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MAIO/JUNHO DE 2014 | EDIçãO N O 1 INTERIOR BAIANO PODE SE TORNAR GRANDE EXPORTADOR DE ENERGIA EÓLICA QUILOMBOS INAUGURARAM LUTA POR CIDADANIA EMPREENDIDA ATÉ HOJE EVENTOS MARCAM OS 120 ANOS DO INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO ENTREVISTA ZILTON ANDRADE CONTRIBUIÇÕES AO CONHECIMENTO DA ESQUISTOSSOMOSE PARQUE TECNOLÓGICO DA BAHIA Um território de inovação WWW.BAHIACIENCIA.COM.BR

Bahia Ciência - Primeira Edição

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maio/junho de 2014 | edição no 1

interior baiano pode se tornar grande exportador de energia eólica

quilombos inauguraram luta por cidadania empreendida até hoje

eventos marcam os 120 anos do instituto geográfico e histórico

entrevistazilton andrade

contribuições ao conhecimento da esquistossomose

parque tecnológico da bahia

Um território de inovação

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editora

Mariluce Moura

editora de arte

Mayumi Okuyama

colaboradores

Ana Paula Campos, Cau Gomez, Claudia

Izique, Claudio Bandeira, Domingos

Zaparolli, Eliane S. Azevedo, Fabrício

Marques, Fernando Vivas, Francisco

Bicudo, Gonçalo Tavares, José de Freitas

Mascarenhas, Laura Greenhalg, Maria

Cecilia Felli, Mauro de Barros, Naomar de

Almeida Filho, Neldson Marcolin, Ricardo

Zorzetto, Rodrigo de Oliveira Andrade,

Rogério Junior, Visca

Tiragem 10.000 exemplares

impressão Plural Indústria Gráfica

distribuição Jornal A Tarde

é proibida a reprodução total ou parcial

de textos e imagens sem prévia autorização

contato [email protected]

Tel.: 55 11 3876-7005 / 3876-7006

www.bahiaciencia.com.br

bahiaciência é uma revista bimestral da

aretê editora e comunicação

Rua Joaquim Antunes, 727, conj. 61

CEP 05415-012 - Pinheiros, São Paulo, SP

Tel.: 55 11 3876-7005 / 3876-7006

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outros olhares

Manipulação do objecto de estudo, os perigos Gonçalo M. tavares

1.A ciência é uma forma de manipulação. A mão move-se pelo meio das coisas, divide o objecto de estudo em partes, muda essas partes de sítio, vira-as de cabeça para baixo, acrescenta elementos, enfim. Pensemos nos verbos que utilizamos para descrever os actos da mão e com eles veremos que também descrevemos os métodos da ciência. Pegar, largar, dividir, arrancar, acrescentar, virar. Pegar ou largar uma hipótese; pegar ou largar uma metodologia. Etc.O cientista manipula o seu objecto de estudo e a sua cabeça faz com esse objecto (mesmo que seja um objecto teórico) o que as mãos fazem aos objectos do mundo que estão, por exemplo, tranquilos e sólidos em cima de uma mesa.E uma teoria é também uma construção – uma forma sensata de colocar um objecto numa relação que não caia. Só se constrói quando se tem várias partes à frente. Não se constrói com a unidade. Constrói-se quando à nossa frente o mundo é múltiplo e está dividido. Uma casa, por exemplo, uma simples casa, é uma unidade (se no fim não existir nenhuma peça solta), mas uma unidade feita de mil e cem objectos distintos do mundo. Pois bem, uma teoria é uma casa.

2.E uma teoria também é isto – a potência do súbito incêndio e do desastre ali está, sempre, como uma ameaça. Uma construção com fósforos, com material potencialmente autodestrutivo. De facto aqui, neste caso, uma associação desastrada entre elementos pode terminar num incêndio.Devemos, pois, manipular os elementos da teoria com a mão em jeito minucioso de pinça. É a única maneira.Porque todo o material científico tem duas caras: a força e a fragilidade. Se fores brusco demais, o material com que trabalhas pode partir-se. Se fores demasiado desastrado ou demasiado arrogante na sua manipulação esse material pode, no limite, zangar-se – e destruir-te. O teu objecto de estudo é frágil demais: não o partas; e é forte demais, não penses que ele é submisso!

Gonçalo M. Tavares é escritor, português, autor de Imagens dos Espacialistas, entre outras obrasIM

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4 | maio de 2014

8 Entrevista Zilton de araújo andradeEm atividade desde os anos 1950, professor deu contribuições seminais para o conhecimentoda esquistossomose e de outras doenças parasitárias

18 capaDepois de atrair multinacionais como IBM e Portugal Telecom, Parque Tecnológico da Bahia prepara expansão com centros de biotecnologia e energia

seções

3 Outros olhares

5 Carta do editor

6 Poucas e boas

58 Charge

artigos

16 Naomar de Almeida Filho

32 Eliane S. Azevedo

40 José de Freitas Mascarenhas

CIÊNCIA

24 ambienteProjeto mapeia fontes de poluentes e correntes marinhas na baía de Todos os Santos

30 agriculturaPesquisadores estudam novos métodos de controle da lagarta- -comilona, praga dos campos no Brasil

TECNOLOGIA

35 EnergiaPotencial eólico do interior baiano supera a capacidade de geração de energia das seis maiores hidrelétricas do mundo juntas

42 Empreendedorismo Baiana de 23 anos cria rede social para troca de serviços e experiências com base no escambo

CULTURA

44 históriaOs quilombos e as revoltas dos escravos entre os séculos XVII e XIX inauguraram a luta pela plena cidadania empreendida até hoje pelos negros no Brasil

50 MemóriaO Instituto Geográfico e Histórico da Bahia comemora 120 anos com cursos, palestras e lançamento de livro

52 MúsicaA prática musical de 980 crianças e adolescentes cria uma germinação artística inédita no país

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capa ilusTração: Visca

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Estamos lançando hoje, 25 de maio de 2014, a primeira edição da revista bimestral Bahiaciência.

E o que esta publicação traz e pretende trazer daqui por diante para os leitores? Primeiro, reportagens apro-fundadas e notícias tanto sobre o conhecimento científico produzido por grupos de pesquisa baianos, em qualquer área do conhecimento, incluindo as humanidades e o vas-to campo cultural, quanto sobre inovações tecnológicas relevantes levadas a cabo por empresas ou instituições de pesquisa deste estado. Claro está que existe um contexto nacional e internacional no qual a produção local se dá e que necessariamente estará referido nos textos da revista.

Em segundo lugar, Bahiaciência quer oferecer em suas pá-ginas reflexões primorosas sobre temas vinculados a ciência, tecnologia e inovação, de capital importância para o desen-volvimento deste estado, elaboradas por respeitadas autori-dades no assunto em pauta ou por jovens vozes nas quais, a par do frescor do timbre e das ideias, podem-se ouvir sono-ridades que aludem a um poderoso compromisso social e ao desejo inabalável de compreender bem, fazer e transformar.

A intenção e a pretensão desta revista é, nos limites de uma publicação jornalística, irrigar o debate sobre uma face pouco visível e debatida do estado da Bahia, ou seja, sua capacidade de contribuir para a expansão do conhecimento científico no Brasil e para a ampliação da capacidade nacio-nal de inovar em múltiplos campos da atividade econômica. Em outros termos, o que está em seu horizonte é a difusão da cultura científica em tempos de profunda transformação da sociedade contemporânea, tecnologicamente amparada, por meio de um jornalismo de alta qualidade, que aposta na inteligência e no discernimento do leitor.

Bahiaciência se materializa como fruto da iniciativa de uma pequena empresa privada de comunicação com longa e consistente experiência em projetos de jornalismo cien-tífico. Seus efetivos patrocinadores serão os anunciantes e os leitores. Seus grandes parceiros, sem os quais seria im-possível pensar em percurso vitorioso para uma publicação de jornalismo científico, devem ser os pesquisadores baia-nos de todas as áreas do conhecimento, as universidades

carta do editor

o primeiro passoMariluce Moura

e instituições de pesquisa instaladas no estado, as agên-cias de fomento à pesquisa, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), outras entidades visceralmente comprometidas com o avanço da cultura científica no estado, a exemplo da Academia de Ciências da Bahia, e o jornal A Tarde, o largo canal que leva Bahia-ciência aos leitores.

É importante registrar, entretanto, que na origem desta revista está a determinação do então titular da Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação (SECTI), Paulo Câmera, de lançar uma revista de divulgação científica na Bahia. A seu pedido, comecei em março de 2012 a elaborar estudos de viabilidade do projeto. No primeiro deles, obser-vava que, “sendo a Bahia, com seus 15 milhões de habitantes, o quarto estado mais populoso do Brasil, e Salvador, sua bela e histórica capital, a terceira maior cidade brasileira, com cerca de 3 milhões de habitantes, surpreendia o modesto 9º lugar que desfruta na contribuição à produção científica nacional (o Brasil ocupa o 14º lugar na produção científica mundial)”. Observava ainda que, se a isso agregássemos sua “7ª posição entre os estados da federação na formação do PIB brasileiro e o 21º lugar no PIB per capita (IBGE, 2011)”, teríamos uma medida de quanto a Bahia precisava investir na criação de um ambiente favorável à expansão do conhe-cimento científico e à inovação tecnológica.

Foram tentadas algumas vias para a publicação da revista pela SECTI, enquanto voluntariamente íamos construindo o projeto em termos concretos. Ao substituir Câmera, em fevereiro deste ano, a secretária Andrea Mendonça pro-curou assegurar seu lançamento, mas não encontrou um meio viável para tanto.

A essa altura, com muito trabalho já realizado, graças à colaboração de extraordinários professores, pesquisadores e especialistas em C&T, e de muitos colegas jornalistas, de-signers, fotógrafos e ilustradores, perguntei-me: por que não tentar o velho caminho jornalístico para viabilizar a pu-blicação? Ajustes foram feitos e eis a primeira Bahiaciência.

Torço para que esta experiência/aventura vá muito longe e aguardo seus comentários, leitores!

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campanha acirrada para reitor

Foi acirrada a campanha para a reitoria da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ao contrário do que aconteceu há quatro anos, quando era possível vislumbrar com antecedência a eleição da atual reitora Dora Leal Rosa, a disputa agora transcorreu sem grandes favoritos e envolveu pela primeira vez quatro candidatos. Dois deles apresentaram, entre outras credenciais, o apoio da atual reitora. São eles o vice-reitor Luiz Rogério Bastos Leal, professor do Instituto de Geociências, e o pró-reitor de Administração Dirceu Martins, professor do Departamento de Química Orgânica do Instituto de Química. Os outros dois candidatos

apresentaram plataformas de oposição ou de independência em relação à gestão atual: os professores João Carlos Salles, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, e Nelson de Luca Pretto, da Faculdade de Educação. A campanha ganhou a internet, com a lançamento no canal YouTube de vídeos com plataformas de candidatos e com manifestações de apoio. O candidato João Carlos Salles, por exemplo, recebeu o apoio de Marilena Chauí, professora de filosofia da Universidade de São Paulo (USP), e do compositor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil. Já Nelson Pretto produziu um vídeo com uma entrevista, no qual

apresentou suas ideias para a UFBA. Debates com a presença dos candidatos também animaram a campanha. A votação, programada para os dias 20 e 21 de maio, é uma consulta organizada pelo Diretório Central dos Estudantes e por sindicatos de professores e funcionários e servirá como referência para os conselhos Universitário e Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão, aos quais cabe formar uma lista tríplice a ser encaminhada ao Ministério da Educação. O escolhido vai liderar uma comunidade acadêmica composta por cerca de 40 mil estudantes, 2,3 mil professores e 3 mil funcionários e gerenciar um orçamento anual superior a R$ 1 bilhão.

a Faculdade de Filosofia e ciências humanas da uFba: disputa pela reitoria teve quatro candidatos

traje para ir a Marte

A Nasa, a agência espacial americana, apresentou um modelo de roupa espacial talhada para os astronautas que farão a primeira viagem a Marte. O protótipo Z-2 Tecnologia foi escolhido por meio de votação popular no site da agência, ao ganhar 63% dos 233.431 votos dos internautas. A roupa especial possui pequenos remendos que emitem luz. Também adota uma costura luminescente que pode ser personalizada, para identificar o usuário. Segundo a agência BBC, a Z-2 será produzida usando partes impressas em 3D. Scanners de laser vão assegurar que cada traje se adéque ao corpo de seu dono. A roupa será testada em câmaras a vácuo, no centro de treinamento da Nasa e em um local que imita a superfície montanhosa de Marte. A primeira viagem tripulada ao planeta vermelho está prevista para 2030.

a roupa Z-2, escolhida pelos internautas: impressão em 3d

Poucas e boas

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o centro de terapia celular do hospital são rafael, em salvador, vai iniciar

nova fase de um tratamento experimental que usa células-tronco para re-

cuperar circuitos nervosos em vítimas de lesões na medula. um grupo de

60 pacientes participará do experimento, que utilizará técnicas de imagem

para fazer três aplicações de células-tronco na medula. a primeira fase foi

concluída e envolveu 14 pacientes paraplégicos, que receberam uma úni-

ca aplicação de células-tronco mesenquimais, com grande potencial de

regeneração. segundo a coordenação do centro, todos os pacientes apre-

sentaram alguma melhora na qualidade de vida. as pesquisas com células-

-tronco são vistas como alternativas aos exoesqueletos para pacientes com

lesões medulares – como o que dará o chute inicial na copa do Mundo –

criticados por não terem propósitos terapêuticos.

os modos de comunicar a ciência

Salvador sediou entre os dias 5 e 8 de maio a 13ª Conferência Internacional sobre Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia. O encontro ocorreu pela primeira vez na América Latina e reuniu cerca de 600 pesquisadores de mais de 50 países para debater práticas e estratégias de comunicação e divulgação científica adotadas em diferentes partes do globo. Com o tema central “Divulgação da ciência para a inclusão social e o

engajamento político”, o evento promoveu debates cujo denominador comum foi a busca por uma divulgação científica mais participativa, capaz de contemplar as demandas do público e não apenas reproduzir o modo de pensar dos pesquisadores. Outro mote foi a promoção do diálogo da produção científica dos países em desenvolvimento com a dos países centrais – em todas as plenárias, a composição das mesas

levou em conta essa diversidade. Um dos debates mais animados foi o que envolveu o papel das novas plataformas da rede mundial de computadores no modo de comunicar a ciência. “Com o advento das novas mídias on-line, as visões tradicionais da comunicação da ciência estão sendo redefinidas”, disse à Agência FAPESP Dominique Brossard, professora da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos.

palestrante da conferência: 600 pesquisadores de mais de 50 países se reuniram na capital baiana

células-tronco contra lesões na medula

acervo reaberto

O Museu Geológico da Bahia, em Salvador, foi reaberto ao público no dia 29 de abril com duas novas salas: uma dedicada a meteoritos e outra sobre a criação do Universo e a formação do Sistema Solar. Para entender a formação do Cosmos, por exemplo, o visitante poderá ouvir uma simulação do Big Bang. Já a Sala Meteoritos conta com telas com sensores, por meio das quais os visitantes terão informaões sobre 59 meteoritos e sete crateras de impacto em território brasileiro – um destaque é a réplica do meteorito Bendegó, encontrado no sertão baiano no final do século XVIII. Inaugurado em 1975 e mantido pelo governo estadual, o museu dispõe de 20 mil peças catalogadas, entre elas, 2 mil estão expostas em 15 salas temáticas. O endereço do museu é avenida Sete de Setembro, 2195, Vitória.

células-tronco mesenquimais: estratégia para tratamento experimental para recuperar circuitos nervosos

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entrevista

Em atividade desde os anos 1950, Zilton de

araújo andrade deu contribuições seminais

para o conhecimento da esquistossomose

e de outras doenças parasitárias

Mariluce Moura e claudio bandeira

um cientista tranquilo

os 90 anos – e parecendo uns bons anos mais novo –, o professor Zilton de Araújo Andrade vai diariamente ao trabalho no Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz da

Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), na rua Waldemar Falcão, no Candeal, em Salvador. Ali, ele prossegue em suas atividades científicas e administrativas co-mo chefe do Laboratório de Patologia Experimental (Lapex), do Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz, e professor dos cursos de pós-graduação em patologia humana (UFBA), imunologia (UFBA) e biotecnologia e medicina investigativa (Fiocruz).

Tranquilo e vigoroso, senhor de uma memória pro-digiosa e de uma prosa discreta e cativante, este baia-no de Santo Antônio de Jesus é referência obrigató-ria nos estudos sobre esquistossomose, além de ter

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dado contribuições importantes para a compreensão da doença de Chagas e para as patologias do fígado ligadas às doenças parasitárias. Entre seus trabalhos mais citados na literatura científica internacional estão Mild pro-longed shistosomiasis in mice: alterations in host response with time and the de-velopment of portal fibrosis, elaborado em parceria com Kenneth S. Warren e publicado na revista Transaction of Royal. Society of Tropical Medicine and Hygiene, em 1964, e Pathological lesions associated with Schistosoma mansoni in-fection in man, que tem como coautor Allen W. Cheever, publicado na mesma revista em 1967.

Formado médico pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), especializa-do em patologia pela Universidade de Tulane, em New Orleans (EUA), dou-tor em patologia pela Universidade de São Paulo (USP) e com um pós-douto-ramento no Hospital Mount Sinai, em Nova York, Zilton Andrade, professor da UFBA desde 1953, aposentado em 1984, mas prosseguindo com as aulas e orientações até hoje, formou gera-ções de pesquisadores na Bahia. Em seu currículo consta a orientação de 40 dissertações de mestrado e de 15 teses de doutorado. O ex-governador Roberto Santos, seu colega na Faculdade de Me-dicina, aponta-o como uma das melho-res pessoas de sua geração, pesquisador de grande importância em seu campo e uma das referências fundamentais da pesquisa científica na Bahia. “Ele diri-giu, por exemplo, o Serviço de Patologia e, com as sessões anatomoclínicas que presidia, teve papel muito importante quando o nosso Hospital das Clínicas estava no auge de sua contribuição à medicina científica e à medicina social em nosso estado”, comenta.

Desde a década de 1950, Zilton An-drade tem feito seu percurso profissio-nal, pessoal e afetivo ao lado de Sonia Andrade, também ela pesquisadora, patologista respeitada e professora da UFBA, além de ser sua colaboradora na Fiocruz. Juntos tiveram seis filhos. No final desta entrevista à revista Bahia-

ciência, feita na sala de doutor Zilton na Fiocruz, doutora Sonia lembrou que, ao receber o título de Professora Emérita da UFBA, em 2011, contou aos alunos que encontrou Zilton, já um doutoran-do, quando, no quinto ano da facul-dade, estava estagiando na Fundação Gonçalo Muniz. “Nós começamos a nos entender, a conversar e acabamos na-morando. Foi aí que a clínica me perdeu para a patologia”, disse, completando com uma original declaração amorosa: “Ele foi meu primeiro e único orien-tador e com ele aprendi as regras da boa pesquisa”. A seguir reproduzimos os principais trechos da entrevista do professor Zilton Andrade.

y Qual de seus trabalhos científicos em esquistossomose o senhor considera mais importante para o avanço do co-nhecimento desta doença?Não tenho um trabalho principal, por-que tenho seguido uma linha desde o início. Interessei-me por esquistosso-mose porque era uma doença que eu via frequentemente no Hospital das Clínicas, inclusive com indivíduos jo-vens morrendo, vomitando sangue nas enfermarias e acabando nas salas de autópsias.

y Isso era ainda nos anos 1940?Não. Minha atividade científica pro-priamente dita, com publicação de tra-balho, etc., começou em 1950. Entrei na faculdade em 1944 e posso consi-derar concluída minha formação, com pós-graduação e viagens para estudos

especializados, em 1953. Quando estu-dante, trabalhei no Hospital das Clí-nicas, mas ao me formar o hospital já estava completo e não oferecia va-gas. Após entendimentos entre o meu orientador, professor Paulo Darcoso Filho, e o então diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, pro-fessor Zeferino Vaz, recebi um con-vite para trabalhar por lá. Recebido o convite, fui em 1956 e passei relativa-mente pouco tempo, porque desde que saí daqui o professor Edgard Santos mostrou muito interesse em que eu ficasse na Bahia. Após trabalhar por quase um ano em Ribeirão Preto, tive a oportunidade de me encontrar com alguns colegas baianos num congresso médico e eles me estimularam a voltar para a Bahia. Disseram ter a impressão de que Edgard Santos me receberia de braços abertos. Uma dessas pessoas foi o professor Heitor Marback, da oftal-mologia. Tempos depois recebi uma comunicação dele dizendo que eu podia voltar em boas condições. E, embora Ribeirão pagasse então muito melhor que todas as universidades do país, o reitor Edgard Santos estava disposto a cobrir esse salário. Então vim para cá – e foi um passo positivo que dei na vida.

y Isso foi quando? E o senhor veio vin-culado ao Hospital das Clínicas?Em 1957, vim para a UFBA com dois cargos, o que na época era comum por-que não havia ainda o regime de tempo integral. Então, Edgard Santos fazia o seguinte: indicava o candidato como

Interessei-me por esquistossomose. Via frequentemente jovens morrendo nas enfermarias, vomitando sangue, e acabando nas salas de autópsias

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professor, que assim teria um emprego de professor, e fazia em paralelo outro contrato de pesquisador. Portanto, era dedicação exclusiva, como eu estava querendo, com dois salários, de pro-fessor e de pesquisador.

y Mas voltemos de uma outra forma à pergunta original: que trabalhos seus ligados à esquistossomose lhe parecem importantes?A questão da modulação do granuloma, por exemplo. Estava trabalhando nisso quando o professor Kenneth Warren, um americano da Universidade Cor-nell, veio dar cursos aqui. Peguei uma fase em que Edgard Santos queria fazer uma universidade de verdade, tinha noção de como estimular pesquisa e trazer professores de fora, e instalou o Programa de Residência Médica, que teve grande importância no atendi-mento dos doentes no Hospital das Clínicas e no ensino da patologia e de outras especialidades para os jovens que se formavam e queriam ficar. Foi uma fase de ouro, florescente.

Então, quando voltei de Ribeirão Preto, começamos a trabalhar. Kenneth Warren tinha infectado camundongos com esquistossoma nos Estados Uni-dos e contado o número de ovos no fígado e nos intestinos dos animais infectados, com uma técnica que ele mesmo tinha desenvolvido. Viu que o animal recém-infectado tinha uma doença mais grave e, com o passar do tempo, melhorava com a fase crônica. Ele contava o número de ovos nos te-cidos e verificou – para sua surpresa – que o número de ovos era muito maior na fase crônica que na fase aguda. Ele me relatou isso como algo que não con-seguira entender. Preservou o fígado e incluiu em parafina e me procurou para ver se, como patologista, eu lhe daria alguma resposta satisfatória.

y Ou seja, por que na fase crônica da doença o indivíduo, com maior carga de ovos do parasito, passava melhor do que na fase aguda?Exatamente. O indivíduo ainda era o

camundongo. Foi um modelo simples, já bastante usado em seus aspectos imunológicos, tanto que foi uma sur-presa para mim esse trabalho ter tido uma repercussão tão grande. Mas a questão é que ele pôs muita gente a trabalhar com muitos outros modelos e, quando os resultados desses novos trabalhos eram publicados, citavam o nosso artigo (Andrade e Warren). Vou explicar alguns detalhes: verifiquei que, na fase aguda, o ovo, ao chegar no fí-gado, provocava uma lesão extensa, com necrose e inflamação muito grave. Com o passar do tempo, o hospedeiro ia modulando a lesão e essa modulação tinha uma base imunológica. A novi-dade é que não era exatamente uma novidade, porque era o mesmo fenôme-no que se conhecia para a tuberculose, por exemplo. O indivíduo se infecta, a doença é grave, pode ter dissemina-ção, com granulia, e com o passar do tempo esse indivíduo faz uma doença localizada, crônica.

y O que ninguém sabia é que no fígado esse processo também ocorria na es-quistossomose.Na época, a pesquisa sobre os fatores que ocorrem na modulação da tuber-culose estava muito em voga. Muitos desses estudos passaram a ser feitos então com a esquistosoma, que é um modelo muito mais simples de repro-duzir em laboratório. Assim, esse fe-nômeno da modulação podia ser es-miuçado do ponto de vista dos fato-res imunes envolvidos. O resultado foi um trabalho atrás do outro publicados

na Europa e no mundo todo citando o nosso trabalho como exemplo. Um dia, um jornal de São Paulo levantou os pesquisadores brasileiros mais citados na literatura e, para minha surpresa, eu me vi entre eles. E o fator principal foi esse trabalho.

y A surpresa foi só por modéstia, não?Tinha gente muito mais avançada, mas a ciência caminha assim.

y O senhor pode explicar mais claramen-te a modulação de granuloma para os não especialistas?Quando o ovo do Schistosoma chega ao fígado, há dentro dele um embrião que, seguindo o ciclo evolutivo normal, sai do ovo ou do tecido e vai para as fezes. Para tanto, o embrião dispõe de umas glândulas que produzem uma substân-cia que destrói os tecidos do hospedei-ro em volta do ovo e permite sua saída desse mesmo ovo quando chega perto da luz intestinal, e é eliminado pelas fezes. Isso é da rotina da evolução do parasita. Macho e fêmea, reprodução de ovo, e esse ovo amadurece. Maduro é que ele sai; se não amadurecer, não sai, fica preso no fígado. A destruição de tecidos do hospedeiro não se faz de graça e o organismo parasitado e já sensibilizado pelo Schistosoma – pe-lo verme – faz uma reação violenta, aguda, inclusive com necrose do teci-do. Essa é a reação inicial, mas, com o passar do tempo, o organismo modu-la a resposta imunológica e não tem mais necessidade de fazer tamanha reação – acontece com muitos indiví-

Foi uma surpresa para mim a repercussão tão grande do nosso artigo (meu e do Warrent) sobre modulação na esquistossomose

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duos que têm esquistossomose e estão passando sem maiores problemas. O organismo, ao aprender a modular a resposta, faz uma reação mais efetiva e mais econômica.

y Mas o senhor dizia que essa fase não se estabelece sem danos e prejuízos para o organismo.Exatamente. Se a carga parasitária for muito grande, essa resposta, mesmo modulada, lenta e efetiva, deixa fibrose e lesões vasculares obstrutivas. Essa fi-brose prejudica a vascularização do fíga-do. E foi isso que eu mostrei a Warren.

y Qual é a consequência desse traba-lho para o controle e o tratamento da doença?A tentativa inicial desse trabalho foi explicar o que acontece com os infec-tados, principalmente para visitantes de áreas endêmicas ou de locais em que a esquistossomose se instalou recentemente e apresenta, portanto, muitos casos graves. Pode-se chegar numa área em que está todo mundo infectado, mas ninguém se queixa de nada e, de vez em quando, aparece um menino com barriga grande vomitando sangue. Aí se diagnostica esquistosso-mose, adquirida na infância, período mais suscetível. E o conhecimento se dá assim. Quando se chega numa área com casos agudos frequentes, é certo que ali a esquistossomose se instalou recentemente.

y A partir desse trabalho, como foi o de-senvolvimento de sua linha de pesquisa em esquistossomose? Continuamos a estudar a doença no homem e a publicar os achados que tivemos e que iam facilitar o estudo de outros. Aparecia um detalhe, ex-plorávamos um pouco mais, porque é isso que se faz em ciência. Ao mesmo tempo, íamos vendo outras doenças.

y O senhor trabalhou simultaneamente com Chagas. Como foi? As doenças parasitárias costumam ter essa fase de instalação aguda. Mas Cha-

gas é diferente, não essencialmente, mas quanto à manifestação. Publica-mos no boletim da Fundação Gonçalo Moniz, em 1955, com a colaboração de Sonia Andrade, um trabalho bem exten-so sobre a doença que foi bem estudada por Carlos Chagas e o pessoal de Man-guinhos [Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro] e explorada aqui tam-bém por Adriano Pondé. Mas ela não chamava muita atenção na Bahia. Em nosso caso, estávamos estudando es-quistossomose e vimos que uma linha a ser explorada era a da patologia das doenças parasitárias e, no que em par-ticular me diz respeito, principalmente quando praticando necropsias no Ser-viço de Patologia do Hospital Professor Edgar Santos. Este hospital, quando foi inaugurado, tinha condições tão boas quanto as de qualquer hospital ame-ricano onde trabalhei. Havia facilida-des para fotografias, microfotografias e para cortes em congelação. Assim, em relativamente pouco tempo, tínhamos acumulado uma série de casos de indiví-duos que morreram com manifestações cardíacas devido à doença de Chagas. Lendo o que já tinha sido publicado, vimos que, em termos de patologia e patogenia, havia ainda muita coisa a ser explorada. Estudamos 22 casos, com o intuito de explorar o quadro histopa-tológico da doença.

y Nessas autópsias para ver os danos provocados por doença de Chagas, quais órgãos vocês examinavam mais?O principal era, e é, o coração. Os ou-tros têm repercussões secundárias, de-

pendentes da falência cardíaca e dos fe-nômenos tromboembólicos. A maneira como o parasita provoca a infecção tem fatores imunológicos envolvidos: alguns têm uma doença crônica, prolongada, em outros ela tem curso mais agudo. Os fatores imunológicos eram justamente o que eu precisava estudar para esclare-cer detalhes de vários estudos prévios.

y Nesse estudo o senhor falava de algu-mas dessas diferenças no coração dos vários indivíduos autopsiados?Definíamos o quadro patológico que encontrávamos. A ideia era fornecer detalhes morfológicos para um diag-nóstico preciso na mesa de autópsia, evidentemente a ser confirmado depois com a microscopia.

y Quando vocês estudavam o músculo cardíaco, o que encontravam?Era a clássica miocardite crônica, uma inflamação no coração com sinais de que era progressiva e prolongada e que vai destruindo o músculo e o deixan-do flácido.

y Professor, vamos falar de seus primei-ros anos da vida e de como se encami-nhou para a medicina e a ciência? Va-mos partir do começo, maio de 1924. O senhor é taurino.Isso, taurino. Meu pai era funcionário federal, de uma coletoria em Santo An-tônio de Jesus. Tinha oito filhos, sen-do que eu era o segundo. O pessoal da minha geração, numa situação assim, já sabia que teria que trabalhar logo. Sendo o segundo filho, devia trabalhar

Se a carga parasitária for muito grande, a resposta imunológica, mesmo modulada, lenta e efetiva, deixa fibrose e lesões vasculares obstrutivas

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para ajudar a família. Conversando com meu pai, ele disse: siga sua vocação, veja o que quer fazer, o resto deixe co-migo. Foi fundamental a orientação da professora Áurea Bittencourt. Era uma pessoa rígida, enérgica. Eu tinha 11 ou 12 anos, ainda em Santo Antônio, e ela percebeu meu interesse, minha ma-neira de estudar. Eu gostava do méto-do de ensino dela, me sentia melhor, aprendendo. Ela era protestante, e nu-ma das vindas a Salvador, conheceu o colégio americano, que é o atual Dois de Julho. Falou então com meu pai e mostrou o estatuto. Ele veio a Salvador e no caminho encontrou um amigo de infância, o professor Manuel Peixoto, que era então diretor do Ginásio Ipi-ranga, que ficava na Ladeira do Sodré, na casa em que morreu Castro Alves. Acabei indo para o Ipiranga, onde fiz todo o meu curso ginasial.

y O senhor tinha um avô jornalista?Sim, o meu avô materno, Antonio Men-des de Araújo, fundou e dirigiu um jor-nal quinzenal, em Santo Antônio de Je-sus, por mais de 50 anos. Chamava-se O Paládio e circulava no Recôncavo... Ele escrevia, fazia discurso, era inte-lectualizado.

y E enquanto estudava no Ipiranga, on-de o senhor morava?Era interno no colégio, comia e dormia lá. Quando cheguei tinha 13 anos exa-tamente e fiquei quatro anos interno. No quinto ano, a família já tinha vin-do, só meu pai ficou lá. Fiquei externo um ano, e depois fui para o Ginásio da Bahia, que já era no mesmo lugar que depois se chamaria Colégio Cen-tral. Nessa época começou a divisão do ensino médio em clássico e científico – tinha até blusões diferentes. E eu fiz dois anos, porque tinha feito cinco anos no Ipiranga. Depois é que passou a ser quatro anos de ginásio e três anos do curso colegial.

y O que fez o senhor descobrir a medi-cina como um caminho? Foi ainda no Ipiranga?

Sim, foi no Ipiranga. Na realidade foram leituras de divulgação cientí-fica, eu tinha um interesse em ciên-cia em geral. Adorava filmes que eu via de laboratório, com aqueles tu-bos saindo fumaça, vários filmes em que sabia que de vez em quan-do apareceriam cenas de laborató-rios. Era interesse em ciência mes-mo. Li um livro sobre cientistas, de Paul [Henri] de Kruif [microbiologis-ta americano, 1890-1971]. Esse livro [Caçadores de micróbios, de 1926, um best-seller que inspirou, segundo a Wi-kipedia, muitos aspirantes a cientistas] é interessantíssimo. Até lê-lo, eu via os cientistas como seres sobrenaturais, distantes, difíceis, tinha interesse em ciência, mas não em fazer ciência. Aí li o livro e tudo foi diferente: ele mos-trava Pasteur, por exemplo, como um sujeito comum, aproximava os grandes cientistas da vida do homem normal, comum. E mostrava o que as desco-bertas podem fazer e como se tornam uma coisa muito interessante para o indivíduo, um desafio intelectual.

y Quantos anos o senhor tinha quando leu o Paul Kruif?Foi na escola de Dona Áurea, às véspe-ras de vir fazer o [exame de] admissão, em 1937. Já lia divulgação científica, mas com espírito esportivo, aos 11 e 12 anos.

y Em sua casa tinha uma biblioteca?Não, eu ia atrás da biblioteca pública e, às vezes, quando sobrava um dinheiri-nho, comprava livros.

y Seus outros irmãos seguiram carreira científica?Não, eu tinha três irmãos, um morreu de acidente. Dos demais, um é advo-gado e outro é repórter fotográfico, em Aracaju.

y Como foi o seu curso na Faculdade de Medicina?Achei que o curso era muito teórico. Por isso, já no terceiro ano encontrei uma oportunidade de trabalhar em laboratório num novo instituto que estava sendo organizado no governo de Octa vio Mangabeira. Fui aprovado num concurso para técnico de labo-ratório e comecei a trabalhar em um laboratório de bacteriologia. O filho de Man gabeira, Mangabeira Filho, que era médico e cientista, me pro-curou, viu que eu tinha interesse e me perguntou se eu já tinha tido aula de patologia. Disse então que ainda ia começar. Na época o professor da cadeira era o professor José Coelho dos Santos, que de quando em vez tinha problemas com os estudantes.

y Como nasceu seu interesse específico por patologia? Foi na época do labo-ratório?Vamos voltar ao tempo em que meu colega Alípio Castelo Branco leu em A Tarde sobre a convocação para o con-curso ao cargo de técnico de laboratório no Instituto de Saúde Pública criado por Mangabeira. Era no Canela. Man-gabeira Filho tinha decidido montar um laboratório de pesquisa dentro do instituto. Preparou um curso para fazer

Leituras de divulgação científica inspiraram minha ida para o campo da ciência. Até ler Caçadores de micróbios, de Paul Kruif, eu via os cientistas como seres sobrenaturais

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o treinamento do pessoal. Os técnicos que passassem na seleção e tivessem tendência e título podiam se inscre-ver no curso. Fiz isso e foi espetacular. Mangabeira trouxe os melhores profes-sores do Brasil na época, e o curso foi completamente diferente dos blá-blá--blás teóricos a que estávamos acostu-mados: era entrar no laboratório e tra-balhar. Enquanto trabalhávamos, íamos sabendo das coisas, mandavam-nos ler isso e fazer aquilo. Era informação, prática de pesquisa, tudo articulado. O curso durou dois anos e incluiu tam-bém patologia, e quem veio ensiná-la foi Paulo Dacorso Filho, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, veterinário que se especializara em patologia, com curso nos Estados Unidos, e que acabou sendo o patolo-gista que mais fazia diagnóstico em biópsias de câncer, etc., para o pessoal do Rio. Os professores de fora sempre tinham um auxiliar e me informaram que eu tinha que preparar o laboratório e ficar auxiliando no curso.

y O Instituto chamava-se Gonçalo Moniz?Ainda não, era chamado Instituto Os-waldo Cruz. Tinha um posto de vaci-nação, que vacinava contra raiva, e la-boratórios de exames para os serviços de saúde. Mangabeira Filho foi quem surgiu com a ideia de fazer o instituto de saúde pública, como é hoje o Lacen [Laboratório Central de Saúde Pública Professor Gonçalo Moniz]. Os exames do estado passavam a ser feitos aqui e, ao lado, teria um instituto de pes-quisa ao estilo de Manguinhos, porque sem este, em sua visão, o primeiro iria atrofiar porque ficaria desatualizado. O curso tinha estudantes e médicos clínicos. Os melhores professores exis-tentes naquela época no país vieram ministrar as aulas – entre eles, Otto Bier (bacteriologia), Samuel Pessoa (pa-rasitologia), Hugo Souza Lopes (ento-mologia), Paulo Dacorso Filho (patolo-gia) e Leônidas Deane (parasitologia).

y Como foi ter aulas com Samuel Pessoa?Ao vê-lo, eu vi pela primeira vez um

pesquisador em ação. Ele foi influen-te para muita gente, principalmente em São Paulo. Fazia pesquisa, ia ao campo e entusiasmava todo mundo com sua pesquisa. Meu primeiro tra-balho publicado foi com ele, sobre a filária [vermes nematoides]. Saiu na revista O Hospital, muito conhecida dos médicos na época, mas que hoje já não existe.

y Na mesma época desse curso o senhor estava terminando a faculdade e depois foi para o exterior. Como essas coisas se ligam e quanto tempo o senhor pas-sou fora?Dessa vez passei dois anos em New Orleans, na universidade de Tulane. Lá, me concentrei na rotina de pato-logia, não fazia nenhuma pesquisa em especial. Ia para a sala de autópsias, fazia os procedimentos. Antes, fizera um estágio de seis meses em São Pau-lo, por sugestão do professor Dacorso, algo intermediário. Fiz várias autóp-sias no Hospital das Clínicas da USP. Samuel Pessoa me orientou a procu-rar o professor Constantino Mignone, mas fiquei mesmo com Mário Rubens Montenegro, que era um assistente na época e depois veio a ser um extraor-dinário professor. Nos Estados Uni-dos, treinei inicialmente em técnicas de autópsia. Um outro período, como pesquisador, sob orientação do doutor Emmanuel Farber [respeitado patolo-gista canadense, instrutor de patologia em Tulane no começo da carreira], e depois voltei.

y O senhor já estava casado com a dou-tora Sonia?Não, era noivo, mas me casei depois que voltei. Após sua formatura em 1953, Sonia ficou estagiando no Hospital das Clínicas, como bolsista do CNPq.

y Quando o senhor voltou dos Estados Unidos, foi direto para Ribeirão Preto?Não, voltei para Salvador. Mas Octavio Mangabeira não era mais governador e tinha um grupo que começou uma di-vergência no instituto, o clima, que era bom, ficou prejudicado. Nessa época fui para Ribeirão. Quando voltei, vim para o Hospital das Clínicas, como disse, fiz livre-docência e continuei com os dois empregos, de professor e de pesquisador. Roberto Santos [ex-reitor da UFBA, ex--governador da Bahia] estava formando então um grupo de ensino e eu participei desse grupo. Ficamos num período bom, de ambiente acadêmico de boa quali-dade. Aí o próprio Roberto Santos me comunicou haver uma inscrição para um estágio nos Estados Unidos e per-guntou se eu queria participar, já que eu estava trabalhando com esquistosso-mose e ele podia conseguir um estágio com o grande hepatologista Hans Pop-per. Esse trabalhava no Hospital Mount Sinai, junto do Central Park, em Nova York. Inscrevi-me, fui aprovado e fiquei um ano lá, sob orientação do professor Popper, estudando patologia hepática. Foi muito bom.

y O senhor estudou então vários pro-blemas do fígado.

Kruif mostrava Pasteur, por exemplo, como um sujeito comum, aproximava os grandes cientistas da vida do homem normal, comum

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Sim. Nessa época, Popper publicou um livro e me pediu um capítulo sobre es-quistossomose hepática, o que fiz. É um artigo didático, da patologia do fígado em geral, principalmente como se apre-sentam as lesões vasculares. Depois eu voltei para trabalhar mais especifica-mente com a patologia hepática. Come-cei a estudar cirrose, hepatite, hepatite associada à esquistossomose, juntando o útil ao agradável, como dizem.

y O senhor formou outros patologistas e pesquisadores em sua área. Como foi essa experiência didática?Para a revista que comemora o bicen-tenário da Faculdade de Medicina da UFBA, pediram-me um capítulo no qual eu destaco o trabalho de forma-ção de grupos em patologia. Ficou tão bom e animado esse trabalho, que re-cebemos estudantes de todas as partes do Brasil. E até de fora, da Bélgica, dos

Estados Unidos. Houve um americano que nos trouxe uma técnica de injetar plástico nas veias do fígado e depois dissolver o órgão no ácido, de forma que ficava só o modelo, o que é mui-to bom para estudar as lesões vascu-lares que a esquistossomose provoca no fígado.

y O senhor se aposentou quando da Fa-culdade de Medicina?Em 1980. Quando saí, me integrei com-pletamente aqui na Fiocruz em tem-po integral. A pós-graduação em pa-tologia foi uma conquista muito boa que eu consegui com o auxílio de Luis Macedo Costa, diretor da Faculdade de Medicina, que facilitou a transferência do curso aqui para a Fiocruz. Foi este curso que ajudou a formar aqui vários pesquisadores.

y Eu queria que o senhor falasse um pou-co sobre a dificuldade de fazer pesquisa científica no Nordeste. Escrevi um artigo em 1987, “A pes-quisa médica no Norte e Nordeste”, para o Congresso de Cardiologia no Pará. Eu digo o seguinte: a pesqui-sa científica depende de dinheiro e os países mais ricos produzem mais ciência e de melhor qualidade. No ca-so do Brasil, isso continua se refletin-do nos estados do Sul e do Sudeste, principalmente São Paulo, que tem mais dinheiro para investir em pes-quisa. Isso facilita não só a obtenção de aparelhos, como o intercâmbio. O pessoal, vendo que lá fora estão pu-blicando trabalhos feitos com técni-cas avançadas, vem e quer intercâm-bio, correspondência e isso e aquilo. Agora, fiz nesse trabalho uma defesa do CNPq, onde fui convocado muitas vezes para dar pareceres. Havia quei-xas, o Congresso estava interessado em saber se havia discriminação, e eu mostrei que não existia isso. Nos grupos de avaliação, quando chegava um trabalho do Nordeste, com boas técnicas e bons resultados, causava admiração e simpatia dos assessores, ao contrário do que se possa pensar. w

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Nos próximos anos, a Bahia receberá importan-tes investimentos estratégicos dos governos federal e estadual: uma via férrea dedicada ao transporte de minérios e grãos (Ferrovia Oeste-Leste), dois portos de exportação, ae-

roportos internacionais, centros de logística e um conjunto diversificado de parques industriais, principalmente nos setores automotivo, petroquímico, estaleiros e energias renováveis. Projetos de desenvolvimento regional dessa natureza e outras possibilidades certamente demandarão recursos humanos qualificados para planejamento, implan-tação, consolidação e, posteriormente, para a manutenção dos empreendimentos e iniciativas decorrentes. Para isso, será imprescindível a formação, urgente e em escala massi-va, de mão de obra qualificada em nível universitário, tan-to nas áreas acadêmicas quanto em carreiras profissionais e tecnológicas pertinentes. Este conjunto de demandas e oportunidades contrasta com o quadro de deficiências educacionais e baixa cobertura de educação superior ain-da observado no estado da Bahia, refletindo um contexto nacional neste aspecto ainda bastante precário.

Não obstante, duas tendências de mudança ampla e profunda podem hoje ser identificadas no cenário do en-sino superior do Brasil: expansão com inclusão social. No ano 2000, menos de 3% da população brasileira estava na universidade. Desde então, a taxa de escolarização bruta aumentou rapidamente, principalmente em instituições públicas federais, com um crescimento de mais de 130% entre 2001 e 2013. A primeira onda de expansão, promo-vida entre 2005 e 2010, resultou em 14 novas universida-des e 126 campi de universidades e escolas técnicas fede-rais, em sua maioria localizadas no interior. Em paralelo, houve forte incentivo para combinar essa expansão com ações afirmativas e outras políticas de inclusão social, se-ja como resultado de iniciativas autônomas por parte das universidades públicas, seja como em função de novas leis, regulamentos e normas. Na Bahia, tais vetores assumiram a forma de cotas étnico-sociais combinadas com interiori-zação: em 2001, apenas 585 vagas públicas federais foram ofertadas no interior do estado, em contraste com 2010, quando mais de 11 mil vagas federais foram abertas.

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educação superior para a sociedade tecnocientífica: universidade nova na bahia

naomar de almeida Filho

O programa de expansão univer-sitária da presidente Dilma também foi planejado para contribuir para o desenvolvimento econômico estraté-gico. Em três anos, 47 campi universi-tários e extensões de escolas técnicas foram implementados em cidades escolhidas como polos de desenvol-vimento regional. Além disso, quatro universidades estão sendo criadas em territórios ainda pouco atendidos pelo ensino superior público. Como exemplo disso, podemos citar o ter-ritório baiano, anteriormente de-sassistido e agora contemplado com duas das novas instituições federais de educação superior.

Uma dessas instituições é a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), localizada na região costeira onde os por-tugueses desembarcaram pela primeira vez no Brasil, ainda um dos territórios mais desiguais e carentes do Nordeste brasileiro. A concepção do currículo da nova instituição prevê total compatibilidade internacional, com base em ciclos de aprendizagem integrados a uma rede de colégios universitários, destinada a alunos que se formaram em escolas públicas localizadas em pequenas cidades, assenta-mentos rurais, aldeias indígenas e quilombos. Aproveitando as instalações do sistema público de ensino secundário, os colégios universitários estarão localizados em cidades com mais de 20 mil habitantes e mais de 300 egressos do ensi-no médio. Cada ponto da rede de colégios da comunidade contará com equipamentos de teleducação conectados a uma rede digital de alta velocidade.

No primeiro ciclo, o modelo UFSB de Educação Geral é baseado em cursos de três anos chamados de bacharelados interdisciplinares, compreendendo uma abordagem inovado-ra que pode ser designada como um neo-quadrivium: línguas modernas (minimamente, português e inglês), processamen-to de conhecimento instrumental (competências digitais e habilidades conectivas), raciocínio lógico-interpretativo (uso eficiente de estratégias analíticas e retóricas) e cidadania glo-

“É urgente a formação em escala massiva de mão de obra de nível universitário”

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bal (consciência eco-histórica). Sua plataforma pedagógica baseia-se em três aspectos: primeiro, uma arquitetura curri-cular organizada em ciclos, com modularidade progressiva; segundo, um regime letivo quadrimestral para a otimização de equipamentos, instalações, pessoal e recursos financeiros; terceiro, uma combinação de pluralismo educacional e uso intensivo de tecnologias digitais para a educação superior transformadora. O bacharelado interdisciplinar em ciência e tecnologia será oferecido para aqueles que pretendem ser treinados como profissionais, acadêmicos, pesquisadores e desenvolvedores do campo tecnocientífico. Os graduados que desejarem prosseguir para o segundo ciclo, visando a carreiras acadêmicas ou profissionais, especialmente aque-las de base tecnológica, serão selecionados com base em desempenho no primeiro ciclo.

Cursos de segundo ciclo serão ministrados em centros de formação, com currículos inovadores e métodos ati-vos, equipes de ensino-aprendizagem compartilhado, uso massivo de tecnologias digitais, forte ênfase na tutoria, autoinstrução e foco na prática. Práticas pedagógicas se-rão estruturadas pelos seguintes formatos: aprendizagem baseada em problemas concretos (ABPC), ajustada ao con-texto e objetivos do curso; equipes de aprendizagem ativa, formadas por grupos de dois/três alunos de cada ano, tra-balhando em todos os níveis do campo de prática; estraté-gias compartilhadas de aprendizagem, em que os alunos de cada turma são tutores de seus colegas de coortes menos avançadas; atividades de avaliação orientada pela prática para supervisão, coordenação e validação de conhecimen-to e tecnologias.

Hoje, no Brasil, a formação de profissões relacionadas com ciência e tecnologia se dá em cursos lineares de gra-duação. Neste regime, entrando diretamente nos cursos

profissionais, estudantes ainda jovens e imaturos são for-çados, muito cedo em suas vidas, a tomar decisões cruciais de escolha de carreira. Por um lado, a dura competição para entrar em cursos de maior prestígio social (por exemplo, engenharia), geralmente após cursos preparatórios caros, praticamente torna-os monopólio das classes abastadas, cujos membros tendem a apoiar projetos individualistas de formação profissional. Por outro lado, entre profissionais do campo tecnocientífico, quase não há lugar para a forma-ção geral necessária para uma visão humanista mais ampla da sociedade, da cultura e da economia. Neste contexto, currículos independentes, projetados para exclusividade, tendem a ser menos interdisciplinares e mais especializa-dos, alienando segmentos profissionais uns dos outros, dificultando a formação de profissionais capacitados para eficientemente trabalhar em equipe.

É certo que o desenvolvimento da Bahia terá como base ferrovias, trens e portos para transporte de minérios, par-ques industriais e centros de distribuição de bens e serviços. Porém, para torná-lo sustentável e socialmente impactante, será preciso engajar e beneficiar preferencialmente a econo-mia local, mediante programas de graduação em engenharia e outras carreiras tecnológicas nos setores de transportes, química, logística, computação, mineração, etc., visando à formação de mão de obra local. Entretanto, para além do desenvolvimento imediato, é preciso também identificar de-mandas específicas de propostas de formação, relacionadas não somente ao crescimento econômico, mas também ao desenvolvimento social e humano do estado da Bahia. Neste caso, enquadram-se os campos da saúde, do desenvolvimento ambiental sustentável e das economias criativas, nos cam-pos das humanidades e das artes. Logicamente, todas essas perspectivas justificam projetos de formação universitária de base interdisciplinar, com pedagogias abertas, compatíveis com tendências científicas, acadêmicas e tecnológicas mais avançadas na sociedade tecnocientífica, na linha do projeto político-pedagógico da UFSB. w

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Naomar de Almeida Filho MD, Ph.D., professor titular do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. Reitor da Universidade Federal do Sul da Bahia.

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Depois de atrair multinacionais como ibM e Portugal

Telecom, Parque Tecnológico da bahia prepara

expansão com centros de biotecnologia e energia

Fabrício Marques

um parque para avançar

Um enclave tecnológico capaz de articular pesquisadores, empre-sas inovadoras e instituições de ensino e pesquisa começou a fun-cionar em Salvador, em setembro

de 2012, e vai ganhar novas instalações para multiplicar suas atividades até 2015. Dedicado integralmente à pesquisa aplicada, o Parque Tecnológico da Bahia já atraiu 37 instituições e empresas inovadoras de tecnologia da informa-ção e comunicação selecionadas em chamadas públicas, reunindo multinacionais como IBM, Ericsson e Portugal Telecom, empresas de soft-ware da Bahia, como a Softwell e a Jusbrasil, e empresas nascentes na incubadora Áity, que na língua guarani significa “ninho”.

O primeiro edifício do parque, o Tecnocen-tro, já está com sua capacidade preenchida – lá trabalham hoje 450 pessoas. Vários prédios e laboratórios vão surgir nos próximos meses na área de 581 mil metros quadrados situada na avenida Paralela, a 5 quilômetros do Aero-porto de Salvador. O principal deles é o Centro de Biotecnologia, que envolve a construção de

um complexo de laboratórios, além de uma es-cola de iniciação científica e o Museu Mundo da Ciência. O complexo vai ocupar uma área de 26 mil metros quadrados e terá 13 espaços interligados, com as instalações convergindo para uma vista da Mata Atlântica. Já estão ga-rantidos R$ 28,9 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a segunda etapa do parque e R$ 23 milhões do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e do governo da Bahia para a compra de equipamentos dos laboratórios de pesquisa.

Um novo prédio para abrigar novas empre-sas de tecnologia da informação também está previsto. A Petrobras, em coope ração com a Universidade Federal da Bahia (UFBA), vai im-plantar em breve um centro de pesquisa sobre campos maduros de petróleo que ainda contêm óleo, mas cuja viabilidade econômica esgotou-se após a exploração intensiva. O Centro Integra-do de Manufatura e Tecnologia (Cimatec) do Senai terá um laboratório de bioengenharia, voltado para pesquisa aplicada para a indústria, principalmente os segmentos de equipamen-

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Vista aérea do parque: complexo de prédios e laboratórios vai surgir nos próximos meses

Já construído

tecnocentro implantado em uma área de 25.900 metros quadrados, abriga empresas de tecnologia da informação e comunicação, desenvolve pesquisa em bioinformática, biossensores e desenvolvimento de softwares e dispõe de uma incubadora de empresas.

Futuras instalações

laboratórios coMPartilhados nove instalações serão utilizadas por diversas instituições de pesquisa e universidades do país, com plataformas de biotecnologia e 20 linhas de pesquisas. Uma das principais vocações será a descoberta de novos fármacos.

Petróleo Fruto de cooperação entre a Petrobras e a Universidade Federal da bahia (UFba), o centro de Tecnologia em Energia e campos Maduros (cetecam) será referência na pesquisa sobre campos de petróleo que ainda contêm óleo, mas cuja viabilidade econômica esgotou-se após a exploração intensiva.

Museu Mundo da ciência/ escola de iniciação científica Equipamentos científicos e tecnológicos de áreas como eletromagnetismo, robótica, mecânica, entre outras, serão relacionados ao cotidiano dos alunos para promover a aproximação com a ciência. na escola funcionarão oficinas profissionalizantes destinadas prioritariamente a alunos da rede pública de ensino.

senai/ciMatec O centro integrado de Manufatura e Tecnologia (cimatec) do Senai terá um laboratório de bioengenharia, voltado para pesquisa aplicada para a indústria, principalmente os segmentos de equipamentos e tecnologias na área da saúde.

laboratórios esPecializados Em parceria com universidades, os laboratórios atuarão nas áreas de nanotecnologia, bioengenharia e biomecânica e certificação de equipamentos médicos e painéis fotovoltaicos.

os limites do parque

a área do Parque Tecnológico da bahia divide-se em 83 lotes, sendo 61 privados e

22 públicos. abaixo, a distribuição das instalações que devem estar concluídas até 2015

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tos e tecnologias na área da saúde. Futuramen-te, o Serviço Social da Indústria (Sesi) planeja montar um centro de pesquisa para a saúde do trabalhador. A sede da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) também vai transferir-se para o parque. O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do parque prevê a expansão de seus domínios para uma área total de 1,1 milhão de metros quadrados.“O interesse do governo da Bahia em incrementar o parque está expresso no orçamento do Estado de 2013”, diz o deputado estadual Paulo Câmera, secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação da Bahia entre 2011 e 2013 e um dos artífices do parque. “Poucas secretarias tiveram acréscimo de orçamento e a de Ciência, Tecnologia e Inovação é uma delas, com 227% mais de recursos em relação a 2012”.

Para as empresas associadas, a chance de integrar um parque tecnológico traz be-nefícios imediatos, como a possibilidade

de usar a expertise de bons pesquisadores em temas estratégicos, e também ganhos de longo prazo, como a chance de interagir com outras empresas e pesquisadores atuantes no parque e de recrutar jovens pesquisadores para seus quadros. “Nossa presença no Parque Tecnológi-co da Bahia visa captar e desenvolver o talento local, assim como fomentar parcerias e colabo-rações tanto no âmbito público como privado”, afirma Antonio de Farias Leite Neto, diretor no Brasil da Indra, multinacional espanhola que se instalou no Parque Tecnológico da Bahia em setembro de 2012. “O objetivo é reforçar a aposta da multinacional na inovação aplicada tanto à melhora contínua de processos como ao desenvolvimento de novas soluções e serviços, traduzidas no incremento da qualidade, pro-dutividade e competitividade.” A Indra é uma das empresas-âncoras do parque, ocupando um andar completo com 555 metros quadrados de área, onde trabalham 70 funcionários, em sua maioria de nível universitário das carreiras de tecnologia da informação. A empresa mantém no parque um centro de competência de teleco-municações, destinado ao desenvolvimento de soluções para as operadoras do Brasil e interna-cionais, além de projetos nas áreas da mobilida-de, smart cities e segurança. Também trabalha em parceria com o Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge) na implantação de tecnolo-gias para a inclusão digital e social de pessoas com deficiência. A empresa tem uma rede de 75

laboratórios de software e centros de excelência instalados em 45 cidades do mundo. No Brasil, criou o Centro de Excelência Mundial para Tec-nologias Energéticas na cidade de Campinas, no interior paulista, no qual desenvolveu soluções tecnológicas para a gestão da distribuição de energia implantadas em empresas do Brasil e em companhias de energia da República Domi-nicana, Colômbia, Venezuela, Peru e Argentina.

Outra empresa internacional a integrar o parque, a Portugal Telecom Inovação Brasil, braço de pesquisa e desenvolvimento do gru-po Portugal Telecom, fixou-se no parque para desenvolver serviços de redes inteligentes e gestão de campanhas, além de elaborar promo-ções com base em comportamentos sociais. Já o interesse da IBM Brasil foi criar no parque um escritório e uma célula do Natural Resources Industry Solutions Lab (NRIS Lab), laboratório sediado em São Paulo e voltado para o desen-volvimento de soluções para as indústrias de recursos naturais, como mineração e óleo e gás.

Em julho de 2012, três meses antes da inaugu-ração oficial do parque, a empresa baiana Softwell foi a primeira a instalar-se no Tecnocentro. A companhia, que surgiu em 2004 e seis anos depois ganhou o Prêmio Finep de Inovação na categoria Pequena Empresa, cria ferramentas para simplifi-car os processos de desenvolvimento de software. Seu principal produto é o Maker, plataforma que

Tecnocentro, onde trabalham 450 pessoas: capacidade preenchida

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utiliza uma metodologia de desenvolvimento sem códigos, totalmente visual e que possibilita a construção de sistemas para a web, de forma mais simples e barata. Em dezembro passado, a versão 3.0 do Maker foi lançada. “Trata-se do pri-meiro produto desenvolvido pela Softwell dentro do parque”, diz Adriano Barbosa, coordenador de serviços da empresa. “Nossa presença no parque garantiu uma grande visibilidade para a empresa. Já fechamos negócios com grandes companhias que vieram ao parque em busca de soluções e oportunidades e conheceram nosso trabalho”, afirma Barbosa, citando um contrato recente firmado com o conglomerado português Sonae.

Enquanto grandes empresas dedicam-se à inovação de produtos elaborados e de maturação mais longa, as startups incubadas no parque ten-tam viabilizar projetos de curto prazo, observa o ex-secretário Câmera. Um exemplo é um aplica-tivo de telefone móvel, conectado on-line com as linhas de ônibus, que está sendo desenvolvido pe-la NN Solutions. O sistema busca permitir que os moradores de Salvador acessem, por meio de um telefone celular, informações sobre as linhas de ônibus que trafegam por um determinado ponto de ônibus, escolham qual delas desejam utilizar e solicitem a parada para embarque. “Um outro exemplo é um produto intraoral que é moldado na hora e ajuda a combater o ronco”, diz Câmera, referindo-se à prótese desenvolvida pela empre-sa MK Innovare. Um novo edital da incubadora atraiu 43 projetos de empresas que desenvolvem produtos ou serviços inovadores em conteúdo digital (softwares, aplicativos, games e multimí-dia), audiovisual (cinema, vídeo e animação) e

música – e fazem uso intensivo da tecnologia da informação e comunicação. Oito propostas foram selecionadas no final de dezembro e devem em breve incorporar-se à incubadora. “Em um ano e quatro meses de funcionamento, nenhuma em-presa da incubadora deixou de existir, na contra-mão das estatísticas de mortalidade que o Sebrae costuma divulgar”, diz Câmera. “Retiramos da incubadora apenas uma empresa, porque não cumpria seus compromissos. Temos uma visão rígida a respeito disso”, afirma, referindo-se à assessoria da fundação Certi, de Florianópolis, que dá assistência técnica à incubadora Áyti. Se-gundo ele, o objetivo da incubadora é criar um ambiente para que pequenas empresas surjam e floresçam – e possam tornar-se grandes. “É aquela história do Vale do Silício, que em meio a uma grande quantidade de startups viu surgir empresas como o Google”, diz. Ele se refere à experiência pioneira da Universidade Stanford, na Califórnia, no início dos anos 1950, em que a articulação entre a universidade, empresas de microeletrônica e instituições de pesquisa deram origem ao Vale do Silício, o principal enclave de empresas tecnológicas do planeta – e inspiração para os mais de 900 parques tecnológicos espa-lhados pelo mundo.

Já são visíveis no parque parcerias e troca de experiências que não poderiam ser previs-tas no início do projeto. Uma das empresas incubadas, a Exa-M, tornou-se fornecedora de componentes para o Sirius, novo acelerador em fase de construção do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas (SP). A empresa entregou 42 instrumentos de moni-toração e controle automático de temperatura. Para desenvolver outros componentes do Sirius, a Exa-M recorreu a outra empresa incubada, a Imago. “Essa parceria possibilitou o início de mais sete projetos que estão por se desenvol-ver, pois dependem da capacidade específica em soldagem, o que já está sendo realizado através de parceria com o Senai/Cimatec”, afirma An-tonio Avelino da Rocha Junior, coordenador da Áity Incubadora de Empresas.

Outra empresa incubada, a Lisan Health & Internet, firmou uma par ceria com o pesquisa-dor norte-americano Scott Atlas, professor da escola de medicina da Universidade Stanford e um especialista de renome em diagnóstico de imagem de doenças neurológicas, que de-verá se tornar sócio da startup quando ela ga-nhar mais musculatura. A Lisan criou o portal

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Fonte: grupos de pesquisa do diretório de pesquisa do cnpq, brasil, 2011. número total de pesquisadores:

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Áreas estratégicas da secti número de

grupos

número de

doutores

número de

mestres

Tecnologia da informacão e comunicação (TIC) 71 279 207

Energia 56 321 119

Engenharia 25 123 79

Biotecnologia 38 360 101

Saúde 66 381 217

Subtotal 256 1.464 723

nº total de pesquisadores 4.012 2.501

vocações consolidadas

Grupos de pesquisa, doutores e mestres atuantes na Bahia nas áreas consideradas prioritárias pelo Parque Tecnológico*

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22 | maio de 2014

Raduniverse, um canal exclusivo para médicos que reúne especialistas, diretores de grandes instituições e autores de livros científicos, entre outros. O sistema de colaboração foi idealizado pelos médicos fundadores da empresa, Cristia-ne Possobom da Rosa e Wilson Bruno Lima. Os mais de oito mil médicos já cadastrados na rede que tenham dúvidas sobre determinado procedimento podem entrar no Raduniverse e publicar sua pergunta. Um profissional com conhecimento na área responde à dúvida do colega. A participação é gratuita. O modelo de negócio prevê receitas de publicidade e venda de assinaturas premium, para os médicos, com a oferta de mais produtos e serviços. Num se-gundo momento, o portal também vai oferecer serviços de informação em saúde para o público leigo, num formato que ainda está sendo defi-nido. Especialista em radiologia, o agora em-preendedor Wilson Lima já dedica boa parte de seu tempo à empresa. “A satisfação de ver uma inovação tomar corpo é fantástica”, afirma.

O advento do parque foi resultado de um cuidadoso processo de planejamento. “O primeiro desafio foi identificar gar-

galos e entender por que a cooperação entre empresas e pesquisadores tinha dificuldade de vicejar na Bahia”, diz Leandro Barreto, coor-denador executivo do parque. “Constatamos,

em primeiro lugar, que faltava justamente um ambiente, um espaço físico vocacionado para a cooperação.” O passo seguinte foi mobilizar diversos tipos de ator para viabilizar a ideia. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inova-ção teve um papel importante ao investir na construção do Tecnocentro. A identificação de grupos de pesquisa com bagagem e experiên-cia para participar de projetos vinculados ao parque foi um capítulo à parte. “Fizemos uma prospecção muito forte nas universidades pú-blicas para identificar grupos de pesquisa com potencial de aplicação”, afirma Barreto.

A Bahia tem hoje mais de sete mil pesquisa-dores, sendo mais da metade deles doutores, atuantes em quase 200 grupos distribuídos em instituições nas diversas regiões do Estado. Dos 4.012 doutores atuantes no Estado, 1.083 desen-volvem pesquisa nas áreas prioritárias do Parque Tecnológico, que são energia/meio ambiente e engenharia; biotecnologia e saúde; e tecnologia da informação e comunicação. A Bahia é o sexto Estado com mais pesquisadores do país e o pri-meiro das regiões Norte e Nordeste.

“Mas não adiantaria montar uma estrutura e mapear os grupos de pesquisa sem estimular pesquisadores e empresas a trabalhar de for-ma cooperada”, diz Barreto. Para enfrentar o problema, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia lançou um programa cha-

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empresas e instituições instaladas no parque

1 IBM Brasil

2 Indra do Brasil

3 Portugal Telecom Inovação

4 Fiocruz

5 Proquigel/Unigel

6 Softwell

7 Jusbrasil

8 ZCR

9 INPI

10 UFBA/Fraunhofer

11 IFBA

12 Senai/Cimatec

13 Cetene

14 LSI-TEC

15 Ericsson Inovação

16 Irdeb

17 Prodeb

18 Unicamp/UFBA

19 Coelba

empresas incubadas no parque

1 NNSolutions Desenvolvimento de Sistemas Integrados

2 Brunian

3 Exa-M Instrumentação do Nordeste

4 MDS Tecnologia da Informação

5 MK Serviços Odontologia

6 Imago Desenvolvimento de Produtos

7 MAqHIN Soluções Tecnológicas

8 Oxenti Soluções em Tecnologia da Informação

9 Couroclub Industrial

10 SEO Bahia Soluções em Negócios

11 Lisan Soluções em Internet

12 Fluxotécnica Equipamentos Industriais

13 Viva Inovação Tecnológica

14 Labwin Serviços Especializados

15 TW2 Tecnologia

16 Dossier Digital

17 Makerplanet Informática

18 Grupo Sal

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bahiaciência | 23

do Complexo de Equipamentos Dinamizadores, um conjunto de laboratórios especializados e de laboratórios compartilhados a serem utilizados por empresas e pesquisadores, nas áreas de bio-tecnologia, nanotecnologia, energias limpas, calibração de equipamentos, entre outros. “É necessário criar toda a infraestrutura básica em ensaios laboratoriais, clínicos e pré-clínicos pa-ra atrair pesquisadores e empresas. Montamos laboratórios de padrão mundial de pesquisa, que agora vão ser equipados pelo Estado e pelo MCTI. “A gente espera que isso crie um círculo virtuoso para atrair empresas e avançar rapida-mente. As pesquisas no campo da biotecnologia são de longo prazo e muitos dos pesquisadores com projetos selecionados já têm relações ou vín-culos com empresas interessadas nas aplicações de seus estudos. Esperamos que o parque atraia essas empresas”, completa Barreto.

No campo da energia, o parque vai abri-gar um grande projeto de cooperação entre a Petrobras e a Universidade Fe-

deral da Bahia (UFBA), que será referência na pesquisa sobre campos maduros de petróleo. Trata-se de um tema de interesse também para a Bahia, pois os campos do Recôncavo se enqua-dram nessa categoria. O Centro de Tecnologia em Energia e Campos Maduros (Cetecam) vai desenvolver pesquisa com foco na possibilidade de exploração desses campos. Abrigará núcleos de recuperação de petróleo, de simulação com-putacional, de metrologia e de ensaios orgâni-cos e inorgânicos. A Petrobras vai investir R$ 25 milhões na construção de um prédio.

Já o museu de ciência e a escola de iniciação científica, que têm projeto executivo e investi-mento garantido de R$ 14 milhões, buscam ga-rantir que o parque se integre à cidade e estimule crianças e jovens a seguir a carreira científica. Equipamentos científicos e tecnológicos de áreas como eletromagnetismo, robótica, mecânica, entre outras, serão relacionados ao cotidiano dos alunos para promover a aproximação com a ciência. Na escola funcionarão oficinas profissio-nalizantes destinadas prioritariamente a alunos da rede pública de ensino. “A intenção é dialogar fortemente com a comunidade carente da cidade e criar um ambiente que ajude a formar novos pesquisadores”, diz Barreto. “Queremos criar novas referências para os estudantes e mostrar que, por meio da ciência, eles podem ter traje-tórias diferentes das seguidas por seus pais.” w

mado ProParQ, oferecendo bolsas de até 36 meses de duração e com valores entre R$ 3 mil e R$ 14 mil mensais, dependendo da titulação, a fim de atrair pesquisadores para empresas vinculadas ao Parque Tecnológico. “A inten-ção foi estimular pesquisadores a se inserir nas empresas, com remuneração competitiva”, afirma o coordenador do parque. A Prefeitura de Salvador colaborou ao criar uma política fis-cal específica para as empresas instaladas no parque, com a redução da alíquota do Imposto sobre Serviços (ISS) de 5% para 2% e isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). “Mostramos ao prefeito que as empresas de ba-se tecnológica geram receitas para o município a médio e longo prazos”, diz Barreto, citando o exemplo de Florianópolis, a capital catarinense, cuja receita gerada por empresas tecnológicas já supera a do setor de turismo. Um programa da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inova-ção da Bahia, o Inovatec, financia a aquisição de equipamentos científicos.

A ideia de iniciar o projeto do parque com as empresas de tecnologia da informação e co-municação teve uma razão estratégica. “É mais fácil atrair empresas de TI, pois elas dependem basicamente de mão de obra qualificada e com-putadores, que estavam acessíveis”, diz Barreto. Por isso, a aposta na biotecnologia ficou para a segunda etapa do parque, por meio do chama-

inaugurado em setembro de 2012, o parque ofereceu bolsas para pesquisadores e incentivos fiscais

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ciência

paisagem soteropolitana: fim de tarde na baía de Todos os santos

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AMBIENTE

Projeto mapeia fontes de

poluentes e correntes marinhas

na baía de Todos os Santos

Ricardo Zorzetto*

Ameaça à saúde da baía

Caía a noite de 17 de dezembro passado, uma terça-feira, quando uma explosão ocorreu no interior do navio Golden Miller, que recebia um carregamento de gás propeno no porto de Aratu, na região metropolitana de Salvador.

À explosão inicial, seguiu-se um incêndio que lançou parte do combustível do navio no canal que liga a baía de Aratu à imensidão de águas cor de esmeralda da baía de Todos os Santos, a segunda maior do Brasil e porta de entrada dos colonizadores europeus que chegaram à então colônia portuguesa há pouco mais de 500 anos. Uma análise inicial feita pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), a agência ambiental da Bahia, indicou que o va-zamento de combustível, apesar de aparentemente ser de pequena proporção e das medidas de contenção tomadas, fez aumentar nos dias seguintes a concentração de poluen-tes nas águas ao redor do porto. “Essa contaminação, ainda que de pequeno porte, certamente vai prejudicar a ativida-de de quem vive da coleta de mariscos na região”, afirma o químico Jailson Bittencourt de Andrade, pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que há quase dez

*Versão atualizada de reportagem publicada em novembro de 2012 na revista Pesquisa FAPESP.

anos coordena o mapeamento e o monitoramento da po-luição ambiental na baía de Todos os Santos.

Bem próximo ao porto, no canal que une a baía de Aratu à baía de Todos os Santos, ficam alguns dos principais pon-tos de pesca e coleta de mariscos da região. Numa manhã de outubro de 2012, durante uma visita de barco aos pontos em que a equipe de Andrade regularmente capta amostras de água e sedimentos para a análise de poluentes, cerca de 40 mulheres e crianças mariscavam em uma faixa de areia exposta pela maré baixa. Elas desenterravam usando uma colher ou apenas os dedos um pequeno molusco que cha-mam de chumbinho ou papa-fumo, pouco maior que a unha do polegar. Levavam horas, trabalhando sob sol intenso, para encher um cesto grande de mariscos, que, depois de limpos, rendiam cerca de dois quilos e seriam vendidos a R$ 17 para os comerciantes de pescados da região. Como têm baixo valor comercial, o chumbinho e outros mariscos, co-mo a lambreta e o sururu, são a principal fonte de proteína animal de quase 15 mil famílias de pescadores e catadores de moluscos da baía de Todos os Santos, contaram à época os pesquisadores da UFBA. Vivendo abaixo da linha de po-breza, muitas dessas famílias se alimentam hoje de modo semelhante ao dos primeiros seres humanos que milhares de anos atrás ocuparam a costa do que viria a ser o Brasil. “E essa dieta se mantém”, diz Andrade.

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Já faz algum tempo, porém, que é recomen-dável consumir com moderação os peixes e os frutos do mar apanhados em Aratu, Itapagi, Suba e em outras áreas mais industrializadas da baía de Todos os Santos. Eles estão contamina-dos. Segundo análises conduzidas pela equipe da UFBA, eles concentram alguns metais em níveis superiores aos aceitos por autoridades da saúde como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Muitos desses metais são elementos químicos que, em concentrações bem baixas, são essenciais para uma boa saúde, mas, em níveis altos, podem ser tóxicos. Comer os pescados e os moluscos de áreas contaminadas algumas vezes na semana não chega a causar risco à saú-de, afirmam os pesquisadores. Mas os pescado-res e os catadores de mariscos, que consomem frutos do mar quase todos os dias, tornam-se mais vulneráveis a desenvolver problemas de saúde associados à exposição contínua a ele-vadas concentrações de alguns desses metais.

quem corre mais risco são as crianças”, comenta a oceanógrafa Vanessa Hatje, que acompanhou a visita aos pontos da

baía de Todos os Santos em que foram feitas as medições. “É que a capacidade de diluir elemen-tos químicos no organismo está diretamente relacionada à massa corporal”, explica Vanessa, que à época coordenava o Laboratório de Ocea-nografia Química da UFBA e era braço direito de Andrade na primeira fase do Projeto Baía de Todos os Santos. Planejado para seguir até 2038, esse projeto, do qual participam quase 50 pesquisadores, investiga as características físi-cas, biológicas, culturais e históricas da região e, assim, contribui para a gestão sustentável dessa baía, a segunda maior do país – menor apenas que a de São Marcos, no Maranhão.

Entre 2006 e 2010, Vanessa, o oceanógrafo Manuel Nogueira de Souza e Cláudia Windmöl-ler, da Universidade Federal de Minas Gerais, coletaram moluscos em 34 pontos da baía de Todos os Santos. A análise química demons-trou que ao menos quatro elementos químicos (arsênio, zinco, selênio e cobre) apareciam em concentrações relativamente altas em maris-cos e ostras. Os moluscos mais contaminados, segundo artigo publicado em 2011 no Marine Pollution Bulletin, haviam sido apanhados em Aratu, próximo ao local em que as marisqueiras trabalhavam naquela manhã de outubro, e no estuário do rio Subaé, a noroeste dali.

Era até de esperar que fosse as-sim. A baía de Aratu, localizada cer-ca de 20 quilômetros ao norte de Salvador, abriga um dos três portos mais movimentados da baía de To-dos os Santos. Aratu também está cercada por indústrias químicas, petroquímicas, metalúrgicas e de alimentos. A menos de 50 quilôme-tros a nordeste dela, está instalado o polo petroquímico de Camaçari, o maior da América do Sul. Já no es-tuário do rio Subaé, no extremo no-roeste da baía de Todos os Santos, a principal fonte de contaminantes foi por muito tempo a mineradora Plumbum. Desativada em 1993, ela lançou por quase três décadas quan-tidades apreciáveis de chumbo, cád-mio, arsênio e zinco no rio Subaé.

“Havia poucos estudos, quase to-dos de circulação restrita, sobre a contaminação ambiental na baía”, conta Andra-de, que coordena também o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Energia e Ambiente. “As pesquisas anteriores se baseavam em medições pontuais, que usavam técnicas distintas; agora

A baía de Todos os Santos, suas ilhas e seus principais afluentes

Porta de entrada do brasil

Pescadores e catadores de

mariscos, que consomem frutos

do mar todos os dias, tornam-se

mais vulneráveis a desenvolver

inflamações

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estamos estabelecendo protocolos que permi-tirão acompanhar a evolução no tempo”, diz o químico, que anos atrás conduziu uma avaliação da qualidade do ar na baía de Todos os Santos, chamada de Kirimurê pelos tupinambás que habitavam a região antes da chegada dos europeus.

Há cerca de dez anos, seu grupo instalou estações medidoras de poluentes em três pontos: na rodoviária da Lapa, um mo-

vimentado terminal de ônibus no centro de Sal-vador; no porto de Aratu, onde há intenso trans-porte de cargas e minérios; e em Bananeira, uma vila de pescadores com cerca de mil habitantes na ilha de Maré. O resultado, de certo modo, sur-preendeu. O ar da rodoviária era o mais poluído, como alguns já imaginavam. Mas não se espera-va que o ar em Bananeira pudesse ser quase tão ruim quanto o do porto de Aratu, distante cinco quilômetros. “Em algumas horas do dia, é como se os moradores de Bananeira estivessem dentro do porto”, disse Andrade, apontando para um conjunto de casas entre plantações de banana, enquanto conduzia o barco pelo canal que separa a ilha de Maré do porto durante a visita de 2012.

Além de continuar a medir os níveis de conta-minantes de forma sistemática e por um longo prazo, os pesquisadores tentam compreender a dinâmica de transporte e destino dos contami-nantes na baía e o impacto sobre os organismos vivos. Com Francisco Barros, do Laboratório de

Ecologia Bentônica da UFBA, Vanessa avaliou a concentração de metais na água, nos sedimen-tos e na fauna dos três principais rios que de-ságuam na baía – o Jaguaripe, o Paraguaçu e o Subaé. Eles verificaram que a Plumbum, mesmo fora de operação há três décadas, ainda polui o Subaé e áreas adjacentes. No inverno, a chuva lava os reservatórios e as pilhas de escória da an-tiga mineradora e carrega mais contaminantes para o rio. De modo geral, os metais dissolvidos na água aderem a partículas em suspensão e se acumulam progressivamente nos sedimentos do fundo dos rios à medida que se caminha para a foz. Em alguns pontos, a concentração atinge níveis tóxicos para a fauna de bentos – moluscos, poliquetas e alguns peixes.

“Em uma das estações no estuário do rio Su-baé não encontramos seres vivos no sedimen-to”, diz Barros, que começava a realizar testes para verificar se o desaparecimento dos bentos era consequência da toxicidade do substrato ou de um estresse natural daquele trecho do rio.

Como o aporte de água de origem fluvial é pequeno se comparado ao volume total da baía, a troca de água entre a baía e o oceano, por meio da maré, determina em grande parte a capaci-dade de diluição e dispersão de contaminantes e material particulado em suspensão. Na ten-tativa de compreender a circulação e o trans-porte de água e materiais para dentro e fora da baía, o geógrafo Guilherme Lessa, especialista em sedimentologia, iniciou o monitoramento das correntes que circulam na baía de Todos os Santos. Uma vez por mês ele percorre dez esta-ções e mede as características físico-químicas (salinidade, temperatura e material particu-lado) e coleta plâncton. Em três das estações, um equipamento mais simples, do tamanho de uma lanterna, registra continuamente infor-mações sobre o material em suspensão e sobre a salinidade e a temperatura da água. Assim, espera-se caracterizar a direção e a velocidade das correntes que movem as partículas no in-terior da baía em diferentes períodos do ano. “Queremos verificar se a baía de Todos os Santos está importando água e material particulado do oceano ou exportando para ele”, explica Lessa.

Usando dados coletados em 2003, ele mediu a circulação de água entre a baía de Aratu e a baía de Todos os Santos. A análise preliminar indicou que, no inverno, correntes mais profun-das conduzem água da baía maior para a menor. Já as águas de Aratu saem para a baía de Todos

sob sol intenso: mulheres coletam mariscos no canal de aratu

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28 | maio de 2014

os Santos por correntes superficiais – há indí-cios de que no verão esse fluxo seja invertido.

Ainda não é possível saber se o que Lessa viu nessa área vale para a comunicação entre a baía de Todos os Santos e o Atlântico. Para obter es-se tipo de informação será necessário instalar equipamentos que medem o fluxo de água em dois pontos da baía, que complementarão as informações que já vinham sendo coletadas. Ele calcula que será preciso colher dados por 15 anos para mapear os ciclos de troca de água entre a baía e o oceano.

Zelinda Leão e Ruy Kikuchi, geólogos da UFBA que acompanham a saúde dos corais na costa bra-sileira, esperam que os dados sobre as correntes marinhas na baía ajudem a esclarecer o que vem ocorrendo com os corais. Na baía de Todos os San-tos existem dois grandes bancos de corais: um na região interna, próximo à ilha dos Frades; e ou-tro em mar aberto, em frente à ilha de Itaparica. Nos últimos anos, Zelinda e Kikuchi observaram vários episódios de branqueamento dos corais.

Os corais perdem sua cor natural e se tornam esbranquiçados quando algas microscópicas que vivem em seu interior, as zooxantelas, morrem

pesca do xaréu: detalhe do mapa brasilia qua parte paret belgis, de georg marcgraf, 1647

Enquanto parte da equipe de Jailson

Bittencourt de Andrade se dedica a

conhecer os aspectos físicos e

biológicos da baía de Todos os Santos,

a etnógrafa Gal Meirelles e o historiador

Caio Adan, ambos da universidade

Estadual de Feira de Santana, atuam,

respectivamente, no registro de

características culturais que começam

a se perder e de informações históricas

desconhecidas do público.

Por quase cinco anos, Gal morou na

comunidade Baiacu, na ilha de Itaparica,

e registrou o modo de vida dos

pescadores e as diferentes técnicas de

pesca artesanal usadas na baía de Todos

os Santos, um conhecimento que parece

não interessar às gerações mais novas.

“Nas comunidades há falta de emprego

e os jovens têm admiração pela vida

em Salvador, mas, se vão para a capital,

só conseguem bicos e subemprego”,

conta Gal. Dessa etnografia da pesca

nasceram o vídeo Pesca de mestres e a

série de fotos O peixe nosso de cada dia,

exposta na comunidade dos pescadores.

Com o sociólogo Milton Moura, da UFBA,

Gal trabalhou no registro fotográfico

e em vídeo dos festejos tradicionais

da ilha de Itaparica que comemoram

a independência do Brasil.

Ela auxiliou ainda Caio Adan a se

embrenhar em arquivos e museus do

Brasil e da Europa. Em acervos na Bahia,

no Rio de Janeiro, em Portugal e na

Espanha, ele teve acesso a quase 200

mapas feitos entre os séculos XVI e XX e

iniciou a documentação do patrimônio

cartográfico da baía de Todos os Santos.

Nesse material há preciosidades,

como um mapa de meados do século

XVII mostrando como as redes eram

dispostas na pesca do xaréu, peixe

grande cuja captura exigia a participação

registro histórico e cultural

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de dezenas de homens. Ou ainda uma

carta encontrada no arquivo do

Itaramaty, no Rio, indicando a existência

de um canal que não se conhecia na

península de Itapagipe. Esse canal, que

não se sabe se foi de fato construído,

facilitaria a navegação entre a região

norte e o centro de Salvador.

A partir do século XIX, Adan notou

que as cartas se tornaram mais técnicas

e precisas. “Possivelmente para auxiliar

a navegação na baía”, explica o

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equipamento para medição de

características físico-químicas da água

(ao lado) e banco de corais (acima)

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Não é de hoje que as águas e o ambien-te no entorno dessa baía pagam um preço alto por ela ter servido de porta

de entrada para o Brasil. Desde que a expedi-ção do navegador português Gaspar de Lemos aportou ali em 1˚ de novembro de 1501, Dia de Todos os Santos na tradição católica, houve sucessivas alterações. A fundação de Salvador em 1549 por Tomé de Souza, enviado do rei de Portugal para criar uma cidade-fortaleza e iniciar a ocupação das terras do Novo Mundo, forneceu os braços e os machados que trans-formaram em lenha e madeira a exuberante mata atlântica, abrindo espaço para a cana e os engenhos de açúcar, a unidade agroindustrial mais avançada do Brasil colonial. A mudança mais intensa, porém, ocorreria mais tarde, com a descoberta de petróleo no Recôncavo Baiano e a instalação em 1950 da refinaria Landulpho Alves, no município de Mataripe, que levariam o governo da Bahia a apostar na petroquímica como modelo de desenvolvimento econômico.

Houve recentemente uma retomada no de-senvolvimento industrial da região, com inves-timento em um novo polo metal-mecânico, na ampliação de portos e na construção de estalei-ros. “Nos últimos tempos se adotaram medidas de controle para reduzir a emissão de metais, mas pouco se avançou”, explicou Vanessa no retorno da expedição pela baía. “Em vários pon-tos o esgoto doméstico ainda alcança os rios e a baía sem tratamento.” Apesar desses problemas, a baía de Todos os Santos ainda conserva áreas bem preservadas, como a foz do rio Jaguaripe, ao sul da ilha de Itaparica. Sua saúde, de modo geral, é considerada bem melhor que a da baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, que ocupa uma área três vezes menor e está rodeada por uma população três vezes maior. Mas Vanessa teme que não continue assim por muito tempo. An-tes de o barco aportar na marina, ela lamentou: “Acredito que as condições ambientais ainda vão piorar muito antes de começar a melhorar”. w

exibição na praia: fotos sobre o cotidiano da pesca em exposição para a comunidade ribeirinha

artigos científicos

1. BARROS, F. et al. Subtidal benthic macroinfaunal assembla-ges in tropical estuaries: Generality amongst highly variable gradients. Marine Pollution Bulletin. out. 2012.

2. HATJE, V.; BARROS, F. Overview of the 20th century impact of trace metal contamination in the estuaries of Todos os Santos Bay: Past, present and future scenarios. Marine Pollution Bulletin. jul. 2012.

3. SOUZA, M. M. et al. Shellfish from Todos os Santos Bay, Bahia, Brazil: treat or threat? Marine Pollution Bulletin. out. 2011.

historiador, que planeja descrever

o material que reuniu e montar um

banco de dados na internet e torná-lo

disponível para outros pesquisadores.

Segundo Adan, uma avaliação inicial

dos mapas corrobora a ideia de que a

baía de Todos os Santos desempenhou

função central na formação do Estado

da Bahia. Por muito tempo, inclusive,

ela foi compreendida como um espaço

mais amplo do que o delineado pelo

acidente geográfico de mesmo nome.

ou são eliminadas – essas algas fornecem oxigê-nio e nutrientes que auxiliam os corais a produ-zir um esqueleto calcário. Embora nem sempre signifique a morte do coral, o branqueamento é indício de que algo não vai bem. Kikuchi sus-peita de que o problema na baía de Todos os Santos se deve à elevação global da temperatu-ra da água do mar, a episódios de aumento de partículas em suspensão, que turvam a água e reduzem a penetração de luz, e possivelmente à poluição química. Em 2011 os pesquisadores observaram branqueamento em vários pontos próximos ao porto de Salvador, que estava sen-do dragado. Além disso, há quase uma década constataram o desaparecimento de uma das oito espécies nativas da costa brasileira que viviam ali, o Mussismilia braziliensis. Mais recentemen-te, equipes da UFBA, da Uerj, da Universidade Federal de Alagoas e da ONG Pró-Mar relataram o espalhamento do coral-sol, espécie invasora adaptada a ambientes turvos.

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30 | maio de 2014

Pesquisadores estudam novos métodos de controle

da lagarta-comilona, praga dos campos no brasil

Francisco bicudo e Rodrigo de Oliveira andrade

intrusa esfomeada

Uma lagarta de apenas quatro centímetros de comprimen-to, comum na Ásia, África e Oceania, está causando

enorme dor de cabeça em agricultores baianos e de outros estados produto-res como Mato Grosso, Paraná, Goiás e Minas Gerais. Com variações de cor que vão de um verde bem vivo ao casta-nho, a Helicoverpa armigera – também conhecida como lagarta-comilona – tem destruído, indiscriminadamente, plantações de soja, milho e feijão, en-tre muitas outras, provocando perdas estimadas em R$ 2 bilhões apenas na safra baiana de 2012-13.

Todo esse estrago levou pesquisadores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) a desenvolver um projeto para tentar combatê-la de um modo mais eficaz. A equipe de Flávia Silva Barbosa, professora do Centro de Ciências Agrá-rias, Ambientais e Biológicas da UFRB, iniciará testes no começo de junho com um inseticida à base de sisal para tentar

lagarta Helicoverpa armigera já causou

prejuízo de r$ 2 bilhões em

campos da bahia

controlar a praga. “Sabemos que não va-mos eliminá-la. Mas é preciso reduzir os danos e a população da Helicoverpa para garantir a produção agrícola”, diz.

Os primeiros sinais da lagarta no Brasil foram registrados no final de 2012. Um ano depois ela já ameaçava mais da metade das áreas de produção agrícola do país. Isso obrigou o Ministé-rio da Agricultura, Pecuária e Abasteci-mento a decretar estado de emergência nas regiões atingidas, estabelecendo medidas excepcionais de controle da praga, como aplicações múltiplas de inseticidas químicos e biológicos. Ain-da não se sabe como a espécie chegou ao Brasil. “Pode ter sido trazida numa muda qualquer ou em plantas orna-mentais. O fato é que encontrou aqui as condições ideais para se desenvol-ver durante todo o ano”, explica Flávia.

Parecida com a Helicoverpa zea, que ataca o milho, a lagarta-comilona no início enganou os produtores, que acreditavam lidar com uma praga já

conhecida. Eles logo perceberam que havia algo mais sério quando se depa-raram com a capacidade destrutiva do bicho. “Só confirmaram que se tratava de outra espécie quando a Embrapa fez testes em laboratório e observou uma ligeira diferença no órgão genital masculino da H. armigera, em compa-ração com a H. zea”, explica Tamara Leal, mestranda em ciências agrárias na UFRB sob orientação de Flávia.

Ela conta que o apetite da lagarta--comilona chega ao ponto de ela atacar plantas ornamentais e nativas – que não são cultivadas – e até ervas dani-nhas. “Há casos relatados de caniba-lismo, inclusive”, diz. Nas plantações, consome folhas, frutos, o caule e as vagens. Tudo é alimento para a Heli-coverpa, que leva em média trinta dias para sair do ovo, virar lagarta, assumir a forma de pupa e então se transformar em mariposa.

Sua taxa de fecundidade é alta – uma fêmea pode botar até mil ovos –,

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assim como sua capacidade de disper-são, explica Tamara. Um adulto conse-gue voar até mil quilômetros em três dias. Como se isso não fosse suficien-te para atormentar os agricultores, a lagarta-comilona desenvolveu resistên-cia a inseticidas e até ao baculovírus, microrganismo por muito tempo usado como controle biológico de outra praga das culturas de soja, a lagarta-da-soja (Anticarsia gemmatalis). “Trata-se de um problema agrícola difícil de resol-ver”, afirma Flávia.

Possível estratÉGia

Uma planta bastante conhecida dos agricultores baianos, o sisal, pode ser um aliado no combate e controle dessa praga dos campos. O sisal contém com-postos químicos com ação inseticida, capazes de eliminar ácaros e moscas, por exemplo. Em seu mestrado, Tamara pretende avaliar se um inseticida ecoló-gico à base de sisal seria eficiente para reduzir as populações de H. armigera.

Ela planeja testar duas formulações: uma obtida a partir do sisal fervido em água e outra da planta misturada ao álco-ol. Em seguida, deverá aplicar o composto diretamente na lagarta em suas diferen-tes fases de desenvolvimento, a fim de verificar sua capacidade de combatê-la. Em laboratório, também deve testar o produto nas plantas atacadas pelo bicho para ver se o inseticida provoca alguma repulsa. Se os resultados forem positivos, ela testará o inseticida biológico em cultu-ras selecionadas próximas aos municípios de Barreiras e Luiz Eduardo Magalhães, interior do estado. “Vamos aproveitar um produto típico da Bahia, dando destino adequado ao que seria jogado no lixo.”

Os pesquisadores esperam que, além de matar a lagarta, o sisal reforce os me-canismos de defesa naturais das plantas e não elimine os predadores naturais da lagarta-comilona, como vespas e joani-nhas, muitas vezes mortas pelos agro-tóxicos tradicionais. Estudo feito pela Embrapa-Soja, coordenado pela pesqui-

sadora Clara Beatriz Hoffmann-Campo, sugere ser fundamental preservar esses e outros inimigos naturais da H. armi-gera. “Com o manejo adequado, a ten-dência é que as populações de inimigos naturais cresçam. Estamos reforçando a orientação para que o produtor monito-re as culturas e não aplique inseticidas indiscriminadamente”, afirma a pesqui-sadora num comunicado de imprensa publicado no site da Embrapa.

Segundo a Embrapa, o crescimento populacional de lagartas do gênero Heli-coverpa e os prejuízos por elas causados à agricultura são consequência de práticas de cultivo equivocadas, como o plantio su-cessivo de espécies vegetais hospedeiras (milho, soja e algodão) em áreas muito extensas e próximas associadas ao uso inadequado de agrotóxicos. Flávia diz ter consciência da dimensão do desafio e in-siste em que é preciso pensar o problema de forma global e articulada. Para ela, me-didas pontuais e isoladas não vão funcio-nar para afastar a penetra indesejada. w

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Duas diferentes práticas acadêmicas – uma, tradicional, ensinar ciência, e outra, mais re-cente, ensinar integridade em ciência – foram--me possibilitadas por uma experiência de 45 anos no ensino da genética e da bioética.

Primeiro, durante 25 anos, ou seja, de 1968 a 1993, minha experiência didática vinculou-se à disciplina de genética médica, na Faculdade de Medicina da Universidade Fede-ral da Bahia (UFBA). E nos 20 anos seguintes voltou-se à bioética, na mesma instituição e na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

É desde esse já tão longo percurso que vejo o conheci-mento em genética construído com vocabulário próprio para descrever fenômenos biológicos, em condições usuais e desviantes, usando terminologia específica para grande número de enzimas, proteínas, doenças e síndromes. Prá-ticas em laboratório e exame clínico de pacientes reforçam o enriquecimento da linguagem e da aprendizagem com termos genético-clínicos.

A aferição de conhecimentos no final do curso de genética médica sugere fortemente que o aluno bem-sucedido está apto a reconhecer e a encaminhar problemas de genética na prática médica. A construção desses saberes ocorreu fundamentalmente no âmbito do ensino da disciplina, uma vez que o mundo (sociedade, cultura) não ensina genética. Sejam quais forem os valores culturais do aluno, a apren-dizagem da genética não encontra concorrência em seu universo cognitivo ou em sua percepção moral do mundo.

De outro lado, vejo que o ensino da ética através da dis-ciplina bioética e, em especial, do tema “integridade em ciência”, além de exigir menor esforço do aluno por não possuir uma linguagem com vocabulário específico – tal-vez a palavra axiograma seja a única novidade vocabular –, dirige a oferta de conhecimentos ao universo moral do aluno, já construído como fruto da cultura na qual se de-senvolveu e atua. Em outras palavras, antes de ser aluno da disciplina bioética, ele já o foi do mundo. Diferentemente do que se dá em genética, o mundo ensina ética.

Assim, a aferição de conhecimentos ao final do curso de bioética em nada assegura que o aluno nota dez tenha simplesmente tramitado saberes através da razão, sem

artiGo

educar para a integridade em ciênciaEliane S. azevedo

qualquer mudança ou aprimora-mento de valores morais. Aqui, o professor tenta se aproximar de um universo moral preexistente, moldado pela cultura prevalente e respectivos valores. As horas de au-las teóricas e as práticas discursivas de casos de conflitos éticos têm o extraordinário desafio de atingir o axiograma do aluno, ou seja, o con-junto de seus valores morais, para aí semear inovada visão de mundo.

O desafio que persiste é identi-ficar a melhor prática pedagógica para assegurar o sucesso no ensino da ética em ciência, seja da bioética em geral, da ética da pesquisa em

seres humanos, da ética da pesquisa em animais ou da in-tegridade científica. A literatura bioética reflete justamente essa preocupação.

Tenho me aventurado pessoalmente em algumas publi-cações sobre o tema e, não obstante os esforços, persistente é o desejo de não querer acreditar que ética não se ensina e, portanto, de não desistir de ensiná-la, mesmo sentindo a desproporção entre a milenar herança cultural que cons-truiu a sociedade ocidental e as 30 ou 90 horas de aulas que em geral ministramos a cada turma.

Tomemos o Brasil como exemplo: somos herdeiros da cultura hebraico-greco-romana aqui trazida pelos brancos colonizadores, acrescida de contribuições da cultura indí-gena, através dos verdadeiros donos das terras, e da cultura afro, para aqui trazida sob o ímpeto da exploração escra-vista. Deste tríplice encontro de etnias moldam-se o povo brasileiro e sua identidade cultural. Pondo em destaque o que interessa à integridade em ciência, reconhecemos que, à semelhança de todo o Ocidente moderno, preservamos impulsos de promoção pessoal gerados pela ganância de lucro e ambição de poder-prestígio.

Estes dois motores de ação se fazem presentes também no mundo da ciência, notoriamente nas últimas décadas, reproduzindo na academia o vale-tudo da competição por

“A desonestidade em ciência pode ser enfrentada de duas formas: preventiva e corretiva“

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sucesso. Neste cenário, a desonestidade em ciência é usada como ferramenta facilitadora de supostos sucessos alcan-çados pela via do menor esforço. Invenção de dados e de pesquisa que não existem (fabricação), alteração de dados existentes (falsificação), cópias indevidas de outros pes-quisadores (plágios), ganhos dissimulados (conflitos de interesse), etc., são condutas desonestas já identificadas.

Vamos exemplificar apenas com o fato de que em 1981 o governo dos Estados Unidos, o país maior produtor de ciência no mundo, reconheceu que a má conduta em ciên-cia havia se tornado problema de ordem pública. Nos anos seguintes, várias ações foram desenvolvidas pelo governo norte-americano, culminando com a criação do Escritório de Integridade Científica (ORI, na sigla em inglês), órgão governamental destinado a receber denúncias de má prática científica e a investigá-las, divulgá-las e estabelecer as res-pectivas punições aos cientistas infratores. As conclusões das investigações do ORI são de livre acesso na internet através da publicação mensal da ORI-newsletter.

A partir dessa mesma época, vários países da Europa criaram órgãos com fins de proteger a boa ciência. Não apenas as instituições de ciência e governos, mas também editores de revistas científicas.

No Brasil, a criação do sistema Conep-CEPs (siglas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e dos Comitês de Ética em Pesquisa), destinado a preservar a ética na investi-gação com seres humanos, ocorreu só em 1996 – portanto, 20 anos depois da iniciativa dos Estados Unidos. E a criação

de uma comissão de integridade científica, há poucos anos, também se deu em atraso, comparativamente a outros paí-ses produtores de ciência.

Por outro lado, ainda que as ações de governo surgissem com certa lentidão, pesquisadores brasileiros criaram em 1993 a revista Bioética, no Conselho Federal de Medicina – com publicação ininterrupta há 20 anos –, e pouco depois, em 1995, a Sociedade Brasileira de Bioética. Os dois eventos sinalizam que alguns pesquisadores brasileiros mantinham--se relativamente atentos às questões da ética em ciência que emergiam em países mais avançados.

Em 2009, Tavares-Neto e eu revelamos, em estudo publi-cado na revista da Associação Médica Brasileira, que 50% das “instruções aos autores” de 20 periódicos da área médica, nível A da Capes, exigiam que a pesquisa tivesse sido aprovada por um CEP e 55% exigiam que os conflitos de interesse fossem declarados, sendo que 40% indicavam consulta aos “Requi-sitos Uniformes para Manuscritos Submetidos a Revistas Científicas”. Todavia, nenhuma das 20 revistas alertava nas “instruções aos autores” sobre questões de fraudes, falsifica-ções e plágios nos artigos a serem submetidos.

À semelhança de uma enfermidade (moral), a desonesti-dade em ciência pode ser enfrentada de duas formas: pre-ventiva e corretiva. A ação corretiva vem sendo associada a denúncias de fraude, falsificação ou plágio dirigidas a órgãos especialmente criados para este fim e adequada-mente capacitados a recebê-las, à semelhança do ORI nor-te-americano. A propósito, pesquisa publicada por Fang, FO

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Steen e Casadevall em 2012, no peródico Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), demonstrou que o percentual de artigos retratados (cancelados) em publica-ções do PubMed aumentou dez vezes entre os anos de 1975 e 2012. Estes mesmos autores demonstraram que cientis-tas desonestos preferencialmente publicam seus trabalhos em revistas de alto fator de impacto, quando a má prática é por fraude. Quando por plágio ou duplicação, as revistas de médio impacto são as preferidas.

Sem negar a importância social da denúncia, verificação e punição, sigo apostando na necessidade de encontrarmos meios eficazes de educar para a boa ciência. Neste sentido, publiquei em 2008 um artigo em livro de edição local (V Dia da Bioética na UEFS), em que discutia a questão da in-tegridade em ciência em cada passo da investigação cientí-fica experimental, ao longo das diversas etapas do método científico. Comecei com a ideia da pesquisa, passando para a busca bibliográfica, diretrizes do projeto, plano de pesquisa, coleta de dados, codificação e armazenamento de dados e de material, análise de resultados, interpretações da análise, redação do trabalho para publicação, conclusões, autores, colaboradores, agradecimentos e referências bibliográficas.

Para cada uma destas etapas descrevia as possibilidades de má conduta intencionais ou por desconhecimento. Hoje, convencida do impacto das novas tecnologias no impulso à comunicação simplificada, ao modo dos Twitter, Facebook, etc., e isso aliado ao fato de termos lido que os jovens retêm melhor as informações em pequeno número de toques que as informações discursivas, tendo a rever essa publicação à moda mais atual de comunicação.

Assim, mantendo o esquema geral do artigo, podemos simplificá-lo pondo ao lado de cada passo da metodologia da pesquisa uma mensagem twitada daquilo que não deve ser feito. Vejamos:

Planejamento da pesquisa:“Não roube a ideia de outros”.Coleta de dados:“Não altere nem invente”.Análise de resultados:“Não manipule gráficos e tabelas”.Redação:“Não escreva mentiras nem plágios”. Referências bibliográficas:“Não force citar a si mesmo ou a sua revista”.Comentários:“Não exalte sua vaidade”. Conclusões:“Não promova sua ambição”.Notas:“Não omita conflitos de interesses”.Se estiver atuando como revisor:“Não abuse do poder de revisor”.

Finalmente:“Não faça o que não pode defender de público”.

Assim, estamos mais uma vez tentando nos aproximar de um desenho didático a ser assimilado pelo aluno. Nes-sa tentativa, não podemos esquecer que o que a sociedade cobra e a cultura ocidental reforça é o sucesso profissional a qualquer preço. Na década de 1980, em breve viagem aos Estados Unidos, chocou-me ver uma charge em um jornal local em Chicago, na qual uma fila de jovens de nariz em-pinado dizia a um único jovem destacado por uma aura de santidade: “Eu fraudei, fraudei, fraudei... e hoje tenho um escritório na 5ª Avenida. E você?”.

Infelizmente, valores desta natureza estão bem difundi-dos e também bem dissimulados, uma vez que o discurso da honestidade é fortemente enfatizado por todos, mas... não posto em prática na mesma proporção.

Os avanços da ciência na modernidade fizeram crescer o número de pesquisadores e, consequentemente, a comu-nidade científica, trazendo para dentro dela a moralidade prevalente em qualquer setor competitivo da sociedade. Mesmo estando a ciência fundamentalmente compro-metida com a verdade, tentando se aproximar dos reais mecanismos e leis que regem a natureza em seus diversos planos – biológico, físico, químico, social, planetário, cós-mico, etc. –, ela não consegue manter-se como uma escola de moral, como um dia a definiu o filósofo Mario Bunge. Os rigores do método científico protegem a ciência de erros inerentes à prática da investigação em si, mas é permeável à manipulação desonesta do pesquisador.

A perda de confiança na ciência levaria a humanidade ao caos psicológico gerado por profundos sentimentos de insegurança, não apenas relativamente aos sistemas de produção e consumo na área da saúde humana e animal (medicamentos, vacinas, equipos médicos, alimentos, etc.), mas também nas questões de construção, transporte, co-municação, aparelhos domésticos, produtos de limpeza, cosméticos, etc. A ciência moderna já domina o mundo em quase todos os setores. Consequentemente, dispor de produtos de uma “boa ciência” já se configura como uma forma de direito de todo cidadão e cidadã, em especial se essa ciência é financiada com recursos públicos.

Finalmente, acreditamos que, pelo que a ciência significa para as grandes potências econômicas e pelo futuro que ela acena aos jovens, ações surgirão para o sufocamento da má prática científica, pelo menos nos limites de se evitarem tragédias humanas. w

Eliane S. AzevedoProfessora titular de bioética da UFBA.

Este artigo resulta da palestra “A construção moral da civilização ocidental e o educar para a integridade científica no Brasil”, apresentada no workshop sobre “Ética e integridade na ciência”, na Academia de Ciências da Bahia, em Salvador, em 17/12/2013.

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tecnoloGia

Potencial eólico do interior baiano supera a

capacidade de geração de energia das seis maiores

hidrelétricas do mundo juntas. Estado já soma

R$ 10 bilhões em investimentos no setor até 2017

Domingos Zaparolli

A força dos ventos

Impulsionada pela força dos ventos, a Bahia tem potencial para se posicionar como o principal estado exportador de energia elétrica do país. A constatação é do consultor em energia Paulo Emiliano Piá de Andrade, da Camargo Schubert. Entre 2012 e 2013, Andra-de esteve à frente de uma equipe de dez engenheiros que mapeou

a capacidade do estado de produzir energia eólica. “Detectamos que o interior baiano é uma espécie de pré-sal dos ventos”, diz.

O trabalho da Camargo Schubert, que resultou no Atlas Eólico da Bahia, concluiu que, utilizando a melhor tecnologia atual, com aerogeradores instalados em torres com 100 metros de altura, e aproveitando ventos que sopram a 7 metros por segundo (m/s), o estado reúne condições de instalar turbinas capazes de gerar 70 mil megawatts (mw) de potência elétrica, o que é dez vezes mais do que a Bahia produz hoje reunindo to-das as fontes de geração disponíveis no estado. O total também supera a potência instalada das seis maiores hidrelétricas em operação no mun-do. Três Gargantas, na China; Itaipu, na divisa do Paraguai com o Brasil; Tucuruí I e II, no Brasil; Guri, na Venezuela; Grand Coulee, nos Estados Unidos; e a russa Sayano-Shushenskaya somam 66.929 mw.

A produção de 70 mil mw requer que uma área de 26.998 quilômetros quadrados seja ocupada por torres eólicas. É uma grande extensão, que su-pera em seis vezes a Região Metropolitana de Salvador. Mas, como observa Andrade, uma vantagem da energia eólica é que os parques aerogeradores não exigem dedicação exclusiva do terreno, sendo compatível o compartilha-Z

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ENERGIA

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36 | maio de 2014

mento da área com outras atividades econômicas, como a produção agropecuária, por exemplo. A instalação de usinas geradoras no mar também é viável, mas por um custo maior do que em terra. Se a Bahia, mesmo assim, decidir explorar seu potencial eólico offshore, instalando turbinas em águas com até 50 metros de profundidade em torres com 100 metros de altura e aproveitando ventos a 7 m/s, somaria outros 77.400 mw à sua capacidade eólica, informa a consultoria.

Em breve, estima-se que o potencial de ge-ração elétrica com o vento será ainda maior. A indústria de equipamentos eólicos já desen-volve aerogeradores a serem instalados a 150 metros de altura. Nessas condições, a equipe da Camargo Schubert constatou que o potencial eólico baiano chega a 195 mil mw com a ocupa-ção de uma área em terra de 75.180 quilômetros quadrados. Com essa capacidade podem-se produzir 766 terawatt-hora/ano (twh/ano), o que é praticamente uma vez e meia o total de eletricidade que foi consumido em todo o Brasil em 2012. No mar, as torres de 150 me-tros permitiriam a geração de mais 87.500 mw.

O potencial eólico baiano apontado no es-tudo leva em consideração apenas a ocupação de áreas onde a instalação de parques aero-geradores não causa significativos impactos ambientais. Exclui, por exemplo, regiões de proteção ambiental integral, terras indígenas, áreas urbanas ocupadas por obras de infraes-trutura e ainda terrenos em que as condições de solo não são adequadas.

O trabalho da Camargo Schubert destacou sete regiões em terra que reúnem condições privilegiadas para a instalação de usinas eólicas. Utilizando-se apenas essas áreas, é possível a geração de 44.300 mw em torres de 100 me-tros de altura. São elas: a região de Sobradinho, Sento Sé e Casa Nova, que tem potencial para 6.200 MW; a região das serras Azul e do Açu-ruá, que tem uma capacidade para 7.600 mw; o Morro do Chapéu, que pode receber equipa-mentos para a geração de 10 mil mw; a serra do Estreito, onde o potencial é de 2.400 mw; a serra do Tombador, com capacidade para 9 mil mw; a serra do Espinhaço, que pode rece-ber equipamentos capazes de gerar 5.600 mw; e a região que abrange Novo Horizonte, Piatã, Ibitiara e Brotas de Macaúbas, onde podem ser instalados parques capazes de gerar 3.500 mw.

“Todo o Nordeste brasileiro reúne boas con-dições para a geração de energia eólica, mas

onde o vento sopra melhor

As principais regiões para investir em parques eólicos

1 Sobradinho, Sento Sé e casa nova

A região conta com ventos superiores a 7 m/s,

a 100 m de altura, e comporta uma capacida-

de equivalente a 6,2 GW em energia eólica. A

Usina Hidrelétrica de Sobradinho é um pos-

sível ponto de conexão ao sistema elétrico.

2 Região das serras azul e do açuruá

Na serra do Açuruá os ventos alcançam mé-

dias anuais de 8 a 9 m/s nas maiores eleva-

ções, a 100 m de altura. Na serra Azul os

ventos médios anuais são de até 8,5 m/s, a

100 m de altura. A região é cortada por uma

linha de transmissão de 230 kV, que interliga

as subestações de Irecê e Bom Jesus da Lapa.

Estima-se um potencial de cerca de 7,6 GW.

3 Morro do chapéu

Os ventos médios anuais chegam a 9 ou 9,5

m/s nas melhores áreas. Parques eólicos já

estão em fase de projeto na região, onde é

prevista a instalação da subestação de Mor-

ro do Chapéu, a qual será interligada a uma

linha de transmissão de 230 kV. A capa cidade

potencial da área é de 10 GW.

4 Serra do Estreito

A serra do Estreito possui uma extensão

aproximada de 110 km, retilínea, razoavel-

mente plana na porção elevada e com ru-

gosidade caracterizada por vegetação prin-

cipalmente arbustiva, sobre a qual a veloci-

dade do vento atinge 8 m/s, a 100 metros de

altura, nas melhores áreas. A subestações

mais próximas ficam nas cidades de Barra e

Xique-Xique, a 30 km e 70 km respectiva-

mente, com conexões para 69 kV. O poten-

cial é estimado em 2,4 GW em locais com

ventos acima de 7 m/s, a 100 m de altura.

5 Serra do Tombador

Os ventos médios anuais da região situam-

-se na faixa de 8 m/s, podendo alcançar 9,5

m/s em sítios específicos. Estima-se que

comporte uma capacidade para 9 GW em

energia eólica nos locais com ventos médios

superiores a 7 m/s, a 100 m de altura. A área

é próxima da subestação de Senhor do Bon-

fim, conectada ao Sistema Interligado Na-

cional através de uma linha de transmissão

de 230 kV.

nenhum estado apresenta o mesmo potencial que a Bahia”, diz Andrade. Isso é consequência de dois fatores, informa o consultor. Um é a vasta extensão de áreas no estado propícias à instalação de parques de geração, como o estu-do demonstrou. O outro fator é a condição dos ventos que sopram sobre a Bahia. A direção dos ventos varia pouco, predominando o sentido leste-oeste. No estado também predomina a ocorrência de ventos com velocidades médias elevadas, o que permite o uso de 45% a 55% da capacidade dos aerogeradores. Para efeito de comparação, na Alemanha, terceiro maior pro-dutor eólico do mundo – com uma produção de 32.300 mw –, aproveita-se entre 15% e 20% da capacidade do equipamento.

Além disso, na Bahia os ventos extremos são de baixa intensidade e frequência. Isso permite que as turbinas eólicas sejam projetadas de forma a privilegiar a performance energética, em vez da robustez. “Poucos lugares no mundo reúnem condições tão favoráveis”, diz Andrade. A Bahia tem ainda uma vantagem comercial em relação aos demais estados nordestinos, a maior proxi-midade com os centros consumidores de energia do Sudeste, reduzindo o custo de transmissão.

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bahiaciência | 37

seGundo Maior Produtor

Este conjunto de fatores favoráveis à geração eólica já impulsiona uma série de investimentos no estado. A Secretaria da Indústria, Comér-cio e Mineração (SICM) estima que até 2017 sejam realizados investimentos privados de pelo menos R$ 10 bilhões, tanto na formação de parques eólicos quanto na instalação de in-dústrias de equipamentos aerogeradores. Até 2009 a Bahia não contava com nenhum proje-to no setor, apesar de as primeiras iniciativas brasileiras na área datarem do início dos anos 1990. No final de 2013, porém, já eram 132 os projetos de geração com contratos já negociados em leilões promovidos pelo Ministério de Mi-nas e Energia para o fornecimento em conjun-to de 3.246 mw. Este total já posiciona a Bahia como o segundo estado em contratação eólica do país, atrás apenas do Rio Grande do Norte, que tem projetos negociados em leilões federais que somam 3.318 mw.

A rápida evolução da geração eólica baiana é resultado de uma estratégia do governo do estado que estabeleceu status de prioridade ao setor, in-forma a SICM. Entre as medidas adotadas desde 2010 estão a criação de uma Câmara de Energia,

responsável pela articulação do desenvolvimento eólico do estado, e a criação de um grupo multi--institucional de suporte a empreendimentos, pa-ra facilitar o encaminhamento do licenciamento ambiental e a regulação fundiária dos projetos. Também foi desenvolvida uma estratégia para adensar a cadeia produtiva dos aerogeradores, incentivando investimentos industriais.

A expectativa da SICM é que a Bahia alcance a liderança em geração eólica já no próximo lei-lão de energia do país, uma vez que investidores privados já informaram ao governo estadual o desenvolvimento de projetos para a produção de mais 10 mil mw e assinaram protocolos de intenções que sinalizam investimentos de R$ 16 bilhões. “A Bahia tende a se tornar o maior pro-dutor eólico do país em no máximo dois anos”, diz Clécio Elói, diretor da Casa dos Ventos, em-presa que possui um dos maiores portfólios de projetos de usinas eólicas do país. Atualmente a Casa dos Ventos conta com parques eólicos já operando ou em implantação que somam uma capacidade de geração de 3.500 mw. Deste total, 460 mw estão em fase de construção na Bahia em duas usinas, uma em Campo Formoso, que entrará em operação em janeiro de 2016 com

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6 Serra do Espinhaço

Destacam-se as proximidades das cidades

de Caetité, Pindaí e Guanambi. Nos melho-

res lugares, os ventos médios anuais podem

chegar a 9,5 m/s, e as áreas com ventos

médios superiores a 7 m/s, a 100 m de al-

tura, podem comportar uma potência de

5,6 GW. Parques eólicos já em operação na

região são servidos pelas subestações de

Igaporã I, II e III e Pindaí II, com linhas de

transmissão de 230 kV e 500 kV.

7 novo horizonte, Piatã, ibitiara e

brotas de Macaúbas

O vento possui velocidade média anual

entre 7,5 e 8,0 m/s. A capacidade potencial

para a área é estimada em 3,5 GW em lo-

cais com ventos acima de 7 m/s, a 100 m

de altura. Atendendo a empreendimentos

eólicos já instalados na região, o sistema

elétrico conta com uma subestação em

Brotas de Macaúbas, conectada a uma

linha de transmissão de 230 kV. Ao sul,

a subestação de Ibicoara está conectada

em 500 kV.

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FONTE: aTlas eólico - camargo schuberT

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uma capacidade de geração de 180 mw, e outra em Itaguaçu, prevista para operar no final de 2017 com 280 mw de potência. Os dois investi-mentos somam R$ 1,8 bilhão até 2017.

Elói relata que a companhia tem como meta para os próximos dez anos estabelecer parques aerogeradores no país que somarão uma potência instalada de 10 mil mw, sendo que 3 mil mw deverão ter operação da própria empresa e 7 mil mw deverão ser repassados para terceiros. A Bahia ocupará posição central nessa expan-são. No estado, a Casa dos Ventos já conta com áreas preparadas, ou seja, aptas a participar de leilões de energia, que podem receber turbinas aerogeradoras capazes de produzir 4 mil mw. A empresa também já desenvolve o projeto básico para outras áreas no estado que somam um po-tencial para mais 2 mil mw. “A Bahia responderá por mais da metade de nossa produção”, afirma.

“O Nordeste tem os melhores ventos do mundo, mas o sudoeste baiano, onde concen-tramos nossos investimentos, é uma mina de ventos perfeitos para a geração eólica”, diz Ney Maron, diretor de sustentabilidade da Renova Energia, companhia que administra o maior empreendimento aerogerador em operação na América Latina, o Complexo Eólico Alto Sertão I, localizado entre os municípios de Caetité, Guanambi e Igaporã. Inaugurado em 2012, após investimentos de R$ 1,2 bilhão, o complexo tem capacidade para 294 mw, energia suficiente para abastecer 540 mil residências.

Na mesma região, a empresa investe mais R$ 1,4 bi lhão no Complexo Alto Sertão II, pre-visto para ser concluído em março deste ano, com capacidade de 386,1 mw, energia que pode abastecer uma cidade de 1,9 milhão de habi-tantes. A Renova Energia tem ainda dois ou-tros projetos em desenvolvimento no estado já comercializados em leilões federais de energia ocorridos no final de 2013, informa Maron. Um terá capacidade para gerar 159 mw e o outro, 183,9 mw.

Os investimentos em geração despertaram o interesse dos fabricantes de equipamentos eólicos em também se estabelecer no estado. A paulista Tecsis, uma das maiores fabricantes de pás para aerogeradores do mundo, anunciou em 2013 um investimento de R$ 250 milhões para montar uma fábrica em Camaçari, com capacidade ainda não definida. Pércio de Souza, presidente do conselho de administração, diz que a companhia foi atraída para a Bahia pelo

potencial eólico e o posicionamento logístico es-tratégico do estado. “O Nordeste é a região com maior potencial de crescimento na geração de energia eólica. Além disso, a proximidade dos portos de Salvador e Aratu é importante para a logística e o fornecimento para outras regiões do país e para o mercado externo”, diz.

A instalação da fábrica de pás é o último elo que faltava para a Bahia completar toda a cadeia de produção de aerogeradores em seu território. As duas primeiras indústrias de turbinas da Amé-rica Latina foram inauguradas na Bahia em 2011. A espanhola Gamesa investiu R$ 50 milhões para produzir 150 aerogeradores por ano em Camaçari e agora está investindo R$ 100 milhões para ca-pacitar a unidade a produzir, a partir de 2015, a caixa de rotor das turbinas, as chamadas nacelles.

A outra fábrica inaugurada em 2011 foi da francesa Alstom, também em Camaçari, após investimentos de R$ 50 milhões. A unidade entrou em operação com uma capacidade pro-dutiva de turbinas capazes de gerar 300 MW de potência, ou seja, cerca de cem aerogeradores por ano, mas em 2013 a fábrica já tinha dobrado

com o vento a favor

Principais investimentos da indústria de equipamentos eólicos na Bahia

Gamesa

A empresa espanhola investiu R$ 50 milhões e produz aerogeradores em Camaçari des-

de 2011, com uma capacidade de produção de 150 unidades por ano. Em 2013, anunciou

um novo investimento de R$ 100 milhões para fabricar nacelles (caixa do rotor do aero-

gerador) com capacidade instalada de 400 MW/ano. A nova linha de produção entrará

em operação no início de 2015.

alstom

A companhia francesa investiu R$ 50 milhões em uma fábrica em Camaçari. A unidade

entrou em operação em 2011 com uma capacidade para cem aerogeradores por ano.

Em 2013, a fábrica dobrou sua capacidade de produção para 200 turbinas.

acciona

A espanhola Acciona foi inaugurada em março de 2013, em Simões Filho. A meta é pro-

duzir anualmente 135 cubos eólicos (peças que concentram as hélices das torres gera-

doras de energia).

tecsis

A paulista Tecsis, uma das líderes mundiais na fabricação de pás para aerogeradores,

prevê investimentos de R$ 250 milhões em uma unidade em Camaçari, com previsão

para entrar em operação em 2015.

torrebras

A Companhia espanhola inaugurou em 2013 a primeira fábrica de torres para aerogera-

dores da Bahia, em Camaçari, após investimentos de R$ 30 milhões. A unidade terá ca-

pacidade para produzir 200 torres por ano.

Fonte: empresas e sicm

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sua capacidade de produção para 200 aerogera-dores por ano, ou 600 mw de potência. A Als-tom também inaugurou em 2013 uma fábrica de torres em Canoas, no Rio Grande do Sul.

localização estratÉGica

Pierre François Chenevier, diretor da divisão Wind da Alstom, diz que Camaçari, além de ser uma das áreas industriais mais importantes do país, é estratégica para o mercado de energia eó-lica devido ao grande potencial de instalação de usinas geradoras nas suas proximidades, tanto na Bahia como em estados vizinhos. O execu-tivo relata que a Alstom já tem sete contratos de fornecimento de equipamentos eólicos no Brasil. O primeiro, assinado em 2010, no valor de 100 milhões de euros, foi com a Desenvix para a instalação e manutenção por dez anos de um complexo de 90 mw na Bahia, já em operação. Na sequência vieram contratos com a Brasventos, para três parques eólicos no Rio Grande do Norte, outro com a Odebrecht Ener-gia, para a instalação de parques aerogeradores no Rio Grande do Sul, depois foi fechado acordo com a Casa dos Ventos e com a Queiroz Galvão (nos dois casos para projetos em andamento no Nordeste) e, no final de 2013, com a Enerplan, para instalações no Rio Grande do Sul. Também no final do ano passado, a companhia fechou uma parceria com a Renova Energia que está sendo considerada a maior do mercado global de energia eólica, que pode gerar 1 bilhão de

euros em pedidos para a instalação de projetos que somam 1,2 gw.

No ano passado, a espanhola Acciona inaugu-rou em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador, uma fábrica com capacidade para produzir 135 cubos eólicos por ano. São as peças que concentram as hélices das torres geradoras de energia. A meta da companhia para 2014 é instalar no estado uma fábrica de montagem de nacelles, o que permitirá a produção anual de cem turbinas aw3000, o equipamento de maior potência no portfólio da multinacional. Ainda em 2013, a espanhola Torrebras inaugurou a pri-meira fábrica de torres para aerogeradores do estado, também em Camaçari, após investimen-tos de R$ 30 milhões. A unidade terá capacidade para produzir 200 torres por ano.

O preço da energia eólica já é bastante com-petitivo no Brasil. No leilão de energia do go-verno federal ocorrido em dezembro, o mwh foi comercializado por R$ 119,03, quando foram contratados 2.300 mw eólicos. O valor confir-ma a energia dos ventos como a segunda mais econômica, atrás apenas da comercializada pe-las grandes hidrelétricas do país, entre R$ 90 e R$ 100 por mwh. Segundo a Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), o país conta com uma capacidade instalada de 3.399 mw em 140 usinas eólicas e deve chegar a 8.700 mw até 2017. Mas, entre os investidores em energia eólica na Bahia, a aposta é que a força dos ventos do esta-do pode gerar resultados bem mais robustos. w

Torres de 100 metros de altura e ventos de 7 m/s permitem a produção de 70 mil mw

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Inovar, em países que ainda não se desenvolveram plena-mente, é a via de menor custo para superar obstáculos. O problema é que a decisão do empresário de inovar de forma sistemática depende não apenas de seu pro-pósito, mas também de uma série de elementos que

precisam ser ordenados e articulados para que se consolide um ambiente favorável à inovação. Apesar da reconhecida importância das instituições de conhecimento e do governo, o protagonismo da inovação é do empresário e sua motiva-ção é essencialmente a natureza competitiva dos negócios.

Para que se concretize, o ambiente deve disponibilizar instrumentos de financiamento e um regime tributário diferenciado de apoio à inovação; um conjunto de equipa-mentos de alto desempenho na oferta de serviços de su-porte ao desenvolvimento tecnológico; e, principalmente, programas e instituições voltados à melhoria do sistema educacional, focados no conhecimento e na educação para o mundo do trabalho. Este esforço da sociedade é funda-mental para ajudar a empresa inovadora, principalmente se pequena ou média, sem recursos internos.

Os resultados da Pesquisa de Inovação Tecnológica (Pin-tec), de 2011, que traça um panorama geral da inovação no país, mostram que um ambiente positivo estimula as ino-vações nas empresas. Este funciona como um catalisador de iniciativas que reduzem a insegurança jurídica, com-

artiGo

a inovação na bahiaJosé de Freitas Mascarenhas

partilham o risco e mitigam incertezas, incrementando a taxa de inovação, os inves-timentos em atividades de caráter inovativo e em pes-quisa e desenvolvimento.

De 2000 a 2011, período em que muitas iniciativas fa-voráveis à inovação começa-ram a amadurecer, o percen-tual de indústrias brasileiras inovadoras saltou de 31,5% para 35,7%. Pode-se depreen-der desse fato que as empre-sas nacionais estão desper-tando para a necessidade do

esforço da inovação para o desenvolvimento dos seus negó-cios e que os empresários estão respondendo positivamente aos estímulos de incentivo ao empreendedorismo inovador.

Esses movimentos iniciais são importantes, afinal não podemos esquecer que, de acordo com o Índice Global de Inovação 2013, o Brasil ocupa apenas uma modesta 64ª posi-ção no ranking das nações mais inovadoras – os dados fazem parte do relatório elaborado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, Instituto Insead e Universidade Cornell (EUA). Portanto, a questão da inovação impõe um desafio relevante a ser superado para reduzir a distância do país em relação às mais importantes e competitivas economias do planeta.

O governo federal incorporou o tema aos seus discursos e à política industrial, através do Programa Brasil Maior, repe-tindo como um mantra que é preciso “um foco mais centrado em inovação”. E deu um passo importante aumentando o volume de crédito concedido pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), para empresas inovadoras do país, que chegou a R$ 6,3 bilhões em 2013. Este ano, a Finep estima alcançar R$ 10 bilhões em financiamento da atividade.

Ainda que seja um problema nacional, a Bahia despertou para a questão e vem dando passos (iniciais) no sentido de melhorar a eficiência do ambiente propício à ocorrência do esforço inovativo. No entanto, é preciso pisar no acelerador.

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Os programas de apoio à inovação ainda não correspondem à relevância do estado no cenário nacional.

No ano de 2013, a Federação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) disponibilizou recursos no valor de R$ 119,9 milhões, sendo R$ 86,3 milhões para fomento à pesquisa e inovação no estado da Bahia e R$ 33 milhões para formação científica. Do total, quase 71% são oriundos do Tesouro Estadual e o restante, de parcerias federais.

Mas o ambiente vem se modificando. No último ano, a Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação (Secti) imple-mentou ações positivas, por meio de projetos da sua ini-ciativa, a exemplo do Parque Tecnológico, e abriu diálogo com setores representativos do empresariado visando ao melhor posicionamento da Bahia nesse campo.

A Federação das Indústrias do Estado da Bahia (Fieb) colocou a inovação como uma das prioridades do seu pro-grama de ação até 2013. Em 2010, criou o Fórum de Ino-vação da Bahia, que reuniu seu próprio quadro técnico, representações do governo, das universidades e das em-presas, e debateu temas relevantes, como a necessidade de aumentar a formação de engenheiros, a utilização do poder de compra do estado e a Lei de Inovação da Bahia.

Também implantou a Mobilização Empresarial pela Ino-vação (MEI) na Bahia, oferecendo, por meio do Instituto Euvaldo Lodi, em parceria com a Finep e o Banco Intera-mericano de Desenvolvimento, programas de capacitação empresarial para inovação; e renovou o seu Conselho de Inovação e Tecnologia, suas políticas e seus quadros.

Outra iniciativa foi a elaboração de um Plano de Desen-volvimento Estratégico pelo Senai Bahia, que prevê a cons-trução de novas unidades voltadas ao ensino e pesquisa, bem como maior eficácia da política de difusão tecnológica e de pesquisa aplicada. Tudo isso com o apoio do Instituto Fraunhofer, do Instituto Alemão de Robótica e Inteligência Artificial (DFKI), da Intel e outros, a fim de buscar permanen-temente o estado da arte das tecnologias a serem utilizadas.

Desde 2002, quando inaugurou o Centro Integrado de Manufatura e Tecnologia (Cimatec), o Senai Bahia passou a se constituir um dos principais centros de desenvolvimento de tecnologia do Senai no país e provedor de soluções para a indústria baiana e também para a nacional. Atuando em

convênio com a CNI e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, o Cimatec é o responsável pelo de-senvolvimento do programa Em-brapii no estado, projeto que visa ao desenvolvimento da inovação junto a empresas brasileiras.

Atualmente, apenas no âmbito da Embrapii, o Centro já trabalha com 27 projetos aprovados de pes-quisa e inovação das empresas, no valor global de R$ 74,2 milhões, ten-do outros cinco aguardando assi-natura em fase final e mais 12 em fase de negociação avançada. Ain-da desenvolve atividades buscando viabilizar cerca de 58 projetos pros-

pectados. Na área de educação, a Faculdade Senai Cimatec obteve, em 2012, a maior média do Índice Geral de Cursos (IGC), no Norte e Nordeste, segundo avaliação do Ministério da Educação (MEC). Com média 3,69, superou instituições tradicionais de educação superior na Bahia e em outros es-tados das regiões citadas. E aguarda a autorização do MEC para implantar um Centro Universitário, o UNISenai.

Além disso, inaugurou em 2013 a expansão do Cimatec, que agregou um Centro Nacional de Conformação Mecânica e um Centro Nacional em Logística. Também instalou um Centro de Supercomputação, o Instituto Nacional da Ro-bótica e a primeira aceleradora do Senai. Está programado, a partir deste ano, também o início da implantação de uma rede de institutos de inovação (nos campos da automação, química e conformação e soldagem) e de institutos de tec-nologia (nos campos da construção civil e eletroeletrônica).

Todas elas são medidas importantes para implementar uma política de desenvolvimento da inovação no estado vi-sando, assim, superar o atraso ainda existente neste campo.

Como se vê, há trabalhos iniciados, mas ainda há muito por fazer pela inovação na Bahia. w

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“De 2001 a 2011, o percentual de indústrias brasileiras inovadoras saltou de 31,5% para 35,7%”

José de Freitas Mascarenhas Vice-presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

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baiana de 23 anos cria rede social para troca de

serviços e experiências com base no escambo

Rodrigo de Oliveira andrade

nas fronteiras da colaboração

Em meados de 2012, depois de assistir a documentários sobre redes de colaboração on-line e modelos de economias alter-

nativas, Lorrana Scarpioni, então com 21 anos, percebeu que poderia aplicar à lógica das redes sociais a prática an-cestral do escambo, possibilitando a troca de serviços – sem envolver di-nheiro – por meio de uma plataforma virtual desenvolvida com base no con-ceito de economia colaborativa. Pouco mais de um ano depois, em agosto de 2013, Lorrana transformou sua ideia em uma possibilidade real e lançou a Bliive, uma rede de troca de serviços em que a única moeda válida é o tempo. Ne-la, internautas do mundo todo podem compartilhar experiências em troca de créditos, que são revertidos em outras atividades que a pessoa queira fazer. A plataforma, que à época de seu lança-mento tinha 1.300 pessoas cadastradas e outras 2 mil na lista de espera, conta

hoje com 16 mil membros espalhados em mais de 55 países, entre eles Esta-dos Unidos e Austrália.

Em abril deste ano, Lorrana foi lis-tada entre os dez inovadores com me-nos de 35 anos em 2013 pela edição em português da revista Technology Review, do Instituto de Tecnologia de Massa-chusetts (MIT). O objetivo da lista é reconhecer o talento de jovens empre-endedores e pesquisadores do Brasil e selecionar os pré-indicados para a lista internacional, que terá 35 nomes. O processo seletivo contou com a ava-liação de jurados nacionais e interna-cionais, além de consultas específicas a especialistas de outras áreas.

Os pesquisadores, professores e em-preendedores selecionados serão pre-miados por sua contribuição para a re-solução de diversos problemas atuais. Uma nova tecnologia de baixo custo para a fabricação de dispositivos de aná-lise microfluídicas a partir do papel,

próteses ortopédicas feitas de plástico reciclado e até um método para acele-rar o diagnóstico de doenças genéticas raras estão entre as contribuições de alguns dos selecionados. “Validar uma ideia ou um modelo de negócio no Bra-sil é um desafio”, conta Lorrana. “Ser reconhecida pelo MIT como uma das dez principais jovens empreendedoras do país mostra que estamos no cami-nho certo.” A cerimônia de premiação aconteceu no dia 13 de maio, na Fede-ração das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, no Rio de Janeiro.

PriMeiros Passos

Lorrana nasceu em Salvador, Bahia. De família de classe média, morou em Es-planada até os quatro anos, quando se mudou para a capital paranaense com os pais. Lá se formou em relações públicas na Universidade Federal do Paraná (UFP) e em direito pelo Centro Universitário Unicuritiba. Hoje divide um apartamen-

EMPREENDEDORISMO

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inovação: baiana está entre 35 jovens empreendedores da technology review, do miT

to com outras duas amigas em Ponta Grossa, município a 103 quilômetros de Curitiba. Lorrana sempre foi determina-da – e teimosa, ela diz. Afirma ser perse-verante, sobretudo, em meio às adver-sidades. Desde cedo quis empreender. Ainda na adolescência se apaixonou pela possibilidade de desenvolver projetos so-ciais. A ideia de criar a rede colaborativa surgiu nos últimos anos da graduação. “Depois de assistir àqueles documen-tários, pensei em criar uma rede social que unisse a lógica dos bancos de tem-po tradicionais à possibilidade de poder trocar serviços com um grande número de pessoas e registrar essas experiências para serem vistas e compartilhadas por seus contatos”, explica.

A viabilização da ideia não foi fácil. Lorrana contou com a ajuda de um de seus professores de direito, que entrou

como sócio no negócio, contribuindo com a administração dos trâmites jurídi-cos. Em seguida, investiu o dinheiro que seria usado em sua festa de formatura para contratar um programador para a concepção da rede social. Após meses de reuniões, negociações e a própria es-cassez de recursos financeiros, ela con-seguiu mais dois sócios. Hoje a startup conta com uma equipe de seis pessoas.

A ideia de usar o tempo como moeda de troca surgiu na década de 1980, no Japão, chegando à Europa na década de 1990, onde se popularizou. São várias as organizações que hoje oferecem ser-viços pelo sistema de banco de tempo no mundo. É o caso da TimeBanks, dos Estados Unidos, e da Timebanking, do Reino Unido. No caso da Bliive, a lógica é diferente. Lorrana explica que, por meio do banco de tempo, o usuário pode oferecer seus serviços a outras pessoas. Em troca, recebe créditos, ou TimeMoney, a moeda da rede social.

Esses créditos podem ser trocados pe-los serviços de que o usuário precisa ou queira fazer, e que outras pesso-as estejam oferecendo na plataforma. “Com isso, possibilitamos a troca não só de serviços profissionais, mas tam-bém de experiências e conhecimento entre internautas.” A ideia parece es-tar dando certo. Até janeiro deste ano, foram realizadas mais de 5 mil trocas, com mais de 26 mil horas oferecidas.

A Bliive é gratuita e não permite pro-pagandas. Lorrana explica que o fatura-mento da startup vem de parcerias com estabelecimentos comerciais, que são indicados pela rede social para que seus usuários se conheçam pessoalmente e façam a troca dos serviços de maneira segura. “Oferecemos também uma pla-taforma corporativa”, diz. A proposta é desenvolver uma rede social exclusiva para cada empresa, nos mesmos mol-des da plataforma original. “Empresas que tenham interesse em montar uma rede colaborativa interna de troca de tempo para seus funcionários podem contratar o serviço. Assim, promove-mos a troca de serviços e experiências entre os próprios funcionários, favore-cendo a integração das equipes.” Já as parcerias com ONGs ajudam a ampliar o potencial da startup, possibilitando que o usuário obtenha créditos por meio de trabalhos voluntários.

Em 2013, Lorrana foi nomeada Glo-bal Shaper, iniciativa do Fórum Eco-nômico Mundial de uma rede global de jovens entre 20 e 30 anos com po-tencial para futuros papéis de lideran-ça. Em 2014, a Bliive foi selecionada, entre dois mil concorrentes, para ser uma das 30 empresas do programa de aceleração Sirius do governo do Rei-no Unido. Isso permitirá que parte da equipe receba ajuda financeira e con-sultoria por um ano para consolidar a rede social na Europa. “Iremos para a Escócia em junho deste ano”, conta Lorrana. Ainda há muito o que fazer, ela reconhece, “mas é bom saber que existem pessoas que sabem reconhecer as tendências relacionadas à dinâmica da economia colaborativa”, diz. w

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cultura

Os quilombos e as revoltas dos escravos entre os séculos

XVii e XiX inauguraram a luta pela liberdade e plena cidadania

empreendida até hoje pelos negros no brasil

claudia izique

sombras do passado

a escravidão deslocou para o Brasil algo em torno de quatro milhões de afri-canos entre o século XVI e meados do século XIX. Quando o tráfico foi

interrompido, em 1850, o país tinha se tornado o destino de quase 45% dos negros aportados na América e entrava para a história como a na-ção a receber o maior número de trabalhadores cativos da África em todo o mundo.

Na primeira metade do século XIX, Salva-dor e Rio de Janeiro tinham se transformado em “pequenas Áfricas” incrustadas nas duas maiores cidades de um país que se emancipa-va e que começava a construir sua identidade política, econômica e cultural.

A relação tensa entre escravos e senhores, as manifestações de revolta e o intercâmbio entre elementos de culturas tão distintas são, há mais de 30 anos, objeto de pesquisa do his-toriador baiano João José Reis, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universi-dade Federal da Bahia (UFBA).

Doutor pela Universidade de Minnesota, Reis enxerga o escravo como um “agente de sua história”. “Mesmo quando se acomoda, o escravo decide em grande medida os rumos de sua história.”

Perscrutou experiências individuais e coleti-vas para reconstituir a história de personagens como Domingos Pereira Sodré, um sacerdote africano que, liberto, se transformou, ele pró-prio, em senhor de escravos, lançando mão de artifícios que incluíram a feitiçaria. Reis chama essa modalidade de estudo de micro-história social. “Essa perspectiva, como a da história social mais convencional, não é necessariamen-te uma ruptura com a metodologia marxista, embora não se trate mais de um marxismo es-truturalista, preocupado em pensar a história como estruturas que enquadram sem piedade os sujeitos e, mais ainda, o indivíduo.”

Essa visão pauta boa parte de sua obra tradu-zida em livros publicados por editoras do porte de Companhia das Letras e Brasiliense, um de-

hISTóRIA

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les premiado com o Jabuti (A Morte é uma Festa). Recebeu também o Prêmio Literário Casa de las Américas (O Alufá Rufino, em parceria com Flávio Gomes e Marcus Carvalho), o Haring (A Mor-te é uma Festa) e Choice Outstanding Academic Title, da American Library Association (Death is a Festival). Assina, ainda, meia centena de capítulos em publicações de referência em estudos da escravidão e outros tantos artigos em revistas brasileiras e estrangeiras.

Professor visitante nas universida-des norte-americanas de Michigan, Princeton, Harvard, Brandeis e Texas e na École de Hautes Études en Scien-ces Sociales, na França, este baiano nascido no bairro da Ribeira, em Salva-dor, dedicou atenção especial aos mo-vimentos de resistência escrava, desde a formação de quilombos até revoltas como a dos malês, tema de seu livro

Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835, lançado em 1986 pela Editora Brasiliense e reedi-tado, revisto e ampliado em 2003 pela Companhia das Letras.

O quilombo, ele sublinha, foi um movimento “típico” dos escravos. Constituído por até milhares de pes-soas, alguns quilombos – como o de Palmares, por exemplo, uma espécie de “federação” de diversos mocambos – eram formados majoritariamente não só por escravos africanos, mas também por soldados desertores, aventureiros, vendedores e até índios. Palmares resis-tiu durante quase cem anos, ao longo do século XVII, às várias expedições militares. A maioria dos quilombos, no entanto, formados por poucas centenas de pessoas, tinha vida bem mais curta.

Ali os escravos se escondiam, plan-tavam, colhiam, negociavam alimen-

tos, armas e munições e reinventavam tradições ao manter laços com outros grupos sociais. Também assaltavam via-jantes, atacavam povoados e sequestra-vam escravas para “melhorar a demo-grafia predominantemente masculina do quilombo”, conforme escreveu Reis no artigo Quilombos e revoltas escravas no Brasil, publicado na Revista USP, na edição dezembro/fevereiro de 1995/96.

O objetivo do quilombola era sobre-viver fora do sistema escravista. Ainda que não se configurassem “como amea-ça efetiva à escravidão”, os quilombos passaram a representar “uma amea-ça simbólica importante, povoando o pesadelo de senhores e funcionários coloniais, além de conseguir fustigar com insistência desconcertante o re-gime escravista”.

As revoltas se tornaram mais fre-quentes a partir do fim do século XVIII.

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Eram uma manifestação clara de rejei-ção à escravidão, mas com o objetivo de reformá-la, e não destruí-la, ressalva Reis. Não por coincidência, cresceram junto com a expansão das áreas dedi-cadas à agricultura de exportação, com a intensificação do tráfico de escravos e com a difusão dos movimentos pela independência do país e as ideias abo-licionistas, já no século XIX.

O fator demográfico favorecia a re-volta: nos últimos 40 anos do tráfico chegaram ao Brasil 31% dos quase cinco milhões de africanos importados ao lon-go de três séculos, ele esclarece. Mas o fato de esses escravos, em determinados contextos, terem origem no mesmo gru-po étnico foi fundamental para reforçar a identidade coletiva ante a hegemonia dos senhores. Essa foi a centelha que acendeu a revolta dos malês, africanos muçulmanos da nação nagô, ocorrida na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835, em Salvador, e violentamente reprimi-da: cerca de setenta morreram em com-bate, quatro foram fuzilados, dezenas açoitados e presos e os libertos suspei-tos deportados para a África.

Seguiu-se um período de “calmaria imperial”, como ele diz, até 1857, quan-do novamente os nagôs se rebelaram, desta vez contra o Estado. Cinco anos depois de abolido o tráfico e 14 anos antes da Lei do Ventre Livre, a maio-ria dos negros de Salvador, escravos ou não, trabalhava na rua, ou entre a casa e a rua, como ressalva Reis. “Car-regavam de tudo: pacotes grandes, pe-quenos, do envelope de carta a grandes caixas de açúcar, tinas de água e fezes, tonéis de aguardente e gente em cadei-ra de arruar”, ele conta no artigo A gre-ve negra de 1857 na Bahia, publicado na Revista da USP, edição nº 18, de 1993. Pagavam a semana – ou diária – ao se-nhor, podendo embolsar a diferença, que, em alguns casos, lhes permitia comprar a alforria.

Naquele ano, uma legislação muni-cipal passou a exigir que os ganhadores – como eram chamados – precisariam de licença concedida pela Câmara pa-ra trabalhar. Além do custo da licença,

de 2 mil réis, teriam que pagar taxa adicional de 3 mil réis por uma chapa de metal com o número da inscrição a ser obrigatoriamente utilizada no pescoço. Os libertos deveriam tam-bém apresentar fiadores idôneos que “se comprometessem pelo comporta-mento futuro deles”.

A nova lei, afirma Reis, foi uma ini-ciativa do poder público para discipli-nar e vigiar o trabalho negro no espaço público. “Os negros eram temidos, em primeiro lugar, porque eram muitos.” Os ganhadores, organizados em cantos – grupos etnicamente delimitados que ofereciam seus serviços em áreas de-terminadas da cidade –, foram à greve. Contaram com o apoio indireto da As-sociação Comercial, que se mobilizou contra os prejuízos da não circulação de mercadorias, protestando junto ao presidente da Província. “O presidente, como os comerciantes da Associação, era adepto do liberalismo econômico, o que diversas vezes os opunha à Câma-

ra, mais intervencionista”, explica Reis. A taxa foi suspensa e a chapa de metal desonerada, mas não abolida. E a greve continuou. Durou, ao todo, uma sema-na, quando os negros – sem a chapa de metal no pescoço – retomaram o traba-lho. A legislação acabou sendo revogada.

Na avaliação de Reis, o passado es-cravista imprimiu no país a marca do racismo ainda hoje consignada na dis-tribuição de renda, no acesso à edu-cação, representação política, entre outras mazelas. O passado, como ele diz, ainda faz sombra sobre o presente. “A liberdade é um processo de longa duração que teve início quando ainda vigorava a escravidão legal, em que os escravos resistiam à sua condição por meio da negociação, das fugas, dos qui-lombos, das revoltas, do engajamento na luta abolicionista, mas também da conquista da alforria e da formação de uma população livre afrodescendente numerosa, que antes mesmo da abo-lição pelejava pela plena cidadania e

a religião serviu de canal para a formação de novas identidades no brasil e em outras regiões da américa

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continuou a fazê-lo após a abolição. E permanece a batalhar nesse sentido.”

Na entrevista a seguir, concedida por Reis à revista Bahiaciência, ele fala sobre os movimentos de resistência de escravos entre os séculos XVII e XIX, avalia o papel da religião na construção de identidades africanas e analisa a in-serção do negro na sociedade baiana.

y Do ponto de vista da manifestação po-lítica, qual é a grande diferença entre os quilombos do século XVII e as rebe-liões da primeira metade do século XIX?Os quilombos são diferentes das re-voltas, não importa o período em que aconteceram. Enquanto os quilombos representam um afastamento da socie-dade escravista – embora muitas vezes por meio do ataque e, noutras, da nego-ciação –, as revoltas significaram uma ruptura mais radical, violenta, mes-mo se localizadas e efêmeras, como, por exemplo, a revolta de um grupo de escravos de uma fazenda ou engenho contra um feitor ou um senhor parti-cularmente cruel. Ou seja: na revolta há pouca margem para a negociação. No entanto, estas são diferenças mais de escala do que de natureza. Pode-se argumentar que o quilombo é também uma revolta, uma forma de resistência à escravidão. Muitas vezes a revolta leva à formação de quilombos, como parece ter sido o caso de Palmares. Na Bahia, algumas revoltas tiveram, como parte da sua estratégia, a formação pré-via de quilombos. Deve-se, no entanto, considerar que nem toda revolta e mui-to menos o quilombo tiveram projetos abolicionistas. y Quais as características dos movimen-tos de escravos no século XIX e no que eles se diferenciavam dos movimentos dos séculos XVII e XVIII?O Brasil conheceu poucas revoltas es-cravas antes do século XIX, pelo menos revoltas que tivessem deixado indícios na documentação. Mas podemos dizer que os quilombos prevaleceram absolu-tos como a modalidade mais frequente de resistência coletiva nos séculos XVII,

XVIII e XIX, sendo que neste último período as revoltas vieram a se somar a eles. Embora elas acontecessem em todo o Brasil, foram mais frequentes no Nordeste, particularmente na Bahia, onde muitas delas se caracterizaram por terem sido tocadas, ou pelo menos lideradas, por escravos muçulmanos. Não se tem notícia de nenhuma rebe-lião muçulmana fora dessa província ou mesmo fora do Brasil, na Améri-ca escravista. Mas no Maranhão, por exemplo, no seio da Balaiada, acon-teceu um movimento escravo muito significativo em termos do número de pessoas envolvidas, sob a liderança de um liberto, Cosme Bento das Chagas, que se intitulara “tutor e imperador da liberdade”. Foi um movimento muito maior do que, por exemplo, a Revolta dos Malês, na Bahia, e tinha um pro-jeto claramente abolicionista, o que não se vislumbra tão claramente no movimento baiano. Foi na Bahia, con-tudo, onde aconteceu o maior número de revoltas escravas, um ciclo de mais de trinta levantes e conspirações entre 1807 e 1835. A razão para isso foi a con-centração de um volume muito grande de escravos da mesma nação africana, no caso, particularmente, haussás e io-rubás (chamados nagôs no Brasil), que tinham sido cativos de guerra. Ou seja, os rebeldes baianos eram guerreiros na África. Na segunda metade do século XIX, sobretudo nas regiões cafeeiras do Sudeste do Brasil, as revoltas ad-quiriram um teor mais explicitamente abolicionista, especialmente nos anos que antecederam a abolição, em 1888.

y As rebeliões cresceram com a expan-são das áreas dedicadas à agricultura de exportação, o aumento do tráfico e os movimentos pela independência, junto com a ideologia liberal, confor-me o senhor já escreveu. Estes fatores também estariam na origem da Revolta dos Malês, em 1835?  A Bahia foi a região das Américas que mais recebeu cativos de terras islami-zadas da África, regiões que hoje cor-respondem ao norte da Nigéria, o vas-

to território haussá. Lá aconteceu, a partir de 1804, um jihad, uma guerra santa muçulmana cujos prisioneiros, de ambos os lados, foram abastecer os entrepostos do tráfico controlados por negreiros baianos no golfo do Benim, a chamada Costa da Mina. Tivemos, então, um primeiro ciclo de revoltas e conspirações capitaneadas pelos haus-sás, entre 1807 e 1816, aproximadamen-te. O segundo ciclo, dos anos 1820 até 1835, foi protagonizado pelos nagôs, que chegaram em grande número nes-se período, embora já estivessem bem representados entre os escravos baianos desde o início do século. Os nagôs que se rebelaram na Bahia tinham sido vítimas de conflitos internos no país iorubá, especificamente no reino de Oyó, onde existia uma comunidade muçulmana pe-quena, mas ativa, que se aliou à lideran-ça pagã que contestava a autoridade do rei. Esses muçulmanos de origem iorubá eram os malês, termo que vem de imale e significa precisamente muçulmano na língua iorubá. Os haussás islamizados eram mussulmis. Porém, nem toda revol-ta nagô foi liderada por muçulmanos; a maioria, provavelmente, o foi por adep-tos da religião dos orixás, se quisermos entender na chave religiosa esses levan-tes, uma chave que nem sempre abre as portas para a compreensão desses movimentos. Além disso, tal como na África, muçulmanos e não muçulmanos se uniram em muitas dessas revoltas, como no caso da de 1835, que, embora tivesse sido claramente concebida e li-derada por nagôs islamizados (malês), também contou com a participação de não muçulmanos. Aliás, o grito de guer-ra ouvido nas ruas de Salvador em 1835 era etnicamente delimitado – “Viva na-gô” – e não era de natureza religiosa.

y Como, no âmbito da pax da segunda metade do século XIX, compreender a greve de 1857? Como o escravo gra-vitava entre o trabalho informal e a escravidão?A greve de 1857 foi um protesto contra o controle que o Estado pretendeu impor sobre os grupos de trabalho informal,

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chamados cantos, que reuniam ganha-dores de rua de acordo com suas nações. Naquela altura, a imensa maioria dos escravos africanos na Bahia era nagô, mais de 70% pelo menos. Então, pode-se dizer tranquilamente que foi, mais uma vez, um movimento principalmente na-gô, como o foi o levante de 1835. A greve parou todo um setor importantíssimo para o funcionamento de Salvador, que era o de carregar gente e coisas de um lado para outro, de cima para baixo da cidade. Mas foi um movimento pacífico, feito por libertos e escravos, estes por sinal apoiados por seus senhores que também se opunham à interferência do Estado na maneira como essa espécie de trabalho informal estava organizada: o escravo de ganho saía para trabalhar na rua e no final da semana prestava con-tas ao senhor do valor contratado; tudo que excedia esse valor o escravo podia embolsar. Parte desse valor era amiúde poupada para ser investida na compra da alforria. Com frequência, o ganha-dor nem morava com o senhor, “vivia sobre si”, morava, comia e vestia-se com recursos próprios, embora continuasse propriedade de outrem que consumia a maior parte do que ele ou ela ganhava, e sem que o senhor contribuísse para o grosso das despesas com a manutenção de seu escravo.

y A religião e a cultura teriam sido guar-diãs da identidade e fator contribuinte para a diferenciação do negro do resto da sociedade? Isso explicaria o fato de as manifestações culturais e religio-sas terem sido alvo privilegiado da re-pressão?Sim, a religião funcionou como poderoso fator na construção de identidades afri-canas no tempo da escravidão, fossem o islamismo, o catolicismo ou as religiões mais propriamente “étnicas”. Todas elas serviram de canal para a formação de novas identidades no Brasil e em ou-tras regiões escravistas das Américas. Porque as identidades de origem foram inevitavelmente refeitas sob a pressão da escravidão num ambiente estranho e em geral hostil. Os nagôs, os angolas,

os jejes e mesmo os haussás – que aqui mantiveram o termo identitário ori-ginal – não eram povos unificados sob a mesma estrutura política na África. Serviram-se de línguas comuns ou apa-rentadas para se reconhecerem como se-melhantes no Brasil, mas confirmaram tais convergências institucionalmente, por meio de associações religiosas como as irmandades católicas, os grupos mu-çulmanos e os terreiros de candomblé. Contudo, essas instituições, todas elas, embora umas mais que outras, também funcionaram como instrumentos de ne-gociação, de diálogo e de inserção na nova sociedade. Os alufás muçulmanos, os pais e mães de terreiro adivinhavam, curavam, faziam “trabalhos”, etc. para uma clientela que variava do africano nato ao português rico. As autoridades mesmas tinham uma relação ambígua com as religiões africanas e seus líderes, porque oscilavam entre a repressão e a tolerância e, em alguns casos, a adesão. Alguns governantes temiam que a reli-gião africana fosse a antessala da rebe-lião; outros consideravam que a religião garantia a paz nas senzalas rurais e ur-banas. Mesmo as irmandades católicas eram periodicamente alvo de descon-fiança de que não estivessem cumprindo o papel de apaziguar as tensões sociais através da adoção da religião oficial. E tinha razão quem assim pensava. O ne-gro Cosme do Maranhão, por exemplo, era devoto e lutava em nome de Nossa Senhora do Rosário. Enquanto isso um alufá muçulmano podia cuidar de um branco enfeitiçado por um pai de santo, e este, por sua vez, podia curar o mari-do impotente de uma senhora branca.

y Quais são as novas visões e interpre-tações do processo da escravidão que suas pesquisas estão abrindo? Qual a principal diferença entre a sua visão da escravidão e a de autores como Fernan-do Henrique Cardoso, em Capitalismo no Brasil Meridional? Sou parte de uma geração que reno-vou o estudo da escravidão ao eleger estudar a experiência escrava, ou seja, colocar o escravo como agente, e não

paciente, de sua história. Desde meados dos anos 1980 essa perspectiva cresce e frutifica. Em geral tem sido rotulada sob a denominação de história social da escravidão. Minha contribuição tem en-fatizado a questão da resistência, mas ultimamente venho fazendo história social a partir de experiências indivi-duais – chame-se isso micro-história social. Em todo caso, essa perspecti-va, como a da história social mais con-vencional, não é necessariamente uma ruptura com a metodologia marxista, embora não se trate mais de um mar-xismo estruturalista, preocupado em pensar a história como estruturas que enquadram sem piedade os sujeitos e, mais ainda, o indivíduo. Eu não nego a força das estruturas e meus trabalhos sempre levam em conta, por exemplo, o processo de formação de classe. Nesse sentido, o marxismo inglês, sobretudo a obra de Edward Thompson, influen-ciou e ainda influencia grandemente a historiografia da escravidão no Brasil. Essa perspectiva acentua o papel da experiência coletiva e individual dos escravos no desdobrar do processo his-tórico. Isso não existe no marxismo en-contrado em obras como a de Fernando Henrique, em sua fase marxista-we-beriana desse livro que você citou, ou no marxismo ainda mais rígido de um Jacob Gorender, por exemplo. Nesses autores a primeira – e às vezes a últi-ma – definição do escravo é como coisa cuja vontade apenas reflete a vontade do senhor. Em suas diversas modali-dades, a historiografia da escravidão hoje insiste em que, mesmo quando se acomoda, o escravo decide em gran-de medida os rumos de sua história: acomoda-se porque quer, acomoda-se como estratégia, e amiúde acomoda-se porque conseguiu desenvolver relações positivas com senhores que negociam os termos da escravidão.

y Como o senhor enxerga a inserção do negro hoje na sociedade baiana? Há sombras ainda da escravidão?O Brasil é uma sociedade racista; é ra-cista a seu modo, mas é. As estatísticas

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da desigualdade racial são eloquentes. Nesse sentido, a desigualdade está con-signada na distribuição de renda, no acesso à educação e à representação em cargos públicos, no desempenho no mercado de trabalho, nos números de jovens assassinados e de pessoas atrás das grades, na representação na mídia, nos índices todos de desenvolvimento humano e nas atitudes cotidianas. A origem mais remota disso é a experiên-cia da escravidão. O passado não passa tão facilmente: ainda faz sombra so-bre o presente. Mas o racismo tem vida independente, ou seja, se renova com seus próprios pés. Quero dizer que não é preciso sempre remontar ao escravis-mo para explicar o racismo. Aliás, no Brasil de hoje, não é preciso remontar à escravidão para explicar certos tipos de racismo, como aquele de que é vítima o imigrante nordestino em São Paulo.

y E como se desenvolve o trabalho no grupo de pesquisa que o senhor coorde-na na UFBA? Quantas e quais pessoas envolvidas?Nosso grupo de pesquisa tem o nome de “Escravidão e invenção da liberdade” e nele discutimos e pesquisamos tanto a história da escravidão como a do pós--abolição. Concebemos que a liberdade não foi declarada em uma data: 1888.

É um processo de longa duração que, aliás, teve início ainda quando vigorava a escravidão legal, quando os escravos resistiam à sua condição por meio da ne-gociação, das fugas, dos quilombos, das revoltas, do engajamento na luta aboli-cionista, mas também da conquista da alforria e da formação de uma população livre afrodescendente muito numerosa, que antes mesmo da abolição pelejava pela plena cidadania e continuou a fazê--lo após a abolição. E permanece a bata-lhar nesse sentido. São todas questões que interessam ao grupo. Somos cerca de três dezenas de pesquisadores e es-tudantes, estes em geral nossos orien-tandos na graduação, no mestrado ou no doutorado. O grupo está baseado na UFBA, mas seus membros pertencem também a outras universidades – no Es-tado e fora da Bahia – , os quais se reú-nem regularmente para discutir suas pesquisas individuais.

y O senhor certa vez declarou que não crê em solução para as desigualdades. Acha que iniciativas como as cotas na universidade pública, em projetos cul-turais, iniciativa recente do Ministério da Cultura, ou em concursos públicos podem ser o início de um processo que leve à redução das desigualdades?Todas essas medidas adotadas pelo Es-

tado, no âmbito nacional e local, são óti-mas. Sou enfaticamente a favor das co-tas e outras políticas de ação afirmativa. Quando disse não ser otimista quanto a uma solução definitiva para as desigual-dades, não quis dizer que devêssemos simplesmente cruzar os braços e deixar as coisas como são. Expressei apenas meu desencanto em relação à morosi-dade das políticas corretivas que, feliz-mente, foram aceleradas nos últimos anos e ganharam o apoio até de certos setores mais conservadores da política e da sociedade, estes quiçá pensando em melhorar seu desempenho eleitoral ou em estimular a paz social. Não importa: o jogo de interesses é inevitável, nin-guém é santo. Importa que tenha havido avanços. As cotas e outras medidas não vão acabar com o racismo, elas estão aí para combater seus efeitos. Acabar com o racismo representaria uma revolução mental mais difícil de ser alcançada do que uma revolução social. Com a ine-vitável ascensão social do negro, com sua saída do lugar em que a mentalida-de racista o colocou, o racismo pode-rá até recrudescer, mas pelo menos os negros estarão numa posição melhor para reagir. É melhor ser discriminado por ter conseguido morar num edifício de luxo do que porque ainda mora num barraco. w

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preciso remontar à escravidão

para explicar certos tipos de racismo

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O instituto Geográfico e histórico da bahia comemora

120 anos com cursos, palestras e lançamento de livro

neldson Marcolin

Memória bem guardada

Salvador tinha 174.412 habitan-tes em 1890, de acordo com o recenseamento da época. A maior parte da população era

analfabeta e havia poucas instituições de ensino superior, como as faculdades de Medicina e de Direito. Alguns anos depois, em 1894, um grupo de intelec-tuais baianos, quase todos médicos e advogados, se mobilizou para publicar em 5 março nos jornais da capital uma convocação pública para a instalação de um órgão cultural atuante. A ideia era criar um associação que pudesse reunir documentos e objetos ligados à geogra-fia e história do Brasil e, em especial, da Bahia, que se encontravam espalhados em mãos de particulares com o objetivo de resguardá-los e montar um acervo, zelar pela biografia de suas personali-dades e produzir artigos e ensaios. Após oito dias, em 13 de maio, foi lançado o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), que acaba de completar 120 anos, como queriam seus 134 sócios efetivos fundadores – como guardião da memória e agente cultural ativo.

das estritamente profissionais como as universidades, centros de pesquisa e órgãos públicos de gestão patrimonial como arquivos, bibliotecas e museus. Seus objetivos são “abrir as portas a diferentes agentes científicos e cultu-rais, como professores, pesquisadores universitários ou não, ensaístas, cole-cionadores, além de editar textos cien-tíficos, consolidar, inventariar e ampliar seus acervos, de modo a se constituírem em centros de referência documental”.

O IGHB nasceu cinco anos depois da Proclamação da República no vácuo do

O IGHB mirou-se no Instituto His-tórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado no Rio de Janeiro em 1838. Os fluminenses, por sua vez, tiveram como modelo o Instituto Histórico de Paris. Antes da Bahia, foram criadas institui-ções congêneres em Pernambuco, Ala-goas e Ceará. São Paulo fundou o seu no mesmo ano do baiano, em 1894. Hoje, há um total de 23 institutos históricos estaduais e 52 municipais. De acordo com Arno Wehling, presidente do IHGB, os institutos históricos e geográficos são instituições acadêmicas diferentes

SOCIEDADE CIENTíFICA

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sede do ighb hoje (esq.) e nos anos 1920, quando foi inaugurada: necessidades iguais às de outros monumentos arquitetônicos

Instituto Histórico da Bahia, fundado em 1855, mas desativado depois de 13 anos sem alcançar seus propósitos. A nova instituição desenvolveu-se bem, não sem enfrentar dificuldades para se manter nas décadas seguintes, apesar do apoio inicial recebido das elites eco-nômica e política do estado e da bela se-de erguida em 1923. “Vamos superando os obstáculos e estamos sempre lutando para não ficarmos presos ao passado”, diz Consuelo Pondé de Sena, presidente da instituição conhecida como a Casa da Bahia. “Pelo contrário, continuamos muito ativos e olhando para o futuro.”

As comemorações do dia 13 parecem dar razão a ela. Desde o começo do ano ocorrem cursos, palestras e mesas-re-dondas sobre os mais diversos temas – de futebol à história da Bahia. Algumas personalidades de destaque no estado foram escolhidas para receber a Meda-lha do Mérito do instituto. Além disso, houve o lançamento do livro Instituto Geográfico e Histórico da Bahia – origem e estratégias de consolidação institucio-nal (1894-1930), resultado da tese de

doutorado de Aldo José Morais Silva defendida na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Outros eventos come-morativos marcam o mês de maio: o seminário internacional “Portugal e Brasil: interfaces entre história, me-mória e patrimônio” (dia 27) e o curso sobre iconografia musical (dias 28 e 29). No segundo semestre, o destaque será o VI Congresso de História da Bahia. Para acompanhar a programação, basta acompanhar o site www.ighb.org.br.

MaPas e cartas

A riqueza do IGHB está no seu acervo. A maior coleção de jornais baianos, do sé-culo XIX até hoje, a coleção cartográfica mais numerosa – e já digitalizada – do estado e os 30 mil títulos da biblioteca Ruy Barbosa são uma amostra do que foi amealhado até hoje. Há também arqui-vos de personalidades como o de Theo-doro Sampaio – presidente do instituto entre 1922 e 1927 – e o de Braz do Ama-ral e joias como manuscritos de Castro Alves e cartas de Antônio Conselheiro.

“Esse material é importante não só para preservar a memória, mas tam-bém para permitir a pesquisa docu-mental de estudantes, professores e pesquisadores profissionais que bus-cam no instituto informações que as bibliotecas das universidades não têm”, explica Edivaldo Boaventura, sócio e

orador oficial do instituto. Ele diz que a população de Salvador sempre foi próxima da Casa da Bahia, a institui-ção mais antiga do estado. O IGHB é o guardião do Pavilhão 2 de Julho, no Largo da Lapinha. É lá que estão os principais símbolos da maior festa cí-vica do estado, o Caboclo e a Cabocla, ícones da participação popular nas lu-tas pela independência na Bahia, que tiveram fim em 2 de julho de 1823.

O ex-governador e presidente de honra do IGHB, Roberto Santos, co-nhece bem o valor do instituto para a cultura do estado. “Membros titulares desta casa têm realizado e fomenta-do estudos e pesquisas reconhecidos como de máxima importância para a compreensão da nossa realidade pas-sada, atual e futura”, disse ele em seu discurso durante as comemorações do dia 13. “E têm patrocinado eventos que revelam, inequivocamente, o sentido construtivo da contribuição institu-cional à nossa identidade.”

Embora as qualidades do IGHB sejam conhecidas, os recursos são suficientes apenas para sua manutenção essencial. O governo estadual paga água, luz e sa-lários dos funcionários. Os diretores não são remunerados. “Em 2014, nos-sa sede completará 91 anos e muitos dos equipamentos estão obsoletos ou desgastados pelo uso contínuo”, escre-veu Consuelo Pondé em artigo recente. “Nossas necessidades são iguais à de outros monumentos arquitetônicos, que precisam de constantes reparos e substituições.” Algumas restaurações são feitas com recursos próprios, mas falta dinheiro, por exemplo, para res-taurar parte da coleção da pinacoteca, pintar o prédio e substituir as cortinas confeccionadas ainda em 1993.

No intuito de conseguir recursos, Consuelo enviou correspondência soli-citando a atenção de empresários baia-nos. A verba teria de ser repassada pelo programa Fazcultura e deduzida dos impostos cobrados das empresas. “Essa medida ajudaria a tornar viável alguns dos nossos projetos e a assegurar a so-brevivência da instituição”, diz ela. w

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Soaria estranho dizer que o projeto Núcleos Estaduais de Orquestras Ju-venis e Infantis da Bahia (Neojiba) vem protagonizando uma revolução silenciosa no cenário sóciocultural

brasileiro. Porque essa revolução, a rigor, não é nem poderia ser silenciosa: ela brota da prática musical de 980 crianças e jovens, com reverbe-rações por todo o estado, numa germinação ar-tística inédita no país. Algo que vem chamando a atenção de especialistas de várias partes do mundo. Portanto, trata-se de uma revolução feita de sons. Massa de sons. Mas também se trata de uma silenciosa revolução de mentali-dades, em busca de uma sociedade mais justa, mais democrática, mais harmônica.

“Não vamos ficar fazendo espetáculo”, avisa o maestro Ricardo Castro, 49 anos, um baiano de Vitória da Conquista que provou da cele-bridade internacional a partir dos anos 1980, como pianista, e hoje comanda essa revolução silenciosa. “Espetáculo é o que vem fazendo boa parte das orquestras jovens pelo mundo. Defi-nitivamente, não é o nosso caso.” A declaração convicta, irredutível até, aconteceu numa das pausas de ensaio da Orquestra Jovem da Bahia – a Yoba, sigla em inglês para Youth Orchestra of Bahia – dias antes da partida do conjunto para sua primeira turnê nos Estados Unidos.

Com 140 integrantes, a Yoba se apresentou em fevereiro deste ano em cinco estados americanos: Califórnia, Indiana, Arizona, Missouri e Flórida. Ao todo, foram 12 concertos em 11 cidades, com re-pertório sinfônico de peso (obras de Tchaikovsky, Stravinsky e Ravel, por exemplo) e composições de autores nacionais (entre eles, Villa-lobos e Zequi-nha de Abreu). Também aproveitará para trocar experiência com outras orquestras jovens nessas localidades. Depois voltou ao Brasil para mais um semestre de trabalho, quando então partirá no-vamente, desta vez rumo ao verão europeu: será a orquestra residente do Festival de Montreux de 2014, em julho, na Suíça, de onde saltará para mais concertos na Itália e Inglaterra.

Haja fôlego – é agenda digna de orquestra de porte internacional. Então, como o maestro insiste em dizer que o foco de todo este traba-

apresentação da orquestra

juvenil da bahia em agosto

de 2013, na igreja de

são Francisco, em salvador

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conjunto de orquestras envolve

980 crianças e adolescentes numa

iniciativa inédita no país

Laura Greenhalgh*

Todos os sons de uma revolução silenciosa

no Teatro castro alves, em 1º de fevereiro: participação do pianista francês jean Yves Thibaudet (à frente, ao lado do maestro ricardo castro) na última apresentação antes da turnê nos eua

INCLuSãO SOCIAL

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lho não é a exibição pública, não é o concerto? Elucidar este ponto talvez seja a chave da com-preensão do Neojiba, um laboratório socioedu-cativo inspirado no El Sistema, o bem-sucedido modelo venezuelano de consolidação da cida-dania de jovens e crianças, através da prática musical coletiva. No Brasil, o modelo aterrissou em 2007 pelas mãos do próprio Castro, impres-sionado com o que viu na Venezuela, numa de suas passagens pelo país como pianista.

Fundado em 1975 pelo economista e musi-cista José Antonio de Abreu, o El Sistema hoje conta com 350 mil participantes e já

semeou cerca de 180 orquestras jovens pelo país. Já o Neojiba, uma organização social tratada co-mo prioridade pelo governo baiano, prepara-se para atender 2.700 participantes até o fim de 2014, reunidos não apenas em orquestras, mas também em formações de câmara e música coral. Os números absolutos do programa, realizado em âmbito estadual, sempre serão menores que os venezuelanos, de âmbito nacional. Mas o fa-to é que hoje o El Sistema olha para o Neojiba como o seu rebento mais vigoroso.

O maestro Ricardo Castro não se cansa de repetir: “Aqui a música é o meio, não o fim”. Desde que foi tocado pela vitalidade do modelo venezuelano, tem insistido naquilo que consi-dera ser o objetivo último do Neojiba: preparar crianças e jovens para os desafios do mundo de hoje, num ciclo de superações e descobertas pessoais que os farão mais conscientes, mais concentrados e mais confiantes nas próprias capacidades. Se a música acaba entrando de-finitivamente em suas vidas, ótimo. Mas é tão somente a boa decorrência do processo.

“Quando você ensina gramática da língua por-tuguesa para uma criança, você não cobra dela que seja um escritor no futuro, certo? Então, por que eu cobraria de um praticante de violino que venha a ser um solista ou mesmo um vir-tuose?”, compara Castro. Este tipo de cobrança foi descartado desde os primórdios do projeto, quando o pianista-maestro contou com o apoio decisivo do então secretário estadual de Cultu-ra da Bahia, Márcio Meirelles. Ambos tomaram para si a decisão de formar o El Sistema baiano.

Cerca de 90% dos 980 participantes do Neo-jiba vêm de camadas mais carentes da popula-ção. Os 10% restantes saem da camada alta e são admitidos sem restrição. Porque o projeto não adota – ao contrário, rejeita – o conceito

de “inclusão social”. Nele se fala em “integração social”. Algo que se constrói nas vivências do dia a dia, como quando os jovens ins-trumentistas se juntam para ir à praia, independentemente de se-rem pobres ou ricos, de viverem na periferia ou nas zonas mais ricas. Ou quando se cotizam para alugar um pequeno apartamento em Sal-vador, dividindo não só despesas, mas também a rotina de discipli-na e tenacidade de um músico em formação. “Nós colocamos esses meninos para tocar juntos logo que chegam. Isso acaba levando a uma paz social até incomum em nossa sociedade”, festeja Castro. A ideia é que o Neojiba mantenha-se aberto a todos os segmentos da população, operando sempre na perspectiva da integração.

Hoje o maestro também festeja a transferên-cia do projeto da Secretaria Estadual de Cultu-ra, onde nasceu, para a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza, onde se encontra. Esta guinada administrativa não só possibilitou um aumento de 40% no orça-mento do Neojiba – estava em RS$ 4,5 milhões/ano e vai para RS$ 7 milhões em 2014, volume de recursos que compreende não só o repasse do governo baiano, mas também parcerias, doa-ções e patrocínios –, como ainda garante que o compromisso primordial do programa seja man-tido. De novo, não se trata de formar músicos, mas sim cidadãos, através da atividade musical.

Em sete anos de expansão contínua, o Neojiba passou a demandar uma estrutura administra-tiva mais complexa. Sua gestão foi entregue à Associação de Amigos das Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Aojin) e do Neojiba – acom-panhada de perto por um conselho de adminis-tração presidido pelo médico Roberto Santos, ex-governador da Bahia e fundador da Academia de Ciências do estado. Santos e seus conselheiros atuam como verdadeiros embaixadores do pro-grama. Tem sido algo fundamental para a capta-ção de recursos e o estímulo de novas parcerias.

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Como se sabe, os venezuelanos saíram na frente, há quatro décadas, ao identificar que a prática musical coletiva opera transformações profundas

a ideia é que o neojiba

mantenha-se aberto a todos os

segmentos da população,

operando sempre na perspectiva da integração

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no indivíduo, especialmente quando em fase de formação e, mais ainda, em situação de vulnera-bilidade. Hoje é possível pinçar iniciativas que guardam alguma similaridade em zonas social-mente instáveis, como Afeganistão, por exem-plo, ou em certos países da África. E mesmo em cidades desenvolvidas da Europa, cujas socieda-des têm sido contaminadas por crescente onda de xenofobia, não raro expressa na aversão aos imigrantes. Caso de Berlim e Londres, com bons programas musicais de caráter socioeducativo.

O El Sistema, contudo, estruturou a pos-sibilidade de reação. Uma proposta pe-dagógica concreta, aplicável a diferentes

realidades e ancorada no desenvolvimento pes-soal a partir da experiência musical compartilha-da. Perguntado por que a música tem se mostrado uma experiência tão estruturante, eis a resposta de Castro: “Porque é uma linguagem universal que transcende os sentidos e as emoções, e isso acontece em diferentes lugares, sob diferentes condições. Porque promove um desenvolvimento incomum das sensibilidades do indivíduo. Porque abre possibilidades únicas de diálogo. A música desperta valores estéticos, comportamentais, humanos. Feita em grupo, então, faz com que o coletivo compartilhe determinadas regras para atingir uma só meta, a beleza. Isso acaba trans-formando não só os jovens músicos, mas também aqueles que vivem ao seu redor”.

Como diz o próprio Abreu, no premiado do-cumentário Tocar y Luchar, sobre o El Sistema, quem percebe a harmonia estruturante da mú-sica começa a perceber, e a acessar, a harmonia interna do ser humano. No Neojiba, são recor-rentes os relatos de crianças e jovens sobre co-mo suas vidas foram transformadas desde que começaram a tocar em grupo. Levantamento socioeconômico encomendado pelo projeto re-velou que, entre os participantes, havia muitos jovens que moravam em favelas, alguns até em casas de papelão.

“Sem música, minha vida seria em preto e branco. A menina que entrou no Neojiba há quatro anos, para tocar viola, hoje é ou-tra pessoa. Que toda Salvador e todo o Brasil desfrutem dessa experiência”, conclama Luiza Santos, 20 anos. “Acho que nunca vou largar o Neojiba. Por toda a vida quero estar ligado a ele, como músico e cidadão”, projeta Yuri Azevedo, 21 anos, prêmio de regência do Fes-tival de Inverno de Campos do Jordão, hoje se aperfeiçoando em Maryland, nos Estados Unidos. Primeiro músico da família, Yuri é visto como grande promessa do pódio no Bra-sil. Vale lembrar que a sensação do mundo da regência, atualmente, é o venezuelano Gus-tavo Dudamel, justamente saído das fileiras do El Sistema. Dudamel encontra-se à frente da Filarmônica de Los Angeles, como diretor artístico e regente titular.

The granada Theatre, em santa bárbara, califórnia: uma das escalas da turnê, em 17 de fevereiro

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Assim como aconteceu a Yuri, centenas de jovens têm se beneficiado do empurrão inicial do projeto e de todo um conjunto de condições que lhes permite a continuidade da experiên-cia. O Neojiba garante não só o instrumento de eleição do próprio participante, como também todo o material didático, aulas individuais, ali-mentação e auxílio-transporte. Há casos de bol-sas integrais, também – hoje são mais de 160.

As famílias desses músicos, que antes nun-ca haviam colocado os pés em salas de con-certo, passam a frequentá-las – em contato, e em igualdade de condições, com famílias que visitam até salas internacionais. O efeito pro-pulsor do projeto se faz sentir na comunidade. Até o aproveitamento escolar dos integrantes do Neojiba tende a melhorar, sem falar na es-pantosa evolução em línguas estrangeiras: o espanhol, por exemplo, tornou-se língua fluen-te entre eles, em virtude da convivência com músicos e pedagogos venezuelanos. O inglês se desenvolve em viagens ou no contato com professores e solistas estrangeiros, que vêm atuar no programa. Até o alemão, tão impor-tante no mundo e na literatura da música clás-sica, tem sido aprendido em aulas dadas por voluntários. E as apresentações? Até o final de 2012, foram 240, para um público de mais de 150 mil pessoas. Sempre estiveram lotadas.

efeito reverberador

Se a beleza é meta, a busca da excelência é com-promisso. Não se trata de fazer música de for-ma amadorística, mas de acordo com padrões de qualidade, elevados constantemente. “Isso provoca um despertar de mentalidade. Esses meninos percebem que, bem preparados, a mú-sica será para eles uma porta de acesso a um mercado de trabalho interessante. Ou seja, eles sentem que há futuro naquilo que fazem ago-ra”, explica Castro. Não é por acaso que, hoje, boa parte dos alunos de música da Universi-dade Federal da Bahia já é oriunda do Neojiba.

A busca da excelência também se nota na pre-sença regular de professores estrangeiros, vindos de instituições renomadas, como o Conservató-rio de Genebra ou a Juilliard School of Music, de Nova York, ou de orquestras de primeiríssima linha, como a Filarmônica de Berlim, a Suisse Romande, a Concertgebouw de Amsterdã. Há casos de solistas que inclusive pedem para vir a Salvador, para trabalhar com os “neojibas”. Co-mo a celebrada violinista japonesa Midori, cuja

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1 orquestra castro alves, no Teatro Vila Velha, em

salvador, sob regência de Yuri azevedo, em 2012

2 e 3 aulas da orquestra pedagógica experimental

em 2010

4 orquestra sinfônica juvenil da bahia, no

auditório claudio santoro, em campos do

jordão, em julho de 2010

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n Sinfônica Jovem da Bahia já dão aulas. “E vão ensinar mesmo. Contamos com essa genero-sidade, que é fundamental para manter a roda girando”, explica Castro. Essa transferência do saber adquirido cria um sentido de coesão muito forte nos grupos, pois todos ali estão se desenvolvendo juntos, cada dia mais e me-lhor, uns estimulando outros. É uma vivência radicalmente oposta à cultura do conservató-rio, rígida, exclusivista, parece que feita para moldar músicos de competição.

É essa coesão interna que permite aos “neojibas” encarar desafios de enorme responsabilidade, como tocar em salas

de prestígio no exterior – citando algumas: Queen Elizabeth Hall e o Royal Festival Hall, em Londres, ou o Centro Cultural de Belém, em Portugal – ao lado de solistas do porte dos pianistas Lang Lang e Maria João Pires ou do violinista Schlomo Mintz. “Posso garantir que esses meninos, muitos deles nascidos e criados em favelas, comportam-se como lordes num Queen Elizabeth Hall. Sabem perfeitamente onde pisam”, orgulha-se Castro.

Para o maestro, o projeto já foi muito além daquela aposta original que fez em 2007, no auge de sua trajetória como pianista, ele, um dos aclamados vencedores do Concurso Inter-nacional de Piano de Leeds, na Inglaterra – con-curso que, vale ressaltar, é a chancela definitiva para uma carreira de vulto. Em conversa com esta autora em Londres, alguns meses atrás, ao ser admitido como membro da Royal Philhar-monic Society, Castro lembrou que, ao vencer as provas de Leeds, em 1993, sentiu-se como se tivesse chegado ao topo do Himalaia, “mas profundamente sozinho”. Entrou de cabeça no circuito internacional dos pianistas top class, continuando a se sentir sozinho. Até assumir para si a ideia de que a música erudita não po-de ser uma experiência solitária, dirigida a um público de privilegiados. E assim o aclamado intérprete, ainda hoje professor da Haute École de Musique de Lausanne, na Suíça, optou por reduzir suas aparições, para dedicar o máximo de seu tempo, e de suas energias, ao projeto musical que criou e ainda quer ver deslanchar mais. Numa conversa informal, foi possível ouvi--lo numa confissão banhada em alegria: “Não fiz pela minha carreira solo o que tenho feito pelo Neojiba”. Brasileiros lhe serão eternamen-te gratos por isso. w *colaborou Liana Rocha

carreira internacional estourou aos 11 anos, na Filarmônica de Nova York, sob a batuta de Zubin Mehta. “Esses professores de fora chegam atraí-dos pela vitalidade do projeto e pelos encantos da Bahia, claro. E nós temos muita satisfação em acolhê-los”, diz o maestro.

Assim a revolução pela música vai se articu-lando em diferentes formações – além da Or-questra Jovem da Bahia, o projeto estruturou a Sinfônica Juvenil 2 de Julho (J2J) e a Orquestra Castro Alves (OCA), com 90 e 80 músicos res-pectivamente; a Orquestra Pedagógica Experi-mental (OPE), que oferece capacitação musical para a faixa de 7 a 15 anos – o limite etário de participação acontece aos 28 anos –; e ainda um coro com 40 vozes. Sistemicamente, também estão sendo implantados núcleos de prática orquestral e coral não só em Salvador e região metropolitana, mas também em outras regiões do estado – como Trancoso, por exemplo, que se consolida como polo musical, com forte apoio da iniciativa privada. Assim como novos grupos aparecem a partir de iniciativas da própria co-munidade, caso do município de Conceição do Coité, que já pode se orgulhar da sua Orquestra Santo Antonio. Ou da cidade de Serrinha, onde brotou a Orquestra do Sisal. Ou ainda de Teixeira de Freitas, sede da Orquestra da Paz . O Neo-jiba se faz presente em todas estas iniciativas.

sonho da casa PróPria

Hoje as atividades do projeto se concentram ba-sicamente no Teatro Castro Alves, em Salvador, mas o grande sonho é vir a ter sede própria, com todos os equipamentos necessários para dar con-ta de um sistema que se diferencia justamente na expansão sem limites. “Ainda não conseguimos ter a nossa casa e isso faz uma falta tremenda”, pondera o maestro Castro. Soluções de espaço vão surgindo a partir das demandas. É o caso do ateliê de luteria, cujo coordenador pôde apren-der na Suíça a arte da construção e do restauro de instrumentos. Este centro funciona hoje em casa doada pela fotógrafa Anna Mariani e de lá saem instrumentos de cordas e percussão. Numa parceria com a Braskem, o centro desenvolveu toda uma linha de instrumentos de plástico, mais leves e de manutenção barata, ideais para a iniciação musical de crianças.

À medida que a prática musical avança, jo-vens músicos começam a ensinar aqueles que sabem menos, e assim por diante, de tal forma que hoje pelo menos 50% dos integrantes da

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charGe

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horas íGneas

Eu sôrvo o haxixe do estio…E evolve um cheiro, bestial, ao solo quente, como o cioDe um chacal.

Distensas, rebrilham sôbreUm verdor, flamâncias de asa…circula um vapor de cobreOs montes – de cinza e brasa.

Sombras de voz hei no ouvido– De amôres, ruivos, protervos –E anda no céu, sacudido,Um pó vibrante de nervos.

O mar faz mêdo… que espancaa redondez sensualDa praia, como uma ancaDe animal.

iiO Sol, de bárbaro, estangue,Olho, em volúpia de cisma, Por uma côr só do prisma,Veleiras, as naus – de sangue…

iiiTão longe levadas, pelasMãos de fluido ou braços de ar!cinge uma flora solar– Grandes Rainhas – as velas.

Onda por onda ébria, erguida,as ondas – povo do mar –Tremem, nest’hora a sangrar, Morrem – desejos da Vida!

iVnem ondas de sangue… e sanguenem de uma nau – Morre a cisma.Doiram-se as faces do prismaMulheres – flôres – num mangue…

(in Re-visão de Kilkerry, augusto de campos, 1970)

Pedro Kilkerry

(Santo antonio de Jesus, ba; 1885-1917)