dinheiro!Sem dinheiro não se sabe fazer nada!

VALÉRIO – Nunca vi resposta mais impertinente do que essa que deu!… Que grade vantagem, fazer as coisas comoconvém, desde que haja dinheiro bastante… Mais isso é a coisa mais fácil do mundo e não há cretino que não possarealizá-la!… A maior habilidade consiste em fazer bem, com pouco dinheiro…

JOAQUIM – Bem… com pouco dinheiro?!… Palavra de honre, Sr. Intendente, que eu gostaria de saber o segredo desseprocesso e peço-lhe que assuma, desde já, o meu cargo de cozinheiro…

HARPAGON – Cale-se!… Diga o que precisa…JOAQUIM – nada, nada, patrão!… Eis ali o Sr. Intendente que sabe fazer as coisas muito bem, com pouco dinheiro…

HARPAGON – Irra!… Não me aborreça!… Eu quero que responda ao que perguntei!…

JOAQUIM – Quantas pessoas há para o jantar?

HARPAGON – Teremos oito ou dez convidados, mas calculemos por oito, porque onde comem oito, comem,perfeitamente, dez…

VALÉRIO – Lógico!

JOAQUIM – Precisamos então de… entrada, sopa e cinco pratos…

HARPAGON – Você quer alimentar uma cidade inteira?

JOAQUIM – um assado…

HARPAGON (pondo a mão sobre a boca do criado) – Cale-se, traidor, que eu vou ficar arruinado!

JOAQUIM – Precisamos de…HARPAGON (idem) – E ainda insiste?…

VALÉRIO – será que você quer arrebentar todo mundo?… e que o patrão convidou amigos para assassiná-los à força decomida?… Leia um pouco os preceitos da saúde e pergunte aos médicos se há alguma coisa de mais prejudicial quecomer em excesso!

HARPAGON – Isso mesmo!… Isso mesmo!…

VALÉRIO – Fique sabendo, mestre Joaquim, e ensine aos seus colegas, que uma mesa muito farta é um crime!… Quepara nos mostrarmos amigos daqueles a quem convidamos é preciso que a frugalidade reine nos jantares queoferecemos… E que, segundo um filósofo célebre: “É preciso comer para viver e não viver para comer”…

HARPAGON – Bravo!… Que bela frase!… Meus parabéns, Valério!… Eis a mais bonita sentença que já ouvir na vida… “Épreciso viver para comer e não comer…” Não, não é isso!… Como é mesmo?

VALÉRIO – “É preciso comer para viver e não viver para comer.”

HARPAGON – Isso, Isso!… (a Joaquim) Está ouvindo, traidor?!… (a Valério) Quem foi o grande homem que disse isso?!…VALÉRIO – Não me lembro mais do nome…

HARPAGON – Pois há de me escrever isso direitinho, Valério, para que faça gravar essa sentença em letras douradas naparede da sala de jantar…

VALÉRIO – Não tenha medo… E quanto ao jantar, deixe tudo por minha conta… Eu arranjarei as coisas da melhormaneira…

HARPAGON – Está bem…

JOAQUIM – Tanto melhor, porque assim eu não terei muito trabalho.

HARPAGON (a Valério) – Devemos arranjar pratos que satisfaçam depressa, sem a necessidade de comer muito… Muitasgorduras e massas bem pesadas…

VALÉRIO – Descanse, Sr. Harpagon…

HARPAGON – Agora, Mestre Joaquim, é preciso limpar a minha carruagem…

JOAQUIM – Um momento… Isso é com o cocheiro… (veste o casaco) O senhor dizia que…HARPAGON – Que é preciso limpar a minha carruagem e ter os cavalos prontos para uma visita à feira…

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JOAQUIM – Seus cavalos, meu amo?… Mas eles não estão, absolutamente, em condições de andar! Não direi queestejam de cama… Porque nem mesmo cama têm… Mas o senhor os obriga a jejus tão rigorosos que os pobres animaisnão são mais do que vagas idéias, fantasmas apenas… espécies… de cavalos.

HARPAGON – Então adoeceram de não fazer nada!…

JOAQUIM – E como nada fazem, patrão, nada devem comer?… Valeria mais a pena se trabalhassem bastante ecomessem melhor… Corta-me o coração vê-lo assim debilitados… Porque, afinal de com tas, eu tenho a minha ternurapelos pobres bichos… e parece que também sofro com sofrimento deles… Muito do que me cabe em matéria de comidaeu dou aos infelizes animais,patrão, porque acho que é feio não ter piedade pelo seu próximo.

HARPAGON – Mas um passeio à feira não é trabalho assim tão grande…

JOAQUIM – Não, meu amo, eu não terei coragem de conduzi-los, e sentirei ter que bater-lhes com o chicote, no estadoem que eles estão… Como quer que arrastem uma carruagem, se nem a si próprios se podem arrastar?

VALÉRIO – Eu pedirei ao cocheiro do vizinho para levar o carro, meu patrão… è melhor mesmo que Mestre Joaquimfique em casa, para não atrasar o jantar…

JOAQUIM – Façam o que quiserem… Prefiro que os pobres animais morram das chicotadas de um outro…

VALÉRIO – Mestre Joaquim é bastante impertinente!

JOAQUIM – O Sr. Intendente é bastante habilidoso!

HARPAGON – Basta!…

JOAQUIM – Patrão, eu não posso suportar aduladores!… E vejo que ele fez, com as suas eternas fiscalizações sobre opão, a lenha, o sal, o vinho e o azeite, um trabalhinho muito hábil para conquistar as suas graças… Irrito-me com isso,e zango-me todos os dias ouvindo o que dizem por aí do senhor… Porque, afinal de contas, eu também sinto pelosenhor uma certa afeição… Depois dos cavalos, o senhor é a pessoa a quem eu mais estimo…HARPAGON – Eu poderia saber, Mestre Joaquim, o que dizem de mim por aí?…

JOAQUIM – Talvez, patrão, se eu tivesse a certeza de que não se zangaria…

HARPAGON – Mas eu não me zangarei. Mestre Joaquim… Ao contrário… Terei um grande prazer em ouvi a opinião alheiaa meu respeito…

JOAQUIM – Visto que insiste, eu direi francamente que o senhor é motivo para todos os deboches… Que ouvimos emtodos os lugares, mil pilhérias a seu respeito… Que mil e uma anedotas circulam sobre as suas atitudes íntimas… Umdiz que o senhor faz imprimir, secretamente, falsos almanaques do ano, para dobrar os dias de jejum e de vigília, afim de economizar na alimentação de seus criados… Outro afirma que sempre que vai pagar ordenados ao pessoaldoméstico o senhor faz chicana e prejudica nas contas… Este conta que certa vez o senhor processou um gato queroubou da cozinha um pedaço de carneiro… Este outro, que o senhor foi surpreendido, uma noite, a roubar a aveia desuas próprias cavalariças e que seu cocheiro nessa época, estando no escuro, não pode reconhecer o ladrão e deu lheum enorme surra… Que quer mais, patrão?… Não podemos entrar num fornecedor sem ouvir histórias… O senhor é a

fábula e a galhofa de todo mundo… E nunca falam do senhor sem empregar palavras duras: avarento, chicaneiro,ladrão…

HARPAGON (agredindo-o) – E você é idiota, cretino. Vagabundo, malcriado!…

JOAQUIM – Eu bem dizia que o senhor ia ficar zangado ouvindo a verdade!…

HARPAGON – Pois aprenda como se deve dizer a verdade!… (sai pela direita) CENA II

Valério, Joaquim VALÉRIO (rindo) – Pelo que se pode ver, Mestre Joaquim, pagaram mal a sua franqueza!…

JOAQUIM – Irra, senhor recém-chegado que toma ares de importante!… Que é que o senhor tem com isso?… Ria-se das

surras que receber, quando chegar a sua vez, mas não venha rir das que os outros recebem…VALÉRIO – Oh! Mestre Joaquim!… Não se zangue, por favor!…

JOAQUIM (baixo, à parte) – Ele está mansinho!… Vou fazer o valentão e, se ele não reagir, cobro as pancadas querecebi… (alto) O senhor sabe, cavalheiro risonho, que eu não acho graça nenhuma nisso?… E que se o senhor meesquentar a cabeça rirá de maneira diferente?… (empurra Valério para o fundo da cena, ameaçando-o)

VALÉRIO (fingindo-se amedrontado) – Mas o que é isso, Mestre Joaquim?… Calma!…

JOAQUIM – Calma, por quê?.. o senhor não me agrada, sabe?… É um impertinente!

VALÉRIO – Mas… Mestre Joaquim…

JOAQUIM – Não há Mestre Joaquim nem meio Mestre Joaquim!… Se eu apanhar uma bengala liquido num relâmpago asua importância!

VALÉRIO – Como?… Uma bengala?!… Mas aqui está uma… (obriga Joaquim a recuar na mesma distância em que recuou)

JOAQUIM – Quer dizer…

VALÉRIO – fique sabendo, valentão das dúzias, que eu sou homem para manejar uma bengala melhor do que imagina!…JOAQUIM – Não duvido, Sr. Intendente!…

VALÉRIO – sabe que, feita as contas, não passa de um idiota?

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JOAQUIM – Sei, sim senhor.

VALÉRIO – e que não conhece ainda o meu gênio?

JOAQUIM – Desculpe, Sr. Intendente!…

VALÉRIO – Estava, então, disposto a me surrar, hein?..

JOAQUIM – Era brincadeira!…

VALÉRIO – Mas eu não gosto de brincadeiras, ouviu?!… (dá-lhe duas ou três pancadas com a bengala) E o senhor é umbrincalhão de muito mau gosto!… (sai pela direita)

JOAQUIM (sozinho) – Maldita seja a sinceridade!… É péssimo ofício!… Para o futuro renuncio a ser sincero e jamaisdirei a verdade… Ainda quanto ao patrão, passa… ele tem, mais ou menos, o direito de me bater… Mas quanto a esseSr. Intendente… Bem1… Ele não perde por esperar...

CENA III

Mariana, Frosina, Mestre Joaquim

FROSINA – Sabe se seu patrão está em casa, Mestre Joaquim?

JOAQUIM – Infelizmente eu tenho a certeza que está…

FROSINA – Então faça o favor de ir dizer-lhe que nós já chegamos… (Joaquim sai pela direita) CENA IV

Mariana, Frosina MARIANA – Ah! Frosina!… Que terrível situação!…

FROSINA – Por quê?

MARIANA – Você ainda pergunta?… Não compreende, então, as torturas de uma vítima prestes a ver o suplício ao qualquerem entregá-la?…

FROSINA – O que eu compreendo é que, para morrer agradavelmente, Harpagon não é bem o suplício que desejaria… Ecompreendo também que o jovem galã, de quem me falou, está perturbando um pouco seu espírito…

MARIANA – Sim, Frosina… É uma coisa que eu não posso ocultar… As respeitosas visitas que ele fez à nossa casacausaram na minha alma grande impressão, confesso francamente…

FROSINA – Mas ao menos soube quem era ele?MARIANA – Não, eu não sei quem é… Mas sei que ele é feito para ser amado… que, se me fosse permitido escolher, eraa ele que eu escolheria… que a sua lembrança contribui fortemente para transformar em um suplício espantoso omarido que me querem dar…

FROSINA – Eu bem conheço esses galãs de hoje!… São todos muito agradáveis e dizem coisas muito lindas… Mas namaioria são velhacos como ratos… e vale mais a pena ter um marido rico, que, embora velho, saiba dar conforto aesposa… Confesso que o coração não fala essa linguagem e que haverá alguns aborrecimentos com um marido jápassado… Mas nosso homem não dura muito e, quando ele morrer, você ficará em condições de escolher um maridomais galante, para consertar o que estiver torto…

MARIANA – Negócio esquisito, esse, Frosina… Para sermos felizes, precisamos esperar a morte de alguém… Mas nemsempre a morte está de acordo com os nossos desejos e com os nossos projetos…

FROSINA – Qual!… Você só se casa com a condição de ficar viúva depressa… Aliás, isso deve constar no contratonupcial… E ele seria importuno se não morresse dentro de três ou quatro meses… Ei-lo que chega!…

MARIANA – Oh!… Frosina!… Que cara!… CENA V

Harpagon, Frosina, Mariana HARPAGON (A Mariana) – Não repare, minha jovem, se eu apareço na sua frente de óculos… Bem sei que os seusencantos são bastante visíveis para dispensarem que usemos óculos… Mas, enfim, é com os óculos que se observam osastros e eu afirmo que você é um astro, o mais lindo, o mais brilhante que existe no país dos astros… (baixo, aFrosina) Frosina, ela não diz uma palavra e não parece muito satisfeita com a minha presença.

FROSINA – É a surpresa, muito natural… E além disso, as moças castas ficam sempre envergonhadas de revelar o quesentem…

HARPAGON – É mesmo… (a Mariana) Aqui está, minha jovem, a minha filha Elisa, que vem cumprimentar a sua beleza…

CENA VI

Elisa, Harpagon, Frosina, Mariana

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 MARIANA – Peço desculpas, senhorita, de ter retardado tanto esta visita de hoje.

ELISA – A senhorita fez hoje o que já deveria ter feito há muito tempo…

HARPAGON – Está vendo como é bem educada a minha filha?… E como é crescida?… Bem diz o ditado: “Erva má crescesempre”…

MARIANA (baixo, a Frosina) – Que homem desagradável!

HARPAGON (idem) – O que foi que ela disse?

FROSINA – Que o senhor é muito espirituoso!…

MARIANA (a parte) – Que idiota!

HARPAGON – Sua opinião a meu respeito muito me desvanece…

MARIANA (a parte) – Não sei como suportar isso!…

HARPAGON – Eis aqui meu filho que vem render homenagem aos seus encantos, minha jovem.

MARIANA (baixo, a Frosina) – É justamente o moço de quem eu falava…

FROSINA – Que maravilhosa aventura, meu Deus!…

HARPAGON – Vejo que está surpresa ao saber que tenho filhos tão crescidos… Mas dentro de pouco tempo estarei livrede um e outro… 

CENA VII

Cleanto, Elisa, Harpagon, Frosina, Mariana CLEANTO (a Mariana) – Para ser franco, minha senhora, devo dizer que esta é uma aventura com a qual eu jamaiscontaria!… E meu pai conseguiu me surpreender bastante quando me revelou, há pouco, os projetos que formara…

MARIANA – Posso dizer que o mesmo me aconteceu quando tive conhecimento desses projetos. E confesso que nãoestava preparada para semelhante aventura…

CLEANTO – É verdade, minha senhora, que meu pai não poderia ter feito uma escolha mais feliz e que isso meproporciona a grande alegria de poder vê-la… Contudo, não garanto que me alegre a perspectiva de tê-la pormadrasta, é um… Um galanteio, confesso, é um sacrifício para mim. E o título de madrasta é o que menos desejo paraa senhora… O que eu digo poderá parecer brutal aos ouvidos de muitos, mas estou certo de que saberá compreendercomo ninguém o sentido das minhas palavras. Saberá julgar a repugnância que eu sinto por esse casamento e, sabendoquem sou, não ignora o quanto ele fere os meus interesses… E permita que eu lhe diga, com licença de meu pai, que

se as coisas dependessem de mim, o enlace não se realizaria…HARPAGON – Ora, aí está um discurso bem impertinente, senhor meu filho!

MARIANA (a Cleanto) – E eu, como resposta, tenha a dizer que penso da mesma maneira. E se o senhor temrepugnância em me ver como madrasta, eu ano tenho menos em vê-lo como meu enteado. Não receia, peço-lhe, queseja eu a causadora dessa situação. Muito me custaria que, por minha culpa, tivesse qualquer aborrecimento… E senão fossem circunstâncias imperiosas e absolutas, dou-lhe a minha palavra de que também eu não consentiria nessecasamento que tanto lhe desagrada.

HARPAGON – Muito bem dito!… Para um cumprimento estúpido, só resposta igual… Peço-lhe desculpas, minha jovem,das impertinências de meu filho… É um rapaz tolo, Que não mede as conseqüências das palavras que diz…

MARIANA – Acredite que nada do que ele disse me ofendeu. Ao contrário, teve a gentileza de me explicar nitidamentea natureza de seus sentimentos. Agradeço as revelações que fez. Se ele tivesse falado de maneira diversa, eu nunca oprejudicaria!…

HARPAGON – É muita bondade sua querer desculpar, assim, o seu erro… O tempo torná-lo-á mais sensato e há de ver

que ele modificará os seus sentimentos…CLEANTO – Não, meu pai!… Eu sou capaz de mudar e peço-lhe, minha senhora, que acredite sinceramente nisso!

HARPAGON – Mas que rapaz irritante!

CLEANTO – o senhor queria que eu mentisse ao meu próprio coração?

HARPAGON – O senhor quer ou não quer mudar de assunto?

CLEANTO – Está bem, meu pai… Visto que assim o deseja, exigindo que eu fale de outra maneira… (a Mariana) Permita,minha senhora, que eu me coloque no lugar de meu pai e confesse, em seu nome, nunca no mundo ter visto nada detão encantador quanto a senhora… Que o título de “seu esposo” é uma glória, é uma ventura maior do que o destinade todos os grandes príncipes do mundo… Sim, minha senhora, a felicidade de possuí-la é, aos meus olhos, a mais belade todas as fortunas… Minha ambição está presa a isso. E nada existe que eu não seja capaz de tentar para umaconquista tão preciosa… Os obstáculos mais poderosos…

HARPAGON – Calma, rapaz!… Calma!…

CLEANTO – Estou falando em seu nome, meu pai…HARPAGON – Sim, mas eu tenho ainda uma língua para me explicar pessoalmente e ainda não tenho necessidade de umprocurador como você… Vamos sentar?

(Entram Brindavoine e Valério)

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FROSINA – É melhor irmos logo à feira, para voltarmos mais cedo… e para que tenham tempo, depois, de conversarmelhor…

HARPAGON (a Brindavoine) – Atrelem os cavalos à carruagem… (a Mariana) Peço-lhe que me desculpe, linda jovem…por não ter pensado em oferecer qualquer coisa antes do passeio à feira…

CLEANTO – Eu pensei nisso, meu pai, e mandei buscar, em seu nome, laranjas da china, limões doces e confeitos.

HARPAGON (baixo, a Valério, sufocado) – Valério!…

VALÉRIO (baixo, A Harpagon) – Ele está maluco!…

CLEANTO – Não será isso bastante, meu pai?… a senhora terá a bondade de desculpar a minha inexperiência em taisassuntos…

MARIANA – Era perfeitamente desnecessário qualquer incômodo.

CLEANTO – A senhora já viu, em qualquer lugar, um diamante mais belo do que aquele que meu pai usa no dedo,minha senhora?…

MARIANA – De fato, ele brilha bastante…

CLEANTO (tirando a jóia do dedo do pai e oferecendo a Mariana) – Pode vê-lo à vontade…

MARIANA – è mesmo magnífico e lança chispas maravilhosas…

CLEANTO (colocando-se diante de Mariana e impedindo-a de restituir o anel) – Pode vê-lo á vontade… E não precisadevolvê-lo. Ele está em muito boas mãos… É um presente que meu pai tem a honra de fazer à sua noiva…

HARPAGON – Eu?!…

CLEANTO – Não é verdade, meu pai, que o senhor deseja que ela guarde o diamante, como penhor da amizade que lhe

tem?…HARPAGON (baixo, ao filho) – Traidor!…

CLEANTO – A senhora dá motivo a que meu pai se irrite comigo!…

HARPAGON (baixo, ao filho) – Assassino!… Traidor!… Miserável!…

CLEANTO – A senhora vai fazê-lo adoecer!… Por favor, não resista por mais tempo!…

FROSINA (a Mariana) – Pelo amor de Deus, menina!… Guarde o anel, visto que o cavalheiro assim o deseja!…

MARIANA (a Harpagon) – Para não irritá-lo mais, senhor, aceito… e esperarei a oportunidade para agradecer melhoresta dádiva… 

CENA VIII

Cleanto, Elisa, Harpagon, Frosina, Mariana, Brindavoine

BRINDAVOINE – Patrão, está aí um homem que procura pelo senhor…

HARPAGON – Agora estou ocupado. Ele que volte mais tarde ou outro dia…

BRINDAVOINE – Ele diz que traz dinheiro…

HARPAGON – Hein?!… Ah! (a Mariana) Desculpe… Eu volto já… CENA IX

Cleanto, Elisa, Harpagon, Mariana, Merluche MERLUCHE (entra correndo e quase derruba Harpagon) – Patrão, patrão…

HARPAGON – Oh! Desastrado, que me matas!…CLEANTO – Está machucado, meu pai?…

HARPAGON – Não… (afasta-o) Naturalmente o imbecil recebeu dinheiro dos meus credores para me assassinar!

VALÉRIO (a Harpagon, ajudando-o) – Não foi nada!…

MERLUCHE – Patrão, eu peço desculpas, mas pensei que fazia bem vindo mais depressa…

HARPAGON – Que queres?!…

MERLUCHE – Vim avisar que os dois cavalos estão desferrados…

HARPAGON – Levem-nos então à ferraria… Depressa…

CLEANTO – Enquanto esperam, vou fazer pelo senhor as honras da casa… e conduzir a senhora ao jardim, onde fareiservir o lanche…

HARPAGON (baixo, a Valério) – Toma cuidado com esses esbanjamentos e procure evitar que comam demais…

VALÉRIO – Não tenha receio!… Pode contar comigo!…

HARPAGON – Oh! Filho desnaturado!… Terá ele acaso a preocupação de me arruinar?!… 

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ATO QUARTO

CENA I

Frosina, Elisa, Mariana, Cleanto

CLEANTO – Aqui estaremos muito melhor e não teremos criaturas suspeitas perto de nós. Podemos falar livremente.

ELISA – Meu irmão me confessou o amor que tem por você, Mariana, e conhecendo os obstáculos que existem PE com

uma ternura extremo que me interesso pela ventura de vocês.MARIANA – Sinto-me consolada em verificar o interesse que desperto em uma criatura como você, Elisa. Peço-lhe queme conserve sempre a sua generosa amizade, capaz de aplacar todas as crueldades do meu destino.

FROSINA – Vocês dois são infelizes apenas porque não me avisaram, antes, do que acontecia… Eu saberia afastar essasaflições e as coisas não teria chegado ao que chegaram…

CLEANTO – Que queres?… É meu destino!… Mas afinal, minha querida Mariana, quais são as suas intenções?

MARIANA – Ai de mim!… Estarei, acaso, em condições de resolver qualquer coisa?… E na dependência em que meencontro, obrigada a obedecer minha mãe, posso tomar qualquer resolução?

CLEANTO – Nem um outro apoio existe para mim, no meu coração, além de simples esperanças?…

MARIANA – Que poderei dizer eu em resposta?… Coloque-se em meu lugar e veja o que posso fazer. Resolva… Ordene,mesmo… Eu me entrego em suas mãos e acredito-o bastante razoável para nada exigir de mim que não seja permitidopela honra e pela decência…

CLEANTO – Ao que me reduz essa impressão dos limites aborrecidos da mais rigorosa honradez e da mais escrupulosadecência…MARIANA – Mas o que você quer que eu faça?… Mesmo que eu pudesse vencer a multidão de preconceitos que esmagamo nosso sexo, sou forçada a certa condição por minha mãe. Fui por ela educada com uma ternura extrema e jamaispoderei causar-lhe qualquer mágoa… Trabalhe junto a ela… Empregue todos os meios para conquistar o seu espírito.Pode fazer e dizer tudo o que quiser, eu autoriza a isso. E se bastar que eu me declare em seu favor, consentirei emconfessar tudo o que sinto por você…

CLEANTO – Frosina, minha cara Frosina!… Poderias ajudar-nos?…

FROSINA – É claro que eu tenho que ajudá-los!… Bem sabe que sou, naturalmente, humana!… Deus, por felicidade, nãome deu uma alma de bronze e só lamento que não haja um número maior de namorados para mais espalhar a minhaternura, ajudando-os… Mas que podemos fazer nesse caso?…

CLEANTO – Pensa um pouco, Frosina… Por favor…

MARIANA – Aclara essa confusão toda!…

ELISA – Procura uma solução qualquer para remediar o que fizeste.FROSINA – Isso é mais fácil de dizer do que realizar!… (a Mariana) Quanto a sua mãe, ela não é de todo intransigente etalvez consigamos que dê ao filho aquilo que destinava ao pai…(a Cleanto) O pior, porém, é que seu pai é seu pai…conservará um certo despeito, se notar que está sendo recusado… Tenho a certeza de que não dará muito facilmente,assim de um momento para outro, o consentimento ao enlace de vocês dois…

CLEANTO – Tens razão!

FROSINA – Eu bem sei que tenho razão!… Mas precisamos desse consentimento… Esperem… Se nós tivéssemos à mãouma mulher, mesmo idosa, que possuísse o meu talento e pudesse representar bem o papel de dama de qualidade, sobo título de marquesa ou viscondessa da Baixa Bretanha, eu poderia fazer acreditar ao velho que se tratava de umapessoa com fortuna em casas e em dinheiro… Poderia convencê-lo de que ela estava profundamente apaixonada porele e de que gostaria de ser sua esposa, ao ponto de levar, como dote, toda a sua fortuna… Garanto que nãodesprezará a proposta, porque, afinal, gosta mais do dinheiro do que dos filhos… E depois que desse o seuconsentimento, pouco importa que descobrisse o embuste…

CLEANTO – Tudo é muito bem pensado…FROSINA – Deixe-e agir… Acabo de me lembrar de uma de minhas amigas que serve para o caso.

CLEANTO – Pode ficar certa do meu eterno reconhecimento por tudo o que fizeres, Frosina. Mas comecemos, queridaMariana, por conquistar sua mãe. Antes de mais nada, é conveniente rompermos esse casamento que se projeta. Façatodos os esforços possíveis para isso. Sirva-se de todos os recursos. Desenvolva, sem economias, as graças eloqüentes,os encantos poderosos que o Céu colocou nos seus olhos e nos seus lábios… E não esqueça, por favor, essas palavrasternas, essas carícias suaves e essas súplicas tocantes, a que ninguém resiste…

MARIANA – Não esquecerei um só detalhe e farei tudo como diz…

CENA II

Harpagon, Frosina, Elisa, Mariana, Cleanto HARPAGON (à parte, entrando sem ser percebido) – Meu filho conversando com ela, beijando a Mao de sua futuramadrasta e sua futura madrasta parecendo gostar… Haverá algum mistério, nisso?!…

ELISA (baixo) – Olhem meu pai…

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HARPAGON – A carruagem está pronta. Podem partir quando quiserem…

CLEANTO – Visto que o senhor não pode ir, meu pai, eu irei com elas…

HARPAGON – Não, não… Elas irão muito bem, sozinhas… Eu tenho necessidade de você…(saem as três pelo fundo, àesquerda)

CENA III

Cleanto, Harpagon

HARPAGON – Escute, meu filho… independente de madrasta, que lhe parece essa moça?

CLEANTO – Que me parece?!…

HARPAGON – Sim… Que pensa de seu aspecto, de seu corpo, de suas maneiras, de sua beleza, de seu espírito…

CLEANTO – para ser franco, não correspondeu à minha expectativa… Seu aspecto é de grande afetação; seu corpo éum tanto defeituoso em suas linhas gerais; sua beleza muito medíocre e seu espírito muito vulgar… Não pense, meupai, que digo isso para aborrecê-lo… Porque, afinal, madrasta por madrasta, tanto me faz essa como qualquer outra.

HARPAGON – Mas ainda não ha muito, você dizia, aqui mesmo nesta sala, que…

CLEANTO – Eu dizia algumas banalidades, mas era em seu nome, meu pai… E apenas para lhe ser agradável…

HARPAGON – Então não sente mesmo a mínima inclinação por ela?

CLEANTO – Eu?!… Absolutamente!…

HARPAGON – Lamento, porque isso prejudica uma idéia que me veio à cabeça… Vendo-a aqui, fiz algumas reflexõessobre a minha idade já elevada… pensei o que poderiam dizer quando eu me casasse com uma criatura tão jovem.Essas reflexões alteraram um pouco os meus propósitos e como o pedido de casamento já foi mais ou menos feito,para não me desdizer, eu poderia dá-la a você… se não fosse essa aversão que tem…

CLEANTO – A mim?

HARPAGON – Sim…

CLEANTO – Como esposa?!…

HARPAGON – É claro! Como esposa…

CLEANTO – Escute, meu pai… É verdade que ela não representa bem o meu ideal… Mas para ser agradável ao senhor,eu me resolverei a desposá-la… se assim o deseja…

HARPAGON – Eu?!… Eu sou mais razoável do que você pensa, meu filho. E não me agradaria forçar a sua inclinação.

CLEANTO – Mas eu ficarei satisfeito de fazer esse sacrifício pelo senhor.

HARPAGON – Não, não… Um casamento nunca poderá ser feliz se nele falta qualquer parcela de amor…CLEANTO – O amor, meu pai, poderá vir depois… Dizem até que muitas vezes o amor é um produto do casamento…

HARPAGON – Hum… Não é tanto assim… E do lado do homem, não se deve arriscar muito, par evitar conseqüênciasfunestas. Se você sentisse por ela qualquer coisa… eu não hesitaria em transmitir os meus direitos… Você casaria comela, em meu lugar… Mas assim, não… Eu mesmo casarei.

CLEANTO – Pois bem, meu pai… Uma vez que coloca as coisas nesse pé, devo revelar o que tenho no coração,mostrando-lhe o meu segredo… A verdade é que eu amo essa jovem desde o dia em que nos encontramos, por acaso,em um passeio; que meu desejo era pedi-la em casamento; e que, apenas pelo receio de lhe desagradar, silencieiquando o senhor me revelou os seus sentimentos e os seus propósitos…

HARPAGON – E você visitou-a?

CLEANTO – Visitei, meu pai.

HARPAGON – Muitas vezes?

CLEANTO – Muitas, para o tempo que dura o nosso conhecimento…HARPAGON – E foi bem recebido?

CLEANTO – Muito bem, mas sem dizer quem eu era. E foi isso que, quando nos defrontamos, motivou a surpresa deMariana…

HARPAGON – E você declarou o seu amor e o desejo que tinha de casar com ela?…

CLEANTO – Naturalmente… Fiz mesmo, à sua mãe, umas confissões veladas, muito respeitosas…

HARPAGON – E ela escutou, pela filha, o que você disse?

CLEANTO – Sim, muito delicadamente.

HARPAGON – E a filha corresponde ao seu amor?

CLEANTO – A acreditar nas aparências, estou convencido de que ela manifesta algum interesse por mim…

HARPAGON – Dou graças a Deus por ficar conhecendo esse segredo. Era exatamente o que eu desejava… Pois fiquesabendo, senhor meu filho, que é preciso pensar em outras coisas, entende?… Desista desse amor e acabe com essasperseguições contra uma pessoa que eu pretendo para mim… Trate de casar o mais depressa possível com aquela queeu escolhi para o senhor, ouviu?

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CLEANTO – Está bem, meu pai!… É assim que o senhor procede para comigo, seu filho?!… Visto isso, declaro que nãodesistirei de Mariana que não há obstáculo capaz de me impedir de conquistá-la!… Se o senhor tem por si oconsentimento da mãe dela, eu terei outros recursos por mim…

HARPAGON – Como assim, velhaco?!… Terá, por acaso, a coragem de enfrentar seu próprio pai?!…

CLEANTO – Foi o senhor que me enfrentou… Eu sou mais antigo no caso…

HARPAGON – Mas eu sou seu pai e creio que você me deve algum respeito!

CLEANTO – Há certas situações em que os filhos não devem nenhum respeito aos pais!… E o amor ignora tais coisas!

HARPAGON – Tratarei de usar argumentos mais convincentes!…CLEANTO – Suas ameaças nada conseguirão!…

HARPAGON – Você renunciará a Mariana!

CLEANTO – Jamais!

HARPAGON – Ah! Uma bengala para ensinar a esse impertinente!… (apanha a bengala)

CENA IV

Joaquim, Harpagon, Cleanto

JOAQUIM – O que é isso, patrão? Tenha calma!…

CLEANTO – pouco me importa a sua bengala!

JOAQUIM (a Cleanto) – Calma, patrãozinho!…

HARPAGON – Ter a coragem de me falar dessa maneira!

CLEANTO – Eu não desistirei!…

HARPAGON – Deixe-me bater nele!…

JOAQUIM – No seu próprio filho?!… Ainda em mim, vá…

HARPAGON – Seja você mesmo, Mestre Joaquim, o juiz deste negocio, para provar que eu tenho razão…

JOAQUIM – Aceito o encargo… (a Cleanto) Afaste-se um pouco…

HARPAGON – Eu amo uma moça a quem quero desposar… E aquele velhaco tem a insolência de amar a mesma jovem ede pretender também casar com ela…

JOAQUIM – Oh! Mas ele está errado!…

HARPAGON – Não é espantoso que um filho queira entrar em concorrência com seu pai?… E não deve esse filho, em

respeito ao pai, desistir de seus intentos?JOAQUIM – Naturalmente… O senhor tem toda a razão… Deixe-me falar com ele e fique aqui… (vai ao encontro deCleanto, na outra extremidade da cana)

CLEANTO (a Joaquim que se aproxima) – Está bem, eu concordo!… Visto que ele te escolheu para juiz, eu concordo…

JOAQUIM – É muita honra que me faz. Patrãozinho!

CLEANTO – Estou apaixonado por uma moça que corresponde ao meu afeto… Meu pai, entretanto, vem perturbar onosso amor, querendo casar com ela…

JOAQUIM – Mas ele está errado!

CLEANTO – Então ela não tem vergonha, na sua idade, de querer casar, e com uma moça?… Fica-lhe bem essa condiçãode apaixonado aos sessenta anos?… Não acha que ele deveria pensar em outras coisas?…

JOAQUIM – O senhor tem razão… Deixe-me dizer-lhe duas palavras (ele volta a Harpagon)Ora muito bem, patrão!… Seufilho não é tão intransigente quanto o senhor pensa… Está até bastante inclinado à razão… Diz que conhece o respeito

que lhe deve, que apenas se arrebatou no primeiro momento e que não recusará ao que lhe ordenar, contanto que osenhor o trate melhor do que habitualmente, dando-lhe em casamento alguém que não lhe desagrade

HARPAGON – Ah! Bem… Se é assim, pode dizer a ele que esquecerei tudo e que, exceto Mariana, poderá escolheraquela que bem entender…

JOAQUIM (indo a Cleanto) – Seu pai não é tão intransigente quanto o senhor pensa… Disse-me que foram os seusarrebatamentos que o puseram em cólera; que ele se irritou apenas com o seu modo de agir e que estará disposto aconceder tudo o que deseja; contanto que o senhor lhe testemunhe os respeitos, as deferências e as submissões quetodo filho deve ao pai.

CLEANTO – Ah! Mestre Joaquim!… Podes garantir-lhe que se ele me conceder a mão de Mariana serei sempre o maissubmisso dos filhos e jamais farei qualquer coisa contra a sua vontade.

JOAQUIM (indo a Harpagon) – Está tudo arranjado ele concorda como que o senhor deseja.

HARPAGON – Bravo!… Eis aí uma decisão que tudo harmoniza!…

JOAQUIM (indo a Cleanto) – Está tudo arranjado… ele está contente com as promessas que o senhor fez…

CLEANTO – Deus seja louvado!…JOAQUIM (centro da cena) – Agora, meus senhores, basta que conversem juntos… Ambos estão de acordo… E como nãose entendiam estavam a ponto de brigar!…

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CLEANTO – Meu pobre Mestre Joaquim!… Fico-lhe grato por toda minha vida!

JOAQUIM – Ora essa, patrãozinho!…

HARPAGON – Você me prestou um grande favor, Mestre Joaquim, e merece uma recompensa… (ele enfia a mão nobolso e tira um lenço, com o qual se assoa, fazendo crer a Joaquim que vai lhe dar alguma coisa) Pode ir… Eu não meesquecerei disso!

JOAQUIM – Beijo-lhes as mãos, meu patrão (ao fundo, direita) CENA V

Harpagon, Cleanto CLEANTO – Peço-lhe perdão, meu pai, pelo arrebatamento que manifestei há pouco.

HARPAGON – Esqueçamos isso…

CLEANTO – Asseguro-lhe que estou bastante arrependido.

HARPAGON – E eu sinto uma grande alegria, vendo que você é mais razoável…

CLEANTO – Que bondade sua, esquecendo tão depressa o meu erro!

HARPAGON – Esquecemos depressa os erros dos filhos, quando eles voltam ao caminho do dever.

CLEANTO – E não guarda nenhum ressentimento de todas as minhas extravagâncias?

HARPAGON – Não poderia guardar, depois da submissão e do respeito que você prometeu.

CLEANTO – Juro-lhe, meu pai, que conservarei, até a morte, a lembrança de sua bondade.

HARPAGON – eu prometo que, de hoje em diante, nada mais recusarei a você.

CLEANTO –Oh! Meu pai!… Eu nada mais pedirei, visto que o senhor já me deu tudo, dando-me Mariana…

HARPAGON – HEIN?!… Que foi que você disse?

CLEANTO – Eu disse que estou satisfeito e que nada mais desejo além da satisfação de receber do senhor, comopresente, a mão de Mariana…

HARPAGON – Mas quem falou em presentear Mariana a você?

CLEANTO – O senhor, meu pai.

HARPAGON – Eu?!

CLEANTO – Sim, o senhor.

HARPAGON – Como?!… Se foi você que prometeu renunciar a ela!…

CLEANTO – Eu prometi renunciar a Mariana?!…HARPAGON – Sim!

CLEANTO – Nunca!…

HARPAGON – Você não se arrependeu da sua insistência em conquistá-la?

CLEANTO – Ao contrario!… Agora mais do que nunca estou disposto a casar com ela!

HARPAGON – Ah! Velhaco!… Malandro!… Assassino!…

CLEANTO – já lhe disse que nada poderá impedir-me!

HARPAGON – Espere um pouco, traidor!

CLEANTO – Faça o que entender!

HARPAGON – Fica proibido de aparecer na minha frente!

CLEANTO – Nada perderei com isso!

HARPAGON – Você, de agora em diante, é um desprezado!CLEANTO – Seja!…

HARPAGON – Não o reconheço mais como filho!

CLEANTO – Seja!…

HARPAGON – Está deserdado!

CLEANTO – Tudo o que quiser!

HARPAGON – Dou-lhe a minha eternal maldição!

CLEANTO – Nada tenho a fazer com o que o senhor me dá!… (Harpagon sai, furioso, pela direita) CENA VI

La Flèche, Cleanto

 LA FLÈCHE (vindo do jardim, com um cofre, ao fundo, à direita) – Olá cavalheiro! Até que enfim encontrei-o… Venhacomigo…

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CLEANTO – Que há?

LA FLÈCHE – Venha comigo… Estamos arranjados… (mostrando-lhe o cofre) Eis um achado bem interessante para osenhor… Andei procurando isso o dia inteiro…

CLEANTO – E o que é isso?

LA FLÈCHE – O tesouro de seu pai, que eu consegui encontrar… Fujamos antes que ele apareça… Já o ouçogritando… (ao fundo, á esquerda) 

CENA VII

Harpagon HARPAGON (gritando por socorro, antes de entrar, e entrando em desalinho, alucinado) – Ladrão!… Ladrão!… Assassino!… Assassino!… Onde está a Justiça, meu Deus?… Estou perdido!… Assassinaram-me, degolaram-me, roubaram meudinheiro… Quem poderia ter sido?… Que fizeram dele?!… Que farei para encontrá-lo?… Estará lá?… Ou aqui?… Quem fezisso?!… Ah!… Pára, miserável!… devolva o meu dinheiro!… (agarra o próprio braço, arquejante) Ah! Sou eu mesmo!…Sou eu mesmo!… Meu espírito está perturbado!… Ignoro onde estou, quem sou e o que faço!… ai de mim!… Meu pobredinheiro, meu querido dinheiro, meu grande, meu adorado amigo!… Privaram-me de ti!… E visto que me fostearrebatado, perdi minha razão de ser, meu consolo, minha alegria!… Tudo acabou para mim!… Nada mais tenho a fazerno mundo!… Longe de ti é impossível continua a viver!… Não posso mais!… Eu sufoco!… Eu morro!… Eu estou morto!…

Eu estou enterrado!… Não há por aí alguém que queira me ressuscitar, devolvendo-me o meu dinheiro?!…O meuquerido dinheiro?!… Ou revelando quem furtou?!… Hein?!… Que foi que você disse?!… Ah! Ninguém falou!… Quem querque tenha preparado esse golpe, escolheu bem o momento, esperando enquanto eu falava com o traidor do meu filho!… Saiamos daqui… Eu quero ir intimar a Justiça e interrogar todo o pessoal da casa… Criado, filho, filha, eu mesmoaté1… Quanta gente reunida, meu Deus!… Não posso olhar para ninguém sem suspeitar que esteja diante de quem meroubou… Hein?!.. Do que é que vocês estão falando aí?!… Daquele que me roubou?!… Que rumor é esse lá em cima?!…Será o meu ladrão que está aí?!… Por favor, se alguém souber notícias do meu ladrão, diga o que sabe!… Não estaráele oculto entre vocês todos?!… Vocês me olham todos e estão todos rindo!… Covardes!… Naturalmente são cúmplicesdo miserável que me roubou!… Ah! Mas eu me vingarei!… Comissários, archeiros, prebostes, juízes, aparelhos detorturas, cadeias e carrascos, eu quero que enforquem todo mundo!… E se não encontrar o meu dinheiro, eu mesmome enforcarei, depois!…

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ATO QUINTO

CENA I

Harpagon, Comissário, seu Escrevente COMISSÁRIO – Deixe-me trabalhar… Graças a Deus eu conheço o meu ofício… Não foi ontem que eu comecei adescobrir roubos… Gostaria de possuir tantos sacos de mil francos quantos ladrões já mandei enforcar.

HARPAGON – Se o meu dinheiro não for encontrado, eu pedirei justiça AA Justiça!COMISSÁRIO – Preciso fazer todas as pesquisas exigidas… O senhor dizia que o cofre continha…

HARPAGON – Dez mil escudos, bem contados…

COMISSÁRIO – Dez mil escudos é um roubo bem considerável!…

HARPAGON – Ah!… E não existirá suplicio bastante justo para enormidade desse crime!… Se ele ficar impune, as coisasmais sagradas do mundo não estarão mais em segurança!

COMISSÁRIO – Em que espécie estava esse dinheiro?…

HARPAGON – Em boas moedas de ouro, reluzentes, palpitantes!

COMISSÁRIO – De quem suspeita?

HARPAGON – De todo mundo!… E quero que mande prender a cidade e os subúrbios, a França inteira!…

COMISSÁRIO – Não devemos amedrontar ninguém com a prisão… Trataremos de obter, calmamente, algumas provas, afim de proceder em seguida, com todo rigor, para recuperar o furto.

 CENA II

Os mesmos, Joaquim

(ao fundo, à direita) JOAQUIM (ao fundo da cena, voltando-se para dentro) – Votarei já… Degolem-no, assem-lhe os pés, metam-na na águafervendo e pendurem-no no teto…

HARPAGON – Quem?!… O miserável que me roubou?!…

JOAQUIM – Um leitão que o seu intendente me enviou e quero preparar à minha maneira.

HARPAGON – Está bem, mas não se trata disso, agora. Eis ali um cavalheiro a quem é preciso dizer certas coisas…

COMISSÁRIO – Não se assuste… Eu sou bastante discreto, para não fazer escândalo, e as coisas caminharão

calmamente…JOAQUIM – O senhor também é convidado?…

COMISSÁRIO – É necessário, meu amigo, nada ocultar do patrão…

JOAQUIM – Garanto-lhe, meu caro senhor, que mostrarei todo o que sei fazer e que farei tudo da melhor maneirapossível.

HARPAGON – Não se trata disso, já disse.

JOAQUIM – Se melhor não faço, a culpa é do Sr. Intendente, que me cortou as asas com as tesouras de suaseconomias…

HARPAGON – Trata-se de outra coisa, traidor, e não do jantar, não ouves?!… Quero que me dês informações sobre odinheiro que me roubaram!…

JOAQUIM – Roubaram-lhe dinheiro?

HARPAGON – Sim, velhaco!… E vou mandar que te enforquem, se não restituíres!…

COMISSÁRIO (a Harpagon) – Não o assuste, por favor!… Vejo pela sua cara que ele é um homem honesto, incapaz dementir, e que sem muito esforço dirá tudo o que desejamos saber. (a Joaquim) Meu caro amigo… se confessar ahistória… nada de mal lhe acontecerá. Ao contrário, receberá de seu patrão uma justa recompensa… Roubaram-lheuma certa quantia em dinheiro e Le acredita que você saiba alguma coisa…

JOAQUIM (á parte) – Eis o momento da vingança contra o intendente!…

HARPAGON – Que é que estás ruminando?…

COMISSÁRIO – Deixe, deixe… Está refletindo para nos auxiliar… Eu bem disse que era honesto e incapaz de mentir!…

JOAQUIM – Patão, se o senhor quer que eu lhe fale com franqueza, creio que foi o Sr.Intendente que cometeu o crime!

HARPAGON – Valério?!…

JOAQUIM – Sim.

HARPAGON – Ele me parecia tão fiel?!…

JOAQUIM – Ele mesmo!… Acredito que foi ele o autor do roubo!

HARPAGON – E por que acredita nisso?!…

JOAQUIM – Eu acredito… porque… acredito…

COMISSÁRIO – Mas é preciso dizer em que se baseiam as suas suspeitas.

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HARPAGON – Viste-o rondar em torno do lugar onde estava o me dinheiro?!…

JOAQUIM – Ah!… É mesmo!… Onde é que estava o dinheiro?…

HARPAGON – No jardim.

JOAQUIM – Justamente!… Vi-o andar pelo jardim… E o dinheiro estava colocado onde?…

HARPAGON – Em um cofre.

JOAQUIM – Pois eu vi o Intendente com um cofre!

HARPAGON – Vejamos se era o meu… Como era esse cofre?

JOAQUIM – Como era feito?

HARPAGON – Sim.

JOAQUIM – Era feito como… como um cofre…

COMISSÁRIO – Isto é claro!… Mas descreva-o para que tiremos nossas conclusões…

JOAQUIM – Era um cofre… grande…

HARPAGON – O que me roubaram era pequeno.

JOAQUIM – Bem, o cofre de eu falo não era assim tão grande, tão grande… Pensando bem, era até mais para pequeno…

COMISSÁRIO – E de que cor era?

JOAQUIM – De que cor?…

COMISSÁRIO – Sim, de que cor.

JOAQUIM – Era… de uma certa cor… indecisa… Os senhores não poderiam me ajudar um pouco a dizer isso?!…

HARPAGON – Como?!…

JOAQUIM – Não era encarnado?!…

HARPAGON – Não, era cinzento…

JOAQUIM – pois é… Cinzento-encarnado era o que eu queria dizer.

HARPAGON – Então não há duvida!… É o meu, com certeza… (ao escrevente) Escreva, senhor! Escreva o seudepoimento… Meu Deus! Não se pode mais confiar em ninguém!… Chego ao ponto de acreditar que até eu sou capazde roubar a mim mesmo!…

JOAQUIM (a Harpagon) – Ei-lo que chaga, patrão… Ao menos não digam que fui eu quem o denunciou…

CENA III

Valério, Harpagon, Comissário, Escrevente, Joaquim

HARPAGON – Aproxime-se, Valério!… Vem confessar a ação mais negra e o mais horrível atentado que jamais foicometido!…

VALÉRIO – Que deseja, senhor?

HARPAGON – Como assim, hipócrita?!… Não ficas envergonhado de teu crime?!…

VALÉRIO – De que crime, senhor?

HARPAGON – De que crime?!… Come se não soubesses o que quero dizer!… É inútil que pretendas disfarçar!… A históriafoi descoberta e acabam de me revelar tudo!… Abusar assim de minha bondade; penetrar em minha casaexpressamente para me trair… que horrível papel fizeste!

VALÉRIO – Visto que descobriram tudo, senhor, não quero procurar desculpas ou negar meu ato.

JOAQUIM (à parte) – Será que acertei, sem querer?

VALÉRIO – Era o meu desejo falar-lhe, senhor… Estava esperando uma ocasião e circunstâncias mais favoráveis. Maisvisto que tudo se precipitou, peço-lhe que não se zangue e que ouça as minhas razões.HARPAGON – As tuas razões?!… E que razões poderia encontrar um ladrão como tu?!…

VALÉRIO – Ah! Meu senhor!… Eu não mereço tanta injuria!… É certo que cometi uma indignidade contra o senhor, masno fim de contas a minha falta é muito perdoável!

HARPAGON – Perdoável… um quase assassino destes?!…

VALÉRIO – Peço-lhe que tenha calma!… não se exaspere!… quando tiver ouvido tudo, verá que o mal não é tão grandequanto parece…

HARPAGON – Hein?!… Que o mal não é tão grande quanto parece?!… como assim?!… Roubas meu sangue, minhaspróprias entranhas, velhaco… e ainda dizes que…

VALÉRIO – Seu sangue não será misturado com sangue indigno, senhor!… garanto-lhe que não o deslustrarei!… e nadado que aconteceu é irreparável…

HARPAGON – Ainda bem!… Mas quero que me restituas o que me roubaste…

VALÉRIO – A sua honra ficará plenamente a salvo, senhor1HARPAGON – Bolas para a honra!… Mas como foi que praticaste semelhante coisa?

VALÉRIO – Ai de mim, senhor!… Por que pergunta?…

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HARPAGON – Para ouvir uma resposta! Por que fizeste isso?…

VALÉRIO – Por causa de um deus que explica tudo o que fazemos em seu nome: o amor.

HARPAGON – O amor?!

VALÉRIO – Sim.

HARPAGON – Lindo amor, na verdade!… Amor aos meus luíses de ouro!…

VALÉRIO – Não, senhor… Não foram as suas riquezas que me tentaram… Não foi isso que me seduziu eu afirmo nadadesejar do que possui, com a condição de que me deixe aquilo que eu já possuo.

HARPAGON – Com a condição de… Nada disso!… Eu deixa que fiques com o que já me tiraste?… Mas que insolência eque ingenuidade quereres conservar o roubo que me fizeste!

VALÉRIO – O senhor chama isso um roubo?!

HARPAGON – Se eu chamo um roubo?!… E há outro nome para classificar o delito?… Um tesouro como esse!…

VALÉRIO – É um tesouro, sem dúvida, e o mais precioso que o senhor possui… Mas nada perderá se ele ficar comigo…Peço-lhe de joelhos que me deixe esse tesouro, cheio de encantos… Se quiser praticar mais um bem em sua vida, nãome pode recusar isso!

HARPAGON – Eu, não poder recusar o que me pedes?!… Ora que audácia!… Recuso, recuso, sim senhor!…

VALÉRIO – Nós nos prometemos uma fé mútua e juramos que nada nos separaria.

HARPAGON – A promessa é admirável, não resta dúvida e o juramento é muito divertido!

VALÉRIO – Nós nos prometemos pertencer eternamente um ao outro!

HARPAGON – Mas eu estou aqui para impedir isso, palavra de honra!…

VALÉRIO – Sá a morte nos pode separar!…

HARPAGON – Isso é o que se chama ter paixão pelo dinheiro alheio!…

VALÉRIO – Eu já lhe disse, senhor, que não foi o interesse que me levou a fazer o que fiz! Meu coração não agiu comfalsidade!… Um motivo mais nobre inspirou a minha resolução.

HARPAGON – Os senhores vão ver que ele acabará por afirmar que foi movido por uma grande caridade cristã… Mas eusei como proceder, velhaco sem escrúpulos, e a justiça está do meu lado.

VALÉRIO – Use-a como entender! Estou pronto a suportar todas as violências do mundo… Mas peço-lhe acreditar quesou eu o único culpado de tudo e sua filha está inocente!

HARPAGON – Minha filha?!… É claro que minha filha está inocente… Seria muito estranho que ela fosse cúmplice docrime… Mas quero reaver o que é meu e exijo que digas onde escondeste o que me roubaste.

VALÉRIO – Eu não escondi… Está aqui mesmo, em sua casa.

HARPAGON (à parte) – A minha querida fortuna está aqui… (alto) E… tu não lhe tocaste?!…

VALÉRIO – Eu, tocar-lhe?!… O senhor está enganado quanto as minhas intenções!… Foi com ardor puro e respeito queeu sempre a tratei… consumindo-me pro ela…

HARPAGON (à parte) – Consumindo-se pela minha fortuna?!…

VALÉRIO – Preferiria morrer a ofendê-la, mesmo em pensamento!… Ela é demasiado sensata e honesta para que issoacontecesse…

HARPAGON (à parte) – Sensata e honesta a minha fortuna?!…

VALÉRIO – todos os meus desejos se limitaram a gozar, vendo-a perto de mim… E nada profanou a paixão que sés belosolhos me inspiraram…

HARPAGON (à parte) – Mas ele fala da minha fortuna como um amante falaria de sua amada!…

VALÉRIO – A Srª Cláudia está a par de toda a verdade e poderá servir de testemunha…

HARPAGON – Como assim?!… Então a minha criada é cúmplice do negócio?…

VALÉRIO – Ela foi testemunha do nosso primeiro encontro… E depois de conhecer a honestidade de minhas intençõesconsentiu em me ajudar a persuadir sua filha a…

HARPAGON – Hein?!… Persuadir minha filha?!… (à parte) Será que ele enlouqueceu com medo do castigo?… (alto) Que éque minha filha vem fazer no caso?!

VALÉRIO – Eu digo, senhor, que tive todas as penas do mundo antes de fazê-la consentir em ser minha noiva, vencendoo seu adorável pudor…

HARPAGON – O adorável pudor de quem?

VALÉRIO – De sua filha… E foi apenas ontem que ela resolveu a ficar comprometida comigo, para o nosso casamento…

HARPAGON – Minha filha está comprometida contigo, em casamento?

VALÉRIO – E eu estou comprometido com ela.

HARPAGON – Maldição!… Maldição!… Maldição!… Outra desgraça!…

JOAQUIM (ao escrevente) – Escreva, senhor!… Escreva…

HARPAGON – É tudo muito pior do que eu pensava!… Maldição e desespero!… (ao Comissário) Vamos, senhor!… Cumprao seu dever e lavre-me um processo contra esse miserável, como ladrão e sedutor!

VALÉRIO – São palavras um pouco duras as suas, senhor, e quando souber quem eu sou…

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CENA IV

Valério, Joaquim, Comissário, Escrevente, Elisa, Mariana, Frosina, Harpagon

HARPAGON (vendo Elisa) – Ah! Filha desnaturada! Indigna de um pai como eu!… É assim que tu pões em prática aslições que recebeste?!… Deixas que um ladrão te ame e ficas comprometida com ele, sem meu consentimento?!… Mas

estão enganados, um e outro!…(a Elisa) Quantos bons muros de convento resolverão a história!… (a Valério) Uma boacadeia te ensinará, sedutor!…

VALÉRIO – Não será com toda essa raiva que as coisas se resolverão… E eu sei ouvido antes de qualquer castigo…

HARPAGON – Far-te-ei rodar vivo, amarrado à cauda de um cavalo!

ELISA (aos pés de seu pai) – Ah! Meu pai!… Fique mais humano. Peço-lhe, e leve o seu poder paterno ao extremo deviolências inauditas!… Não se deixe arrastar por qualquer arrebatamento e reflita sobre o que vai fazer… Considereum pouco aquilo que tanto lhe ofende!… É bem diferente do que imagina… E achará menos estranho que tenha mecomprometido com Valério quando souber que sem ele há muito eu já não estaria… Porque foi ele, meu pai, quem mesalvou do grande perigo que eu corri quando quase me afoguei, e a ele o senhor deve a vida de sua filha…

HARPAGON – Nada disso interessa!… Seria melhor para mim que ele te deixasse afogar, em vez de fazer o que fez…

ELISA – Meu pai… Em nome do amor que me dedica, peço-lhe que…

HARPAGON – Não, não… eu nada quero ouvir… A Justiça que cumpra o seu dever…

JOAQUIM (à parte) – Pagarás as bastonadas de hoje, bandido!

FROSINA (à parte) – Que coisa complicada!… CENA V

Anselmo, Harpagon, Elisa, Mariana, Frosina, Valério, Joaquim, Comissário, Escrevente ANSELMO – Que há de novo, Sr. Harpagon, e que perturbação é essa por aqui?

HARPAGON – Ah! Sr. Anselmo!… Eu sou o mais infortunado dos homens!… O contrato que o senhor veio assinar parececompletamente prejudicado. Assassinaram-me na fortuna e na honra… Eis aí um traidor, um celerado que violou osmais sagrados direitos e deveres de hospitalidade, que penetrou na minha casa sob o disfarce de criado para roubarmeu dinheiro e seduzir minha filha!

VALÉRIO – Mas quem é que quer o seu dinheiro, senhor?!…

HARPAGON – Eles fizeram um ao outro uma secreta promessa de casamento. Essa afronta atinge também ao senhor, Sr.Anselmo, e ao senhor compete também tomar parte nos esforços que a Justiça envidará para punir os culpados…

ANSELMO – Não é meu desejo fazer-me desposar à força e nada poderei pretender de um coração que nada pretendado meu… Quanto aos seus interesses, como amigo, estou pronto a considerá-los como meus, defendendo-os como forpossível…

HARPAGON – Eis aqui o cavalheiro que é um excelente comissário de justiça e que nada esquecerá, segundo meafirmou, para punir convenientemente os culpados… (ao comissário, indicando Valério) Faça com lhe parecer melhorpara que ele não possa escapar…

VALÉRIO – Não vejo que crime cometi, apaixonando-me por sua filha… E quanto ao suplicio que querem me impor emvirtude do nosso compromisso, quando souberem quem sou…

HARPAGON – Pouco me importa o que o senhor é… O mundo hoje está cheio desses malandros e impostores que levamvantagem com a sua obscuridade, vestindo-se com o primeiro nome ilustre que lhe vier à cabeça.

VALÉRIO – Saiba que eu sou bastante fidalgo para desdenhar as roupas que não me pertencem e que toda a cidade deNápoles pode testemunhar em favor do meu nascimento…ANSELMO – Cuidado, rapaz!… Cuidado com que afirma!… Está arriscando mais do que pensa, porque fala diante de umhomem que conhece toda a cidade de Nápoles e que poderá facilmente ver claro na história que contar…

VALÉRIO (colocando orgulhosamente seu chapéu) – Eu nada receio e, se toda Nápoles era conhecida sua, não deveignorar quem era D. Thomaz d´Alburcy!…

ANSELMO – Naturalmente que não ignoro!… E poucos poderão tê-lo conhecido melhor do que eu…

HARPAGON – Pouco me importa D. Thomaz ou D. Martinho!… (vendo duas velas acessas, apaga uma)

ANSELMO – Calma!… Deixe que ele fale e explique melhor as coisas… Que quer dizer?

VALÉRIO – Eu quero dizer que sou filho de D. Thomaz d`Alburcy!…

ANSELMO – Filho dele?!…

VALÉRIO – Sim.

ANSELMO – Não brinque, moço!… Procure qualquer outra história que possa ser mais convincente e não permita imporuma tal impostura!…

VALÉRIO – E o senhor, procure falar com mais respeito! Não se trata, absolutamente, de uma impostura e nada digoque não possa ser comprovado…

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ANSELMO – Ousa, então, afirmar que é filho de D Thomaz d`Alburcy?!…

VALÉRIO – Ouso, e estou pronto a sustentar essa verdade contra tudo e contra todos.

ANSELMO – Que maravilhosa audácia!… Saiba então, para liquidar a questão. Que há dezessete anos, mais ou menos, ohomem de quem fala morreu num naufrágio, com seus filhos e sua esposa, ao fugir às cruéis perseguições que seseguiram às desordens políticas de Napoles e que forçaram muitas famílias a se exilar…

VALÉRIO – Sim, mas saiba então o senhor que um filho desse homem, uma criança com sete anos de idade, foi salvopor um navio espanhol, em companhia de um criado, e que esse filho sou eu… Saiba que o comandante do navio,

comovido pela minha sorte, tomou-se de interesse por mim, que eu fui criado como seu filho, e que as armas foram omeu único ofício, desde que me entendi… Saiba que um dia me informaram de que meu pai não tinha morrido, comotodos acreditavam… Que passando por aqui, à procura dele, encontrei Elisa e fiquei escravizado pelas suas belezas…Que a intensidade do meu amor e as severidades do pai dela forçaram-me a entrar nessa casa como um simplescriado, enviando um outro a procura de meu pai.

ANSELMO – Mas que testemunhas mais, além das suas palavras, podem servir para demonstrar que tudo isso é verdade?…

VALÉRIO – O capitão espanhol, primeiro; um saquinho de rubis que pertencia a meu pai; um bracelete de ágata queminha mãe colocou no meu braço quando partimos… e o velho Pedro, o criado que se salvou comigo no naufrágio…

MARIANA – Ai de mim!… Pelas suas palavras eu posso afirmar que você está falando a verdade e o que diz informa, sempossibilidade de erro, que eu sou sua irmã…

VALÉRIO – Você, minha irmã?!…

MARIANA – Meu coração se convenceu desde que você começou a falar… Nossa mãe, que vai ficar encantada sabendo

que você existe, me contou mil vezes a nossa aventura… as desgraças da nosso família… Quis Deus que nãomorrêssemos nesse naufrágio… Mas salvamos a vida em troca de nossa liberdade… Foram uns corsários que nosrecolheram, a minha mãe e a mim, semimortas, sobre os destroços do navio. Após dez anos de escravidão, um acasofeliz restituiu-nos à liberdade e voltamos a Nápoles, onde já nada mais encontramos… Nem mesmo notícias de nossopai… Fomos então a Gênova, onde minha mãe recebeu os restos de uma pequena herança, e de lá, fugindo à injustabarbaria de seus parentes, viemos para aqui, onde vivemos na mais cruel e mais dolorosa das incertezas.

ANSELMO – Louvado se Deus!… Só por um milagre poderia eu viver um momento como este!… Beijem-me, meus filhos!… Dividam um pouco a alegria desse encontro, com vosso pai…

MARIANA – O senhor é aquele por quem minha mãe tanto tem chorado?!…

ANSELMO – Sim, minha filha… Sim, meu filho… Eu sou D. Thomaz d`Albuscy, que Deus salvou das ondas com todo odinheiro que possuía… Imaginando que todos vocês tinham morrido, após dezesseis anos de procuras e de incerteza,eu buscava em um novo casamento as doces alegrias da família. O perigo que havia para mim, se eu voltasse aNápoles, forçou-me a renunciar para sempre ao meu passado e aqui tomei um novo nome, para fugir aos desgostosque o antigo tanto me causou…

HARPAGON (indicando Valério) – Então ele é seu filho?!…

ANSELMO – Está provado que sim…

HARPAGON – Então o senhor fica responsabilizado pelos dez mil escudos que ele me roubou.

ANSELMO – Ele roubou dez mil escudos do senhor?…

HARPAGON – Roubou, roubou…

VALÉRIO – quem lhe disse isso?…

HARPAGON – Mestre Joaquim.

VALÉRIO (a Joaquim) – Tu disseste isso?!…

JOAQUIM – O senhor bem vê que estou calado…

HARPAGON – Ali está o Comissário que tomou as suas declarações…

VALÉRIO – E o senhor acreditou que eu fosse capaz de uma ação tão baixa?!…

HARPAGON – Capaz ou não, eu quero reaver meu dinheiro!… CENA VI

Os mesmos, Cleanto, La Flèche

(ao fundo, à esquerda) CLEANTO – Não se desespere mais, meu pai, e não acuse ninguém pelo furto dos dez mil escudos. Descobri onde está oseu dinheiro e venho aqui para declarar que, se o senhor consentir meu casamento com Mariana, ele lhe serárestituído…

HARPAGON- Onde ele está?!… Você sabe?!…

CLEANTO – Mão tenha receio!… Está em lugar seguro e a sua restituição depende apenas de uma ordem minha… Cabe

ao senhor resolver sobre a proposta que lhe fiz… Escolha: ou consente em me dar Mariana ou perde o cofre.HARPAGON – Não mexeram no que ele contém?

CLEANTO – Está como estava!… Dê a sua aprovação e eu serei o mais feliz dos homens… Poderei pedir, então, oconsentimento da mãe de minha amada…

5/11/2018 Avarento Moliere - slidepdf.com

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MARIANA (a Cleanto) – Já não basta apenas o consentimento de minha mãe, Cleanto, pois eu agora tenho um irmão eum pai… (indica os dois homens)

ANSELMO – Deus não me restituiu os meus dois filhos para que eu os contrariasse. Sr. Harpagon, não recuse a essesjovens a felicidade que eles bem merecem e consinta, como eu também consinto, nesse duplo casamento.

HARPAGON – Para que eu possa deliberar sobre qualquer coisa, preciso rever meu querido cofre.

CLEANTO – O senhor vai revê-lo puro e imaculado.

HARPAGON – Além disso, não possuo um vintém disponível para o dote dos meus filhos…

ANSELMO – Não importa!… Eu tenho dinheiro bastante para ambos…HARPAGON – E o senhor se responsabiliza por todas as despesas?!…

ANSELMO – Com grande prazer. Está satisfeito?!…

HARPAGON – Ainda não… Preciso de uma roupa nova para as bodas…

ANSELMO – Seja. Eu pagarei a roupa… E agora vamos gozar juntos, a alegria que o dia de hoje nos proporcionou…

COMISSÁRIO – Calma, cavalheiros!… um momentinho… Quem vai pagar as despesas do processo?!…

HARPAGON – Não interessa mais o seu processo!…

COMISSÁRIO – Sim, mas eu não vim aqui… por amor à arte! Preciso receber…

HARPAGON (indicando Joaquim) – Pois como pagamento ali está um homem que poderá mandar enforcar…

JOAQUIM – Ai de mim!… Não sei mais como proceder… Se falo a verdade, surram-me; se minto, mandam-me enforcar…

ANSELMO – Devemos perdoar-lhe a impostura, Sr.Hapagon…

HARPAGON – O senhor paga as despesas do comissário?ANSELMO – Pago… Pago… E agora vamos festejar a nossa alegria ao lado de minha querida esposa.

HARPAGON –Sim… podem ir onde quiserem… Mas eu vou é ver o meu querido dinheiro …

PANO FINAL